Identidade e Representação a Mulher Em a Fita Branca

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1 IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO: A MULHER EM A FITA BRANCA Sabrina Martins (Feevale) 1 RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar as representações femininas existentes no filme alemão A Fita Branca (Das Weisse Band, 2009), escrito e dirigido por Michael Haneke, e a forma como estas representações constituem a identidade das mulheres na obra. Através da descrição de cenas e sequências do filme e dos conceitos de representação, identidade e discurso de Roger Chartier, Homi Bhabha, Stuart Hall, Kathryn Woodward e Tomaz Tadeu da Silva, é mostrada a maneira como as mulheres são subjugadas a toda a rigidez, o patriarcalismo e o puritanismo da sociedade na aldeia de A Fita Branca, bem como as formas como a entidade cinematográfica se apresenta na manifestação desta história. Palavras-chave: Mulher. Representação. Identidade. Discurso. A Fita Branca. 1 INTRODUÇÃO Sob o tema Identidade e Representação: a mulher em A Fita Branca, o presente artigo tem como objetivo analisar a forma como a mulher é representada no filme alemão A Fita Branca (2009), através da análise de cenas que mostram personagens femininas em destaque: a esposa do pastor; Sra. Wagner, a parteira; Anni, a filha do médico; Klara, a filha do pastor e a baronesa - mulheres que têm as suas vidas entrecruzadas na trama que se desenvolve em uma aldeia no interior da Alemanha na década de 10 do século XX. Para a análise das personagens serão utilizados os conceitos de representação e identidade de Roger Chartier, Stuart Hall, Kathryn Woodward e Tomaz Tadeu da Silva, bem como serão analisados os diálogos a partir de teorias do discurso e silêncio, abordados por Homi Bhabha e Enni Puchinelli Orlandi. 1 Especialista em História, Comunicação e Memória e em Gestão Estratégica de Marketing; jornalista e aluna do Mestrado Acadêmico em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale.

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Identidade e Representação a Mulher Em a Fita Branca

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    IDENTIDADE E REPRESENTAO: A MULHER EM A FITA BRANCA

    Sabrina Martins (Feevale)1

    RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar as representaes femininas existentes no filme alemo A Fita Branca (Das Weisse Band, 2009), escrito e dirigido por Michael Haneke, e a forma como estas representaes constituem a identidade das mulheres na obra. Atravs da descrio de cenas e sequncias do filme e dos conceitos de representao, identidade e discurso de Roger Chartier, Homi Bhabha, Stuart Hall, Kathryn Woodward e Tomaz Tadeu da Silva, mostrada a maneira como as mulheres so subjugadas a toda a rigidez, o patriarcalismo e o puritanismo da sociedade na aldeia de A Fita Branca, bem como as formas como a entidade cinematogrfica se apresenta na manifestao desta histria. Palavras-chave: Mulher. Representao. Identidade. Discurso. A Fita Branca.

    1 INTRODUO

    Sob o tema Identidade e Representao: a mulher em A Fita Branca, o presente

    artigo tem como objetivo analisar a forma como a mulher representada no filme alemo A

    Fita Branca (2009), atravs da anlise de cenas que mostram personagens femininas em

    destaque: a esposa do pastor; Sra. Wagner, a parteira; Anni, a filha do mdico; Klara, a filha

    do pastor e a baronesa - mulheres que tm as suas vidas entrecruzadas na trama que se

    desenvolve em uma aldeia no interior da Alemanha na dcada de 10 do sculo XX. Para a

    anlise das personagens sero utilizados os conceitos de representao e identidade de

    Roger Chartier, Stuart Hall, Kathryn Woodward e Tomaz Tadeu da Silva, bem como sero

    analisados os dilogos a partir de teorias do discurso e silncio, abordados por Homi Bhabha

    e Enni Puchinelli Orlandi.

    1Especialista em Histria, Comunicao e Memria e em Gesto Estratgica de Marketing; jornalista e aluna do

    Mestrado Acadmico em Processos e Manifestaes Culturais da Universidade Feevale.

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    A obra flmica A Fita Branca, foi lanado em 2009, sendo vencedor da Palma de Ouro

    do Festival de Cannes (2009) e recebeu o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro (2010).

    A narrativa situada em um vilarejo no norte da Alemanha em 1913, pouco tempo antes da

    Primeira Guerra Mundial. Nesta aldeia, o povoado comea a sofrer com alguns incidentes

    aparentemente sem soluo: a queda do mdico, causada por um arame preso entre duas

    rvores; a morte suspeita de uma camponesa na serraria da fazenda; o sequestro e tortura

    do filho do Baro e a tortura do filho deficiente da parteira. Esses incidentes, considerados

    criminosos, abalam a estrutura quase imutvel da sociedade da aldeia.

    As crianas da histria tm grande peso dramtico, sendo inclusive as principais

    suspeitas aos olhos do pblico para os crimes acima listados. So crianas castigadas

    constantemente, educadas de forma rgida e violenta dentro do puritanismo que rege a

    rotina da aldeia. O objeto que intitula o filme fita branca -, por exemplo, usado pelo

    pastor da cidade para lembrar seus dois filhos mais velhos, Klara e Martin, do compromisso

    com a pureza.

    Uma possibilidade para justificar os crimes, se realmente cometidos pelas crianas,

    a atuao delas como espcies de justiceiros em nome de Deus. Assim como elas so

    castigadas e humilhadas por seus pecados, os adultos tambm o devem ser. Seus pecados,

    abordados ao longo do filme, incluem: a pedofilia, o incesto e o adultrio. No ataque a Karli,

    filho da parteira, encontrado junto ao menino torturado um bilhete que diz Por que eu, o

    Senhor, o Deus de vocs, sou um Deus cuidadoso, punindo os filhos dos pecados de seus

    pais at a terceira e quarta geraes.

    No desenrolar da trama, o mdico vai embora do povoado com seus filhos.

    mostrada uma cena em que ele abusa da filha, Anni, de 14 anos e a parteira sua amante,

    desde antes de sua esposa falecer vai cidade denunciar os criminosos, pois seu filho

    revelara quem o torturou. Karli tambm some misteriosamente. O mdico e a parteira so

    ento acusados pelas pessoas da aldeia de terem cometido os crimes e fugido antes de

    serem descobertos. Haneke trabalha essa resoluo de forma que ela parea falsa e soe

    como uma desculpa dessa sociedade para esquecer tudo que aconteceu.

