Identidade Líquida
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Identidade Líquida
Pedro Victor Modesto Batista
Resumo: A identidade é um dos temas mais em pauta na atualidade. Visando amplificar as
discussões acerca desse conceito, deu-se um mergulho no mundo líquido-moderno da obra
do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e com o objetivo de esclarecer como ele conceitua
a vigente época pós-moderna ou a Modernidade Líquida e dela inferir o que vêm a ser a
identidade e as possíveis influências dessa atual configuração a esse constructo. Usou-se
da pesquisa bibliográfica para tal. Portanto, na atual conjuntura as identidades são melhor
caracterizadas como líquidas, pois não possuem um princípio norteador, são fugazes,
consumíveis, vestidas e descartáveis; são ambivalentes e incertas. Entendendo que a
identidade sempre será algo a ser construído e nunca solidificado, um campo de batalha e
de interesses, sua definição se dá pelas identificações e o cíclico uso/consumo das mesmas.
Conclui-se que o autor ao sancionar a liquides chama a atenção para a construção social
das identidades e que é na consideração da diferença enquanto diferenças, que uma
ordenação humanitária e global poderá ser sonhada.
Palavras-Chave: Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman, Identidade líquida.
2
Alegam que a água cava a areia por baixo.
Assis Brasil
Introdução
Uma das maiores redes de “relacionamento virtual”, a rede de comunicação social,
Orkut lança aos seus usuários a seguinte questão: “Quem sou eu?”, em uma visita rápida às
respostas dadas pelos integrantes dessa “comunidade”, os “amigos”, encontram-se letras
de música, poesia, espaços em branco, características físicas, profissionais e de interesses,
essa variedade de expressões sucintas introduz os sujeitos virtuais a questionar-se sobre o
que pode identificá-los para os demais membros desse espaço. Afinal, o que vêm a ser a
identidade para o sujeito contemporâneo?
Identificar-se e se auto-referenciar é uma das problemáticas levantadas ao conceito
de identidade, conceito estudado pelas diversas áreas da ciência social (Antropologia,
Psicologia, Arqueologia, Filosofia, Sociologia, História e etc.) considerado complexo,
ambíguo e inconclusivo (Hall, 2005; Vecchi, 2005). Pois o que se observa é que os sujeitos
estão cada vez mais sem uma referência sólida que estabeleça os seus lugares “no mundo
social e cultural quanto de si mesmos” (Hall, 2005, p. 9). Dentro desse enfoque, percebe-se
que o terreno da identidade é movediço, extremamente espinhoso, já que grupos, sujeitos e
nações usam desse conceito para defender sua cultura, etnia, crença, sexualidade, gosto e
modos de ser.
Portanto, tomando como exemplo as contribuições de Stuart Hall (2005), vê-se que
o conceito de identidade é referente a três sujeitos implicados por uma realidade histórica e
social. Têm-se o sujeito do iluminismo que possui uma identidade baseada na noção de
“individuo totalmente centrado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de
3
ação” (p. 10), portador de um núcleo interior – a identidade – que surge no nascimento e
permanece essencialmente o mesmo até sua morte.
Com a crescente complexidade do mundo moderno, surge um sujeito sociológico
que questiona essa idéia de núcleo interior e percebe que o mesmo não possui uma
autonomia e auto-suficiência, porém, era formado na interação/relação com os outros
sujeitos e instituições (família, escola, igreja e etc.), com os outros sociais, que serviriam
de agentes de mediação para os valores, costumes, normas, sentidos, enfim, a cultura.
Nesta perspectiva, “a identidade é formada na „interação‟ entre o eu e a sociedade” (Hall,
2005, p. 11) e vêm preencher o espaço “entre o „interior‟ e o „exterior‟ - entre o mundo
pessoal e o mundo público” (Hall, 2005, p. 11).
É justamente essa dinamicidade que ampliará a complexidade do processo de
identificação, pois ele torna-se “mais variável, provisório e problemático” (Hall, 2005, p.
