Identidade Nômade - Heterotopias de Mim.

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30/10/2015 Identidade nômade http://www.tanianavarroswain.com.br/chapitres/bresil/heterotopias%20de%20mim.htm 1/16 Identidade nômade : heterotopias de mim. Novembro/2000-10-16 Colóquio Foucault/Deleuze-Unicamp Que estamos fazendo de nós mesmos? Mas finalmente, quem somos “nós”? Ou ainda quem sou eu que partilha, constitui, integra ou recusa, desfaz, desloca este “nós”? Na imbricação entre o social e o individual , do “nós”e do “eu”, encontra-se a dicotomia que enclausura o pensamento em um pressuposto binário do tipo natureza/cultura, real/imaginário, bem/ mal; esta perspectiva supõe um esquema de apreensão e análise das relações sociais que se compraz ainda no maniqueísmo de pares opostos e/ ou complementares. Os mecanismos da reflexão crítica permanecem assim fixos , mascarando a realidade que constróem. Porque a dicotomia, o binário, senão como fruto de uma linearidade do olhar, de uma homogeinização que furta e esconde o múltiplo nas dobras de discursos regularórios? No cadinho das práticas sociais o “eu” se forja em peles, delimitando corpos normatizados, identidades contidas em papéis definidores: mulher e homem , assim fomos criados por uma voz tão ilusória quanto real em seus efeitos de significação, cujos desígnios se materializam nos contornos do humano. Estes traços, desenhados por valores históricos, transitórios, naturalizam-se na repetição e reaparecem fundamentados em sua própria afirmação: as representações da “verdadeira mulher”, e do “o verdadeiro homem” atualizam-se no múrmurio do discurso social. Assim, o múltiplo contido no “nós” social fica reduzido a um binário que cria em torno da norma um espaço ao mesmo tempo de rejeição e de inclusão. Estou aqui falando de seres sexuados, cujas práticas são definidoras de seus corpos, cujas identidades são essencializadas na coerência entre o sexo e o gênero, entre um biológico tido como natural e um esquema de atribuições sociais a ele atrelado. Em função desta coerência, o espaço ao redor, o espaço constitutivo do binômio femnino/ masculino inclui e cria o desvio na constante re-articulação da norma e a norma é o “verdadeiro” sexo. Como ironiza Foucault: “Acordai, jovens! de vossos prazeres ilusórios; despojai-vos de vossos disfarces e lembrai-vos que tendes um verdadeiro sexo! “ Aquele[..] que esconde as partes mais secretas do indivíduo, a estrutura de seus fantasmas, as

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Identidade nômade : heterotopias de mim.

                                                         

Novembro/2000-10-16

Colóquio Foucault/Deleuze-Unicamp

Que estamos fazendo de nós mesmos? Mas finalmente, quem somos“nós”? Ou ainda quem sou eu que partilha, constitui, integra ou recusa, desfaz,desloca este “nós”?

Na imbricação entre o social e o individual , do “nós”e do “eu”,encontra-se a dicotomia que enclausura o pensamento em um pressupostobinário  do tipo natureza/cultura, real/imaginário, bem/ mal; esta perspectiva supõe um esquema de apreensão e análise das relações sociais que  se comprazainda no maniqueísmo de pares opostos e/ ou complementares. Osmecanismos da reflexão crítica permanecem assim fixos , mascarando  arealidade que constróem.  Porque a dicotomia, o binário, senão como fruto deuma linearidade do olhar, de uma homogeinização que furta e esconde omúltiplo nas dobras de discursos regularórios?

No cadinho das práticas sociais  o “eu” se forja em peles, delimitandocorpos normatizados,  identidades contidas em papéis definidores: mulher ehomem , assim fomos criados por uma voz tão ilusória quanto real em seusefeitos de significação, cujos desígnios se materializam nos contornos dohumano.  Estes traços, desenhados por valores históricos, transitórios,naturalizam-se na repetição e  reaparecem fundamentados  em sua própriaafirmação: as representações  da  “verdadeira mulher”, e do  “o verdadeirohomem” atualizam-se no múrmurio do discurso social.