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    Desde o perodo colonial, a mulher possui um deslocamento no seu lugar de fala que

    vai at os tempos ps-coloniais, marcando uma conjuntura histrica de poder e submisso,

    apresentando em cada perodo histrico os mesmos problemas sob uma nova configurao.

    Os meios de comunicao e as obras cinematogrficas procuram narrar estas histrias a

    partir da noo de discurso e de uma sequncia de enunciados que desrealizam a coisa

    contada, como menciona Gaudreault e Jost (2009), de qualquer forma, tendo semelhanas

    ou no com o contexto histrico do perodo, a obra traz diversos temas para reflexo e

    discusso, entre eles, a construo da identidade feminina. Ser que, de certa forma,

    encontramos traos da identidade da mulher de A Fita Branca em nossa sociedade hoje?

    2 IDENTIDADE, DIFERENA E LINGUAGEM

    Os conceitos de identidade e diferena possuem uma relao de estreita dependncia,

    sendo inseparveis. A identidade aquilo que se , uma caracterstica independente, um fato

    autnomo, por exemplo, ser mulher, constituindo-se a partir da negao do outro, da

    percepo do diferente, de no ser o outro. Nessa perspectiva, a identidade s tem como

    referncia a si prpria, ela autocontida, autossuficiente. Conforme Silva (2012), a forma

    afirmativa como expressamos a nossa identidade tende a parecer que a referncia se esgota em

    si mesma, entretanto, esta afirmao s possvel porque existe a diferena, o outro que, por

    exemplo, no mulher, em suma, o que o outro no , o que sou. Assim seguem as

    afirmaes a partir de uma cadeia interminvel de negaes.

    A identidade e a diferena so criadas por meio de atos da linguagem, por meio da fala

    que institumos a identidade e a diferena como tais. Elas tm que ser ativamente produzidas,

    no so criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e

    social. Somos ns que a fabricamos no contexto das relaes culturais e sociais. (SILVA, 2012, p.

    76). A lngua tambm no passa de um sistema de diferenas em que o signo s constitui um

    valor absoluto a partir de uma cadeia de significados que se remete a ele. E conforme Orlandi, a

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    diferena, na identidade, tambm se torna possvel pelo silncio. A identidade no se reduz

    identificao; ela mobiliza processos mais complexos. Um desses processos nos permite apreciar

    a produo da diferena, justamente pela forma como o silncio faz parte da relao do sujeito

    com o sentido. (ORLANDI, 2007, p. 90).

    A palavra um signo e, conforme Bhabha (2007), todo o signo ideolgico, portanto, a

    palavra o signo ideolgico por excelncia, ela registra as menores variaes de relaes

    sociais. No possvel prender a palavra em um dicionrio, mant-la como unicidade, por que

    o signo , por natureza, vivo e mvel, plurivalente, moldando-se s diversas formas de

    comunicao, o que implica conflitos, relaes de dominao e de resistncia, adaptao ou

    resistncia hierarquia, utilizao da lngua pela classe dominante para reforar seu poder. O

    discurso um lugar de significao, de confronto de sentidos, de estabelecimento de

    identidades, de argumentao, a partir do qual se podem materializar ideologias. (ORLANDI,

    1990, p. 19). A classe dominante quem normalmente tem o interesse de torn-lo

    monovalente.

    A partir do discurso e da palavra, define-se a identidade e marca-se a diferena, sem as

    separarmos das amplas relaes de poder. A identidade e a diferena no so nunca inocentes.

    As relaes de identidade e diferena ordenam-se, todas, em torno de oposies binrias:

    masculino/feminino, branco/negro, heterossexual/homossexual. Questionar a identidade e a

    diferena como relaes de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas

    se organizam. (SILVA, 2012, p. 83). Ao dizer o que somos, tambm dizemos o que no somos,

    h uma operao de incluso e excluso, portanto a afirmao da identidade implica a marcao

    da diferena. Atravs das relaes de poder constitui-se uma fora homogeneizadora da

    identidade, sendo diretamente proporcional sua invisibilidade.

    Conforme Silva (2012), o processo de produo da identidade oscila entre dois

    movimentos: de um lado, esto aqueles processos que tendem a fixar e estabilizar a identidade;

    de outro, os processos que tendem a subvert-la e desestabiliz-la. um processo semelhante

    ao que acontece com os mecanismos discursivos e lingusticos nos quais se sustenta a produo

    da identidade. A fixao uma tendncia e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade (SILVA,

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    2012, p. 84). No caso da identidade de gnero, o argumento biolgico utilizado como

    justificativa para a dominao masculina. Embora aparentemente baseadas em argumentos

    biolgicos, as tentativas de fixao da identidade que apelam para a natureza no so menos

    culturais.

    Basear a inferiorizao das mulheres ou de certos grupos raciais ou tnicos nalguma suposta caracterstica natural ou biolgica no simplesmente um erro cientfico, mas a demonstrao da imposio de uma eloquente grade cultural sobre uma natureza que, em si mesma, culturalmente falando silenciosa. (SILVA, 2012, p. 86).

    Portanto, as chamadas interpretaes biolgicas so, antes de serem biolgicas,

    interpretaes, ou seja, so a imposio de uma matriz de significao sobre uma matria que,

    sem elas, no tem qualquer significado. Assim, todos os essencialismos so culturais, nascem do

    movimento de fixao que caracteriza o processo de produo da identidade e da diferena.

    3 IDENTIDADE E REPRESENTAO

    Para a teoria cultural americana, a identidade e a diferena esto estreitamente

    associadas a sistemas de representao, relao entre cultura e significado. S possvel

    compreender os significados envolvidos em um sistema de representao se tivermos a ideia

    sobre quais posies de sujeito eles produzem e como ns, como sujeitos, podemos ser

    posicionados em seu interior. A partir da teoria ps-estruturalista, a representao sempre

    marca ou trao visvel, exterior, compreendida como um processo cultural que estabelece

    identidades individuais e coletivas.