12) e também dará tecido para o atual sujeito pós-moderno caracterizado por meio dessa
mobilidade e transitoriedade dos modelos de identificação ou representação, este sujeito
representa diferentes identidades em diferentes contextos das mais variadas formas. Sua
identidade não é “fixa, essencial ou permanente” (Hall, 2005, p. 13), é histórica e não
biológica e está em constante deslocamento ou decentração.
Em síntese, a identidade é entendida inicialmente ao que diz respeito a um eu
centrado e organizado por uma identidade fixa, que logo é indagada sobre sua constituição
imutável e passa a se ter um eu definido pelas relações, um eu relacional, essas relações
deslocam os sujeitos de um centro unívoco e fazem da instabilidade e carência de modelos
de identificação a marca do sujeito contemporâneo, apresenta-se um eu em fragmentos
respondendo a situações de ambientes reais ou virtuais que estão em uma contínua
processualidade e movimento (Hall, 2005).
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Desse ponto, em que se fez essa discussão preliminar sobre a identidade visando
expor a relevância do tema, tomar-se-á em nível de contribuição a essa problemática a obra
do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, tendo em vista que se trata de um autor que
trabalha com a compreensão dos aspectos contemporâneos da estruturação da sociedade,
as relações humanas, a globalização, a urbanização e dentre outros temas que estão
associados com a época pós-moderna1, chamada de Modernidade Líquida pelo mesmo.
Então, para adentrar na sua conceituação de identidade uma breve caracterização do que
vêm a ser o mundo líquido-moderno se faz necessária para daí definir e traçar a possível
influência do atual período para esse constructo.
Modernidade Líquida
Como metáfora para caracterizar a atual conjuntura contemporânea, Bauman
(2004b) usa a definição da Encyclopædia Britannica de “fluidez”, que em sua leitura é a
qualidade dos líquidos e dos gases em não manter constâncias na sua forma, pois não
suportam tensões, estão sempre em mudança por meio dos seus fluxos; são transitórios,
não podem ser definidos pelo espaço que ocupam ou o tempo. Eles podem ser datados, já
que o espaço é irrelevante frente a sua mutabilidade e o tempo fundamental para uma
aproximação fidedigna de significação. Sua mobilidade ou “fluidez” os associa a idéia de
“leveza” (apesar de haver líquidos mais densos que muitos sólidos, pontua o autor), pois
1De acordo com Severiano (2001) o conceito de pós-modernidade sugere uma mudança de
uma época para outra, com a interrupção da era moderna e o estabelecimento de uma gama
de transformações na cultura, economia, sociedade e política. Iniciadas na década de 60
com os movimentos: estudantis, de minorias; “pós-modernistas” na arte, arquitetura,
literatura e academia; bem como, a ascensão das tecnologias de comunicação e
informática, a derrocada do socialismo por um domínio econômico de mercado capitalista
e com a expansão exacerbada da “globalização”. Pós-moderno é um mundo globalizado
que transpõe as estruturas (classes sócias, grupos, nações e etc.) e influência a qualidade de
vida urbana a experiência do tempo, espaço e das concepções do próprio eu.
5
“la práctica nos demuestra que cuanto menos cargados nos desplacemos, tanto más rapido
será nuestro avance” (Bauman, 2004b, p. 8).
É justamente nessa fluidez, leveza, instabilidade, mobilidade e contínua transição
que se encontra o poder de transformação dos “líquidos”. O sociólogo contrapõe o atual
mundo líquido-moderno da visão de modernidade sólida, aquela que é baseada na fixação
de padrões, normas e condutas; resistente a mudança, ou seja, dogmática. Ele questiona se
o projeto da modernidade em seu princípio, já não se mostrava líquido. Visto que,
“derreter os sólidos” no que condiz com a mudança de uma sociedade estagnada e
amalgamada pela tradição via “profanación de lo sagrado” (Bauman, 2004b, p. 9) foi à
estratégia de emancipação utilizada pelo “espírito da modernidade” (Bauman, 2004b).
