Iberografias nº9

140
revista de estudos ibéricos IBERO RAFIAS g Centro de Estudos Ibéricos Número 9 Ano IX 201 3

description

Quando Eduardo Lourenço propôs a constituição do que seria o Centro de Estudos Ibéri- cos, muitos talvez tivessem pensado que estávamos, simplesmente, no início de uma dessas instituições que, à falta de melhor ou mais esclarecedora palavra, designamos por “cultural”. O futuro – o por-vir – encarregou-se de desmentir categoricamente tal hipotético raciocínio. Desmentiu-o, aliás, de modo múltiplos, que importa reavaliar.Na verdade, a proposta e o processo que levou à constituição do CEI são uma tese em ato: enunciam a convicção de que a meio caminho entre as Universidade de Coimbra e de Salamanca, no espaço imemorial de uma altiva solidão, aí, era o lugar justo para que o pensamento da dimensão ibérica não fosse contraditório com o pensamento do futuro – o por-vir – de cada um dos países.Por isso, a instalação do Centro de Estudos Ibéricos na Guarda não pode confundir-se com um voto, uma aspiração, um desejo. Onde, no pensamento de Eduardo Lourenço, a enunciação de “nós como futuro” deve ser lido num plano transhistórico e onde esse “nós” designa uma tensão entre o espaço doméstico e declinações várias do cosmopolitismo, aí foi o princípio do Centro de Estudos Ibéricos.O que é dizer: para o CEI, pensar o pensamento de Eduardo Lourenço é pensar a con- figuração singular de uma aventura planetária, nunca ficar preso na letra de um texto inces- santemente prolongado. Este texto não tem a coerência de um fio que se desdobra mas a vir- tualidade de um labirinto, jardim de caminhos que se bifurcam. Pensá-lo não é um exercício de erudição ou de paráfrase. É pensar (re-pensar) a matéria nele labirinticamente pensada.As Conferências agora iniciadas inscrevem esta vocação: ser um lugar do pensamento múltiplo de Portugal. Sob o pretexto de comemorar o 90o aniversário de Eduardo Lourenço e tendo por referência a visão de Portugal, da Ibéria e da Europa que percorre a sua obra, o CEI promoveu, nos dia 6 e 7 de Junho de 2013, a reflexão que recebeu a designação genérica de “Portugal e o seu destino”. Este número da Revista Iberografias, ao trazer a público as inter- venções apresentadas neste evento, ficará a perpetuar um debate que teve por coordenadas algumas reflexões suscitadas pela profícua obra de Eduardo Lourenço.

Transcript of Iberografias nº9

Page 1: Iberografias nº9

1

revista de estudos ibéricos

IBERO RAFIASgCentro de Estudos Ibéricos

N ú m e r o 9A n o I X2 0 1 3

Page 2: Iberografias nº9

2

coordenação deste número

Rui JacintoVirgílio Bento

Alexandra Isidro

revisão

Alexandra Pinto CunhaAna Margarida Proença

Ana Sofia Martins

capa e concepção gráfica

Via Coloris

paginação

Pedro Bandeira

impressão

Marques & Pereira, Lda. - Guarda

edição

Centro de Estudos IbéricosRua Soeiro Viegas, 86300-758 Guardae-mail: [email protected]: www.cei.pt

ISSN: 1646-2858

Depósito Legal: 231049/05

Novembro 2012

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.

A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.

COORDENAÇÃO DESTE NÚMERO

Rui JacintoAlexandra Isidro

REVISÃO

Alexandra Pinto CunhaAna Margarida Proença

Ana Sofia Martins

CAPA E CONCEPÇÃO GRÁFICA

Via Coloris

PAGINAÇÃO

Marques & Pereira, Lda.

IMPRESSÃO

Marques & Pereira, Lda. - Guarda

EDIÇÃO

Centro de Estudos IbéricosRua Soeiro Viegas, 86300-758 Guarda

[email protected]

ISSN: 1646-2858

Depósito Legal: 231049/05

Dezembro 2013

O Centro de Estudos Ibéricos não adoptou o novo acordo ortográfico, respeitando, contudo, a opçãodos autores. Os conteúdos, forma e opiniões expressos nos textos são exclusiva responsabilidade dos autores.

Page 3: Iberografias nº9

3

Índice

5 Apresentação

7 Eduardo Lourenço: as paisagens matriciais e os tempos de Coimbra

9 Tempos de Coimbra – Eduardo Lourenço

15 Breve percurso em volta de um grande nome – Maria Helena da Rocha Pereira

19 Eduardo Lourenço: Coimbra ou o Tempo do Conhecimento – João Tiago Pedroso de Lima

27 Eduardo Lourenço y el pensamiento de lo glocal – Fernando Rodríguez de la Flor

41 Mia Couto: na outra margem da palavra

43 Quando as palavras voam à procura do mundo – Fernando Paulouro

45 Moçambique: um distante e longínquo olhar – Mia Couto (Textos) e Rui Jacinto (Fotografias)

51 Cega luz ou fonia lúcida? – João Gabriel Silva

52 Mia Couto, la mirada humana y el coraje literario – Daniel Hernández Ruipérez

53 Uma Ibéria mais além – Joaquim Carlos Dias Valente

54 Mia Couto e os seus mundos – Jorge Sampaio

56 Mia Couto ou o falinventar da língua – Guilherme d’Oliveira Martins

57 A grandeza de Mia Couto – Urbano Tavares Rodrigues

58 Mia Couto, Assaltante de Fronteiras – Lídia Jorge

59 …um vasto mundo de homens e mulheres – Zeferino Coelho

60 O encontro de Mia Couto com Eduardo Lourenço – António Valdemar

61 Raíces y universalidade – Antonio Colinas

63 Inventar palavras no falar fraterno – Germano Almeida

64 “Miar a vida…” – Ondjaki

65 Testemunho breve – José Eduardo Agualusa

66 Escritor-Biólogo, Biólogo-Escritor – Arnaldo Saraiva

68 O forjador de palavras e a humana Babel – Maria Antonieta Garcia

69 Elogio do mito e da lenda – José Manuel Trigo Mota da Romana

71 Mia Couto, poeta lusitano – Alfredo Pérez Alencart

73 O lugar da fala – Paulo Archer

74 As janelas que Abril abriu: uma vista para Moçambique e para o mundo – Cristina Costa Vieira

75 Mia Couto, uma “Bola de Neve” e a Guarda – António José Dias de Almeida

5 Apresentação - Rui Jacinto

Portugal e o seu Destino

9 Eduardo Lourenço: Interrogar o Nosso Destino - Guilherme d’Oliveira Martins

13 Eduardo Lourenço – O que nos ensina a pensar acima das nossas possibilidades - Fernando Paulouro

17 Ícaro e a Miragem Comunitária: A Moldura Conceptual - Roberto Vecchi

23 Europa Sonâmbula – Visões de Ícaro e as Miragens Comunitárias - Margarida Calafate Ribeiro

31 Bloqueios Estruturais de Longa Duração: O Caso do Teatro - Mário Vieira de Carvalho

39 Um homem privado, sem recado nem mandato - Maria Filomena Molder

53 Eduardo Lourenço: Poesia e Testemunho - Carlos Mendes de Sousa

59 Entre Som e Imagem: Eduardo Lourenço ao Espelho - Barbara Aniello

63 Para uma Metafísica da Revolução: Reflexões Sobre Tempo e Poesia - Teresa Filipe

67 São Pedro de Rio Seco, Infância e Inscrição Religiosa: O Dieu Caché de Eduardo Lourenço - Aproximações Pascalianas - Maria Dulce Tavares Martinho

79 O Labirinto das Ideias Sobre o Euro - Pedro Lains

85 E Agora? Condições Institucionais e Políticas com Futuro - Pedro Adão e Silva

89 O Tédio no Livro do Desassossego - Em Homenagem a Eduardo Lourenço - José Gil

95 Fernando Pessoa e o Livro do Desassossego - Eduardo Lourenço

Prémio Eduardo Lourenço [IX edição 2013]

101 Galeria de Premiados

105 Joaquim Valente

107 Joaquim Ramos de Carvalho

108 Noemí Domínguez García

109 Eduardo Lourenço

111 José Barreto

115 Jerónimo Pizarro

CEI Atividades 2013

121 I. Ensino e Formação

129 II. Investigação

131 III. Eventos e Iniciativas de Cooperação

138 IV. Edições

Page 4: Iberografias nº9

4

Page 5: Iberografias nº9

5

Apresentação

Quando Eduardo Lourenço propôs a constituição do que seria o Centro de Estudos Ibéri-cos, muitos talvez tivessem pensado que estávamos, simplesmente, no início de uma dessas instituições que, à falta de melhor ou mais esclarecedora palavra, designamos por “cultural”. O futuro – o por-vir – encarregou-se de desmentir categoricamente tal hipotético raciocínio. Desmentiu-o, aliás, de modo múltiplos, que importa reavaliar.

Na verdade, a proposta e o processo que levou à constituição do CEI são uma tese em ato: enunciam a convicção de que a meio caminho entre as Universidade de Coimbra e de Salamanca, no espaço imemorial de uma altiva solidão, aí, era o lugar justo para que o pensamento da dimensão ibérica não fosse contraditório com o pensamento do futuro – o por-vir – de cada um dos países.

Por isso, a instalação do Centro de Estudos Ibéricos na Guarda não pode confundir-se com um voto, uma aspiração, um desejo. Onde, no pensamento de Eduardo Lourenço, a enunciação de “nós como futuro” deve ser lido num plano transhistórico e onde esse “nós” designa uma tensão entre o espaço doméstico e declinações várias do cosmopolitismo, aí foi o princípio do Centro de Estudos Ibéricos.

O que é dizer: para o CEI, pensar o pensamento de Eduardo Lourenço é pensar a con-figuração singular de uma aventura planetária, nunca ficar preso na letra de um texto inces-santemente prolongado. Este texto não tem a coerência de um fio que se desdobra mas a vir-tualidade de um labirinto, jardim de caminhos que se bifurcam. Pensá-lo não é um exercício de erudição ou de paráfrase. É pensar (re-pensar) a matéria nele labirinticamente pensada.

As Conferências agora iniciadas inscrevem esta vocação: ser um lugar do pensamento múltiplo de Portugal. Sob o pretexto de comemorar o 90º aniversário de Eduardo Lourenço e tendo por referência a visão de Portugal, da Ibéria e da Europa que percorre a sua obra, o CEI promoveu, nos dia 6 e 7 de Junho de 2013, a reflexão que recebeu a designação genérica de “Portugal e o seu destino”. Este número da Revista Iberografias, ao trazer a público as inter-venções apresentadas neste evento, ficará a perpetuar um debate que teve por coordenadas algumas reflexões suscitadas pela profícua obra de Eduardo Lourenço.

Page 6: Iberografias nº9

6

Page 7: Iberografias nº9

7

Portugal e o seu Destino

Page 8: Iberografias nº9

8

Page 9: Iberografias nº9

9

Eduardo Lourenço: interrogar o nosso destinoGuilherme d’Oliveira MartinsPresidente do Centro Nacional de Cultura

Se há pensador português contemporâneo que pratica o sentido crítico plenamente, ele é Eduardo Lourenço, empenhado (neste belo tempo de aniversário) em libertar-se da consideração de «mito cultural», que, relativamente a uma geração anterior, entendeu criticamente ter sido assumida por António Sérgio. Ao interrogar permanentemente a identidade portuguesa, fê-lo como genial criador da língua e da literatura, articulando a intuição poética e a manipulação experimentada e hábil dos mitos, que o ensaísta usou como reveladores dos grandes enigmas de uma nação antiga que teima em persistir e em lutar, contra todas as lógicas e evidências. E assim seguiu as pisadas de Joaquim de Carvalho e de Sílvio Lima por sendas diferentes. «Na aparência, o país que (…) podia justificar um livro como “O Labirinto” já não existe» – disse-o o ensaísta na reedição do ano 2000 da sua mais falada obra. E afirmava ainda, que no tempo decorrido, «não mudámos apenas de estatuto histórico-político, de civilização e de ritos sociais que julgávamos, lamentando-o, característicos de uma sociedade quase marginal em relação aos padrões europeus. Mudámos literalmente falando, e sem quase nos darmos conta disso, de mundo. Mudámos porque o mundo conheceu uma metamorfose sem precedentes, não apenas exterior, mas de fundo». Passámos a viver noutro planeta, caiu o muro de Berlim, deixámos de ser «potencial ou imaginariamente» senhores dos nossos destinos, houve uma «avassaladora dissolução das entidades clássicas a que chamávamos nações», sobrevieram «microidentidades virulentas ou superidentidades simbólicas». E sofremos «o fim da civilização europeia sob paradigma cristão e iluminista, se é lícito associar estas duas matrizes da milenária e agora defunta Europa». Mas onde estamos? Quem somos? «Como todo o Ocidente, tornámo-nos “todo o mundo e ninguém”. A nossa visceral “hiperidentidade” nada tem de irónica, tal como era descrito no “Labirinto”. Somos, sim, quem sempre quisemos ser. E todavia, não estando já em África, nem na Europa, onde nunca seremos o que sonhámos, emigrámos todos, coletivamente, para Timor». E, por momentos, então, parecemos regressar ao centro do mundo Mas o certo é que essa ilusão momentânea, enquadrável na ciclotimia nacional, depressa deu lugar à depressão das crises que se foram instalando, ao cairmos em nós, depois do chuveiro de euros, como tinha acontecido no século XIX com as libras do Sr. Fontes.

Em vários momentos, Eduardo Lourenço explicou-nos que o ensaísmo que praticou e pratica nunca foi feito por ele próprio para recuperar o país, que verdadeiramente nunca perdeu (sendo ele, afinal, um ausente presente), mas para o «pensar», com paixão e san-gue-frio intelectual, lembrando o tempo antigo da «felicidade melancólica» do tempo em que era um «prisioneiro de alma». E aí está a extraordinária originalidade do discípulo de Montaigne e de Kierkegaard – ele, que quis pensar-se em simultâneo como universo pessoal em ligação com o universo mitológico da pátria – ilustrando plenamente o verso de O’Neill, «Portugal, questão que tenho comigo mesmo». Assim se entende a sua visão dos mitos, na

Page 10: Iberografias nº9

10

linhagem de Antero e de Oliveira Martins – não como mitos da pura alienação, mas como mitos enquanto ideias projetadas no devir por um povo que toma consciência de si. Aliás, hoje, deve ler-se «O Labirinto da Saudade», a partir do magistral texto publicado na revista «Raiz e Utopia», prosseguindo com a luminosa análise de «Portugal como Destino». Os mitos e os contra-mitos são vistos como auto-representações críticas, irónicas, motivadoras, ilusórias, entusiastas ou redutoras – mas sempre como pistas para explicação ou para o conhecimento. E o ensaísta sabe, e di-lo com clareza meridiana, que não há uma mitologia nacional, mas mitos na história, que circulam e são sinais de permanência e de metamorfose. Daí que o escritor recorra aos poetas do seu santuário – Camões, Antero e Pessoa – para melhor avaliar o sentido das mitologias, compreendendo, pela reflexão e pelo pensamento, quais projetam esperança no futuro (no sentido da «maravilhosa imperfeição») e quais são provas póstumas e sinais de decaimento, como no sebastianismo. Nesse ponto, Vieira é um companheiro também presente nessa apaixonante busca de palavra e utopia

Lembremo-nos do que escreveu Eduardo Lourenço em «Nós e a Europa – Ou as Duas Razões»: «Povo com larga memória espontânea e cultivada de si mesmo, nação com definição política, territorial e cultural de muitos séculos, Portugal não parece exemplo particularmente interessante dos fenómenos, hoje tão angustiosos para outros povos, comunidades ou continentes inteiros, de “crise de identidade”. Nós pensamos saber quem somos, por ter sido largamente quem fomos, e pensamos que nada ameaça a coesão e a consistência da realidade que constituímos». Daí a «hiperidentidade» detetada pelo escritor, centrada numa «quase mórbida fixação na contemplação e no gozo da “diferença” que nos caracteriza». As fragilidades ligam-se ao fazer das fraquezas forças. E vem à lembrança a analogia com o povo judaico, com uma diferença: Portugal não espera o Messias, o Messias é o seu próprio passado, convertido na mais consistente e obsessiva referência do seu presente, podendo substituir-se-lhe nos momentos de maior dúvida sobre si ou constituindo até o horizonte mítico do seu futuro». Não por acaso, Eduardo Lourenço descobre em Fernando Pessoa, muito para além do que alguns quiseram ver na «Mensagem», a essência da multiplicação e a capacidade de ver de dentro e de fora, abarcando o mito na sua heterogeneidade: «a poucas nações se aplicaria tão bem, como a Portugal, a imagem do navio-nação e melhor ainda a de “nação-navio”, pela identidade de destino e o projeto que encarnou, deslocando-se no espaço e no tempo, mas tão sempre a mesma na diferença apenas apreciável que a História vai constituindo». E há ainda o paradoxo, que não pode ser esquecido, de uma sublime vocação de não-identidade dos portugueses («aptos a ser tudo e todos», caso em que «não seríamos ninguém»). Veja-se, aliás, a atual crise e o certo regresso a questões de sobrevivência. De novo a imagem da «nação-navio» faz sentido, ao lado da metáfora do cais de partida e de chegada. E Eduardo Lourenço ainda acredita na lógica cosmopolita, do universalismo autêntico (agora relembrado, pela reedição de «A Chave dos Profetas» do Padre Vieira), capaz de fazer «ressuscitar, como Novalis o sonhou, uma outra-Europa, onde não triunfem apenas instâncias obscuras, sem outra ideologia que a da gestão do “ouro do Reno” wagneriano, convertido em deus do coração humano. Sem a música do génio para redimir tão sinistros atores do nosso destino coletivo. Sempre era uma consolação» (Público, 24.11.2012). Vamos, apesar de tudo, conhecendo-nos melhor, e pondo a vontade no lugar próprio, em vez do fatalismo.

O pensamento de Eduardo Lourenço sobre a Europa exige uma atenção muito especial. Por isso, permito-me destacar, à guisa de conclusão, que, para o ensaísta, o problema não é haver Europa, mas haver Europa a mais. Cada nação europeia é, no seu género, uma Europa, uma maneira própria de ser Europa. Daí o risco de fragmentação. O modelo imediatista americano está implícito no comportamento planetário que conhecemos. A América está em toda a parte, está metida em tudo, de Clint Eastwood a Indiana Jones. Isso condiciona-nos. E a verdade é que, para Eduardo Lourenço, entrados numa casa rica não adivinhávamos que a Europa, alguns anos depois, iria sofrer este abanão terrível. E ficámos de novo a olhar para nós mesmos. E regressou a lembrança histórica. Recordámos ter começado a existir quando

Portugal e o seu Destino

Page 11: Iberografias nº9

11

chegámos ao Oriente. Saímos para o mar à procura de qualquer coisa que fosse melhor do que ficar neste jardim à beira-mar plantado. O certo é que fomos sempre querendo ser outros, mas esta fuga agora é impossível. Não podemos esperar os milagres que não acontecem – «transfigurar os alcáceres quibires reais em aljubarrotas fictícias». E, hoje, não há liderança europeia digna desse nome. A Europa tornou-se um museu de si mesma – é a metáfora do passo suspenso da cegonha, num momento crepuscular (cf. Entrevista, Público, 19.5.2013). E, assim, estamos a fazer uma depressão, constituindo o maior museu do mundo ao ar livre. É uma Europa que não se encontra e que vive numa mitologia. Delors fala de três choques: o das soberanias, o da mundialização e o dos erros cometidos. E cabe interrogar: Onde está a literatura? A narrativa? A esperança?

Guilherme d’Oliveira Martins

Page 12: Iberografias nº9

12

Page 13: Iberografias nº9

13

Eduardo LourençoO que nos ensina a pensar acimadas nossas possibilidades...Fernando PaulouroJornalista e Escritor

Quando os filósofos (Eduardo Lourenço, quando o colocam, e bem, nessa categoria, gosta mais que se diga os ensaístas) autonomizam o seu pensamento em relação à realidade sobre a qual mergulham o seu pensamento, dão sempre um contributo assinalável para nós percebermos o chão que pisamos e o tempo histórico que nos coube em sorte. Com Eduar-do Lourenço, essa aventura de construirmos uma ideia real do país que somos é, em grande parte, a soma das suas leituras, quando fala da pátria global na sua dimensão planetária e mítica, com os seus labirintos da saudade, ou quando se detém na atenção ao microcosmos primordial de S. Pedro de Rio Sêco ou duma Beira que “foi o Portugal profundo, o Portugal do arado, da cruz e da espada confundidas como era lei do tempo, terra e gente em luta com uma natureza avara, ganhando com suor e sangue o que ninguém lhe dava de graça…” E também quando refere os horizontes abertos pela liberdade, as mudanças de modernidade e desenvolvimento na sociedade portuguesa materializadas na sua articulação com a Europa.

Em Junho do ano passado, nas comemorações dos seus 90 anos, fui à Guarda dar um abraço a Eduardo Lourenço e participar na conferência comemorativa realizada à volta da sua figura e da sua obra, com o tema genértico: “Portugal e o seu destino”. Na circunstância da festa, quis deixar um abraço de palavras ao Mestre, e publiquei nesse dia, no semanário “O Interior” o seguinte texto:

No momento em que o Centro de Estudos Ibéricos assinala os 90 anos do seu patrono, com uma jornada de pensamento à volta da vida e da obra do autor de O Labirinto da Sau-dade, nós só podemos erguer os corações ao alto e, como quem paga um tributo colectivo de gratidão, dizermos ao Mestre: “Parabéns, Eduardo Lourenço! Bem-haja!”

Ninguém como ele, na história da cultura portuguesa, partilhou connosco tão larga e funda aventura de pensar, numa pedagogia persistente em louvor do homem e da aventura criadora, emprestando sempre uma dimensão universal às palavras e às coisas da sua cos-movisão, mesmo quando o objecto da sua atenção se prende com a realidade próxima, seja do pequeno mundo rural de S. Pedro de Rio Seco, o seu locus nascendi, seja da sociedade portuguesa no seu sono temporal de séculos.

É que Eduardo Lourenço, cidadão do mundo, é aquele que sabe explicar as coisas, numa relação arterial em que particular e geral se combinam, afugentando sempre para longe a portuguesa propensão de olhar a realidade com olhos de provinciano paroquialismo, com suas guerras de “alecrim e manjerona”, os seus tiques de cátedras bafientas, as suas invejas de maus pagadores. As suas polémicas foram sempre outras, pensamento autónomo dentro

Page 14: Iberografias nº9

14Portugal e o seu Destino

das questões, crítica aos dogmatismos, elogio da heterodoxia. E sempre, mesmo quando os continentes do saber e da política eram outros, Portugal como questão.

As suas geografias do conhecimento, tão próximas do Brasil, como da França, da Itália ou da Alemanha, o seu distanciamento crítico da “nesga de terra debruada de mar” originária, os seus contactos culturais, o seu coração intimamente europeu, fizeram dele um pensador planetário, como alguém, recentemente dizia, a propósito de Edgar Morin.

A natureza do seu pensamento tem, de facto, essa dimensão global. Explicando-se, na filosofia profunda ou no ensaísmo imediato sobre a actualidade, numa viagem que, à seme-lhança de Elliot, contém sempre o passado e o presente para abrir caminhos fecundos de futuro, nunca fez outra coisa senão explicar-nos a nós próprios, como povo, desmontando a sua mitologia e os seus traumas, os seus sonhos de grandeza imperial ou os seus dramas de pobre gente embarcada na história trágico-terrestre da emigração pelo mundo.

O que nós aprendemos com ele, na leitura dos seus textos! A literatura e a cultura que nós fomos, todos, guiados pela sua mão, nas páginas luminosas que escreveu!

A todas essas circunstâncias, que definem Eduardo Lourenço como pensador e escritor, há que somar uma outra que tem a ver com a fidelidade à terra mater e à sua região de ori-gem, a Beira Interior. No planalto agreste, a dois passos da fronteira, de agro escasso e muitas pedras, onde os fios de água são sulcos da sede na estiagem, em S.Pedro de Rio Seco, com a sua topografia de aldeia quase fora do mapa e a torre da igreja ainda a sobressair da pequena unidade urbana, Eduardo Lourenço tem a raiz e a seiva dos afectos, o universo mítico do seu “Paris-Texas”, como um dia escreveu.

No universo das suas navegações de memória, a Guarda é um território afectivo especial e não faltam sinais desse “(e)terno olhar” de Eduardo Lourenço sobre a cidade que ele ima-ginou um dia, no recorte austero da Catedral, como um “navio de pedra” arpoado numa espécie de montanha mágica, ou em páginas belíssimas, às vezes de sentido auto-biográfico, em que evoca uma Guarda espectral, com a transparência branca da neve, quando, como ele diz desse tempo da infância e adolescência, “da verdadeira Guarda só me eram familiares o frio, a neve, o nevoeiro, o vento imemorial, o céu varrido, a aparência sideral”.

O nosso Eduardo Lourenço – nosso, da Beira – que tanto nos tem dado, com o seu génio criador, com a sua aventura de pensar, bem merece estes dias de festa do pensamento e da cultura, à volta do seu nome e da sua obra, na cidade que ele ama e ajudou a projectar no futuro.

E, no dia seguinte (7 de Junho), anotei no meu diário:

Pensar acima das nossas possibilidades

Uma das coisas que aprendemos com Eduardo Lourenço é pensarmos sempre “acima das nossas possibilidades”, para utilizar a magnífica expressão de Manuel Rivas. É esse o grande desafio das suas obras. Numa página sua se abre o caminho ao pensamento, des-cobrindo coisas novas, estimulando ideias, articulando a relação entre as coisas, cavando fundo, como Sábato, à procura de tesouros do conhecimento. Ao longo de dois dias, foi esse o “milagre” da Guarda, num universo que juntou gente de primeiríssima qualidade. E tudo, a culminar na entrega do Prémio Eduardo Lourenço a Jerónimo Pizarro, colombiano que tem também a nacionalidade portuguesa, especialista de Fernando Pessoa e Professor em Bogotá, da cátedra Camões.

No final do debate “Portugal e o seu labirinto”, o último painel, José Carlos de Vascon-celos avisou que havia uma surpresa para Eduardo Lourenço. Como naquelas situações de arte mágica, surgiu de trás de um cartaz um busto de Eduardo Lourenço, feito por Aureliano Lima, nos seus tempos de Coimbra. É uma escultura de um Eduardo Lourenço, jovem. Foi o

Page 15: Iberografias nº9

15Fernando Paulouro

irmão Adriano, sempre presente, que explicou: “Eu sabia do busto, lembrava-me dele, mas tinha desaparecido. Fiz as minhas investigações e fui descobri-lo em S. Pedro, debaixo de uma cama, com o nariz partido, e que depois foi consertado. E aqui está!”

Eduardo Lourenço abriu os olhos de espanto por aquela surpreendente aparição. E con-tou: “Quando apareci em casa, com o busto que o Aureliano Lima me ofereceu, levava-o nos braços, a minha tia deu dois passos para trás, como se estivesse a ver a morte. Era como se fosse a estátua do comendador!”

Uma das coisas notáveis que tem afirmado o Centro de Estudos Ibéricos é o seu catálogo de edições. Penso não haver melhor materialização, pela memória que fica e pela projecção cultural que define no campo editorial, para a ideia que, por altura dos 800 anos da Cidade da Guarda (“Oito Séculos de Altiva Solidão”), Eduardo Lourenço se lembrou de inventar: um Centro de Estudos Ibéricos.

Page 16: Iberografias nº9

16

Page 17: Iberografias nº9

17

Ícaro e a Miragem Comunitária: a Moldura conceptualRoberto VecchiCátedra Eduardo Lourenço - Universitá di Bologna

A nau de Ícaro combina um plano de leitura duplo que, como acontece habitualmente na escrita de Eduardo Lourenço, se esclarece pela luz do fragmento, criando relações impensadas e inovadoras entre as partes. O livro, como o ensaio, é um território com uma soberania (autorial) própria. De fato, ao lado da reflexão continuada sobre Portugal, sobre a emigração no ensaio epónimo, inscreve-se uma secção extraordinária dedicada à “Lusofonia”, tanto do ponto de vista da disseminação da língua portuguesa e das miragens comunitárias implicadas, como das culturas e literaturas que se expressam em línguas próximas do português: “imagem e miragem da Lusofonia”.

Uma questão crucial é sempre o que torna a combinação de fragmentos na unidade orgânica do livro. Como se houvesse um centro profundo e irradiador que, ainda que me-nos aparente, conjuga as partes num todo substancial. É portanto necessária uma busca indiciária que se articula não só por elos temáticos – o que é natural e evidente – mas, de modo mais subtil encontre o dispositivo fulcral que preside à combinação escolhida.

No caso de A nau de Ícaro não se trata só do eixo cultura e língua que também existe e atua. A coesão não é só de natureza temática mas decorre de uma imagem, uma iluminação profunda. Que se pode resgatar através de rastos linguísticos disseminados por todo o texto. Neste caso, a nosso ver, alguma recorrência lexical é emblemática: por exemplo no ensaio, já da segunda secção, intitulado “O novo espaço lusófono ou os imaginários lusófonos”, emerge uma série lexical baseada no adjetivo “comum”, ou no nome “comunhão” e se conclui, com força aforística, com esta sentença: “É no espaço cultural, não só empírico mas intrinsecamente plural, que os novos imaginários definem que um qualquer sonho de comunidade e proximidade se cumprirá ou não (…) É bom estar na casa dos outros como na nossa. É melhor que os outros estejam em nossa casa como na sua. Mas isso nem se pede, nem se sugere. Esperemos que nos encontremos em qualquer coisa como a antiga casa miticamente comum por ser de todos e de ninguém” (Lourenço, 199: 192).

Dentro da discussão sobre a “Lusofonia” portanto, surge o eixo que vai fantasmatica-mente (re)estruturar as outras leituras e se encontra no interesse focalizado para o “comum” e o “comunitário”.