    A representao inclui prticas de significao e os sistemas simblicos por meio dos

    quais os significados so produzidos, posicionando-nos como sujeitos. por meio dos

    significados produzidos pela representao e atribuies de sentidos, que damos sentido

    nossa experincia e quilo que somos. Os discursos e os sistemas de representao

    constroem os lugares a partir dos quais os indivduos podem se posicionar e a partir dos

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    quais podem falar (WOODWARD, 2012, p. 17). Conforme Silva (2012), a representao

    um sistema lingustico e cultural: arbitrrio, indeterminado e estreitamente ligado a relaes

    de poder. Para Chartier, apesar de se proporem a uma aproximao com a realidade,

    necessrio esclarecer que as representaes sempre so influenciadas pelos interesses de

    grupos que a produzem.

    As representaes do mundo social, assim construdas, embora aspirem universalidade, de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Da, para cada caso, o necessrio relacionamento dos discursos proferidos com a posio de quem o utiliza [...]. As percepes do social no so, de forma alguma, discursos neutros: produzem estratgias e prticas que tendem a impor uma autoridade custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os prprios indivduos, as suas escolhas e condutas. Por isso, esta investigao sobre as representaes supe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrncias e de competies cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominao. (CHARTIER, 1990, p. 17).

    por meio da representao, assim compreendida, que a identidade e diferena

    adquirem sentido, passam a existir. Representar como afirmar essa a identidade, a

    identidade isso. tambm por meio da representao que a identidade e a diferena se

    relacionam a sistemas de poder, pois todas as prticas de significao que produzem

    significados incluem o poder de definir quem includo e quem excludo. Os sistemas

    simblicos fornecem novas formas de se dar sentido experincia das divises e

    desigualdades sociais e aos meios pelos quais grupos so estigmatizados. Conforme Silva

    (2012, p. 91), Quem tem o poder de representar, tem o poder de definir e determinar a

    identidade.

    [...] a identidade marca o encontro de nosso passado com as relaes sociais, culturais e econmicas nas quais vivemos agora [...] a identidade a interseco de nossas vidas cotidianas com as relaes econmicas e polticas de subordinao e dominao. (RUTHERFORD apud WOODWARD, 2012, p. 19).

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    Para Chartier (1990), h uma forma de compreender a apropriao dos discursos, a

    maneira como estes afetam o sujeito e o conduzem a uma nova forma de compreenso de si

    prprio e do mundo. O autor esclarece que os agenciamentos discursivos e as categorias que

    os fundam como os modos de representaes no se reduzem absolutamente s ideias

    que enunciam ou aos temas que contm, mas possuem sua lgica prpria, e uma lgica que

    pode muito bem ser contraditria em seus efeitos. Dessa maneira, Chartier elabora a ideia

    de representao como instrumento capaz de apreender a internalizao simblica das lutas

    pelo poder e dominao entre os grupos, ou entre os indivduos, estruturadas a partir de

    relaes externas objetivas entre os mesmos e que existem independentemente das

    conscincias e vontades individuais que as produziram dentro de determinado campo social.

    H sujeito, h objeto, h representao.

    4 ANLISE FLMICA DAS CENAS

    A partir do discurso e dos significados produzidos pelas representaes, dado

    sentido ao que somos e ao que no somos, constroem-se lugares de onde os indivduos

    podem se posicionar, podem falar. Esta operao de incluso e excluso em uma

    determinada posio marca a diferena, definindo a identidade do sujeito, e inserindo-o em

    uma relao de poder. Estas noes foram discutidas para que se possa compreender a

    constituio da identidade feminina no filme A Fita Branca.

    Em uma anlise inicial geral da obra, os acontecimentos da narrativa esto ligados a

    uma srie de acidentes misteriosos e crimes em forma de castigo que atingem diversas

    pessoas do vilarejo. O filme tem uma narrao em off conduzida pelo professor da cidade,

    que no tem certeza de tudo o que est relatando e assume isso h tambm fatos de

    que o professor no poderia ter tido conhecimento e, ainda assim, eles so apresentados

    pelo enunciador flmico. Conforme Xavier (2003), este um modo pico da representao,

    quando a figura do narrador se coloca entre ns e os acontecimentos.

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    A presena do narrador tambm uma estratgia narrativa, j que d ao espectador

    informaes sobre os estados sucessivos dos personagens, em uma ordem dada, em um

    vocabulrio escolhido, atravs do seu ponto de vista, (Gaudreault; Jost, 2009), explicitando a

    independncia que a trama assume quando os conhecimentos do narrador definem o que

    deve ser mostrado ao espectador. Pode-se basear tal independncia em trechos que

    mostram, por exemplo, a discusso entre a parteira e o mdico em que o homem deixa claro

    todo o desprezo e asco que sente pela amante; o momento em que a baronesa diz para o

    marido que pretende deix-lo e os motivos para tal; a conversa entre os filhos do mdico,

    Anna e Rudi, em que o menino descobre a morte e fica indignado com ela; a filha do pastor,

    Klara, prestes a matar o pssaro de estimao de seu pai; entre outros.

    Na obra, o narrador compartilha a viso de um observador imaterial e privilegiado,

    capaz de assumir posies e deslocamentos impossveis a um ser humano comum. Temos,

    portanto, a viso de duas entidades: o narrador diegtico eleito para contar uma histria

    que no deixa de ser parte de sua vida o professor -; e o enunciador flmico que escolhe

    exatamente o que vai mostrar, em que ordem vai mostrar e por quanto tempo vai deixar

    essas imagens expostas para o espectador.

    O narrador tem importncia no que cabe interpretao do pblico, j que o mesmo

    apresenta um determinado ponto de vista. Para Xavier (2003), o ponto de vista no cinema

    parte do olhar, do espao, da cena em direo a uma viso de mundo, onde se passa a

    tomar posio em favor ou contra algum ou alguma coisa, um posicionamento

    interpretativo que nos permite expandir o olhar sobre uma determinada obra. Por exemplo,

    o professor desconfia das crianas e esse sentimento mostrado gradualmente tambm nas

    imagens, ainda que tal opinio no seja dita claramente pelo narrador por um longo tempo.

    A influncia desse personagem vem, inclusive, por conta de seu papel de contador daqueles

    acontecimentos.