Entretanto, o derretimento do que é sólido era uma tentativa de estabelecer novos
sólidos mais duradouros e confiáveis e de certa forma administráveis. Com a dissolução
das tradições, o enfraquecimento das obrigações e deveres com a família, a política, a ética
e a cultura, as relações sociais tornaram-se suspensas e desprotegidas, a mercê de uma
“razão” ou racionalidade conduzida pela óptica da economia e dos negócios ostentando um
discurso pautado no progresso advindo de um saber proveniente de uma “racionalidade
instrumental” (Bauman, 2004b).
O que vêm após essa crescente falta de referências (de padrões, normas, códigos e
regras) ou solidez é um quadro, ou melhor, é um quebra-cabeça no qual se pode reencaixar
e realocar constantemente os indivíduos, que estão a cargo das suas próprias e intimistas
escolhas, responsáveis pelo fracasso de suas referências. Nas palavras do autor:
En la actualidad, las pautas y configuraciones ya no están “determinadas”, y no
resultan “autoevidentes” de ningún modo; hay demasiadas, chocan entre sí y sus
6
mandatos si contradicen, de manera que cada una de esas pautas y configuraciones
ha sido despojada de su poder coercitivo o estimulante. Y, además, su naturaleza ha
cambiado, por lo cual han sido reclasificadas em consecuencia: como ítem del
inventario de tarefas individuales. En vez de preceder a la política de vida y de
encuadrar su curso futuro, deben seguirla (derivar de ella), y reformarse y
remoldarse según los câmbios y giros que essa política de vida experimente. El
poder de licuefacción se ha desplazado del “macronivel” al “micronivel” de la
cohabitación social (Bauman, 2004b, p.13).
A Modernidade Líquida é individualizante, ansiogênica e em constante
processualidade, que nada é “determinado” ou fixo o suficiente para se estabelecer
enquanto regra ou orientação. É nesse sentido de brevidade e rapidez que essa era
globalmente conectada produz vidas cada vez mais descartáveis e precárias; as relações
interpessoais estão curtas e ambíguas, pois é na certeza do término que se vinculam e na
virtualidade que se sustentam (navegam); a fuga e a ilusão é a escolha sensata para se
enfrentar os múltiplos medos dos cidadãos do mundo líquido-moderno. (Bauman, 2004a;
2004b; 2007; 2008).
A identidade como se perceberá a seguir está implicada nessa complexa
configuração contemporânea que até aqui foi resumidamente caracterizada para se
prosseguir com as reflexões de Zygmunt Bauman do que vêm a ser a identidade.
7
Identidade/Identificação
Bauman (2005) inicia sua conversa2 sobre identidade situando sua condição de
identidade e narra um episódio sobre a escolha do hino para a cerimônia de doutor
hounoris causa conferida a ele. Sua indagação era sobre qual hino escolher? O polonês de
seu país de origem, que o exilou ou o do país que o acolheu e o naturalizou, a Grã-
Bretanha. Sua esposa (Janina Bauman), que influenciou suas reflexões deu-lhe a sugestão
do hino europeu. E ele acatou, pois “Europeu, sem dúvida, eu era, nunca tinha deixado de
ser” (Bauman, 2005, p. 16).
Tal acontecimento ilustra a controvérsia que o tema da identidade carrega, pois
aqueles que buscam uma identidade estão tentando “alcançar o impossível” (Bauman,
2005, p. 16) algo que não pode ser realizado em “tempo real” (Bauman, 2005, p. 17). As
identidades são intangíveis por serem pautadas no conceito de pertença a uma comunidade,
compreendidas como comunidades de vida, o compartilhar de uma vida junto em ligação
absoluta e a comunidade de destino, aquela que há uma junção por idéias e por uma
variedade de princípios (Bauman, 2005).
A identidade emerge no segundo conceito de “comunidade”, pois é através do
policultural e da diversidade de idéias que o indivíduo vai identificar-se. Uma escolha ou
filiação (pertencimento) deverá ser exposta ou colocada a prova. Assim, o pertencimento e
a identidade não são sólidos, não podem estar acabados, mas em um constante processo,
um não poderá ser o destino do outro. Como explica Bauman (2005):
o “pertencimento” e a “identidade” não tem a solidez de uma rocha, não são
garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis... a idéia de “ter
2 Entrevista concedida a Benedetto Vecchi via email, publicada em livro.
8
uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar
sendo o seu destino (pp. 17-18).