É enorme a lição que decorre da prática magistral de como se constrói, semântica e morfologicamente, o ensaio. Diria muito mais: a lição decorre sobretudo das relações que se instauram entre os vários fragmentos e produzem o “livro”.

Lourenço inscreve o próprio pensamento num dos grandes debates contemporâneos, no horizonte que surge a partir das intuições seminais de Bataille, para criticar as imanên-cias comunitárias e o essencialismo das identidades – isto é, a “obra” que a comunidade produziria – que está marcado pela experiência histórica do século XX.

Page 18: Iberografias nº9

18

O “ser-em-comum” é assim discutido, pelo estudo de caso com amplas ressonâncias da “Lusofonia”, não tanto ou não só a partir de uma sua óbvia revisão fora das imanências das suas trágicas execuções históricas no século passado. Mas sobretudo tentando assumir a ideia tangencial, que permita repensar o que sintetizaria como o “impróprio que acontece” que é a ideia do comum, dentro porém de uma paisagem de rearme e não desarme histórico perante o mundo, como podia acontecer na década de 80.

Esta ideia-imagem implicada pelo tema é a de força, da força diríamos no comum. Uma força que se procura pensar, em parte tendo como ponto de fuga o pensamento divergente de Derrida do seminário sobre a soberania, como uma ideia de “força sem poder” (Regazzoni, 2012: 22)1.

Lourenço introduz esta dimensão teórica, num percurso que é ao mesmo tempo dentro e fora do debate contemporâneo sobre o assunto, abordando como caso uma comunidade das mais complexas para o nosso âmbito de estudos que coagula multíplices problemas a serem pensados, num limiar que é sempre e de qualquer modo político: a assim chamada “Comunidade dos Países de língua oficial portuguesa” (CPLP) que subentende a vexata quaestio da – entre aspas – “Lusofonia”. Que para os estudos pós-coloniais que tentam situar-se no espaço da língua portuguesa, junto com outras constelações conceituais complexas, constitui um efetivo desafio crítico, devido à densidade dos problemas que a comunidade pós-imperial arrasta, sobretudo reproduzindo as sombras nunca inteiramente iluminadas dos escombros imperiais. Daí o risco de um eterno retorno do fantasma. Serão, estes, legados duvidosos, escorregadios, da herança intangível que a disseminação de Portugal proporcionou? Ruínas ou escombros, despojos ou fantasmas, relíquias ou restos do que foi a dispersão de Portugal pelas sete partidas do mundo.

Neste contexto, uma proximidade fértil é oferecida por uma outra categoria que interseta parte dos problemas e da reflexão sobre a comunidade que é a de património. Há uma relação visível entre comunidade e património. Poder-se-ia dizer que o património enquanto memorial cultural proporciona narrativas com que a comunidade se pode imaginar, também a partir do essencialismo de uma obra. É oportuno observar também que património e comunidade possuem de imediato um vínculo – ainda antes do teórico ou lógico – etimológico que os une. De fato, património tem como sufixo, ao lado de “pater”, o termo “munus”, termo ambivalente, mas sobretudo eixo conceitual relevante na reflexão sobre o comunitário. “Munus” é termo que compõe a palavra communitas (abstrato do adjetivo communis) ou seja, um dom ou uma doação que obriga a uma troca, a uma relação (constituindo e implicando sempre a immunitas que é seu contrário negativo, o não ter nada em comum, o imunitário cfr. Esposito, 1998: XXI). A partir deste elemento “em comum” da reciprocidade que relaciona património e comunidade, gostaria de repensar minimalisticamente, por subtração, na imagem de Eduardo Lourenço da “Lusofonia” que contribui para uma discussão mais ampla sobre a comunidade, conectando língua, relações de poder, rearticulação da hegemonia como elo essencial do ser em comum, do círculo da comunidade.

Há um risco com certeza que investe a “Lusofonia”, como o que resta do passado universalista, assumindo acriticamente a noção de património, que é o de endossar – mes-mo não querendo – através dela o dispositivo do luso-tropicalismo porque de imediato

1 Derrida elabora um pensamento político (no contexto das ameaças e das catástrofes do começo do milénio) estruturado por volta da ideia de uma força débil ou uma força da debilidade, ou seja, sem poder mas não por isso desprovida de força. O filósofo franco-argelino aproveita para a redefinição dessa ideia chave uma famosa tese sobre o conceito de história de Walter Benjamin, a segunda, de acordo com a qual “a nós, como a cada geração que foi antes de nós, foi entregue uma débil força messiânica (“eine schwache messianische Kraft”), a que o passado tem direito. Este direito não se elude” (Benjamin, 1997: 23)

Portugal e o seu Destino

Page 19: Iberografias nº9

19

à “Lusofonia” atribuímos, a priori, um valor positivo sem pensar no processo histórico que os produziu. O exercício de repensar a relação que une a “Lusofonia” à experiência histórica atlântica é referindo-a a um necessário exercício tradutório, entendendo aqui a tradução, de modo genérico, como uma prática de produção e de transformação baseadas em perdas e restos. Talvez por isso possamos já pensar o que resta do colonialismo, de modo crítico e não epidérmico, nas agregações da “Lusofonia”.

Pode-se repensar a “Lusofonia” como “relíquia” do Império “que se desfez”, como algo que escoa mas em cujas perdas há também permanências? Sim, se assumirmos, por paradoxo, o “abandono” associado à ideia de relíquia e combinado com uma visão de “força” da “comunidade imaginada” e representada, que encobre a racha fundadora – denegada e recalcada – da “Lusofonia”, a comunidade imaginada de um Império largamente imaginário e mítico.

Além da relação, o que está em jogo, é uma ideia, real – a do colonialismo – ou simbólica – do colonialismo ou do que se seguiu depois – justamente de força.

A força, no nosso caso, contribui para repensar o conceito em discussão – da “Lusofonia” – se a assumirmos com um signo negativo, como subtração, perda, esvaziamento da força. É evidente que a força semantiza os dois objetos que discutimos, língua e império, de uma posição de força – potencial ou atual – a “Lusofonia” fragmenta, hierarquiza, sobretudo evoca (ou melhor seria dizer “cita”) passados complexos, no jogo justamente de força imperial ou ultramarina.

Sobre a “incompletude” ou a “imperfeição” do conjunto comunitário construído e remontado, no contexto pós 74, há um fragmento de Eduardo Lourenço que quero citar e que constitui a base efetiva destas considerações. É extrapolado dum ensaio chave para a questão da “Lusofonia” sempre de A nau de Ícaro) e oferece como sempre, através de alguns ensaios, material seminal e abundante de reflexão crítica a desenvolver:

O que imaginamos outrora como esfera, o que hoje sonhamos como espaço de familiaridade não apenas linguística mas cultural, só na nossa perspectiva tem essa figura ideal da perfeição. Hoje o que importa pensar é o discurso da sua imperfeição, o projecto de uma comunidade não só a construir, mas a desenvolver-se e, antes de tudo, na medida em que isso interesse aos que connosco partilham o uso da língua portuguesa, a defender. Uma língua não é uma realidade com futuro, nem sequer presente, por direito divino. É um ser espiritual vivo, intrinsecamente mortal, no meio de outras línguas, expressão de históricas vontades de poderio, de sedução, de afirmações identitárias em estado de guerra cultural. Não podemos ocupar nessa guerra que assinala para cada povo e cultura os limites ou o perfil da sua identidade o lugar de ninguém. Mas também ninguém se pode substituir a nós. Estamos nós à altura de ocupar o nosso? E com que fim aberto ou confessado? Inventámos a lusofonia – notemos que entre os grandes povos colonizadores só nós e os Franceses criámos oficialmente um vasto espaço linguístico – para, simbolicamente e inconscientemente, habitarmos aqueles espaços imperiais, mais de sonho do que de realidade, e que por isso mesmo nunca poderemos considerar perdidos? (Lourenço, 1999: 180)

A citação é, a meu ver, significativa, porque, dentro da enorme acumulação que ainda alimenta a discussão sobre a “Lusofonia”, Lourenço vira completamente às avessas o tema e mostra como atrás está o problema da força, da produção de uma obra identitária que fantasmaticamente continua a subsistir atrás do manto diáfano da reformulação comunitá-ria produzido pela explosão fraturante, o estilhaçamento da experiência ultramarina. Aliás é à comunidade, com destino virtual (Ibid. 172) e miticamente (Ibid. 183) comunitário a que Lourenço se refere falando de “Lusofonia”.

Mas como pode ser pensada de maneira política sim, mas débil, fraca – frágil, diria – o conjunto comunitário erguido pelo recurso sistemático, ainda que às vezes retoricamente

Roberto Vecchi

Page 20: Iberografias nº9

20

disfarçado, à violência identitária e epistémica com que se articulou a história imperial de Portugal? Como reconfigurar a ideia de comunidade a cujo retorno assistimos em plena globalização, um retorno não obsoleto ou anacrónico mas motivado pelo medo perante as ameaças de perdas identitárias ou melhor de esvaziamento de potencialidades de consumo?

Uma resposta “teórica” coerente com aquela aqui esboçada poderia decorrer dos últimos trabalhos de Derrida, sobretudo quando, no último seminário de 2001-2003 (La bête et le souverain) ou em obras como Voyous (2003) se propõe desconstruir não tanto o paradigma da soberania, mas bem mais a desconstrução da biopolítica pela discussão da soberania. Isto leva-o a pensar justamente na dynamis como limites de força e de poder (Derrida, 2003 :195), que se pode expressar como uma “força débil”, “vulnerável” e “ sem poder” que ultrapassa a autoridade que de modo convencional se estabelece do que se pode sintetizar como “performativo” (Ibid.: 14)

No denso debate contemporâneo (Nancy, Blanchot, Agamben, Esposito) que desenvolve algumas poderosas ideias de Bataille, um eixo essencial é constituído pelo reconhecimento histórico da falência de alguns modelos comunitários, totalitários e imanentes, que enquanto edifícios ideais não resistiram à prova de suas construções históricas no século dos extremos. Em meados da década de 80, Jean-Luc Nancy no famoso La communauté désœuvrée realiza uma outra seminal revisão do conceito de comunidade: a comunidade não é o que a sociedade perdeu ou quebrou, o fantasma da comunidade perdida, mas é o que nos acontece, a partir da sociedade e o que se perde – a imanência de uma comunhão – é a perda constitutiva da própria comunidade (Nancy: 1992: 37). Reconfigurada assim, ela converte o essencialismo do “ser comum” para a condição ontológica do “ser-em-comum”, onde a finitude do ser singular se expõe e ela pode acontecer – “ter lugar” – como comunicação da comunidade, ao mesmo tempo e quiasmicamente “como o que comunica na comunidade e o que a comunidade comunica” (ibid: 50).

A diferença desta rearticulação crítica reside no caráter permanentemente incompleto, não homogéneo, dinâmico e sujeito a constantes transformações, da ideia de comunidade; ela portanto não encontra o seu princípio na construção, mas na incompletude, uma comunidade estruturada na falta, portanto désœuvrée, inoperante, sem obra. Como o caráter que Lourenço reconhece aos complexos desdobramentos do que foi o Império e que, por inspiração do modelo da francofonia “que apoia no entanto sobre outro modelo de império e, acrescentaria, de guerra colonial- chamamos de “Lusofonia” com as suas articulações institucionais (CPLP, PALOPs etc) e com o seu pendor suposta e precocemente “multicultural” mas monolinguístico (sem reconhecer a homogloxia, por assim dizer com um neologismo, do que foi a diáspora, a deriva, a dispersão da língua portuguesa).

As consequências desta revisão da comunidade como articulação contínua de singu-laridades, são multíplices no plano teórico, porque induzem a pensar uma “comunidade sem comunidade”, como um “porvir”, que sempre vem, incessantemente, dentro de toda a colectividade.

Esta reconstrução oferece uma via prática para reler conjuntos comunitários complexos – excecionais – como a “Lusofonia”. Uma rede portanto que não se reproduz como tal, mas que subsiste só em função da relação de uma singularidade com outras singularidades, de uma insuficiência com outras insuficiências. E incompletudes. É isso que os põe “em-comum”, mostrando uma comunidade que vem, como um “ser singular plural” (Nancy, 2001: 43) ou uma “singularidade qualquer” (Agamben, 2001: 67) que não é mediada por um sentido de pertença ou uma identidade homogénea.

No entanto, como se pode perceber, a força é declinada constantemente como potência e não como ato, é como que despotencializada do ponto de vista histórico (enquanto obra) e repotencializada do ponto de vista político. Coerentemente com esta linha, Eduardo Lourenço mostra como repensar as “comunidades” imaginadas a partir do “património”

Portugal e o seu Destino

Page 21: Iberografias nº9

21

da língua (portuguesa) e das culturas, proporcionadas pela trajetória imperial, ao mesmo tempo como imagem dialética, mítica e catastrófica, onde o munus é sempre associado a um apagamento da força que o atravessa. E é interessante notar como o repensar a “comunidade sem a comunidade”, uma comunidade outra subtraída aos riscos de desvio dos fundamentalismos essencialistas das “identidades locais”, abre também para o campo da “literatura”, como se a literatura, ainda que reconfigurada conceitualmente como faz Nancy (como interrupção do mito pela comunidade sem obra), possa ser o lugar político onde dar forma, “figura”, à ideia da comunidade inoperante.

Por isso, o ser-em-comum da “Lusofonia” pode ser o retorno do fantasma mas ao mesmo tempo pode tornar-se o evento, totalmente político, do enterro definitivo do seu cadáver. Uma outra mitologia, conscientemente assumida. Sem necessitar ainda de alguma relíquia para alimentar a imaginação ontológica de uma deriva secular porque, como afirma magistralmente Eduardo Lourenço, a reflexão crítica e cortante sobre a “Lusofonia” como “destino virtualmente comunitário” “é a minha contribuição simbólica para uma co-munidade que um dia venha a ser mais do que um nome” (Lourenço, 1999: 172).

Referências

Agamben, Giorgio (2001). La comunità che viene. Torino: Bollati Boringhieri.

Benjamin, Walter (1997). Sul concetto di storia. Gianfranco Bonola e Michele Ranchetti (orgs.) Torino: Einaudi.

Derrida, Jacques (2003). Stati canaglia. Due saggi sulla ragione. Milano: Cortina.

Esposito, Roberto (1998). Communitas. Origine e destino della comunità. Torino: Einaudi.

Lourenço, Eduardo (1999). A nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia. Lisboa: Gradiva.

Nancy, Jean Luc (1992). La comunità inoperosa. Tr.it Moscati, Antonella. Napoli: Cronopio.

Idem (2001). Essere singolare plurale. Tr.it. Tarizzo Davide. Torino; Einaudi.

Regazzoni, Simone (2012). Derrida. Biopolitica e democrazia. Genova: Il Melangolo.

Roberto Vecchi

Page 22: Iberografias nº9

22

Page 23: Iberografias nº9

23

Europa sonâmbula – visões deÍcaro e as miragens comunitáriasMargarida Calafate RibeiroCentro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha

Para Eduardo Lourenço

os meus muitos parabéns

a minha gratidão

“Construir a Europa por irresistível pressão das forças económicas e uma lógica

hoje planetária, como sonâmbulos, não é projeto que entusiasme ninguém.”

Eduardo Lourenço,

A Europa Desencantada – para uma mitologia europeia

Miragem é um fenómeno ótico que ocorre em dias particularmente luminosos e quentes. Metaforicamente confunde-se com sonho, algo que ambicionamos, utopia talvez. Mas, na verdade, miragem é um desvio do olhar, um excesso de visão, que nos faz ver coisas que na realidade não estão lá, não têm existência. Imaginamos, enfim fundimo-nos numa dissolução ensolarada. Assim talvez hoje o sentido de comunidade, que fundou a Europa pós segunda Guerra Mundial, uma miragem de união de pelo menos duas Europas que, como diz Eduardo Lourenço, em entrevista que concedeu ao jornal Público, “nunca se uniram senão pela desconfiança mútua, alguma ignorância e muito desdém” (Lourenço, 2013: 14-15).

A dissolução por via da guerra e de outras formas de violência, permeia de facto o imaginário ocidental europeu. Basta pensarmos apenas no século XX e o catálogo é denso e extenso: a Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil de Espanha, seguida da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto; a ação colonial praticada pelos Europeus no Sul Global ou, nos modelos centro-europeus ou nórdicos modernos, junto dos povos vizinhos igualmente descritos como selvagens, a necessitar de civilização; as pouco narradas guerras coloniais europeias na Ásia e em África; a aparentemente pacífica e muito celebrada queda do Muro de Berlim, seguido da dissolução de todo o império soviético, com o redesenhar do mapa geopolítico da Europa; os conflitos e a dissolução da ex-Jugoslávia; as ações de guerras sem fim, em que, de forma individual ou colectiva, os europeus participam, em nome da liberdade contra o seu temor historicamente mais íntimo e apavorante: o Islão, nas suas várias declinações, mas passado na televisão sob uma única forma, geradora de um fundamental fear, para usar as palavras do intelectual britânico muçulmano, Bobby Sayyid (2004). Esta enumeração de conflitos, das fraturas, das tensões e violências fundadoras da Europa atual, implica um reconhecimento de que pela sua vocação planetária, grande parte da história europeia ou de países europeus, se passou fora do continente europeu e portanto concentra-se na dimensão expansionista imperial europeia, em particular a de cariz ultramarino.

Page 24: Iberografias nº9

24

Na verdade, quando vista do exterior, esta é a história da pulsão imperialista que define a Europa como o Ocidente, por oposição ao Oriente, ao Islão, a história que estrutura a Europa, lhe dá sentido e a projetou a nível planetário e hoje essa é de facto e ainda a herança que a une (Sloterdijk, 2002), ainda que nem todos tenham sido europeus, neste sentido imperial, da mesma maneira. Mas, internamente falando, esta foi também, como costuma dizer Eduardo Lourenço, a história das Europas com a alternância neste papel de uma ou de outra das suas nações com vocação verdadeiramente universal: Portugal e Espanha pioneiros da primeira modernidade europeia, a França, a Alemanha, a Holanda, a Inglaterra e, num outro sentido, a própria Rússia (Lourenço, 2001). Mas para fora esta foi Europa, no singular, primeiro pela mão dos portugueses e dos reinos ibéricos e depois com muitos outros. Desta forma, e pensando em particular no século XX, como fiz na afirmação inicial, esta perspetiva da história da Europa e a análise dos seus prolongamentos atuais exige a inscrição da violência colonial e religiosa, pública e privada, na história das referidas violências do século XX, enquanto espaços reais das tensões fundadoras da história europeia pós segunda Guerra Mundial e também pós descolonizações, com todas as consequências inerentes a este reestruturante processo histórico a Sul e a Norte. Trata-se, portanto, de uma visão da história que se funda ontologicamente numa geopolítica encoberta e extraterritorial, onde a violência acaba por se legitimar, silenciosamente, em função de um álibi identitário, baseado em narrativas culturalistas.

Europa pós-colonial – heranças a interrogar

A geração que assistiu ao pós Segunda Guerra, que viu a Europa em escombros e que a sonhou como “sonho futuro”, como “manhã por vir, sem fronteiras com cães de guarda, com nações de riso franco abertas de par em par” (Monteiro, 1993: 127), como preconizou Adolfo Casais Monteiro, em 1946, sonhou ainda uma Europa para si. Um mundo em que o tempo europeu continuaria a ser o tempo universal, ainda que já vulnerável à nova hegemonia saída da segunda Guerra Mundial e que iria ser protagonizada pelos Estados Unidos e pela antiga União Soviética, no quadro da Guerra Fria. A crise do Canal de Suez deixaria visível o fim da Europa, e da Inglaterra em particular, como potência mundial, sob o duplo ultimatum das duas superpotências (Lourenço, 2001: 34) e a clara manifestação de uma vontade árabe de não mais ser subalternizada, como definia Nasser, no célebre discurso de Alexandria, de 1956, e que depois da revolução pela independência total do Egito (1952) se condensaria na Guerra da Argélia, para onde convergiu todo o ideário pan--arabista e, portanto, só aparentemente, dirigida e também gerida pela França.

Hoje é-nos de fato possível olhar para o processo da construção europeia – que é simultaneamente o processo da sua reconstrução – como a operação de peace-building de maior sucesso pós Segunda Guerra Mundial, na sua capacidade de transformar uma memória de guerra em futuro de paz; mas a construção da Comunidade Europeia é também a resposta subtil à perda da hegemonia mundial, que não se reduzia apenas ao avanço dos Estados Unidos e da antiga União Soviética na cena mundial, mas à perda de uma hegemonia que tinha sido, durante séculos, efetivamente planetária. Robert Schumann, um dos grandes arquitetos da Europa na sua declaração de 9 de Maio de 1950, fala ainda da missão do continente europeu em África. Neste documento, que é um dos certificados de nascimento da Europa como hoje a conhecemos, ou seja, um dos documentos iniciais da construção europeia, falava-se ainda, a partir de uma perspetiva da Europa colonial, e da sua ação no desenvolvimento em África, como um elemento estruturante da missão europeia.

Os emigrantes que entretanto iam entrando para literalmente reconstruir essa Europa

Portugal e o seu Destino

Page 25: Iberografias nº9

25

em escombros saída da Segunda Guerra Mundial vinham do Sul, das colónias europeias ou de um genérico Sul que a Europa sempre olhou colonialmente, subalternizando. Tal com nas Grandes Guerras e, em particular, na Primeira Guerra Mundial, esses povos colonizados chamados a defender a sua potência imperial nos conflitos europeus, ora nas suas terras, ora vindo para a Europa, foram vendo que afinal os europeus eram de carne e osso como eles e que o seu sangue, que explodia nas trincheiras, corria da mesma cor e com a mesma dor do que o deles em nome da liberdade. Liberdade que começava a ganhar outros sujeitos-em-luta, a tornar-se um ideal também sonhado a Sul. Mas uma parte significativa destas populações que veio para promover a reconstrução europeia não voltou às suas terras, ficou na Europa como emigrante chamou as suas famílias iniciando assim uma das maiores diásporas Sul Norte pós Segunda Guerra Mundial. Acresce a isto no fundo, poucos anos mais tarde, o movimento das descolonizações propriamente dito, que deslocou para a Europa, segmentos significativos de população com vivência colonial, ora como colonos, ora como colonizados.

Mas a Europa saída da aliança franco-alemã e dos textos de Jean Monet e de Robert Schumann nunca contemplou as populações colonizadas a viver na Europa como parte sua, nem contabilizou as que estavam ainda sob o seu jugo político nas colónias, ou seja, nunca as entendeu como sujeitos de uma mesma história. Na época, tudo se concentrou no Plano Marshall sem saber sequer quem também o executou a partir de baixo. Esta não contabilização faz portanto parte ainda do projeto colonial, assinalando assim a permanência de um “inconsciente colonial” que ainda hoje nos domina. Hoje estas pessoas, os seus filhos e os seus netos, são parte da Europa vista como um espaço multicultural em falha, por Paul Gilroy (2005), na sua análise da melancolia pós imperial europeia, mas que Tariq Moodod (2007) insiste em ver como positiva, ou seja, como um espaço de contato e encontro, apesar do desequilíbrio fundador em que este encontro foi traçado e das segregações sociais e habitacionais que o novo urbanismo europeu gerou e que possibilitou uma invisibilização de muita desta população europeia muitas vezes étnica e religiosamente marcada. Este desequilíbrio que se projeta até hoje, tem vindo a ser designado por vários estudiosos como a recalcada fracture colonial, fratura colonial (Blanchard, Bancel, Lemaire, 2005) sob a qual a Europa atual vive. “Fratura colonial” que inclui não apenas o mais íntimo fantasma que une a Europa atual – a herança e a memória colonial – mas também as fantasias que projetamos para rapidamente o afugentar – miragens, de novo – que se transformaram em comunidades como a Commonwealth, a Francofonia, a Lusofonia, criadas sobre o olhar melancólico da Europa e o olhar desconfiado dos países anteriormente colonizados.

Nos anos 50, anos iniciais da criação da Europa como hoje a conhecemos, estávamos é certo no início da transição entre aquilo que poderíamos chamar com Sebastian Mallabay (2002), o fardo do homem branco – colocado real e metaforicamente nos ombros do colonizado – e o fardo do homem rico, das ajudas internacionais, mas o projeto colonial, apesar de agonizante, ainda estava em marcha como um legado vivo.

Mas como hoje retrospetivamente nos é possível ver, a fratura era absolutamente evi-dente, pois o processo geral das guerras coloniais e, posteriormente, das descolonizações com todas as movimentações populacionais que fomentou, era já o fim do “olhar ocidental como olhar absoluto da história”, como diz Eduardo Lourenço (2001:35). Todavia no mo-mento mais imediato, tão dominado pelo xadrez da Guerra Fria, as consequências destas descolonizações parece terem ficado ocultas, ou melhor, possíveis de invisibilizar, até ao momento em que outras narrativas começaram a ser traçadas e as interrogações sobre a Europa começaram a ser vocalizadas por outros sujeitos, perdendo-se a hegemonia critica da Europa como material de produção e consumo interno, num registo critico e, por vezes, de quase autoflagelação de longo traço que vai de Montaigne a Michel Foucault. Configura--se assim uma primeira vaga de ressentimento histórico, que não foi vista nem ouvida pelos

Margarida Calafate Ribeiro

Page 26: Iberografias nº9

26

europeus como uma mensagem também para si. Tratava-se não mais de um combate antiocidental conduzido em nome de ideologias geradas no Ocidente, nomeadamente o marxismo ou capitalismo, como foi característico dos movimentos anticoloniais, mas uma interrogação feita a partir da mais recalcada das suas expressões culturais: a religião, como bem viu Eduardo Lourenço. As primeiras interpelações vão de Khomemni à fatwa sobre Salman Rushdie na sequência da publicação de Versos Satânicos, nos anos 80; seguem-se as interpelações lançadas à história com As Cruzadas vistas pelos Árabes, de Amin Maalouf; e ainda as interpelações lançadas ao discurso do Ocidente, com Orientalismo, de Edward Said. Tratava-se genericamente de uma interpelação à história como uma luta pela linguagem, uma luta pela narrativa. Era o discurso que o Ocidente tinha elaborado sobre o Oriente – o texto – que estava em causa e era essa dialética negativa, constitutiva do Ocidente, que era urgente descolonizar.

Como refere Fabrice Schurmans, entre nós – europeus e os outros – portanto ex-colo-nizadores e ex-colonizados, continua escrito um texto prévio, um texto há muito escrito e reescrito, como mostram as obras acima referidas e mais recentemente, relativamente a África, a obra de Valentim Mudimbe, The Invention of Africa (1988), cujo texto analisado e, como defende o autor, diz muito mais sobre o Ocidente, os seus valores, as suas dúvidas e as suas razões do que propriamente sobre a África e sobre os africanos (Schurmans, 2001: 18-20).

Hoje, como nos diz Eduardo Lourenço, quotidianamente, e não apenas através dos seus intelectuais, os povos que Hegel um século e meio antes tinha inscrito como “fora da História”, interpelam-nos, julgam-nos, questionam a nossa história passada recontando-a, saem das periferias onde há muito vivem e surgem nas praças europeias explodindo-se, agredindo, mostrando-se sob a forma de “erupções de memória”1 colonial já protagonizada por uma segunda geração e, portanto, não mais pelos detentores de uma memória colonial, erguida na experiência e no testemunho, a primeira geração, mas pelos seus filhos e descendentes. Os filhos e netos dos grandes movimentos migratórios acima referidos, fruto do pós guerra e das descolonizações – mas também da fuga à pobreza, da violência e do abandono e da falta de desenvolvimento – mostram-se, tornam-se incomodamente visíveis. “Transferência de memória” colonial é um conceito criado por Benjamim Stora (1999), com o objetivo de explicar, na França actual, a memória da guerra da Argélia continuada no racismo anti- -árabe e noutras formas de segregação pós colonial, que mostram a continuação de um não assumido colonialismo íntimo, revelando-se numa política de integração assombrada pela assimilação e que, em tempos coloniais, significava, depois de um grande esforço de desidentificação e de alienação, ser quase francês, ser quase português.

Estas populações europeias mostram-nos hoje e quotidianamente como a Europa foi dando soluções coloniais, para os problemas pós-coloniais que elas constituem (Branor, Sayyid: 2006), e com isso, mostram-nos que o ato colonial não termina com quem o pratica e com o enquadramento histórico que conduziu à independência política, nem se resolve com invenções de cosmopolitismos teóricos, na verdade nunca escolhidos pelos sujeitos porque são apenas, como designa o intelectual brasileiro Silviano Santiago, “cosmopolitismos de pobre” (2004) numa critica profunda aos “multiculturalismos celebratórios” (Santos, 2006) historicamente amorfos e esvaziados de sentido real.

De todas as declinações dos fantasmas coloniais que se têm revelado na civilização Ocidental de tempos a tempos, nenhum outro é tão profundo e nos apanha com tanta

1 A expressão foi proferida por António Costa Pinto, na sua apresentação na reunião da European ScienceFoundation Colonial Wars: Collective Traumas, European Memories, organizada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 1 e 2 de Outubro de 2011.