 Assim, o múltiplo contido no   “nós” social fica reduzido a umbinário que cria em torno da norma um espaço  ao mesmo tempo de rejeição ede inclusão. Estou aqui falando de seres sexuados, cujas práticas são definidorasde seus corpos, cujas identidades são essencializadas na coerência entre o sexo eo gênero, entre um biológico tido como natural e um esquema de atribuiçõessociais a ele atrelado. Em função desta coerência, o espaço ao redor, o espaçoconstitutivo do binômio  femnino/ masculino inclui e cria o desvio naconstante re-articulação da norma e a norma é o “verdadeiro” sexo. Comoironiza Foucault: “Acordai, jovens!  de vossos prazeres ilusórios; despojai-vos devossos disfarces e lembrai-vos que tendes um verdadeiro sexo! “ Aquele[..] queesconde as partes mais secretas do indivíduo, a estrutura de seus fantasmas, as

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raízes de seu eu, as formas de sua relação com o real. No fundo do sexo, está averdade”.( Foucault , 1982: 4)

Estou falando também de sexualidade e das práticas que compõem opermitido , o pensável, o aceitável, traçando em sua esteira os sulcos do erro ,práticas que “[...] insultam ‘a verdade’: um homem ‘passivo’, uma mulher ‘viril’,pessoas do mesmo sexo que se amam...”ou seja, “[...] um modo de fazer quenão se adequa à realidade.”como explicita Foucault ( idem, 1982:4.) Realidadeconstruída, heterossexualidade arauto da divina procriação, eixo reprodutor quejustifica e interina a importância dada a um certo tipo de relação sexual, a “boa”,a “normal”.

Judith Butler ( Butler, 1993:3) comenta estas margens de “erro”, estetopos, apontando- o como o fantasma do múltiplo que acompanha  a ordemnormativa : a criação do “abjeto” insere-se na “regulação de práticasidentificatórias” e  mostra assim o caráter provisório da norma e suahistoricidade, que exige a constante re-citação, a permanente  reafirmação daordem instituída enquanto ordenamento natural.

A  multiplicidade sexual , assim, assombra e penetra os espaçosbinários. Ou seriam as práticas sexuais múltiplas? Questões de ordem diversaporém indissociáveis, na medida em que às práticas concede-se o sêlo daidentidade sexual, definidora dos indivíduos. É a prática da sexualidade,portanto, que organiza o “eu” e faz de mim uma identidade inteligível , jogo de“verdades” que cria a ilusão de um sujeito ontológicamente definido por suasujeição/ resistências às   práticas regulatórias.   Temos assim mulheres, homens– identidades definidas num  esquema binário, heterossexual, reprodutivo,“natural”- rodeados de uma multidão de práticas que traduzem identidadesincompletas, incorretas, incômodas.

Quem somos ‘nós”, assim, encerrados em corpos sexuados,construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, construídasem condutas mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo feminino,representada enquanto mulher, cujas práticas não cessam de apontar para asfalhas, os abismos identitários contidos na própria dinâmica do ser?

 Foucault marca uma posição: “Não me pergunte quem sou e nãome diga para permanecer o mesmo” ( Foucault, 1987:20 )  Deleuze, por outrolado, aponta para caminhos de subjetividade: “Não apenas chegar ao pontoonde não se diz mais  eu, mas ao ponto no qual não há a menor importância dedizer ou não eu. ( Deleuze,1980: 9)  Porque ficar assentados nas raízes e nomúltiplo ordenado da árvore, se o tempo é do rizoma? 

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O sistema arborescente, descrito por Deleuze,  preexiste ao indivíduoque a ele se integra em um lugar preciso.  Explicitaria talvez  a representação eauto-representação identitária  em regimes ordenadores de uma correlaçãobiunívoca do sexo biológico ao gênero social,  instalados em hieraquia pois  “[...]  comportam centros de  sigificância  e de subjetivação, autômatos centraise memórias organizadas” . ( Deleuze,1980: 25)

Assim, o indivíduo se afirma em um espaço de normalidade ou emuma brecha du dehors, sujeito que aparece na multiplicidade domesticada.Como observa  Deleuze

“[...] a noção de unidade  só aparece quando se produz namultiplicidade uma tomada de poder pelo significante, ou porum processo correspondente de subjetivação”( Deleuze,1980:15), e ainda  “[...] cada vez que uma multiplicidade seencontra presa em uma estrutura seu crescimento écompensado por uma redução das leis de combinação.”(idem,12)

Ou seja, no caso de identidades sexuadas, a  multiplicidade é ordenada , classificada , nomeada a partir de corpos delineados em sexualidade,em heterossexualidade, limitados pela produção de identidades fixas.

Quanto à multiplicidade no rizoma, a polaridade  desaparece poisnão há um ponto central determinante, apenas uma ordem de dimensões, degrandezas,”[...] que não podem crescer sem mudar de natureza.” (Deleuze,idem:14/15) Não há pontos ou posições em um rizoma, [...] há apenaslinhas diz Deleuze” ( idem) Não há portanto fixidez, apenas transitoriedade,movimento, transformação.

