Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior: o ... · indivíduo Gregório de Matos e...

96
Rodrigo Turin Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior: o caso Gregório de Matos 01/04/03

Transcript of Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior: o ... · indivíduo Gregório de Matos e...

Rodrigo Turin

Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior:

o caso Gregório de Matos

01/04/03

Rodrigo Turin

Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior:

o caso Gregório de Matos

Monografia apresentada ao

Departamento de História, Setor de

Ciências Humanas, Letras e Artes da

Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Carlos Alberto

Medeiros Lima

01/04/03

i

O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez equando olhando para trás… E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto. Alberto Caeiro

À família e aos amigos, na memória e no devir

Sumário

Agradecimentos i

1. A sátira e o engenho 1

2. Experiência histórica e emergência intelectual 5

2.1 O que somos? 5

2.2 Fragmentação e expectativa: a identidade em devir 14

2.3 Um conceito regulador 25

2.4 Um romantismo oficial: o sentimento de Estado 34

3. Sílvio Romero e Araripe Júnior: as referências da identidade 41

3.1 História 45

3.2 Nação 54

3.3 Crítica 69

4. Conclusão 83

5. Bibliografia 88

1

1. A Sátira e o Ouvidor

Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de

vista dos sedentários, e em nome do aparelho unitário de Estado,

pelo menos possível, inclusive quando se fala de nômades.

Deleuze e Guattari - Mille plateaux

Gregório de Matos é uma etiqueta, diz João Adolfo Hansen em seu notável

estudo sobre a obra que referencia e/ou é referenciada por tal nome. Gregório é uma

unidade imaginária e cambiante nos discursos que o compõem contraditoriamente em

uma hierarquia estética, detrminada por uma cadeia de recepções. "Não substancial, é

efeito da leitura dos poemas atribuídos, não sua causa"1.

Gregório é uma etiqueta do modernismo, concretismo, tropicalismo e outros

"ismos" mais que o enxergam como uma experiência de originalidade radical da letra.

É esse Gregório construído pelo olhar estético da modernidade que subjaz no panteão

da literatura brasileira, como referência da identidade nacional, reproduzido nos livros

didáticos e constantemente reciclado em uma interxtualidade promovida pela

emergência de novos literatos ansiosos por conquistar seus espaços.

O objetivo aqui não é, como em Hansen, identificar o horizonte original onde

estava imersa a obra atribuída a Gregório e limpá-la de todas as camadas

modernizantes. Não procuro por à prova a unidade imaginária Gregório de Matos.

Tenciono antes voltar-me sobre duas dessas leituras "modernizantes" e visualizar ali,

na tessitura de ambas as leituras, a figura do autor barroco e os predicados a ele

referidos.

A prática interpretativa, em forma de texto, dos autores aqui analisados, Sílvio

Romero e Araripe Júnior, constitui então uma "camada" dessa cadeia de recepções e

guarda em si preciosos indícios das expectativas desses agentes em um determinado

campo social. A história está no texto, a diacronia na sincronia. As disposições desses

críticos – instituídos enquanto tais – e as tradições com as quais trabalham e se

associam manifestam-se no texto, na encorporação textual de determinada

1 Hansen, João. A. A Sátira e o Engenho. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 15.

2

experiência histórica. Como atesta Bourdieu, "o que se exprime através do habitus

lingüístico é todo o habitus de classe do qual ele constitui uma dimensão, ou seja, de

fato, a posição ocupada, sincrônica e diacronicamente, na estrutura social"2.

As duas leituras que me proponho aqui a analisar situam-se nas décadas de

1880 e 1890, na cidade do Rio de Janeiro. Neste momento é publicado pela primeira

vez um volume autônomo contendo as poesias que levariam a rubrica de Gregório de

Matos e Guerra3. Esta publicação traz Gregório à cena letrada, possibilitando que ele

ocupasse um lugar na construção da tradição literária nacional. Tal construção é

manifestada em obras como "Gregório de Matos", de Araripe Júnior, publicada em

1893; e "História da Literatura Brasileira", de Sílvio Romero, de 1888.

Gregório de Matos surge para a história nacional e cabe posicioná-lo,

classificá-lo, hierarquizá-lo, definir-lhe o caráter, enfim, a crítica se ocupa de sua

pessoa e obra. Munidos de uma concepção precisa de história, dotada de um claro

sentido teleológico, virtualidade universal que se atualiza na realização da unidade

nacional, Sílvio Romero e Araripe Júnior voltam-se para a obra do poeta baiano. A

matéria, o corpo dessa atualização é o homem e sua produção, produtos do meio e das

raças que os formaram. Revestida por uma roupagem naturalista, essa experiência

histórica se pauta por uma noção de representatividade, a qual é julgada de acordo

com a significância do escritor para a realização do espírito nacional. Mediante o

indivíduo Gregório de Matos e sua obra, Sílvio Romero e Araripe Júnior crêem poder

entrar em contato com a atualização do nacional em seu processo, conflituoso,

ambíguo, mas certo e infalível.

Gregório é logo tomado como parte sintética desse processo. Encarna o caráter

nacional e sua poesia – mediante a qual também se permite visualizar sua vida – canta

o espírito nacional em formação, não só o que era, mas o que viria a ser. "Gregório de

Matos fêz-se nativista sem o saber, declara Araripe, mas achou todas as fórmulas de

nativismo que estão na atualidade em grande voga"4.

Detive-me, assim, para os fins desta monografia, sobre determinadas

expectativas compartilhadas por ambos os autores no que diz respeito à experiência

histórica, à idéia de nação, e à atividade crítica. Tendo escolhido como foco de

2 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1998.p.71. 3 Obras Poéticas de Gregório de Matos. Por Alfredo do Vale Cabral, Rio de Janeiro 1881. 4 Araripe Jr,, T. A. Op. Cit. p. 377.

3

manifestação dessas expectativas a leitura que os autores realizaram de Gregório de

Matos, procurei detectar como a construção do poeta baiano denuncia os valores a

elas relacionados. Na elaboração do discurso histórico, na projeção de valores

nacionais mediante a literatura e na manifestação destes numa atividade crítica,

pretendi visualizar como se processava nestes autores a busca de uma identidade local

própria, a nacionalidade, simultaneamente à condição de pertencimento internacional.

Os três últimos capítulos, que constituem a terceira parte, são, desse modo, o

corpo principal desta monografia. Através dos tópicos "história", "nação" e "crítica"

pretendi esboçar momentos que condidero cruciais para se entender a experiência

desses agentes de cultura. A concepção histórica moderna, como presente nos autores,

é uma instância última de legitimação e compreensão; é o que dá forma a essa

experiência. A nação, por sua vez, é o objeto por excelência da prática desses

intelectuais, é em sua abordagem que se tornam manifestos os valores privilegiados, o

posicionamento dos autores, os projetos defendidos. E, por fim, a atividade crítica é a

performance reconhecida que procura dar, de fato, existência às coisas. É através da

crítica que os autores aqui analisados se reconhecem e que pretendem fazer valer a sua

legitimidade intelectual em uma intervenção prática na sociedade.

Para reforçar o argumento e melhor situar o leitor, os quatro capítulos que

antecedem as análises propriamente ditas de Sílvio Romero e Araripe Jr. procuram

introduzir o problema do qual esta monografia trata e mapear determinados horizontes

comuns compartilhados pelos críticos.

A leitura que realizei dos autores me levou a inseri-los em um horizonte maior,

que caracteriza, a meu ver, a experiência intelectual moderna. Desse modo, os

capítulos "Fragmentação e totalidade" e "Um conceito regulador" são tentativas de

reconstruir aspectos básicos desse experiência. O objetivo não é, nem de longe,

nivelar as experiências européias e americanas. O que se busca é perceber

determinadas expectativas compartilhadas, presentes e que orientam a produção dos

agentes de cultura. Expectativas como a que se baseia no paradigma hegeliano de

ciência, história e devir, aparecem em contextos diferentes, assumindo sentidos

diferentes.

O capítulo "Um romantismo oficial: o sentimento de Estado" se ocupa de

caracterizar o romantismo brasileiro no que diz respeito aos objetos selecionados para

a construção da nacionalidade aí esboçada, assim como visualizar a natureza da

4

relação estabelecida entre essa produção e as instituições estatais. Estabelecer essas

caraterísticas permite que se compreenda melhor as continuidades e rupturas que

críticos como Sílvio Romero e Araripe Jr. manifestaram em suas obras.

Cabe ainda salientar que, para os objetivos aqui propostos, privilegiei as

semelhanças entre os dois autores. O recorte temporal foi escolhido nesta direção, pois

no período estudado os dois críticos mantinham uma proximidade que, a partir de

meados da década de 1890, tende a dissolver-se. E se privilegiei as semelhanças, o fiz

com o objetivo de reconhecer determinadas disposições comuns a ambos os autores

frente a outras disposições que constituíam o campo social pelo qual transitavam. Não

nego as diferenças entre ambos e sua importância. No entanto, parace-me

metodologicamente mais interessante partir das semelhanças que os autores guardam

em suas ações e estratégias para que se possa reconstruir os espaços possíveis e sua

dinâmica que então se configuravam.

5

2. Experiência histórica e emergência intelectual

2.1 O que somos?

Para o leitor que percorrer a produção literária e crítica desenvolvida no Brasil

durante o século XIX, algo logo chamará a atenção: ao mesmo tempo em que os

escritores procuravam dar uma cor local às suas obras, não se furtavam a estabelecer

elos de ligação com os movimentos artísticos e intelectuais internacionais, bem

entendidos, europeus. Não que tal tensão tenha sido inexistente nos séculos anteriores

e no que o sucedeu. Seja no barroco, no arcadismo ou nos modernismos pós-década

de 1920, a convergência sempre conflituosa entre o reconhecimento da localidade

ibero-americana com focos de identidade de matriz européia fez-se presente, ainda

que de formas diferentes.

A dinâmica de tal relação é bastante problemática e serviu de mote para

gerações de autores. Tentarei nesta monongrafia, como contribuição para o

entendimento dessa relação, através das abordagens que se seguirão, visualizar alguns

momentos desse conflito, privilegiando expectativas específicas – ainda que imersas

em horizontes mais amplos – e o modo como elas se manifestam no trato com

determinados conceitos dentro de um campo de prática intelectual.

Um forte viés interpretativo enxerga esse processo através da marca que certas

características determinantes do mundo ibérico legaram à América. Richard Morse

encontra uma matriz ideológica espanhola que teria conciliado a racionalidade de

Estado moderno com as reivindicações de uma ordem ecumênica mundial, ou de

adaptar os requisitos da vida cristã à tarefa de incorporar os povos não cristãos à

civilização européia. Essa matriz ibérica teria se enraizado profundamente durante a

colonização nas estruturas institucionais e nas práticas sociais, deixando uma marca

indelével nessa sociedade. Os ibero-americanos , assim, seriam partidários da doutrina

e da ordem social, ao contrário dos anglo-americanos, os quais seriam partidários do

pragmatismo. E de tal forma estaria arraigada essa tensão, defende Morse, "entre o

'bem comum' e o cálculo do poder, entre o Estado como um todo orgânico e o Estado

como artifício, entre a política como missão e a política como arte ou ciência" que

6

essa tensão continuaria condicionando o programa político do mundo ibérico em

nosso próprio século5. Assim, se a Inglaterra fez sua escolha política no século XVII,

assumindo um método empírico, uma racionalidade dessacralizada e utilitária e uma

base individualizada e "atomista", o mundo Ibérico, por sua vez, adotou ainda no

século XVI um modelo que prezava pela ordem nacional e social, "tal como era

percebida", caracterizada pela hierarquia. Este modelo holista é que orientaria todo e

qualquer projeto na Ibero-América, e mesmo

A moda do positivismo e do cientificismo nas gerações ibero-

americanas posteriores talvez possa ser melhor compreendida como uma

retomada dessa disposição ibérica do século XVII do que como uma

obediência conveniente e superficial à 'ciência da sociedade' da Europa do

século XIX6

Desse modo, a "utilização" de determinadas correntes teóricas européias se

manifestaria, por assim dizer, como filtrada por essa camada mais profunda da ordem

sócio-cultural ibérica. Mesmo o liberalismo teria se apresentado na ibero-américa

como integrado à dialética ainda mais antiga entre cálculo do poder e bem comum,

entre política como arte ou ciência e Estado como corporativo ou tutelar. Autores

como Joaquim Nabuco, por exemplo, em seus projetos liberais e abolicionistas,

estariam marcados por esse viés. Ricardo Salles, em tese recente sobre Nabuco,

ressalta que, apesar do humanismo ético dos abolicionistas europeus e dos argumentos

da superioridade do trabalho livre estarem presentes, sua "proposta do abolicionismo,

assim como a de Rebouças, de Patrocínio ou de João Clapp, era da edificação de uma

nova sociedade democrática que se realizasse, o mais possível, dentro da ordem"7.

Se existe ou não essa tradição enraizada nas sociedades ibero-americanas, o

fato é que no início do século XIX, com a vinda da família e do aparato imperial para

o Brasil, e principalmente após a Independência, um novo cenário se apresenta. A

novidade vem justamente do processo de consolidação do Brasil como uma unidade

própria que, através da criação de instituições, busca construir um projeto que o

legitime enquanto tal. Ao mesmo tempo em que, graças à manutenção e dinamização

5 Morse, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Cia das letras, 1995, p. 58. 6 Ibid. p. 68. 7 Salles, Ricardo. Joaquim Nabuco. Um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p. 124.

7

do território social colonial, definido por seus limites geográficos e pelo tecido social

engendrado pela escravidão e economia coloniais, pôde combinar o impulso

modernizador com a manutenção de uma estrutura social e de poder tradicionais, o

Império procurou também promover um discurso de ruptura e identidade que

colocasse o Brasil, como uma nação própria, ao lado das demais nações modernas

européias. Uma elite letrada ficou responsável por responder uma pergunta que se

torna um imperativo categórico para a consolidação do Brasil como Estado-Nação: o

que somos?

Essa situação denota aquilo que Antônio Cândido chamou de "consciência da

literatura, o registro ou reflexo de suas diretrizes"8. Mas não só para a literatura. A

natureza, a história, a constituição do povo também são contemplados nesse processo

de constituir a nação como um todo. Instituições como a Imprensa Régia, a Biblioteca,

o Real Horto e o Museu Real vêm amparar e impulsionar um projeto de

conscientização da unidade. De fato, a própria possibilidade de se tornar um projeto

oficial a solução da pergunta referida acima nos leva a tecer algumas considerações.

Primeiro, a pecepção de ser – ou dever ser – algo de novo e de específico. Com

a emancipação política do país, o "dever ser" algo de novo e de constituir-se enquanto

tal faz-se necessário. Reflete-se na criação de faculdades de direito que tinham como

meta a elaboração de um código único e desvinculado da tutela colonial. Também na

criação do Instituto Histórico e Geográfico em 1838, centro do projeto de elaboração

da identidade nacional. Assim, em consonância com o movimento internacional de

consolidação dos Estados-Nação9, o Brasil procura afirmar-se nos mesmos princípios.

Toda entidade Nação aparecia como dotada de uma natureza, uma geografia, uma

história, língua e raça próprias. A concepção de nação vê-se individualizada, como

um indivíduo específico em relação aos outros, necessitando, assim, de uma

personalidade e um caráter próprios.

Louis Dumont detecta essa característica como resultado da difilculdade que a

ideologia moderna, essencialmente individualista, tem em dar uma imagem suficiente

8 Cândido, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.p. 319. 9 Ver Hobsbawn, Eric J.. Nações e nacionalismos. São Paulo: Paz e Terra, 1990. Essa tendência internacional está estritamente vinculada à reflexão intelectual européia, incitada por expectativas específicas e que forneceram critérios hegemônicos para o contexto do capitalismo, encntrando na nação a forma privilegiada de identidade.

8

da vida social. Buscando em Herder e Fichte as bases dessa aporia, Dumont visualiza

o englobamento do coletivo pelo individual10, afirmando que

Numa pesrpectiva comparativa que enfatiza a ideologia, a nação – a

da Europa ocidental no século XIX – é o grupo sócio-político moderno

correspondente à ideologia do indivíduo. Assim, ela é duas coisas em uma;

por uma parte, uma coleção de indivíduos, por outra, o indivíduo no plano

coletivo, em face de outros indivíduos-nações. 11

Se tomamos então as nações como esse singular coletivo, que define-se, antes

de tudo, por aquilo que ela não é (em relação ao outro), entramos na questão da

alteridade. Desde as viagens do século XVI a América foi objeto privilegiado de

diferentes discursos que versavam sobre a sua alteridade em relação à Europa.

Passando por Montaigne, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, vemos a

formulação de discursos diversos que têm a América como a personificação do outro,

possibilitando que a Europa pensasse a si própria. Como destaca Ventura, o "homem

selvagem e a natureza americana são percebidos de forma ambivalente pelo discurso

europeu, que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural e inocente dos

habitantes de clima fértil, e a condenação dos seus costumes bárbaros"12. A América é

tomada como referência para se pensar e legitimar projetos políticos diferentes, seja

do bom selvagem ou da inferioridade do homem americano. Não iremos tratar,

contudo, desses diferentes discursos que se deram durante esses séculos por considerá-

los além de nosso fôlego. Concertar-nos-emos, então, nas formulações desenvolvidas

no oitocentos.

10 Ao se referir a Herder, Dumont afirma:"Em nível global, a tendência holista está aqui limitada por, contida ou, como tenho o costume de dizer, englobada num individualismo que está esvaziado de sua substância nos níveis que para Herder são secundários". p. 128. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologoa moderna. São Paulo: Rocco, 2000. Para dumont, esse fenômeno do englobamento significa que uma idéia que cresce em importância e status, adquire a propriedade de englobar o seu contrário, hirarquizando-o, cf. p. 259. 11 Dumont, Louis. Idem.p. 138. Essa reflexão de Dumont sobre sociedades holistas e individualistas é apropriada por Morse para pensar as sociedades ibero e anglo-americanas, respectivamente. Neste caso, o moderno não seria necessariamente individualista, sendo o holismo uma marca presente nas sociedades colonizadas pelo mundo ibérico. Para Dumont, na verdade, as sociedades modernas são caracterizadas por uma interpenetração do holismo e do individualismo, sendo que este último engloba o primeiro. Se pensarmos a incorporação da idéia de nação e seus critérios de formação por parte da América como constituinte dessa relação local-internacional, pode-se presumir a facilidade e força que tal noção adquire aqui. Apesar de, e por isso mesmo, ser uma palavra na boca de poucos.

9

Na primeira metade do século XIX, ao mesmo tempo em que se estruturava o

aparato imperial e tomava-se como meta a formulação reflexiva da unidade nacional,

viajantes europeus vieram reforçar o discursso da alteridade. Como representantes de

missões científicas e/ou culturais, esse viajantes colaboraram, direta ou indiretamente

– alguns deles foram trazidos sob os auspícios do Império –, com o projeto de

consolidação da nacionalidade. Desse modo, o discurso que originariamente foi

produzido pelo olhar europeu sobre a América, o qual pensava a partir da alteridade

desta a sua própria identidade, veio a incorporar-se ao projeto brasileiro. A influência

de Ferdinand Denis, por exemplo, para a consciência literária, ou a de Martius para a

reflexão histórica são incontestáveis.

Assim, os parâmetros que foram sendo estabelecidos pelos agentes culturais

para formular o projeto nacional tem uma origem alheia, refletindo, antes de tudo, a

identidade européia. O projeto imperial brasileiro, querendo inserir-se no conjunto

mais amplo das nações ocidentais, vem adotar as referências de um outro que o vê

como exótico. Os elementos americanos que mais saltaram aos olhos dos europeus, de

acordo com as expectativas deste em relação à sua própria sociedade, foram os

elementos também que orientariam todo um projeto oficial de reconhecimento da

identidade brasileira. Mais do que "idéias fora do lugar", essa situação se mostra mais

específica, pois as idéias em questão estão essencialmente vinculadas ao lugar onde

serão adotadas; são idéias fora do lugar, mas também idéias sobre o lugar. São

formulações discursivas elaboradas em estruturas sociais diversas, mas que versam

sobre o lugar onde são apropriadas. Interesses sociais diferentes, categorias

semelhantes. Determinados valores, elaborados a partir de uma reflexão sobre o outro,

voltam e são aplicados a este.

Ferdinand Denis pensou a influência tropical e dos costumes dos indígenas

sobre a poesia. Essa concepção é enfaticamente adotada por Gonçalves de Magalhães

e toda uma geração. A força e a consciência da influência dos parâmetros europeus

torna-se claro nesse trecho de Magalhães:

Falem por nós todos os viajores, que por estrangeiros não os tacharão de

suspeitos.[…] o coração do Brasileiro, não tendo por ora muito do que se

12 Ventura, Roberto. Estilo Tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 22.

10

ensoberbeça quanto às produções das humanas fadigas, que só com o tempo

se acumulam, enche-se de prazer, e palpita de satisfação, lendo as brilhantes

páginas de Langsdorff, Neuwied, Spix et Martius, Saint-Hilaire, Debret, e de

tantos outros viajores que revelam à Europa as belezas da nossa pátria. 13

Essa influência do olhar europeu marcou e foi responsável, portanto, pelo

"persistente exotismo, que eivou a nosso visão de nós mesmos até hoje", como destaca

Antônio Cândido; exotismo diante do qual passamos "a nos encarar como faziam os

estrangeiros, propiciando, nas letras, a exploração do pitoresco no sentido europeu,

como se estivéssemos condenados a exportar produtos tropicais também no terreno da

cultura espititual"14.

A elite responsável pela produção do discurso imperial associava-se, assim, ao

olhar europeu e às suas expectativas. Compartilhava as mesmas bases de legitimação,

como a genealogia histórica e o devir da realização nacional, procurando também os

elementos locais através do olhar estrangeiro. Essa situação levou a que as gerações

futuras criticassem o projeto romântico brasileiro por viver de imitações e estar

disassociado da realidade nacional. Sílvio Romero, em texto de 1882, pergunta se

"Ser-nos-á lícito, como tem sido a outros, falar de nós mesmos?"15. Machado de

Assis, em texto de 1873, declarava que um poeta "não é nacional só porque insere nos

seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade

de vocabulário e nada mais"16.

Estas críticas, formuladas principalmente a partir da década de 1870, tem

como alvo a incapacidade da elite representante do romantismo oficial de manifestar a

verdadeira identidade nacional, tendo sido mera glosadora das "vulgaridades lusas e

francesas". Não estariam em consonância com o espírito da nação e, por conseguinte,

não poderiam representá-lo, pois "um caráter nacional não se fabrica, nasce

espontaneamente do coração popular, ou melhor: – uma nação é, não se improvisa"17.

13 Magalhães, Gonçalves de. "Discurso sobre a história da literatura do Brasil"(1836). Apud: Ventura, R. Op. Cit, p. 34. Trataremos da influência de Denis na literatura brasileira no subcapítulo 1.4. 14 Cândido, A. Op. Cit. p. 324. 15 Romero, Sílvio. "Introdução à História da Literatura Brasileira". In: Literatura, História e Crítica. Barreto, Luiz Antonio (org). Rio de Janeiro: Imago, 2001. p 123. 16 Assis, Machado. "Instinto de Nacionalidade". In: Obras Completas. São Paulo W.M. Jackson Ed., 1970. p. 144. 17 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna".In: Ibid. p. 96. Grifo meu. Importante para este estudo destacar essa concepção ontológica da nação que se realiza no tempo para podermos apreender o horizonte no qual Romero está também inserido, e do qual trataremos no próximo capítulo.

11

O fato dessas críticas só virem à tona a partir da década de 1870, tendo pois o

romantismo conservado uma hegemonia desde a década de 1830, se deu graças à

configuração social onde o discurso era produzido. As bases institucionais e os

agentes que as ocupavam constituiam uma organicidade com o governo imperial. A

patente cisão que os letrados vão identificar entre a produção historiográfca e literária

e a realidade nacional não causava, até então, nenhuma tensão."O teste da realidade

não parecia importante"18. Só pôde tal cisão tornar-se objeto de crítica e discussão

quando criaram-se as condições mínimas para que isso ocorresse. Não que as

estruturas sociais tenham sofrido grandes modificações e a influência estrangeira

tenha desaparecido. Pelo contrário, a discrepância entre os "dois Brasis" se mantinha

sólida e flagrante. Porém, o aumento da complexificação das possibilidades sociais na

cidade do Rio de Janeiro, a partir da década de 1870, permitiu que a "classe

intermediária" não estivesse limitada exclusivamente pelo clientelismo. Outros

percursos foram abertos e um espaço mínimo de representação pública era

consolidado pelo aumento de periódicos e jornais. Como destaca Sevcenko:

Cria-se assim uma "opinião pública" urbana, sequiosa de juízo e da

orientação dos homens de letras que preenchiam as redações. Os intelectuais,

por sua vez, vendo aumentando o seu poder de ação social, anseiam levá-lo

às últimas consequências. Prezam reiteradamente a difusão da

alfabetização….19

A crítica se estabelecia, o pensamento não precisa mais ser necessariamente oficial

para encontrar meios de difusão e aceitação.