Portugal e o seu Destino

Page 27: Iberografias nº9

27

2 A expressão é tomada do filme de Florent Emilio-Siri, “L´Ennemi Intime”, 2007, com argumento de Patrick Rotman, a partir do seu próprio romance de 2002, L’Ennemi Intime (Chihab Edition).

perplexidade como o contemporâneo renascimento do Islão. E, no entanto, há séculos que convivemos com o Islão, de formas nem sempre lineares, mas também nem sempre conflituosas, como nos mostram os recentes trabalhos de Jocelyne Dakhlia, Bernard Vincent e Wolfgang Kaiser, Les musulmans dans l´histoire de l´Europe: une intégration invisible e de Lucette Valensi, Ces étrangers familiers. Musulmans en Europe (XVI-XVIII siècles), ou ainda de Isabelle Poutrin, Convertir les Musulmans. Espagne, 1419-1609. Contudo, e na verdade, nunca o conseguimos transformar, como com tantas outras diferenças com que cruzámos ao longo da Expansão, e depois do colonialismo, num desafio. O Islão ficou sempre como uma ameaça (Bauman, 2004: 19). É, para usar uma expressão de Eduardo Lourenço, o exemplo vivo do “triunfo do recalcado”, o retorno do grande fantasma. Fantasmas são reminiscências de mortos, criaturas fora do tempo. Assim olhamos os muçulmanos, fora do nosso tempo, ecos de tempos coloniais, prisioneiros de uma cultura de crença, escravos de Alá sem qualquer subjetividade (Sayyid, 2004). Os fantasmas geram terror, dizemos frequentemente às crianças, com vista a sossegá-las de um pesadelo nocturno, que os fantasmas não existem; são uma ficção. Como os muçulmanos que assim descritos neste esquematismo mediático, também não devem existir. São pessoas de longe, do Magreb, do Sul, da Ásia, da África Oriental, mas são também europeus. Na sua grande maioria, e como nos tempos coloniais, vivem nas periferias da cidade fazendo-a mexer desde madrugada, em todo o tipo de serviços e nas casas dos habitantes dos bairros centrais. Como nos tempos coloniais, tornaram-se “l’ennemi intime”, o inimigo íntimo, que é aliás um belíssimo filme sobre a questão argelina em França2. Hoje, como os fantasmas, aparecem por todo o lado e onde menos se espera. Assim se deslocam naquela que só nós pensamos ser a nossa casa europeia, transgridem fronteiras, estão em Londres e no Egipto, na Bósnia e na Tchechénia, em Boston, em Nova Iorque, explodem-se em tantos outros lugares. Estiveram sempre presentes, mas sempre fora da nossa história, mas como noutros tempos colocam sob suspeita a hegemonia do Ocidente. Não são um desafio, são uma ameaça. Aliás, parece que só agora percebemos que desde há muito estão desde Marrocos até ao Afeganistão, em território praticamente continuo e falando mais ou menos uma mesma língua, professando uma religião comum mas plena de fraturas, instigadores das guerras civis mais violentas, tal como o Cristianismo foi instigador das maiores divisões na Europa ainda hoje visível entre o Norte da Europa, plurirreligioso protagonizador da modernidade europeia e o Sul da Europa, monoreligioso com o Islão geograficamente à porta.

Hoje, intelectuais muçulmanos europeus e americanos explicam-nos em múltiplas publi-cações quem são, como se definem, como se disputam. Mostram-nos como todos estão também ansiosos, absolutamente inseguros, pois esta ansiedade não acontece apenas em estados não muçulmanos, mas também, e com uma grande violência, em estados muçulmanos muitas vezes em revoluções que estão muito longe de serem felizes e onde tudo está em discussão. Como defende Sayyid, para o Ocidente parece o renascimento de Deus que tanto trabalho nos deu a matar, para que o ser humano pudesse viver livre. O retorno de uma ideia de crença entra, portanto, em conflito com a ideia progressista da libertação da humanidade, o que não deixa de ser sintomático de como hoje, na Europa, assistimos à história, pois este juízo pressupõe que só no Ocidente há pessoas em luta pela liberdade. Trata-se de um fundamental fear (Sayyid, 2004), que não podemos ignorar, enquanto por nossa conta, dita europeia, as periferias europeias vão rebentando em nome de iguais fundamentalismos, desta vez económicos e financeiros, provocando mais pobreza, exclusão, desânimo, medo, incerteza, transformando, sem consulta, aquilo que foi o sonho da comunidade europeia que integrasse a Alemanha, numa Europa pós segunda Guerra

Margarida Calafate Ribeiro

Page 28: Iberografias nº9

28

Mundial, numa sociedade anónima com sede difusa entre Berlim, a Comissão Europeia, as cúmplices elites de cada estado membro, bem como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

A emergência do Islão, como habitualmente se designa, levanta questões fundamentais sobre nós próprios, sobre o que é a Europa e sobre a sua herança colonial, sobre o seu legado de conflito interno e externo, sobre os seus limites e finalmente sobre os seus íntimos fantasmas, refletidos na vocação suicidária que a enforma, e que, de tempos a tempos, se manifesta.

Pensar Europa pós-colonial implica perceber que aquilo que mais a definiu como Europa foi a sua vocação imperial – nas suas várias declinações – e que, consequentemente, a descolonização não foi apenas um movimento a Sul e que atingiu os países descolonizados. Foi também um movimento que atingiu e atinge radicalmente o continente colonizador que foi Europa e que precisa de ser descolonizado, ou seja, precisa de reler o passado e a linguagem imperial e inequívoca em que foi narrado para melhor compreender o presente e pensar o futuro num tempo designado de guerra de civilizações. Um processo onde a Europa aprende a vencer o seu estado de múltiplas nações pós imperiais e a descolonizar-se das suas ex-colónias, o que marca uma brusca inversão de paradigmas históricos, produzindo outras narrativas continentais e criando de facto, e assim, uma verdadeira hipótese de comunidade. Mas a Europa de hoje, e apesar dos seus líderes sonâmbulos3, fundamentalistas também de outros ideais sem Deus dominados pela finança, caminha inexoravelmente para uma nova fase de descolonização que a “fratura colonial”, vivida à escala global e no interior da Europa, demanda. Não se trata apenas de descolonizar a linguagem das grandes narrativas europeias, a que apelava Edward Said, mas é preciso descolonizar as pessoas, descolonizar o descolonizador e a sua imagem e descolonizar o descolonizado e a sua imagem (Barnor, Sayyid, 2007: 13-31). Ou continuaremos com as designações que caraterizaram ainda o século XX, como o “estrangeiro” ou, no caso das populações oriundas das antigas colónias, falaremos ainda à francesa de les indigènes, ou seja, aqueles que não são cidadãos mas são sujeitos da nação na lógica da mais pura assimilação? Falaremos então de um “estrangeiro pós-co-lonial” ou de um “indígena pós-colonial” como sugere Pascal Blanchard? Continuaremos a gerar sem perceber os “fundamentalistas relutantes” de que fala Mohsin Hamid, no seu belo romance The Relutant Fundamentalist, em que a personagem principal, educado nas grandes universidades americanas, gestor de topo de uma grande multinacional, de repente se surpreende a si próprio as ver a s Torres Gémeas a explodir, e, mais tarde, no seu trabalho fica paralisado, perante mais de uma das grandes operações financeiras que iria destruir a vida de um país e dos seus cidadãos. Hesita, fica incapaz de apresentar o relatório financeiro que destruiria, em absoluto, a cidade chilena onde tinha estado em trabalho e que lhe relembra, nas pessoas, nos ambientes, nas conversas, nas lojas, o seu nativo, mas absolutamente distante, Paquistão. Todas estas noções colocam em perspetiva crítica as noções de esvaziamento das identidades nacionais, denunciam que o tempo da Europa das nações já passou, e que as identidades, como até então pensadas, se dissolveram nos cursos e recursos da história, de que falava Vico, e a que hoje assistimos como sonâmbulos.

Será de fato a partir da descolonização das pessoas, desse ato político, que se pode construir um discurso europeu inclusivo, que implica na sua base uma reformulação identitária do ser europeu, e que não passa seguramente pela rasura da diferença europeia, que muitos intelectuais europeus praticam num inebriamento de um “multiculturalismo celebratório”, totalmente abstrato, historicamente amorfo nem pela assimilação (palavra de má memória)

3 A expressão era capa da revista Economist, 25 a 31 de Maio de 2013, “The Sleepwalkers”, mostrando oslideres europeus rumo a um abismo, como sonâmbulos.

Portugal e o seu Destino

Page 29: Iberografias nº9

29

do outro como europeu. Mas passará provavelmente, como diz Eduardo Lourenço, pela aceitação de que o paquistanês, o indiano ou o senegalês querem ser paquistaneses, indianos ou senegaleses na Europa, como aliás nós fomos em situação de grande privilégio político, social e económico, portugueses, franceses, ingleses em África, na Ásia, no mundo. Como mostra Eduardo Lourenço, não é fácil para o continente que subalternizou meio mundo, julgando que a ambição dos outros só poderia ser serem europeus na perspectiva da mais pura assimilação, colher hoje no interior da Europa, e expressa por europeus, esta percepção, porque ela implica, como diz Roberto Vecchi, uma “exceção de nós próprios” (2011). Mas não é um sistema de inversão de papéis que está aqui em causa, ou seja, uma colonização em reverso, mas da construção efetiva de uma comunidade que tem o tamanho do mundo, e por isso, o desafio que se coloca hoje à Europa tem a dimensão do que nos acontece. É radical, e implica não apenas uma mudança do olhar mas uma mudança da escala do olhar. Só promovendo o ato de descolonização, também da Europa, podemos perceber o estado de suspensão de sentido de um percurso que vivemos hoje e finalmente entender que, o que nos acontece hoje, vai muito para além da crise, primeiro bancária, depois financeira e agora todas as anteriores mais a crise orçamental, como é visível na progressão adjetival da crise nos documentos imanados do Conselho Europeu. A adjetivação da crise é infinitamente mais vasta do que o falhanço financeiro e político gerido rumo a um fundamentalismo financeiro sem saída e, em breve, sem pessoas, incapaz de perceber o que é de facto ser europeu hoje, incapaz de saber estar “num Sagres qualquer” (Pessoa, Campos: 1977) e perceber “as partes sem todo” de que falava Alberto Caeiro, e que é a Europa no mundo de hoje. Será para agora, via Sul, a união das Europas, ou caminharemos de novo para mais uma fase suicidária da história europeia, ciclicamente repetida, dominada pelas suas outrora grandes nações? Olhando a Europa como miragem comunitária dos cidadãos, só podemos rejeitar o equívoco do olhar suicidário nacionalista, e apostar no ambicioso sonho que a miragem num dia “de luz perfeita e exata” colocou no horizonte, como “um sonho nítido como uma fotografia” (Pessoa, Caeiro: 1977), um sonho em que “entraremos de pé no tempo dos outros” (Lourenço, 2007). Um sonho em que ser europeu é uma condição geopolítica e espiritual de liberdade, em que a casa tem o tamanho do mundo.

Bibliografia:

Blanchard, Pascal; Nicolas Bancel; Sandrine Lemaire (2005), La Fracture coloniale: La société française au prisme de l’héritage colonial. Paris: Éditions La Découverte. - (org.) (2008) Culture Coloniale en France – de la Révolution française à nos jours, Paris : CNRS Editions.

Barnor, Hesse; Sayyid, Bobby (2006), “Narrating the Postcolonial Political and the Immigrant Imaginary”, in N. Ali; V.S. Kalra; S. Sayyid (eds.) A Postcolonial People: South Asians in Britain. London: Hurst & Company, 13-31.

Bauman, Zygmunt (2004), Europa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Dakhlia, Jocelyne, Vincent, Bernard (org.) (2011), Les musulmans dans l’histoire de l’Europe. Tome 1 : Une intégration invisible. Paris : Albin Michel.

Dakhlia, Jocelyne, Kaiser, Wolfgang (org.) (2013), Les musulmans dans l’histoire de l’Europe. Tome 2 : Passages et contacts en Méditerranée. Paris : Albin Michel.

Gilroy, Paul (2005), Postcolonial Melancholia. New York: Columbia University Press.

Margarida Calafate Ribeiro

Page 30: Iberografias nº9

30

Hamid, Moshin (2007), The Reluctant Fundamentalist, Londres: Hamish Hamilton.

Lourenço, Eduardo (2001), Europa Desencantada: para uma mitologia europeia. Lisboa: Gradiva.

- (1999) A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, Lisboa: Gradiva.

- (2000) A Morte de Colombo – Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito, Lisboa: Gradiva.

- “O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros” (2007), aula inaugural Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha, Dezembro.

- “Crepúsculo Europeu” (2013), Público, 15 Janeiro, pp. 14-15.

Maballay, Sebastian, “The reluctant imperialist – terrorism, failed states and the case for American empire”, Foreign Affairs, March/ April, 2002, pp. 2-7.

Monteiro, Adolfo Casais (1993), Poesias Completas, Lisboa: INCM. (introdução de João Rui de Sousa).

Moodod, Tariq (2007) Multiculturalism: a civic idea, Polity.

Mudimbe, Valentin (1988) The Invention of Africa : Gnosis, Philosophy and the Order of Knowledge, Bloomington, Indiana University Press.

Pessoa, Fernando (1977), Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

Poutrin, Isabelle (2012), Convertir les Musulmans. Espagne, 1491-1609. Paris : PUF.

Ribeiro, Margarida Calafate (2004), Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo. Porto: Afrontamento.

- (2009) “Uma outra história de regressos: Eduardo Lourenço e a cultura portuguesa”, Colóquio-Letras, número especial “Eduardo Lourenço”, 171, 151-163.

Sayyid, Bobby (2003), A Fundamental Fear: Eurocentrism and the Emergence of Islamism, London: Zed Books, 2003

Santiago, Silviano (2004), O Cosmopolitismo do Pobre: Critica literaria e critica cultural, Belo Horizonte: UFMG Editora.

Santos, Boaventura Sousa (2006), A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento.

Schurmans, Fabrice (2013), O trágico do Estado pós-colonial. Pius Ngandu Nkashama, Sony Labou Tansi, Pepetela. Coimbra: Almedina-CES.

Sloterdijk, Peter (2002), Falls Europa erwacht. Frankfurt: Suhrkamp.

Stora, Benjamim (1999), Le Transfert d’une mémoire : De l’«Algérie française» au racisme anti-arabe. Paris: La Découverte.

Valensi, Lucette (2012), Ces étrangers familiers. Musulmans en Europe (XVIe-XVIIIe siècles). Paris : Payot.

Vecchi, Roberto (2011), Excepção Atlântica: Pensar a Literatura da Guerra Colonial. Porto: Afrontamento.

Portugal e o seu Destino

Page 31: Iberografias nº9

31

Bloqueios estruturais de longa duração:O caso do TeatroMário Vieira de CarvalhoUniversidade Nova de Lisboa / CESEM

O título que escolhi para esta breve comunicação, dentro dos vinte minutos que me foram concedidos, faz-me recuar aos anos vinte do século XVI, a um espetáculo teatral realizado perante o “Sereníssimo Príncipe e poderoso Rei D. João III”: a tragicomédia de D. Duardos, escrita e levada à cena por Gil Vicente (1524). É uma obra especialmente indicada para introduzir o meu tema, pois é dos textos vicentinos que, a meu ver, levam mais longe o discurso crítico sobre a sociedade da época e mais finamente captam as mudanças que nela estavam em curso. A tragicomédia de D. Duardos é a fábula dessa dinâmica de mudança. O nobre desocupado, improdutivo, ocioso, vivendo dos privilégios do nascimento, é confrontado com a ideia da dignificação pelo trabalho, pelo esforço próprio, pela qualificação adquirida para o exercício de tal ou tal função ou ofício. O valor intrínseco do ser humano é contraposto às distinções de casta ou de condição, e tal é o teste a que D. Duardos se submete a si própio ao disfarçar-se de hortelão, o grau mais baixo da hierarquia social, para pôr à prova a sua capacidade de conquistar o amor duma princesa – Flérida. O desafio é levar Flérida a amá-lo enquanto pessoa, desconhecendo que está perante um príncipe, e a entregar-se-lhe, apesar de hortelão.

É claro que a condição para um amor correspondido pressupõe, desde logo, a capacidade de comunicação recíproca. Flérida em breve descobre que não está perante um hortelão qualquer, mas sim perante um hortelão educado. O que lhes permite comunicar é a elevação da linguagem, que contrasta com a aparência do servo:

Flérida: Debes hablar como vistes [vestes],Ó vestir como respondes.....Ojalá tuviesen condesTu sentido.......Véte con la bendicionÁ comer cebolla cruda,Tu manjar.D. Duardos: Quien tiene tanta pasionTodo comer se le mudaEn suspirar.

A comunicação aproxima-os, mas a diferença de condição separa-os. A crítica à ordem

Page 32: Iberografias nº9

32

1 Cf. abordagem mais extensiva do texto vicentino a propósito da sua adaptação por Fernando Lopes-Graça para a cantata-melodrama D. Duardos e Flérida (1969), in: M. Vieira de Carvalho, Por lo impossible andamos: A ópera como teatro de Gil Vicente a Stockhausen, Porto: Âmbar, 2005: 185-200.

2 Não entro aqui na discussão aprofundada deste tópico, mas tenho evidentemente presente o debate travado a este respeito e a posição de Eduardo Lourenço (cf. do mesmo, Destroços: O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Lisboa: Gradiva, 2004).

social começa por ser equacionada em termos teológicos:

Flérida: De qué te quejas?D. Duardos: De Dios,Porque no nos hizo igualesLos nascidos,Y sin mancilla de nosNos dió ojos corporales Y sentidos.....

Interpelado o edifício teológico por Deus ter dotado os humanos de sentidos e si-multaneamente tê-los condenado à desigualdade, o gesto inconformista volta-se depois para o edifício social:

D. Duardos: Voy, señora, á trabajar, Dios sabe cuan trabajado......Flérida: No fuera mejor que fuerasÁ lo menos escudero?D. Duardos: Oh, senõra, ansí me quieroHombre de bajas maneras;Que el estadoNo es bien aventurado,Que el precio está en la persona.

Não faltam nas peças de Gil Vicente momentos de observação crítica da sociedade da sua época tão penetrantes como este, mas é ainda no D. Duardos que encontramos enunciado o conceito, ou talvez o moto, que poderia servir de epígrafe a toda a sua obra, pela eloquência com que exprime esse gesto inconformista, inseparável do ímpeto de descoberta, inovação, abertura que agitava o país e o mundo:

Por lo impossible andamosNo por al [não por outra coisa].1

Uma coisa é a ideologia do autor, outra os conteúdos de verdade que emanam da obra. Por isso, toda a “arte autêntica” é necessariamente heterodoxa, na medida em que se autonomiza e escapa ao sistema ideológico, datado e fechado, do seu autor. “Por lo impossible andamos” é a heterodoxa busca do não-idêntico, da Utopia, termo cunhado poucos anos antes (1516) por Thomas More, o qual, no entanto, viria a dar a vida pela sua ortodoxia... 2

É neste sentido que entendo ser o teatro de Gil Vicente, por um lado, sintoma das realizações e perspetivas do Portugal daquela época, e, por outro, motor de mudança ideológica, cultural, social. Inscrito na esfera pública representativa como teatro da corte, contribuía decisivamente para esboçar o uso público da razão, os primórdios de uma opinião

Portugal e o seu Destino

Page 33: Iberografias nº9

33

pública ou esfera pública cívica que então começava a emergir também noutros países europeus. Era um teatro em vernáculo – por vezes, em castelhano (como no caso de D. Duardos), frequentemente bilingue, mas na sua maior parte em português – que trazia para dentro da esfera do poder, divertindo-a, a consciência crítica da complexidade do mundo e a exigência de o repensar.

Tudo então fazia prever que essa tradição teatral continuasse a florescer, tal como era desejável que as negociações de poder entre grupos sociais, tendo por pano de fundo os diferendos religiosos, mantivessem em aberto as perspetivas de desenvolvimento eco-nómico e sócio-cultural, contendo os estragos entretanto causados pela expulsão dos judeus – porventura o setor mais poderoso e dinâmico da burguesia nascente, especialmente daquela burguesia comercial-marítima, impulsionadora dos Descobrimentos, de que fala Jaime Cortesão. Mas não: em vez dessa negociação, ainda aparentemente refletida nos painéis de Nuno Gonçalves (cerca de 1480), o conflito é radicalizado com a introdução em Portugal da Inquisição (1536, data da morte de Gil Vicente) e a entrega do monopólio da educação à Companhia de Jesus (1540).

Entre os vários bloqueios estruturais de longa duração que daí resultaram para o país, largamente tratados pela historiografia, há um, na área da cultura, que, a meu ver, não tem sido suficientemente enfatizado: o desaparecimento, para sempre, de um teatro de corte em língua portuguesa. Pioneiro no teatro de corte, Portugal tornar-se-á assim um caso único na Europa: um país que, desde então e até ao fim da monarquia nunca mais voltará a ter um teatro de corte na respetiva língua nacional. É a narrativa desse bloqueio e das suas consequências até aos nossos dias que eu gostaria de vos apresentar numa breve síntese.

O teatro vicentino ou de tradição vicentina foi substituído na corte por representações esporádicas das tragicomédias dos jesuítas, um teatro escolar declamado em latim, cujo objeto eram cenas bíblicas e cuja função era a catequese, exercida sobretudo pelo efeito – não raro espetacular – das imagens e da música, já que para a grande maioria do público o que prevalecia era a dessemantização da palavra cénica.

Musical foi sempre todo o teatro e, nesse sentido, aquilo a que passou a chamar-se ópera não constitui exceção à regra. O teatro puramente declamado, sem música e sem canto, é que rompeu com essa tradição de um espetáculo sincrético com declamação, canto, dança e música instrumental. O teatro vicentino já era um teatro estruturalmente musical, como está demonstrado desde os estudos de Albin Eduard Beau e podia ter dado origem em Portugal a novas formas músico-teatrais aparentadas com aquelas que surgiram mais tarde em Inglaterra, França ou Itália. Mas, na corte portuguesa, esse processo foi liquidado à nascença, e, como já escrevi noutra ocasião, o próprio teatro escolar dos jesuítas acabava por funcionar como um instrumento de hostilidade ao teatro.3

Fora da corte, as comédias e outros espetáculos públicos não foram proibidos, mas a suspeição que sobre eles recaía e lhes conferia o estatuto de divertimentos meramente “tolerados” é bem evidente no privilégio de 1588, de Filipe II, de Espanha, I de Portugal, que só os autorizava se deles revertessem receitas para obras de caridade – uma norma que se estendia a todo o espaço ibérico – e cujo beneficiário em Lisboa era o Hospital de Todos--os-Santos.

A hostilidade ao teatro – entendido como espetáculo ou arte performativa – mantém-se durante todo o século XVII. A corte de João IV consegue ser mais ortodoxa do que a de Filipe IV de Espanha, onde foram introduzidas a zarzuela e a ópera italiana. Para João IV, a música

3 Cf. Mário Vieira de Carvalho, Pensar é morrer, ou O Teatro de São Carlos na mudança de sistemas sócio-co-municativos desde fim do século XVIII aos nossos dias, Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1993.

Mário Vieira de Carvalho

Page 34: Iberografias nº9

34

destinava-se exclusivamente ao serviço de Deus. Por isso, embora existissem na sua vasta biblioteca obras de música dramática, nunca as fez representar. “A música teatral” – dizia ele – “efeminava as vozes”.

Assim, enquanto a corte espanhola e a generalidade das cortes europeias começavam a usar o espetáculo teatral ou músico-teatral para o exercício da função representativa ou de prestígio, a corte portuguesa usava a igreja e as cerimónias religiosas como palco privilegiado da representação do poder real, tradição que se prolonga até meados do século XVIII. É certo que a ópera italiana é introduzida na corte de João V, mas esses espetáculos de commedia per musica por castratti da Capela Real têm um caráter reservado: decorrem nos aposentos da rainha, para um núcleo restrito de gente da corte. Entretanto, a opera seria de Metastasio, símbolo do despotismo esclarecido um pouco por toda a Europa, é levada à cena em espetáculos públicos pela companhia italiana dos Paghetti (cantores de ambos os sexos). Excluída da corte e da função de representação oficial, tem de pagar tributo ao Hospital de Todos-os-Santos como qualquer divertimento público tolerado, e o rei só lá vai “incógnito”. Também as óperas do Judeu, no Teatro do Bairro Alto, que Garrett equiparava ao teatro vicentino, são naturalmente excluídas da corte. Frequenta-as um público heterogéneo, sobretudo plebeu. Cessam em 1739 com a execução do autor num auto-de-fé. Três anos depois e, durante oito anos, todos os espetáculos teatrais são cancelados no País, devido à doença do rei, receoso de que essas atividades recreativas suscitassem a ira divina.

Vista pela perspetiva da história do teatro, é a subida ao trono de José I que marca, em Portugal, a mudança para o despotismo esclarecido. A partir de 1752, a opera seria italiana de Metastasio passa a ser representada na corte. A deslocação do cerimonial de representação oficial da igreja para a corte culmina com a construção da faustosa Ópera do Tejo, destruída pelo terramoto, seis meses depois da sua inauguração. A utilização do teatro como espaço de representação oficial – exclusivamente com ópera italiana – mantém-se no Teatro da Ajuda e noutros teatros régios, após o terramoto.

Não menos relevante, na sequência do abalo social e ideológico causado pelo terramoto, é outra mudança que então ocorre na perceção social do teatro. Refiro-me ao Alvará de 1771 em que se aprova a constituição de uma Sociedade para a Sustentação dos Teatros Públicos (um para ópera italiana, outro para drama em língua portuguesa). Surge aí, pela primeira vez em Portugal, em documento oficial, um discurso iluminista sobre teatro. Tem origem num grupo de 40 grandes negociantes de Lisboa e é homologado pelo monarca:

Os Homens de Negócio da Praça de Lisboa Me representaram [...] o grande esplendor e utilidade, que resulta a todas as Nações do Estabelecimento dos Teatros públicos, por serem estes, quando são bem regulados, Escola, onde os Povos aprendem… civilizando-se e desterrando insensivelmente alguns restos de barbaridade, que neles deixaram os séculos infelizes da ignorância.

Eis um discurso que – caso tivesse sido levado à prática – poderia ter rompido com o bloqueio estrutural de longa duração a que comecei por me referir. Isso pressupunha, porém, massa crítica burguesa, uma esfera pública cívica, o uso público da razão na imprensa periódica. Mas tudo isso não existia ainda em Portugal. As Gazetas limitavam-se a dar notícias, sob estrita vigilância censória. Nada que se comparasse ao grau de desenvolvimento da imprensa em França, Inglaterra, Alemanha e Itália, onde as publicações e as polémicas – também no domínio específico da ópera e do teatro – se multiplicavam desde o início do século XVIII. Em Portugal, pelo contrário, não há notícia senão de uma única crítica teatral publicada ao longo de todo o século XVIII: redigida pelo padre Francisco Bernardo Lima e publicada na Gazeta Literária do Porto, em 1762, é outro exemplo de um discurso iluminista sobre teatro e dá ensejo ao autor para mostrar que se encontra a par dos debates então em

Portugal e o seu Destino

Page 35: Iberografias nº9

35

4 Cf. análise mais aprofundada das fontes disponíveis sobre a ópera no século XVIII em Portugal, in: M. Vieira deCarvalho, “Trevas e Luzes na ópera de Portugal setecentista”, in: do mesmo, Razão e sentimento na comunica-ção musical: Estudos sobre a Dialéctica do Iluminismo, Lisboa: Relógio d’Água, 1999: 141-157.

curso na Europa.4

A comparação com os estados germânicos vem aqui especialmente a propósito, pois permite pôr em evidência, por contraste, a dinâmica contra-hegemónica duma poderosa esfera pública cívica ou burguesa que então neles desenvolve e impõe a sua própria al-ternativa. Em oposição à ópera italiana da corte, condenada por ser um “prazer demasiado dispendioso”, a burguesia defende a criação de uma ópera alemã, por estar ao alcance do orçamento das cidades mais medianas e – tratada já não como mero passatempo, mas atividade educativa – atuar “no sentido da promoção da humanidade” (como escrevia Christoph Martin Wieland em 1775). Em consequência dessa pressão burguesa, as cortes germânicas, importadoras de ópera italiana como a corte portuguesa, são obrigadas, uma a uma, a substituírem-na por ópera alemã. O processo de mudança completa-se em 1801, quando também a corte prussiana de Berlim é levada a adotar a ópera alemã para as fun-ções de representação oficial. País importador de ópera italiana ainda em meados do século XVIII, a Alemanha torna-se, assim, país exportador de ópera alemã desde a viragem para o século XIX.

O que importa sublinhar nesta alternativa músico-teatral imposta pela burguesia alemã é a ligação entre o valor económico e o valor cultural da ópera e do teatro em geral. A criação da ópera alemã foi um evento com um denso efeito sistémico, desencadeou profundas repercussões estruturais: gerou emprego artístico e técnico-profissional local, uma rede de centros de produção e de institutos de formação, a captação de novos públicos em larga escala, uma enorme intensificação da edição de partituras e outros materiais, o efeito indireto na atividade económica ligada à produção de materiais cénicos, instrumentos musicais, etc., a expansão da crítica, da imprensa e das publicações especializadas, a permanente renovação do repertório, um constante aperfeiçoamento do know how em todos as áreas artísticas e técnico-profissionais envolvidas. Hoje, existem na Alemanha, cerca de cinquenta teatros em plena atividade, com as suas companhias locais, onde se faz ópera durante todo o ano, ao mesmo tempo que a ópera alemã continua a expandir-se para todo o mundo. Para os alemães, o colapso deste setor de atividade não seria somente uma catástrofe cultural, seria também uma catástrofe económica, com elevada expressão no emprego, no desenvolvimento local, no PIB e na balança comercial.

E em Portugal? Em Portugal a debilidade da esfera pública burguesa não podia ter expressão mais acabada do que no conceito do Teatro de São Carlos, construído e inaugurado em 1793, graças à gradual abertura política proporcionada pela regência de facto (1785) e de direito (1792), do futuro João VI, após largos anos de reinado de Maria I em que a hostilidade a todas as formas de teatro fora retomada em força. Justificado, nesse contexto de regressão ideológica, como homenagem à Princesa Carlota Joaquina e fonte de receita para a Casa Pia, já nada nele sobrevivia do discurso iluminista da época pombalina. Ou melhor, sobrevivia apenas a função de representação oficial da corte que lhe era atribuída, em substituição dos teatros da corte existentes, modelo assumido pelos grandes negociantes de Lisboa que tinham apoiado a construção do edifício: São Carlos passava a ser o “teatro da corte para a burguesia”, onde se ouvia ópera italiana na presença do rei.