Que faço eu de mim? No pronome oblíquo, o desdobramento dosujeito em objeto. Na ação, o assujeitamento à práticas regulatórias ou areflexão crítica que faz de mim uma “forasteira de dentro” ( Hutcheon:, 1991, 98) ancorada em minha identidade de gênero, experiência de  um corposexuado, cuja pesada materialidade pede um questionamento. Afinal, porque o“eu” seria definido por traços biológicos ou por práticas sexuais, senão atravésde conveções socio-históricas, de repetições incessantes que atuam em todos osníveis do humano, do cotidiano mais banal ao científico mais elaborado?

Identifica-se aí uma certa ordem , uma economia do discurso atuandoatravés  de  suas tecnologias  intrínsecas, segundo “[...]  as necessidades deseu funcionamento, as táticas  que atualiza, os efeitos de poder que ofundamenta e veicula”  como sublinha  Foucault. ( Foucault, 1976:92)

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Se os discursos compõem as “tecnologias do sexo” , como apontaeste autor,  desenhando   corpos em sujeitos sexuados, para Tereza de Lauretisestas se desdobram em “tecnologias do gênero”, polarizando, hierarquizando efixando identidades assimétricas no agenciamento social, fundamentadas nosexo . ( de Lauretis, 1987)

De um lado o masculino, cuja genitália , física ou metafórica,concede-lhe um local de poder e de autoridade enquanto sujeito universal: ohomem, sinônimo de humano, sujeito dotado de transcedência. De outro, ofeminino, o Outro inevitável, marcado pela imanência de um corpo que lhe édestino , na maternidade e na sexualidade.  As “tecnologias de gênero” seriamos dispositivos institucionais e sociais que “[...] teriam o poder de controlar ocampo de significação social e assim produzir, promover e implantar asrepresentações de gênero.”( de Laretis,1987: 18) Através da linguagem, daimagem, do extenso leque de discursos teóricos nos mais diversos camposdisciplinares,  de todo um aparatus simbólico que designa , cria e institui o lugar, o status e o desempenho do indivíduo na sociedade, as “tecnologias dogênero” constróem uma realidade feita de representações e auto-representações.

Na instauração de corpos sexuados cria-se ao mesmo tempo osistema de sexo/gênero que, como explicita de Lauretis, seria uma aparelhosemiótico, um construto socio-cultural e um sistema de representações quedesigna  identidades, valores e normas. ”( de Laretis,1987: 5)

Vemos aí uma política de localização socio-individual, de expressãoidentitária e de instituição de normas e regras, a partir da importância dada aosexo e sexualidade como eixos de representação do ser:  “ diga-me teu sexo e tedirei quem és e sobretudo, o que vales.”

Da decodificação da “tecnologia do sexo” aplicada de forma universalà produção do humano , a noção de “tecnologia do gênero” traduz um recorteque observa sua atualização polarizada.  Ao construir seres sexuados, astecnologias sociais esculpem mulheres e homens, além das identidades múltiplasque circundam o binário naturalizado.

Por outro lado,  Foucault aponta para as “tecnicas de si” quepermitiriam ao sujeito  efetuar sobre seu corpo, alma, pensamentos, condutas,um certo número de operações “[...] de maneira a produzir neles umatranformação, uma modificação e atingir um certa estado de perfeição, defelicidade, de pureza [...]”. ( Foucault, 1994 :171)

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Nesta perspectiva, se o espaço histórico-institucional produz os seressexuados, estas representações são absorvidas em um processo de auto-representação, de auto-domesticação , na medida em que o sujeito instituído“eu” atua na absorção e reprodução de “si ” segundo as práticas regularórias dosocial/ sexual. As “técnicas de si”segundo avança Foucault, exigem uma série deconstrições, de obrigações em torno da “verdade” sobre si: auscultá-la, digerí-lae sobretudo explcitá-la. (Foucault, 1994: 171)

Entretanto, esta formulação supõe um sujeito anterior às práticas nasquais se situa.

Como sublinha Judith Butler “[... ] como e onde atuo enquanto seré a forma como este “sendo”  se torna estabelecido, instituído, circulante econfirmado.”( Butler,1991:18) Ou seja, a identidade de gênero institui suaprópria  imagem  e se realiza em sua atualização: o “eu” se torna possívelenquanto sujeito através de práticas e representações  de  “mim”. Não preexisteà sua instituição. Talvez pudéssemos chamar “técnicas de mim”este processoem que de mim para mim e de mim para os outros eu digo e represento: “eusou”. Eu sou um sexo, uma mulher, um gênero, eu assumo uma identidadesulcada pelo sistema sexo/gênero, que determina a coerência do gênero, ouseja,[...] o que a pessoa sente, como age e como expressa sua sexualidade emarticulação e consonância com o gênero”,( Butler, 1994 : 36) no qual seclassifica e se produz.

Ou então, eu pertenço ao espaço de fora, de identidadesameaçadoras ao núcleo do centro , à heterossexualidade hegemônica, incorporadas porém  de fato ou de direito: gays, que por sua vez se dividem emfeminino e masculino, ou drags, kings e queens e assim por diante.