Nenhuma revolução, no entanto, surgiu daí, decorrente desse "bando de idéias

novas". Era evidente que essa generosidade dos intelectuais não convinha aos projetos

das oligarquias e "morreu na reverberação ineficaz da retórica". Araripe, em texto de

1894, declarava que sobre "o Rio de Janeiro paira o sentimento da segurança orgânica

e o da impossibilidade da subversão social"20.

18 Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 15. 19 Sevcenko. Nicolau. A literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 95 20 Araripe Jr, Tristão de Alencar. "Movimento literário de 1893. Crepúsculo dos povos". In. Obra Crítica. Vol. II, Rio de Janeiro: Casa Rui barbosa, 1960. p. 108.

12

Mas um campo de legitimação própria se estabelecia. Não eram mais as

instituições oficias que formavam o locus dos debates. Esses intelectuais,

independente de nosso juízo atual sobre a eficácia ou não de seus projetos, se

consideravam, como destaca Sevecenko, não só como agentes de uma possível ação

transformadora, mas também a condição precípua para a sua realização. Partilhavam

ainda as mesmas expectativas – e a maior parte dos "elementos nacionais" – da

geração anterior de construção de uma nacionalidade em devir, englobando as esferas

identitária, social, política e cultural; mas exercitavam sua prática numa relativa

autonomia, com graus de legitimação próprios.

Se, como afirma Morse, a moda do positivismo e do cientificismo pode ser

entendida como algo mais do que mera obediência conveniente à ciência da sociedade

européia, estando em relação também com as estruturas sócio-culturais enraízadas

desde o período colonial, acredito que o intelectual brasileiro, graças mesmo à sua

formação dúbia de referências européias e de uma busca ( e choque ) com a realidade

local, está imerso e compartilha de determinadas expectativas do intelectual ocidental

moderno, tendo estas um papel importante na formação de suas disposições. Tendo

como bases de legitimação última a genealogia histórica e o discurso científico em

busca de uma consolidação de identidade no devir, mediante uma atuação pública

dessa inteligência, a intelectualidade brasileira do final do século XIX, ou melhor,

parte dela (da qual Romero e Araripe fazem parte), destinava às letras e à crítica uma

missão ao mesmo tempo redentora e modernizadora. Afinal, a crença no tempo

moderno, o tempo do progresso, não os incitava ao contrário. O ceticismo coube a

poucos, como Machado21. O "aristocratismo hedonista" a alguns22. Mas também

marcaram essa época os "intelectuais paladinos", na esperança crítica e na busca de

consolidação do todo nacional, jamais desvinculado do mundial. A literatura

brasileira, como destaca Romero,

a de toda a América, deve ser adiantada como filha mais nova da

civilização atual; deve dar a lição de uma literatura que paira muito alto

sobre os prejuízos das raças, embriagada pelo incentivo da liberdade; deve

21 Cf. Morse, R. "As cidades periféricas como arenas culturais: Rússia, Áustria, America Latina". In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n.16, 1995, p. 205-225. Schwarz, R. Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1977. 22 Cf. Needell, Jefrey. Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993

13

ser pensadora e democrática, séria e impertubável, viril e fecunda; como a

força de nações novas que se aparelham para representar a terceira fase da

civilização: o mundo américo-europeu, como o chamava o filósofo […]

Cabe- lhe formar a consciência clara de seu futuro, e começar, desde já, a

trabalhar para ele.23

Não perdendo a dimensão estritamente urbana dessa situação, especificamente

o Rio de Janeiro do século XIX, e a sólida estrutura do edifício social que não se via

ameaçada pelas páginas litigiosas de alguns críticos, como bem lembraria o

conselheiro Aires, a luta de determinados agentes em busca de uma "emancipação

intelectual", segundo expressão de Araripe, fez-se presente e ocupou um espaço

importante de representação e reflexão sobre a sociedade brasileira na minguada –

porém existente – esfera de opinião pública. Agentes que compartilhavam as

expectativas de um horizonte maior, a do intelectual ocidental moderno, atuando e

procurando construir novas possibilidades de trajetórias e representação do nacional.

E o que se procura realizar neste estudo é justamente compreender como tais

expectativas orientavam alguns desses intelectuais numa ação legitimada, o que

constituía tal legitimação e como convergiam suas expectativas e critérios

legitimadores na construção de uma identidade nacional como projeto.

23 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna". In. Op. Cit. p. 68.

14

2.2 Fragmentação e expectativa: a identidade em devir

I

Tenciono analisar aqui algumas características que marcaram a constituição da

consciência de tempo da modernidade e como tal consciência impulsionou uma

intensa reflexão sobre a experiência histórica. A amplitude de tal reflexão fez com que

o conceito de história se transformasse num "conceito regulador", abrangendo as mais

variadas esferas da sociedade. A "História", como singular coletivo, vem denunciar e

clarificar conceitualmente o sentimento que a sociedade européia, na passagem do

século XVIII para o XIX, possuía em relação a si mesma. Noções como "tempos

modernos" ou "novos tempos" procuravam expressar aquilo que Koselleck e

Habermas definiram como "presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a

partir do horizonte da história em sua totalidade"24. A época moderna confere assim

ao passado a qualidade de uma história universal em sua totalidade: o diagnosticar-se

a si mesma enquanto uma época própria está estritamente vinculado à análise das

épocas passadas.

Este processo inicia-se, por assim dizer, em duas frentes que se alimentam

concomitantemente: uma que diz respeito à fragmentação da experiência da

modernidade, e outra que trata da formação moderna do conceito de história. Tal

divisão certamente é arbitrária, justificando-se apenas enquanto modo de explanação

de uma hipótese interpretativa, tendo por fim a compreensão das expectativas de

determinados agentes – os intelectuais. Seguir-se-á assim a seleção de determinados

"momentos" desse processo, que permitam o mapeamento de certas diretrizes, as

quais se apresentam como referências importantes para o plano de estudo.

Uma primeira frente a ser analisada diz respeito assim à noção de

"fragmentação" que a modernidade vem formular a respeito de sua própria

constituição. Tal noção origina-se de uma possibilidade que o próprio classicismo

trouxe a alguns pensadores, como Winckelmam e Lessing, adquirindo sua plena

consciência em autores como Schiller e Schlegel. A antiguidade tomada como o ideal

modelo incitou a percepção e a reflexão sobre a diferença; ou seja, estes escritores, ao

15

se debruçarem sobre o mundo clássico, perceberam o que eles próprios não eram. E o

fator principal que fez despertar tal inquietação foi justamente o modelo de unicidade

ideal que o mundo grego representava, enquanto que a sociedade européia do final do

século XVIII via-se fragmentada graças a um processo de racionalização25. Este

processo adquire uma intensidade especial graças à Revolução Francesa e ao

movimento filosófico alemão, ocasiões nos quais a sensação de ruptura, tanto político-

administrativa quanto filosófica, se tornam mais patentes. Num segundo momento,

inicia-se uma proposta de tomada de consciência da identidade do homem moderno,

daí decorrendo diferentes projetos. Procura-se uma nova possibilidade de totalização,

um novo absolouto, do qual a modernidade possa extrair as diretrizes para que realize

a si mesma enquanto "época histórica". Nostalgia do cristianismo, "mitologia

indireta", uma estética da comunicação, o saber absoluto; estas são algumas das

propostas que serão brevemente analisadas aqui. Como toda seleção textual, esta

também não se dá ao acaso, e a concepção que Hegel procura desenvolver através do

saber absoluto fecha essa primeira frente, pois serve como tônica geral para o século

XIX, somando os fatores "história", "saber"(ciência) e "devir" de forma paradigmática.

O que denominei aqui de segunda frente, refere-se à formação moderna do

conceito de história. Para tal análise tomarei por referência o estudo de Koselleck26,

no qual o historiador alemão procura identificar as mutações semânticas que tal

conceito sofre durante determinados períodos da história ocidental, e como adquire

sua feição moderna a partir do Iluminismo. Trata-se, segundo o autor, de perceber a

constituição de um coletivo singular (colletif singulier) que liga o conjunto de

histórias particulares sob um conceito comum; assim como de uma contaminação

mútua do conceito alemão Geschsichte como complexo "eventual" (événementiel) e

daquele de Histoire, entendido como conhecimento, narrativa e ciência histórica.

Para os fins deste estudo, selecionei alguns tópicos a serem tratados: a história

como singular coletivo, a história como processo, as funções sociais e políticas do

conceito e o julgamento histórico. Estes tópicos dão conta de abarcar as características

24 Habermas, Jürguen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 10. Em Koselleck, Reinhardt: Vergangene Zukunft, Frankfurt am Main, 1979. 25 Tal como Weber o descreve em Economia e Sociedade, a institucionalização de uma ação econômica e administrativa racional com respeito a fins. Cf. Weber, M. Op.Cit. cap. II, "Categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica", p. 37-138. 26 Koselleck, Reinhardt. "Le concept d'histoire" In: L'experiénce de l'histoire. Paris: Gallimar/Seul, 1991.

16

mais significativas da experiência histórica moderna; permitem visualizar como o

conceito de história torna-se um "conceito regulador" – indo de encontro com a

reflexão que busca a totalidade –, a tal ponto que passa a ser, juntamente com a

ciência, a instância última de legitimação. Se, de um lado, a modernidade se vê como

"algo de novo", tendo de realizar-se como época a partir de si mesma; ela também

não pode pensar-se sem esse "outro" que lhe faz frente e que deve ser objeto de

reflexão, assumindo uma forma específica que possa servir de parâmetro para pensar

sua própria identidade assim como servir de instância de legitimação social.

II

17

Por que o indivíduo grego era capaz de representar seu tempo, e

porque não pode ousá-lo o indivíduo moderno? Porque aquele recebia suas

forças da natureza, que tudo une, enquanto este as recebe do entendimento,

que tudo separa.(A educação estética do homem, 1795)

Neste trecho das "Cartas Estéticas" de Schiller tornam-se evidentes alguns

pontos centrais da experiência da modernidade, os quais considero importante levar

em consideração para que se compreenda melhor as expectativas que serão próprias ao

século XIX, assim como os campos possíveis que foram abertos ao conhecimento

histórico e à atividade intelectual – objetos específicos desta monografia. Desse modo,

espero que se justifiquem tais digressões ao leitor que percorrer estas páginas, pois a

delimitação dos sentidos de uma experiência específica muitas vezes requer que

tenhamos uma mínima abrangência do horizonte onde está imersa e ao qual ajuda a

constituir.

O primeiro ponto que se destaca do trecho citado é a contraposição feita em

relação aos gregos: como uma sociedade modelo, eles encarnam o ideal de uma

unidade perdida, a qual os modernos apenas podem contemplar ao voltar-se para os

vestígios que este passado legou. O indivíduo moderno se reconhece como algo de

específico ao se contrapor ao homem grego e, mais, toma consciência da necessidade

de sua autocertificação frente à história; ele vive em sua particularidade e sabe que as

épocas passadas representam uma alteridade incompatível à composição de seu

mundo. O reconhecimento da alteridade do passado gera simultâneamente o anseio da

construção de uma identidade que se fundamente a si mesma.

Outro aspecto que Schiller nos informa diz respeito aos motivos que fomentam

essa contraposição, o que dá ao homem moderno sua especificidade. Para Schiller, os

gregos viviam numa unidade fundada na harmonia de seu viver com a natureza. O

Estado grego possibilitava que cada indivíduo gozasse uma vida independente,

podendo, quando necessário, elevar-se à totalidade. Já o Estado moderno constitui-se

como "uma engenhosa engrenagem cuja vida mecânica, em sua totalidade, é formada

pela composição de infinitas partículas sem vida"27; o dilaceramento que a arte e a

erudição introduziram no homem foi aperfeiçoado e generalizado por um novo

27 Schiller, Friederich. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 41.

18

espírito de governo. O homem moderno está assim despossuído de totalidade. Isso

deve-se, acusa Schiller, ao espírito especulativo que, ao se empenhar pelas

propriedades inalienáveis do reino das Idéias, teve de tornar-se um estranho no mundo

sensível, "perdendo a matéria em troca da forma". A cisão do indivíduo moderno,

como natureza sensível e racional, faz com que Schiller e seus contemporâneos

buscassem novamente o absoluto, a união entre o eu cognoscente e a natureza, entre a

felicidade e a obrigação. Pois, ele pergunta, deveria "a natureza, através de seus fins,

roubar-nos uma perfeição que a razão, através dos seus, nos prescreve?"28.

Tais indagações de Schiller remetem-nos à filosofia kantiana, referência

obrigatória, então, nessa discussão sobre a cisão do homem moderno e a fragmentação

das atividades humanas enquanto autônomas (ciência, moral e arte). Heine, em seu

livro que tinha como fim elucidar aos franceses a filosofia alemã (e se contrapor à

obra De l'Alemagne de madame de Staël), ao se referir à crítica kantiana, não pôde

deixar que a fina navalha de sua ironia deixasse de tocar o orgulho francês: "Confesso

sinceramente que vocês, franceses, são moderados e dóceis em comparação a nós,

alemães. Puderam no máximo matar um rei que já havia perdido a cabeça antes que

vocês o decapitassem"29. Rousseau decapitou o rei, Kant teria preparado os

sacramentos a um Deus agonizante.

A comparação que Heine tece entre o movimento filosófico alemão e a Revolução

Francesa não deixa de nos informar sobre a intensa sensação de ruptura, presente

então na Europa, que inquietava tais pensadores com relação ao passado. A Crítica da

Razão Pura, apesar de só ter se tornado amplamente difundida no final da década de

1780, iniciou "na Alemanha uma revolução espiritual que possibilita as mais

extraordinárias analogias com a revolução material na França, e que deve ter tanta

importância quanto esta para o pensador mais profundo (…) Nos dois lados do Reno

vemos a mesma ruptura com o passado, recusando-se qualquer reverência à tradição;

assim como todo direito passou a justificar-se aqui na França, assim também todo

pensamento precisa justificar-se na Alemanha"30(grifo meu). A Revolução é um

marco indelével da ruptura da modernidade com o passado, e assim Heine quer

também para a Alemanha um signo de mesma denotação, achando-o acertadamente

28 Ibid. p. 45. 29 Heine, Henrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 89. 30 Idem,p. 86.

19

em Kant; este representando uma ruptura espiritual, o que levaria a Alemanha

posteriormente, no devir, a realizar uma Revolução fundamentada numa base

filosófica sólida e conseqüente.

Kant, no entanto, jamais conceituou a modernidade. Em sua filosofia, os traços

essencias da época se manifestam como num espelho, o sujeito que se dobra sobre si

mesmo enquanto objeto para se compreender como uma imagem especular, de modo

especulativo. Ao fundar a possibilidade do conhecimento objetivo, do discernimento

moral e do juízo estético, a razão crítica assegura suas prórprias faculdades subjetivas

e torna transparente a arquitetônica da razão. Sua filosofia delimita, a partir de pontos

de vista estritamente formais, as esferas culturais de valor enquanto ciência e técnica,

direito e moral, arte e crítica de arte, legitimando-as no interior desses limites31. Tal

constituição de autonomia das faculdades, decorrente da descoberta de que "nada

podemos saber acerca de muitas coisas com as quais antes supúnhamos estar no mais

íntimo contato"32, fez com que o indivíduo que assim se enxergava colocasse a

questão de "saber se o princípio da subjetividade e a estrutura da consciência de si que

lhe é imanente são suficientes como fonte de orientações normativas, se bastam para

'fundar' não apenas a ciência, a moral e a arte, de um modo geral, mas ainda estabilizar

uma formação histórica que se desligou de todos os compromissos históricos"33. De

fato, como atesta Heine, tal "descoberta" kantiana foi, aos olhos de seus

contemporâneos, "deveras desagradável". Tratava-se então de uma tarefa hercúlea a

que os modernos tinham pela frente, qual seja: a de construir, partindo do próprio

espírito da modernidade, uma forma ideal interna que não se limitasse a imitar as

múltiplas manifestações históricas, assim como uma nova forma de relação do sujeito

cognoscente com o mundo; um novo absoluto que possibilitasse à modernidade

constituir-se em uma totalidade própria.

Tal tarefa, sentida conscientemente, foi o mote principal de toda uma geração

de filósofos, artistas e críticos. Aí encontramos diferentes projetos, entre os quais cabe

citar os seguintes: o catolicismo de Chateaubriand, "os motins schlegianos", o projeto

estético de Schiller e, por fim, o saber absoluto de Hegel. Tais projetos representaram

diferentes formas de tentar resolver a expectativa moderna de um novo ideal, e

31 Habermas, Jürguen.Op.Cit. 32 Heine, H.Op.Cit.,p. 93. 33 Habermas, J. Op.Cit. p. 30.

20

exerceram, assumindo cada qual novas especificidades durante o século XIX, um

efeito modelar para o pensamento moderno.

No que diz respeito a Chateaubriand, poderíamos compreendê-lo como uma

reação nostálgica à unidade perdida. Tal unidade é aqui o catolicismo, cujo espírito

define uma moralidade ideal. Nobre católico de antiga linhagem, Chateaubriand

parece tentar restaurar a religião e a dinastia de seus pais. Sua crítica em Le Génie du

Christianisme dirige-se contra o ceticismo e o ateísmo racionalistas do século XVIII e

a Revolução. "Chateubriand procura mostrar-nos que o cristianismo é não somente a

verdadeira religião, como também a religião 'mais poética e mais favorável às

artes'"34. O cristianismo (católico romano) é a fonte da identidade européia e só dela

pode advir o absoluto, a totalidade ideal como modelo de constituição da sociedade.

"Ora, pergunta ele, como se há de admitir que o homem, imperfeito e mortal, possa

por si oferecer-se para reaver um fim perfeito e imortal?"35. O evangelho ensina "a

bem viver, e não a argumentar". Desse modo, Chateaubriand nega a possibilidade da

subjetividade do sujeito cognoscente realizar a totalidade a partir de si mesmo,

precisando para isso da força exterior que só o cristianismo pode oferecer.

Schlegel, em sua fase tardia, também tomará do misticismo cristão elementos

de inspiração para seu projeto estético. No entanto, o que nos interessa aqui é a sua

estética do devir e seus "motins schlegianos", como o denominou Heine. Tais motins

consistiam na sua luta contra os antigos36. Para ele, seguindo a idéia de Schiller sobre

a incompatibilidade da condição do homem moderno com a forma clássica, era

necessário uma verdadeira batalha no campo da artes. A sua atuação crítica tinha

assim um inimigo definido e um objeto a ser construído. No Lyceum, fragmento 11,

declarava ele: "Até agora nada de verdadeiramente hábil, nada que contenha

profundidade, força e destreza, foi escrito contra os antigos, sobretudo contra sua

poesia"37. O peso de tal poesia, representante de um ideal que sufocava a atividade

criadora moderna e sua realização plena na sociedade, tinha de ser anulado ao mesmo

tempo em que se vislumbrava algo de novo. Esse "algo de novo" nos parece bastante

significativo como característica do projeto schlegiano, daí o chamarmos de estética

34 Wellek, Rene. História da crítica moderna. São Paulo: Edusp, 1967, p. 206. 35 Chateaubriand, Rene. O Gênio do Cristianismo. São Paulo: W.M. Jackson Ed., 1949, p. 24. 36 Schlegel, quando jovem, tomava a arte antiga como aquétipo, tal como Goethe, porém, após a leitura do texto "Poesia Ingênua e Sentimental" de Schiller, ele inicia um ardente combate em prol de uma estética própria aos modernos.

21

do devir. Seguindo o caminho da autonomia estética, enquanto intuição, defendia que

daquilo "que os modernos querem é preciso aprender o que a poesia deve vir a ser". A

poesia moderna, mediante a ironia, a auto-consciência, elaboraria uma nova mitologia,

novo signo da identidade moderna como um todo. O que é antigo está feito, o

moderno está para se fazer. "Nos antigos se vê a letra perfeita e acabada de toda a

poesia; nos modernos se pressente o espírito em devir"38. Os olhos deixam de estar

presos ao passado, para voltar-se ao que ainda não se realizou. Esta noção de tempo

demarca uma nova experiência, onde as expectativas do devir servem de orientação

para a atividade estética. Nessa formulação romântica, como bem atesta Jauss em seu

estudo sobre o conceito de "moderno", "se funda a autoconsciência de uma geração

que vive sua modernidade, paradoxalmente, não mais [somente] como oposição às

épocas antigas, mas como dilema em relação ao tempo presente"39.

A arte como poder de reconciliação que aponta para o futuro. Esta idéia está

também presente em Schiller. Já nos referimos a ele e aqui só será salientado mais

uma questão de sua proposta estética. Para o poeta da modernidade, essencialmente

reflexivo, a poesia ingênua ( tal como se constituía na antiguidade) tornou-se

inatingível40. Agora trata-se da arte moderna aspirar ao ideal de uma unidade mediada

com a natureza, diferentemente da antiga, que atingiu sua meta com a beleza da

natureza imitada. A arte, para Schiller e os futuros românticos, "é a forma sensível em

que o absoluto se apreende intuitivamente, enquanto que a religião e a filosofia são

formas mais elevadas, nas quais o absoluto já se representa e se concebe"41.

A arte deve deter também o poder de "sociabilizar o gosto", por assim dizer,

pois ele "conduz o conhecimento para fora do mistério da ciência e o traz para o céu

aberto do senso comum, transformando a propriedade das escolas em bem comum de

toda a sociedade humana"42. Esta estética da comunicação visa uma formação social

específica: a nova sociedade civil. Note-se que é dessa mesma época a composição de

uma efera pública de opinião, da qual o próprio Kant já se referia, onde indivíduos

capazes de pensamento próprio, "depois de terem sacudido de si mesmo o julgo da

37 Schlegel, Friederich. O Dialéto dos Fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. 38 Idem. frg.93. 39 Jauss, Hans Robert. "Tradição literária e consciência atual da modernidade". In: Olinto, Heidrun Krieger. Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 75. 40 Schiller enxerga em Goethe a realização de uma poesia ingênua, mas esta se realiza somente pela artificialidade. 41 Habermas, J. Op. Cit. p. 51.

22

menoridade, espalharão ao redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio

valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo"43. Torna-se uma

obrigação fazer um "uso público da razão" em todas as questões, numa sociedade

onde estão separados o social e o político44. Schiller defende assim a

intersubjetividade que a arte deve incitar, através de seu viés comunicativo (mediante

sentidos), como instrumentos para que os membros de uma comunidade tomem

consciência de si.

"Nossa revolução filosófica está encerrada. Hegel fechou o grande círculo"45.

Heine não deixa dúvidas da importância que a filosofia de Hegel representou nesse

processo de autocertificação da modernidade. Tomando também como pressuposto a

circunstância de que a consciência de tempo se destacou da totalidade da história e o

espírito se alienou de seu si, Hegel procura ter como meta apresentar a razão como

poder unificador.

A filosofia para Hegel deve ganhar a forma de ciência. Só assim ela pode

representar o ser-aí dos momentos de sua época. "Colaborar para que a filosofia se

aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber

para ser saber efetivo – é isto o que me proponho"46. Ciência aqui bem entendida

como um saber muito mais amplo do que a ciência que se confundia com o modelo

matemático, o qual Hegel critica.