Permanecemos um país importador de companhias italianas até final da monarquia. No Teatro de São Carlos, prosseguia-se a tradição, do teatro da corte, de dessemantização da palavra cénica: só se podia cantar em italiano. Os próprios compositores portugueses que escreveram óperas – por exemplo, sobre temas garrettianos – tiveram de fazê-lo sobre libretos traduzidos para italiano. Chegou-se ao ponto de o libreto de A Serrana, de Alfredo

Mário Vieira de Carvalho

Page 36: Iberografias nº9

36

Keil, que devia inaugurar a era duma ópera em estilo nacional, ter sido igualmente traduzido para italiano, por ocasião da sua estreia no São Carlos em 1899 (por contraste com a Ópera de Paris, onde só se podia cantar em francês e os libretos tinham de ser traduzidos para francês: como aconteceu com Donizetti, Verdi, Wagner ou Richard Strauss).

Artistas portugueses viram-se obrigados a fazer carreira no estrangeiro, como por exem-plo, Francisco de Andrade, que revolucionou a personagem do Don Giovanni (só na Alemanha representou-a mais de cem vezes – mas nunca em Portugal, onde foi recebido tão friamente no auge da carreira que teve de abandonar Lisboa após uma récita do Rigoletto).

Essa situação caricata do teatro em Portugal foi denunciada por Eça de Queirós em textos publicados nas Farpas que nada perderam da sua atualidade:

Se o governo entende que deve deixar à iniciativa particular, ao gosto, à indústria, à espontânea ação das vocações, à concorrência, – a arte dramática – para que faz uma exceção ao teatro italiano, protegendo-o?

Se o governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civilização e como um ramo da cultura moral – então para que faz uma exceção ao teatro português, desamparando-o?5

Certo é que este bloqueio estrutural de longa duração não só sobreviveu à República como foi até retomado a partir dos anos 40 pelo Estado Novo. Como espaço de estetização da política – destinado à encenação da “ditadura quási imponderável, ausente”, como a definia António Ferro (1942)6 – o São Carlos era apenas o edifício, “a sala de visitas” ou o “teatro de corte” do regime, onde a hierarquia do Estado se representava a si própria, enobrecida pelo traje de cerimónia obrigatório e por uma mercadoria de prestígio importada do estrangeiro a peso de ouro. E nem o processo aberto com o 25 de Abril conseguiu fazer da instituição cultural mais cara do País (custa ao Estado 40 mil euros por dia, mesmo quando está fechado, e está fechado mais de 300 dias por ano)7 uma plataforma de criação e emprego artístico para os artistas e outros profissionais das artes cénicas residentes em Portugal, um instrumento de valorização e promoção da língua e da cultura portuguesas, uma estrutura de produção onde o exercício da palavra cénica cantada em língua portuguesa fosse um dos objetivos centrais, constituindo-se como centro de irradiação universal, a exemplo da nossa literatura ou até do nosso cinema, já para não falar do fado…

Mas não: a tradição de teatro de corte italiano do antigo regime continua tão arreigada que ainda há dias, nas poucas récitas de óperas de Verdi levadas à cena com o habitual elenco recrutado no estrangeiro, se ouviram as vaias ou pateadas de alguns espectadores, indignados pelo facto de as vozes contratadas serem demasiado medianas ou baratas para os seus sofisticados ouvidos. Há fome em Portugal, mas no S. Carlos, acham eles, não podem faltar – pagas pelo Estado – as vozes caras ou caríssimas importadas de fora, enquanto os inúmeros jovens cantores formados nas Escolas Superiores e nas universidades portuguesas estão condenados, ou ao desemprego ou, caso não queiram desistir e mudar de profissão, à emigração para a Alemanha, Inglaterra, França, Holanda, onde podem encontrar – e, muitas vezes, encontram – algumas perspetivas de realização profissional…

A situação na área da ópera, aqui especialmente referida como sintoma de um bloqueio estrutural de longa duração no teatro, ajuda-nos a compreender melhor as raízes e a persistência históricas desse bloqueio, que faz do nosso país um caso singular na Europa:

Portugal e o seu Destino

5 As Farpas, Dezembro de 1871: 59.

6 Cf. Mário Vieira de Carvalho, ‘Pensar é morrer’…, p. 228.

7 Valores de 2006 para uma dotação orçamental de cerca de 14 milhões de euros

Page 37: Iberografias nº9

37

tanto mais singular quanto o enorme avanço hoje registado entre nós na formação avançada e na pesquisa científica em artes cénicas, bem como a abundância de cineteatros e centros culturais bem equipados contrastam gritantemente com a ausência de estruturas de emprego artístico estável sem as quais não se gera massa crítica, nem experiência profissional, nem cultura institucional, nem portanto se constitui uma verdadeira tradição local, com a sua identidade própria e a sua dinâmica de mudança fundada na dialética entre tradição e inovação, entre o local e o universal.

A minha tese é a de que o bloqueio que ainda perdura teve a sua origem remota no fundamentalismo teológico de há quinhentos anos. E isso é assustador numa situação como aquela em que atualmente nos encontramos. Corremos o risco de que um fundamentalismo teológico de sinal contrário – desta feita, o da mão invisível dos mercados (tanto ou ainda mais ortodoxo do que o primeiro) – nos bloqueie de novo nos mais diversos domínios de atividade, incluindo naturalmente a educação, a ciência e a cultura. Mal estávamos a recuperar de um atraso secular e logo sobre nós se abateu esta ameaça de recuo e estagnação. Se ela se concretizar, que nos espera? A história do teatro em Portugal mostra quão longa, secular, interminável, pode ser a duração de um bloqueio estrutural. Com a agravante de, no tempo de Gil Vicente, ainda haver espaço para a utopia – para a esperança num mundo melhor e mais igualitário –, enquanto a nova forma de totalitarismo com que nos defrontamos – o da finança – nos apresenta o fosso cada vez maior entre ricos e pobres, entre multimilionários e miseráveis, entre senhores e escravos, como fatalidade ou lei natural sem alternativa. Mais do que isso: como lei natural que desacredita liminarmente qualquer esboço de alternativa. A utopia, como força mobilizadora de mudança social, foi liquidada pelas folhas de Excell. A um passo de se equiparar a Deus na criação de vida biológica, o ser humano tornou-se a mais ínfima e impotente das criaturas perante esse outro Deus que subjuga o mundo: o dos mercados.

Na nova ordem europeia já não contam os valores culturais que a União Europeia e os Estados europeus defenderam a uma só voz, associando-se à quase totalidade dos povos do mundo que subscreveram em 2005 a Convenção da UNESCO para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. O que está aí universalmente consagrado é o princípio de que os bens e serviços culturais não são meras mercadorias, o que implica duas importantes consequências: a) a cultura não pode estar sujeita às leis da livre concorrência tuteladas pela Organização Mundial do Comércio; b) a legitimidade das políticas públicas e do investimento público na cultura, incluindo naturalmente não só o orçamento de instituições públicas mas também os incentivos a empresas ou a outro tipo de iniciativas privadas, não pode ser questionada. Deste modo, longe de ser encarada como uma área menor ou “onerosa” para o Estado, a cultura surge aí como uma área privilegiada de investimento público – uma área estratégica – através da qual o Estado pode também promover investimentos reprodutivos na economia: por exemplo, combatendo o desemprego, promovendo o desenvolvimento regional, fomentando a exportação de “bens culturais” com valor acrescentado. Eis, porém, uma oportunidade que os Estados ameaçados pela chamada “crise das dívidas soberanas” não souberam aproveitar. Designadamente em Portugal, teatro e música, em vez de se trans-formarem em fontes privilegiadas de combate à crise, engrossaram a massa do desemprego e da emigração de jovens altamente qualificados. Todo o enorme esforço de formação que tem vindo a ser feito nesses domínios e que nos colocou pela primeira vez na história a níveis comparáveis à das médias europeias foi malbaratado – tanto no plano cultural, como no económico. E foi-o – há todas as razões para crê-lo – irreversivelmente.

Mário Vieira de Carvalho

Page 38: Iberografias nº9

38

Page 39: Iberografias nº9

39

Um homem privado, sem recado nem mandato

Maria Filomena MolderUniversidade Nova de Lisboa

Pagamento de dívida

Aqui está a fazer-se o retrato de um homem a partir de algumas das suas próprias palavras, jogando com a liberdade de as discutir, de as interrogar. Retrato esboçado, mesmo desfocado e oculto em muitos aspectos, esquisso. Numa palavra, estudo no sentido técnico que se usava na pintura clássica. Trata-se do pagamento de uma dívida à minha própria juventude, quando deixei a meio (pensava eu, por enquanto) o projecto de escrever sobre Heterodoxia I e II. Ensaios. Estávamos nos finais de 19701 e a Universidade portuguesa temia essa palavra e as suas repercussões, antecipadas com exemplar exactidão por Eduardo Lourenço:

Não há lugar para os heterodoxos. Eles são incomensuráveis com Deus, com a Pátria, com o grupo, com a família, com o amor, com eles próprios. Abandonemo-los então à sua divisão tão amada e que pereçam, pois são o reino dividido em si mesmo de que fala o Evangelho. Inimigos do género humano. Heterodoxia I, Prefácio, p.12

Mais interior do que eu próprio

O estar mal com o seu país, coisa que não é nova como consciência crítica aguda, pelo menos desde o século XIX, mostra-se em Eduardo Lourenço como irrequietude íntima, que na desproporção entre o que encontra à sua chegada e aquilo de que ele anda à procura

1 Os dois volumes de Heterodoxia foram adquiridos no dia 3 de Dezembro de 1970 por Jorge Molder. O pri-

meiro tinha a data de 1949, o segundo de 1967. Ambos eram numerados. “Exemplar Nº 42”, lia-se no

primeiro volume (“Desta edição tiraram-se 500 exemplares, numerados e rubricados pelo autor.”). E no

segundo volume, “Exemplar Nº 0034” (“Desta edição tiraram-se 1000 exemplares numerados de 1 a 1000 e

rubricados pelo autor.”). A assinatura de Eduardo Lourenço era carimbada. Em 1949 o autor tinha 26 anos e

tinha escolhido o apelido da mãe (ou foi escolhido por ele, como no caso de Picasso). Em ambas as capas (do

primeiro volume, um sépia avermelhado, e do segundo, um azul fundo) se encontra inscrito em baixo: “Uma

edição de COIMBRA EDITORA LIMITADA. Distribuída por EDITORIAL INOVA LIMITADA PORTO”. Mas só no

segundo volume aparece na folha de rosto o nome da editora e a data, encimada por um emblema onde se

pode ler em letras minúsculas AB UNO AD OMNES. Na folha de rosto do primeiro, só aparece COIMBRA 1949,

e o emblema é a imagem da serpente que morde a sua própria cauda, imagem que no Prefácio do volume I

Eduardo Lourenço glosa na sua versão germânica, a serpente Migdar. Pelos vistos, o primeiro volume é uma

edição de autor assegurada por uma editora e uma distribuidora. Já não é o caso do segundo. É aquela mesma

imagem da serpente que voltamos a ver na reedição pela editora Gradiva em 2003 da obra Tempo e Poesia. E

ainda de novo, no volume I, Heterodoxias (coordenação, Introdução e Notas de João Tiago Pedroso de Lima),

de 2011, e seguramente em todos os volumes que se seguirão, das suas Obras Completas, em publicação pela

Fundação Calouste Gulbenkian.

Page 40: Iberografias nº9

40Portugal e o seu Destino

– não isto ou aquilo, mas um caminho que se vai abrindo – surpreende o aguilhão para se pôr de bem com esse país. Na entrevista recentemente publicada na Revista Esprit (Junho de 2013), à pergunta dos entrevistadores, Guilherme de Oliveira Martins e João Fatela, relativa às consequências, para a sua aproximação a Portugal e aos seus mitos, de ter vivido uma grande parte da vida dele no estrangeiro, em França, onde ensinou, não sendo propriamente um exilado, ele responde:

Não fui exilado, parti por razões que são de ordem pessoal. Sim, certas pessoas que me conhecem pensam que eu tenho uma visão de Portugal, marcada ao mesmo tempo pela paixão e por uma vontade de compreender do modo mais racional possível o que é o nosso país, a sua cultura, quais são os seus mitos, etc., que beneficiou com a distância. Mas um «país», esse país que é o meu, não tem verdadeiramente um «exterior». Como Deus para santo Agostinho, ele é-me, no fundo, mais interior do que eu próprio. (tradução minha)

Este país que é o dele e a que às vezes chama “póstumo”, nome que é ainda uma res-sonância do carácter irresolúvel da desproporção assinalada, equilibrando-se com tanta coisa que descobre no momento ter sido adiada, como é o caso do diário que em 2003 confessa andar a escrever: “É um indivíduo que, escrevendo o diário, assume-se como criador de si mesmo”2. Uma coisa não foi adiada, escrever um romance, isso, diz ele, é uma voz que ele não ouve, não tem cura, abre uma ferida que não fecha.

O género heterodoxo

Já o autor chama ensaio àquilo que ele próprio escreve, sem poder sequer adivinhar a força penetrantíssima com que Montaigne entrará na sua vida, permanecendo o modelo ímpar. Antes destes Ensaios, nascidos da consciência de uma divisão interna insanável que constitui o próprio homem, e de onde se engendra a atitude e o conceito de heterodoxia, em Portugal só se conheciam formalmente os Ensaios de António Sérgio, aos quais Eduardo Lourenço se dedica em “Europa ou o diálogo que nos falta da permanência no mundo do espírito”, e cuja avaliação persiste ao longo dos anos: admiração crítica de alguém que representa um dos pólos do pensamento e do modo de ser português, o lado pragmático, positivista, e que podemos considerar uma das ortodoxias. As outras encontra-as ele, por um lado, no idealismo saudosista, mais ou menos nacionalista e cristão e, por outro, no pensamento político de matriz marxista, ambas fascinações, produtoras de hipnose (são elas que incitam Eduardo Lourenço a tornar-se heterodoxo3). Assinalemos a grande perenidade daquele “diálogo que nos falta” com a Europa, ao longo da obra de Eduardo Lourenço, como é o caso de “Nós como Futuro” de 1997, até aos seus últimos textos e entrevistas. Aqui inscreve-se o gesto próprio do heterodoxo, isto é, não se fixar num ponto vista parcial, para quem a Europa, além de destino e ouvido, já foi túmulo, e agora é “museu de si mesma” (lembre-se a entrevista de Maio de 2013, feita por Teresa de Sousa e publicada no Jornal Público).

“Sou a pessoa que menos escolheu a vida. Fui escolhido. Deixei-me escolher, como uma

2 Palavras de Eduardo Lourenço numa conversa orientada com Anabela Mota Ribeiro que teve lugar no Museu de

Serralves em Dezembro de 2003 (posteriormente publicada no Diário de Notícias). Referida a partir de agora

como Conversa. Agradeço a Anabela Mota Ribeiro ter-me permitido a sua leitura.

3 Assim as apresenta no Prefácio a Heterodoxia II: “Catolicismo e Marxismo [...] definiam nos anos 40 o hori-

zonte de uma opção ideológica com tradução histórica e social na vida portuguesa [...] situação maniqueísta

[...] se o conteúdo era outro, a forma, verdadeira alma de tudo, era a mesma. Em sentido próprio e figurado,

ambas as visões do mundo pretendiam que fora delas «não há salvação»”.

Page 41: Iberografias nº9

41Maria Filomena Molder

folha, como o vento” (Conversa). “Fui escolhido” significa tudo menos ser um eleito, é mais não saber ao que veio e seguir trilhos sem ter bem a noção de que os seguia. Mais à frente esse ser escolhido parece uma condenação – “Como diz o Hegel, somos condenados por Deus a ser filósofos” (coisa que é assinalada em Heterodoxia I) –, marcado por uma ferida que não se fecha. Mencionámos já essa ferida e voltaremos a ela.

O ensaio é o género próprio daquele que aceitou seguir o vento, daquele que decidiu abster-se da doutrina, da teoria, daquele que não tem programa nem método de constituição de um sistema, daquele que não teme o desafio de ser um “homem privado, sem recado nem mandato” (Heterodoxia II, Prefácio, p. XVII).

As consequências da serpente

Migdar, “a serpente que morde em círculo a própria cauda” é um “símbolo de sugestões perpétuas”: assim nos introduz Eduardo Lourenço no coração da heterodoxia em Outubro de 1949 (no já citado Prefácio da Heterodoxia I). Vejamos quais: a vida no seu todo que inclui aquilo que a nega, a morte; a “cadeia inelutável”, a saber, a ordem invencível do tempo que não retrocede; mas também a dialéctica4 em que os contrários se vinculam, “como o corpo à sua sombra”. E ainda, num enxame de todos os outros sentidos, “parábola permanente” da condição humana, terrestre, instável e abissal. Finalmente “descrição pura” do engendrar-se da palavra no silêncio, ou do linguajar de que o silêncio é uma libertação.

O reconhecimento de Migdar como “essência da realidade chama-se HETERODOXIA” (Ibid., p. 7). É também a imagem dessa serpente que lhe insufla a suprema dúvida: “Será possível uma situação humana realmente heterodoxa?” (Ibid., p.11), caracterizada na linha anterior, à maneira de Wittgenstein, como “uma simples doença da linguagem”. Aquela interrogação afasta o heterodoxo tanto da ortodoxia como do nihilismo.

Daí que o vejamos aceitar duas evidências, sobre as quais assenta todo o seu caminhar, uma, descoberta no livro segundo da Metafísica de Aristóteles e outra, no quarto Evangelho, a saber: «que ninguém pode atingir adequadamente a verdade, nem falhá-la completamente» e «ninguém jamais viu Deus». Evidências que se conjugam com a convicção da pluralidade, diversidade e historicidade das coisas humanas, com a qual se evita qualquer forma de idolatria.

O Comigo me desavim de Sá de Miranda não lhe convém, Eduardo Lourenço não traz consigo tamanho imigo de mim. Não é que lhe escape que o homem é uma realidade dividida, bem pelo contrário: “No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na politica, o homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão chama-se HETERODOXIA” (Ibid., p.15). E que dezassete anos depois se reconheça como um “autor [em dificuldade] consigo mesmo” (Heterodoxia II, Prefácio, p. IX). Mas é mais a palavra do Cântico Negro de Régio que se escuta:

..................................Não sei por onde vou

Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!

4 Conceito que, com origem no seu primeiro mestre, Hegel, é reutilizado constantemente durante muitos anos

nos contextos mais diversos e, mesmo não utilizado, continua a vigorar sob a forma estilística de oximoros,

paradoxos, trocadilhos.

Page 42: Iberografias nº9

42

Ele simplesmente não quer ser empirista nem racionalista pragmático nem idealista saudoso, em suma, português de gema.

Em primeiro lugar, pensar por conta própria com todos os riscos inerentes. Amargura e solidão: eis o soldo que recebe aquele se empenha nesse “ofício divino” de aceitar “a loucura invisível da Verdade” (São Paulo não anda longe), forma paradoxal de humildade que ousa gritar “Não vim trazer a paz, mas a guerra” como o Cristo do Evangelho segundo S. Mateus, glosado por Pasolini. E é ainda a imagem da serpente que evita a arbitrariedade da abstenção pura e simples das suas próprias evidências, gesto de que os ortodoxos o acusariam. Quando o que está em causa é abrir espaço à sua volta para não se deixar sufocar, o que conta não é aderir, o que conta é ser surpreendido. Trata-se de um exercício de liberdade – para o que se exige a coragem de sofrer as consequências – e de espírito polémico quantum satis, de um combate sem quartel contra a opacidade do mundo5 sem poder usar outra medida que não seja “a nossa razão humana”, provida das suas regras, dos seus limites e dos seus abismos. Deus e o Absoluto não a largam, não largam Eduardo Lourenço, é seguramente uma questão de sede: o que quer dizer “Deus morreu”? Mas com isto já entrámos na Heterodoxia II (e, em particular nos textos sobre Camus), no Prefácio da qual Eduardo Lourenço faz o balanço dos seus verdes anos, falando “da guerra perpétua não só contra esto y aquello, como a definia Unamuno, espelho dos heterodoxos, mas contra nós mesmos”, “dos silêncios tragados à força”, concluindo que o seu ideal da heterodoxia era “sobretudo” uma “maneira de asso-biar na noite contra fantasmas sempre presentes no mundo e dentro de si”.

Ainda no texto de 1949 chegamos a um ponto incandescente em que a liberdade humana já não rima com espírito polémico, mas com forma de vida, isto é, havendo “a obrigação de suportar a liberdade humana” (como Jean-Paul Sartre se avizinha, mesmo que isso só seja observável a olho nu em Heterodoxia II, quase vinte anos mais tarde), não serão “no mais profundo deles mesmos” heterodoxos todos os homens? (Cf. Ibid., pp.12-13). Aqui ouvimos ecoar a maravilhosa convicção do obscuro Heraclito: “A todos os homens pode caber a sorte de se reconhecerem a si próprios e de sentirem a imediatez” (La sapienza greca III, Eraclito, 14 [A 50], tradução Giorgio Colli, Adelphi, Milano, 1980).

Acto, não escrito

Os nomes, as imagens, os mitos gregos introduzem-se em Heterodoxia II e farão parte inalienável do tesouro estilístico de Eduardo Lourenço: labirinto, Medusa, Minotauro, e emergindo das múltiplas vozes, dos personagens e actores, Ulisses, Prometeu, Édipo..., o trágico, a tragédia, a tragédia da vida humana, a tragédia da alma portuguesa6. E Fernando Pessoa já se tornou o supremo guia heterodoxo: “Quem amou Pessoa morreu para todas as idolatrias, até para a da poesia”.

Agora a heterodoxia é apelidada de “ideal”, uma “aposta adolescente”, não menos por isso, corajosa decisão de se livrar da asfixia dos anos 40, e avaliada como aporia em que ficou preso, pois ela não era um escrito mas um acto – coisa que o ensaio, como gesto e como género, transporta consigo – , correndo os perigos do reinado da dúvida incessante e,

5 Se é que esse combate tem sentido, suspeita que Imre Kertész nos entrega: “Mas quem disse que o mundo

era para compreender?” pergunta ele (Um Outro. Crónica de uma Metamorfose, tradução do Húngaro de

Ernesto Sampaio, Editorial Presença, Lisboa, 2009, p. 20).

6 O imaginário é agora todo alimentado pelos Gregos, a serpente germânica Migdar já não é nomeada, embo-

ra o seu múltiplo valor simbólico permaneça inscrito em toda a obra de Eduardo Lourenço, e a sua imagem

gráfica seja um selo de reconhecimento disso mesmo. Como quer que seja, ambos os imaginários foram

sempre atravessados, e o grego continuará a sê-lo, pelo poder do sentimento religioso de natureza cristã.

Portugal e o seu Destino

Page 43: Iberografias nº9

43

paradoxalmente, também os da ilusória firmeza:

Recusar a verdade dos outros ou o espírito com que eles a vivem não é mesmo que encontrar a sua. É apenas ficar nu, situação inconfortável num mundo vestido, mas não forçosamente trágica. A única tragédia, que é sempre ilusão, é estar nu e supor-se vestido [...] O que o autor cria – ou supunha crer – era menos firme do que o que ele deixava entrever.Heterodoxia II, Prefácio, pp. XI-XII

Mas tal não significa que tivesse sido “nem subjectivamente, nem no contexto português, uma pura fantasia às margens da vida”. Na verdade o irrequietismo, a recusa em ser arrastado por aquilo que não queria seguir, o propósito de deixar cair vínculos que lhe impediam aquilo que era mais do que ele, a sua liberdade, “um non possumos espiritual, social, vital”, não poderiam deixar de equivaler a “um salto no abismo”. Passar por estas provas deixa marcas. Entrámos naquilo a que se pode chamar de pleno direito, fazendo vénia a Nietzsche, “Ensaio de auto-crítica”. Eduardo Lourenço chama-lhe “libertação” e, ao mesmo tempo, “oração de liberdade”, em suma: “ensaio e confissão”. Porém, no que a isto respeita, há excesso de severidade, pois dezassete anos atrás, Eduardo Lourenço já sabia que a heterodoxia não poderia ter “outro conteúdo que o dessa recusa, outro sentido que o da busca de uma eterna América, porventura inexistente”. Acentuemos a imagem, da “busca de uma eterna América”, que há-de retornar, em particular, aplicada a Montaigne:

Mas a invenção do “ensaio” não é apenas um acontecimento de ordem literária, um achado feliz, entre outros, a colocar ao lado da “confissão”, do “diário íntimo” ou das “cartas. Consideram-se, com justiça, os Ensaios como o lugar escrito ou o diário de uma aventura mais inaudita ainda que a de Colombo. A da descoberta do Homem como a sua própria América.“Montaigne Ou A Vida Escrita”, Apêndice, Obras Completas I, Heterodoxias, pp.535-536

Madrugar para a sua própria noite

Por temperamento e por formação espiritual, a única motivação radical das recusas ou aceitações é para nós metafísica, se se entende por isso aquela que não tem em conta espécie alguma de considerações, salvo as que procedem da vivência mesma da Verdade como ideia.Heterodoxia II, Prefácio, p. XVII

Portanto, não é sem profunda convicção, que para Eduardo Lourenço o racionalismo, o “farisaísmo da razão”, representa uma “confortável morada de contentamento espiritual”. E não é intenção do heterodoxo instalar-se “a preço módico” nessa hospedaria, onde receberia uma “bênção sem sacramento”, coisa que lhe repugna supremamente. Para ele a razão é a “nossa razão”, aquela que ele aprendeu a reconhecer sobretudo em Kant, a razão com os seus limites e os seus abismos insondáveis – as suas sombras, pelas suas palavras, Deus, Futuro, Morte –, razão teórica e razão prática. A ciência, quando perde a consciência de si é um bom refúgio para todo tipo de hóspedes, e foi aí que o Marxismo – que é “leitura datada” e não “mistério da História transparente” – se abrigou e desenvolveu a sua escolástica. Ora, aquelas sombras são no seu cerne combustão perene, “estão sempre pegando fogo à seara humana”, elas não pertencem à “ordem do discurso contestável”, e a elas o heterodoxo não tem nada a opor: “Se em algum espaço que não é espaço somos livres é nesse que a Verdade não-definida define”. Há limites, porém, que têm a ver com a ausência da graça da fé, neste caso a não-aceitação do mistério da ressurreição da carne, que levou “O autor desta

Maria Filomena Molder

Page 44: Iberografias nº9

44

linhas, católico, filho de católicos, desde bem cedo,” a abandonar “o seu lugar marcado de séculos”, a pôr-se de pé como “o auditório bem disposto da Acrópole”, pois, como eles, já não conseguia acompanhar São Paulo.

O adolescente confirmado na Fé e ávido de evidências teve o amargo privilégio, a audácia triste – para ele necessária – de se separar da luz da sua infância e do sentido incomparável que ela projectava no chão celeste da sua vida [...]Ibid., p. XXXII

Não ter recebido a herança, ter-se convertido num deserdado por decisão própria, é uma das forças maiores deste pensador, ela manteve-se íntegra, atravessando anos e formulações, auscultando os sinais, interpretando-os, interpelando-os. Um deles é a tendencial ocultação, desaparecimento ou esgotamento do sujeito. O que não quer dizer que a vida humana deixou de ser trágica, mas que “o trágico mudou de direcção”, imerso na “fascinação estruturalista” engendrou “a tragédia sem sujeito”. A Esfinge tem perguntas a fazer, enigmas para serem decifrados, mas Édipo erra surdo e mudo por paragens electrónicas: “É a morte do homem ou de uma antiga mas não fatal imagem dele?”7

Guerra e nostalgia

Em resumo, em Heterodoxia I, Eduardo Lourenço prestou contas da tradição filosófica que estudou, aprendeu e fez sua – os Gregos, sobretudo Aristóteles, Descartes, Leibniz, Kant, Hegel... –, daquilo que encontrou no seu país, o que herdou como Português, o que vê desenrolar-se à sua volta. Há um trabalho prévio a fazer, uma decisão precoce a tomar: pensar por si próprio o homem e a sua divisão, as suas oposições, as suas antinomias, o que o obriga a separar-se, destacar-se daquilo que recebeu, e a abrir um caminho que não está traçado, obedecendo à sua disposição mais íntima: a renúncia a qualquer recado, a qualquer mandato. Em Heterodoxia II esse terçar de armas já foi incorporado, afinando-se o talento polémico, o que alcança o seu ponto incandescente (o humor crítico de Eduardo Lourenço conhece aqui um dos seus expoentes) no último ensaio, “Ideologia e Dogmatismo”, preparado pelo Prefácio. Vemos que o caminho que vai do desejo de conhecer à admissão aristotélica de que nem se possui a verdade nem a verdade foge de nós, desaguou numa inquietação, nunca vencida, do homem a braços com um mar de perdas, entre a sede do Absoluto e a morte de Deus. Ouvimos Eduardo Lourenço a falar pela boca de outros – paixão e possessão pelas vozes alheias –, mas não chegar a ser ventríloquo. A imagem do espião de Deus (“Sören Kierkegaard: Espião de Deus”, penúltimo ensaio de Heterodoxia II) é uma forma dele falar de si próprio sem poder, ao mesmo tempo, identificar-se com essa forma de falar. Eis a sua voz, em cujos harmónicos se escuta o seu estilo a formar-se em status nascendi:

No meio deste labirinto sem Minotauro, alguns, docemente envelhecidos na paixão infeliz da Verdade tornada indiferente, só podem sentir o que na arcaica linguagem da sua infância se chamava alma, clamando de olhos enxutos no meio de um deserto sideral a sua insepulta nostalgia de Deus.Nice, 9 de Novembro de 1966, Ibid., p. XXXVIII

7 Mencionem-se os artigos nos quais Eduardo Lourenço se demarca de toda a posição filosófica que ponha, ou

pareça pôr, entre parêntesis o sujeito, a saber, quer o estruturalismo, Foucault em particular, quer o pensamento

do Tratactus wittgensteiniano: “A Linguagem em Questão ou a Filosofia? Nota à margem do XII Congresso

das Sociedades da Filosofia Francesa”; “Michel Foucault ou o Fim do Humanismo”, Obras Escolhidas I, Hetero-

doxias, respectivamente pp. 363-366 e pp. 367-378 (ambos da mesma época de Heterodoxia II).