    Os numerosos planos-sequncia tambm caracterizam fortemente o filme e tornam

    o ambiente absolutamente possvel, como se o fato de aquele local e pessoas estarem sendo

    filmadas fosse quase acidental. Pela escurido de muitas cenas pouco se percebe

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    visualmente, mas muito se intui. A cmera passeia pelos cenrios seguindo os personagens,

    revelando lentamente o que eles enxergam, ou melhor, o que eles pensam enxergar.

    Os personagens so a metonmia da obra, pela sucesso de fatos que acontecem na

    cidade sem que as situaes sejam explicadas, sendo sempre deixado um espao em branco

    para a interpretao, o que induz ao espectador aproveitar estes silncios para pensar em

    seus prprios medos. A ausncia de trilha sonora contribui para o clima denso e dramtico

    do filme, os sons so sempre diegticos, com exceo do in off do narrador.

    O uso do preto e branco na obra essencial, pois o universo flmico no existe em

    cores, monocromtico, causando maior impacto. A ausncia de cor retrata o esprito

    humano encontrado no filme. A perverso moral contamina a sua construo esttica,

    fazendo com que o preto e o branco construam significados ambivalentes que permeiam

    todo o filme. O branco associa pureza dos rostos, da neve que cobre a cidade no inverno e

    aos santificados campos de trigo que compem um dos mais belos planos do filme, em

    contraste com as roupas negras que aprisionam o sujeito corrompvel.

    O enunciador flmico tambm procura retratar em sua fotografia preto e branco a

    crueldade e a rigidez caracterstica dos representantes da comunidade, que so: o mdico, o

    pastor e o Baro todos os homens. Ele retrata, sobretudo, como se do as relaes

    estabelecidas entre esses trs e todo resto dos habitantes. Vemos ento como os outros

    personagens agem diante das condies que lhe so dadas. Algumas vezes tentam enfrentar

    as imposies, mas geralmente acabam vitimadas pelas crueldades e brutalidades da

    populao local. Dentre as vtimas esto as mulheres - de diferentes faixas etrias -, que

    vivem em uma sociedade patriarcal, protestante e rigorosa, sofrendo diversos problemas

    com as posies estabelecidas entre o feminino e o masculino.

    Em uma das primeiras cenas do filme, o pastor est sentado mesa aguardando a

    chegada dos filhos para o jantar; Martin e Klara, os filhos mais velhos, pedem desculpas ao

    pai pelo atraso e se param em frente porta.

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    Pastor: - Ningum comeu nesta casa hoje. Como anoiteceu e vocs no chegavam, sua me saiu chorando para procurar vocs pela aldeia. Como poderamos comer em paz temendo uma desgraa? Como comer em paz agora, depois de ouvir essas desculpas mentirosas? No sei o que foi pior: o sumio de vocs ou o retorno. Vamos todos para a cama com fome. Sei que concordam que eu no posso deixar essa transgresso impune se quisermos continuar vivendo com respeito mtuo. Por isso, amanh neste horrio, na frente dos seus irmos vou aoitar 10 vezes cada um de vocs. At l, tratem de refletir sobre a gravidade do que fizeram.

    Na cena, todos concordam e em silncio levantam da mesa, filhos e me. Os filhos

    menores pedem a bno a ambos. O pai apresentado na cena sempre em primeiro plano

    e em close enquanto fala, j a me permanece em segundo plano sem falas durante a cena.

    Em relao aos filhos mais velhos, ele fala:

    Pastor: - No encostem em mim! A me de vocs e eu vamos dormir muito mal. Tenho que bater nos dois e isso vai doer mais em ns do que em vocs. Agora, podem ir para a cama. Quando eram pequenos, a me de vocs amarrava uma fita no cabelo ou no brao de vocs. Ela era branca para lembrar vocs da pureza e da inocncia. Pensei que j tivessem virtude e retido de sobra no corao para no precisarem mais desse tipo de lembrete. Eu estava enganado. Amanh, aps o castigo, vocs estaro purificados. A me de vocs ir amarrar a fita novamente e ficaro com ela at que possamos voltar a confiar nos dois.

    Nesta cena, a mulher est representada na condio de boa esposa, o que significa

    no falar, no questionar os argumentos do marido. uma figura feminina que no

    consegue fugir das suas obrigaes e quase no pode tomar decises independentes. No

    filme, a esposa do pastor no tem nome, ou seja, o seu nome no mencionado em

    nenhum momento da obra. Em sua atitude o que prepondera o silncio. A extensa fala, o

    sermo do pai, dito em nome dele e em nome da me, sem importar se o dito remete

    sua opinio, a fala do pai dita tambm em nome dela e esta se mantm em sinal de

    respeito e obedincia, da mesma forma que deve ser a conduta dos filhos. No h qualquer

    interferncia nas decises tomadas pelo marido, diante dos problemas familiares. Por

    exemplo, o filho caula vai at o pai pedir para cuidar de um passarinho machucado,

    conforme pedido da me, j que esta deciso no pode ser tomada por ela.

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    Na cena seguinte, a me pega em sua caixa de costura a fita branca e corta uma a

    uma no mais intenso silncio, apaga a vela e chama os filhos mais velhos, Klara e Martin,

    encaminhando-os at a sala de jantar, fecha a porta e a cena permanece imvel no corredor,

    sem permitir que o espectador adentre a sala. A entrada das crianas pela porta e a sada de

    um deles para buscar o chicote reforam o contedo dramtico. Cada vez que a porta

    aberta, a figura da me que est na sala espera. Essa sequncia offscreen causa uma falta

    de ar absoluta no espectador, que fica angustiado no silncio do filme prevendo o castigo s

    crianas.

    Encontra-se nesta cena, assim como em toda a histria, uma incompletude, deixando

    diversas incertezas para serem interpretadas pelo espectador. Conforme Umberto Eco, uma

    narrativa est entremeada de espaos em branco, de interstcios a serem preenchidos. Para

    Eco, h duas razes para que o emitente deixe esses espaos em branco: primeiro por que o

    texto um mecanismo preguioso que vive da valorizao dos sentidos que o destinatrio

    introduziu, e segundo, porque o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa,

    embora costume ser interpretado com uma margem suficiente de univocidade. Todo o

    texto quer que algum o ajude a funcionar (ECO, 1986, p. 37).