Hegel, num primeiro momento, vai criticar a filosofia iluminista (Kant e

Fichte) por ter substituído a razão pelo entendimento de modo equivocado, elevando

algo finito a absoluto. Contra Kant, afirma que não "se pode, de modo algum,

considerar como científico o uso daquela forma [triádica], onde a vemos reduzida a

um esquema sem vida, a um verdadeiro fantasma"47 Para ele, tal como em

Chateubriand – mas por motivos diferentes –, não é possível que se reconquiste a

reconciliação somente a partir da relação reflexiva do sujeito cognoscente. Daí a tarefa

42 Schiller,F. Op. Cit. p. 145. 43 Kant, Immanuel. "Resposta à pergunta: O que é Esclarescimento(Aufklärung)?" In: Kant,I. Textos Seletos, São Paulo: Vozes, 1985, p 102. 44 Será retomada essa discussão a respeito da esfera pública ao tratarmos da função social e política do conceito de história. 45 Heine. H. Op.Cit. p. 125. O meu objetivo aqui certamente não é uma exposição sistemática da filosofia de Hegel, tanto por não me sentir capacitado para tal como também pela limitação de espaço e tempo. Assim, procurei apenas enunciar suas principais preocupações e resultados, sendo amparado em grande parte na exegese que Habermas efetua da filosofia hegeliana. 46 Hegel, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 1999, p. 23. 47 Ibid.p.48.

23

a qual se propõe realizar: mostar que a razão também pode reunificar de modo

igualmente indispensável aquelas oposições que fragmentavam as relações da vida.

Ao contrário do dogmatismo da filosofia kantiana, que absolutiza a

consciência de si dos homens dotados de entendimento, elaborando a partir daí "falsas

identidades" graças à determinidade objetiva que o homem contempla e projeta para

fora, Hegel procura uma identidade não forçada. São forçadas as identidades do

subjetivo e do objetivo no conhecimento, do infinito e do finito, do singular e do

universal. Ele tenta escapar dessa determinação do subjetivo mediante a visualização

de um sujeito que não precede o processo universal como ser ou intuição intelectual,

mas que subsiste "no processo da relação entre o finito e o infinito e na atividade

devoradora do voltar-a-si"48. O absoluto aí é concebido como processo mediador da

auto-relação que se produz independente de toda condição. Essa auto-relação a partir

da qual o absoluto é concebido é que permite a Hegel afirmar que "o verdadeiro tem

a natureza de eclodir quando chega o seu tempo, e só quando esse tempo chega se

manifesta; por isso nunca se revela cedo demais nem encontra um público

despreparado"49. Assim, a história e a realização do absoluto coincidem num mesmo

processo. A reflexão agora é compreendida como "um momento positivo do

absoluto". Hegel chamará este absoluto de realização do Espírito, que se manifesta de

diversas formas através do sujeito. A arte é "um particular modo de manifestação do

espírito", um meio "de consciencialização das idéias e dos interesses mais nobres do

espírito"50.

Chegei enfim ao que interessa nesta parte do estudo. Delimitei certos

momentos de um processo de reflexão que inaugurou-se a partir da percepção da

ruptura da modernidade em relação ao passado, no qual está caracterizada como

fragmentação, o que impulsionou, por sua vez, uma busca por uma nova totalidade

reguladora, encarnada aqui em Hegel. Neste vê-se concebida uma noção de razão que

ultrapassa as limitações do entendimento do sujeito cognitivo, ao vislumbrar o

absoluto enquanto processo, no qual se manifestam suas formas mediante diferentes

atividades humanas. História e realização do espírito coincidem; a auto-relação do

finito e do infinito caracteriza a dinâmica de tal processo. "Na verdade, o indivíduo

48 Habermas. J. Op. Cit. p. 48. 49 Hegel, G.W.F. Op.Cit.p. 61. 50 Id. O Belo na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 5, 9.

24

deve vir-a-ser, e também deve fazer, o que lhe for possível; mas não deve exigir muito

dele, já que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo"51. Nesta

concepção de Hegel, a História, como singular coletivo, o processo de realização do

espírito, as manifestações de várias singularidades na totalidade, vem de encontro ao

resultado da outra frente de reflexão que nos propusemos a analisar aqui: a

constituição do conceito moderno de história e suas implicações.

2.3 Um conceito regulador

51 Id. Fenomenologia do Espírito. p. 62. Cabe mencionar aqui a leitura que Louis Dumont faz da filosofia hegeliana. Ele encontra em Hegel, mas também em Tocqueville e Comte, uma certa reabilitação dos ideais da Revolução Francesa, no intuito de "recontruir uma teoria política e social que os retomasse sob uma forma viável". Assim, estes autores reabilitariam um certo holismo, enxergando o indivíduo na totalidade, como um ser social. Sem querer entrecruzar as discussões, poderíamos perguntar se esta reação também não vem de encontro com o que estamos propondo aqui, um movimento da fragmentação em busca da totalização; ainda que esta não seja plenamente realizada. Cf. Dumont, Louis. O Individualismo. Uma peerspectiva antropológica da ideologia moderna , Rio de Janeiro: Rocco, 2000. pp. 114-123.

25

O que pretendo aqui é tratar de algumas características da formação da

experiência histórica moderna, visualizando-a mediante a reflexão acerca de seu

conceito e sobre como este orienta uma prática. Bem entendido, esta experiência

histórica é circunscrita por um campo de expectativas e possibilidades bem definidas,

não podendo ser aproximada de outras produções historiográficas que, a risco de

perdermos a perspectiva da especificidade do objeto, somos tentados a enxergar como

momentos de origem de uma prática atemporal.

Portanto, o que deve ser primeiramente analisado neste estudo são as

formulações básicas que constituem o problema moderno da possibilidade da história,

congruentes com as expectativas expostas na seção anterior. Em seguida, a formação

de seu conceito será trabalhada a partir de quatro tópicos: a história como singular

coletivo, a história como processo, as funções sociais e políticas do conceito e, por

fim, o julgamento histórico. Acredito que estes tópicos dão conta das características

mais significativas que o conceito assume em sua configuração moderna,

possibilitando um melhor entendimento das expectativas comprtilhadas pelos

intelectuais.

Cassirer, em 1932, procurou reestabelecer à filosofia iluminista a problemática

histórica. Vingava então a máxima de que o século XVIII era especificamente a-

histórico. Essa idéia, rebatia Cassirer, nada mais seria do que uma palavra de ordem

divulgada pelo romantismo. Segundo sua análise, é justamente no século XVIII que o

problema propriamente filosófico das condições de possibilidade da história, tal como

já questionara antes as condições de possibilidade da física, é formulado. Ao contrário

do que já ocorria com a física, para a história restava todo um trabalho de

fundamentação a se realizar."Assim como a matemática se tornou o protótipo das

ciências exatas, também a história é agora o modelo metodológico a que o século

XVIII conferiu uma nova e profunda compreensão da tarefa universal e da estrutura

específica das ciências humanas"52.

É essa tarefa que Bayle procura resolver. O ponto principal da ciência histórica

seria, antes de tudo, estabelecer fatos perfeitamente seguros. Ele opõe-se ao

racionalismo cartesiano, o qual rejeitava não só o testemunho da experiência como

também todo saber que não fosse rigorosamente demonstrável. Bayle pregava que a

26

história depende de um outro grau de certeza, diferentemente da matemática, mas que

não deixa de ter sua validade. Mas os fatos históricos apresentam-se para ele como um

agregado, um "amontoado monstruoso de escombros". Não possuía a história uma

lógica interna, um sentido que unisse as diversas particularidades.

Tal como em Bayle, para Jablonski as histórias eram o espelho das virtudes e

dos vícios através do qual poder-se-ia aprender aquilo que convém e o que não

convém fazer na sociedade. Para Baumgarten, também as histórias "sont sans aucun

doute la partie la plus instructive, la plus utile, comme la plus réjouissante de

l'érudition"53. As histórias aqui são utilizadas no plural, como uma série de momentos

independentes. Essa concepção de história era comum desde o Maquiavel dos

"Discursos"; já aí ele tratava de momentos históricos como "casos" que poderiam ser

estudados independente da cronologia e do espaço. Os momentos históricos são

"exemplos" que permitem uma aprendizagem moral e política; por isso ele esperava

que de seus discursos os homens pudessem "extrair aquela utilidade pela qual se deve

buscar o conhecimento da história"54.

No entanto, a proximidade que se estabelece na segunda metade do século

XVIII entre história e filosofia, manifestada pela formação paralela dos termos

"filosofia da história" e "história geral", denuncia que esta não foi conceitualizada

senão por uma elaboração reflexiva. Em 1775, Adelung registrava lado a lado os dois

usos:

L'histoire (die Geschichte), plur. et nom. sing. […] Ce qui est

advenu, une chose passé, de même que, dans une autre acception, toute

modification aussi bien active que passive arrivant à une chose. Dans un sens

plus étroit et plus habituel, le mot vise des modifications diverses reliées

entre elles qui, prises ensemble, contituent un certain tout […] Dans cette

acception, on l'emploie souvent comme colletif et sans pluriel, pour plusiers

evénements passés relevant d'une même chose55

52 Cassirer, Ernst. A filosofia do Iluminismo (Auklärung). Campinas: Ed. da Unicamp, 1997, p. 272 53 Baumgarten, S. J. "Allgemeine Welthistorie" Apud: Koselleck, R. Op. Cit. p. 16. 54 Maquievelli, Niccolo. "Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio".In: Pensadores Italianos. Rio de janeiro: W.M. Jackson Ed., 1964. p.97 55 Apud: Kosellek, R. Op. Cit. p. 17.

27

Assim, passa a tratar-se agora do coletivo singular que caracteriza o conjunto de

histórias particulares. Como atesta Koselleck, o termo alemão die Geschichte, tomado

como singular coletivo, implica uma complexidade maior do que aquelas histórias

particulares deixavam presumir. O conceito que vinha a ser formado abre um novo

mundo de experiência, e um indício disso são os enunciados tais como "história em si

e para-si", "a história enquanto tal" e "história geral". A história torna-se assim seu

próprio sujeito, sem necessariamente se reportar a um objeto próprio, como França ou

Inglaterra. Desse modo, a noção de história avança no sentido de se tornar uma

instância última; ela torna-se um agente do destino humano e/ou do progresso da

sociedade.

Da utilização moral da história desenvolve-se, conjuntamente, uma noção de

processo. Isso não quer dizer que a história deixe de prover os homens de uma moral.

Ao contrário, ela vem se transformar agora num "tribunal intégre et terrible", nas

palavras de d'Alambert. Não são mais as histórias particulares que possuem o valor de

exemplos, mas sim a história na totalidade que então é transformada em processo, do

qual o desenvolvimento vem garantir e administrar a justiça. Herder, apesar de

privilegiar as individualidades históricas, não deixa também de conceber "leis naturais

que residem na essência das coisas", "a essência da nossa espécie, a sua finalidade e o

seu destino residem na razão e na justiça"56. Se os homens não podem privilegiar ou

sacrificar determinados aspectos das culturas passadas, devido à sua condição limitada

no tempo e no espaço, isso não quer dizer que a razão e a justiça deixem de

prevalecer. Como diria Schiller, a "história do mundo é o tribunal do mundo"57. Já

vimos como isso assume em Hegel uma dimensão ontológica, a história representando

a dialética dos espíritos particulares dos povos, "o tribunal do mundo".

Esse processo histórico, no entanto, traz à baila a espinhosa questão de como

percebê-lo e defini-lo. Se a história é um processo, é um processo do que e para quê;

qual a sua natureza e seu fim? De um lado, vemos as propostas teológicas, das mais

diversas, da qual Herder faz parte, e que vê o vetor de orientação teleológica na

Providência. De outro, seguindo a proposta racionalista da filosofia Iluminista, abre-se

o debate acerca da veracidade e da razão da história.

56 Herder, J.G.von. "Idéias para a filosofia da história da Humanidade". In: Gardiner, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 59. 57 Apud: Kosellek, R.Op.Cit.p. 39.

28

Um primeiro ponto gira em torno da manifestação estética, por assim dizer, do

relato histórico. Enquanto o estudo da história tinha como fim uma aprendizagem

moral através de seus exemplos, poesia e história desempenhavam um único papel na

formação do indivíduo. A reserva aristotélica dava, neste caso, supremacia à poesia,

pois esta trataria do possível e do geral, e seria mais eficiente em mostrar o vício e

causar aversão, assim como apresentar as virtudes provocando regozijo. Mas

conforme a veracidade histórica ganha importância ao estar ligada a um complexo

histórico maior, detentor também de uma veracidade superior, a relação entre poesia e

história se redesenha. A hierarquia se inverte. Agora é a arte do romance que se vê

obrigada a tratar da realidade histórica58.E o relato histórico, por sua vez, além de

basear-se na autoridade da pesquisa, deve também ancorar-se num "sistema histórico

universal".Com essa prerrogativa filosófica, a união teleológica da história deve ser

algo mais do que meramente estética, devendo ter como ligação entre os eventos um

fundamento ontológico.

Na busca desse nexo histórico universal, vemos, primeiramente, a prática de

formular hipóteses que permitissem suprir as lacunas factuais, deduzindo o não-

conhecido das coisas conhecidas. Rosseau, por exemplo, nos seu Discurso sobre a

origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, nada mais fez do que uma

história hipotética, na qual as conjecturas apresentam-se como motivos razoáveis, os

mais prováveis que ele poderia tirar da natureza das coisas. Essa construção racional

da história mediante hipóteses, contudo, vem adiquirir necessariamente um satatus

mais elevado. Já vimos como se desenvolveu no período uma crítica à possibilidade

do sujeito cognoscente chegar ao universal, o que levou à busca de uma mediação

intersubjetiva. Dessa crítica, a história, como coletivo singular, deixa de ser

simplesmente resultado da reflexão hipotética subjetiva, assumindo, ela mesma, o

58 Com relação à importância do romance para a experiência histórica moderna, ver Bakhtin, Mikhail. "O romance de educação na história do realismo" In: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1997. Bakhtin analisa como está presente em Goethe, em obras como Wilhelm Meister e nas suas Memórias uma nova sensação temporal, a percepção do "movimento visível do tempo histórico, indissociável da ordenação natural de uma localidade e do conjunto dos objetos criados pelo homem, consubstancialmente vinculados a essa ordenação natural"p.251. Ver também como Auerbach identifica nas produções da juventude de Schiller, em Stendhal, Balzac e Zola, o mesmo processo expresso nas seleções dos obetos a serem tratados assim como na forma de tratá-los. O tratamento sério da realidade quotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores, o engarçamento de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea – estes são, segundo Auerbach, os fundamentos do realismo moderno, e "é natural que a forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para uma reprodução que abarcava tantos elementos". Auerbach, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 387-470.

29

modo de aparição do Espírito (ou da Razão) que se realiza no desenvolvimento da

história mundial. Même les reserves méthodologiques de l'école historique, diz

Koselleck,

ne peuvent rien opposer au fait que, dans l'histoire, chaque action peut dès

lors être comprise comme une action pour l'histoire, pour une histoire qui

confère un but à toute action et un sens à toute souffrance. La nation comme

véhicule de l'esprit du monde; la politique comme accomplissement d'Idées

ou de tendances, de forces ou de puissances; l'application du droit en tant que

finalité inhérente à tout événements, de la liberté humaine, de l'égalité ou de

l'humanité – vers la fin du XVIII siècle, tous le topoi de la langue politique

et sociale tentent de conceptualiser le contenu de l'"histoire en general"59

A história chega assim a se constituir como um conceito regulador moderno

que, nas palavras de Schlegel, rege o curso e a orientação da cultura moderna. Como

regulador de toda experiência e expectativas possíveis, o conceito de história

tranforma-se numa referência fundamental da linguagem social e política. Tais

reflexões acerca do conceito revestem-se de aparatos institucionais que conferem

autoridade a determinados agentes.

A produção e a reflexão historiográfica concentravam-se, na Europa, nas

universidades. Este locus privilegiado, no entanto, não restringia a utilização da

legitimidade do conceito, que também se aplicava num debate público por meio de

jornais. O percurso, assim, do uso político do conceito se dava, de um lado, com o

revestimento institucional e do discurso acadêmico – fonte principal de legitimação –,

de outro, no uso público por agentes não especializados, voltados para interesses

específicos e estratégias socias. Ambos concentravam em si projetos, os quais se

manifestavam, contudo, de formas diferentes e para públicos diferentes.

Tanto a conquista de uma autonomia científica do discurso histórico como a

constituição de uma sociedade civil burguesa, manifestada numa esfera de opinião

pública, impulsionaram a dinâmica dessa relação. Depois que a história veio a se

tornar um conceito reflexivo, servindo de intermediário entre o futuro e o passado e

sendo capaz de explicar, justificar e legitimar, suas características estratégicas podem

ser percebidas de diferentes maneiras. Os mais diversos agentes a ela se remetem, e

59 Koselleck, R. Op. Cit.p. 47.

30

mais, se vêem obrigados a isso; as nações, os partidos, as seitas e todos os outros

grupos de interesses devem se referir à história "pour autant que la généalogie de leur

propre position leur confère des arguments juridiques dans le champ d'action politique

ou social"60. A história não é de maneira alguma a ciência limitada ao passado, ela

conserva sua atualidade política, pois, nas palavras de Droysen, o que se passa ao

nosso redor, aquilo do qual somos parte, não é nada mais do que o presente da

história, a história do presente.

A sociedade civil que serve de palco para o uso público da história se

compreende como o setor da troca de mercadorias e do trabalho social; a família, com

sua esfera íntima esta aí inserida. Os indivíduos que compõe esses setores, como

pessoas privadas, vêm construir meios de representatividade a fim de servir como

mediação com o político. A esfera pública política, como se organizou em sua

formação, provém da literária; é ela que intermedia, através da opinião pública, o

Estado e as necessidades da sociedade. Esses lugares tendem sempre a organizar a

discussão permanente entre pessoas privadas. Procura-se aí a igualdade de status, a

problematização de setores que até então não eram considerados questionáveis.

Estabelece-se como príncipio o não-fechamento do público. A pretensão dessa espécie

de racionalidade desenvolveu-se contra o política do segredo de Estado, procurando

consolidar a opinião pública como única fonte de legitimação das leis.

Esse modelo, desenvolvido a partir de fins do século XVIII, pode ser bem

compreendido como um modelo iluminista-kantiano. O que se pretende é instaurar

uma opnião pública para racionalizar a política em nome da moral. Estando

políticamente em funcionamento, essa esfera pública torna-se, sob a constituição

republicana, um princípio de organização do Estado liberal de Direito. A própria

legislação se baseia na "vontade do povo" decorrente da razão, pois as leis têm sua

origem e fundamentação na concordância pública do público pensamente.

Essa noção de tribunal da esfera pública onde impera uma razão

desinteressada, no entanto, é logo desmitificada. Hegel, em sua visão da sociedade

civil, diagnostica um conflito de interesses que desacredita, como interesse meramente

particular, o interesse pretensamente comum e universal dos proprietários privados

politicamente pensantes. A publicidade serve aí apenas para a integração da opinião

subjetiva na objetividade que o espírito se deu na figura do Estado.

60 Ibid. p. 70.

31

Marx também acusa as contradições da imagem da opinião pública. Ele trata

ironicamente a esfera pública politicamente ativa – a "independência ideal" de uma

opnião pública de proprietários privados pensantes e que se consideram simplesmente

como seres humanos autônomos. Marx denuncia a opinião pública como falsa

consciência; ela esconde de si mesma o seu verdadeiro caráter de máscara do interesse

de classe burguês. A luta prática dos interesses particulares, que constantemente e de

modo real chocam-se com os interesses coletivos e ilusoriamente tidos como

coletivos, torna necessário o controle e a intervenção prática através do ilusório

interesse geral como Estado.

Através da emancipação da propriedade privada em relação à

comunidade, o Estado adquire uma existência particular, ao lado da esfera da

sociedade civil; mas este Estado não é mais do que a forma de organização

que os burgueses adotam, tanto no interior como no exterior, para a garantia

recíproca de sua propriedade e de seus interesses61

No mesmo palco da opinião pública constituída, coexistem tanto a crítica da

razão interessada, mascarada, de agentes privados como a defesa, realizada por esses

mesmos agentes, da legitimidade de uma racionalidade universal que intermedia as

necessidade comuns perante o Estado. O uso do conceito de história aí também se

insere. A tensão entre razão desinteressada e interessada se vê transportada para

conhecimento histórico, coexistindo também ambas as posições no debate

especializado e público. Um caso geral bem conhecido é o que diz respeito ao debate

do posicionamento de ciência histórica ou como ciência da natureza

(Naturwissenschaft) ou como ciência do espírito (Geistwissenschaft), tendo em

autores como Buckle e Dilthey, respectivamente, seus representantes.

Se, de um lado, e desde Chladenius, é denunciada a condição da representação

da história, da irremediável relatividade da cada julgamento; de outro, sendo

hegemônico em meados do século XIX, existe o conhecimento histórico concebido

como passível de uma objetividade própria. Se, de fato, depois de Chladenius e

Herder os historiadores se vêem confrontados com as perspectivas interpretativas, isso

não quer dizer que ele renunciem à mecanismos que lhes permitam assegurar seu

61 Marx, Karl. Engels, Frederich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 98.

32

conhecimento como objetivo. O modelo científico está ali para isso. Como ambiciona

Stuart Mill, o projeto "consiste em, por meio de um estudo e de uma análise dos fatos

gerais da história, tentar descobrir […] a lei do progresso"62. E, mesmo que o

argumento do método científico não convença, a própria característica e a amplidão

que o conceito de história vem adquirir permitem que esses autores coloquem a sua

objetividade como parte integrante do mesmo movimento histórico. Afinal,

Au même titre (et peut-être davantage) que ces prises de position

liées à cette ancienne controverse, l'ambivalence de l'expression l'"histoire

en tant que telle" (Geschichte selber) a la caractéristique de livrer en même

temps toutes les objections qui peuvent être formulées contre elle63

A história, finalmente, como todo conceito regulador, presta-se a conotações

diferentes de acordo com as posições e os partidos. Há uma delimitação de um espaço

específico que define o conceito na sua acepção moderna, mas esse mesmo espaço

também se constitui como um campo de possibilidades semânticas, que permite aos

agentes que nele transitam uma certa maleabilidade na defesa de posiçõs e legitimação

de ações. A história como singular coletivo, assumindo a feição de um processo

ontológico, tendo nas noções de progresso, razão e nação sua encarnações

privilegiadas, concentra em si uma força semântica comparável às expectativas mais

gritantes da sociedade ocidental do século XIX. Recorrendo ainda a Koseleck,

podemos concluir que

L'"histoire", l'"historique"(das Geschichtliche) sont devenues des

termes convocables à merci qui, en raison de leur champ sémantique

universel et de la possibilité d'en faire um emploi général, peuvent aller

jusqu'à ne plus rien signifier. Mais c'est lá aussi ce qui les rend politiquement

et socialement utilisables. 64

62 Stuart Mill, J. "Elucidações da Ciência da História". In: Gardiner. P. Op. Cit. p. 109. 63 Koselleck. R. Op. Cit. p. 80 64 Ibid. p. 89.

33

2.4 Um romantismo oficial: o sentimento de Estado

Delimitar o que seria o movimento romântico, o romantismo, em sua essência,

mais do que uma tarefa árdua, seria um fracasso anunciado por uma ilusão ontológica.

Não é possível defini-lo encontrando nele caracteres universais, coligindo palavras de

34

ordem, prussupostos filosóficos ou seja lá o que possa dar uma unidade invariável a

um conceito. Subversão – contra o Estado, a tradição, o convencionalismo, etc –,

sentientalismo, nacionalismo, instrospecção, todas essas características podem antes

levar a um engodo do que a uma pretensa verdade apodítica. O romantismo, como

qualquer "movimento" intelectual ou artístico, se manifesta na sua prática contextual,

submetido às expectativas e tensões inerentes às disposições de seus agentes. A

identidade maior, que define internacionalmente o movimento enquanto tal, se dá

justamente pela coação e interesses locais, o que não quer dizer que a ligação seja uma

mera aperência estratégica, pois o agente local invariavelmente se identifica com o

que referencia – como diria Bourdieu, faz parte da illusio. Ou seja, se um escritor cita

Byron, Musset ou Goethe (que não era romântico) em Buenos Aires, Lima, Rio de

Janeiro ou Nova York, estabelecendo um elo de união entre as obras citadas e a sua

própria, isso não quer dizer que ele compartilhe exatamente das mesmas expectativas,

assim como também sua obra não é um mero pastiche. Identidades cruzadas estão aí

presentes, na combinação e hierarquização de diferentes fatores.