Portugal e o seu Destino

Page 45: Iberografias nº9

45

Destino do heterodoxo

Mais tarde, há-de encontrar o mestre da tolerância, aquele que prescindiu de explicar o que quer que fosse e de polemizar com quem quer que fosse, preferindo, antes, contar, Montaigne: «Je ne suis pas philosophe».

Aliás, a partir de certo momento, que não está datado e talvez corresponda a um desde sempre, pertencerá a Eduardo Lourenço a evidência do Mestre em Fernando Pessoa: Pensar incomoda como andar à chuva. Esse incómodo marca a distância entre filosofia e poesia que se entrelaça com a implícita convicção, já presente em Heterodoxia II, da vocação natural de uma para a outra, pois ambas, poesia e filosofia contemporânea, concorrem para destituir a “boa consciência racionalista”.

Vocação posta à prova sempre que Eduardo Lourenço escreve sobre poetas e poesia8 e abandona quase de vez os ensaios sobre filósofos, até atingir a claríssima verificação (Conversa, 2003) de que os versos não nasceram para serem comentados, corrigindo aquela vocação natural, isto é, estabelecendo a primazia do poeta sobre o filósofo. A poesia não é interpretável: é isso que se compreende pela recusa em comentar um verso de Sófocles: “Não tem comentário. A poesia quando é, ela é o dizer absoluto” (retomando na Conversa de 2003 as palavras de Tempo e Poesia: “Em sentido radical não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo”). Por outro lado, o encontro de Eduardo Lourenço com Montaigne vai reforçar a consciência da bebedeira universal e afastá-lo ainda mais da filosofia como teoria e sistema:

[...] o demasiado famoso “Que sei eu?” de Montaigne pertence ainda a esse tempo relativamente benigno em que se podia “suspender o juízo” sem sofrer a ira dos céus, e sobretudo sem fazer disso, como , mais tarde, Kierkegaard, Pascal privado da Graça, “uma doença mortal” [...] O seu papel, ou melhor, o seu prazer, é o de desconstruir [...] de modo que nenhuma representação seja para ele um constrangimento.“Montaigne Ou La Vie Écrite”, Obras Completas I, Heterodoxias, pp. 467-469 (tradução minha)

Por conseguinte, mais do que incómodo – incómodo é a forma de tédio particular que um poeta pode sentir pela reflexão, etc. e tal –, há a crueldade que lhe está associada, sob a forma da vontade esfomeada e insatisfeita de querer conhecer: “em cada querer conhecer há uma gota de crueldade”, declara Nietzsche em Para Além do Bem e do Mal, lembrando uma evidência esquecida, a de que o espírito – e também o coração – prefere “afirmar, amar e adorar” a conhecer, prefere “a aparência e o superficial”, numa palavra, a vida, à profundidade, ao fundamento, isto é, às máscaras que tentam corrigir a vida, as suas doenças. Eduardo Lourenço sempre soube que ler é um acto de amor, que “quando discutimos, estamos na dúvida, no não-amor, já estamos na decepção, no desencanto”. Aliás, em rigor, não há condições para discutir “nada que seja para nós Deus, seja a emoção, o amor, a paixão”. Aquilo a que chamamos a cultura europeia e ocidental, “aquela que

8 Vejam-se os ensaios incluídos em Tempo e Poesia, e as palavras prévias que os antecedem (escritas entre 1969-

1973), com o título muito hamanniano de “Critica e Metacrítica”. Entre elas escolhemos estas: “Mas na

ordem da simples pretensão que é aqui a minha, a intenção visível que desde cedo me norteou foi a da apagar

uma distinção ao mesmo tempo escolar e escolástica – mas bem sintomática da existência cultural burguesa

interiormente cortada da sua profunda pulsão unitária – entre criação literária e critica, entre filosofia e poesia.

Ou antes, de viver o indelével abismo que na verdade as separa, não como negativamente era o costume de

um racionalismo critico seguro do seu bom direito de separar «razão» da «não-razão», mas positivamente,

como manifestação de uma dialéctica original que morre do que afirma e vive do que recusa”, pp. 22-23.

Maria Filomena Molder

Page 46: Iberografias nº9

46

exportámos, viveu durante séculos daquilo que ia destruindo, destruindo como crença, como verdade, como valores. Viveu disso” 9 (Conversa).

(No Galileo Galilei de Brecht assiste-se ao horror da redução da Terra a um calhau que rola pelo negrume do espaço sem fim, e Baudelaire falou quase sempre da Terra como um planeta).

Na sequência desta avaliação da nossa cultura e civilização, é de salientar a convicção de Eduardo Lourenço relativa à prioridade da crença sobre a dúvida – e como se cruzam aqui, quer o pensamento tardio de Wittgenstein sobre a precedência da crença em relação à dúvida quer o de Fernando Gil sobre a evidência que dessa precedência irradia –, no momento em que declara com muita acuidade que:

A regra é a da crença. Não há cultura original que assente na dúvida. Nós [os Modernos] fizemos da dúvida uma espécie de imperativo categórico do espírito crítico. A criança nasce na crença quando recebe a voz da mãe, ela já está inscrita numa voz, numa coisa positiva, não começa a dizer não.

Se desde Aristóteles (desde Platão) o conhecimento é visto como desejo interminável, aqui separam-se as águas entre o conhecimento da ciência e o da filosofia. Ainda na Conversa de 2003, Eduardo Lourenço estabelece o contraste entre “a compensação euforizante de uma verdade que se conquista, que se pode guardar, que se pode requisitar, preencher, tocar” e aquele sentimento febril da verdade que não “podemos ter na mão”, pois “é qualquer coisa que nos despe de todas as certezas. Sobretudo das infundadas. Esse é o ofício do filosofar propriamente dito”10. Será ele libertador? Eis o heterodoxo a falar: a filosofia é recusa, é desafio desmedido. Libertadora é a embriaguez das vozes, muitas. Há coisas que não se discutem.

Falar pela boca de outros, leitura e cegueira

Não ser só um: eis o que a leitura intensifica a uma potência que não conhece termo: falar pela boca dos outros. À maneira de Montaigne “que se deixa mais ler por eles [pelos livros] do que os lê”.11 Essa é a embriaguez de Eduardo Lourenço: entrar em possessão, paradoxalmente argumentada, daquilo que não poderá tornar-se propriamente objecto de estudo (como ele diz em Tempo e Poesia a escolha do texto é “antes uma escolha de nós pelo texto...”). Na verdade, é a estrutura dramática que permite esse paradoxo. Voltaremos a isto.

“Eu vejo conceptualmente. Ou melhor, eu não vejo, sou cego. Eu não vejo nada. Eu leio. Só me interessa o sentido das coisas, não propriamente a realidade das coisas” (Conversa 2003).

9 Eduardo Lourenço encontra-se aqui com Nietzsche, embora não fosse previsível, e não dispondo muito segu-

ramente de firmes condições de possibilidade. E, no entanto, no ensaio “À sombra de Nietzsche”, de 2006,

demonstra-se a decisão de fazer justiça a Nietzsche, através da antecipação de uma comunidade. Mas já na

versão reduzida de “Montaigne Ou La Vie Écrite” (citada atrás) ele vai ter com Nietzsche graças a Montaigne:

“Sem ser Nietzsche, qualquer leitor dos Ensaios [...] verificará, como o autor de Humano, Demasiado Humano,

que Montaigne foi «leal» com a verdade da terra e dela extraiu, para ele e para os outros, menos uma

sabedoria do que um prazer”, Op. cit., p. 540.

10 Trata-se da diferença entre ciência e filosofia que no Prefácio de Heterodoxia II já se contrastava.

11 E continua Eduardo Lourenço: “Nesse sentido foi talvez o primeiro leitor, aquele que lê como lê uma criança,

por prazer, por nada”, “Montaigne ou la Vie Écrite”, Op. cit., p. 466 (tradução minha). Mais adiante escutaremos

ecos desta compreensão de Montaigne na apresentação de si próprio como leitor e escritor.

Portugal e o seu Destino

Page 47: Iberografias nº9

47

É difícil maior concisão e justeza nesta determinação do que seja um pensador, do que seja ele como pensador: ver conceptualmente é uma forma de cegueira, isto é, implica uma epochê de todas as evidências comuns, alimentada pela solidão, onde as coisas aparecem descarnadas, arrancadas do seu lugar para serem desterradas para o espaço a que se chama o seu sentido. Este exílio é obtido à custa da potência de transformar de imediato a realidade em alegoria. Na consciência aguda de ser desprovido do sentido concreto das coisas que resistem a qualquer outro, Eduardo Lourenço dá-nos a ouvir a tonalidade trágica de ter sido escolhido. E, se vemos reaparecer a incomensurabilidade entre filosofia e poesia, é impossível não reconhecer que ela é varada por uma origem comum, isto é, carecem ambas de razão, são filhas do mesmo vento.

Liberdade e Juízo Final

A sede, a fome, nunca saciada, de liberdade, fisiologia indomável que lhe vem da infância e da adolescência confinadas a uma Escola Militar: “O colégio militar fez nascer em mim um apetite de liberdade infinito. Nunca mais acabará” e continua: “Não se passa impunemente por esses anos” (tal como não passou impunemente pelas instruções da serpente Migdar). Evoca então a obra de Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros à qual, confessa, regressa incessantemente. A diferença com Godot é que, para Eduardo Lourenço, “Os Tártaros aparecem sempre” e, no entanto, no livro de Buzzati eles nunca chegam a aparecer, apesar de todos os dias o horizonte ser sondado e espiado (Cf. Conversa). Desacerto que intensifica a angústia do personagem de Buzzati, todos os dias renovada, dando-lhe um termo que soa a Juízo Final.

Sinonímia imprevista e falsos gémeos

Ainda na mesma Conversa deparamo-nos com a mais imprevista e bem-vinda forma de entender o que seja enterrar, dando conta de um dos fins imanentes à escrita:

Uma das coisas para que se escreve é para não se lembrar mais, para enterrar. Como se diz numa expressão vulgar: ligar à terra. Se, por acaso, essa terra tiver raízes no céu, melhor.

E surpreendemos dois falsos gémeos, que são outros tantos fins imanentes à escrita: “Não se escreve para isso [reter a fugacidade, ainda em relação ao diário, tanto tempo adiado]. Escreve-se para deixar um traço”, um vestígio, como o caracol, ou a escolopendra descrita por Sergio Solmi. Para incitar emoções, perplexidade, repulsa, diz Eduardo Lourenço, para encontrar um vivo.

“Mas as coisas que interessam são aquelas que se escrevem por nada, só porque não podemos fazer outra coisa”. Escrever “por nada” é anterior a escrever “para deixar um traço”, um vestígio, e muito mais anterior a escrever “para reter a fugacidade”. Em qualquer dos casos, trata-se sempre de enterrar, isto é, de ligar à terra, de abandonar à fortuna, ao acaso, ao destino, não ao vento, pois desce-se à terra, esquece-se, é-se esquecido. Se houver redenção, tanto melhor.

A indecifrável

Histórias de família: de todos os filhos, um só, uma só, cumpriu o desígnio materno de consagração ao ofício divino – o que, não o esqueçamos, Eduardo Lourenço atribuía ao heterodoxo no volume de 1949 –, a irmã carmelita na Amazónia.

Maria Filomena Molder

Page 48: Iberografias nº9

48

Quando se ia lá, acordava-se às três horas da manhã. Com toda a fauna da Amazónia, tudo quanto é som, tudo quanto é grito, estridência, uma espécie de loucura que se apodera da natureza, de tudo à volta do convento. E foi para esta solidão que a minha irmã foi.Conversa

Nisto, hegeliano quanto baste, não é a natureza que o chama, ela é a indecifrável, o que o chama é a cidade dos homens, as acções dos homens, a teia que constitui o seu drama, aquilo a que forma a sua história. Esse carácter insondável da natureza, a estrangeira, faz com que Eduardo Lourenço não tenha adivinhado na figura do Minotauro o segredo oculto da animalidade humana. Embora no final do Prefácio de Heterodoxia I, ele fale desse gesto, impoluto e violento, de levantar o véu de Ísis, e do que se vê a seguir, a saber, o sexo materno. É essa visão que o inicia na profundidade da vida, no seu mistério, comunicável pela imagem de Migdar: as suas pontas “mordem-se eternamente, confundindo a sua fúria e o seu fervor” A isto chama “visão do Absoluto como luta, como razão e irrazão”, fazendo-a equivaler à “impossibilidade carnal que têm certos homens de separar em definitivo o amor ilimitado ao Cristo da piedade ilimitada por Judas”, os heterodoxos. Porém, a carne, aqui, é menos a animalidade do que “isto é o meu corpo” de Cristo.

Drama e lamento

Não é bem um contador de histórias, Eduardo Lourenço está longe de ser um narrador. Desde sempre que ele já está um passo adiante, as histórias de encantar, os contos que passam de boca em boca são como palavras aladas para ele. É dos mitos – que não são propriamente histórias mas visões –, aqueles que ele próprio reconhece e recria, e nos quais surpreende um eidos, uma configuração viva, que recebe o incitamento para pensar e é neles também que coagula o seu pensamento e o faz irradiar. Citemos uma passagem sobre o «Orfeu», em que é feita a determinação do que seja um mito, um mito português:

Orpheu não se tornou um mito apenas para nós, admiradores tardios. Essa revista de dois números foi um mito igualmente para os mais lúcidos dos seus colaboradores – quer dizer, alguma coisa onde estavam mais do que estavam, alguma coisa que não só o nosso futuro mas o deles mesmos nunca mais exprimiria nem alcançaria.”“«Orfeu» ou a poesia como realidade”, Tempo e Poesia, p.45.

Mais do que agora e nunca mais: eis a temporalidade própria do mito. Estar num onde mais do que se está, um presente inabsorvível, e nunca mais exprimir nem alcançar isso em nenhum futuro, o deles, e o nosso e o dos que se seguirão. Simultaneamente, vestígio sem herança e fundura de um adiante por alcançar. Estamos diante do mais secreto conceito de mito em Eduardo Lourenço, próximo da vertigem dos versos de Schiller: O que nunca em lado algum aconteceu/ Só isso não envelhece.

Dos mitos retira ele (ou inscreve) o seu exultante poder alegórico, isto é, cada ser (e não só os seres humanos) é um personagem com letra maiúscula, à maneira barroca, com eles compõe tableaux vivants. Às ideias dos filósofos acontece o mesmo, sobretudo quando o seu estudo adquire a energia dramática da possessão, como é o caso de Camus e de Kierkegaard. Os limites dessa possessão, que se transforma em limiar de intimidade, serão Pessoa e Montaigne.

“Não, não, não” (não lhe interessa a história factual). “O que me interessa é o drama, a peripécia humana, a dramaticidade intrínseca da vida humana” (assim responde a uma interpelação em Conversa). A paixão pela história (e pela filosofia como história) nasce dessa visão de personagens agindo uns sobre os outros, de uma rede viva de acções e reacções,

Portugal e o seu Destino

Page 49: Iberografias nº9

49

jogo teatral, drama, a que chama também romance.

O grande primeiro modelo é seguramente A Fenomenologia do Espírito de Hegel. Porém, aqui, pelo que me diz respeito e não poderia vir mais a propósito, é impossível não voltar a citar um dito de Goethe – sublinhando que é um dos autores de Eduardo Lourenço – em carta de 3 de Março de 1785 à Senhora von Stein: “a causa finalis da vida humana e do mundo é a poesia dramática”, o que constitui uma das evidências mais poderosas para isso de “vir ao mundo”, mundo incluído. A sua fertilidade só tem equivalência no seu carácter insondável.

Eduardo Lourenço sempre leu a história como quem lia romances e esse foi e é sempre o seu modo de ler a história. E está convencido de que toda a gente quer ser romancista, porque a vida de cada um é “um romance pegado”: “Sim, sim, toda a gente quer ser romancista”. Aqui dá-se a conhecer uma dor invencível, por não ter tido “a coragem de passar esse romance, de entregar esse romance, de querer esse romance”. Retórica sumptuosa para dar conta de um vazio inabitável.

Lições de um momento memorável

O mais memorável da vida dele: o encontro com Heidegger. “Como se estivesse diante dos Gregos (e de Hegel)”, associação que Eduardo Lourenço preza e justifica, quando na verdade estava apenas diante de Heidegger. Para quem nunca se encontrou com Heidegger, e apenas o leu, nos escritos de Heidegger só encontra Heidegger: todos, modernos e antigos, ficam tingidos com a sua feitiçaria estilística (vem-nos à ideia a experiência inversa: quando se lê Hölderlin redescobrem-se os Gregos). Pode dizer-se, continua, Eduardo Lourenço, que se tratou de um momento “Sacralizante, se se pode levar o termo para qualquer coisa que é do mais dessacralizante possível, que é a palavra filosófica”. Não podia ter mais propriedade. Por um lado, a filosofia é uma máquina de destruição, por outro, a ninguém, para além de Heidegger, ficava a calhar melhor tal determinação. Façamos um pequeno desvio para entender esta reserva. “Naquela altura não falava tanto”, referindo-se – mantendo-nos na Conversa de 2003 – ao momento precoce na infância, depois de ter saído da sua aldeia beirã, em que viu o mar, aliás, o que mais o impressionou foi um barco virado do avesso na areia. E eis a auto-ironia, a pequena distância que o faz familiar de Montaigne. Uma pequena distância que é quase impossível de vislumbrar em Heidegger.12

Mas quanto a dar conta e a transmitir a vida que pulsava ali, o enxame de pequenas percepções que seguravam aquilo tudo, quanto a isso, nada: “Não tenho nenhuma memória dessas coisas concretas, senão era romancista”: “c’est la blessure de ma vie, a ferida da minha vida”. Atente-se no uso da língua francesa ao lado da língua materna e antecedendo-a, como se a língua de adopção lhe permitisse falar dessa dor, assim multiplicada, preparando-o para a língua natal.

“De resto, mesmo que quizesse, seria incapaz. Se deixarmos fugir certos momentos em que somos menos nós e mais aquilo que é o neutro, a voz impessoal que fala em nós, nunca mais os conseguimos apanhar”. Esta é a voz que ele não conseguiu, não conseguirá enterrar, ligar à terra, e talvez redimir-se por ela. Ou é esta voz que não o atravessa como se ele não fosse ninguém.

12 A não ser na entrevista de 26 de Setembro de 1969, orientada por Richard Wisser, em que lamenta ter usado

neologismos – et pour cause – em Sein und Zeit, pois a língua não precisa de novos termos, precisa é de um

cuidar novo dela.

Maria Filomena Molder

Page 50: Iberografias nº9

50

Actualidade e inactualidade13

Regressemos a Heterodoxia II, a duas passagens do Prefácio nas quais a avaliação do seu momento alcança um limiar crítico insuperável. Por um lado, elas continuam a exercer o seu efeito de diagnóstico, por outro, desafiam-nos a ousar fazer frente ao nosso dia:

Estamos, enfim, às portas de nós mesmos, à vista de uma Civilização reconciliada com os seus desejos ancestrais de paz e transparência humana ou já no interior de uma super-Alphaville onde esses desejos e as questões que eles suscitavam já nem sequer podem ser formulados?Heterodoxia II, Prefácio, p. XXXV

Temos apenas tempo para nos maravilhar com o último «robot» antes que esteja fora de moda e alcance [...] Até os horrores hiperbólicos, a Guerra sem máscara e a Fome planetária, são impotentes contra este grandioso sonambulismo electrónico.Ibid., II, p. XXXVIII

Eduardo Lourenço a braços com o seu dia de novo e uma vez mais, agora, que “não tem nada que fazer” (liberdade e auto-ironia, provocação, aceitação disso mesmo). À maneira de um moralista clássico.

A cultura é um exercício de desestruturação, não de acumulação de coisas. É uma constate relativização do nosso desejo, legítimo, de estar em contacto com aquilo que é verdadeiro, belo, bom. É esse exercício de desconfiança, masoquista, de de-sencantamento. Conversa

Mais do que legítimo, aquele nosso desejo, justamente por ser tal, um desejo, é uma força que nos atira para a frente, não pode ser exilado, e quando o é por força de poderes nossos incapazes de imaginarem qualquer coisa que os transcenda, então cai sobre nós o “desencantamento do mundo”. Tema weberiano, muito caro a Eduardo Lourenço (e que ele, aliás, faz retroceder a Montaigne). Tem origem na pretensão de domesticar mediante o cálculo, negando-os, todos os poderes ocultos e imprevisíveis que possam interferir na racionalidade. Domesticação que faz temer ser roubado a si mesmo, engolido por uma “onda de petrificação mecanizada numa luta convulsa de todos contra todos” (cf. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Veja-se ainda A ciência como vocação).

Assistimos a uma viagem de Eduardo Lourenço que parte do “eu não vou por aí”, caminha pela percepção aguda do carácter ébrio do mundo, vacilante e inexpugnável, chegando ao desencanto do mundo, o que, segundo a lealdade à heteronomia, não pode ter a última palavra: “Numa civilização e numa cultura em estado de vertigem em todos os domínios, embora a expressão seja difícil de pensar, o que visamos ou nos visa como Futuro surpreende mais ainda” (Nós como Futuro). Quer dizer, e citando-o, trata-se de “Balizas para um itinerário sem elas”.

O uno, o múltiplo, a Europa e ele

Na segunda parte do diálogo Parménides, vemos os interlocutores a precipitarem-se num abismo, do qual não serão resgatados nesse mesmo diálogo. Frente a frente uma tese

13 Conceitos de teor nietzschiano e que Eduardo Lourenço utiliza em “À sombra de Nietzsche” para dar conta

do estatuto do pensamento de Nietzsche, nos dias que correm, entre nós.

Portugal e o seu Destino

Page 51: Iberografias nº9

51

e a sua contrária. A primeira diz: só o uno existe e o múltiplo é uma ilusão. A segunda contrapõe: só existe o múltiplo e o uno é uma ilusão. Para cada uma delas se encontram bons argumentos e pedras-de-toque. Não há recurso a uma terceira via, o diálogo acaba com o nihilismo à espreita. Se em vez de entidades sensíveis e inteligíveis, Platão tivesse escolhida a linguagem humana, que só na multiplicidade das línguas é reconhecível, não teria ficado preso naquele rochedo. O amor heterodoxo pela multiplicidade, pela diversidade e pela figura que os une, e que é um desejo, jamais um dado, desempenhará aqui o seu papel. Comecemos pela Europa: “A cultura europeia nunca existiu. E nunca existiu porque nunca houve uma figura chamada Europa”. Na verdade, apenas com a vita nuova da nova poesia em língua vernácula, qualquer coisa como a Europa se começa a desenhar, nos finais da Idade Média: “a cultura europeia medieval era uma cultura de línguas particulares. É a cultura da Provença, a cultura da Irlanda, a cultura das diversas Alemanhas, a cultura da Hungria”: múltiplas particularidades, grandes diversidades, tesouros vários a acumularem-se, é a voz da língua materna a fazer valer os seus direitos depois da unidade culta que o latim providenciou, e a tradução ganhará foros de cidadania. Continuemos com cada um, e com este que se chama Eduardo Lourenço. É também a língua materna que fornece o lastro, a forma viva da identidade, de se ser este e aquele com a sua voz própria: “O resto é identidade humana, normal, genérica. A identidade no sentido em que a tomamos, como qualquer coisa de particular, uma voz que é só nossa, que escutamos, é dada pela língua”. Eduardo Lourenço não tem o ouvido preparado para ter várias pátrias, não lhe coube esse dom: “Uso a língua porque é a minha, através dela li e ouvi as primeiras coisas, a partir dela foi feito todo o meu imaginário” (todas as citações provêm de Conversa 2003).

“Uso a língua porque é minha”, que a língua seja minha não é o equivalente de um domínio, de uma posse, é equivalente a dizer “a minha mãe”, isto é, aquela que me deu à luz. A minha língua é uma afirmação de pertença, pertencemos à língua, nascemos nela, aprendemos a falar, só ela nos prepara para o outro, sobretudo para aquele que não fala a nossa língua (como não evocar a criança que, nascida no campo de extermínio de Auschwitz, não nasceu em nenhuma língua, porque ninguém lhe tinha ensinado a falar – iniquidade sem nome –, teria três anos quando Primo Levi a conheceu).

Uma memória (e pequena oferta)

(Uma que me perturba, contada na Conversa de 2003, pois vai ter com outra que me diz respeito, a imagem, também da infância primeiríssima, de um vermelho cor de sangue, talvez dos bombeiros, no caso de Eduardo Lourenço distribuição de carne, daí o pavor que toma conta dele quando “a imagem sorrateira o apanha distraído”, para mim ela está associada a uma pequena peça para crianças de Schumann, que nunca mais consegui reencontrar, o cavaleiro incansável, não, o cavaleiro, também não é indómito, precipitado, quanto mais me esforçar, pior. Mais tarde: aventuroso, o cavaleiro aventuroso)

Maria Filomena Molder

Page 52: Iberografias nº9

52Portugal e o seu Destino

Page 53: Iberografias nº9

53

Eduardo Lourenço: poesia e testemunhoCarlos Mendes de SousaUniversidade do Minho

Tomo como ponto de partida a força dos lugares-comuns, servindo-me das palavras do próprio Eduardo Lourenço. É numa luminosa síntese sobre o outro (Octavio Paz) que, em espelho, encontro o mais conciso dos autorretratos: “um dos maiores ensaístas contemporâneos, habitante e visionário peregrino da aventura poética”1.

Eduardo Lourenço, habitante da aventura poética, ensaísta entre poetas ou ensaísta poeta. Interessa aqui falar da busca que ele enceta ao interior do poético, como impulso não restritivo. E o autor de Tempo e Poesia colocou assertivamente, no limiar da casa, um lema de matriz heideggeriana, como ninguém entre nós o havia feito: “É poeticamente que habitamos o mundo ou não o habitamos”.2 Para lá do lugar-comum, este modo de ver o ensaísta ressoou profundamente nos próprios poetas como vivência intensa, testemunho e diálogo. Dois exemplos: as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen, os versos de Gastão Cruz.

As palavras de Sophia são de carta datada de 23 de março de 1978, e reportam-se ao pre-fácio que o ensaísta escrevera para a 4ª edição da sua Antologia, na Moraes, saída nesse ano:

“Penso que o seu texto é o melhor que foi escrito sobre a minha poesia. Não só pela agudeza e inteligência que há na sua leitura mas pela simpatia (no grave sentido grego da palavra) que há nessa leitura. E porque é uma leitura poética e não uma leitura apenas estética, ou intelectual. Pois não se limita a ver o poema “por fora” mas o habita. (Isto está mal explicado, porque nunca sei explicar).”3

Os versos de Gastão Cruz nasceram de uma afirmação de Eduardo Lourenço sobre o movimento que anima a leitura do poema (“uma viagem no interior do texto não para lhe acrescentar qualquer coisa mas para o habitar”4). É num recentíssimo poema de homenagem que apresenta a glosa: Entrar no poema é habitar a casa / beber o vapor de água que humedece / o deserto do quarto inabitável.5

Sophia afirmava em 1978 o que agora vemos melhor. A vasta obra de Eduardo Lourenço sobre poesia (os livros já organizados a que se soma um considerabilíssimo número de ensaios

1 “A hora e a vez de Octavio Paz”, Expresso, Revista, Lisboa, 20 de outubro de 1990, p. 93.

2 “Tempo e poesia”, in Tempo e Poesia, Porto, Editorial Inova, 1974, p. 42.

3 in Espólio de Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal.

4 “Sou um dissidente da minha geração”, entrevista a António Guerreiro, Relâmpago. Revista de Poesia, nº 22, Lisboa, Abril de 2008, Fundação Luís Miguel Nava, p. 53.

5 “Luz húmida” in “Pensar nove décadas de amizade”, Ler Eduardo Lourenço, 24 de maio de 2013. http://leduardolourenco.blogspot.pt/2013/05/pensar-nove-decadas-de-amizade-n-70.html

Page 54: Iberografias nº9

54Portugal e o seu Destino

ainda não coligidos em volume) constitui uma longa meditação que contém a sua poética: a extraordinária lucidez analítica associada ao lampejo intuitivo e à síntese. A formulação bela e rara. O dom da literatura.

A habitação do poema inscreve-se no tempo, que é tempo vivido em tantas frentes. É pelo testemunho que se habita o poema. Por isso a modernidade lhe foi guia, com raízes na noite anteriana e com Pessoa como o mais seguro dos incertos esteios. Eduardo Lourenço instalou-se por conta própria nessa morada, inscrevendo aí indelevelmente o seu nome, isto é, instalou-se na paisagem do seu século português, que reconheceu como “intensamente poético – talvez con viesse dizer, tão miticamente poético. […] Isto parece verdade para a poesia em geral e, particularmente, para a nossa, portuguesa”.6

O mais emblemático dos seus livros sobre o poético, Tempo e Poesia, pode ser lido como uma das peças-chave de uma autobiografia. Entre poetas, instigado por poetas (que estão na origem de alguns dos ensaios). Por exemplo, as cartas de Torga, de Eugénio de Andrade ou de Ramos Rosa (poetas que habitam de modo singular esta obra) dão-nos pistas sobre a génese do livro.

De Torga, destaco uma carta que dirige a Eduardo Lourenço, quando este já se encontrava no estrangeiro, escrita em 14 de dezembro de 1954, e que apresenta considerações sobre um texto que o jovem ensaísta escrevera e que mais tarde integrará Tempo e Poesia7:

“[…] mas sempre penetrante e original. Por isso, parece-me que valia a pena que se não perdesse nas páginas efémeras dum jornal (onde, de resto, só poderia vir aos bocados), ou fosse agonizar em qualquer das moribundas revistas de que me fala. Procurei dar-lhe vida mais longa numa pequena brochura de quinhentos exemplares. Propus o caso à Coimbra-Editora, e consegui convencer o Saraiva. Conte, pois o meu Amigo com provas dentro de dias. Provas que devolverá o mais depressa possível, com as emendas que entender”.

[…] “P.S. Claro que o Dr. está ainda a tempo de dizer que não lhe interessa esta solução. Nesse caso, eu arcarei com a responsabilidade da composição executada até à data da sua resposta. A minha pressa foi para se aproveitar a época do ano novo.”8

Três dias depois (em 17 de dezembro), Torga escreve outra carta, a acompanhar o envio das provas, com novas observações e sugestões, tendo tomado a liberdade de pedir na gráfica mais espaço para que o autor do ensaio pudesse expandir o seu texto.