    O silncio da me em ambas as cenas pode possuir significados mltiplos. O

    pastor/marido em sua posio de autoridade perante a sociedade e a famlia, se utiliza do

    discurso religioso de bons costumes e punio para estabelecer o seu lugar e o lugar do

    Outro, no caso, a esposa. Ele toma a palavra da esposa em uma dimenso poltica, sendo o

    silncio dela considerado parte da retrica do oprimido, enquanto ele se utiliza da retrica

    da dominao (opresso), o silncio da disciplina, da domesticao. O silncio fundante,

    quer dizer, o silncio a matria significante por excelncia. O real da significao o

    silncio. (ORLANDI, 2007, p. 29). O silncio no fala, ele significa, no entanto possvel no

    silncio encontrar a fala da me atravs da gestualidade, das expresses de respeito e

    afirmao. Quando algum se pega em silncio, rearranja-se, muda a expresso, procura

    ter uma expresso de fala (ORLANDI, 2007, p. 34). O fato de produzir signos visveis

    (audveis) o tempo todo traz uma iluso de controle pelo que aparece ideologia do

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    apagamento do silncio. Se analisarmos neste mbito, a partir de monlogos como o

    apresentado que o marido mantm uma relao de poder perante a esposa.

    O mdico da aldeia, um dos pilares do humanismo, aps sofrer grave acidente,

    retorna do hospital para casa e a filha Anni o recebe sorrindo, feliz pelo seu retorno. Ela

    quem o socorre quando acontece o acidente. Fora da casa, o mdico fuma o seu cigarro

    enquanto a filha para ao lado sria no aguardo de ateno.

    Anni: - Seu consultrio est pronto. A Sra. Wagner arrumou tudo. Pai: - Por que est me dizendo isto? Anni: - No sei. Pensei que fosse gostar de saber. Pai: - Ela cuidou bem de vocs? Pai: - Com quantos anos voc est? Anni: - Catorze. Pai: - impressionante... voc est a cara da sua me!

    Em cena seguinte, o irmo caula de Anni acorda noite e no encontra a irm no

    quarto, ele desce as escadas em sua procura, percorre a casa e v luz no consultrio do pai.

    O irmo abre a porta e v Anni sentada sobre a maca abaixando a saia e o pai sua frente

    cobrindo Anni:

    Anni: - Rudi! O que est fazendo aqui? Por que no est na cama? Rudi: - No consigo dormir. Anni: - Por isso est andando pela casa? Rudi: - Eu acordei e voc no estava. Anni: - O papai furou as minhas orelhas. Rudi: - Doeu? Anni: - S um pouquinho. Rudi: - Por isso est chorando? Anni: - No estou chorando mais.

    A segunda cena montada para que o espectador deduza a ocorrncia de um

    estupro, deixando claro o fato de que Anni molestada pelo pai, mostrando a sua angstia

    atravs de um dilogo que vela a brutalidade do pai. Anni sofre com o acidente do pai e no

    seu retorno sofre com sua atitude de indiferena e desprezo. E esse mesmo pai que a rejeita

    como filha, a deseja como mulher.

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    Neste discurso narrativo em que o pai molesta a filha, os fatos no so mostrados

    explicitamente, so apenas sugeridos. A ao no nomeada, ela subentendida atravs

    dos gestos de encobrir, esconder para no quebrar o decoro da representao. A questo de

    representar ou no representar assume feio diferente conforme consideramos a

    narrao sumria ou a cena - sempre ser mais aceitvel a referncia mais geral, sem

    detalhes, daquilo que est sujeito aos tabus de carter moral e que afeta o corpo. (XAVIER,

    2003, p. 74). Os corpos das mulheres so corpos castos na imagem do filme, tratados com a

    distncia necessria para garantir a sua existncia puramente como signos, nunca como

    presenas reais.

    Cenas com outra personagem trazem a mesma brutalidade relacionada ao mdico,

    no entanto, alm de mostrar corpos abusados, h agresses verbais. A Sra. Wagner, 40 anos,

    parteira e assistente do mdico, sendo tambm sua governanta desde a morte de sua

    esposa. Assim como Anni, ela veste roupas negras e usa um coque, smbolo de recato. A

    primeira cena da Sra. Wagner com o mdico no a mostra inicialmente, traz em visibilidade

    apenas o mdico de costas e vestido em frente a um armrio onde est a foto da falecida

    esposa e fotos de famlia, insinuando-se o ato de uma relao sexual. Em seguida, vira-se a

    Sra. Wagner que tenta abra-lo, ele reclama e no a deixa encostar nele. Tambm vestida,

    ela o auxilia a recompor-se. Ambos sentam mesa e bebem um clice de vinho.

    Wagner: - Que bom que voc voltou. Senti a sua falta. Mdico: - Deu para perceber. Wagner: - Foi difcil ficar com as crianas sem voc. Mdico: - Eu sei. Wagner: - Ele no gosta de mim. Mdico: - Quem? Wagner: - O Rudi. Mdico: - Ele est numa idade difcil. Wagner: - No verdade. Eles sempre esto numa idade difcil. Mdico: - . Wagner: - No sentiu a minha falta. Mdico: - O que quer dizer? Wagner: - Nada. S disse por que verdade. [Chora]. Mdico: - Nada como ter dio de si mesmo, no ? Wagner: - O qu? Mdico: - Nada. Esquea.

  • 14

    Aps o dilogo, ela deita a cabea na mesa em movimento de extrema submisso e

    carncia a espera de um afago. A imagem mostra a mo sobre sua cabea, sem movimento,

    o que permite a interpretao do sentimento de pena, misericrdia, ao invs de afeto. Na

    cena seguinte em que os dois aparecem, Sra. Wagner est masturbando o mdico.