O romantismo, como signo que referencia uma certa atitude em relação à arte e

à modernidade, foi usada pela primeira vez por Schlegel65. Já vimos como estes

autores alemães estavam tentando manifestar uma sensação de ruptura com relação ao

passado, procurando ao mesmo tempo uma auto-afirmação. Esse primeiro romantismo

caracteriza-se, antes de tudo, pela ruptura com a tradição, pela subjetividade reflexiva

e por um projeto estético "rebelde" em relação ao Estado Moderno. Na França, apesar

do romantismo só ter de fato se instalado como movimento no final década de 1820,

com o estouro de Victor Hugo, desde Chateaubriand e Madame de Stäel seus

elementos estão presentes, como sentimentalismo, nostalgia, descrição da natureza e

uma subjetividade contemplativa e emocional.

Em cada um destes países (ou regiões), as premissas do movimento foram

moldadas pelos contornos históricos. A Alemanha, como uma região fragmentada em

diversos reinos, assolada culturalmente pelos modelos franceses, incitou seus

pensadores e homens de letras reclamarem seus direitos66. Na França, cuja tradição

65 Cf. Wellek, R. Op. Cit. 66 Goethe, em suas Memórias, recorda que a "época literária em que nasci originou-se da precedente por oposição. A Alemanha, tanto tempo inundada por povos estrangeiros, invadida por outras nações, obrigada a servir-se de idiomas estrangeiros […], não podia em absoluto cultivar o seu". Goethe, J. W. Memórias: poesia e verdade. São Paulo: Hucitec, 1986. Daí a ansia de ruptura na Alemanha ser mais

35

cultural já consolidada permitia uma prática mais tranquila, e reconhecida, por parte

dos letrados, o romantismo se cristaliza essencialmente como belle-lettres.

No Brasil, a consolidação de um movimento romântico se dá de forma muito

específica e marcante. Coincide com a instauração do aparato imperial e é por este

incitado. No Brasil colonial se encontravam apenas algumas escolas elementares,

controladas pelos jesuítas, e algumas academias formadas nos moldes do arcadismo.

Essa situação começa a modificar-se quando D. João VI desembarca no Rio de

Janeiro, fugindo das tropas de Junot, com a intenção de estabelecer instituições que

estruturassem aqui o domínio metropolitano. Como já foi mencionado, é desta época a

fundação de instituições como a Imprensa Régia, a Biblioteca, o Real Horto e o

Museu Real67.

Somando-se a uma elite ilustrada já existente, letrados e cientistas portugueses

começam a preencher esses espaços recém criados. Essa elite ainda tinha como marca

a forte vinculação com os modelos metropolitanos, enxergando o Brasil como uma

extensão da corte portugesa. Tal processo é continuado por D. Pedro; no entanto, com

a declaração de independência, as instituições já existentes e outras que estavam sendo

criadas pelo recém imperador assumem o papel de produzir e consolidar o Brasil

como uma unidade desvinculada politicamente de Portugal. A necessidade de uma

nova identidade faz-se perceber na feitura de uma constituição própria, organizada

pelas faculdades de direito então criadas.

O romantismo brasileiro data deste período e é inviável pensá-lo como fora do

Estado. A identidade nacional é sua meta, o Estado seu ponto de partida. Apresenta-se

como um movimento orgânico, tendo em seus representantes uma elite constituinte do

aparato imperial e compartilhando de seu projeto. "Abrir a cortina do passado, tirar

um Brasil-nação de lá: esta a tarefa indiscutível do escritor romântico"68.

Tarefa que teve como orientação os moldes franceses, principalmente pelo

contato direto de escritores brasileiros que encabeçavam a missão nacionalizadora (e

civilizadora), como Golçalves de Magalhães e Araújo Porto-Alegre, com artistas

cultural do que polítco-administrativa, sendo também o romantismo mais "subversivo". Já na França, o choque da Revolução e a conseqüente Restauração possibilitaram um romantismo mais emotivo, que não passaria de 1848. 67 Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

36

franceses que vieram para o Brasil. Ao mesmo tempo em que o romantismo francês se

consolidava, esse contato incitava os escritores brasileiros na sua produção.

Clamando por uma literatura nacional derivada das tradições

folclóricas, privilegiando a natureza indomada e enfatizando as

especificidades do passado de cada povo, o romantismo era especialmente

atraente para as gerações brasileiras que testemunharam a consolidação do

novo Império69

Um dos letrados que mais influíram na prática literária brasileira foi Ferdinand

Denis (1788-1846). Ainda jovem, pupilo de Chateaubriand, veio para a América com

o fito de conhecer e descrever a natureza e o povo indígena. Por três anos (1816-1819)

percorreu boa parte do país, conhecendo de perto, entre outros, os Botocudo e os

Machacalis, estudando-os e descrevendo seus hábitos e costumes. Sua obra Résumé de

l'Histoire Littéraire du Brasil teve grande impacto na elite ilustrada brasileira. Nela

estão alguns preceitos que todo literato e historiador da literatura brasileira deveria

seguir.

Primeiramente, como algo de novo, o Brasil deve procurar sua próprias

inspirações:

O Brasil, que sentiu a necessidade de adotar instituições diferentes

das que lhe havia imposto a Europa, o Brasil experimenta já a necessidade de

ir beber inspirações poéticas a uma fonte que verdadeiramente lhe pertença;

e, na sua glória nascente, cedo nos dará as obras-primas desse primeiro

entusiasmo que atesta a juventude de um povo70

Deve, assim, a literatura brasilera alimentar-se a si mesma; deve rejeitar "as

idéias mitológicas devidas às fábulas da Grécia"; deve ter pensamentos novos e

próprios como ela mesma, afinal, "nossa glória literária [francesa] não pode sempre

iluminá-la com um foco que se enfraquece ao atravessar os mares, e destinado a

apagar-se completamente diante das aspirações primitivas de uma nação cheia de

68 Süssekind, Flora. "O escritor como genealogista: A função da literatura e a língua literária no romantismo brasileiro". In: Pizarro, Ana(org). América Latina. Palavra, literatura e cultura. V.2. Campinas: Ed. Unicamp, 1994. p. 454. 69 Needel, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993.p.212.

37

energia"71. Compartilhando daquela experiência histórica da qual tratei no capítulo

anterior, Denis propunha aos letrados brasileiros a maneira pela qual eles poderiam

caracterizar a especificidade nacional. A literatura serve como uma das manifestações

do espírito nacional, devendo ela ser um meio de realização e conscientização dessa

realidade. Como afirma Jauss:

A nova história das literaturas nacionais entrava numa concorrência

ideal com a história política e pretendia mostrar, pela conexão de todos os

fenômenos literários, como a idéia de individualidade nacional pudera por si

mesma chegar, de princípios quase míticos, à plenitude dp clássico

nacional.72

O elemento que Denis privilegia para o caso brasileiro é a natureza. Costa

Lima sugere que tal proposta deveu-se à repugnâcia que a sociedade colonial causou

no literato francês. Denis choca-se com a cena barroca da sociedade brasileira, na qual

o discurso sério se confundia com a ficção e vice-versa. "Os monges, escreve Denis,

são os diretores e com frequência os atores destas momices, que a meus olhos

ultrapassam todo ridículo. Não se perturbam em rir delas com os estrangeiros, mas as

crêem necessárias para manter seu crédito entre o povo"73. Essa sociedade e sua

configuração essencialmente cênica, hipócrita, causa aversão ao francês. Ele encontra

uma sociedade branca (a elite vinculada à corte), desprovida culturalmente e

religiosamente farsante. E, imbuído da visão predominante em França do bom

selvagem, volta seus olhos para a natureza e os selvagens que nela habitam. A

repugnância que sentiu pela sociedade colonial, assim, teria provocado uma curiosa

seleção, na qual privilegia-se a natureza como meio de autonomização da literatura.

A natureza já era tomada na Europa como um dos elementos principais do

romantismo. O que se diferenciava era o modo como era tratada. No romantismo

alemão, principalmente, a natureza era um estímulo à auto-reflexão, onde os sujeitos

poderiam desenvolver-se e assumir uma postura crítica em relação à sociedade. As

70 Denis, Ferdinand. "Resumo da História Literária do Brasil". In: César, Guilhermino. Historiadores e críticos do romantismo. São Paulo: Edusp, 1978.p. 36. 71 Ibidem. 72 Apud: Costa Lima, Luiz. O controle do Imaginário. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p 126. 73 Idem. p.132.

38

condições aqui eram diversas. Ao contrário do caso europeu, não havia tensão e

sentimento de rebeldia entre os letrados brasileiros. Pelo contrário, letrados como

Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre contavam com o estímulo imperial.

"Sem a luta contra a sociedade instutída, o próprio contato com a natureza teria de

assumir um outro rumo, não o de estimular a reflexão, mas o de desenvolver o êxtase

ante sua selvagem maravilha"74. Se não despertava a reflexão, a contemplação da

natureza incitava a melancolia, o culto da tristeza e da saudade. O "ai que saudades" se

torna o sentimento comum entre os românticos brasileiros, assim como o resgate da

figura indígena com o mito da nacionalidade.

No que diz respeito ao discurso histórico, ao mesmo tempo distinto e próximo

ao literário, a proposta de Karl Friederich von Martius marca uma consolidação

paradigmática dos elementos privilegiados para se pensar a formação histórica

brasileira. Elementos que serão adotados pela "historiografia oficial", representada

pelo IHGB.

Na proposta de Von Martius encontra-se um ponto central de análise que

caracteriza-se justamente pela sua força, e a partir da qual se estenderão suas

consequências. Os elementos que interagiram no desenvolvimento do homem foram

vários, mas pode-se verificá-los convergindo nas três raças: "a de côr cobre ou

americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou ethiopica"75. É a união destes

elementos que dá à história do Brasil sua particularidade.

Von Martius era um naturalista e, como alemão da primeira metade do século

XIX, não podia estar alheio à influência de um Goethe e de um Schiller. Disso resulta

a utilização de categorias e a orientação de interesses próprios, tais como a busca pela

particularidade de um povo, pelo gênio da história, pela importância atribuída à língua

enquanto manifestação do espírito de um povo ou ainda - o que lembra muito Schiller,

buscar a satisfação "não menos ao coração do que a inteligência".

O que distingue as raças são tanto seus aspectos físicos como os morais. Cada

raça - e as três raças, no Brasil, constituem um povo - apresenta características que lhe

conferem identidade; e cada qual contribuiu de uma maneira particular no

desenvolvimento histórico do Brasil.

74 Idem.p. 134. 75 Von Martius, F. Como se deve escrever a história do Brasil. p. 390.

39

O português, como não poderia deixar de ser, representa o "essencial motor"

que mais influiu no desenvolvimento do Brasil. Isto ainda é pouco, pois na verdade,

segundo Martius, a história do Brasil "será sempre a história de um ramo dos

portugueses", sendo o resto dos elementos material que confere uma peculiar

composição a essa aquarela situada nos Trópicos.

O português é europeu, ainda que periférico, e graças a isso está no vetor da

história. Ele traz em seu espírito as qualidades morais e culturais da civilização

européia, tal como as artes que representam para o "historiador pragmático" um objeto

especial. "Uma tarefa de summo interesse para o historiador pragmático do Brasil será

mostrar como ahi se estabeleceram e desenvolveram as sciencias e artes com o reflexo

da vida européa"76. A configuração do Brasil configura-se assim como uma mimesis

distorcida da sociedade européia.

Mimesis distorcida graças à influência do meio físico mas, principalmente,

dos demais elementos humanos que influíam no processo histórico. Dos índios

Martius terá uma visão modelar, tal como romântico, preocupado em resgatar uma

possível história perdida desses povos. Para ele, "o penível quadro que nos oferece o

atual indígena brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que

perdida história".

O único meio de resgatar tal história é resgatar, através da língua, os mitos, as

teogonias e geogonias. Considerando a língua como documento privilegiado para

insvestigação da sociedade indígena, Martius busca uma, quem sabe, pureza e

grandiosidade indígena que sirva, pelo menos, como introdução a uma história do

Brasil. Ao elemento negro foram suficientes dois pequenos parágrafos. Perversa

proporção que será também modelar na historiografia Brasileira do século XIX.

Martius desenvolveu assim a idéia de que a singularidade do Brasil jazia no

cruzamento racial, reafirmando contudo a relação herárquica entre as raças que o

formavam manifestada nas heranças que legaram. Ele combinava, desse modo, as

teorias propriamente européias apontando para a possibilidade do Brasil afirmar sua

especificidade dentro dos moldes daquelas mesmas teorias. Nesse processo de

assimilação e abrasileiramento, imitação e singularização, como bem notou

Süssekind, eses escritores legitimavam um discurso oficializado, produzido por uma

elite estatal. A assimilação por parte de Goncalves de Magalhães das propostas de

40

Denis, assim como a assimilação realizada por Varnhagen de von Martius são casos

representativos desse processo. E a forma com que esse processo se desenvolveu no

romantismo, com uma relativa passividade e "pacificidade" por parte dos autores, se

deveu ao fato de que o "exame do concreto não importava; sobretudo se ele

acrescentaria aspectos que não interessavam ao idílio retórico do texto"77. Não havia

ainda um grau de tensão suficientemente elevado que impulsionasse o combate crítico

e um acirramento do debate sobre os critérios de validade do conhecimento.

3. Sílvio Romero e Araripe Jr: as referências da identidade

I

76 Ibid. p. 402. 77 Costa Lima, Luiz. Op.Cit.p. 143.

41

Como integrantes do que se convencionou chamar de "geração de 1870",

Sílvio Romero e Araripe Júnior compartilhavam certas disposições intelectuais. Em

um ambiente cujas complexidade e possibilidades sociais aumentavam, os intelectuais

se viam impelidos a voltar-se para meios de legitimação variados e exteriores, não

podendo mais se sustentar apenas nos braços institucionais do Império. O romantismo

oficial finalmente perdia a hegemonia e essa "nova geração" assumia – ou procurava

assumir – o papel de refletir acerca da identidade nacional. Começam a deliner-se

especializações profissionais e novas trajetórias sociais se tornam possíveis. A partir

desse período, pode-se dizer que "se essa elite ilustrada não era, em sua maioria,

originária das camadas mais pobres, também não pode ser entendida como totalmente

oriunda ou até mesmo portadora exclusiva dos interesses das classes dominantes"78.

Um processo de diferenciação se institui, e como tal preza por um rompimento com o

passado imediato, com a geração anterior. Mas como Machado de Assis bem notou,

tal geração, ainda que uma "expressão incompleta, difusa, transitiva", apesar de não

tê-lo feito, deveria estar "obrigada a não ver no romantismo um simples interregno,

um brilhante pesadelo, um efeito sem causa, mas alguma coisa mais que, se não deu

tudo o que prometia, deixa quanto basta para legitimá-lo"79.

Alguma coisa, mas não tudo. Se, de um lado, Sílvio Romero e Araripe Jr.

herdaram a legitimidade de objetos da identidade nacional, de outro, recorreram à

eficiência do discurso científico e seu método para "limpar" a roupagem metafísica do

pesamento brasileiro. A identidade nacional também para eles está na história, na

representatividade da brasilidade no tempo. A historicidade da experiência brasileira é

um imperativo e é mister perceber nela a genialidade nacional. "Uma nação, diz

Romero, se define e individualiza quanto mais se afasta, pela história, do caráter

exclusivo das raças que a constituíram" e no "trabalho de diferenciação nacional, o

brasileiro será tanto mais progressivo a autonômico, quanto mais, apropriados os

germens úteis que legaram-lhe as raças que o constituíram, delas afasta-se, formando

um tipo à parte, uma individualidade distinta"(grifo no original)80. Assim, a história é

78 Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo. Cia das Letras, 1993.p. 26. 79 Assis, Machado de. "A nova geração". In: Obras completas: Crítica Literária. São Paulo: WM. Jackson Ed. 1953.p. 151. 80 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna". In: Op. Cit. p. 104.

42

o fundo no qual se atualiza, pela diferenciação, o espírito da nação em sua

individualidade.

Quanto a Gregório de Matos, é ele o documento por onde podemos

apreciar as primeiras modificações sofridas pela língua portuguesa na

América e as primeiras manifestações do espírito nacional, onde predomina a

veia cômica, despertada pelo espetáculo das relações de três povos diversos,

que têm, cada um, certo timbre em chasquear dos outros.81

A figura de Gregório de Matos, como aparece na obra desses autores, é uma

manifestação privilegiada para se perceber suas expectativas. O objeto e a forma como

é expresso são indícios de todo um campo de possibilidades de ação. A construção do

poeta baiano dentro de um discurso herético que procura se instituir enquanto tal

permite detectar os valores que estão em jogo e sua relação com o campo social, pois,

como nos lembra Foucault, "o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas

ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual

nos queremos apoderar"82. A forma e a informação que ela informa, mais do que

simbolizar toda a estrutura social da qual derivam, possibilitam também perceber

interesses e estratégias, os quais o texto, enquanto performance, visa realizar nessa

mesma estrutura social.

Gregório foi objeto de um grande estudo de Araripe Júnior, escrito em 1893,

publicado originalmente no Jornal do Brasil e transformado em livro no ano seguinte.

Diz ele, no prefácio, que "Gregório de Matos é toda poesia do século XVII". Ele se

justifica do fato de seu estudo não ser completo, pois deveria também escrever a

história geral da época. Expressa ainda sua intenção de reuni-lo, posteriormente, "num

estudo hierático e demótico da vida mental brasileira"83, o qual ele nunca realizou.

Este trabalho de Araripe é marcado por sua fase mais naturalista e evolucionista, como

deixa claro logo no início, afirmando que foi orientado pelo evolucionismo

spenceriano e "adestrado nas aplicações de Taine". Araripe, em seu quadro

hierárquico de critérios naturalistas, privilegia o clima em lugar da raça, sendo

Gregório, antes de tudo, fruto do clima tropical.

81 Ibid.p. 107. 82 Foucault, Michel. A ordem do disurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 10. 83 Araripe Jr, T. A. "Gregório de Matos"In: Op. Cit. p. 387.

43

Sílvio Romero aborda o poeta baiano em diversos estudos, mas dá uma ênfase

especial ao sátiro em sua "História da Literatura Brasileira", publicado em 1888. Já em

1882, o crítico havia publicado uma "Introdução à História da Literatura Brasileira"

que seria a base para o posterior estudo, contendo as premissas teóricas e as épocas

literárias que vão até a Escola Mineira, às quais viria juntar-se o período romântico.

Ao contrário de Araripe, Romero conseguiu realizar um estudo de sistematização da

vida mental brasileira, no qual insere Gegório. Tal como em Araripe, para Romero

todo "o movimento literário do Brasil no século XVII deve girar em torno do nome de

Gregório de Matos Guerra"84. Como obra de unidade, o múltiplo no uno, é mister que

se identifique origens, e Gregório vai ser apontado por Romero como o "fundador" de

nossa literatura: "Gregório Guerra é o genuíno iniciador de nossa poesia lírica e de

nossa intuição étnica "85. Romero, diferentemente de Araripe, privilegia a raça em

detrimento do clima. Divergência que serviu como motivo de ferrenhos debates entre

os dois críticos.

Nos ocuparemos aqui de determinadas expectativas compartilhadas por ambos

os autores no que diz respeito à experiência histórica, às idéias de nação, literatura e

crítica. Tendo escolhido como foco de manifestação dessas expectativas a leitura que

os autores realizam de Gregório de Matos, tentaremos detectar como a construção do

poeta baiano denuncia os valores a elas relacionados. Na elaboração do discurso

histórico, na projeção de valores nacionais mediante a literatura e na manifestação

destes numa atividade crítica – esse ato tipicamente mágico –, pretendemos visualizar

como se processa, neste caso específico, aquela tensão referida no cap. 2.1., qual seja

a busca de uma identidade local própria, a nacionalidade, simultaneamente à condição

de pertencimento internacional. Identidade que é construída e legitimada pela adoção

de um método, que não só orienta a seleção e a combinação de elementos da

identidade nacional, como também autoriza a fala desses críticos no campo social.

84 Romero. S. Hstória da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1969, p. 36. 85 Ibid.p.48.

44

3.1 História

Se a literatura brasileira fosse uma tal ou qual descrição do

selvagem, Anchieta a teria fundado; ela, porém, é mais do que isto, e só um

filho do Brasil, e em século mais avançado, a poderia fundar.

Sílvio Romero

45

A análise que Sílvio Romero e Araripe Júnior fazem do poeta baiano

denuncia, antes de tudo, uma determinada experiência histórica. O voltar-se para o

passado e o como voltar-se são orientados por determinadas expectativas, constituídos

por elementos herdados e moldados por ambições de veracidade específicas. Esses

críticos procuram deter o poder mágico, como o entende Boudieu a partir de Mauss,

de dar existência às coisas. O discurso histórico, como é aí entendido, pela sua

amplitude, procura fundar e legitimar qualquer objeto – e objetivo – social:

identidade, território, moral, religião, política, etc. Mas, para dar existência a um

objeto – objetivo – e conseguir dar legitimidade a ela, se faz necessária a detenção do

poder de impor uma nova visão e uma nova divisão do mundo social. "O mundo

social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido,

aliás, percebido como distinto"86. É bom lembrar, ainda, que a luta para deter o poder

de impor a divisão do mundo social se dá também mediante o próprio texto. O texto

detém em si bases próprias de legitimação; caso, por exemplo, da eficácia do discurso

científico que orienta sua formação.

A idéia de história se pauta em ambos os autores por uma noção de

representatividade que é julgada de acordo com sua significância para a realização do

espírito nacional. O fato de Araripe, tal como Romero, afirmar que ninguém como

Gregório "representou tão originalmente o gênio do Brasil inteligente"87, denuncia as

expectativas que a posição do agente enunciador guarda. Uma noção de história como

totalidade – como é o caso, expresso por palavras como "primeiro", "originalmente",

"iniciador", etc. – se organiza mediante uma hierarquização sincrônica e diacrônica,

tendo como foco orientador uma meta qualificada por determinados valores. Pode-se

dizer, assim, juntamente com Ricoeur, que em "função das normas imanentes de uma

cultura, as ações podem ser estimadas ou apreciadas, isto é, julgadas segundo uma

escala de preferência moral"88. Os valores são atrubuídos, por extensão, aos agentes e

à sua produção, sendo tais agentes julgados numa composição total em relação a

outros agentes. Como afirma Costa Lima, na medida em que o julgamento crítico se

cumpria, na crítica literária do século XIX, em função do lugar que o escritor ocupasse

86 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüínticas. São Paulo: Edusp, 1998, p. 112. 87 Op.Cit. p. 476. 88 Ricoeur, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994. p. 94.

46

no desenvolvimento geral das idéias, vale dizer que, na verdade, o escritor terminaria

sendo apreciado de acordo com sua coincidência ou não com as idéias do crítico89. Em

texto de 1882, Romero não se furta a essa função da crítica, afirmando:

Ora, determinar o lugar que deva na hierarquia dos fatos intelectais

de um povo ocupar um escritor, é traçar um juízo, é julgar a categoria de

idéias que esse escritor personifica, é designar o sentido e o alcance de sua

contribuição para a obra comum das idéias. Se, portanto, corrigir não é mister

da crítica, seu alvo é julgar. 90

Essa concepção de história guarda um nítido sentido teleológico, cabendo ao

historiador determinar seu nexo. Todos os acontecimentos históricos fazem parte de

um complexo maior, o da história enquanto singular coletivo; virtualidade que se

atualiza na concretização da reliadade nacional, representada pelos elementos que lhe

são associados. Porém, segundo esses novos críticos, não basta para o estabelecimento

desse nexo a boa vontade de homens de letras eivados por um sentimentalismo débil.

Faz-se necessário um método que, para se expressar nas palavras de Hegel, deixe de

ser amor ao saber para ser saber efetivo. "A crítica científica deve jogar com os

métodos da ciência; deve induzir e deduzir"91. Acresce-se então à prática intelectual

brasileira a moda do cientificismo, uma "cientificidade difusa e indiscriminada" que

entra justamente pela literatura, e que vai conduzir o modo como esses críticos vão

pensar o Brasil, confrontando-as com os paradoxos e possibilidades da estrutura

social.

A empiria da observação, típica do cientificismo naturalista, é imperativa, mas

não basta. Deve-se dela deduzir leis gerais, abstrair e generalizar. Dessa generalização

e abstração que o método científico é ao mesmo tempo causa e efeito, pode-se realizar

um julgamento justo e conseqüente. Não é suficiente a descrição e a catalogação de

todos os escritores que tiveram a oportunidade de rabiscar alguns versos no decorrer

da história; é preciso diferenciá-los segundo seu caráter e mérito. Se um "crítico

encontra em seu percurso um Gregório de Matos, por exemplo, e um Brito de Lima, e,

como incube-lhe apenas o dever de traçar um processo verbal, os dois baianos

89 Costa Lima, Luiz. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. 90 Romero, S. "O naturalismo em Literatura". In. Op.Cit. p. 347. 91 Ibidem.