  Estas “técnicas de mim”seriam performativas, no sentido dado porButler, em que produzem aquilo que nomeiam ou representam. (Butler,1993:107) De fato, como sublinha esta autora, 

[...] a coerência do gênero, que se realiza na aparente repetiçãodo mesmo produz como seu efeito a ilusão  de um sujeitoprecedente e volitivo.E assim, [...] o gênero não é umaperformance que um sujeito anterior elege para realizar, mas ogênero é performativo, no sentido em que constitui comoefeito o sujeito que pretendo expressar. ( Butler, 1991:24)

Mas e este corpo, cuja materialidade é inegável, este corpo no qual sealojam pulsões, este corpo que se traduz em desejos e impulsos? Este corpo ao

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qual é atribuída uma identidade antes mesmo de estar no mundo,  no desejomanifesto do nascimento de uma menina ou de um menino?

A antropologia feminista vem mostrando inumeráveis culturas ondeo sexo biológico da criança não é determinante de sua identidade social.[1]Desde os anos 80 iguamente, diversas teóricas feministas  apontam aheterossexualidade compulsória como matriz de inteligibilidade no pensamentoe no agenciamento social. O eixo naturalizador é a reprodução, legitimadora ejustificadora de uma sexualidade “legítima”, prática ligada ao “verdadeiro sexo”.

Entretanto, a própria historicidade do relacionamento heterossexual faz com que sua  prática hegemônica se mantenha através da repetição, da re-citação incansável de sua condição “natural”.  Como salienta Butler

“[...] uma das razões pelas quais a heterossexualidade tem quese re-elaborar, reproduzir-se ritualisticamente em toda parte épara suplantar o sentido constitutivo de sua própriafragilidade[...]”( Butler, 1994 : 34) 

E sublinha : “Creio que o simbólico é o sempre-já pronto-lá (always-already-there) mas está também em processo de ser  feito e refeito. Nãopode continuar a existir sem  uma produção ritualística pela  qual écontínuamente reinstalado .”( Butler, 1994: 36)

Deste modo,  a orientação do desejo e da sexualidade em uma sódireção – o sexo oposto- cria  núcleos identitários sexuais , construídos pelas“técnicas de mim”, pela produção contínua de representações e auto-representação em invólucros de carne nomeados pelo sexo. Neste caso, a“posição sexual” não diz respeito a práticas sexuais diversas, mas a lugares de falade onde emerge o sujeito sexuado e instituído hierarquicamente. Heterossexualsuperior ao homossexual, masculino ao feminino.Aqui a experiência de gênerofeminino mostra que a  ancoragem do gênero no sexo biológico é ofundamento dos mecanismos de divisão e contrôle de um sexo sobre outro.

O corpo assim não é investido pela sexualidade, superfície pré-discursiva sobre a qual se delineiam os sulcos de um sexo definidor; tomaforma, ao contrário, materializa-se a partir de um  sexo-significação, produzidopelo próprio discurso. Deste modo, a significação discursiva é indissociável dasignificação corpórea que produz corpos em relações de inteligibilidade, nasquais 

[...] nos colocamos nós mesmos, sob o signo do sexo,  não deuma Física mas de uma Lógica do sexo”, como enfatiza

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Foucault. (Foucault, 1976:102).

O sexo, portanto,  é in-corporação,  criação de corpos sexuadosinseridos em uma ordem sócio-histórica, definida através de suas práticasdiscursivas ,”[...] conjuntos técnicos ,instituições,  esquemas decomportamento, tipos de transmissão e de difusão , formas pedagógicas que asimpõem e mantém, ao mesmo tempo”.( Foucault,  1989 :10 ) O sexo biológicotem aqui apenas o valor e a importância que lhe são dados, mas aparece comoevidência maior na identidade humana.. O “natural”, o regulador de identidadese do ser no mundo mostra assim sua dimensão real: não passa de uma ilusão ,construída e repetida para manter sua própria  instituição.

Como salienta Foucault: “É preciso pensar o instinto não como umdado natural, mas já como toda  uma elaboração, todo um jogo complexoentre o corpo e a lei, entre o corpo e os mecanismos culturais [...]” (Foucault,1994 : 183) No mesmo sentido, aponta Butler “[...] as normasregulatórias do sexo trabalham de forma performativa para constituir amaterialidade dos corpos e mais especificamente, para materializar o sexo docorpo, para materializar a diferança seuxal a serviço da consolidação doimperativo heterossexual.”(Butler, 1993:3)

Esta é a relação de poder, é a inflexão sobre a auto-representação,sobre a conduta, sobre a apreensão do mundo instituindo assim uma realidadelá onde existem apenas possibilidades. A determinação do possível e do pensável, do natural e do instintivo compõem o perfil da relação heterossexualreprodutiva como a verdadeira face do mundo, dividida em partes desiguais, emsujeitos determinados: passivo/ ativo, mulher/homem, gay/straigt.