    Mdico: - Porque no para com isso? Para que tanto esforo? E no faa essa cara de espanto. Voc at que boa nisso, mas eu no suporto mais. Para ser sincero tenho nojo de voc. D para terminar o seu trabalho? No quero passar a noite aqui. Wagner: - O que foi que eu fiz? Mdico: - Ai, meu Deus! Voc no fez nada. Voc feia, desajeitada, flcida e tem mau hlito. Acha pouco? Essa tampa precisa ser esterilizada. No fique a sentada com essa cara de sofredora. O mundo no vai desabar sobre a sua cabea. Nem sobre a minha. Eu no quero mais, s isso. Eu bem que tentei pensar em outra mulher quando fazia sexo com voc. Uma mulher cheirosa, jovem, menos acabada que voc, mas no tenho tanta imaginao assim. Mas no final, via voc ali e tinha vontade de vomitar. Eu sentia vergonha de mim mesmo. Ento, fazer o qu? Wagner: - Acabou? Mdico: - Sim, faz muito tempo. Wagner: - Deve estar muito infeliz para ter tanto rancor. Mdico: - No comece com isso! Wagner: - Eu sei que no sou bonita. Tenho mau hlito por causa da minha lcera, voc sabe disso. Mas antes isso no incomodava voc. Eu j era assim quando sua mulher era viva. Me poupe desses detalhes srdidos. Mdico: - Fique sabendo que sempre tive nojo. Eu queria aliviar meu sofrimento depois da morte da Julie com quem quer que fosse. Podia ser at com uma vaca. As putas ficam longe daqui e uma vez a cada dois meses pouco para mim, apesar da minha idade. Agora pare de dar uma de mrtir e d o fora. Wagner: - E porque percebeu isso s agora? Mdico: - Quando eu deveria ter percebido? L no hospital, esqueci o peso que voc era. Fiquei mais sentimental por causa das dores. Suma daqui! Ser que no tem amor prprio? Wagner: - Com voc ningum pode se dar a esse luxo. Mdico: - verdade. Wagner: - E se eu fizer alguma besteira. Mdico: - Fique vontade. Seria uma surpresa. Mas cuidado, pode ser dolorido. Wagner: - Eu sei, eu sou ridcula. Para voc no faria diferena. Mdico: - Wagner: - Por que voc me despreza? Porque ajudei a criar o menino? Porque vejo voc bolinar a sua filha e no falo nada? Porque ajudo voc a continuar se enganando, ouvindo voc dizer o quanto amava a Julie quando todos sabiam que a maltratava como faz comigo? Porque amo voc sabendo que voc no suporta ser amado? Mdico: - Exatamente. Agora levante que eu preciso trabalhar. Wagner: - Voc no vai conseguir se livrar de mim. Quem vai fazer o seu trabalho sujo, cuidar das crianas e do consultrio? Voc est falando sem pensar. Voc quer

  • 15

    ver at onde posso chegar? Ser que ela aguenta? Posso pisar mais forte? Tambm estou cansada. Cuido de duas crianas retardadas: o Karli e voc. Voc o pior. Mdico: - Meu Deus! Por que voc no cai morta?

    Nesta cena, a primeira parte do dilogo gravada com a Sra. Wagner em primeiro

    plano, mostrando-a sentada no mesmo local com uma expresso de mgoa pelo que ouvia.

    Na sequncia, a cena contrape a imagem dela com a do mdico, que permanece de costas

    pra ela olhando a rua pela janela. A cena traz um dilogo duro, pesado, pessimista, que

    ressalta as caractersticas de uma mulher instruda a viver para o homem e no para si,

    subordinada crueldade e estrutura patriarcal. Em ambas as relaes do mdico, tanto

    com a filha Anni, quanto com a Sra. Wagner, possvel reconhecer uma articulao

    ambivalente e contraditria de fetiche, sendo elas um objeto de desejo e escrnio do

    mdico, uma articulao da diferena contida dentro da fantasia da origem da identidade.

    De acordo com Bhabha (2007), o fetiche2 d acesso a uma identidade baseada em

    uma relao de dualidade, tanto na dominao e no prazer, quanto na ansiedade e na

    defesa, pois uma forma de crena mltipla e contraditria em seu reconhecimento da

    diferena e recusa da mesma. um conflito entre prazer/desprazer, dominao/defesa,

    conhecimento/recusa, ausncia/presena. O mdico as despreza, mas tambm deseja e

    vice-versa. uma relao dialtica entre os sujeitos (eu/outro homem/mulher -

    autoridade/subservincia), colocados sempre em oposio ou dominao atravs do

    descentramento simblico de mltiplas relaes de poder. A cultura est em um espao

    entre este binarismo.

    No autoritarismo, no h reversibilidade possvel no discurso, isto , o sujeito no pode ocupar diferentes posies: ele s pode ocupar o lugar que lhe destinado para produzir os sentidos que no lhe so proibidos. A censura afeta, de imediato, a identidade do sujeito. Nesse passo podemos fazer uma relao entre a rarefao do sentido produzida pela relao com o Poder (a censura) e a produzida pela relao com o desejo (narcsea). (ORLANDI, 2007, p. 79).

    2Fantasia das origens da sexualidade, idealizao. O prazer seria o estranhamento em relao ao outro.

  • 16

    Ao final do dilogo, em meio ao seu breve desabafo seguido da no aceitao da

    recusa, a Sra. Wagner relata todos os no ditos de sua vida ao lado do mdico e todos os

    discursos do mdico que silenciaram aspectos cruciais de suas vidas forma de

    domesticao, o discurso de amor esposa falecida com a inteno de estabilizar a memria

    de toda a famlia. No entanto, em relao Karli, filho da parteira, permanece o silncio do

    que no se conta.

    Outra personagem feminina que possui evidncia no filme Klara, a filha do pastor.

    No decorrer da trama, as histrias das famlias so permeadas por incidentes trgicos e pela

    presena constante das crianas em lugares-chave onde ocorreram os incidentes e, aps, em

    contato com as famlias oferecendo-lhes ajuda. Neste grupo, h a presena constante de

    Klara, que permanece sempre no centro do grupo, com as demais crianas no seu entorno

    sem dispersar. Klara uma das filhas mais velhas da famlia do pastor, que cultiva o hbito

    de amarrar fitas brancas nos cabelos ou nos braos dos filhos como forma de lembr-los da

    importncia da pureza e inocncia, bem como da sua condio de pecadores, uma marca

    simblica que representa a viso limitada de mundo do pai/pastor, que condena a

    sexualidade e sufoca todo e qualquer instinto vital, tendo a violncia em casa como um

    remdio civilizador, cujos efeitos trazem ainda mais violncia.