47

entrarão para a história em pé de igualdade, sem mais distinções, sem mais

julgamento!"92.

Imersos num horizonte comum da experiência histórica moderna, como foi

analisado no capítulo 2.3, esses críticos se apropriam do discurso cientificista e

naturalista que se torna hegemônico na Europa, dando uma nova modelagem a essa

experiência. O paradigma hegeliano de ciência, história e devir é aí circunscrito tanto

por um modelo nomológico quanto por um veio naturalista. Autores como Spencer,

Comte, Buckle, Taine, Haeckel e Stuart Mill são as referências obrigatórias para esse

modelo. Romero e Araripe pretendem escrever uma história naturalista da literatura

brasileira. Buscam encontrar "as leis que presidem e continuam a determinar a

formação do gênio, do espírito, do caráter do povo brasileiro"93. Gregório de Matos é

fruto do "carnaval biológico", segundo expressão de Araripe, por que passava o século

XVII brasileiro, esse século "decisivo". Esse modo de análise possibilitava mais do

que critérios de seleção e combinação analítica, conferindo também aos agentes que

dele se utilizavam uma forte referência de autoridade.

Não me deterei detalhadamente nas especifcidades de cada autor, mas faz-se

necessário ao menos traçar as linhas gerais que qualificam tais modelos cientificistas.

Como destacam alguns historiadores, esses debates que se farão vigentes no século

XIX remontam ao "século das luzes"94, a pensadores como Buffon e De Pauw. No

entanto, me deterei apenas nas características que assumem no oitocentos, definindo-

lhe os traços principais.

A publicação de "A origem das espécies", em 1859, representa um marco

indelével. Seu impacto foi tal que a teoria de Darwin passou a constituir um

paradigma da época, diluindo, inclusive, as disputas entre monogenistas e

poligenistas. Suas máximas logo estavam na boca da maioria dos intelectuais e

orientavam os mais diversos "departamentos" das universidades européias. "Conceitos

como 'competição', 'seleção do mais forte', 'evolução' e 'hereditariedade' passavam a

ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento"95.

92 Ibid. p. 348. 93 Romero, S.Op.Cit. p. 125. 94 Cf. Gerbi, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica; Schwarcz, L.M.Op.Cit.; Ventura, R. Op.Cit. 95 Schwarcz, L.M. Op.Cit.p. 56

48

Essa teoria ganha uma forte representação no pensamento social. O

darwinismo social significou, na Europa, uma legitmação para embasar teorias

conservadoras, aliadas também ao imperialismo europeu, tomando a idéia de seleção

natural como argumento de superioridade e da missão civilizadora européia. Mesmo

as idéia poligenistas encontraram brechas para se afirmarem pensando na "antiguidade

da seleção natural" e na mestiçagem, que produziria degenerescência das raças puras.

Tende-se a encontrar "duas escolas deterministas" influentes: uma que preza

pelo determinismo geográfico, representada por Buckle; e outra que afirma um

determinismo de cunho racial. Essa divisão, contudo, se pode ser efetuada, serve

apenas para delimitar especificidades hierárquicas de elementos causais. Se Araripe,

por exemplo, privilegia o condicionamento da psicologia pela, deve-se lembrar que o

fator racial vem logo atrás numa proximidade que não pode ser desprezada. O mesmo

serve para Romero, no qual algumas vezes a raça – normalmente privilegiada, perde

espaço para o condicionamento geográfico.

Todo esse determinismo biológico, naturalista, segue, todavia, preceitos

nomológicos. Como atesta o próprio Taine, partidário de "um determinismo integral",

"cette cause donnée, elle aparaît, cette cause retirée, elle disparaît"96.

O método moderno, que me esforço por seguir e que começa a

introduzir-se em todas as ciências morais, consiste em considerarem-se as

obras humanas, e em particular as obras de arte, como fatos e resultados de

que é preciso designar os caracteres e procurar as causas; nada mais. Assim,

a ciência não proscreve nem perdoa; constata e explica.97

Esses preceitos nomológicos remetem à física clássica newtoniana, empirista,

mas que deve estabelecer, a partir dos fatos, leis gerais de causa e efeito. Representam

no século XIX essa tendência autores como Comte e Stuart Mill. Comte crê ter

descoberto "uma grande lei fundamental", a lei dos três estados, após um estudo "do

desenvolvimento total da inteligência humana"98. Tal idéia gira em torno de três

conceitos: lei, causa e explicação. É através da relação entre eles que Mill, por

exemplo, defende que a física social deve procurar as "uniformidades de

96 Apud: Schwarcz, L.M.Op.Cit. p. 63. 97 Taine, Hippolyte. Da natureza e produção da obra de arte. Lisboa: Inquérito, s/d.p.17 98 Comte, Auguste. "Curso de filosofia positiva"In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 1983. p. 4.

49

coexistência", "que são efeitos de causas, devem ser corolários das leis de causalidade

pelas quais estes fenômenos são de fato determinados"99. Um acontecimento é

explicado quando está vinculado a uma lei e seus antecedentes são chamados de

causas. A idéia que se procura é a de regularidade: sempre que um acontecimento de

tipo A se produzir num determinado local e tempo, pode-se deduzir que um

acontecimento de tipo B tenderá a se realizar em um local e tempo relacionados ao

primeiro acontecimento. Assim, Mill ainda furta-se a um determinismo absoluto. Para

ele, a ciência histórica não permite previsões absolutas, mas apenas condicionais.

Outro autor que conquistou na elaboração desse discurso de modelo científico

grande capital simbólico foi Herbert Spencer. Segundo Heckel, ninguém estabeleceu

melhor as correlações entre o evolucionismo darwiniano e a filosofia do que

Spencer100. Todo seu pensamento social gira em torno de tal correlação, tratando a

sociedade a partir de uma similitude funcional com os organismos. Tal formação

discursiva se apropria do vocabulário biológico e de sua consagração de divisões

funcionais para explicar a evolução social. As fases sucessivas do desenvolvimento de

uma coluna vertebral, por exemplo, servem para ilustrar o processo de diferenciação

social. Ou, como no crescimento orgânico, as sociedades "começam sob a forma de

embriões, têm origem em massas que são extremamente pequenas em comparação

com aquelas que alguns deles chegam por vezes a atingir"101. A convergência desse

modo de classificação científico adquire, então, um status de doxa, fundado tanto por

uma autoridade do agente enunciador quanto pela pré-disposição de um mercado

linguístico.

Pautados por esse referencial metodológico, Romero e Araripe procuraram

definir as causas do efeito Brasil, legitimando, ao mesmo tempo, as divisões do

dircurso científico. A busca pelos fatores constituintes da causa deparava logo e

invariavelente com a idéia da mescla das três raças proposta por Von Martius. Tal

idéia se tornou hegemônica na produção historiográfica nacional, adquirindo o status

de ponto pacífico na reflexão acerca da identidade nacional A especifidade brasileira

não poderia ser procurada fora dessa relação, e cabia então caracterizar a natureza

dessa mistura pelo método científico; daí a crítica de Romero à Martius, cuja proposta

99 Mill, John Stuart. "Elucidações da ciência da história". In: Gardiner, P. Op. Cit. p. 107. 100 Haeckel, Ernst. Origem do homem. Porto: Livraria Chardror de Lello e Irmão, 1908. 101 Spencer, Herbert. "Princípios de sociologia"In: Gardner, Patrick. Op.Cit.

50

seria "puramente descritiva; ela indica os elementos: mas falta-lhe o nexo causal e isto

seria o principal a estabelecer"102.Tudo o que é brasileiro é produto de determinada

combinação temporal da natureza, segue leis fixas e, por conseguinte, é passível de se

visualizar suas posibilidades futuras. Tudo o que é brasileiro é produto da mistura de

raças mas também do clima, estes os dois fatores principais na análise evolucionista.

O capítulo preliminar de uma história da literatura brasileira, quando

a escreverem com rigor científico, deverá ser uma inquirição de como o

clima do país vem atuando sobre as populações nacionais; o segundo deverá

ser uma análise escrupulosa das origens do nosso povo, descrevendo, sem

preconceitos, as raças principais que o constituíram. 103

O método naturalista tende assim a encontrar os fatores que condicionam e

impulsionam o processo histórico, dando a especificidade de caráter para determinada

nação. Natureza e caráter são portanto indissociáveis. Tanto o clima como as

diferentes raças possuem atrelados a si certos valores, e a combinação destes

elementos explica o grau de desenvolvimento das civilizações e seu potencial. Buckle,

a partir dessa constatação, vai explicar o atraso das sociedades americanas e africanas,

nas quais "a natureza conspira para aumentar a influência das faculdades imaginativas

e enfraquecer a razão".

Raça e clima explicam o gênio do povo e do indivíduo. Aí entra a

representatividade como forma de análise, pois para se perceber o efeito que a

combinação de causas naturais produziu, nada melhor que deter-se sobre os

indivivíduos que melhor sintetizaram a brasilidade condicionada no tempo. O

indivíduo é o centro de uma esfera concêntrica, da qual fazem parte a família, a

cidade, a nação, a raça e o meio. Esta concepção, especificamente de Sergi,

antropólogo italiano citado por Araripe, é paradigmática para a visão naturalista. O

indivíduo, como "núcleo indispensável", "força viva", não é passível de ser analisado.

Romero lembra a dificuldade de explicar Lamartine, Hugo, Musset, Balzac, Vigny,

autores tão dessemelhantes mas que, contudo, compartilhavam igualmente a raça, o

meio e o momento. "Assim considerada, ela [a individualidade] escapa ao influxo da

102 Romero. S. Op. Cit. p. 47. 103 Romero, S. Op.Cit. p. 105.

51

crítica, é uma espécie de pressuposto, de substratum irredutível. – Só os três fatores de

Taine é que podem ser submetidos ao exame da história"104. Para expressar essa

complicada relação indivíduo-sociedade, Araripe, em texto de 1887, faz uma longa

citação de Taine, procurando sintetizar esse modo de análise:

Em um grupo humano qualquer, – diz ele, – os indivíduos que

atingem maior autoridade e mais extenso desenvolvimento são aqueles cujas

aptidões e inclinações correspondem melhor às do grupo. O meio moral, do

mesmo modo que o meio físico, atua sobre cada indivíduo por excitações e

repercussões contínuas: este meio faz abortar uns e crescer outros na

proporção exata da concordância ou do desacordo que se manifesta entre si.

Este trabalho surdo constitui uma espécie de escolha que, por uma série de

formações e deformações imperceptíveis, sob o ascendente do meio, produz,

no cenário da história, artistas, filósofos, reformadores religiosos, políticos

capazes de interpretar ou realizar o pensamento de seu tempo e de sua raça,

da mesma maneira que, no cenário da natureza, as espécies de animais e de

plantas as mais capazes de acomodarem-se ao clima e ao solo.105

A seleção natural se encarrega de "filtrar" os indivíduos mais fortes, mais aptos

a sobreviver em determinado ambiente. Essa filtragem natural faz com que esse

indivíduo nos diga, melhor que ninguém, quais são os fatores essenciais na sua

constituição e como a combinação de tais fatores se personifica na psicologia de um

indivíduo que representa o caráter da nação. Gregório é a reação contra elementos aos

quais estava exposto, a sátira seu instrumento de reação, a reação do "forte, sadio e

triunfante, contra o fraco que se arrasta na sua impotência, na sua tristeza"106. Romero,

em sua classificação entre autores primários, secundários e terciários, ao colocar

Gregório entre os primeiros, afirma que ele "indica, pela sátira e pelo cinismo, um

momento psicológico da luta dos três povos que iam constituindo a atual população

do Brasil, e onde começa a consciência nacional a despontar"107.

104 Romero, S. História…. p. 88-9. 105 Aupd: Araripe, Jr. T.A. "Literatura Brasileira". In. Obra Crítica. V.I. Rio de janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958. p. 492. 106 Araripe Jr. T.A. "Gregório de Matos". p. 390 107 Romero, S. Op. Cit. p. 111.

52

Como bem notou Antonio Cândido, a dificuldade desses autores de focalizar

um autor pode ser vista "como algo ligado à sua concepção de que a parte só tem

sentido no todo, visto a partir das origens, caracterizado pelo jogo dos fatores

condicionantes e encarado, não nos momentos de permanência, mas na trajetória

completa de sua evolução"108. Indo um pouco além, contudo, acredito que essa forma

de análise assume um forte aspecto metonímico. O indivíduo, mais do que ter sentido

no todo, ele representa o todo, e ele é apenas qualificado de acordo com tal

representatividade. Quando esses críticios analisam Gregório de Matos, como efeito

de causas naturais na história, vêem em sua individualidade uma síntese bem acabada

do caráter nacional justamente por ter sido ele um efeito modelar da combinação de

fatores. Todo o processo histórico da formação do país foi necessário para a realização

do poeta baiano. A citação é longa, mas significativa dessa linguagem analítica:

Para este efeito [Gregório] foi preciso, contudo, que um português

atravessasse o Atlântico, como tantos outros aventureiros ou degradados da

mãe pátria, e que tivesse filhos; que a África mandasse ao Brasil os

elementos de que se havia de formar a mestiçagem de alguns de seus estados;

que a Bahia se organizasse com os elementos híbridos que ainda hoje a

caracterizam; que finalmente um branco, inteligentente, genial, formado em

direito, apesar de nascido no Brasil, em universidade portuguesa, contraísse

naquela época um ódio inelutável contra a raça que o produzira, o galego,

contra os mulatos que o feriam à traição, contra os cônegos que engordavam

a contra-gosto seu, contra tudo que aborrecia o seu desfastio e contra a terra

que o alijava por não suportar tamanha indigestão de humour, tamanha

concisão de idéias.109

A parte só pode ser vista como integrante do processo ao mesmo tempo que

ela o representa. A narrativa caminha sempre para um final, um efeito. Na narrativa os

eventos são sempre associados, formando uma rede que os transforma em partes

integrantes de um processo mais amplo. O processo é o passado, o presente e o futuro

potencial. A parte – o indivíduo significante, no caso, Gregório –, mas não só como

parte, mas principalmente enquanto representante do processo em sua totalidade,

108 Cândido,A. "Introdução". In: Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. São Paulo: Edusp, 1978. p. XXVIII.

53

acumula em si a tensão dos três momentos. Esses críticos, ao construírem Gregório,

tendo em vista esse processo, não deixam de nele encontrar, não só o passado, mas

também o presente e o futuro (potencial) – dos críticos, obviamente. Com isso não

quero dizer que eles ignorem o horizonte histórico específico no qual Gregório estaria

inserido, sua especificidade temporal e regional. Mas a experiência histórica que aí se

processa promove invariavelmente uma "fusão de horizontes", entendendo tal

experiência como uma prática voltada para "fora do texto", direcionado à sua estrutura

social. Concordando com a afirmação de Sevcenko, de que a palavra de ordem da

geração da qual esses críticos faziam parte era condenar a sociedade fossilizada do

Império e pregar as grandes reformas redentoras, abolição, república e democracia;

podemos também afirmar que, na construção desse discurso herético, os críticos

tendem a se associar a determinados personagens que representam a afirmação dos

valores que eles procuram instituir como projeto. Gregório, como claramente denuncia

a citação de Araripe, é fruto de todo um processo de formação do Brasil, no

entrecruzamento de diferentes forças exteriores. Todo o passado de "fundação do

Brasil" é condição sine qua non para sua realização enquanto individualidade. E sua

individualidade é o molde mais bem acabado do capricho da natureza na formação do

brasileiro. Nele se fundam os elementos essenciais da brasilidade, o hibridismo (ou

mestiçagem)110 e o clima. Nele o brasileiro já é uma realidade e, por conseguinte, um

modelo – e todo modelo é projeto.

3.2 Nação

Ambos os autores realizam uma contraposição entre Gregório de Matos e

Vieira. Esta contraposição é significativa para exemplificar a tomada de Gregório

como modelo de brasilidade. Eles representam duas forças opostas: uma associada à

colonização portuguesa, a uma ordem eclesiástica, a uma maneira de fazer política; a

109 Araripe Jr. T.A. Op. Cit. p. 390. 110 Estes termos aparecem de forma não muito disciplinada. O possível diferença destes termos e suas implicações serão analisadas posteriormente.

54

outra, por sua vez, representa a crítica de toda a ordem oficial que se estabelecia,

crítica à hipocrisia eclesiástica e portuguesa, o reconhecimento da originalidade

brasileira.

Vieira é um português que viveu no Brasil; simboliza o gênio português com

toda sua arrogância na ação e vacuidade nas idéias, com todos os seus pesadelos

jesuíticos e teológicos; produto de uma religião e de uma sociedade gastas; uma

"espécie de tribuno de roupeta que se ilude e ilude os outros com as próprias frases".

Gregório, por sua vez, é um brasileiro que residiu em Portugal; é a mais

perfeita encarnação do espírito brasileiro, com sua facécia fácil e pronta, seu

despredimento de fórmulas, seu desapego aos grandes, seu riso irônico, sua

superficialidade maleável, seu gênio não capaz de produzir novas doutrinas, mas apto

para desconfiar das pretensões do pedantismo europeu; discípulo de padres que

começa por debicá-los, escarnecer deles e duvidar de sua santidade e sabedoria; um

pândego, um percursor dos boêmios, amante de mulatas, desbragado, inconveniente,

que tem a coragem de atacar bispos e governadores.

Vieira e Gregório são vistos como dois modelos. O primeiro não percebeu "o

advento do elemento novo, do genuíno brasileiro – o mestiço, filho da país", diz

Romero. Vieira "sempre amou o paradoxo, o folhetim eclesiástico", declara Araripe.

Gregório, ao contrário, não só percebeu o mestiço e tratou dele em sua poesia, como

também, e principalmente, encarnou o "mestiçamento moral", a moral brasileira; foi o

mais perfeito fruto dessa sociedade híbrida.

Esses dois modelos, um pela negação, outro pela afirmação, se referem a uma

idéia de nacionalidade. A nação é o carro chefe do pensamento do século XIX. A

invenção retroativa da nacionalidade brasileira111 começa a despontar, como já vimos,

com o romantismo, onde se formulam seus elementos básicos. Mas antes de tratarmos

desses elementos que serviram de referência para a identidade brasileira no século

XIX, e como foram reformulados por Sílvio Romero e Araripe Jr., convém discorrer

sobre as características da própria idéia de nação, como ela se consolidou enquanto

ideologia dos Estados-nação europeus e seu correlato americano112.

111 Cf. Süssekind, Flora. Op. Cit. p. 454. 112 Não se pretende aqui uma discussão pormenorizada do processo de consolidação dos Estados-nação, nem para o caso europeu, nem para o brasileiro. Para esta discussão, remeto aos autores ciatados, pois o que nos interessa aqui – e dada a limitação de espaço e tempo - são determinadas características que acredito importantes para a evolução do argumento.

55

Segundo Hobsbawm, três características marcam a idéia de nação durante o

século XIX: língua, território e etnia. Assumindo pesos diferentes em momentos

diferentes, essas características que comporiam a idéia de nação servem como projeto

ideológico para a consolidação dos Estados-nação europeus. Na verdade, pode-se

dizer que a própria idéia de nação é projeto do Estado. "O Estado não só fazia a nação

mas precisava fazer a nação"113. As unidades políticas que se formavam desde a

Revolução Fancesa, dentro de uma remodelação econômica provocada pela

Revolução Industrial, assim como a constituição da sociedade civil burguesa,

necessitavam de um novo elo de solidariedade."A Revolução, diz Revel, funda uma

nação. Instaura uma nova ordem através de um território cujos pormenores necessita

conhecer para melhor integrar todos os pontos, para melhor associar ao projeto

político e social de que se quer portadora"114. O mesmo vale para os outros Estados,

ainda que dentro de suas particularidades. A territorialização e os correlatos

identitários a ela associados fazem-se necessários na consolidação do Estado burguês.

A idéia de nação vem, assim, se tornar a nova religião cívica dos Estados. Ela

Oferecia um elemento de agregação que ligava todos os cidadãos ao

Estado, um modo de trazer o Estado-nação diretamente a cada um dos

cidadãos e um contrapeso aos que apelavam para outras lealdades acima da

lealdade ao Estado – para a religião, para a nacionalidade ou etnia não

identificadas com o Estado, e talvez, acima de tudo, para a classe115

Seguindo as idéias de Hobsbawm, Ricardo Salles propõe a noção de um

"espaço narrativo imperial". As nações teriam surgido de um interespaço comum,

dentro do processo de formação do capitalismo a da expansão ocidental que se davam

a partir do centro europeu. Elas foram necessidades políticas desse processo

imperialista. Desse modo, não foram "a civilização e as nações européias que criaram

seu império mundial, mas foi este império que deu origem a essa civilização e a essas

113 Hobsbawm, Eric. J. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 1988.p.212. 114 Cf. Revel, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989, caps. IV e V. Cf. também Foucault, Michel. "A governamentalidade", IN: Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979. Para Foucault, "desde o século XVIII três movimentos – governo, população, economia política – constituem um conjunto que ainda não foi desmembrado. 115 Idem.p. 212.

56

nações"116. Elas se tornam as entidades políticas, individualizadas, que atuariam na

esfera econômica internacional representando a população enquanto sociedade civil,

defendendo seus interesses numa suposta estrutura cindida entre interesses privados e

política pública117.

A necessidade de uma identidade única dessa sociedade civil, na verdade

fragmentada em diversos interesses, representada como uma entidade política é que

deu impulso ao sentimento de nação. Através de uma delimitação territorial, de uma

normatização da língua e do desvelamento de uma unidade histórica e/ou étnica, os

Estados – enquanto campo burocrático, palco de lutas pelo controle do capital e do

poder de redistribuição dos recursos públicos118 – procuraram legitimar-se em sua

representatividade e formar uma coesão na população que suplantasse fragmentações

de outros tipos. Para isso, a alfabetização em massa e uma mínima escolaridade

faziam-se essenciais para esses países cujo contingente populacional urbano

representava um perigo potencial. Após as revoltas de 1848 fez-se mais preemente

essa política de coesão nacional, somada, obviamente, com meios de reorganização

urbana e de aparatos de repressão119.

A busca de critérios objetivos da identidade nacional, como a língua, o

território, a raça, constituem o objeto de representações mentais e materiais. Detendo

um aparato institucional de controle e propagação de tais representações, o Estado

procura deter o controle do poder de enunciação da nacionalidade, suplantando e

contraolando as demais tentativas afirmativas. O Estado, assim, pretende-se o centro

propagador e o referencial da cadeia de solidariedade que é a nação. Como destaca

Bourdieu,

As lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, em

torno de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do

lugar de origem, bem como as demais marcas que lhe são correlatas, como,

por exemplo, o sotaque, constituem um caso particular das lutas entre

classificações, lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e de fazer crer, de

116 Salles, Ricardo. Op.Cit. p. 70. 117 Cf. Habermas, Jürguen. L'espace publique. Paris, Payot, 1978. A crítica dessa suposta cisão se faz presente em autores como Hegel, Marx e Nietzsche, que denunciam a razão interessada que se mascara de Razão de Estado. Cf. cap. 2.2. 118 Cf. Bourdieu, P. "De la maison du roi à la raison d'État". In: Actes de la recherche en sciences sociales Paris, 118, Juin, 1977.

57

fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das

divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer grupos.120

Os estados europeus do século XIX encontraram mais dificuldades nessa luta

pelo monopólio de enunciação. Se, de um lado, as maiores mudanças que

possibilitaram a receptividade potencial aos apelos nacionais foram a democratização

da política e a criação de um Estado administrativo moderno121, de outro, pode-se

dizer que essas mudanças também possibilitaram a veiculação e a tentativa de

afirmação de identidades diversas e divergentes às do Estado. Os conflitos sociais,

especialmente urbanos, se fizeram ecoar por vários países. A esfera pública,

juntamente com a escola o maior instrumento de veiculação da nacionalidade, dava

com uma mão e tirava com a outra. Folhetins e libelos eram meios de organização de

outras solidariedades, ligadas a reivindicações socais e políticas. O grau de

instabilidade aí se fazia intenso e as lutas pela normatização do nacional acirradas.