Muitos anos mais tarde, Eduardo Lourenço explicita a via da chegada à morada poética. Em entrevista a António Guerreiro, ao revisitar Tempo e Poesia, afirma que neste livro “a ideia da relação entre verdade e tempo não se desenvolve por mediação da filosofia propriamente dita, mas por mediação dos próprios poetas”.

Não se trata, não se tratou nunca, de parar o relógio do tempo. Pelo contrário, as leituras de poesia pela pena de Eduardo Lourenço revelam o mesmo voraz desejo de acompanhar a vida vivida em todas as direções. Daí que o título do ensaio sobre Torga

6 “Resposta ao Inquérito sobre a Poesia Portuguesa do Século XX”, in Cadernos de Serrúbia, nº 3, Porto, Dezembro de 1998, p. 45.

7 Trata-se do ensaio O desespero humanista de Miguel Torga e o das novas gerações, publicado em Coimbra, em 1955, pela Coimbra Editora, 50 p.

8 in Espólio de Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal.

Page 55: Iberografias nº9

55Carlos Mendes de Sousa

diga afirmativamente uma polarização amplificadora. É Torga mas também são as “novas gerações” que estão em pauta: o desespero no alargamento à leitura de outros poetas do seu tempo contemporâneo.

No Eduardo Lourenço cronista do nosso tempo, português e universal – europeu, americano, chinês ou africano – está profundamente inscrito o leitor da poesia presente e futura. Quase tudo desagua nessa visão fundadora em que o real é criado pela palavra, em que o poético é mais real que o real. Em torno do ofuscamento de luz ou sombra, que vem das palavras, gira quase toda a hermenêutica lourenciana.

O autor de Heterodoxias nasceu com a literatura. Com efeito, em rigor não se pode dizer que ele tenha vindo da filosofia para a literatura. Ele já estava lá. Estava na perspetiva de uma atenção testemunhante do homem na cultura, que era antes de tudo literária. Esta é uma constatação que se retira da observação mais imediata do percurso biográfico (biobibliográfico) de Eduardo Lourenço, o ensaísta que quis dar um testemunho no tempo, marcado pela urgência do dizer, sentindo os dilaceramentos do devir histórico e cultural. A interrogação de Lourenço é gerada no interior do tempo. Nesse sentido, faz-se acompanhar dos poetas (reflete com eles). E é espantoso observar como, desde esses anos 1940 do final da guerra, o autor convoca os poetas para entender e para mostrar a cidade. E nesse dizer, ao lado deles, ergue também uma tapeçaria tão verdadeira quanto poética. Um lugar que é equipolente ao poema. Vivendo por dentro o desassossego da modernidade, elege os poetas modernos para a sua leitura de eleição e acompanha-os no desespero que vem do abandono a que os deuses nos votaram. Esta ausência de deuses iria tornar-se uma das mais poderosas inscrições do seu discurso.

Importa assinalar o tempo de Coimbra, tempo da cena fundadora, onde intelectualmente se moldou o seu posicionamento crítico. Entre fidelidades e afetos, a abertura ao pensamento é sempre o sopro largo; veja-se o convívio com os neo-realistas, as colaborações na Vértice e o modo como a partir daí se posicionou.

É interessante observar como nesses anos de Coimbra (os anos de formação), por razões várias de proximidades, mas também de intrínseca demanda, Eduardo Lourenço se viu envolvido em projetos interventivos “não-alinhados”. Lembre-se a programação de uma revista com Breda Simões, em 1948, e o projeto de outra publicação, nesse mesmo ano, com Torga e alguns elementos próximos deste escritor. Numa carta dirigida a Rodrigues Lapa assinada por Eduardo Lourenço e Manuel Breda Simões (15 de outubro de 1948), os subscritores pedem “a colaboração para uma revista […] com o título de “Informação Literária” […] onde os únicos determinantes essenciais resultem apenas do exercício de pensamento livre em face de todas as matérias sobre que se exerce”. Da proximidade com Torga também surge um projeto, que não se concretizou, dadas as dificuldades com a Censura. A publicação teria o nome de Rebate (e contaria com a participação de Eduardo Lourenço e do próprio Torga, de Martins de Carvalho, Andrée Rocha, entre outros).

Se no final da década de 1940 se manifesta, de modo decisivo, a centralidade da literatura nas análises que faz da cultura portuguesa e do país, é, no entanto, a partir da década de 1950 que Eduardo Lourenço começa a ter uma intervenção digna de registo em algumas revistas e jornais de referência. Pode dizer-se que entra em cena num certo espaço público intelectual de maior visibilidade. Gostaria de referir aqui especialmente a sua colaboração no suplemento cultural de O Comércio do Porto. É justamente nas páginas deste jornal que emerge uma das mais frutíferas reflexões de Eduardo Lourenço: a reflexão sobre a Presença, que é importante sobretudo na medida em que é perspetivada pelo autor como um dos momentos centrais da mitologia cultural portuguesa. E Eduardo Lourenço, coabitando com gente que viveu o momento, tem um olhar privilegiado sobre o acontecimento, captando-o, com acurado distanciamento crítico, sob estimulantes pontos de vista. Voltou a ela várias

Page 56: Iberografias nº9

56

vezes. Não por acaso, o célebre texto “Presença ou a contra-revolução do modernismo?”9 fez correr rios de tinta. Trata-se de uma das mais amadurecidas reflexões sobre o tema, este texto de 1960, que tem atrás de si um percurso, desde uma primeira formulação em torno do discurso crítico do grupo, num artigo de 195610, ao diálogo polemizante com Gaspar Simões, em 195711.

Mas remonta também ao tempo de Coimbra o terramoto que foi o encontro com a obra de Pessoa, um abalar de todas as estabilizações. Em 1949, Eduardo Lourenço já ideava projetos (capas e títulos de ensaios) que condensavam verdadeiros programas:

ALBERTO CAEIRO / ou/ a metafísica de Fernando Pessoa;ÁLVARO DE CAMPOS /ou/ a compensação imaginária de Fernando Pessoa;RICARDO REIS / ou / a vontade poética de Fernando Pessoa;FERNANDO PESSOA/ ou/ o heterónimo essencial12.

Sobre o impacto provocado pela obra pessoana dirá mais tarde em entrevista ao Expresso, em 1988: “Na altura Pessoa começava a figurar como um autor maldito e a minha primeira intervenção cultural foi a de defender o poder subversivo dos seus textos”.13 Reporta-se aqui a um artigo, publicado no suplemento cultural de O Primeiro de Janeiro, no fim do ano de 1952, em que contestou leituras neo-realistas de Pessoa. Na mesma entrevista, mais adiante, afirma que “Pessoa foi, efetivamente, o desarrumador definitivo, naquela época do discurso cultural português”14.

A morada poética é o coração da própria dúvida, lugar do incerto, do mudável. No título que escolhi para este tributo a Eduardo Lourenço ecoa uma célebre inscrição de Goethe e ecoa também uma deriva de Jacques Derrida à volta dessa máxima. Derrida circunda a inscrição goethiana (poesia e verdade), desconstruindo-a, para a reinscrever no seu próprio testemunho, ao falar das paixões da literatura, ao falar de ficção e verdade. É justamente acerca do literário como o lugar do incerto que fala o filósofo francês, no seu livro sobre Blanchot, Morada:

“Não há essência nem substância da literatura: a literatura não é, não existe, não se mantém estável [à demeure] na identidade de uma natureza ou de um ser histórico idêntico a si próprio. Ela não se mantém em nenhuma morada, se “morada” designar pelo menos a estabilidade essencial de um lugar; ela mora somente aí onde, e se “morar [être à demeure]” em qualquer intimação, significa outra coisa. A historicidade da sua experiência, porque existe uma, diz respeito àquilo mesmo que nenhuma ontologia saberia essencializar”15.

Na produção ensaística de Eduardo Lourenço dos anos 1950 ganham relevo as discussões em torno da modernidade, que mostram o homem no seio da crise, e as reflexões sobre

Portugal e o seu Destino

9 “Presença ou a contra-revolução do modernismo”, Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 14 de Junho de 1960, p. 6 e 28 de junho de 1960, p. 6. No título do texto não apareceu a interrogação que foi reposta quando o ensaio foi republicado, em 1974, no livro Tempo e Poesia.

10 “Alguns doutrinários e críticos literários depois de Moniz Barreto. Psicologismo e A-Historicismo de Presença”, O Comércio do Porto, Porto, 8 de maio de 1956, p. 6.

11 “A correspondência Pessoa-Simões e o Mito da Presença”, Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, Porto, 12 de junho de 1957, pp. 5-6.

12 in Colóquio/Letras, nº 171, maio/agosto 2009 (org. João Nuno Morais Alçada), p. 249.

13 in Gil, José e Catroga, Fernando, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 1996, p. 52 (entrevista concedida a Vicente Jorge Silva e Francisco Belard, “Um heterodoxo confessa-se”, Expresso, 16 de janeiro de 1988).

14 Id. Ibidem.

15 Derrida, Jacques, Morada. Maurice Blanchot, Lisboa, Edições Vendaval, 2004, tradução de Silvina Rodrigues Lopes, pp. 22-23.

Page 57: Iberografias nº9

57

a estética do modernismo, decorrentes do impacto provocado pelo abalo pessoano. Mais tarde, num texto escrito em 1971, ao falar da “Dialéctica mítica da nossa modernidade”, resume esse impacto, referindo-se a Pessoa como “um dos avatares mais preciosos da nossa Modernidade”, e apresenta uma espécie de máxima sintetizadora ao dizer que o autor de “Tabacaria” “não foi apenas moderno mas a Modernidade mesma”16.

Levei sempre muito a sério a afirmação sobre Pessoa Revisitado, quando Eduardo Lourenço se referiu a este seu livro como o seu romance. Ele disse-o em entrevistas assim como na portada de uma reedição desse livro, e deu pistas verdadeiras (eu estou lá por detrás da sombra do Pessoa). Com efeito, podemos dizer que Pessoa Revisitado é um romance de testemunho; romance porque é texto estruturado com capítulos, com personagens e molas imprevistas que fazem avançar a ação, das quais a mais surpreendente e de maior impacto é a descoberta de Whitman em Caeiro. Mas há outros elementos menos óbvios que fazem romance.

Dentre os mais estimulantes projetos hermenêuticos sobre Eduardo Lourenço, entrevejo as propostas de leitura a partir desta clave: da obra como romance. Será necessário redirecionar tudo para a questão central da leitura orgânica, para os elos coesivos que se podem encontrar quando se juntam os fios soltos. O trânsito pressuporá uma leitura da obra sub specie autobiografica.

Assinale-se o “capítulo Poesia”. Encontraremos aí nomes óbvios que integram a sua genealogia. Com certeza, Pessoa e outros de igual modo notadamente visíveis como Antero. Mas será necessário atentar em alguns rastros, nomes cuja explicitação é menos evidente e, no universo lourenciano, pode aparecer mediada, como é o caso de Régio.

O funcionamento global da obra lourenciana encontra um apoio atuante, numa matriz textualista de pendor psicanalítico, procedimento que pelo próprio foi proposto justamente em Pessoa Revisitado. O fascínio pelo jogo com os nomes, em exercícios ficcionais, pode servir-nos de pista, entre outras. O que é posto em movimento não é o jogo presencista do duplo e do uno como aquele que foi praticado por Régio e Torga. Também Eduardo de Faria se debateu com as questões da assinatura, tendo muito cedo subscrito alguns textos com o nome Eduardo Coimbra17. Contudo, as variações onomásticas ocorrem no complemento de um termo fixo, motivadamente procurado: Tristão Marcel, Tristão Georges ou Tristão Bernardo. Neste último, anagramaticamente encontramos o eco do nome próprio.

Remeto novamente para os projetos, folhas de rosto que existem no espólio trabalhado por João Nuno Alçada. Curiosamente, para muitos desses projetos, encontram-se alternân-cias, oscilações que revelam os termos da não-fixação. Um exemplo extraordinariamente eloquente no domínio das capas (folhas de rosto) dos projetos prende-se com a transição, com o modo como o mesmo projeto tanto é assinado por Eduardo Lourenço como por Tristão. É o que se pode ver relativamente à projeção de um texto ficcional para o qual não só existem títulos como listas de personagens:

EDUARDO LOURENÇO// OS CRAVOS BRANCOS/ ou/ ANA SÍLVIA?/ ou/ OS AMANTESLÚCIDOS/ ou/ OS PEQUENOS DANADOS//Bordeaux// 1950.18

EDUARDO LOURENÇO// OS CRAVOS BRANCOS // 1951// Coimbra.19

16 in Tempo e Poesia, Porto, Editorial Inova, 1974, p. 209.

17 Vejam-se os textos que são assinados com este nome: “O Péguy de Romain Rolland”, Vértice, Vol. III, nº 40-42, dezembro de 1946; “Nota sobre a pretendida genialidade da Confissão de Lúcio”, Seara Nova, nº 1018, 1 de fevereiro de1947; “Sobre Jangada de António de Sousa”, Seara Nova, nº 1025, março de 1947.

18 in Colóquio/Letras, nº 171, maio/agosto 2009, p. 74.

19 Idem, p. 75.

Carlos Mendes de Sousa

Page 58: Iberografias nº9

58

TRISTÃO BERNARDO// ANA SÍLVIA/ou/ OS CRAVOS BRANCOS // 1951// Coimbra.20

PERSONAGENS// Ana Sílvia/ Alberto/ Marta Maria/ Cláudio/ Mãe/ Pai/ Criada/ AfonsoGomes/ Parentes/ Cangalheiros.21

Recorde-se a propósito que também a escrita ficcional de Eduardo Lourenço, sob a forma diarística, teve vários projetos de títulos e que o início dos anos 50 (1952, 1953, 1954) foi a este respeito um período particularmente fecundo. Em 1953, o título possível era Tristão ou o Livro da Alma. Diário existencial apresentado por Eduardo Lourenço. E aqui emerge uma poética ao contrário da poética torguiana. Existe mesmo um fragmento datado de 10 de setembro de 1953, de reminiscências gidianas e com ecos pessoanos, onde é questionada a ideia da auto-representação autoral que marca a produção diarística de Torga, construída esta sob o signo da unidade. Tristão contrapropõe como alternativa o caminho da imagem “baralhada”, “destruída” (“Sinto que o Torga devia fazer esforços não para carregar no espírito dos seus leitores a imagem Torga, a visão-das-coisas Torga mas para a baralhar, direi mesmo para a destruir”).22

Numa versão do Diário de 1952, deparamos com outra proposta de título: O livro da alma ou a educação portuguesa de Tristão Bernardo. Diário Metafísico apresentado por Eduardo Lourenço. Sigamos as palavras do legatário nas páginas introdutórias:

“Tristão Bernardo nasceu a 23 de Maio de 1923 numa aldeia beirã de camponeses pobres e contrabandistas próxima de Espanha; morreu a 13 de Agosto de 1951, de peste, segundo notícias dignas de crédito, em Aden, a caminho da Índia. E nada mais haveria a acrescentar – a não ser para os seus amigos – se não fosse a existência destas páginas, que todos, de comum acordo, escolhemos de entre a massa considerável dos seus Cadernos […]

Cabe-me a mim a responsabilidade do título, que em sentido estrito não será fácil aceitar, embora tenhamos boas razões para supor que ele exprime com vigor a preocupação central da vida de Tristão Bernardo […].

Diário Metafísico. A singularidade deste título, único na nossa literatura, parece-me corresponder ao tipo de existência e de reflexão que Tristão Bernardo foi e viveu. Não ignoramos quanto tal género de preocupações e tal tipo de vida é antipático e até atentatório dos nossos hábitos mentais mais comuns.23

Um dia, recolhidos os fragmentos, também nós nos poderemos, enfim, aproximar do retrato possível devolvido pela impossível autobiografia do legatário de Tristão Bernardo; e poderemos entender esse Diário, cujo nome exato nos trará imensas dificuldades de fixação: Metafísico, Existencial, Poético?

20 Idem, p. 76.

21 Idem, p. 77.

22 Idem, p. 186.

23 Idem, pp. 74-75.

Portugal e o seu Destino

Page 59: Iberografias nº9

59

Entre som e imagem: Eduardo Lourenço ao espelhoBárbara AnielloInvestigadora

Um pensador não é um homem que pensa, mas sim um homem que faz pensar. […] Um criador não é um homem que sonha, mas um homem que faz sonhar. Ser grande pensador ou grande criador é fazer pensar e sonhar uma inumerável sucessão de homens e de tempos.1

Assim escrevia Eduardo Lourenço em julho de 1954, numa folha solta do seu diário disperso e, hermética e aforisticamente, acabava de fazer não só o melhor retracto de si mesmo, como também o de nós próprios.

No labirinto do pensamento seu e de reflexo do nosso, do ser pensante que faz pensar e dos seus privilegiados receptores, Eduardo Lourenço oferece-nos não um, mas dois fios de Ariadne para nos mostrar o caminho do regresso a casa: a música e a pintura, o som e a imagem.

Assim, por detrás das glosas às obras de Beato Angelico, Rubens, Toulouse-Lautrec, Rauchenberg, por detrás dos comentários a Mozart, Schumann, Alban Berg, Xenakis, reconhecemos o reflexo irreflectido, involuntário, incônscio de um ouvinte e um espectador que não se preocupava em se ver, em se ouvir.

Mas “ver é ser visto”, diz Eduardo Lourenço e, Narciso inconsciente, cai, malgré lui, na lagoa das suas imaginárias reflexões; transforma o vidro aquático num rio incessante, uma torrente em contínuo devir. Quebra o seu espelho em milhares de fragmentos, soltando-os no labirinto espaço-temporal das obras e dos autores que vai encontrando e comentando.

Numa página admirável do seu diário disperso, Eduardo Lourenço afirma: “Não nasci senão para ver ou ouvir”,2 assim neste díptico do visível e do audível, podemos não apenas assistir e reviver com ele, através dos seus próprios sentidos, o extraordinário espectáculo da arte, mas vislumbrar por detrás deste a nítida imagem do ouvinte e do fruidor e através dela o involuntário auto-retracto que, outro tanto involuntariamente, nos legou.

Sem se aperceber Eduardo Lourenço tece, ouvindo, olhando, lendo, a tela e a moldura, as formas e as cores do seu auto-retracto. Três exemplos, entre tantos outros: Bach, Klee, Pessoa.

1 A arte ou as estátuas partidas, Julho de 1954. Folha solta. No verso está anotado o título: O paradoxo do especta-dor ou a ambiguidade radical da arte. Acervo Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.

2 Eduardo Lourenço, Página do Diário disperso, datada de Montpellier, 4 de Dezembro de 1956, publicada em Prelo, Revista da Imprensa Nacional Casa da Moeda, número especial dedicado a Eduardo Lourenço, Lisboa, Maio de 1984, p. 117.

Page 60: Iberografias nº9

60

Bach nunca soube que tinha génio. O génio é uma simplicidade que se ignora, uma cara privilegiada a quem o vento de Deus caprichosamente tocou. Só uma concepção cristã do génio é de aceitar: o génio como dom, algumas vezes silencioso, para que o mundo nunca mais deixe de ouvi-lo.3

Falava em Bach, Senhor Professor, mas nós sabemos que foi também vítima deste capricho divino. Mais ainda. Ouvindo e vendo, Eduardo Lourenço transformou-se, identi-ficou-se no objecto da sua contemplação e audição. Por isso entre Beethoven e Bach opta pela voz pacífica e pacificada do autor da Paixão segundo São João. Numa folha datada de 1952 lemos:

Enquanto escrevo sobre Kierk[egaard] estou ouvindo uma música de Beethoven. As vozes perseguem-se num crescendo poderoso, arrependem-se, volvem, sobem, insistem, o grito faz-se mais grito, alonga-se, repete-se, ultra-repete-se, grita mais ainda, como um grito que não procura Deus, mas a si mesmo se contempla e persegue. Um movimento humano semelhante ao final da nona sinfonia. A verdadeira religiosidade está ausente dele. O repouso do grito infinitamente humilde de Bach não aparece. Titanismo puro, mesmo na Missa de Beethoven. A minha alma é amassada no pequeno ribeiro (bach) mesmo nos dias tempestuosos.4

Quanto ao olhar de Klee afirma:

Que chave abre o mundo de Klee, mistura única de gratuidade profunda de desenho e forma, delírio formal aprisionado num rigor de geometria? […] Talvez a inocência, o olhar desarmado, desarmado sobretudo pelo poder do próprio quadro, seja a chave única e a mais conveniente para passar a viver neste universo.5

É com o seu olhar, que esse olhar “inocentemente desarmado” de Klee condiz, con-templador eternamente encantado pelo mundo e pelos outros. Na sua dialéctica do visível e invisível, Eduardo Lourenço funde-se e confunde-se:

Nos objectos líricos absolutos de Klee, brilha com silenciosa intensidade o «mundo do rir visível e das lágrimas invisíveis» da nossa Imaginação Arquétipa. E esse mundo é o nosso verdadeiro mundo.6

Do mesmo modo, da voz silenciosa da pintura musical de Vieira da Silva, Eduardo Lourenço se torna eco. A obra de Vieira da Silva

É uma obra de Poeta capaz de tecer com o tempo a frágil eternidade que ele nos consente.7

Enfim, citando o seu Pessoa, outra vez o revemos:

Não é para não ver o outro – mundo ou outrém – que Pessoa fecha os olhos e se assume como Narciso cego, mas para não ser visto. A heteronímia é só um jogo infantil levado até às últimas consequências de se esconder de si mesmo, dispersando o seu rosto no espaço virtual de rostos-outros, dele e de ninguém. De certo modo,

Portugal e o seu Destino

3 Eduardo Lourenço, Tempo da Música Música do Tempo, organização e prefácio de Barbara Aniello, Gradiva, Lisboa, Fevereiro 2012, p. 82.

4 Ibidem, p. 83.

5 Eduardo Lourenço, folhas soltas encontradas dentro do catálogo da exposição Paul Klee, Musée de Grenoble, 12 Juin - 15 Septembre, 1960, Acervo Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.

6 Eduardo Lourenço, Klee ou a imaginação arquétipa, Colóquio. Revista de Artes e Letras, nº 11, Lisboa, Fun-dação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1960, p. 15, reeditado Espelho Imaginário, Pintura, anti-pintura, não-pintura, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1981, 2ª ed., Lisboa 1996, p. 29 (1ª ed. 1981), p. 25 (2ª ed. 1996).

7 Eduardo Lourenço, Itinerário de Vieira Da Silva ou da poesia como espaço, in ibidem, p. 74 (1981), p. 64 (1996).

Page 61: Iberografias nº9

61Bárbara Aniello

Paul Klee, Pathos, 1938, Catálogo da Exposição de Grenoble, 1960.

a sua criação não é outra coisa do que iconografia, mas da espécie mais rara ou delirante, de um ser que não tem imagem. Ou noutro sentido, um ser que só tem realidade imaginária e que, por isso, nenhuma «imagem», sobretudo aquilo que assim chamamos, fotografia ou pintura, pode configurar.8

A heteronímia funciona para Pessoa como o diálogo entre e com as artes para Lourenço. Se Fernando Pessoa não tem “imagem”, mas só “realidade imaginária”, Eduardo Lourenço não imagina, faz imaginar.

8 Eduardo Lourenço, A imagem à procura de Pessoa, in Fernando Pessoa - O impossível retrato, Casa de Serral-ves, Porto, 1988, reeditado in Espelho Imaginário, op. cit., p. 183 (1996).

Page 62: Iberografias nº9

62Portugal e o seu Destino

9 Idem.

10 Eduardo Lourenço, Folha solta datada de Setembro de 1975. Acervo Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.

11 Eduardo Lourenço, Folha solta datada de 9 de Outubro de 1971, Acervo Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.

12 Eduardo Lourenço, Cruz Filipe ou o Tempo Imaginário, in Espelho Imaginário, Pintura, anti-pintura, não-pintu-ra, op. cit., p. 175 (1981), p. 145 (1996).

13 Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa, 1934, Parceria António Maria Pereira, 44, Rua Augusta, 54, p. 51.

14 Eduardo Lourenço, Folha solta intitulada O Tempo da obra de arte. Scherazade, Acervo Eduardo Lourenço, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa.

Assim, no infinito jogo de múltiplos espelhos, o que era antes um colóquio a dois, entre Pessoa e Lourenço, torna-se um tríptico, juntando-se também Deus.

Como Deus terá criado o mundo para se “ver”, para se oferecer o único espelho capaz de o converter em imagem, Pessoa se inventa constantemente outro para ter a ilusão de se ver de fora do seu dentro e acreditar que existe segundo o único modelo de realidade convincente, o da “exterioridade”.9

Parafraseando Picasso, Eduardo Lourenço não se procura, encontra-se. Dizendo de Magritte que é “como um espelho mágico em frente da sua multiforme, dispersa e inacessível realidade”,10 Eduardo Lourenço pinta-se como Narciso inverso, não mergulha si próprio no mundo, mas o mundo em si, restituindo-nos textos e pre-textos feitos de imagens, sons e versos que nos ajudam a repetir, com ele, de mão dada, o mesmo mergulho. Assim “o sólido emigra no efémero, o reflexo absorve a imobilidade da fachada”11. Falava em Veneza, Senhor Professor, quando gravava estas palavras de pé, sobre um Vaporetto, rumo à grande Praça, numa minúscula agenda de bolso. Mas nas águas deste milagre de bordado lacustre que é essa cidade que, entre tantas outras, amou, vislumbro o seu amável rosto. Olhando Veneza, misturou o próprio vulto aos fotogramas de Visconti, às notas de Wagner, às páginas de T. Mann, deixando distraída e permanentemente aí a sua impressão digital.

Saiu do tempo, entrou na eternidade. E o fez de duas maneiras: com a sua obra e através de nós, público privilegiado do seu olhar. Parafraseando o seu comentário a propósito da obra de Cruz Filipe: queria talvez “evadir-se, inventando o mágico espelho onde a mesma dissolução se contempla e se dissolve”,12 mas citando o dístico maravilhoso de Pessoa, por sua vez citado por si: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”13

Desdobrando este díptico disperso e surpreendente do Tempo da Musica e do Espelho imaginário, que tenho o privilégio de reunir, podemos assistir as metamorfoses da sua interioridade que, generosamente e sem máscara, nos continua a mostrar, embora sem as exibir.

Assim vive e viverá sempre e para sempre, como a sua Scherazade, naquela noite sem fim de Scherazade, suspenso entre passado e futuro, morando no eterno instante, fiando na “teia da sua imaginação o tapete mágico do sonho” e “como a vida é feita do tecido dos sonhos, fiando o sonho, inventou a vida”,14 a sua e a nossa com ela.

Page 63: Iberografias nº9

63

Para uma Metafísica da Revolução: Reflexões sobre tempo e poesia1

Teresa FilipeInvestigadora

De regresso de um passeio breve abro a cancela do jardim e deparo comigo absorto diante do cipreste que projecta a magra sombra no branco da casa. Assim, distraído de mim, no intervalo de nada, descobri num segundo que são as coisas que nos amam e não o contrário. Em silêncio amparam-nos por existir sem ter existência e esta calada vida é um olhar pousado sobre nós. Um aceno sem olhos, um abraço sem mãos. De quem?2

Este pequeno trecho, Poesia ou Filosofia, representa, em nosso entender, um dos mo-mentos mais inspirados da pena de Eduardo Lourenço (ou momento paradigmático). A sua intuição bastava para informar todo o edifício intelectual de Eduardo Lourenço. Dela recebemos, como uma mensagem em bruto, quase tudo o que a sua obra, quer seja análise política ou crítica literária, pretende explanar: o ser humano como interrogação do mundo e de si próprio – provavelmente o mais misterioso dos continentes3. Para que isto não se confunda com um breve questionário da história das coisas, a experiência tem lugar quando o autor se encontra distraído de si, «no intervalo de nada». Distraído de si, imerso no Tempo, nem nomeado, nem nomeador absoluto do mundo, antes, nele confundido e por ele devolvido, o ser humano é uma interrogação lançada no mundo (que, por sua vez, nos interroga) cuja resposta não chega nunca do modo como esperamos: é inantecipável. Olhar interrogador ao que o circunscreve, projecta-se no incircunscrito, permanentemente envolvido pela e na sua questão: «fácil é ser definitivamente animal ou deus»4. Nem senhor, nem escravo; nem objecto, nem sujeito, pois precisamente o equívoco da dialéctica está na pressuposição deste movimento como se de uma oposição se tratasse, onde, num momento qualquer, um dos termos conseguisse, na totalidade, dominar sobre o outro. Contrariamente a isso, o espírito heterodoxo reconhece que é no próprio movimento que se dá a abertura ao impensável, ao indeterminado, ao inominável, ao impossível, que sempre está aí mas ainda não está já. No intervalo de nada, como Tempo, partilhado «tornado sensível, audível, dizível e através dessa aparição nos oferecendo a desesperada e alta eternidade, a familiar “luz perpétua” que nós próprios fabricamos ardendo e vendo-nos arder como árvores vivas no fogo temporal»5.

1 O presente artigo é um excerto do ensaio de Teresa FILIPE, Metafísica da Revolução. Poética e Política no Ensaismo de Eduardo Lourenço, Centro de estudos Ibéricos, - Âncora Editora, Guarda - Lisboa, 2013, Col. “Iberografias” n.º 23.

2 Eduardo Lourenço, “Quatro Páginas de um Diário”, Suplemento Mil Folhas de Público, Lisboa, 11/XI/2000, p. 12. [Escrito em Vence a 3 de Fevereiro de 1991].

3 «Consideram-se, com justiça, os Ensaios [Montaigne] como o lugar escrito ou o diário de bordo de uma aventura mais inaudita ainda que a de Colombo. A da descoberta do Homem como a sua própria América. Do desconhecido na ordem geográfica teríamos chegado a um continente bem mais inacessível, nós mesmos. Olhando-nos assim pela primeira vez, com olhos novos, teríamos descoberto que nenhuma terra misteriosa al-guma vez nos oferecerá mais enigmas que o Homem». Cf. Eduardo Lourenço, Heterodoxias, [Hs], Vol. I “Obras Completas”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 536.