Identidades  fixadas no sexo e pelo sexo, identidades múltiplas porémdomesticadas pela rede de sentidos na qual estão inseridas, “regime de verdade”foucaultiano, onde os valores circulam como verdades, e cuja força reside emsua reafiramação constante.

O sujeito aparece na medida em que se corporifica ,  como explicita Tereza de Lauretis

“[...] produzido como signo [...]  representado diversamentena mútua e constitutiva  interação entre o mundo exterior einterior.” ( de Lauretis, 1984: 183) E continua: “Este sujeito [...]é o lugar no qual, o corpo em quem os efeitos significantes dosigno se fixam e se real-izam.”(idem:182/83)

Ou seja, as representações sociais , em imagens e em linguagem

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traduzem o gênero  em corpos sexuados, e o desnudamento deste mecanismoinverte as polaridades do sistema de sexo/gênero: assim, é o gênero que cria osexo.   O sexo biológico deixa de ser o signficante geral que abriga o bináriosexual e passa a ser igualmente signo produzido no próprio seio doagenciamento social. Neste sentido, é performativo, como sublinha Butler,instalando sua realidade no próprio discurso que o descreve. A performance,por sua vez, seria o movimento de assujeitamento , de identificação, imagem desi no espelho do mundo.( Butler,1994:33) Assim, o sexo passa a ser pensado“[...] não mais como um dado corporal sobre o qual o construto do gênero éartificialmente imposto, mas como uma norma cultural que governa amaaterialização dos corpos.”( Butler,1993:3 155)

A heterossexualidade compulsória apontada pelas teóricas feministasAdrienne Rich ou  Monique Wittig no início dos anos 80 pode ser hojecompreendida como uma matriz de inteligibilidade, como um sentidocondutor na constituição dos desejos e dos corpos. A lei normativa, as práticasdiscursivas e regulatórias definem as práticas sexuais e em torno delas cristalizamos indivíduos em sujeitos sexuados. Ordem simbólica, constrói o solo sobre oqual se apoia. Constrói também a desigualdade, a hierarquia, a inferioridade, odesprezo, a culpa, o abjeto.

Espelho, espelho meu, que corpo é este que me habita?

 O corpo não é apenas discursivamente construído, é  objetivadonuma escala de valores e atributos que além das identidades, estabelecem seuscritérios “verdadeiros”: a “verdadeira mulher”, sedutora , bela , implacável,imagem à qual procuram se identificar milhões de seres marcados do feminino.O “verdadeiro homem” macho empedernido, coração seco e músculostúrgidos. A noção de dispositvo de Foucault aí se desdobra, em uma economiaomnipresente do sexo, investindo em corpos rijos,  curvelíneos, macios eapetitosos – homens , mulheres , gays, crianças– consumíveis e consumidoresde sexo, sexo, sexo. A “verdadeira mulher” se desdobra também em esposa-mãe, imagem que habita as mulheres como apelo do natural, o apelo do ventre,destino e marca da verdade do sexo.  Reprodução e sexualidade: porqueestariam atrelados senão como resultado de uma ordem simbólica que traduz ocontingente-histórico como o necessário-natural?

O privado é político, o pessoal é político, diziam as feministas nosanos 70  pois determinar papéis e espaços: fixar identidades é  finalmente,“conduzir a conduta”,  ação precípua do poder. (Foucault, 1994:236 ) Por outrolado, no domínio do “abjeto” do espaço marginal ao “verdadeiro sexo” binário,outras identidades florescem: a “verdadeira lésbica”, o “verdadeiro travesti”,

 

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transsexual, drags e outros. Todos girando em torno da sexualidade e do sexo ,reivindicando lugares de fala e de ser. Todos aprisionados em  corpos sexuadosobrigados à sensualidade, à sexualidade, única forma de afirmar sua existência.

 Os grilhões não estão na repressão, mas  no dever de uma práticasexual qualquer, nos discursos sobre o sexo e a sexualidade que preenchem osescaninhos do pensamento, da emoção , que definem os cânones de rejeição ouinserção em redes identitárias. Em que me torno, quando me ausento dasexualidade, que ser monstruoso é este, cujos anseios não passamnecessariamente por práticas genitais?

A miséria sexual, finalmente, não é a falta de sexo, a reclusão, aproibição; a miséria sexual é a obrigação do sexo como medida do ser,  comoessência  identitária, padrão de comportamento, verdade na qual desenho meuperfil, meus contornos, minha inserçaão no mundo. No castelo d’If, os anosescavando os muros para a  liberdade só levaram a outra cela dentro da mesmaprisão:  a do sexo-verdade, do sexo-identidade , do sexo-ser-no-mundo.  