Já no caso brasileiro algo diverso ocorreu. O desembarque da dinastia

Bragança na Bahia trouxe duas primeiras conseqüências da transmigração: a abertura

dos portos, na busca de suprir as necessidades da corte, e a instauração de um centro

de poder, em torno do qual as capitanias estariam vinculadas. A transmigração

mantém cindidas metropóle e colônia. A corte, como destaca Faoro,

está diante de sua maior tarefa, dentro da fluida realidade americana:

criar um Estado e suscitar as bases econômicas da nação. Sob o império de

sua estrutura secular, amoldada ao sistema absoluto de governo, lançará

sobre a colônia uma pesada túnica, fio a fio costurada, capaz de disciplinar a

seiva espontânea, mantido o divórcio entre a camada dominante e a nação

dominada, tímida, relutantemente submissa. 122

Essa estrutura "secular" de administração vai ser continuada, porém

reformulada, após a independência, tendo um maior realce na busca pela construção

da nação como algo independente. Após a "carapaça" trasmigrada, incapaz de digerir a

extensão americana, ser sufocada, verifica-se uma constante que vai exercer grande

119 Ver Oehler, Dolf. O velho mundo desce aos infernos. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 120 Boudieu, P. Economia das trocas lingüisticas. p. 108. 121 Cf. Hobsbawm, E.J. Nações e nacionalismo desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

58

influência no projeto estatal brasileiro. Essa constante é estruturada na propriedade

agrária, que entra em conflito com a cúpula burocrática voltada ao comércio urbano e

internacional – comércio de raízes portuguesas. Aliada ao liberalismo, "visível nos

demagogos letrados, entrelaçada pelos padres cultos, pelos leitores dos enciclopedistas

e pelos admiradores da emancipação norte-americana"123, fundamental na articulação

de um discurso empenhado na construção da nação, essa estrutura agrária promoverá

as idéias que darão nas lutas de 1822.

Na reorganização política do país independente, a elite procura manter a

igualdade sem a democracia, o liberalismo fora da soberania popular. Para figuras

como Benjamin Constant, a soberania – se de soberania se tratava – seria a nacional,

"que pressupõe um complexo de grupos e tradições, de comunidades e de

continuidade histórica, e não a popular, que cria e abate os reis"124. Desse modo, situa-

se no poder moderador a chave para toda a organização política, entregue ao

imperador, chefe da nação e seu primeiro representante, a quem cumpre velar sobre a

manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.

Esse processo interno de consolidação do Estado brasileiro, apesar de ter se

dado dentro de sua particularidade, ou seja, não como uma simples cópia de modelos

europeus, mas como tentativa de organização política em situação periférica; apesar

dessa especificidade, para os letrados e para a própria elite administrativa era

importante estabelecer laços de pertencimentos políticos e culturais, em termos

civilizatórios, com a tradição ocidental européia. Buscavam, assim, seguindo a idéia

de Salles, integrar-se ao espaço narrativo imperial. Procurava-se uma coexistência

entre a estrutura agrária e escravocrata com os aparatos estatais e ideológicos ligados

àquele espaço. Portanto,

A construção de um aparato estatal com uma ampla base territorial

configurada na nova nação, por um lado, se escorou na existência da

economia escravista em sua conexão com a economia-mundo e, por outro,

contribuiu para o desenvolvimento desta última num quadro internacional em

que as formas pré-capitalistas de produção entravam em declínio.

122 Faoro, Raymundo. Os donos do poder. V. I. Porto Alegre: Globo, 1975. p. 249. 123 Idem. 261. 124 Idem.p. 281.

59

E como parte desse esforço de pertencimento, a própria identidade nacional foi

pensada a partir de critérios produzidos pelo discurso europeu. Apropriados por uma

elite que buscava dar coesão à própria classe, esses critérios foram sendo incorporados

de diferentes formas, com ênfase para os discursos histórico e literário. Já vimos como

os elementos da identidade nacional foram, em grande parte, propiciados pelos textos

de autores como Ferdinand Denis e Von Martius. O território, a língua, o indianismo,

a natureza e, por fim, a mistura de raças são os temas determinantes dessa identidade

nacional; e as formas privilegiadas de encará-los, a história e a literatua125.

Tanto a história como a literatura eram práticas vistas como

"instrumentalidade para a compreensão do presente e encaminhamento do futuro,

princípios tão caros também àqueles que no Brasil se lançaram à tarefa de escrever

uma história nacional"126. E no Brasil as pessoas que foram incubidas de tal tarefa o

foram pelo Estado, e mesmo faziam parte dele. Havia uma relação orgânica entre

esses agentes e a estrutura imperial, e nada melhor que os "rituais" do IHGB para

confirmar essa configuração127.

Tudo isso ocorria, então, numa "esfera pública", se assim a podemos chamar,

estritamente conexa ao Estado imperial, tendo na figura de D. Pedro II seu patrono.

No momento, porém, que a complexificação social permite outras trajetórias sociais

na cidade do Rio de Janeiro, na medida em que uma nova geração – que procura se

ver como tal – compartilha determinidas referências e projetos, ainda que incertos e

transitórios, estabelece-se uma dinâmica de luta pela enunciação da nacionalidade.

"Divulgavam-se idéias filosóficas e científicas, como o naturalismo, o positivismo e o

evolucionismo, que traziam a crença no progresso e na evolução, tornando possível a

crítica à ordem estabelecida"128. Os critérios que os românticos estabeleceram para se

pensar o nacional são julgados e culpados. No palco de uma opnião pública não mais

orgânica, cujos veículos não estavam mais estritamente vinculados ao Estado, onde

125 Interessante frisar que a maior parte da produção do IHGB centrava-se na problemática indígena, em descrições de viagens com fins de conhecer o território, e no debate da história regional, ocupando tais temas cerca de 73% da produção da Revista. 126 Guimarães, Manuel L. Salgado. Op. Cit. p. 12. 127 Cf. Callari, Cláudia Regina. "Os Institutos Históricos: do patronato de D. Pedro II à construção de Tiradentes". In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.21, n. 40, pp.59-83. 2001."Como no Antigo Regime, em que a etiqueta sobrevivia mal à ausência do monarca, o IHGB estabeleceu uma íntima relação com a Monarquia: sem o soberano não havia espetáculo". p. 63-4. 128 Ventura, R. "Um Brasil mestiço: raça e cultura da monarquia à República". In: Mota, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta: a experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Ed. Senac, 2000.p. 337.

60

jovens escritores e bacharéis procuravam conquistar novos espaços e trajetórias, a

enunciação da nacionalidade e dos projetos políticos a ela ligados conduziam o

debate. Toda enunciação requer agora meios legitimadores próprios, capazes de

garantir a veracidade do enunciado, de refletir a realidade nacional e, também, de

apoiar um projeto político para a nação. A história do Brasil, setencia Romero,

não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos

entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não é

também, como o quis supor de passagem o romantismo, a história dos tupis,

ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre nós, a dos

negros no Novo Mundo.129

Esses elementos não representam a especificidade brasileira; remetem a identidades

outras, que não são nossas. A nação brasileira não é representada pelo luso, pelo

africano ou pelo indígena – Vieira, Anchieta e os românticos estavam enganados.

Contemplar o clima e a natureza também não pode fornecer nada além de "um

nacionalismo de vocabulário", como disse Machado. Mas então, o que vem a ser o

brasileiro? É, responde o mesmo Romero, a "formação de um tipo novo". E os

critérios principais para percebê-lo, como já vimos, são as conexões causais que a

mistura de raças e o clima exercem na psicologia do indíviduo, representante do todo.

A história do Brasil é, para Romero

É antes a história da formação de um tipo novo pela ação de cinco

fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro

é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias. Os operários deste fato

inicial hão sido o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitaçãpo

estrangeira.130

A natureza para os românticos, respaldados nas prescrições de Denis e outros,

era a abundância vegetal e da fauna. Vemos, nas representações iconográficas desse

período, a configuração do indivíduo que é obsedado pelo vigor da natureza

129 Romero, S. Op. Cit. p. 124. 130 Romero, S. Op. Cit. p. 124.

61

tropical131. Na poesia, o nacional é o cantar contemplativo das palmeiras e sabiás. Mas

nada disso tem legitimidade para esses novos críticos. Agora, a natureza é uma causa

essencial na formação psicológica do povo brasileiro, ela interfere e rege a sua

atuação, seus costumes, moral, enfim, toda a estruturação sócio-culural.

Os índios já eram uma demonstração disso. O clima, assim como a raça, os

tornava o que eram. "As raças americanas são um produto do meio americano",

afirmava Romero, "eram nômades, caçadores; estavam no grau de atraso do homem

geológico"132. Esse clima tropical, de calor e umidade, gerava "um certo abatimento

intelectual, uma superficialidade inquieta, uma irritabilidade, um nevrosismo, um

hepatismo que se revela nas letras"133. Apesar de referenciar tais características ao

clima, Romero critica autores como Buckle por imaginarem o clima tropical como

uma região de furacões, terremotos, cataclismos, vulcões e outras coisas mais. Assim,

se o clima gera "um certo abatimento", isso não quer dizer que ele condene

peremptoriamente o homem. Afinal, "o exterior do país é risonho, as montanhas

reduzidas e poéticas". O homem americano não é o europeu, detentor da razão fria,

temperada, mas também não está condenado a viver em ocas e ser esmagado pela

imponência da natureza. Isso, obviamente, graças à ciência e indústria, que têm o

poder de neutralizar as influências deprimentes do mundo exterior. Por isso dizia

Romero que a "poesia e a ciência têm aí diante um problema a solver e dirigir". De

acordo com o desenvolvimento da sociedade que nos trópicos vai se instalando,

medido pelo critério civilizatório europeu, a influência do clima tende a diminuir.

De qualquer modo o clima foi um fator causal crucial na formação do

brasileiro, independente de sua influência futura. Se o clima tende a exercer menor

influência a partir de um certo nível civilizatório instalado, deve-se lembrar que nos

momentos de fundação, ou fermentação da brasilidade ele deixou marcas indeléveis.

Araripe fundamenta toda sua teoria da obnubilação brasílica neste ponto. Para ele,

este fenômeno que consiste na transformação por que passava o colono ao atravessar o

Atlântico é essencial para a compreensão dos elementos brasileiros, os quais se

formaram nos dois primeiros séculos. O clima tropical tendia a afetar o homem

civilizado, tornando-o mais selvagem, afetando-o moralmente.

131 Cf. Sallas, Ana Luisa Fayet. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Tese de doutorado apresentada ao PGHIS- UFPR, 1997. 132 Romero. S. Op.Cit. p. 150. 133 Idem. p. 136.

62

Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical,

abraçados com a terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e se

um núcleo forte de colonos, renovado para contínuas viagens, não os sustinha

na luta, raro era que não acabassem pintando o corpo de jenipapo e urucu e

adotando idéias, costumes e até as brutalidades dos indígenas.134

Esse fenômeno aconteceu a Hans Staden, Soares Moreno, Anchieta, entre outros.

Ninguém, no entanto, pode ilustrar melhor essa transformação do que Gregório de

Matos; este, chegando à América após sua estada em Portugal, adquiriu "uma nova

alma". Pisar na Bahia, "nas areias de sua terra foi o mesmo que libertar-se,

desintoxicar-se e restituir a si o gênio perdido em Portugal"135. O meio brasileiro e o

genius loci por ele produzido, a Bahia, exerceram no poeta uma renovação. Encontrou

o poeta uma terra onde o clima, se não criou as raças que constituíam a população,

com certeza as modificou, provocando, mediante esse meio lúbrico e sedativo, um

mestiçamento não só físico, mas também moral. Essa influência do meio na

constituição da moralidade nacional também é lembrada por Romero:

Ora o meio tem sua exigências atrozes; o resultado vinha a ser que os

filhos do senhor de engenho eram decerto limpos de tez; mas, gostando

muito de ir às senzalas a conversar e brincar com os moleques, as pretas e as

caboclas velhas, saíam no fim de contas uns portuguesitos, é verdade, mas

uns tais, que distavam dos pais, como a água do vinho, pela intuição e pela

face moral.136

O clima e o meio produzido, assim, não podem ser pensados sem o seu

correlato moral. Eles importam na medida que afetam o homem em seu modo de vida

e em sua constituição física; é por isso que devem ser levados em consideração por

qualquer um que queira desvelar a especificidade brasileira. As raças afetam-se umas

às outras, o clima e o meio influem sobre todas. A moral associada ao clima tropical,

convergindo com as morais associadas às diferentes raças e às suas misturas, dá a

134 Araripe. Jr. T.A. Op.Cit.p. 402. 135 Araripe Jr, T. A. Op. Cit. p. 407. 136 Romero. S. "Introdução…". Op. Cit. p. 221.

63

conformação de um ambiente moral único. Assim, como procura destacar Araripe, foi

"nesse ninho de volúpia [que] gerou-se uma raça de mestiços, eloqüente, ressonante,

apaixonada e um tanto cheia de paradoxos nos costumes, a qual, mestiça no sangue,

por sua vez encarregou-se de mestiçar as idéias, os sentimentos e até a política dos

brancos dominanadores da terra"137.

Entra em cena, então, a constituição desse tipo social nacional que é criado no

século XVII, o século de Gregório, sob o clima tropical. O poeta baiano canta e

satiriza esse carnaval biológico, a formação do mestiço e os tipos que o formaram: os

reinóis, os índios, os negros em seus papeís sociais: os padres, os escravos, os

senhores, os políticos. Através de sua poesia, segundo os críticos, pode-se visualizar

todos os personagens que habitavam a Bahia, o seu cotidiano, seus vícios, enfim, vê-

se o processo de formação da população brasileira cantado em suas sátiras. Gregório

viveu esse processo, "foi mais do povo", reagiu a todos os elementos que o cercavam e

pôde pintar com sagacidade o celeiro que era a Bahia para a formação do povo

brasileiro em sua esfera mais íntima. Celeiro que Araripe descreve de uma maneira tal

que é impossível não pensarmos nos posteriores escritos de um sociólogo

pernambucano.

Aí formou-se a iaiàzinha e embalada na coxa aveludada aprendeu a

ser dengosa e a nada fazer. Nesse colo macio lhe ensinaram a ser

supersticiosa, ao som das cantigas africanas e reminiscências fetichistas. Foi

nessa escola também que a menina brasileira aprendeu a ser dissimulada e a

enfeitiçar os outros com a sua indolência tropical. À negra africana

igualmente deve-se a criação do petulante e do vicioso ioiô. Com ela ensaiou-

se o adolescente nas primeiras batalhas do amor. Até o próprio sinhô velho

deixou-se seduzir pelas suas cautelosas e discretíssimas carícias, que a sinhá

da sala deixava enxergar talvez preocupada com os múltiplos serviços que a

preta lhe prestava, condimentando os acepipes e instruindo-a com a riqueza

da culinária da contra costa.138

A formação psicológica do brasileiro se dá no contato, na fusão moral de raças

sob o tempero do clima. O tipo social privilegiado nessa formação do povo brasileiro

137 Araripe Jr. T.A. Op. cit. p. 412. 138 Idem. p. 412.

64

é o mestiço. Está nele a originalidade nacional, o produto dos fatores condicionantes,

clima e raças. "O mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil. É a

forma nova de nossa diferenciação nacional", diz Romero139. Como elemento da

diferenciação nacional, o mestiço é o meio de concretização da virtualidade nacional.

Ele é formado pela mistura de cinco elementos: o português, o negro, o índio, o meio

e a imitação estrangeira. Através dessa formação o Brasil deixaria de ser uma

fragmentação de indentidades diversas para se realizar como unidade mediante o

mestiço. É por isso que Romero o chama de um "agente transformador", que por sua

vez já é transformação. Mediante ele o Brasil não terá apenas uma unidade étnica –

apesar do branqueamento ser um projeto – como também uma unidade moral. Como

destaca Ventura, pela mestiçagem moral, exemplificada na citação acima, "seria

possível formar uma perspectiva crítica e seletiva diante do influxo externo e superar

o 'mimetismo' cultural e a imitação do estrangeiro"140.

Desse modo, o mestiçamento não é um fim, mas um meio. O mestiçamento é

um canal pelo qual pode-se construir a brasilidade, identificar-se uma unidade

original, não só física, mas moral. Assim, etnicamente resolvido, o brasileiro resolve-

se moralmente e espiritualmente em relação à Europa. Qualquer produto europeu,

sejam idéias ou pessoas, para contribuir para a brasilidade, passa necessariamente por

esse caldo de hibridismo. Mesmo o naturalismo e o cientificismo no Brasil adquirem

uma feição nova, mais maleável.141 É por isso que Romero defende a posição do

mestiço como a condição da vitória do branco, "fortificando-lhe o sangue para

habilitá-lo aos rigores de nosso clima". Araripe, por exemplo, afirma que foi a mulata

quem introduziu, ou guiou Gregório ao espírito brasileiro. "O ambiente brasileiro,

pois, diz ele, devia colhê-lo por meios indiretos, e o veículo dessa captação foi a

mestiça, a mulata da Bahia". Assim, é mediante o mestiço que o poeta bainano, a

melhor encarnação do nacional, se realiza. O mestiçamento o introduz nesse carnaval

biológico, nessa sociedade híbrida física e moralmente.

O mestiço é a adaptação humana aos trópicos e, como fruto de três diferentes

raças, é o meio através do qual se faz viável a instauração de uma sociedade dotada de

uma especificidade, mas que também compartilha o espaço civilizatório ocidental. O

139 Romero, S. "Introdução…"p. 156. 140 Ventura, R. Op.Cit. p. 48. 141 Araripe Jr. T.A. "Raul Pompéia, O Ateneu e o roaance psicológico". In: Op.Cit. V.2.

65

mestiço serve assim de meio de adaptação também do branco ao trópico. A condição

do elemento civilizatório é o branco, mas que não pode deixar de ser afetado pelo

mestiçamento. "O mestiço, diz Romero, que é a genuína formação histórica brasileira,

ficará só diante do branco puro, com o qual se há de confundir"142. Mediante o

mestiço, mais apto ao meio, o elemento branco poderá instaurar a civilização. Mas ao

fazê-lo, estará também misturado ao índio, ao negro e ao mestiço, herdando de cada

um características morais específicas, que constituem justamente esse elemento

original que denominam brasilidade.

Essa formação é recente e inédita. Para apreendê-la deve-se olhar para as

tradições e costumes populares. É no popular que se situa a essência dessa formação, a

brasilidade em seu estado puro. Ela reflete as contribuições das três raças, a

predominância da tradição ocidental pelo português, as lendas e fantasias dos negros e

indígenas. Gregório, por isso, se faz novamente uma fonte preciosa para a apreensão

do nacional. Sua poesia, retrato de sua vida, é essencialmente popular. Sua influência,

inclusive, não se deu nos salões letrados da colônia e do império, mas "se produziu na

massa popular pela reprodução automática, pela imitação contínua do seu modo de

poetar"143. Com a viola embaixo do braço, Gregório percorria os engenhos de

Recôncavo tocando o lundu, esse ancestral da modinha e do samba, que caía tão bem

à forma de sua poesia. Ele popularizou também a linguagem, adotando em sua poesia

as transformações oferecidas pelos indígenas e africanos. Daí também a diferenciação

na maneira brasileira de manejar a língua:

Gregório de Matos usou também de uma língua sua. As liberdades

lexicológicas e sintáticas que vão hoje penetrando no idioma português, em

ameaça flagrante de transformá-lo em língua brasileira, encontram-se quase

todas nos versos nacionais do autor do "Marinícolas". O seu vocabulário

rico, variado, cheio de termos tropicais, contém dois terços, pelo menos, dos

vocábulos de origem africana e tupi, que foram coligidos no dicionário de

Morais.144

142 Romero, S. Op. Cit. 130. 143 Araripe Jr. T.A. Op. Cit. p. 474. 144 Idem. p. 476.

66

É através das criações populares que se pode divisar o caráter nacional, ou seja, os

produtos que o clima e a mistura de raças legou à nacionalidade brasileira. Gregório é

um espírito culto, educado em Portugal, que se fez popular, assim como se fez

nativista. Daí toda sua moralidade destacada pelos críticos, moralidade tipicamente

popular e nacional: a facécia fácil, seu despredimento de fórmulas, seu desapego aos

grandes, seu riso irônico, sua superficialidade maleável, seu gênio não capaz de

produzir novas doutrinas, mas apto para desconfiar das pretensões do pedantismo

europeu; discípulo de padres que começa por debicá-los, escarnecer deles e duvidar de

sua santidade e sabedoria, que tem a coragem de atacar bispos e governadores.

Voltamos, assim, à contraposição Vieira-Matos: "Vieira às agudezas antepôs a

seriedade política e a diplomacia, e daí passou a ser hipócrita, cético, ladino; Matos

propôs à veia cômica, família, amigos e dignidade pessoal, demoliu o sossego e criou

o inferno na própria vida social"145. Ao atacar bispos e governadores, Gregório foi

condenado socialmente. Seu nativismo e abolicionismo avant-la-lettre não poderia

encontrar na Bahia do século XVII os canais de recepção apropriados. Araripe se

referencia a ele como um fauno, que saía pela Bahia a apontar os vícios de todos, e

graças aos seus versos poder-se-ia "estabelecer a filiação dos vícios nacionais, para

melhor conhecê-los e eliminá-los". Gregório de Matos era o fauno tropical por

excelência.

Fauno em toda a parte que aparecia, na política, nas artes, na praça

pública, no fôro, na vida particular, a sensação que Matos produzia era a

mesma que o deus Silvano produzia nos pastores da Arcádia, quando o

caprípede, roçando os chavelhos nos gravetos das árvores, quebrando com o

pé fendido as palhas secas, despertava os habitantes do fundo dos bosques,

lançava a inquietação em sua almas com um olhar revesso, e perseguia as

náiades e pastoras com a sua lascívia endiabrada146

Segundo Romero, ser "brasileiro é sê-lo no âmago do espírito, com todos os

nossos defeitos e todas as virtudes". Ele diz isso ao final da seção do livro na qual

analisa Gregório. Romero, tal como Araripe, não pinta um Gregório modelo de retidão

e moral. Afinal, como ele poderia sê-lo, fruto de três raças não muito privilegiadas e

145 Idem. p. 471.

67

de um clima inebriante? Encarnando os vícios e as virtudes da brasilidade, Gregório

de Matos convergiu em si os elementos da especificidade brasileira. "O seu brasileiro,

diz Romero, não era o caboclo, nem o negro, nem o luso; era o filho do país, capaz de

ridicularizar as pretensões separatistas das três raças"147. Gregório é o elemento

branco que é cooptado pelo mestiçamento à brasilidade, e, como tal, representa a

condição da instauração de um aparato civilizatório, de moldes europeus, numa

sociedade tropical de formação étnica específica.

Como modelo, Gregório encarna os valores do processo conflituoso de

construção da identidade nacional. Na busca de incorporar tipos raciais considerados

cientificamente inferiores, de identificar na mescla desses tipos a originalidade

nacional, onde o mestiçamento moral caracterizaria o tipo brasileiro, esses críticos

procuravam, através de métodos que os legitimassem dentro de uma tradição

civilizatória européia, enunciar um projeto de Estado-nação, e o faziam na construção

de uma opnião pública que pudesse reconhecer tal enunciado como legítimo.

O abolicionismo, a República e a democracia são as metas que orientam tal

produção. Faz-se a crítrica a toda ordem vigente, eclesiástica, agrária, símbolos de

uma sociedade fossilizada. Para essa geração da qual Sílvio Romero e Araripe Júnior

faziam parte, o Império e toda sua estrutura administrativa como sua produção

intelectual e cultural eram sinônimos de uma degradação que impedia a razão crítica –

a razão da opnião pública aos moldes de Kant – de estabelecer os rumos da nação. "O

poder moderardor consolidou a poesia indiana", dizia Romero, e agora se fazia

necessário desfazer essas ilusões. Era mister reformar uma sociedade que, tal como

Vieira, possuia arrogância na ação e vacuidade nas idéias, compartilhava ainda

pesadelos jesuíticos e teológicos; cujos políticos pareciam tribunos de roupeta que se

iludiam e iludiam os outros com as próprias frases148.

A atividade crítica era a forma de atuação através da qual esses intelectuais

acreditavam poder consolidar um outro projeto, propor uma nova visão e divisão do

social mediante uma leitura desse social. A subversão política pressupõe uma

subversão cognitiva, uma conversão da visão de mundo; e o discurso herético

pretende contribuir "praticamente para a realidade do que anuncia pelo fato de

146 Araripe Jr. T.A. Op.Cit. p. 404. 147 Romero, S. Op. Cit. p. 231. 148 Ver adinte a crítica de Araripe ao parlamentarismo, a partir de uma sárira de Gregório.