4 Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, 3ª ed., Gradiva, Col. “Obras de Eduardo Lourenço”, Lisboa, 2003, p. 28.

5 Ibidem, p. 116.

Page 64: Iberografias nº9

64

Entrevemos também neste breve trecho o que Eduardo Lourenço designa por Paradoxo do Instante ou, simplesmente, Realidade. No instante, não existe princípio nem fim, «tudo é aí ao mesmo tempo»6, lugar de Migdar com suas sugestões perpétuas7, onde nos distraímos para unicamente aí nos reconhecermos no totalmente Outro que sempre somos. «Entre as diversas temporalidades, a mais difícil de pensar é a do nosso próprio tempo, porque de algum modo é ele que nos pensa a nós»8. Essa estranheza devolve-nos a possibilidade de efectivamente nos vermos. Com isto não pretendemos apenas dizer que é através do olhar dos outros que nos vemos ou que são os outros que nos fazem existir e nos conferem realidade – o que, na verdade, indica já que, efectivamente, somos a todo o tempo co-criação. Mas, para além disso, o que julgamos estar em causa, é a estranheza da experiência de nos vermos a nós em todos os outros, ou todos os outros em nós. Como Eduardo Lourenço reconhece na poesia de Fernando Pessoa, o «Estranho estrangeiro»9; quer dizer, não-eu que ainda é “eu” e que, precisamente através dessa experiência, se desrealiza e explode. Em “Pessoa ou a Porta Aberta”10, podemos ler as seguintes palavras: «Descobria [Fernando Pessoa] que era não apenas Outro mas outros – e até todos os outros –, que o seu eu era plural (como o universo)». Esta assumpção e reconhecimento da pluralidade representa para Eduardo Lourenço, a nosso ver, o ponto mais autêntico do ser humano. Daí Migdar, Heterodoxia, Heteronímia. E, como se verifica logo no primeiro “Prólogo sobre o espírito da heterodoxia”11, fazendo-se representar essa busca intelectual através de um símbolo em movimento, procura [Eduardo Lourenço], justamente, evitar plasmar-se num ou noutro pólo – a ortodoxia, por um lado, relativismo e niilismo, por outro. «São as coisas que nos amam e não o contrário», significa agora não aceder a um além-mundo (idealizando e substancializando as coisas e, do mesmo passo, coisificando-nos), mas antes continuar a ocuparmo-nos do que uma coisa é e o modo pelo qual o entendemos. Entrevemos também aqui, uma certa proximidade com o pensamento de Martin Heidegger onde, por toda a sua obra, basta abrir ao acaso, encontramos a permanente interrogação ao que nos está mais próximo – o Ser – e ao modo habitual de ver. Procedendo deste modo, o pensamento privilegia a meditação em detrimento do impulso determinador, ordenador ou categorizador.

[…] A distinção entre pensamento meditativo e calculador afigura-se-nos muito relevante pois indica a necessidade de abandonar uma noção de razão totalitária privilegiando outra, mais modesta, a que poderíamos chamar, razão solidária (ou poética); esta, vive e assume-se em permanente tensão procurando aí uma harmonia em vez de se estabelecer pelo domínio, como nos informava o movimento dialéctico. Assim, procedendo poeticamente, o

6 Ibidem, p. 36.

7 Cf. Eduardo Lourenço, Hs, p. 31. O mito germânico de Migdar é invocado por Eduardo Lourenço desde a publicação de Heterodoxia, em 1949. Para além de constituir a primeira frase do primeiro “Prólogo sobre o espírito da heterodoxia”, pode ler-se, mais à frente, como tradução do próprio movimento heterodoxo: «o reconhecimento de Migdar, como essência da reali dade, chama-se Heterodoxia. Ou, traduzindo o mito, heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações, nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma». Por esse motivo tem servido de símbolo a diversas publicações da obra do autor, inclusivamente as Obras Completas, editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, cuja edição aqui privilegiamos, sempre que possível.

8 “O Pensador”, Eduardo Lourenço entrevistado por José Mário Silva, suplemento DNA do Diário de Notícias, Lisboa, 21/III/1998, p. 15.

9 Estranho estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, Quetzal, Lisboa, 1996. Biografia de Fernando Pessoa por Robert Bréchon, cujo falecimento foi invocado pelo nosso autor no jornal Público, Lisboa, 15/VIII/2012, p. 26.

10 Eduardo Lourenço, “Pessoa ou a Porta Aberta”. Discurso proferido na cerimónia de entrega do Prémio Pes-soa 2011, disponibilizado on-line pelo Jornal Expresso, 14/05/2012. Consultado em http://expresso.sapo.pt/uma-licao-de-pessoa=f725989, na mesma data.

11 Cf. Eduardo Lourenço, Hs, p. 31.

Portugal e o seu Destino

Page 65: Iberografias nº9

65Teresa Filipe

Foto: Rui Jacinto

Page 66: Iberografias nº9

66

12 Idem, “A Obra de Arte como Irreal”, Ms inédito, s/d, p. 4.

pensamento medita (e questiona) as evidências, procurando desvelar o fundo harmonioso de todas as coisas, mais do que categorizar, separando-as – o princípio de morte de todo o processo de racionalização. Daí também a sugestividade da ideia de metáfora, pois esta aproxima o que parecia separado. Estas considerações convidam-nos, por fim, a deslocarmo-nos de uma noção de verdade de validade lógica para uma concepção de verdade enquanto aletheia, desvelamento que compreende a ocultação. Uma coisa, sempre outra coisa ainda. A verdade como desvelamento advém, ou está, por sua vez, implicada, numa particular noção de realidade. Veja-se, por exemplo, o que transparece das seguintes considerações:

A realidade da obra de arte – o seu valor – está na razão directa dessa negação íntima, dessa repulsa incapaz de projectar fora de si mas afastando-o numa tensão infinita até aos limites da quase não existência, o não-artístico. Ora como nós vemos no não-artístico o objecto visto através da categoria da realidade, isso significa que a obra de arte o é tanto mais quanto mais irreal em sentido preciso ela o é. Mas esta irrealidade mesma é a forma suprema de dar à realidade a máxima oportunidade da sua revelação. Por isso a obra de arte parece ao mesmo tempo a oportunidade máxima para o homem de tocar a realidade real, de ser plenamente real através dela e sem termo de comparação algum com isso a que se pode chamar real12.

Com isto procuramos evidenciar a intrínseca fragilidade da noção de Realidade (que melhor seria dizer, realidades) considerada enquanto co-criação que a cada instante se faz e refaz, como o manto de Penélope, para usar uma imagem que o nosso autor tantas vezes invoca ao longo da sua obra. Daqui conduzimo-nos, ou somos conduzidos, à assumpção do ser humano como essencialmente poiético e consciente dessa constante e mútua invenção.

Assim, essencialmente poiético, quer dizer, a tarefa propriamente humana de livremente escolher o seu modo de ser, tarefa paradoxalmente dividida, entre si e o OUTRO. A razão que procura viver esta divisão (que também poderíamos chamar cisão), em vez de a integrar para separar, será uma razão solidária (ou poética) e não uma razão ordenadora ou totalitária.

Deste modo, poderá eventualmente conquistar-se (o itálico sublinha a indecisão entre saber se esse processo se trata de uma conquista ou de uma rendição) uma vivência poética – crítica, autêntica e original.

Bibliografia

Eduardo LOURENÇO, “A Obra de Arte como Irreal”, Ms inédito, 19 pp., s/d.

Heterodoxias, (coord. João Tiago Pedroso de Lima), Obras Completas – Vol. I, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010.

“O Pensador”, entrevistado por José Mário Silva, suplemento DNA do Diário de Notícias, Lisboa, 21/III/1998, pp. 12-17.

“Pessoa ou a Porta Aberta”. Discurso proferido na cerimónia de entrega do Prémio Pessoa 2011, disponibilizado on-line pelo Jornal Expresso, 14/05/2002. Consultado em http://expresso.sapo.pt/uma-licao-de-pessoa=f725989, na mesma data.

“Quatro Páginas de um Diário”, Suplemento Mil Folhas de Público, Lisboa, 11/XI/2000.

Tempo e Poesia, Editorial Inova, Col. “Civilização Portuguesa”, Porto, 1974; 2ª ed., Relógio de Água Editores Lda, Col. “À volta da Literatura”, Lisboa, 1987; 3ª ed., Gradiva, Col. “Obras de Eduardo Lourenço”, Lisboa, 2003.

Portugal e o seu Destino

Page 67: Iberografias nº9

67

São Pedro de Rio Seco, Infância e Inscrição Religiosa: O Dieu Caché de Eduardo Lourenço– aproximações pascalianas1

Dulce MartinhoUniversidade de Aveiro/Centro de Estudos de Comunicaçãoe Sociedade da Universidade do Minho (CECS)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.Álvaro de Campos, Aniversário

Primavera de 39. (...) Foi uma queda lenta, insensível e certeira. Entraram nela tão obscuros elementos que certamente passarei a vida inteira a querer remontar o rio sombrio até à fonte deslumbrante da minha infância clara. E nunca saberei porque caí. Eduardo Lourenço, Colóquio Letras, nº 171, 2009a

Qui se trouve malheureux de n’être roi sinon un roi dépossédé? Pascal, Pensées

Lembrando Camões, celebramos noventa anos de vida de um homem de «honesto estudo com longa experiência misturado», nascido na, ao tempo, pobre e pequena aldeia beirã de S. Pedro de Rio Seco – a tal, muito antiga, paraíso perdido na raia, de onde «não se via o mar» (Lourenço, 2004:25). Filho mais velho de uma família tradicional e numerosa, «organicamente catolicíssima» (Lourenço, 2007:47), no seio da qual, por isso, «Deus era da ordem do indiscutível, ser católico fazia parte da sua identidade» (Lourenço, 1999:159), mal completada a primeira década de existência, já Eduardo, «o menino de sua mãe», embarcava em longa viagem física e bibliográfica por Portugal, pelo pensamento, pela Europa e pelo espectáculo desta aldeia grande que é o Mundo.

1 À Professora Maria Manuel Baptista, a quem nunca agradecerei o suficiente por me ter convocado para o pensamento do Professor Eduardo Lourenço.Sinopse: Se «foi Pascal que, como sempre, disse tudo» (George Steiner, 2004:69) e a obra multíplice (escrita e pensada “em voz alta”) de Eduardo Lourenço é prova inequívoca do seu «desejo de “pensar tudo”» (Prado Coelho, 1997:121), para no-lo oferecer derramado no infinito da (quase) inapreensibilidade do género ensa-ístico que pratica critica e artisticamente, seriam diversos os ângulos de análise convocáveis para cartografar, em paralelo, o pensamento caleidoscópico destes dois consensuais intérpretes da modernidade. Nesta comunicação, adoptamos apenas um deles: o que procura escutar o (possível) diálogo entre o pessimis-mo cristão – teológico e apologético – do também não facilmente classificável pensador, filósofo, escritor e cientista francês e, no caso de Eduardo Lourenço, a marca indelével de um Cristianismo primordial, de ordem ética, bebido na rigidez rural de uma educação familiar, profundamente católica, no doce “tempo perdido” da infância (con)vivida na lonjura, afinal, tão próxima, de S. Pedro de Rio Seco, o seu “Paris-Texas”.

Page 68: Iberografias nº9

68

Iniciada precisamente aqui, na «espectral» Guarda, e de todos nós conhecida nos seus marcos, prémios e escalas fundamentais até Nice, esta tem sido uma errância geográfica e intelectual - escrita e longamente conversada em entrevistas, conferências, congressos, encontros e iniciativas culturais como esta que aqui nos reúne – a que nos apetece chamar “pascaliana”, inspirados até pelo próprio Eduardo Lourenço que diz ter assim partido para um mundo de que se considera filho, mesmo que este não lhe estivesse destinado (cf. Lourenço, 2003a:36).

Na verdade, no Portugal rural, conservador, dogmaticamente religioso, analfabeto, dos anos trinta, este beirão neto de lavrador terá a (ainda) rara possibilidade de estudar para lá das primeiras letras – primeiro, no liceu da capital de distrito, depois, no Colégio Militar – e será assim que, o agora adolescente, Eduardo Lourenço de Faria conhecerá o princípio do fim de um estado de inocência primordial, adâmico, de doce instinto de felicidade: «o estado de criação», «a primeira natureza», como lhe chama Pascal. Um détournement – biograficamente prosseguido em Coimbra antes dos 18 anos – na direcção da estranheza, da confusão, da corrupção, mas também da cidadania, no «turbilhão cinzento de uma melancolia irredimível» (Lourenço, 2009a:25). A queda “pascaliana” do jardim do Éden na Urbe; da Cidade de Deus na polis terrestre ou da «comunidade» na «sociedade», como diz Eduardo Lourenço (Lourenço, 1996:12).

Doravante, perdido o ninho e já tocado pelo “pecado original”, «junco precário» cons-ciente das suas grandeza e miséria, manter-se-á, no entanto, na posse da nobre e humana capacidade de escolher, pela flexibilidade do livre arbítrio e das contingências, entre o Bem e o Mal; o verdadeiro e o falso; a «heterodoxia», o apelo/a resposta do/ao Outro e o «amor--próprio»; o Amor, a tolerância e a «concupiscência»; a perenidade da cultura e a turbação do efémero e do divertissement.

Em suma, os sempiternos dilaceramentos, dualidades, bifurcações e questionamentos “filosóficos” sobre a Verdade, o Tempo e o Sentido confluentes na experiência consciente do trágico da condição humana no mundo, tema incessantemente único de toda a investigação de Pascal (1623-1662), e, por natureza, idealmente exprimíveis na atitude ensaística lourenciana, «se por ensaio entendermos essa aventura cultural em que, sempre no limite do desconhecido, um autor formula interrogações radicais através das muito concretas interrogações que um objecto singular lhe suscita» (Coelho, 1988:61).

*****

Se é nítido que acabámos de cruzar vocabulário de ressonância e pluma pascalianas com outro em que ecoa a obra de Eduardo Lourenço, esclareçamos, desde já, que não é pela impressionante mobilidade e abrangência dos seus interesses intelectuais – que o fez assinar obra que “incomoda”, resiste a classificações, até porque derramada pela(s) ciência(s) como pelas letras – que convocamos nesta circunstância o génio precoce de vida curta, autor, por exemplo, das violentas e polémicas Lettres Provinciales com que, pelo seu estilo natural – sem artificialismos literários que sempre proscreveu – Pascal inaugurou o período clássico da prosa francesa. Assistematicidade, fragmentação textual, “heterodoxia”, rigor problematizante, inegável talento literário e prodigiosa fecundidade intelectual do pensador francês que permitiriam, aliás, diversíssimas aproximações a Eduardo Lourenço.

Antes nos limitaremos a considerar (uma parte d)o pensamento religioso do «filósofo- -cristão» (Soveral, 1968) que, tendo sido um dos maiores cientistas do Grand Siècle de cujas contradições é indubitavelmente filho intelectual, subscreverá uma reflexão filosófica cujo fim último será a fé cristã numa tentativa de alcançar a luz que há-de iluminar o destino do homem perdido na dualidade fundamental da sua própria natureza – a grandeza e a miséria; o infinitamente grande e o infinitamente pequeno – para aqui o cotejarmos com Eduardo Lourenço, «o místico sem fé» (Lourenço, 1984:11), que, em tempos (1953, numa

Portugal e o seu Destino

Page 69: Iberografias nº9

69

página do seu diário), se imaginou a viver num mosteiro dirigido por Álvaro de Campos para com ele adorar a Ausência (maiusculada) de Deus. Citamo-lo agora em declarações mais recentes: «precisamos de um sujeito a que chamamos Deus. (...) Precisamos de uma raiz, um enraizamento que nos apague a perplexidade e a angústia de estar num mundo que é absolutamente indecifrável (...) O nosso Deus ainda é o de Abraão (Lourenço, 2009b:54).

É certo que o essencial – e o Professor Eduardo Lourenço gosta de o lembrar – está nos actos e, frequentes vezes, no não dito, já que, como escreveu Montaigne, estaremos mais na maneira do que «na matéria do dizer» (Montaigne, 1987, III: 928). Mesmo assim, assinalamos a frequência com que, de viva voz, nas suas longas e inúmeras entrevistas – muitas delas concedidas por ocasião de momentos de consagração como este – , ou na escrita dos cantos e recantos diarísticos da sua «casa perdida»2, Eduardo Lourenço volta nostalgica e significativamente a «esse tempo de eternidade que é o da infância», «a parte de mim que todos menos conhecem», «um tempo “crístico”» (Lourenço, 2008:8) em que a família, o sol e os sinos referenciavam a ordem ritualizada e simbólica de uma vida quase “medieval” que a todas as questões respondíveis do Universo dava uma resposta de tipo religioso. Tempo(s) e espaço de S. Pedro: foram estes os de uma infância justa e natural, vivida num mundo quase orgânico cujo conhecimento era, afinal, mais onírico que verdadeiro. Aí, nessa terra pobre de gente simples, não foi educado para Deus como matéria de problematização, de questionamento. Mas será porque é nela que pensa quando exclama «se essa terra também tiver raízes para o céu, melhor» (Lourenço, 2004:24) que «o resto do mundo [lhe] pareceu sempre um sonho mal sonhado» (Lourenço, 1994:6).

Revisitando, por isso, algumas páginas do diário de Eduardo Lourenço e, sem pretensões de exaustividade, meia dúzia dessas suas conversas esparsas, contingentes como a vida – não raro, verdadeiros e fulgurantes momentos de literatura oral, passos, distraídos só na aparência, do work in progress generoso, aberto, empenhado que é a sua obra3 –, damo--nos conta da “ferida” deixada pela ausência física e afectiva de um pai militar, detentor de uma (auto)educação formal pouco comum para o tempo, quase um estranho, um desconhecido que nunca ensinará uma letra aos filhos, mas que tudo fará para que sejam escolarizados. Em serviço em África, tornar-se-á, afinal, presente por interpostos cadernos e livros deixados em herança simbólica naquela “arca do tesouro” da infância que, aos olhos do primogénito, Eduardo, se revelou plena de História e de Literatura. Sentimos igualmente a marca profunda da religiosidade de uma mãe-guardiã, pura “encarnação” da força da crença, cujo arreigado catolicismo será para o filho ingénua – porque não discutida – fonte de conceitos e referências de uma inscrição cultural que lhe ficará para a vida como ferro e sinal de fogo de um pensamento feito «de dúvida e espanto» com origem nesse centro cósmico que S. Pedro de Rio Seco nunca deixará de ser (cf. Martins, 2011). A propósito, esclarece lapidarmente Eduardo Lourenço: «(...) nunca vou tão sozinho como pretendo ir. A minha aldeia e a minha igreja, terra carnal e terra espiritual, caminham invisíveis a meu lado, como dois anjos chorando» (Lourenço, 2009a:31).

Desse sítio matricial, ficarão assim as imagens de um tempo mítico e poético, cheio de pessoas, em que – lá diz o poeta – «eu era feliz e ninguém estava morto». É que, se, nas palavras de Gedeão, «não se nasce impunemente nas praias de Portugal», do mesmo modo, diz-nos Lourenço: «Vivi a infância com tal intensidade, tal força, tal alegria, que, mesmo sem voluntarismo, de facto, recuso deixá-la morrer» (Lourenço, 2003b:152). E acrescenta, acentuando já a dimensão religiosa (em sentido lato), «quando se recebeu,

2 «A Casa Perdida» é um dos títulos em que Eduardo Lourenço pensou para o seu tão referido diário: «A casa perdida de Deus, da Pátria e da própria família» (Lourenço, 2003b:149).

3 Também por isso, saudamos a prevista recolha em livro dessas muitas entrevistas dispersas e assinalamos o notável título bíblico que Eduardo Lourenço terá escolhido: Non est hic (cf. Colóquio Letras, «Eduardo Lourenço. Uma ideia do Mundo», nº 171, Maio/Agosto de 2009a: 22).

Dulce Martinho

Page 70: Iberografias nº9

70

na ordem da emoção e dos sentimentos mais profundos, um baptismo – e não falo só do baptismo propriamente dito –, quando se teve esse tipo de formação, ela fica sempre no fundo de nós. (...) Uma pessoa nunca mais arranca desta matriz» (Lourenço, 2007:47). Por isso, o homem religioso que é Eduardo Lourenço exclamou ao ouvir in loco, num dos seus “regressos sem fim”, os sinos da sua aldeia: «este é o som do lugar da terra de onde nunca saí (...) «pertenço à inscrição da religião tradicional como era vivida neste sítio» (Lourenço, 2008:12).

Tal não impediu, é certo, que, logo na juventude, acontecesse um assumido afastamento do catolicismo canónico. Mas, sobre as pedras de S. Pedro de Rio Seco, «no meio de uma natureza que era como o corpo intemporal de Deus» (Lourenço, 1996:11), se não se edificou uma Igreja, parece ter-se (en)formado um pensamento (do) religioso, telúrica e cristicamente enraizado, assim expresso em palavras de E. Lourenço produzidas numa entrevista há quase três décadas: «Hoje só conservo como referência essencial algo que não é justamente o mito mas que foi vivido emocional e culturalmente na infância como mito, e que é para mim, enquanto habitante do mundo ocidental e do mundo cristão, o modelo de todos os modelos. E esse modelo, para mim, chama-se Cristo, centro e margem da História – da nossa, de ocidentais, em todo o caso (...)» (Lourenço, 1986:105-106). Ou nestas, mais recentes, a que nos parece subjazer todo o fundamento da sua conduta existencial: «Penso é que há uma coisa inalterável: o meu enraizamento no cristianismo. A coisa mais importante, mais fundamental, que me aconteceu foi ter nascido cristão. Ser cristão é um destino. Com todas as consequências que isso tem e implica. Quando a pessoa ainda não tem consciência de si já banhou na água simbólica do baptismo – e isso é indelével. Sou, cada vez mais, um cristão. Como inscrição cultural, essencial, na visão cristã do mundo, na sua radical universalidade. No papel conferido ao Outro na definição da Humanidade» (Lourenço, 2003b:150).

Com tudo o que fica dito, o que procurámos foi mostrar como para E. Lourenço, pese embora o ter-se tornado cedo um “citadino” com acesso aos valores humanistas e racionalistas “laicos”, será esta assumida marca indelével de uma matriz religiosa construída na rigidez rural do catolicismo familiar – mesmo se, às vezes, dela parece órfão –, que permite estabelecer, como o fez já Maria Manuel Baptista, que «a verdade é que há em Lourenço um outro quadro de referência ética que o atrai tanto quanto a tradição grega e kantiana, a saber, a ética cristã» (Baptista, 2003:430). Com esta estudiosa, citamos a questão que o ensaísta se/nos põe: «então a coisa para mim é mais clara, é o Samaritano. Devemos deixar morrer no caminho aquele que sofre, ou devemos tentar comunicar com ele através de qualquer coisa que está para lá da lei e que é muito simplesmente o amor?» (Lourenço, 1990:172).

É que, afinal, aquele que considera a Bíblia «o texto fundador da cultura a que pertencemos» (Lourenço, 2003b:150) – talvez porque sinta que a nossa civilização ocidental não conseguiu oferecer nenhum outro referente capaz de exprimir a totalidade da condição humana, para além da “voz” enigmática que fala no Evangelho, fundadora da Ética, em sentido prático, mas estando aquém e além dela – acaba por defender que «a Ética é uma corrupção, uma palavra do mundo grego. A palavra do mundo cristão é Amor» (Lourenço, 1986:106). Amor que, sendo «a única eternidade que nos é acessível», (...) a necessidade de suportar tudo o que carregamos de efémero» (Lourenço, 1999:164), não se distingue, afinal, do Tempo. Tempo (temporalidade), Amor e Morte – os grandes temas lourencianos, até porque, segundo o próprio, «não há outros, não há outros» (Lourenço, 1986:106). Uma tríade nodal nesta visão trágica do cristianismo (de pendor kierkegaardiano), segundo a qual, mais do que a Deus (afinal, escondido), pela religio, é ao Outro que nos ligamos, numa relação, menos determinada que determinante, de inquirição permanente, por isso, criadora. E esta é uma relação de Amor (cristão) até porque, lembra-nos Eduardo Lourenço,

Portugal e o seu Destino

Page 71: Iberografias nº9

71

só existimos através do olhar do(s) outro(s), considere-se o Outro Absoluto da relação com o que nos transcende, ou “o próximo” cristão deste mundo (a charité de Pascal)4.

Poderá carecer de fundamentação teológica, é certo, mas este é o cristianismo que o próprio Eduardo Lourenço vê como «problemático, de questionamento, (...) mais tarde, de algum modo, retomado em termos de existencialismo cristão» e por si avocado, sobretudo, enquanto «uma vivência dele, mais próxima da mensagem evangélica original. A que não vive tanto do passado como do futuro e o modela» (Lourenço, 2003b:150). Ora, parece--nos que um tal quadro de referência ética cristã fundada num Deus ausente (caché) e num “misticismo sem fé” dá uma outra luz ao conjunto de dúvidas, de inquietações e de interrogações de ordem filosófico-religiosa sobre o Absoluto que, em continuum, acompanham a atitude ensaística de Eduardo Lourenço. Lembrem-se, por exemplo, as preocupações que tem manifestado sobre a desertificação religiosa da Europa (e não só), para a qual, instado a sugerir a formulação de uma “ideia” nuclear vivificadora em tempo de carência de ideologias, propôs, peremptório, só o princípio: «da fraternidade cristã, mesmo sabendo-se que o mundo cristão está morto» (Sepúlveda, 1991:32).

Assim também não se estranha que, no culminar de uma reflexão em torno das suas inquietações e angústias interiores, Eduardo Lourenço tenha confessado, com a sua proverbial (aparente) “simplicidade” de discurso – caucionada pela convicção e a autoridade “moral” de quem se aproximava das oito décadas de um constante diálogo com o mundo –, que «talvez a única coisa importante seja atravessar a vida sem magoar os outros e sem ser magoado pelos outros» (Lourenço, 1999:161).

Assinalamos nesta frase toda uma ética de extraordinária dimensão humana, até porque E. Lourenço, revelando grande incapacidade de ferir os outros, se declara «não convencido da bondade natural do ser humano, europeu ou outro» (Lourenço, 1992:3). Por isso, nada maniqueísta e sempre tolerante, rejeita o que chama o «tolerantismo moderno» (Lourenço, 1998:91) que, vivido em boa-consciência, nesta sociedade de uma cultura pós-cristã, nos vai tornando indiferentes ao Outro, “insolidários”. De facto, nas páginas de O Esplendor do Caos (1998), ensaios como «Solidariedade num mundo insolidário» e «Do intolerável» entretecem os valores da tolerância e da solidariedade para evidenciar que «por carência, a categoria da tolerância desertificou eticamente o mundo. O que foi uma conquista tornou--se idolatria da indiferença. Há tolerâncias intoleráveis» (Lourenço, 1998a:93).

No entanto, parece-nos que, com ou sem Deus, face às contradições e paradoxos do homem moderno, e sempre navegando na galáxia das ideias não-feitas por infinito apetite de liberdade, em Eduardo Lourenço, a proposta fundamental não é a de um pessimismo declinador de todos os desconcertos e males do mundo. É antes a sua «inesgotável capacidade de dádiva» – que lhe reconhecia já o seu indefectível amigo Vergílio Ferreira – ou o «princípio da fraternidade imediata» (Jorge, 2003:21), pai, por exemplo, do seu amor desmedido (às vezes, desencantado e com auto-ironia, mas sempre com um carinho suave) por Portugal «como metáfora do seu amor pela vida e habitação da Terra» (Ibidem) e certamente filho do sentir do Professor quando, sempre atento ao que não é a sua própria

4 Em Pensées, Pascal distingue três «ordens»: a carne/a matéria; o espírito e a charité (o amor a Deus e ao pro- ximo). Se o espírito revela ao homem a sua miserável condição, apenas pela charité este lhe poderá escapar (cf.P725).

Neste texto usámos como edição de referência a obra Pascal. Oeuvres Complètes, edição de Michel Le Guern, Paris, Gallimard/Bibliothèque de la Pléiade, 1998-2000, 2 volumes. Assim, tal como no exemplo anterior, a numeração dos diversos fragmentos de Pensées que surge após cada citação/referência desta/a esta obra corresponde à que aí é usada. Desde que não haja indicação em contrário, as traduções são da nossa respon-sabilidade.

Dulce Martinho

Page 72: Iberografias nº9

72

pessoa, disse: «tenho na referência crística a referência fundamental da minha educação e da minha maneira de ser» (Lourenço, 2004:26).

Em suma, o ponto que aqui defendemos é que o assumido afastamento juvenil de Eduardo Lourenço de uma prática religiosa herdada da sua formação católica de sen-tido único corresponderá tão-só à sua rejeição do que já chamou a «objectivação da mensagem cristã» (Lourenço, 1998b:72), referindo-se, no nosso entendimento, à paulatina aproximação/conversão da primordial mensagem espiritual cristã a/num poder temporal dogmaticamente formulado e historicamente encarnado nos diversos conteúdos da vida do homem (europeu) – a política, o Direito, a ética e até mesmo a metafísica – quando, afinal, na essência do Cristianismo estaria a «crítica radical do Poder pelo amor dos outros e, mais radicalmente, crítica de um Deus-Poder» (Ibid:73). Mas, para E. Lourenço, parece valer, acima de tudo, o conforto de um outro Deus em que (não) acredita. O de uma experiência religiosa, fortemente embebida, como vimos, da figura de um Cristo mediador que assim nos permite o acesso a Deus para no-lo devolver como uma entidade menos abstracta que nos é (in)acessível.