Deste ponto, têm-se uma abertura e aproximação do que vêm a ser a identidade no
mundo líquido-moderno, já que existências “individuais são fatiadas numa sucessão de
episódios fragilmente conectados” (Bauman, 2005, pp. 18-19), deste modo, “As
„identidades‟ flutuam no ar” (Bauman, 2005, p.19), são transitórias, podem ser de escolha
própria ou lançadas por outros, e entre próprios e alheios há negociações e embates que
têm a pendência como o resultado. Por isso:
A identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como
alvo de esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a
partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la,
lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre
a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser,
suprimida e laboriosamente oculta (Bauman, 2005, pp. 21-22).
Para esclarecer essa idéia de identidade como “objetivo” ou tarefa e como terreno
de batalha a ser conquistada, Bauman (2005) afirma que a identidade surge de uma crise
de pertencimento, pois dizer “„quem você é‟ só faz sentido se você acredita [grifo nosso]
que possa ser outra coisa além de você mesmo” (p. 25), e é com a desintegração do poder
congregador das vizinhanças, a revolução dos transportes e a criação de um Estado-nação,
que ele nos traz o exemplo da identidade nacional para explanar essa crise (Bauman,
2005).
O Estado-nação fixa nos indivíduos a idéia de identidade nacional a partir do
nascimento dos mesmos, em outras palavras, para pertencer a uma nação os indivíduos
9
precisam nascer nelas. Essa idéia de identidade é o modo pelo qual o Estado mantém sua
soberania, segrega e aglutina as variedades de dialetos, tradições, leis e modos de vida
locais, portanto, construir uma identidade nacional serve para o Estado, além de manter a
obediência dos sujeitos, garantir a sua continuidade (Bauman, 2005).
E é no não encontrar preciso de ancoradouros sociais para a identidade que surge os
“problemas de identidade”, pois como visto, há uma naturalidade imposta para a
identidade pelo Estado que atualmente é ineficaz, qualquer base sólida e ortodoxa laçada a
identidade é factível de falhar, já que “em nossa época líquido-moderna, em que o
indivíduo livremente flutua, desimpedido, é o herói popular, „estar-fixo‟ ser „identificado‟
de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (Bauman, 2005, p.
35).
Assim, “identificar-se com...” ou falar de identificação é mais preciso do que falar
de identidade, pois os indivíduos são os responsáveis pelas suas próprias escolhas, usam a
vestimenta da identidade como lhe convêm, ou melhor, pelo período que dura o espetáculo
em suas “comunidades guarda-roupa” (Bauman, 2004b; 2005, p. 37), sempre de curta
duração e transitórias. A identidade não pode ser única, mas uma crescente “rede de
conexões” (Bauman, 2005, p.37). Os habitantes do mundo líquido-moderno estão cada vez
mais individualizados e essa se reverbera na sua identidade:
a “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de uma coisa
“dada” em uma “tarefa” [algo a ser conquistado] − e encarregar os atores com a
responsabilidade de desempenhar essa tarefa e de arcar com as conseqüências (e
também com os efeitos colaterais) de seu desempenho (Bauman, 2009, p. 183).
10
O que paira como conseqüência é o sentimento de ambivalência, entendido como a
capacidade de alocar a um objeto ou evento, nesse caso a identidade, mais de uma
possibilidade, confusa, indecisa e irresoluta; ampliando um sentimento de “perda de
controle” gerando sentidos ambíguos (Bauman, 1999; 2005).
Mais uma das conseqüências pertinentes para a identidade no mundo líquido-
moderno é o temor a exclusão e dos “perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo –
posição na hierarquia social, a identidade” (Bauman, 2008, p.10) e isso ocorre porque há
uma crescente ambivalência nas escolhas; continuamente deve-se fazer escolhas e se
responsabilizar por elas. Escolher uma identidade e logo se desfazer quando elas não
servirem mais a suas satisfações, literalmente consumi-las, enfrentar a competição coletiva
do “faça o melhor que puder”, seja notado via seu esforço individual, enfim, participe do
processo de exclusão e consumo (Bauman, 2005; 2008).