68

enunciá-lo, de prevê-lo e de fazê-lo prever; por torná-lo concebível e sobretudo crível,

criando assim a representação e a vontade coletivas em codições de contribuir para

produzi-lo"149. Era essa a intenção do discurso crítico produzido, desse "bando de

idéias novas". Para esses críticos, "só a crítica, a tão desdenhada crítica, nos pode

preparar um futuro melhor"150. Esta expectativa de, através de uma linguagem

autorizada, legitimar um projeto social do devir, intelectuais como Sílvio Romero e

Araripe Jr. compartilhavam de corpo e alma com seus pares europeus. Transmigravam

tais expectativas para a estrutura social brasileira do império, guardando a crença na

possibilidade efetiva de transformação do social mediante a visão desse social.

Expectativas frustadas ou não, como vai ser o caso da imensa frustração que a

República vai causar151, o fato é que tais projetos estavam em jogo e procuravam

firmar-se na relação mútua de legitimidade do anunciante e do enunciado.

3.3. Crítica

Queimada veja eu a terra Onde o torpe idiotismo Chama aos entendidos néscios E aos néscios entendidos

Sílvio Romero e Araripe Jr. são atraídos pelo caráter crítico do poeta baiano.

Gregório usava de sua sátira como forma de denunciar, zombar, desmascarar

publicamete seus adversários, os vícios da Bahia, os desmandos dos políticos, a

hipocrisia dos clérigos. Seu espírito crítico não poupava ninguém, do rei à mulata

todos eram alvos potenciais de suas sátiras. Não é pelo seu trabalho lírico que

149 Bourdieu, P. Op.Cit. p. 118. 150 Romero, S. "A literatura brasileira…"In: Op.Cit. p. 39. 151 Não se tratada essa frustração aqui. Para isso, remeto à obra de Nicolau Sevcenko, Op.Cit., Ricardo Salles, Op.Cit., e José Murilo de Carvalho Carvalho, Op. Cit e Os bestializados. O Rio de janeiro e a

69

Gregório é apreciado. Ainda que dê mostras de um belo lirismo, como lembra

Romero, o que o transforma em um fator nacional é seu lado humorístico, através do

qual exerce sua crítica.

Araripe dedica toda uma seção de seu estudo sobre Gregório a fim de discorrer

acerca das características da sátira enquanto forma literária. Para ele, inclusive, antes

de ser um fenômeno literário, a sátira "é um fenômeno fisiológico". Ele procura

detectar quais as ligações que o gênero satírico guarda com as funções fisiológicas,

mais precisamente como pode ser compreendido como uma função de sobrevivência

no processo de seleção do mais forte. Iniciado nas lições de Taine, Araripe enxerga a

arte como função biológica, reação ao meio.

A sátira, assim, seria a

Irritação do mais forte, sadio e triunfante, contra o fraco que se

arrasta na sua impotência, na sua tristeza, intanguido pelo aleijão, a sátira,

em sua expressão mais pura, não passa de malignidade produzida pela

exuberância vital, momentâneamente desviada do eixo sobre o qual giram

todos os fenômenos da vida universal152.

Ela é diferenciada do riso, o qual seria a válvula por onde se dão as descargas do

excesso de vida. A sátira começa a manifestar-se desde o irracional e ascende até o

social, onde destacam-se os sentimentos maus sobre os benignos. "A sátira é a

malignidade traduzida em estilo poético"153; é, segundo Comte, a sistematização do

espírito destruidor. Araripe afirma que é um erro comparar Gregório a Rabelais. O

riso gaulês de Rabelais, segundo o crítico, não feria senão a epiderme da humanidade.

O verdadeiro satírico, como Aristófanes e Diógenes, tem como alvo os costumes, é

um psicólogo à rebours. A sátira é um reagente da decomposição social, e Gregório de

Matos "era a sátira personificada".

Imagine-se o selvagem debatendo-se entre as arestas da sociedade e

da moral que o tentam deter e que o comprimem e ter-se-á a imegem fiel do

república que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.; Needell, Jeffrey D. . Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993. 152 Araripe, Jr. T.A. Op. Cit. p. 390. 153 Idem. p.391.

70

satírico da espécie que eu figuro, do Gregório de Matos que a crônica, os

documentos e as respectivas obras me revelam154

Ele exemplifica essa reação satírica lembrando que Gregório acreditava em

Deus e que compôs belos lirismos religiosos. No entanto, logo que se deparava com

um clérigo pelas ruas da Bahia "esta dulcíssima unção de cristão converso desaparecia

completamente". A animalidade o assoberbava e de pronto soltava uma sátira sem se

importar se desrespeitaria a coisas reputadas santas. E isso acontecia não só em

relação ao clérigos, mas, segundo Romero, "Gregório era um acérrimo inimigo, tanto

de governadores e juízes déspotas, como de bispos e cônegos aparvalhados"155. Como

já foi mencionado, pela poesia de Gregório os críticos acreditavam poder visualizar

todo o mundo social da Bahia do século XVII. Os principais tipos sociais ali estavam

retratados em seus vícios e virtudes; os padres, as mulatas, os políticos, os reinóis, os

índios. Gregório teria denunciado a presunção das três raças, e, como ambos os

autores mencionam, remetendo ao próprio Vieira, "mais se deve às sátiras de Matos

do que aos sermões de Vieira".

Esse entusiamo pelo caráter crítico, pelo questionamento da ordem não é

gratuito. Como já foi visto, esses críticos tendem a atribuir valores a determinados

agentes históricos, aproximando-se de uns e afastando-se de outros. O juízo crítico é

essencial na prática desses intelectuais; é através dele que se pode desintegrar tanto os

floreios retóricos na literatura como as estruturas fósseis da política. A prática de uma

crítica judiciosa é que permite que uma nação esteja na corrente da história. Cada

escritor ocupa o lugar que merece no panteão literário de acordo com sua contribuição

para a evolução da idéia em sua totalidade. Gregório é exemplo disso, e os críticos que

analisamos aqui o tomam como exemplo estando voltados justamente para uma

composição social na qual procuravam validar o mérito de suas próprias idéias para a

história brasileira. Nessa intenção, faz-se necessário sobrepujar e desqualificar o que

veio antes, a geração ou movimento anterior.

Essa dinâmica é própria da experiência intelectual moderna, na qual assiste-se

uma contínua e necessária "revolução permanente", onde esses agentes especializados

procuram legitimar seus discursos e projetos deslegitimando o antecessor. Bourdieu

154 Idem. p. 396. 155 Romero, S. "Introdução…"In: Op.Cit.p. 229.

71

nos ajuda a pensar essa dinâmica ao identificar, analisando o caso francês, uma série

de disposições que orientariam as ações desses agentes. Essas interações internas de

um determinado grupo especializado (críticos, p. ex), assim como as interações desse

grupo com o espaço maior da estrutura social, formam uma rede de relações objetivas,

as quais os agentes não se podem furtar na busca por uma posição dominante.

Os críticos mais "jovens" estruturalmente, menos avançados no processo de

legitimação, fazem de seus predecessores mais velhos tudo que define a "velharia"

poética, crítica, filosófica, assim como procuram distanciar-se de todas as marcas de

envelhecimento social, como sinais de consagração interna (academia, p.ex.) ou

externa (sucesso).156O caso que analisamos aqui, segundo o argumento, poder-se-ia

ver como um estágio de conformação de tal dinâmica, sendo que para ela se instaurar

é imperativo um certo grau de tensão social. Essa tensão o Rio de Janeiro começa a

experimentar em meados do oitocentos e críticos como Sílvio Romero e Araripe Jr.

ajudam a configurá-la identificando-se como uma geração própria e reivindicando seu

espaço em oposição ao "estado" anterior. Apresenta-se, assim, uma certa homologia

entre os espaços breasileiro e europeu, respeitadas as especificidades, no que se

relaciona às expectativas e práticas de agentes que se autodenominam intelectuais.

Seguem determinados princípios que procurarei desenvolver brevemente para que

possa retornar ao caso dos dois críticos aqui analisados.

As classificações, função da prática de homens de ciências e intelectuais,

requerem agentes revestidos de legitimidade, e o peso que estes agentes terão no

espaço social, como lembra Bourdieu, depende de seu capital simbólico, isto é, do

reconhecimento, institucionalizado ou não, que recebem de um grupo157. Ao estruturar

as percepções que os agentes sociais têm do mundo social, a classificação contribui

para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira tanto mais profunda quanto

mais amplamente reconhecida. Classificar é um agir específico dentro de um espaço

social que se constitui de ( e é construído por) possibilidades de ação.

Se, de um lado, classificar é um ato arbitrário, sendo que não existe uma

relação direta e natural entre o objeto e seu nome, de outro, quando abordado em uma

historicidade específica, a classificação orienta-se por determinadas regras. A forma e

o seu conteúdo dependem da relação entre um habitus e um mercado definido por um

156 Cf. Bourdieu, P. As regras da arte. Sãpo Paulo: Cia das Letras, 1996. 157 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. Edusp: São Paulo, 1998.

72

nível de tensão mais ou menos elevado. Um agente que incorpora as possibilidades

dadas que regem as interações específicas do campo onde se insere, e o campo

propriamente dito, com suas relações objetivas formadas e renovadas justamente pela

ação guiada pelas disposições dos agentes. Desse modo a "forma, e a informação que

ela informa, ambas condensam e simbolizam toda a estrutura da relação social da qual

derivam sua existência e sua eficiência.158"

Pode-se mapear essas regras identificando um espaço restrito nas sociedades

modernas ocupado por agentes que se autodenominam "intelectuais". O espaço

ocupado por estes agentes de produção cultural insere-se, por sua vez, numa posição

dominada, temporalmente, no seio do campo do poder: princípio de hierarquização

externa. Mas também se processa um outro princípio, o de hierarquização interna, que

é definido pelo grau de consagração específica: o reconhecimento por seus pares.

Resulta dessa estrutura dupla de tensão a luta pelo monopólio da legitimidade.

E dada a tendência desse espaço específico de produção cultural conquistar uma

autonomia própria nas sociedades modernas, em que são reconhecidos critérios

particulares de legitimação e ação, ocorre também que se constitua uma

"institucionalização da revolução permanente"159 como modo de transformação

legítima dos campos de produção cultural, em que as "vanguardas" se sucedem umas

às outras; o que se poderia chamar, também, como ja o fizemos acima, de "luta pela

verdade".

As classificações alimentam o discurso ao mesmo tempo em que são por estes

elaboradas. Esta relação caracteriza uma complementaridade dinâmica, na medida em

que ambos se realizam na e pela língua. As classificações, ao serem organizadas na

"tessitura"160 do texto, são realmente instauradas, alimentando, por sua vez, outras

combinações e seleções. Esse processo só se realiza na expectativa de um

alocutário161, requerendo assim a presença, implícita ou explícita, do outro, que possa

reconhecer e dar legitimidade à ação discursiva.

158 Bourdieu. P. Ibid. p. 68. 159 Bourdieu, Pierre. As regras da arte. Cia das Letras: São Paulo,p. 248. 160 Ricoeur, Paul. Tempo e narrativa Tomo I. Campinas: Papirus, 1994. Com relação à importância desses dois aspectos da linguagem, seleção e combinação, remeto ao artigo de Roman Jakobson, "Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia", In: Lingüística e Comunicação. São Pulo: Cultrix,s/d., assim como ao livro de Wolfgang Iser sobre a estruturação do texto ficcional, O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. V.I e V.II, Ed.34, 1996 e 1999. 161 Benveniste, Émile. Problemas de lingüística geral II. São Paulo: POntes, 1989. Especificamente: "A linguagem e a experiência humana"e "O aparelho formal da enunciação".

73

Assim, reconhecendo o ambiente onde esses pensadores estavam imersos e

suas possibilidades de ação, podemos apreender melhor as categorias privilegiadas em

seus discursos. Ao construir uma tradição e organizá-la na narrativa, as ações dos

personagens dentro de uma intriga revelam, acima de tudo, valores que serão postos

em julgamento. A história como "mestra da vida" serve para fornecer os modelos que

contemplem as expectativas dos agentes produtores.

Na construção, portanto, da tradição literária brasileira, em seus autores e

escolas, processa-se um ato de juízo que não deixa de ser consciente por parte do

crítico. Sílvio Romero, por exemplo, já atentava para essa característica :

"Ora, determinar o lugar que deva na hierarquia dos fatos intelectuais

de um povo ocupar um escritor, é traçar um juízo, é julgar a categoria de

idéias que o escritor personifica, é designar o sentido e o alcance de sua

contribuição para a obra comum das idéias. Se, portanto, corrigir não é mister

da crítica, seu alvo é julgar"162.

Pois bem, o crítico, ao olhar para o texto – e para a pessoa do escritor – estará

atualizando suas expectativas nas possibilidades e limitações semânticas.

Na apropriação dos textos creditados a Gregório de Matos, por exemplo, cujas

características barrocas oferecem ao crítico inúmeras dobras, lacunas que cabem ao

crítico preencher, tornar-se-ão visíveis elementos valorativos privilegiados.

Acreditamos que tais textos serviram – e servem – como uma estrutura aberta

propícia à ativação do imaginário. Pensamos aqui nas considerações sobre uma

antropologia literária de Wolfgang Iser163. Para este, o imaginário é como uma

instância que precisa ser mobilizada por algo externo para que se torne presente. Tanto

o imaginário quanto o fictício não possuem definições ontológicas, pois só podemos

apreendê-los mediante uma descrição operacional das suas manifestações contextuais.

Mais do que uma faculdade, o imaginário seria algo próximo ao substrato da pré-

compreensão do mundo e da ação, no sentido que Gadamer lhe dá164. Iser privilegia a

162 Romero, Sílvio. "O naturalismo em Literatura" In: Literatura, História e Crítia. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 347. 163Iser, W. O fictício e o Imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUerj, 1996. 164 Gadamer, H-G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999. A meu ver, a grande constribuição da hermenêutica às ciências humanas se encontra

74

obra literária enquanto o "algo externo" ativador, pois esta, no seu abrir espaços de

jogo de acordo com sua estrutura, pressiona o imaginário a assumir uma forma. Num

processo de "democratização da mímesis", Iser só concebe a realização da obra como

evento quando esta é ativada num determinado horizonte. A estrutura da obra exige a

entrada do leitor, não para que este fique preso aos seus sentidos, mas para que possa

explorar as possibilidades das lacunas semânticas com suas expectativas. O leitor, no

caso aqui o crítico, preenche tais lacunas seguindo as expectativas próprias de sua

posição social. Daí a poesia de Gregória se tornar um emblema que congrega as

disposições guardadas pelos críticos. Recorrendo novamente à Bourdieu, pode-se

dizer que "a eficácia mágica que a poesia freqüentemente se atribui encontra seu

princípio nessa espécie de acordo quase corporal que confere às palavras, e às sua

conotações, o poder de fazer descobrir experiências enterradas nas dobras do

corpo".165

Quando estes autores chegaram ao Rio de Janeiro, durante a década de 1880,

encontraram uma configuração social que se caracterizava, no meio cultural, pela

sedimentação de um romantismo que sustentava uma hegemonia desde a década de

trinta. Tal romantismo, como já vimos, ancorado pelo apoio imperial, materializado

no espaço do IHGB, vinha desenvolvendo um claro projeto de reconhecimento da

identidade nacional – palavra de ordem entre os letrados brasileiros.

No decorrer desse projeto, fêz-se necessária a seleção de objetos a serem

estudados; e para isso o próprio romantismo europeu dava as premissas a serem

seguidas, quais sejam: a observação da natureza, a caracterização do gênio do povo

justamente nestas categorias que Apel denomina "semi-transcendentais". Cf. Apel, Kerl-Otto. Transformação da Filosofia.Filosofia analítica, semiótica. hermenêutica.São Paulo: Loyola, 2000. Mediante uma retomada da crítica transcendental sobre a experiência cientificista que se fundamenta pela própria estrutura cartesiano-kantiana, a hermenêutica encontra instâncias outras a priori como a "pré-estrutura (Vorstruktur) transcendental da compreensão", pela tematização, por ex., da linguagem, que condicionam a possibilidade e a validade do conhecimento em uma comunidade de comunicação. Isso não implica necessariamente que a hermenêutica se transforme em algo que alimente a si mesma. Isso seria jogar o bebê com a água de banho. E na busca da própria hermenêutica de um critério, ou como diz Levi, "um sentido global", parace-me interessante pensar a partir das propostas de Habermas e Apel a possibilidade de um "progresso" no acordo mútuo entre os seres humanos, assim como no auto-entendimento (nas palavras de Hegel, o saber que sabe a si mesmo). E, desse modo, a dialética que se estabelece entre a projeção de uma comunidade ideal e a verificação de comunidades ideais de comunicação deve ser vista pela "reconstituição dialética da história social". "O caráter dialético da objetivação histórica da sociedade, diz Apel, como comunidade real de comunicação, que ora se postula, baseia-se no fato de que é possível ter apenas a história em vista, como dimensão do desdobramento objetivo da contradição entre as comunidades real e ideal de comunicação, e ao mesmo tempo como dimensão da possível dissolução dessa mesma contradição."p. 76. 165 Bourdieu, P. As Regras da Arte. p. 335.

75

em suas diversas manifestações (literatura, música, folclore) e a descrição do

desenvolvimento do espírito nacional.

Enquanto projeto oficial, o romantismo brasileiro pôde desvincular-se do teor

crítico do primeiro romantismo alemão, por exemplo, o que possibilitou sua longa

permanência dentro dos ambientes da elite166. Desde Magalhães, passando por

Gonçalves Dias, Azevedo, Alencar, Porto Alegre, Luis Delfino, entre tantos outros, o

romantismo permaneceu como domínio necessário na busca por capital cultural. Era o

modelo que configurava o discurso dominante na sociedade carioca e que cabia aos

novos críticos desqualificar.

Como participantes de um movimento que tinha como palavras de ordem o

abolicionismo, a democracia e a república, esses críticos deviam relocar os elementos

da nacionalidade num projeto próprio. A pergunta inicial que José Murilo de Carvalho

formula no início de seu livro sobre o imaginário republicano, qual seja se não "teria

havido, como acontece quase sempre, tentativas de legitimação que o justificassem, se

não perante a totalidade da população, pelo menos diante dos setores politicamente

mobilizados?"167, pode receber uma resposta clara e afirmativa. De fato, a dissolução

de representações consolidadas e a afirmação de outras requeria a busca de novas

bases de legitimação.

Formulações em processo no solo europeu de filosofias de cunho cientificista,

sejam elas comtianas, darwinistas, spencerianas, ocorriam desde o início do século

XIX e ganhavam domínio hegemônico em sua segunda metade. A hegemonia

conquistada na Europa representava, por extensão, a legitimidade fundamentada para

toda uma nova geração nos Trópicos. Geração de letrados que se apropriou da

eficiência simbólica do discurso científico:

Ao consagrar em estado de divisões e da visão das divisões, o efeito

simbólico exercido pelo discurso científico é tanto mais inevitável quanto,

em meio às lutas simbólicas pelo conhecimento e pelo reconhecimento, os

chamados critérios "objetivos" (os mesmos conhecidos pelos eruditos) são

166 Cf. Costa Lima, Luiz. O controle do imaginário. Razão e imaginação no ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984. O autor analisa como o caráter essencialmente reflexivo do romatismo alemão de Schlegel assume nos trópicos um caráter puramente contemplativo, sendo a natureza não mais um elemento de reflexão do sujeito cognoscente, mas um objeto cotemplativo e melancólco. 167 Carvalho, José Murilo. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p.9.

76

utilizados como armas: eles designam os traços sobre os quais pode fundar-se

a ação simbólica de mobilização com vistas a produzir a unidade real ou a

crença nessa unidade (tanto no seio do próprio grupo como junto aos

demais)168

Assim, esse grupo que ficou conhecido como "geração de 1870" trouxe ao seu

discurso esse poder legitimador, encontrando, no entanto, resistências por parte de

outros grupos constituídos em suas tradições. Na forma de uma "subversão herética",

o grupo extrapola a possibilidade de mudar o mundo social modificando a

representação desse mundo, opondo um projeto, um programa à visão comum pré-

estabelecida. O reconhecimento da nova posição que é posta, por parte das instituições

representantes da geração consagrada, é um componente necessário e constituinte

dessa tensão. O IHGB, por exemplo, viu com reticências a invasão dessas correntes

cientificistas. Dentro de seus domínios, "criticou-se abertamente o positivismo,

chegando o Instituto a cogitar da possibilidade de difundir algumas obras que

pudessem fazer frente a essa corrente, traduzindo-as e vendendo-as a preço mais

acessível"169. A distinção das posições é reconhecida não só pelo "opositor" mas

também pelo "oponente". É essa distinção que dá a existência social ao grupo. Daí a

necessidade de afirmarem-se contra a geração anterior, seu anti-romantismo, por mais

que seus temas em parte coincidissem. Romero assim caracteriza o momento da

inteligência brasileira até a chegada da nova geração:

A vida espiritual brasileira é pobre e mesquinha, desconceituada e

banal para quem sabe pensar sob à luz de novos princípios. – Aferida pelo

moderno método de comparação, inaugurado há muitos anos nas literaturas

européias, ostenta-se caprichosamente estéril. À força de desprezarmos a

corrente de nossa própria história e pormo-nos fora do curso das idéias livres,

eis-nos chegados ao ponto de não passarmos de ínfimos glosadores das

vulgaridades lusas e francesas; eis-nos dando o espetáculo de um povo que

não pensa e produz por si.170

168 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. Edusp:São Paulo, 1998.p. 113 169 Callari, Cláudia Regina. Op.Cit. p. 75. 170 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna". In: Op. Cit. p. 40.

77

Araripe também se refera ao romantismo, o movimento anterior, como algo que, sob

as palmeiras ,"embalado nos sonhos da jurema, o Brasil julgava-se um gigante, um

portento, um numa, quando tudo estava a demonstrar que esse sonho não era mais do

que uma prostração de deliqüescente e um sintoma de idiotia".171

É no espírito crítico, independente, que esses letrados encontram maior

semelhança às suas prórias imagens. A crítica, a denúncia, o desvelamento de

interesses nocivos à nação são os elementos que estes intelectuais do final do

oitocentos associam à essência de sua prática. Araripe lembra a seus leitores que

Gregório não se entregou à "influência obnubilante de todas as idéias e gostos antigos

e manias eróticas contraídas nas margens do Mondego, sem que primeiro atrevassasse

uma fase de guerra crua e despiedada contra tudo quanto na colônia lhe lembrava a

vida de Lisboa". O mesmo jogo de palavras com o nome do sátiro faz Romero,

afirmando que Gregório era de Guerra. Gregório, para o crítico, era um acérrimo

inimigo, tanto dos governadores e juízes déspotas, como de bispos e cônegos

aparvalhados".

Este ver-se a si mesmo no outro, que tanto caracterizava a historiografia, não

passava despercebido aos seus autores, ainda que necessitassem das idéias de

neutralidade e objetividade. Sílvio Romero, principalmente, já alertava e assumia essa

condição do crítico de emitir juízos. A adoção do método cientificista, por mais que

servisse de instrumento heurístico legitimado na apreensão de determinada realidade,

não poderia possibilitar ao crítico fugir das expectativas e interesses do ambiente onde

estava imerso. Desse modo podemos compreender melhor o incessante "resvalo para o

subjetivismo", lembrado por Ventura, que tanto marcava esses críticos, apesar de suas

intenções de neutralidade axiológica.172Mas entendo esse subjetivismo não como

liberdades ou caprichos conscientes do ego, mas sim por aquilo que venho

denominando, via Bourdieu, de disposição. E a disposição desses autores se configura

por um campo de possibilidades passível de ser mapeado. No mesmo sentido, cito

Romero:

A mesma ciência, em toda a sua gravidade, em toda a sua aparência

sombria e inquebrantável, seria uma coisa frívola, seria um luxo de ociosos,

171 Araripe Jr. T.A. "Sílvio Romero polemista". In: Op.Cit. V.1 p. 324. 172 Ventura, R. Op.Cit. p. 101.

78

uma pedanteria de abstratos, se ela não pudesse interessar, não pudesse

melhorar as sociedades humanas. (…) O observador, qualquer que ele seja,

sábio ou romancista, deve ter uma filosofia, deve ter uma intuição do mundo

e da humanidade capaz de dar um sentido às suas pesquisas, capaz de

fornecer-lhe um ideal de progresso e de libertação.173

É pautado nessa posição que Romero vai direcionar sua críticas a dois autores que me

parecem bastante significativos para perceber essas disposições às quais me refiro:

Luís Delfino e Machado de Assis. O primeiro ocupa hoje um lugar escondido na

plêiade literária brasileira, o segundo é seu mais célebre representante. No entanto,

para Romero ambos situavam-se no mesmo patamar, pois, compartilhando das

velhacarias de uma geração condenada, não poderiam contribuir para o pensamento

brasileiro.