Que faço eu portanto, de mim? Que faço eu aqui, teorizando “enpetit comité” , enquanto  as “tecnologias do gênero” em ação continuam  amaterializar  corpos sexuados em um sistema de sexo/gênero, binário,heterossexual,  difundindo representações hierárquicas e assimétricas de sexo esexualidade  em imagens e discuros , em filmes, em revistas, jornais, televisão ,banalizando a venda de  crianças para o sexo, o abuso sexual,  a violênciadoméstica, a violência paroxística da prostituição, o estupro, a discriminação e oassassinato de homossexuais, aqueles que ameaçam a ordem instituída eorganizada do “eu”e do “nós”? Sem falar da violência do “eu” sobre “mim”,  nadomesticação do desejo e do prazer, centrado e simbolizado pelos órgãosgenitais, na tarefa de me explicar ou reproduzir, dentro ou fora da matriz daheterossexualidade. Que cansaço é este que se abate sobre mim na constataçãoda tortura e da dor que os modelos impõem ao humano, criando-o “`àimagem de alguma coisa” que certamente não é divina?

Para Foucault, o trabalho do intelectual 

“[...] não consiste simplesmente em caracterizar o que somos,mas, seguindo as linhas de fragilidade de hoje, detectar poronde e como o que é poderia não ser mais o que é. E é nestesentido que a descrição deve ser sempre feita segundo estaespécie de fratura virtual,que abre um espaço de liberdade,compreendido como espaço de liberdade concreta, isto é, detransformação possível.”( Foucault, 1994:449)

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Os estudos feministas tem se dedicado a expor os mecanismos deprodução de seres en-gendrados, generizados, construídos em gênero, em umcerto “regime de verdade” : o “sex/gender system”. Sua matriz deinteligibilidade identitária,  a heterossexualidade compulsória,  atua  eminstituições fundamentais, como a família, o casamento, o controle do corpodas mulheres , a reprodução, na a produção de corpos sexuados atrelados àpráticas sexuais e sociais por eles delimitadas.

O sujeito composto em gênero nas relações sociais se auto-representa mulher ou homem . Mas esta subjetivação incide por sua vez narepresentação social, o que abre a brecha, a oportunidade da transformação. Abre caminho para a ação de um contra-imaginário que desloca o sistemahegemônico em um leque de novas representações , onde o sexo, por exemplo,não seria O definidor identitário. Como sublinha  Tereza de Lauretis

“[...] é preciso perceber o gênero  ( os homens e as mulheres)de outra forma e reconstruí-los em outros termos que osditados pelo contrato patriarcal [...] no qual o gênero e asexualidade são reproduzidos pelo discurso da sexualidademasculina[...]”(de Lauretis, 1987:17)

Não apenas pensar o mundo, mas tranformá-lo. Foucalt nãopoderia ser mais enfático a este respeito: “ [...] o problema não é mudar a‘consciência’ das pessoas, ou o que elas tem na cabeça, mas o regime político,econômico, institucional de produção da verdade”. ( Foucault,1988 : 14)

Neste sentido os estudos feministas e os movimentos das mulheresvem criando espaços outros – heterotopias – práticas e teorias que atuam narepresentação de gênero e fora dela, na medida da crítica à produção ereprodução do sistema de sexo/gênero através das instituições sociais, entre asquais a heterossexualidade compulsória . Questiona-se assim as  evidênciasidentitárias não apenas sociais, mas também biológicas na produção dediscursos além dos limites hegemônicos. Como assinala de Lauretis, são

“[...] espaços sociais escuplidos nos interstícios  das intituições ,nas fendas e nas fissuras dos aparelhos de saber e de poder. “(deLauretis, 1987: 25) 

Este é o space off, ponto epistemológico crítico dentro de umapolítica de localização subjetiva, com a plena consciência da ancoragem em umcorpo delineado pelo gênero, transformado em sexo; não  o despojamento , aneutralidade, mas a Sujeito “ex-cêntrico”, dentro e fora de seus contornos de

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gênero,  que permite não apenas a descrição do sistema e seu funcionamento,mas a exposição de seus mecanismo de engendramento, reprodução einstituição no social e no individual, retirando-lhes seu caráter de evidência.