    Aps o pai ter retirado a sua fita branca e devolvido aps ter sido aoitada, h a cena

    na escola em que todas as crianas esto na sala de aula fazendo baguna, enquanto Klara

    fica na porta em silncio fazendo um lanche. Quando Klara v o pai/pastor atravessar a rua

    ela corre para dentro da sala e grita para que todos fiquem quietos. O pastor e o professor

    adentram a sala e todos paralisam. O pai/pastor pega Klara pelas orelhas e a coloca de

    costas no fundo da sala. O professor pergunta o que ainda esto fazendo na sala e diz que

    est na hora da aula de catecismo e pede que saiam. O pastor reza o Pai Nosso junto s

    crianas e todos se mantm no silncio, um apoio adorao.

    Pastor: - Hoje um dia muito triste pra mim. Em poucos dias, todos ns iremos celebrar a Crisma de vocs. Durante meses venho tentando aproxim-los do mundo de Deus e transformar vocs em seres humanos responsveis. E o que encontro aqui

  • 17

    hoje? Um bando de macacos berrando! Indisciplinados como seus colegas de classe de 7 anos! Mas para mim o que mais triste ver minha filha protagonizando esse espetculo deplorvel. No ano passado eu amarrei uma fita branca no cabelo dela. O branco como bem sabem a cor da inocncia. A fita deveria ajudar Klara a evitar o pecado, o egosmo, a inveja, a indecncia, a mentira e a preguia. No comeo deste ano acreditei, ingenuamente, que ela estivesse madura o suficiente para no usar mais a fita. Que ela j fosse responsvel como deve ser a filha de um...

    Aps o discurso do pai, Klara desmaia ao fundo da sala, fica febril e enfraquecida. Em

    nova cena, Klara entra no escritrio do pai e vasculha as gavetas procura de uma tesoura,

    ao encontrar, abre a gaiola onde est o passarinho de estimao do pai e o pega. Ao chegar

    em casa, o pai encontra o pssaro morto sobre a sua mesa com a tesoura ao meio. A

    disciplina do pai em relao aos filhos to autoritria que alm do medo causa o

    sentimento de vingana, podendo manifestar-se das mais diferentes formas. Klara, assim

    como os demais filhos, no tem a possibilidade de individualidade. O uso incessante da

    religio pelo pai castrador uma forma de dar filha uma viso j estabelecida das coisas.

    Esse controle lhe faz acreditar que a est resguardando de tudo o que pode parecer uma

    ameaa, o que se torna contraditrio a partir do ato da filha. Longe dos olhos da religio, h

    uma moral hipcrita entre o pblico e o privado; uma distino entre a rua e a casa, entre o

    visvel e o espao ntimo da famlia.

    Assim como a fita branca usada pela menina tem a cor como forma de diferenciao,

    branco como sinnimo de pureza, a educao rigorosa e a religio tambm se apresentam

    filha como forma de princpios austeros fundamentais, a religio protestante um ideal de

    retido, ao contrrio, torna-se um reflexo do mal. Porm, os interditos protestantes

    alimentam uma prtica de represso dos desejos que leva ao exerccio da insurgncia

    vingativa. O mal e a pureza de Klara se apresentam como reflexo e refrao um do outro.

    Conforme Cassirer (2006), as formaes verbais, a palavra, so vistas como formas

    que possuem uma funo determinada, para as quais so conferidos determinados poderes

    mticos, convertendo-se numa espcie de arquipotncia, onde radica todo o ser e todo

    acontecer. A palavra elevada esfera do religioso, esfera do sagrado. [...]. Deus usou a

    palavra como meio de expresso e como instrumento de criao, e acrescenta Tudo o que

  • 18

    , chega ao ser atravs do pensamento de seu corao e o mandamento de sua lngua.

    (CASSIRER, 2006, p. 65). Desta forma, atravs do uso da palavra, reportada pelo pai a

    representao de um Salvador, como se se convertesse no prprio, o que lhe d

    autoridade para afetar diretamente a felicidade ou a desgraa da filha.

    A especificidade do discurso de autoridade (aula, sermo, etc.) reside no fato de que sua compreenso no suficiente, e de que a efetivao de seu efeito especfico depende de ele ser reconhecido como tal. Esse reconhecimento s acontece, uma vez que evidente, sob certas condies, as que definem o uso legtimo. (BOURDIEU apud AMOSSY, 2011, p. 121).

    Dessa forma, sendo compreendido ou no, o pai/pastor, atravs do uso da palavra se

    mantm no poder, e este poder investido a ele aos olhos da filha chega ao extremo do

    medo, fazendo com que a menina ficasse doente pelo destrato.

    Na ltima cena da seleo apresentada acima, h uma surpresa. Durante todo o filme

    vemos os entraves que dificultam a luta da mulher pelo que deseja. Geralmente quando

    tentam mudar o enquadramento a que so submetidas, acabam sendo agredidas de alguma

    forma. Em uma das cenas finais do filme, a baronesa revela a seu marido no apenas um

    desejo, mas uma deciso tomada independente da sua opinio, revelando a sua insatisfao

    em relao ao casamento e vida na aldeia.

    Baronesa: - Eu no vou ficar aqui. Baro: - Como ? Baronesa: - No vou ficar aqui. Baro: - O que quer dizer? Baronesa: - Eu vou embora com as crianas. Baro: - Como assim, vai embora? Baronesa: - Por favor, no to difcil de entender. Baro: - E como planeja fazer isso? Baronesa: - Ainda no sei. Mas de qualquer modo, ns vamos embora daqui. Baro: - Ns? Baronesa: - Sim. Eu s voltei para ser justa com voc. Para nos dar uma chance. Baro: - Voc me deu uma chance? Mas que maravilha! Eu perdi essa chance? Baronesa: - Isso vai ajudar a resolver os nossos problemas? Baro: - O qu? Baronesa: - O seu sarcasmo. Baro: - E quais so os problemas que temos que resolver?

  • 19

    [Ela se levanta e ele grita]. Baro: - Fique aqui! Vai sair s quando eu mandar. Baronesa: - Est bem. Eu queria poupar voc, mas est me forando a falar. Enquanto fiquei com o tio Edoardo, eu me apaixonei por outro. Ele da Lombardia, trabalha no banco e cuida das finanas do tio Edoardo. Ele vivia me cortejando e se dava muito bem com as crianas. Se o Sigi melhorou tanto assim, foi graas a ele. Apesar disso, ns voltamos. Porque eu tenho um compromisso com voc. Mas no aguento mais ficar aqui. Nem tanto por mim. Mesmo que a vida com voc no satisfaa uma mulher da minha idade. Vou embora para que as crianas no cresam num ambiente dominado por maldade, inveja, ignorncia e brutalidade. Essa histria da flauta acabou precipitando tudo. Estou farta de violncia, de ameaas e de atos perversos de vingana. Baro: - Voc dormiu com ele? Baronesa: - Voc no entende nada mesmo. Baro: - Voc dormiu com ele? Baronesa: - No, eu no dormi com ele. Baro: - Est mentindo, no ?