Ambos os autores representam para Romero a decadência patente do

movimento romântico. O "sr, Machado de Assis, diz Romero, é um desses tipos de

transição, criaturas infelizes, pouco ajudados pela natureza, que não representam, não

podem representar um papel mais ou menos sailente no desenvolvimento intelectual

de um povo"174. Ele é assim um tipo de transição, agarrado ainda às concepções e

vícios de um movimento acabado que se quer atual, denominando-se realista. Como

tal, ele já não pode desenvolver um trabalho literário condizente com as necessidades

da nação, mas apenas uma mistura de estilos degradante que evidencia sua falta de

idéias. "Meio clássico e meio romântico, precisando de ambos os lutadores,

prendendo-se a um pelo monomania do lusismo da língua, e a outro pelos arremedos

imaginativos, conservou-se o amigo e o imitador dos dois inimigos!… Isto é colocar a

mão sobre a ferida intelectual do Homem"175. Designa assim Machado como

representante de um grupo de letrados que perdeu o compasso com a realidade

brasileira, dependente ainda de concepções românticas e de uma elite ultrapassada que

se quer também intelectual. "Sem convições políticas, literárias ou filosóficas, não é,

nunca foi um lutador. Esse auxiliar de todos os ministérios, esse rábula de todas as

idéias, é, quando muito, o conselheiro da comodidade letrada".176Machado é

173 Romero, Sílvio. "O naturalismo em literatura". In: Op. Cit. p. 353. 174 Idem. p. 358. 175 Romero, S. Op.Cit. p. 359. 176 Idem. p. 360.

79

identificado por Romero como um arrivista das letras, que tem como única orientação

a conquista de um espaço dentro de uma elite ignorante e incompetente. Luís Delfino

recebe as mesmas críticas, nunca foi um lutador e não apresenta em absoluto idéias; a

única coisa que o distingue de Machado é que ele não precisou galgar as escadarias da

elite letrada carioca, sendo como era "o único poeta rico em todo o Brasil".

Para finalizar este capítulo, e ilustar mais uma vez esse preenchimento de

lacunas (possibilidades) semânticas com as expectativas guardadas pelo crítico, se

mostra interessante apresentar a leitura que Araripe Jr. fez de uma poesia de Gregório

de Matos e o grau de convergência que o crítico encontra com a sua situação

contemporânea. Araripe era um ferrenho presidencialista e possuía um grande ranço

em relação ao parlamentarismo, que considerava uma das piores mazelas para a

política brasileira. Na leitura da sátira, ele vai encontrar mais uma crítica avant-la-

lettre de Gregório, pois este reconheceu no ambiente baiano o perigo potencial do

parlamentarismo:

É verdade que em 1681 ninguém podia pensar em vida parlamentar,

nem muito menos na sua expressão de decadência: mas não menos certo

parece que , embora sem orgãos legais, essa função viciosa se ensaiava na

índole de uma nação e na educação de um grupo177

A sátira se chama "Os gatos", que Gregório teria escrito "como alegoria para

fustigar 'os ladrões da República'". A cena se passa em um telhado de Nize, onde

ocorre uma reunião de gatos ao cair da noite. Há toda uma organização nessa reunião,

e o deão, gato macilento e de cara chata, preside a sessão, estando os demais em boa

ordem. O silêncio reina, não se escuta nem um miau. Até que um "gatinho reinol"

pede a palavra mas não consegue exercê-la, pois um outro gatinho, "muito entendido

em regimentos" a toma para si. Depois de ter se apresentado, narra suas mazelas e faz

um pedido ao parlamento:

Eu sou gato virtuoso Que a puro jejum sou magro:

Não como por não ter quê,

177 Araripe Jr. T.A. "Gregório de Matos". In: Op.Cit.p. 466.

80

Não furto por não ter quando.

E como sobra isto hoje Para me terem por santo,

Venho pedir que me ponham No calendário dos gatos.

Seguem-se a este gato tantos outros narrando suas mazelas e fazendo requerimentos

semelhantes; exibições pessoais e retaliações mesquinhas. No entanto, apesar de todo

o falatório, "não se sabe com que fim se reúne tão venerando cabido; os seus membros

miam, tornam a miar, sem que chegem a provar o que com tais parlendas tem de

comum a República". Mas então um tiro de bacamarte é troado no ar, disparado por

um soldado malfazejo. "Susto geral; decompõe-se a audiência, e cada qual, aos saltos

e aos pinchos, pelo vento fora, vai, de telhado em telhado, procurando seu

esconderijo"178. Após alguns minutos, depois da correria geral, os gatos começam a se

lembrar de olhar para trás, analisar a situação, e aos poucos, mediante uma contra-

senha, "miau aqui, miau ali", aos poucos vão se reunindo. "Quem os dissolvera?",

provavelmente um desalmado, "que não compreeendia as sutilezas da palavra". Se

reuniriam novamente? Um gato mui prudente logo aconselha:

Cada qual para a sua cabana

Que hoje de boa escapamos

Outros, no entanto, insistem na reunião. Mas logo começa a chover e rapidamente

voltam a dissipar-se,

Porque de água fria

Há medo gato escaldado

Toda essa cena salta aos olhos de Araripe como uma visão apurada e crítica

dos vícios do parlamentarismo. "Não sei que melhor pintura se poderia hoje fazer do

parlamentarismo transacto", diz o crítico. O capadocismo fermentado no tempo de

Gregório, e presente ainda na política brasileira, é que permite, segundo Araripe, uma

aproximação tão clara. Segundo ele, não há um só dos aludidos na sátira que não

recorde um parlamentar do segundo império. Daí aquela vacuidade de idéias,

manifestada num palavrório verborrágico por "gatos macilentos" que só pensam em

conseguir colocar seus nomes no "calendário dos gatos". E Gregório profetizou

81

(profecia retrospectiva de Araripe, na verdade) toda essa estrutura política imperial , a

qual o crítico também nutre desgosto, com todos os detalhes.

Gregório profetizou-o; e deve-se dizer até que antecipou a história de

nossa primeira constituição nos dois fatos culminantes, um acidental e outro

permanente. A constituiete de 1822 sabemos que se deixou dissolver por um

soldado malfazejo, embora rei, mas amigo das armas e cavaleiro. No segundo

império tivemos muitas ocasiões de verificar efeitos dos chuviscos imperiais,

– as chamadas dissoluções para consulta da nação.179

Dessa forma poesia barroca de Gregório da Matos serviu, assim outros textos

que compunham a tradição litarária brasileira, como um meio semântico através do

qual Sílvio Romero e Araripe Júnior puderam realizar suas expectativas, atribuindo e

encontrando valores, na realização de uma leitura crítica. Como agentes autorizados –

na conquista dessa autorização – para praticar tal leitura, esses críticos a faziam

direcionando-se à uma dupla legitimação. De um lado, legitimando-se a si próprios

enquanto intelectuais, mediante a adoção de métodos e a construção de espaços

especializados; de outro, legitimando, também mediante esses métodos e espaços, a

projeção de uma idéia de nacionalidade e a afirmação dos projetos políticos a ela

vinculados, quais sejam, democracia, abolicionismo e república.

178 Idem. p. 469.

82

4. Conclusão:

"o mundo, apesar de sua variedade e de sua aparente desordem, tem constantemente uma certa coerência em todas as suas partes" Goethe

Para encerrar o argumento desenvolvido nesta monografia tecerei algumas

considerações que creio poderem contribuir para a questão inicialmente colocada.

Apoiado na leitura tripartite realizada acima da obra de Araripe Júnior e Sílvio

Romero, onde priviligiei a experiência histórica, a construção da nacionalidade e a

atividade crítica, procurarei problematizar um pouco a proposta de Morse – e não

refutá-la – no que diz respeito ao estudo da atividade intelectual na cidade do Rio de

Janeiro durante o século XIX. Problematizá-la no sentido de possibilitar a

compreensão das expectativas que orientavam a prática destes intelectuais, sem

reduzi-las a uma disposição coletiva e invariável.

179 Araripe Jr. T.A. Op.Cit. p. 469.

83

Recapitulemos assim a proposta de Morse à qual me refiro. Segundo este

brasilianista, as sociedades ibero-americanas foram formadas assumindo um forte

caráter holista que teria se enraizado profundamente durante a colonização nas

estruturas institucionais e práticas sociais. As sociedades ibero-americanas, dessa

forma, teriam uma configuração própria onde se destacariam a doutrina e a ordem

social. Essa estruturação essencialmente hierárquia estaria de tal forma arraigada à

sociedade ibero-americana, que ela condicionaria ainda hoje o pensamento e os

projetos políticos nessa sociedade. Morse sugere ainda – e aí entra a discussão a que

me proponho contribuir – que a moda do positivismo e do cientificismo que se deu no

século XIX pode ser melhor compreendida como uma retomada dessa disposição

ibérica do século XVII do que como uma obediência conveniente e superficial à

ciência européia.

Morse, a meu ver, enxerga corretamente a especificidade dos processos

americanos. Dando grande importância à questão da tradição180, ele concebe os

processos de formulação de identidade americana dentro das configurações próprias a

essa sociedade, recusando entendê-los como simples cópias da "periferia" em relação

ao "centro". Essas formulações procuravam responder assim a questões e expectativas

internas. O que, contudo, me parece um pouco precipitado (precipitação talvez

necessária à proposta de Morse, a qual visa uma síntese, a construção de um modelo

que, como nos lembra Lévi-Strauss, não se confunde com a realidade empírica), é

nivelar um campo de tensões que se fez, segundo minha análise, bastante presente na

atividade intelectual brasileira do final do oitocentos. A leitura que me propus realizar

aqui dos dois críticos me leva a discordar da afirmação de que:

Se os latino americanos do fin-de-siècle se preocuparam com o

arcaísmo e a entropia, isto se deveu, podemos supor, ao fato de eles não

enxergarem promessas redentoras de origem popular e nativa nem poderem

antecipar com certeza como suas sociedades urbanas modernas

reproduziriam uma dinâmica da mudança.181

180 Cf. Velho, Otávio. "O espelho de Morse e outros espelhos". Estudos Históricos. Rio de janeiro, vol.2,n.3,1989.p.94-101. 181 Morse, Richard. "As cidades periféricas como arenas culturais: Rússia, Áustria, América Latina." Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n.16, 1995, p. 217.

84

Pelo corte que optei, circunscrevendo a produção de Sílvio Romero e Araripe

Júnior entre o começo da década de 1880 até meados de 1890, creio poder afirmar que

estes críticos procuravam não só antecipar as formas como suas sociedades poderiam

re-produzir uma dinâmica da mudança, como também enxergavam (e precisavam

enxergar, no caso do intelectuais como os aqui analisados) promessas redentoras de

origem popular (bem entendido, não o popular como agente politicamente ativo da

mudança, mas sim como objeto a partir do qual se constitui a identidade nacional;

orientação necessária para a validade de projetos políticos). Os debates e propostas

sobre quais seriam as formas governamentais mais eficientes para colocar o Brasil na

corrente da história, e principalmente a elaboração discursiva da identidade brasileira

como projeto, pautada na formação da miscigenação como meio de realização do

nacional nos moldes civilizatórios modernos, europeus, eram focos privilegiados na

prática crítica desses intelectuais.

Isso não quer dizer, no entanto, que posso inverter a afirmação de Morse. Pois,

ao contrário do brasilianista, o qual transita em suas análises com uma concepção de

ideologia – que ele próprio aproxima à dos frankfurtianos –, me vejo mais tentado

metodologicamente a seccionar essa concepção totalizadora voltando-me para as

ações interessadas dos indivíduos analisados em um contexto tensional. Desse modo,

parace-me mais profícuo reconhecer e reconstruir diferentes disposições presentes em

um espaço comum do que subsumir essas diferenças em uma suposta disposição

totalizadora à qual os agentes estariam condicionados. Não nego a disposição

detectada por Morse; pelo contrário, condidero-a de grande importância e validade,

mas como constituiente de um contexto no qual outras possibilidades estão e

procuram se consolidar.

Entender a apropriação das teorias cientificistas por parte dos intelectuais

brasileiros como uma retomada da disposição ibérica, leva a pensarmos a sociedade

como uma estrutura estruturada, e não como uma estrutura estruturante. Ou seja,

corre-se o risco de negligenciar o caráter tensional próprio ao ambiente urbano onde

os agentes de cultura estavam imersos, o campo de possibilidades caracterizado pela

construção de trajetórias sociais fundadas na conquista de legitimidade. O uso de

teorias cientificistas estaria assim nivelado a um substrato comum que perpassaria

toda diversidade.

85

Se, de outro modo, procura-se entender o uso dessas teorias, não pela tomada

de uma disposição ideológica comum, mas mediante a apreensão das lógicas e da

construção dessas lógicas de legitimação da ação, nas diferentes formas em que se

apresenta no social, creio que podemos nos aproximar de uma maneira mais segura

das experiências próprias dos agentes estudados.

Procurei orientar-me neste sentido na análise da produção de Romero e

Araripe. Tendando me esquivar tanto do enquadramento dos críticos em uma

disposição ideológica única, quanto de um afrouxamento da atividade crítica, onde as

posições e ambigüidades estariam reduzidas aos caprichos dos egos, utilizei-me de

alguns instrumentos heurísticos que me permitissem identificar, através da ação (em

forma de texto), determinadas características das disposições específicas dos dois

críticos aqui analisados. Disposições que só podem ser entendidas mediante outras,

pois configuram e são configuradas pelas lógicas relacionais próprias ao campo da

atividade específica (e na intersecção deste campo com outros).

Assim, o problema que foi colocado no início desta monografia, qual seja: a

convergência da necessidade de se identificar a identidade local, nacional, com a

prática de se vincular a focos identitários de matrizes européias, pode ser melhor

entendido. Esse jogo de diferenciação e pertencimento se deu de formas diferentes não

só ao longo de uma temporalidade, marcada por movimentos como o modernismo,

mas também sincronicamente, como estratégias de agentes na busca por capital

simbólico.

Como já foi salientado nos capítulos anteriores, as experiências histórica e

intelectual modernas, assumindo seu caráter reflexivo e servindo como modelo de

legitimação de ações sociais, desenvolveu-se tendo em seu bojo uma tensão peculiar.

Ao mesmo tempo em que se buscava através da prática intelectual uma verdade,

baseada em procedimentos que configuravam a história como um campo de saber

específico, tendo, inclusive, a Universidade - no caso brasileiro as Academias e

Institutos - como seu locus privilegiado, não subtraiu-se daí o reconhecimento de um

posicionamento consciente (relativamente consciente, pensemos aí na noção de

habitus: a internalização das lógicas relacionais) do pesquisador em relação a

interesses. Tal tensão é instrumentalizada e realizada na prática do intelectual. Não lhe

escapa em nenhum momento; nem no trato com os documentos, nem na

"compreensão" de tais documentos e, muito menos, na escrita: exteriorização

86

semântica de uma tomada de consciência. E o desempenho dessa proposta de tomada

de consciência realiza-se por completo no grau aceitação por parte de um público

(especializado e não especializado) ao qual é voltada. A busca da convergência de

uma "verdade", fruto da pesquisa histórica, com os interesses e necessidades práticas

da sociedade, e dos agentes de cultura, busca expressa já na pergunta de Schiller (O

que é a história universal? E com que finalidade a estudamos?), revela-se assim como

um móbil fundamental da experiência intelectual moderna.

O problema colocado pode assim receber uma tentativa de resposta. O

processo de diferenciação e pertencimento, como presente nos autores aqui analisados,

está vinculado a um duplo processo de legitimação que tem como fim a conquista de

capital simbólico (a aceitação dos agentes enquanto autorizados e do enunciado como

válido). A adoção de métodos cientificistas, e sua aplicação sobre a questão nacional e

seus dilemas, permitia – ou pelo menos procurava permitir – que esses autores se

legitimassem enquanto intelectuais autorizados, tendo por referência a prática

intelectual européia; assim como também legitimavam o próprio enunciado enquanto

projeto válido de visão do social. Desse modo, a leitura do social é uma prática

interessada, não no setido maquiavélico do termo, no qual os fins e os meios são

desproporcionais. Aqui, ao contrário, a crença nos meios é o que legitima a meta

desejada.

87

5. Bibliografia

-Bibliografia primária

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977. ____________. Notícia da atual Literatura brasileira.Instinto de nacionalidade. Obra Completa V.3 ____________. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Obra Completa. V. 1. ____________. A nova geração. Obra Completa. Crítica Literária. W.M. Jackson Ed., São Paulo, 1953. ___________. Memorial de Aires. Obra Completa.V.I Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977. ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra Crítica V.I. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960 ___________. Obra Crítica V. II. Rio de Janiro: Casa de Rui Barbosa, 1960 BARRETO, Tobias. A questão do poder moderador, e outros ensaios brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1977. CÉSAR, Guilhermino. A contribuição européia: crítica e história literária. São Paulo:Edusp, 1978.

88

CHATEAUBRIAND, François René, visconde de. O Gênio do Cristianismo. São Paulo: W.M.Jackson Ed., 1949. COMTE, Auguste. "Curso de filosofia positiva"In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 1983.. GARDNER, Patrick. Teorias da história. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. GOETHE, Johann Wolfgang von. Memórias: poesia e verdade. Brasília: Hucitec/UNB.1986. HAECKEL, Ernst. Origem do homem. Porto: Livraria Chardror de Lello e Irmão, 1908. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 1999. ____________. O Belo na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. HEINE, Henrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminuras, 1991 KANT, Immanuel. "Resposta à pergunta: O que é Esclarescimento(Aufklärung)?" In: Kant,I. Textos Seletos, São Paulo: Vozes, 1985. __________. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1994. __________. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Ed.70, 2001. MAGALHÃES, Gonçalves de. "Discurso sobre a história da literatura do Brasil"(1836). In: COUTINHO, Afrânio. Caminhos do pensamento crítico. Rio de janeiro: Americana, 1974. MAQUIAVELLI, Niccolo. "Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio".In: Pensadores Italianos. Rio de janeiro: W.M. Jackson Ed., 1964 MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. "Como se deve escrever a história do Brasil". In: Jornal do instituto histórico e geográfico brasileiro , 24: 381-403, jan. 1845. MARX, Karl. ENGELS, Frederich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1996. NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1977. NOVALIS, Friedrich Von hardenberg. Pólen. São Paulo: Iluminuras, 2001. ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de janeiro: José Olympio, 1949. ____________. Literatura, História e Crítica. Barreto, Luiz A. (org). Rio de Janeiro: Imago, 2001. ____________& BARRETO, Luiz Antonio.Compêndio de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 2001. SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997 SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1995 SPENCER, HERBERT. Primieres principes. TAINE, Hippolyte. Histoire de la littérature anglaise. Paris, Hachete. __________. Da natureza e produção da obra de arte. Lisboa: Inquérito, s/d.p.17 VARNHAGEN, Fransisco Adolfo de. História geral do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1978. VERÍSSIMO, José. Que é literatura? e outros escritos.

- Bibliografia de apoio

89

ADORNO, T.W & HOCKHEIMER, M. Dialética do esclarescimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. AMARAL, Maria de camargo Pacheco(org). Período clássico da hermenêutica filosófica na Alemanha. São Paulo: Edusp, 1994. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. "Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu". In: Estudos Históricos: caminhos da historiografia. Rio de janeiro, n.1, 1988, p. 28-54. AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1998. BAEZ, Elizabeth Carbone. "A Academia e seus modelos". In: Acedemicismo. Projeto Arte Brasileira. Rio de Janeiro: Funarte, 1986. BAHKTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 BARBOSA, João Alexandre. "Forma e história na crítica brasileira de 1870-1950". In: A leitura de intervalo. Ensaios de crítica. São Paulo: Iluminuras, 1990. ___________. "Introdução". In: Veríssimo, José. Teoria, crítica e história literária. São Paulo: Edusp, 1977. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1993 ___________. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996 BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística Geral. Campinas: Pontes, 1989. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992 ____________. "Introdução". In: Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária. São Paulo: Edusp, 1978 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo:Companhia das letras, 1996 _______________. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1998. _______________. "De la maison du roi à la raison d'État" In: Actes de Recherche en les sciences sociales. Paris, 118, Juin, 1997. CALLARI, Claudia Regina. "Os Institutos Históricos: do Patronato de d. Pedro II à construção de Tiradentes". In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.21, n.40, 2001, p. 59-83. CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte:Itatiaia, 1981. _______________. Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. São Paulo: Edusp, 1978. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia da letras, 1987. _________________. A formação da almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990. CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1997. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. _____________. Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à Repúblia. Momentos decisivos. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ECO, Umberto. As formas do conteúdo. São Paulo: Perspectiva, 1999. FAORO, Raymundo.Os donos do poder V.II. Porto Alegre: Globo, 1976. ______________. A pirâmide e o Trapézio. São Paulo: Nacional, 1974

90

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. __________. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. __________. Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999. GERBI, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Cia das Letras, 1996. GUIMRÃES, Manoel Luís Salgado. "Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional". In: Estudos Históricos: caminhos da historiografia. Rio de Janeiro, n.1, 1988, p 5-27 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de janeiro: Ed.34, 1998. HABERMAS, Jurguen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000 ___________. L'espace public. Paris: Payot, 1978. HANSEN, João. A. A Sátira e o Engenho. São Paulo: Cia das Letras, 1989 ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético V.I. São Paulo: Ed.34, 1996 ____________. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético V.II. São Paulo: Ed.34, 1999. ____________. O Ficctício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de janeiro, EdUERJ, 1996. JAUSS, Hans-Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. KOSELLECK, Reinhart. Le régne de la critique. Paris: Editions de Minuit, 1979. ______________. L'experience de l'histoire. Paris: Galimard, 1997. _____________. "Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos". In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146. LEPENIES, Wolf. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996. LIMA, Luiz Costa. O Controle do imaginário: razão e imaginação no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984. ___________. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. ___________. A literatura e o leitor. São Paulo: Paz e Terra, 1979. ___________. Mimesis e modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980. __________. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. ___________. Sociedade e Discurso ficcional.Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986. LUHMANN, Niklas. A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1997. MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001. MORSE, Richard. O espelho de Próspero: cultura e idéias na Améria. São Paulo: Cia das letras, 1995. ____________. "As cidades periféricas como arenas culturais: Rússia, Áustria, América Latina". In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n.16, 1995, p. 205-225. MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta: a experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Ed. Senac, 2000.p. 337. NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993. OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos. São Paulo: Cia das Letras, 1999

91

OLINTO, Heidrum Krieger. História de literatura: as novas teorias alemães. São Paulo: Ática, 1996. RABELLO, Sylvio. Itinerário de Sílvio Romero. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967 REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Rio de janeiro; Bertrand Brasil/DIFEL, 1989. RICOUER, Paul. Interpretação e ideologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990 ____________. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994. ___________. "L'écriture de l'histoire et la representation du passé". In: Annales HSS, juillet-août, n.4, 2000, p. 731-747. SALLAS, Ana Luisa Fayet. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do séc. XIX. Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação do departamento de História da UFPR em 1997. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977 SCHWARCZ, Lilia Mortiz. Retrato em branco e preto: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1985. STAROBINSKI, Jean. "Linguagem poética e linguegem científica". In: Diógenes, Brasília: Ed. UNB, 1984. SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. O narrador,a viagem. São Paulo: Cia das Letras, 1987. _______________. "O escritor como genealogista: a função da literatura e a língua literária no romantismo brasileiro". In: Pizzaro, Ana (org). América Latina: palavra, literatura e cultura. V.2. Campinas: Ed. da Unicamp, 1994. VELHO, Otávio. "O espelho de Morse e outros espelhos". In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.2, n.3, 1989, p.94-101. VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Basil. São Paulo: Ed.Unesp, 1999. WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 1998. WELLEK, Rene. História da crítica moderna. Edusp, 1972. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994 ___________. Meta-História: a imaginação hstórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.

92