Com a exclusão e o consumo, aumenta-se a pilha de lixo humano e se fragiliza as
relações interpessoais:
Hoje em dia... somos consumidores numa sociedade de consumo. A sociedade de
consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos dentro e no mercado, ao
mesmo tempo clientes e mercadorias. Não admira que o uso/consumo das relações
humanas, e assim, por procuração, também de nossas identidades (nós nos
identificamos em referência a pessoas com as quais nos relacionamos) se
emparelhe, e rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o
ciclo que se inicia na aquisição e termina no depósito de supérfluos (Bauman,
2005, p. 98).
11
Os vínculos humanos tornaram-se nesse ínterim de uso/consumo frágeis e
descartáveis. Relacionar-se passou para o conectar-se, as “redes” e as “relações virtuais”
respaldam a facilidade de conectar ou desconectar. Os relacionamentos de bolso, definido
como o uso apenas quando necessário das relações e o armazenamento das mesmas assim
que utilizadas, são mais freqüentes. Manter a distância; os laços frouxos; o não assumir
compromissos e exigências; possuir a segurança do termino dos envolvimentos, sem
muitos problemas de forma rápida ou fluida e prezando a quantidade em detrimento da
qualidade, são todas características dos cenários para a vida no mundo líquido-moderna e é
dessa miscelânea que se busca um (a) identificar-se/identidade (Bauman, 2004a; 2005).
Rovirosa-Madrazo (2010) ao comentar a obra de Bauman, salienta que conceitos
como o de comunidade, identidade e instituições são todos construídos socialmente, são
precários e fugazes, pois dão lugar a “identidades líquidas” (p. 15) em um mundo que a
erosão do Estado e a diluição das fronteiras nacionais (globalização) são irreversíveis. E
continua, ao expor que a identidade (mesmo a de gênero) é provisória e torna-se
irrelevante para o pensamento sociológico e feminista, por fazer com que a identidade não
estabeleça a Diferença (com D maiúsculo e no singular), mas as diferenças (com d
minúsculo e no plural) sempre mutáveis. Desta forma, “a identidade em Bauman é uma
substância temporária, [e] o outro não passa de uma invenção” (p. 18), que como já
discutido causa tanto relações e identificações passageiras como temor, ansiedade e
ambivalências.
Para melhor aludir o caráter transitório, fluido ou líquido da identidade veja-se nas
palavras de Bauman (2005):
eu diria que a ambivalência que a maioria de nós experimenta a maior parte do
tempo ao tentarmos responder à questão da nossa identidade é genuína. A confusão
12
que isso causa em nossas mentes também é genuína. Não há receita infalível para
resolver os problemas a que essa confusão nos conduz, e não há consertos rápidos
nem formas livres de risco para lidar com tudo isso. Também diria que, apesar de
tudo, teremos de nos confrontar vezes sem conta com a tarefa da
“autoidentificação”, a qual tem pouca chance de ser concluída com sucesso e de
modo plenamente satisfatório. É provável que fiquemos divididos entre desejo de
uma identidade de nosso gosto e a escolha e o temor de que, uma vez assumido
essa identidade, possamos descobrir... que não existe uma “ponte, se você tiver de
bater em retirada” (p. 105).
Tentou-se até aqui se aprofundar nessas águas, que é a teoria de Bauman, e
perceber que o solo ou o fundo desse oceano é abissal, pois tomando como perspectiva a
crescente mutabilidade, frágil, globalizada, ansiogênica, precária, excludente e sempre
móvel Modernidade Líquida. Com seus problemas globais erroneamente buscando
resoluções locais; com seu Estado em falência; com as divisórias entre mundos públicos e
privados quase que inexistentes, mas amplamente fortificadas e vigiadas; com cidadãos
transformados em mercadorias e ensinados a consumir para satisfazer-se; com indivíduos
individualizados lançados a sua própria sorte; com relacionamentos midiatizados em
quantidade crescente e qualidade parca; carentes de modelos e padrões norteadores. Toda
essa profusão nos faz retomar a pergunta inicial feita pelo Orkut: “Quem sou eu?”, e como
o ouroboros engolimos a própria calda e fazemos do nosso princípio o nosso fim e do fim
o nosso princípio. É nesse giro cíclico e eterno nos diz Bauman que somos algo a ser
definido (em busca de identificações), porém, nunca acabados (inconstante e líquido).