    A revelao surpreendente para o baro e para os espectadores, que no

    esperavam em tal situao uma quebra das leis conjugais estabelecidas pela igreja. A

    narrativa demonstra a permanncia dos desejos e dos sonhos das mulheres mesmo com as

    condies impostas. A surpresa maior quando no h qualquer violncia fsica dirigida a

    ela, que apesar da coragem, ainda demonstra receio e preocupao diante do marido. Todas

    estas mulheres tem o que dizer, o que demonstrado no ltimo dilogo da Sra. Wagner e no

    dilogo da baronesa. Elas mostram a fragmentao de suas identidades, identidades

    abafadas pelo discurso patriarcal do homem e do local em que vivem.

    CONSIDERAES FINAIS

    No decorrer da obra A Fita Branca, so apresentadas diferentes representaes

    femininas relacionadas s principais personagens. A esposa do pastor mostrada como a

    boa me e esposa exemplar, sem possibilidade de fala, sem autonomia e poder de deciso

    perante a famlia, sempre expressando atravs dos gestos a obedincia mantida em relao

    ao marido. A parteira, Sra. Wagner, um exemplo de criada, sendo a ela atribudas as mais

  • 20

    diferentes funes, cuidar dos filhos do mdico, cuidar da casa, do escritrio, sendo

    governanta, parteira e assistente do mdico. Alm da sua funo no trabalho, h a funo

    de amante, j que tal relao vista pelo mdico como uma prestao de servio. Sra.

    Wagner a representao da boa empregada e subserviente amante.

    Anni, a filha do mdico representada como a boa irm, aquela que de certa forma

    assume o papel da me na criao do irmo, dando afeto e explicando questes sobre a

    vida. De outro lado, tambm assume o papel da me ao se preocupar com o pai, mesmo

    sofrendo abusos do mesmo. A jovem reprimida e dominada pela autoridade do pai. Klara,

    a filha do pastor tambm contida pelo pai, no entanto, alm do domnio patriarcal, isso

    ocorre sob o aspecto religioso. Ela mostrada como o smbolo da pureza e da inocncia a

    partir do desejo do pai por estas representaes, a representao do exemplo de boa filha.

    No entanto, em contradio, a obra tambm a mostra como a representao da vingana e

    da maldade, mostrando-a de forma implcita como a lder do grupo de crianas que percorre

    a aldeia fazendo atrocidades.

    No final, a obra apresenta a posio da baronesa, a sua insatisfao em relao

    vida. Uma mulher instruda que decide lutar por sua felicidade, e que mesmo quando vetada

    pelo marido respeitando as suas ordens, parece no desistir da deciso, o que surpreende o

    espectador. A surpresa vem pelo fato de que todas estas representaes construdas atravs

    de discursos, de silncios e de sistemas simblicos constituem a identidade do sujeito,

    posicionando estas mulheres em lugares marcados, fixados, de onde, aparentemente, no

    podem mover-se. Na obra, a sociedade e o homem dizem quem a mulher, quem ela deve

    ser, qual a posio-de-sujeito particular que deve ser ocupada pela boa me, boa

    empregada, boa amante, boa irm e boa filha, etc. Tanto a linguagem quanto o silncio

    estabelecem estes lugares.

    A identidade ainda hoje construda por espaos marcados e partir da linguagem,

    cultura e resqucios de representaes histricas que afetam a forma como podemos

    representar a ns prprios. Hall (2012) afirma que as nossas identidades parecem invocar

    uma origem que reside em um passado histrico com o qual elas continuariam a manter

  • 21

    uma certa correspondncia. A identidade das mulheres de A Fita Branca constituiu-se no

    interior de prticas discursivas e no interior do jogo de modalidades especficas de poder.

    Uma identidade unificada, sem costuras, sem diferenciao interna. Este no um modelo

    natural, mas o modelo em que a mulher de A Fita Branca assume como fundacional, j que

    todas possuem representaes semelhantes.

    A obra apresenta uma poca em que as mulheres eram extremamente

    subordinadas e inferiorizadas pelos homens, sem reao em detrimento destes fatos. O

    desconforto por parte do espectador em relao aos fatos apresentados talvez se manifeste

    no s por discordncia ao que se v, mas talvez por percebermos como so completamente

    prescindveis as dicotomias estabelecidas nas relaes entre homens e mulheres, pois a obra

    consegue explicitar situaes que, mesmo minimizadas nos dias de hoje, permanecem e

    chegam a ser invisveis aos nossos olhos. Somos atingidos pelas tragdias e crueldades da

    histria que no escapam de algumas ideologias sociais ainda existentes. Com uma nova

    configurao, as fitas brancas permanecem amarradas identidade de muitas mulheres

    ainda hoje, aceitando o silncio em nome da manuteno social.

    REFERNCIAS

    AMOSSI, Ruth (Org.). O ethos na interseco das disciplinas: retrica, pragmtica, sociologia dos campos. In: Imagens de Si no Discurso: a construo do ethos. So Paulo: Contexto, 2011.

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    GAUDREAULT, Andr; JOST, Franois. A Narrativa Cinematogrfica. Braslia: UNB, 2009.

  • 22

    HALL, Stuart. Identidade Cultural na Ps-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

    __________. Quem precisa da Identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e Diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis, RJ: Vozes, 2012.

    ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silncio. 6. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

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    PRODANOV, Cleber; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do Trabalho Cientfico: mtodos e tcnicas da pesquisa e do trabalho acadmico. Novo Hamburgo: Feevale, 2009.

    SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e Diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis, RJ: Vozes, 2012.

    XAVIER, Ismael. Do Texto ao Filme: a trama, a cena e a construo do olhar no cinema. In: Literatura, Cinema e Televiso. So Paulo: Senac, 2003.

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