Ponto de ação no mundo, político¸ na medida em que uma vezconhecidos estes mecanismos, fica mais fácil  destruí-los. Como afirmaFoucault , a descrição de diferentes formas de racionalidade mostra que 

“[...] repousam sobre uma base de prática e história humanas ecomo foram feitas pode- se, com a condição de que saibamoscomo foram feitos, desfazê-las.”( Foucault, 1994, 449)

 Neste sentido, os feminismos tem sido ponta da lança em termosteóricos e de ação política de transformação, marcando a política delocalização que leva em  conta , para a sua reflexão crítica a experiência esta [...]interação semiótica entre mundo de dentro e o mundo de fora ( deLauretis,1984: 182 ) este conjunto de  hábitos, associações, percepções e dedisposição que dão a cada uma seu caráter de gênero ( de Lauretis 1990:18)marcado e definido pela sexualidade , enquanto  feminino. 

A política de localização não elide estes efeitos de significação, pelocontrário, faze deles, para o feminino,  um lugar de fala “[...] um complexofeixe de determinações e lutas, um processo de contínuo reconhecimento daspressões externas e das resistências internas”( de Lauretis, 1990:137)Compreendendo esta posição como construída históricamente em um campode relações sociais, não evidente por si, nem definitiva, não unificada, maserigida em diferentes dimensões que se entrecruzam e talvez se contradigam.(idem) . Neste sentido, para Rosi Braidotti, o projeto feminista abrange  adimensão da subjetividade, do agente histórico e seu engajamento socio-político e também a dimensão da identidade, que está ligada à consciência¸ aodesejo e à política do individual.( Braidotti,1994,163)

Desta posição, deste local de fala faz a crítica da divisão binária dosocial, com seu corolário compulsório de identificação a um ou outro pólo;  aosistema de sexo/gênero que estratifica o humano em duas categorias, umasuperior, outra inferior e institui na heterossexualidade a materialidade deesquemas de poder e de evidência , em torno de valores e verdades.

Com efeito, propostas radicais de se re-pensar a identidade, a partirde uma subjetividade ancorada na experiência de gênero e suas articulações, nahistória e no espaço vivido, são oriundas de algumas correntes feministas. DeLauretis assim expressa esta postura crítica, cuja  “[...] posição é atingida através

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de práticas de deslocamentos políticos e pessoais através dos limites entreidentidades e comunidades socio-sexuais, entre corpos e discursos , no que euchamo ‘eccentric subject.” ( de Lauretis, 1990: 145)A ancoragem na experiênciado feminino é o ponto de partida para a explosão identitária da própriacategoria « mulheres » cujas experiências são  múlltiplas e/ou contraditória,constituídas por variáveis que as constituem de formas diferenciadas : idade,preferência sexual, etnia, status social, etc.

 Neste caso, o sujeito assujeitado à sua identidade passa a ser um “eu”em construção, em processo, numa poética identitária, poética entendida comoprocesso, mutação, onde os limites se traduzem apenas no passado, numacartografia de mim, numa identidade nômade..

Para a identidade nômade do feminismo, não há necessidade de umavisão substantiva do sujeito para uma atuação política : numa perspectivanômade, como argumenta Rosi Bradoitti 

“[...] o político  é uma forma de intervenção que  atuasimultaneamente  nos registros discursivos e materiais dasubjetividade [...] na consciência da constituição fraturada dosujeito constituído pelo poder e a busca ativa das possibilidadesde resistência às formações hegemônicas.” »(Braidotti,1994 ,35)

 Uma identidade em construção, móvel,  transitória uma identidadesomente retrospectiva, da qual podemos traçar mapas acurados, mas“[ ... ] a queindica unicamente onde já estivemos e onde,consequentemente, não estamosmais “. (Braidotti , 1994 ; 35) .  O que fomos, e  já não somos mais. Ou melhor,o  que pensamos ter sido e que só permanece no que a memória seleciona.

  Assim, as transformações identitárias só podem ser alcançadasatravés das estruturas múltiplas da in-corporação indivudual, como sublinhaBraidotti. “Deve-se começar deixando livres  os espaços de experimentação, oubusca ou transição: tornando-se nômades.” (Braidotti, 1994: 171) Isto nãosignifica negar a existência de estruturas identitárias, ao contrário. Significa atuar, a partir destas, no sentido de desestabilizá-las. Significa uma luta, como sugereFoucault, “[...] como aquelas que combatem tudo que liga o indivíduo a simesmo e assegura assim sua submissão aos outros.”( Foucault,1994 dits:227)

De fato, a identidade nômade enquanto proposta para o própriofeminismo seria a convivência com as contradições e descontinuidades internas,trabalhando as incertezas  não como derrota  , mas como traços constitutivos

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do ser. ( Braidotti,1994 : 167)

Uma política de localização identitária, neste caso, seria a perspectivado “lugar de fala”, do ponto onde falo, do corpo que abriga minha linguagem,do gênero que me é atribuído, traduzindo representações do mundo e auto-representações  em determinado tempo /espaço. Se falo enquanto mulher oufeminista, este lugar não representa uma essência, mas um feixe de experiências,atravessado por traços como profissão, idade, preferência sexual,  cada umestabelecendo limites, autoridades, valores, adotando ou rejeitando as normassociais. ( Braidotti,1994 : 4)