Hoje, eu não tenho a certeza do que sou, amanhã eu já posso ser você. É a incerteza a
única certeza desse tempo.
13
Considerações finais
Passamos a se identificar, ao invés de ter unicamente uma identidade. Então,
responder ao Orkut: “Quem sou eu?” está em desuso e passamos a responder “O que você
está pensando agora?”, nos padrões do Facebook e Twitter, redes de “relacionamento
virtual”, trazidas para exemplificar a forma cada vez mais provisória de nos
autoreferenciar na contemporaneidade. Notoriamente deixa-se de fixar a identidade a um
único padrão de referência, pois isso mostraria o quão desconectado se está do mundo
globalizado, exigente e sempre em transição.
A confusão que se vivência ao tentar definir-se, a fazer a escolha do que você vai
ser agora (se filho, aluno, amigo, professor, homem/mulher, consumidor ou mercadoria)
traz consigo o temor da exclusão, do não pertencimento a comunidade, de se tornar
descartável e ir parar na pilha de lixo humano. Essa visão catastrófica e apocalíptica é um
puxão para a realidade e faz nos refletir sobre o que estamos fazendo as nossas relações
pessoais, a organização da sociedade, com a ética, a politica e a cultura.
Bauman pinta um quadro de cores vivas e agressivas a visão, feito isso, chama nos
a atenção e põe em pauta o mecanismo facilmente imperceptível e naturalizante, que
possuem discursos enrijecidos ao tentar instalar normas e padrões, que na verdade são
construídos socialmente. Ao caracterizar a época como líquida quer nos mostrar que a
globalização, a crescente midiatização das nossas relações, a fragilização do Estado e etc.
Influencia diretamente a maneira de ser e compreender o mundo.
Mostra o quão tendencioso é afirmar uma etnia, gênero, religião, sexualidade, ou
seja, identidade. Essa se torna um palco de batalhas de grupos em busca de afirmação de
direitos, alegando exclusão e preconceito, que exigem tratamento próprio ou
14
individualizado para a sua condição. Esquecendo-se que as diferenças sempre existiram e,
assim, ao buscar uma resolução intimista/ individual nada é feito para considerar a
diferença enquanto diferenças, que poderia contribuir com a criação da identidade norteada
por preceitos humanitários ao invés de excludentes.
Portanto, à medida que estivermos sempre em luta consigo e com os outros para
referenciar uma identidade em contrapartida a outras, não saberemos como lidar com a
flexibilidade, mutabilidade e transição, característica dos seres humanos e do atual
momento. Tentaremos por toda a vida nos identificar com coisas, relações, ideias, amores,
gostos, desejos... e ao afirma-los e solidifica-los podemos estar perdendo o fluir que é a
vida.
Não quero dizer que não devamos se preocupar com as condições ditas peculiares
que envolvem também as vidas, mas sim devemos buscar resposta para os problemas
globais de forma global e não através de fanatismos e esforços hercúleos, que visam sanar
esses problemas globais apenas por ações locais ou politicas de vida. Uma comunidade
coletiva, que discute seus problemas da mesma forma que norteia suas ações via a
reflexão, parece-nos uma utopia, mas tendo em vista, que grandes conquistas também o
foram no passado e ter a ciência de que as coisas não são rochas, mas maleáveis e líquidas
dar-nos uma chance para cavar essa areia por baixo.
15
Referências Bibliográficas
Bauman, Z. (1999). Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
________. (2004a). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
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Ravirosa-Madrazo, C. (2010). Introdução. (pp. 7-22). Em: Bauman, Z. Vida a crédito:
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sociales del comportamento humano. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya.
Vecchi, B. (2005). Introdução. (pp. 7-14). Em: Bauman, Z. Identidade: entrevista a
Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.