Este nomadismo , esta troca constante de lugares, de posições revelao modo de ser nômade   “[...] como a consciência crítica que resiste aos códigossociais estabelecidos  de pensamento e conduta.” ( Braidotti, 1994:5)

Naturalmente esta perspectiva encontra-se com a epistemologianômade de Deleuze e Guattari, que, segundo aponta Braidotti, dissolve a noçãode centro e de topos originários de identidades autênticas de qualquer tipo,focalizando a necessidade de  um outro patamar fora do alcance hegemônico. (Braidotti, 1994:5) Temos aqui também a perspectiva rizomática, pois tal como orizoma, a identidade nômade ‘[...] não se deixa reduzir ao Um ou ao múltiplo.[...] Não é feito de unidades, mas de dimensões, ou ainda, de direções móveis.Não ha começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual cresce e transborda  (Deleuze, 1980:31) Nomadismo, portanto, transição, posição que quebra asexigências de um pensamento binário do antes e do depois. O ponto de partidaé o meio,  mas num espaço sem horizontalidade ou evolução.

Para Foucault

“[...] as relações que devemos ter conosco não são  deidentidade: devem ser relações de diferença de criação, deinovação. É muito cansativo ser sempre o mesmo.”conclui. (Foucault, 1994 : 739)

De certa forma, a identidade nômade é a reinvenção de mimenquanto outro. É o espaço de mim. Se pensamos este espaço identitário comoestando em ligação com todos os outros espaços de um “eu”, que os critica,designa ou reflete, temos aí uma heterotopia identitária. Eu, nômade, sou outra, além daquilo que pareço ou do que falo. Eu sou um espaço de mim,migratório, de transição, nesta cartografia que me revela e me nega. Eu sou oespelho de mim , um lugar sem lugar

“[...], em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da

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superfície, eu estou lá , onde não estou, uma espécie de sombraque me dá a mim mesma minha própria visibilidade, que mepermite olhar-me lá onde não estou.” ( Foucault, 1994 : 756)

Jogo de palavras? Não, pois em minha materialidade sou um lugarde fala, em meu corpo sexuado, sou um sujeito generizado, localizo-me em ummundo de representações, nas quais o corpo e a sexualidade são identificatórios.Sou porém nômade, e esta concretude é apemas o reflexo no espelho, pois este“eu” que vejo refletido não sou “eu”. Este “eu” forjado em valores e normashistóricas, por teorias e discursos de saber, por limites e entraves erigidos emsexo e sexualidade não sou eu: é apenas uma passagem, um momento de mim.

  Na  imagem invertida  no espelho vejo apenas a imitação de mimem um eu unificado, categorizado, tão ilusório quanto as dimensões que seabrem na superfície polida. Esta é a identidade nômade: uma heterotopia demim, um espaço outro, que conectado a todos os espaços dos quais eu falo esou, abre o caminho para a transformação. Na perspectiva da resistência, comoqueria Foucault, “[...] nós somos sempre livres e [...] há sempre a possibilidadede transformar as coisas. ( Foucault, 1994,740)

Num mundo de representações sociais onde os seres se definem pelocorpo sexuado  e pelas práticas sexuais uma identidade nômade desfaz aspolaridades e as hierarquias, solapa as bases do sistema de sexo/gênero,desvelando a tragédia e a triste comicidade do assujeitamento ao “verdadeirosexo”, às essências humanas instituídas e narradas em história. Não há opostos,há posições de sujeito, não há binário nem múltiplo, pois não há unidades.Uma identidade em construção que  não visa um desenho final, o que importaé o movimento.

O que fazemos de nós, em torno de que valores nos constituimos,que importância damos às coisas e às palavras que as significam?  Afinal, ahistoricidade das relações sociais/ sexuais mostra que o importante,  é aquilo aque damos importância. Mudar um regime de verdade significa mudar de lugar,inverter os paradigmas para melhor dissolvê-los.

Bibliografia:

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BRAIDOTTI, Rosi. 1994.  Nomadic Subjects.Embodiment and sexual differencein contemporay feminist theory, New York : Columbia  University Press.

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HUTCHEON.Linda, 1991, Poética do Pós-modernismo, história, teoria, ficção.Rio de Janeiro, Imago Editora.

 

[1] Ver por exemplo, Nicole Claude Mathieu, Marilyn  Strathern ou para umadiscussão sobre as matrizes da heterossexualidade no pensamentocontemporâneo, Gayle Rubin. ( referências na bibliografia)

 

 

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