Concepção pouco teológica do divino e do religioso esta em que ouvimos alguns ecos de Pascal. Certamente não os da intransigência e austeridade radical da visão pascaliana da sociedade – decorrente do dogma do pecado original: «procuramos a felicidade e não encontramos senão miséria e morte» (P380) – ausente tout court em Eduardo Lourenço. Antes, os de uma clara complementaridade e diálogo entre sentimento e consciência cultural, moral e cívica; razão e coração ou, num triplo galicismo de formulação ainda mais pascaliana, esprit de géométrie, esprit de finesse, esprit de justesse, implícitos e conciliados com uma clareza não objectiva nem racional, mas subjectiva e empenhada. Uma hermenêutica cultural que é, sobretudo, uma ética, robustecida pela complexidade do real, já que para Eduardo Lourenço não há o Ser sem o Outro.

Na verdade, foi também de coloração muito particular o cristianismo de Pascal e algo “heterodoxa” a sua démarche filosófica a que sinteticamente nos referiremos. Mas, antes, leves pinceladas biográficas sobre o cientista francês que «sobre o vazio nos corpos físicos fez um tratado matemático (...) [e que] ao vazio que encontrou em si, chamou Deus» (Schneider, 2003:70).

*****

Igualmente nascido na província, no coração da vulcânica Auvergne, e também nómada, ainda que em escala menor que Lourenço – num triângulo formado pela Clermont (hoje Clermont-Ferrand) natal, pela Normandia e por Paris –, a Pascal coube uma família de pequena nobreza, crente mas não mística, em que pontifica a figura de um pai, magistrado, aberto à especulação intelectual do Grand Siècle e com gosto pelas matemáticas, pelas ciências e pelas línguas clássicas. Tão disposto a aprender como a transmitir, tão responsável pela extraordinária precocidade científica do filho como pela sua progressiva aproximação a um cristianismo rigoroso, o progenitor de Pascal, que não via contradição alguma entre a ordem da fé e a ordem do saber, assume o projecto pessoal da educação do filho prodígio, sem interferências da religião. E este, tendo assim tido a imensa sorte de escapar ao dogmatismo do ensino escolástico, revelará espantosa precocidade científica ao redigir, quando mal tinha 11 anos, o seu Tratado sobre os Sons para aos 16 produzir, em latim, Ensaio sobre as Cónicas.

Mas é já ao Pascal adulto, doente, próximo da moral jansenista – homem tanto dos salões mundanos do honnête homme do seu tempo, como dos retiros espirituais em Port- -Royal – que a fé cristã se vai impor como uma necessidade, face ao infinito ou «à realidade dividida» que é o homem e que o professor Eduardo Lourenço pensa sem cessar desde Heterodoxia I (1949). E se é num percurso de angústias e abismos que Pascal caminhará

Portugal e o seu Destino

Page 73: Iberografias nº9

73

até à fé cristã como revelação em sucessivos episódios de progressivo fervor religioso, nele surgem também, perfeitamente harmonizados, o rigor científico, o “espírito de geometria” – como dizia –, a sensibilidade e a imaginação do artista, do poeta, com rara capacidade de passar da ironia à eloquência (como Lourenço, aliás).

Caberá, portanto, assinalar que, no caso de Pascal, sendo o seu um pensamento filo-sófico habitado pela fé, nem por isso nele deixamos de encontrar uma reflexão profunda sobre a condição humana, os limites da razão, o relativismo da justiça e do direito ou as ciências na sua relação com essa mesma fé ardente. Tarefa a que se entregou com polémica, porque, sem limitar o seu discurso às convenções e conceitos do pensamento religioso com que um catolicismo oficial acomodante – preconizado ao tempo, no entender de Pascal, pelos jesuítas – pretenderia prolongar o seu controlo sobre almas e gentes, nas suas Lettres Provinciales e em muitas passagens de Pensées, Pascal fez apelo à observância de um cristianismo mais rigoroso, mais genuíno e autónomo (como se pregava em Port-Royal). Assim denunciou o que considerava a perversão do amor evangélico, o afastamento do cristianismo original.

Ora é verdadeiramente cristocêntrica a fé de Pascal – o cristianismo é Cristo – e linear a sua atitude fundamental: o brilhante cientista desconfia da omnipotência da razão. Por isso, empenha-se no estudo do homem de acordo com um esquema de pensamento “geométrico” e pessimista, isto é, temperado por uma fé cardeal que não aniquila a razão, mas lhe reconhece limites na “ordem da religião”. Tendo esta – a religião – uma natureza própria, “experimental”, não é explicável, nem sequer compreeensível, racionalmente, por não pertencer à “ordem da geometria”. Antes, só pelo humano “espírito de finura” – que compreende pelo juízo, pelo coração, pela intuição – o lado do homem acima de si próprio, o único que lhe permite sentir Deus (cf.P465/466), porque «é o coração que sente Deus e não a razão. Este é o significado da fé. Deus sensível ao coração, não à razão» (P397).

E Deus, esta pura transcendência “abscôndita” (cf.P227/373/416), é-nos absolutamente fundamental. É muito pessimista, sem ilusões, a visão pascaliana do homem sem Deus, dada a grande incompatibilidade entre a grandiosidade das nossas aspirações e a cruel realidade da nossa limitada humana condição. A grandeza e a miséria tocam-se, porque o homem é um rei que perdeu o seu reino e, agora, arrastado na corrente da existência, decaído do seu estado real e disso consciente (pela razão), aspira a reencontrar esse estado. Afinal, como pergunta Pascal, «quem se lamenta de não ser rei senão aquele que o foi e perdeu o reino?» (P108).

Aqui, em baixo, qual Babilónia impedindo o acesso à Jerúsalem celeste, há Mal no homem. Depois da expulsão do paraíso, da “queda”, e por ela condenado à maldição de um destino trágico, perdido na cidade humana terrestre, escravo dos seus desejos – «a ordem da concupiscência» (P90/91) – o homem, não mais que «inconstância, tédio, inquietude» (P22) –, busca o Bem no mundo, no aturdimento da acção, no divertissement. Sem êxito. Distraído, sente dificuldade em encontrar um espaço/tempo que, em concreto, lhe pertença. Convertido, com o coração, devia procurá-lo no repouso e no silêncio. Mas, como estar sozinho é estar só face a Deus, para Pascal, «toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é a de não serem capazes de ficar em repouso num quarto» (P126). Então, se o abismo é infinito, só um bem infinito o poderá preencher. Só pela religião cristã o equilíbrio será possível, porque deste estado de corrupção ninguém consegue libertar-se sozinho: «corremos despreocupadamente para o precipício, depois de termos posto alguma coisa diante de nós para nos impedir de o ver» (P155).

Então, um segundo caminho se oferece: sempre sem renunciar ao mundo, para os libertinos incréus, Pascal autor da Apologie de la religion Chrétienne/Pensées propõe a célebre aposta (pari). Contra a indiferença e o divertir-se, defende o converter-se. Racionalmente

Dulce Martinho

Page 74: Iberografias nº9

74

(aplicando ao domínio metafísico o cálculo de probabilidades de que foi um dos pioneiros), Pascal mostra que mais vale apostar que Deus, embora absconditus, caché, existe. Com quase nada a perder (o sacrifício de alguns prazeres fugitivos) e muita probabilidade de ganhar (a salvação eterna), proibida a ausência de escolha, é necessário tomar partido a favor ou contra a existência de Deus, já que – insiste o filósofo – «vós estais embarcados» (P397). A dissimetria entre a esperança de ganho e o risco de perda, entre a salvação eterna e a condenação eterna, é tal que a própria razão recomenda tomar partido pela existência de Deus.

A todos, aos ainda indiferentes e aos já crentes, Pascal lembra que, face a esta discrição divina, encontrar Deus é difícil e implica uma busca ardente que a filosofia não alcança. Que, se Deus se esconde no cosmos, na história, no pão eucarístico, Ele se revelou, afinal, através da encarnação. Por isso, para chegar a Deus há Cristo. Cristo ele-próprio, o Deus--homem por excelência; Cristo, o homem-Jesus. Jesus Cristo, o mestre da palavra falada, que nunca escreveu uma linha, mas que tudo nos disse em palavras e actos. Palavras com que, em Pensées, Pascal escreve: «não só apenas conhecemos Deus através de Cristo como só nos conhecemos a nós através de Jesus Cristo. Não conhecemos nem a vida, nem a morte senão através de Jesus Cristo. Para lá de Jesus Cristo, não sabemos o que é a nossa vida, nem a nossa morte, nem o que é Deus, nem nós mesmos. Assim, sem a Escritura, cujo objecto é Jesus Cristo, não conhecemos nada, não vemos senão obscuridade e confusão na natureza de Deus e na nossa própria natureza» (P396).

Por issso, para o homem – que, de outro modo, só se poderia definir como falta, como finitude – há Cristo ou nada, até porque, segundo Pascal, Jesus Cristo, cumprindo o anúncio de um cortejo de profetas, ao somar em si a “queda humilhante” da encarnação, numa descida vertiginosa até nós, a apoteose da Ressurreição e a gloriosa reelevação (Ascenção) em direcção à luz, constitui a mais decisiva das provas históricas da fé cristã, a perfeita manifestação do Absoluto. Numa trajectória feita de episódios “humanos”, Deus-Jesus, de rosto na terra, foi cada um dos homens na sua contingência balbuciante de «junco precário» (P104/186). Jesus Cristo, conciliando em si o Deus Verdadeiro e o homem verdadeiro, é não só a nossa mediação com um Deus (quase) desconhecido, como a única saída, via estreita em desfiladeiro, para a interpretação do mundo – e nele, do homem. Jesus Cristo, centro e coração da história, será a superior resolução de todos os antagonismos e de todas as contradições da nossa humana condição, vínculo da polaridade finito-infinito, síntese do melhor das aspirações humanas, salvador e redentor de todos os abismos e iniquidades humanas, chave do enigma universal, da verdade e da vida, da fugacidade do tempo e da nossa eternidade (cf.P178/181).

Em síntese, verdadeiro teólogo, autor de uma apologia da visão católica do mundo com recurso a princípios da filosofia, no pensamento religioso de Pascal conjugam-se inteligência racional e experiência interior (cf. Sellier, 2007:50). O resultado é esta cristologia pascaliana profundamemte dinâmica, assim desenvolvida num abismo entre o «cálculo do acaso» e a «apologia do cristianismo», em que, cabendo a cada homem procurar a explicação e encontrar o remédio para a sua frágil condição, mais do que um refúgio, a religião, e sobretudo, a figura de Cristo, surge a Pascal, como via para alcançar as profundezas da alma humana, pelas quais se sentia irresistivelmente atraído. Ou, não estando o homem fechado na sua própria natureza – «o homem ultrapassa infinitamente o homem» (P122) –, para Pascal, «o trágico apenas existe para ser ultrapassado. Com Deus, o homem já nada tem de trágico» (Desroussilles, 2007:24).

*****

E assim, pelo trágico, retornamos a Eduardo Lourenço, o hermeneuta cultural que se diz «um espectador interessado da vida» (Lourenço, 2003a:36), «crucificado nessa maravilhosa

Portugal e o seu Destino

Page 75: Iberografias nº9

75

cruz do ensaísmo» (Ibid:24). Não aposta que Deus existe. Bem ao contrário, confrontado com as suas dúvidas em relação à existência de Deus, responde: «Não é uma questão de dúvidas. O problema é saber se nós existimos para Deus. O problema não é sobre a existência de Deus mas o contrário» (Ibid:32).

Enquanto isso, encontra «o sentimento do que é Deus» (Ibid:36) na música que, se pudesse, ouviria sem parar, porque para si «a música é como um mar de Deus» (Ibidem), cujos silêncios trágicos escuta como dorida e inexcedível expressão de todo o drama da solidão humana. E, lembrando-nos recorrentemente a pulsão natural que o Homem sem-pre teve para a Literatura, enquanto interpretação máxima da Natureza, dos deuses e dos céus e infernos de si próprio, na literatura, na sua paixão pela poesia, «a mais alta criação humana (...) o verbo divino» (Lourenço, 2009b: 51), como «uma tentativa de dar uma forma unicamente humana, não com função transcendente imediata, àquilo que se recebe da outra instância, primordial de todas as culturas: a instância religiosa ou mítica» (Lourenço, 2012:38).

Ou seja, qual Jesus Cristo, a um tempo humano e divino, súmula perfeita do tempo e da nossa “particular” eternidade, a cultura pode suprir esta ausência de Deus: «a cultura serve para nos despir de toda a arrogância, particularmente essa que consiste em imaginar que, sendo cultivados, encontramos Deus. A cultura é um exercício de desestruturação, não de acumulação de coisas. É uma constante relativização do nosso desejo, legítimo, de estar em contacto com aquilo que é verdadeiro, belo, bom. É esse exercício de desconfiança, masoquista, de desencantamento. Só para que não caiamos no único pecado, que é verdadeiramente o pecado contra o espírito: o orgulho» (Lourenço, 2004:25-26).

Pascal e Lourenço: a um como ao outro apetece chamar «intelectual» no sentido pri-mordial do termo. Aquele que tem a capacidade de compreender, que é capaz de “inter- -legere”, de escolher – e de no-lo dizer – o que vale a pena ler lido nas páginas do mundo ou, como diz Eduardo Lourenço, aquele que, sem pretensões de deter a verdade, pode «assumir essa espécie de responsabilidade de sonhar alto os sonhos de todos» (Lourenço, 1972:80).

E, face à tragédia do mundo, à nossa própria tragédia enquanto seres transitórios, haverá, no entanto, uma existência para lá desta vida, uma eternidade que a todos nos cabe, de duração proporcional à profundidade da relação que nela tivermos estabelecido com o Outro, ao que formos capazes de deixar em legado intelectual aos que se nos seguirem. No caso dos dois homens de pensamento que aqui procurámos pôr em diálogo, «plurais como o universo», no dizer pessoano, o que pensaram/têm pensado ficará, eterno, muito depois deles. E se este é um julgamento nada racional, nele acreditamos não estar sós.

Disso mesmo serão prova as nossas palavras finais, pedidas de empréstimo a Pascal, que, se pudesse regressar à terra, por certo não desdenharia participar neste encontro em torno do pensador, «filósofo da cultura» (Baptista, 2003:25) que aqui nos congrega, para com ele discutir múltiplos aspectos da sondagem magistral da natureza humana e do que deveras nos transcende a que ambos se dedicaram/dedicam. Tal não sendo possível, aqui as deixamos em tributo ao nosso homenageado (em tradução livre e imperfeita nossa): «os grandes génios têm império, brilho, grandeza, vitória, lustro próprios, e não carecem de grandezas materiais, com as quais nada os relaciona. Vemo-los não com os olhos, mas com o espírito, e isso basta» (P 290).

Dulce Martinho

Page 76: Iberografias nº9

76

Referências bibliográficas

BAPTISTA, Maria Manuel, Eduardo Lourenço: A Paixão de Compreender, Porto, Ed. Asa, 2003

COELHO, Eduardo Prado, «Pessoa, o sorriso e o desastre», in A Noite do Mundo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, colecção Temas Portugueses, 1988, pp. 61-66

______________, «Eduardo Lourenço: aquele que agita o mar», in O Cálculo das Sombras, Porto; Ed. Asa, 1997, pp.121-123

DESROUSSILLES, François Dupuigrenet, «Pascal Janséniste?», in Pascal - écrits sur la grâce, Paris, edições Payot& Rivages, 2007, pp.5-24

LOURENÇO, Eduardo, Eduardo Lourenço. Cultura e Política na Época Marcelista (1972), Mário Mesquita (entrevista de), Lisboa, Ed. Cosmos, 1996, 27-83

______________, «As confissões de um místico sem fé», Prelo, Revista da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1984, Maio (número especial sobre Eduardo Lourenço), pp. 7-16 (entrevista de Diogo Pires Aurélio, 1984)

______________, «Eduardo Lourenço no labirinto da identidade» (6/12/1986), Inês Pedrosa, (entrevista de), Anos Luz. Trinta Conversas para celebrar o 25 de Abril, Lisboa, Dom Quixote, 2004, pp. 85-106

______________, «Comentários à Conferência de Fernando Savater» (1989/12), I Encontro de Lisboa – Os jovens e a Cultura na Europa do Futuro, Lisboa, Centro Nacional de Cultura e Instituto Juventude, 1990, pp. 171-172 (debate com Eduardo Lourenço, na sequência da comunicação, apresentada no Centro Nacional de Cultura, ao colóquio «Os jovens e a Europa», Lisboa, 16 a 18 de Dezembro de 1989)

______________, «A Europa Difusa», Público. Leituras, nº683, 17 de Janeiro de 1992, pp.1-3

______________, «Cadernos de Vence», JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 613, 13 de Abril de 1994, pp. 6/7

______________, «Lembrança espectral da Guarda» (1995), JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº667, 8 de Maio de 1996, p.11-12

______________, «Do Intolerável», O Esplendor do Caos, Lisboa, Gradiva, 1998a, pp. 87-93.

______________, «Religião-Religiões-Laicidade» (4/5/1998b), Comunicação apresentada ao Seminário Internacional Europa e Cultura, António Barreto (coord.), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp.71-78

______________, «Eduardo Lourenço» (1999/2/27), in 25 Portugueses, Luís Osório, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, 2ªedição, pp.157-165 (entrevista conduzida por Luís Osório)

______________, «Eduardo Lourenço - a vaca sagrada da cultura portuguesa», Público (caderno de domingo, Pública nº 364), 2003a, 25 de Maio, pp.22-36 (entrevista de Adelino Gomes e Carlos Câmara Leme)

______________, «O Mundo Secreto de Eduardo Lourenço», Visão, 2003b, 22 de Maio, pp.144-154 (entrevista de José Carlos de Vasconcelos)

______________, «Eduardo Lourenço», Diário de Notícias - DNA, nº 393, 11 de Junho de 2004, pp. 23-27(entrevista de Anabela Mota Ribeiro)

______________, «Eduardo Lourenço. Retrato do pensador errante», Pública, 13 de Maio de 2007, pp.40-51 (entrevista de Luís Miguel Queirós)

______________, «Viagem ao fim do mundo», Expresso. Actual, nº1857, 31 de Maio de 2008, pp.6-12 (entrevista de António Guerreiro)

______________, «A Casa Perdida (Páginas Diarísticas)», Colóquio Letras-Eduardo Lourenço. Uma ideia do mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009a, nº171, Maio/Agosto, pp.25-71

Portugal e o seu Destino

Page 77: Iberografias nº9

77

______________, «Eduardo Lourenço entrevistado por Clara Ferreira Alves», Revista Única, 31 de Dezembro de 2009b, pp.47-54

______________, «Uma Barca da Salvação», Revista LER, Novembro de 2012, pp.36-39

JORGE, Lídia, «Espaço de liberdade sem negócio», JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 851, 14 de Maio de 2003, pp. 20-21

MARTINS, Guilherme de Oliveira, Discurso de homenagem a Eduardo Lourenço, S. Pedro de Rio Seco- Guarda, 6 de Agosto de 2011

MONTAIGNE, Michel de, Essais I, II, III, Paris, Éditions Gallimard, 1987

PASCAL, Blaise, Pascal. Oeuvres Complètes, edição de Michel Le Guern, Paris, Gallimard/Bibliothèque de la Pléiade, 1998-2000, 2 volumes

SCHNEIDER, Michel, «On mourra seul», in Morts Imaginaires, Paris, Folio/Gallimard, 2003, pp.59-75

SELLIER, Philippe, «La figure du Christ », in Le magazine littéraire, Le magazine littéraire, Pascal miroir de notre vie, n° 469, Novembro de 2007, pp. 50-52

SEPÚLVEDA, Torcato, «“A Europa ou Será Cristã, ou Não Será” - Os Livros Portugueses na Europália», (1991/10/14), Público, 1991, 14 de Outubro, p.32

SOVERAL, Eduardo Abranches de, PASCAL, Filósofo cristão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1968

STEINER, George; LADJALI, Cécile, Elogio da Transmissão. O Professor e o Aluno, Lisboa, Ed. D.Quixote, 2004

Dulce Martinho

Page 78: Iberografias nº9

78

Page 79: Iberografias nº9

79

O labirinto das Ideias Sobre o Euro1

Pedro LainsInstituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

Em 1968, no seguimento das manifestações em várias cidades francesas, o governo do General De Gaulle, para conter a contestação popular, decretou o aumento do salário mínimo, promoveu um aumento generalizado dos rendimentos e permitiu uma expansão das despesas públicas. Essas medidas tiveram naturalmente impacto na inflação dos preços e acabaram por se traduzir numa pressão para a desvalorização do franco perante as principais moedas internacionais, incluindo o marco alemão. O Governo francês começou por resistir desvalorizar mas acabou por ceder, apesar dos esperados protestos dos parceiros internacionais, que assim se viram obrigados a pagar parte da factura inflacionista francesa. Anos depois, no contexto da queda do Muro de Berlim e da reunificação alemã, foi a vez de o Chanceler Helmut Kohl accionar políticas expansionistas internas, com consequências externas. Dessa vez, a pressão inflacionária não foi resolvida por uma desvalorização, mas sim pela intervenção do Bundesbank que aumentou as taxas de juro, atraindo assim capitais do estrangeiro, levando à quebra de outras moedas, incluindo a libra britânica e a lira italiana, que acabaram por ter de sair do Sistema Monetário Europeu, em Setembro de 1992 (cf. Marsh 2011).

Estes dois episódios são talvez os mais significativos de uma história recente, em que os progressos de coordenação política e integração económica foram contrariados por medidas nacionais de gestão das contas públicas, de desvalorizações cambiais e de alterações nas taxas de desconto dos bancos centrais. Havendo pressão para mais gastos, por razões sociais ou outras, haverá pressão para a desvalorização ou para a alteração de taxas de juro dos bancos centrais. Numa Europa sem coordenação de política monetária, os problemas económicos internos podem ser atacados de formas que potencialmente prejudicam os parceiros comerciais. O euro nasceu, fundamentalmente, para contrariar essa realidade. Vejamos então em que medida isso foi assim, e quais os problemas encontrados pelo caminho e as possibilidades de solução futura.

As etapas da ideia da união monetária europeia têm raízes longas, que facilmente remontam ao século XIX, altura em que, todavia, os problemas monetários internacionais eram contidos pelo bem-sucedido padrão-ouro. No fim desse período, em 1914, a quase totalidade dos países no mundo tinha as suas moedas ligadas por paridades fixas, através do ouro (ou, em casos marginais, da prata), num sistema regulado pelos governos e bancos centrais, com Londres, Paris e Berlim no centro. Os equilíbrios no padrão-ouro, todavia, podiam estar dependentes de políticas monetárias e orçamentais demasiadamente contraccionistas, com custos sociais que, por vezes, não foram suportados pelas populações, sobretudo nos países com economias mais voláteis da periferia europeia ou da América Latina (cf.Eichengreen e Flandreau 1997).

1 Texto publicado conjuntamente em J. L. Cardoso, P. Magalhães e J. Machado Pais (orgs.), 2013. Portugal Social de A a Z. Temas em Aberto. Paço d’Arcos: Edições Expresso, 319-327.

Page 80: Iberografias nº9

80

Mas o padrão-ouro não sobreviveria ao conturbado período de entre as duas guerras mundiais. As relações económicas, financeiras e políticas internacionais tinham sido pro-fundamente desequilibradas pelos efeitos da primeira Guerra Mundial, e a amplitude das necessidades de ajustamento ultrapassaram largamente a capacidade dos governos e bancos centrais garantirem reservas monetárias e manter paridades cambiais. Vários países mais avançados regressaram às paridades na década de 1920 mas, perante as acrescidas dificuldades, em 1931, a Grã-Bretanha fez aquilo que era quase considerado impensável e abandonou o ouro, sendo seguida pelos Estados Unidos, numa das medidas mais importantes – e menos faladas – do New Deal de 1932. Finalmente, em 1935, foi a vez de a França fazer o mesmo. O período entre o Tratado de Versailles e a ascensão de Hitler foi um campo fértil de acontecimentos para a ideia de uma união monetária na Europa, mas politicamente hostil. À recuperação das finanças e da economia internacionais, os governos preferiram seguir a via nacionalista de retirar fundos às economias para pagar as dívidas de guerra (cf. Eichengreen 1992).

O segundo pós-guerra seria, todavia, muito diferente. Em 1944, ainda em plena segunda Guerra Mundial, a conferência de Bretton Woods mostrou haver interesses, liderança e coordenação internacional suficientes para a constituição de um sistema monetário que se veria a mostrar essencialmente estável e duradouro. Com a má experiência do primeiro pós-guerra, o poder financeiro e económico dos Estados Unidos, as necessidades de defesa da Guerra Fria, e uma teoria económica sensata, um vasto conjunto de países decidiu juntar-se num acordo monetário que tinha como centro o dólar, e em que os governos participantes se comprometiam em garantir que os câmbios flutuassem apenas marginalmente. O sistema era ainda imperfeito uma vez que, na ausência de coordenação de políticas monetárias, implicava limitações à circulação internacional de capitais. E era também algo injusto na distribuição dos custos e benefícios. Nesse contexto, e apesar de problemas pontuais, a Europa não precisava verdadeiramente de uma unificação cambial, uma vez que o chapéu-de-chuva monetário do dólar americano, do FMI e da União Europeia de Pagamentos providenciavam o necessário enquadramento institucional.

Bretton Woods acabou entre 1971, quando o Governo de Nixon desistiu da disciplina orçamental para poder financiar a escalada de guerra no Vietname, e 1973, quando vários países se viram impossibilitados de garantir as limitações nas flutuações cambiais, agravadas pelo surto inflacionista provocado pela crise petrolífera. De imediato, a ideia da união monetária ressurgiu nas Comunidades Europeias que, todavia, não foram apanhadas de surpresa. Com a saída de cena de De Gaulle, em 1970, e a renovada perspetiva de alargamento à Grã-Bretanha, entre outros países, o Primeiro-Ministro Luxemburguês, Pierre Werner, a pedido da Comissão Europeia e do então recentemente formado Conselho Euro-peu, redigiu um plano para a adoção de uma moeda única na CEE, a aplicar em dez anos (cf. Kindleberger 1993).

O plano não foi todavia concretizado, dada a instabilidade que se seguiu mas, entretanto, foram dados passos intermédios de estabilização, com a criação de bandas de flutuações cambiais entre os países das Comunidades Europeias, em 1972, ainda dentro do sistema de Bretton Woods, e em 1979, com o Sistema Monetário Europeu e o Mecanismo das Taxas de Câmbio. Estes sistemas obrigavam os governos e os bancos centrais a intervir nos mercados monetários para preservar as paridades dentro de certos limites. Se uma moeda sofria pressões de desvalorização, as autoridades monetárias intervinham comprando a mesma moeda para forçar a sua valorização. Um objectivo que várias vezes se mostrou inalcançável, como no caso já acima indicado da desvalorização da libra esterlina, em 1992.

Entretanto, a década de 1970 não trouxe as promessas de crescimento que haviam justificado a adesão britânica às Comunidades Europeias, facto que a Primeira-Ministra Margaret Thatcher utilizou para conter os esforços de maior integração. Mas em 1984,

Portugal e o seu Destino

Page 81: Iberografias nº9

81

na reunião do Conselho Europeu, em Fontainebleau, o problema britânico foi finalmente resolvido, com a restituição anual de avultadas verbas à Grã-Bretanha, e ficou aberto o caminho para o aperfeiçoamento das comunidades, que se viria a fazer com o Ato Único Europeu, para o alargamento, a Espanha e Portugal, ambos em 1986, e para o futuro aprofundamento das competências das comunidades, incluindo na esfera monetária. Em 1988, o mais importante Presidente da Comissão Europeia das últimas décadas, Jacques Delors, deu o seu nome a um novo e derradeiro plano de união monetária, que viria a ser consagrado em 1992 no Tratado de Maastricht e na criação da União Europeia (cf. Dinan 2004).

Os tempos continuaram a ser conturbados pela década de 1990 adiante, embora em menor grau, particularmente porque o mundo estava a atingir um maior grau de globalização, não apenas pelo inédito forte crescimento económico fora da área da OCDE, mas também por causa da crescente liberalização dos movimentos internacionais de capitais que tornaram cada vez mais difícil o desígnio de estabilidade de taxas de câmbio. Com novos países a jogar em força nos mercados internacionais, com valores crescentes de capitais a circular pelo mundo, os equilíbrios monetários obrigavam a uma maior coordenação internacional das políticas monetárias. É mais difícil conseguir estabilidade cambial com plena liberdade de capitais, pois as mexidas nas taxas de câmbio são claramente a melhor arma de defesa contra desequilíbrios externos: perante desequilíbrios das contas externas, sem coordenação internacional, os governos mais prontamente recorrem a mexidas nas taxas de câmbio. E mesmo que os governos pretendessem não alterar substancialmente o valor das moedas, recorrendo a ajuda financeira externa do Fundo Monetário Internacional, a verdade é que a força dessa instituição não acompanhou o crescimento dos mercados de capitias internacionais. A crise asiática do início da década de 1990 é a melhor prova das limitações da política nacional e internacional para preservar a estabilidade nos mercados internacionais.

O contexto de crescente globalização da década de 1990 foi seguramente um elemento importante para a decisão de criação da moeda única europeia, mas também para a forma institucional que a nova moeda revestiu. É preciso ter em atenção que a união monetária podia ter tido várias configurações do ponto de vista das instituições criadas e das suas capacidades de intervenção no mercado. E, na verdade, o euro foi criado numa versão minimalista, com um banco central de estatutos limitados ao controlo da inflação, sem um fundo de correcção de desequilíbrios, sem quaisquer transferências orçamentais automáticas entre países ou regiões para compensar eventuais comportamentos económicos desiguais, e ainda sem quaisquer mecanismos de alerta relativamente à acumulação de desequilíbrios externos decorrentes aumentos de dívida externa dos estados membros.

A criação do euro é por vezes associada à vontade de sucessivos governos franceses de reforçar a ligação da Alemanha ao resto da União Europeia, dando como contrapartida o apoio à reunificação, no seguimento da queda do Muro de Berlim. Essa convergência de interesses esteve seguramente presente na criação do euro, mas não é suficiente para explicar a sua concretização e ainda menos a forma como ela ocorreu. E, independentemente do poder explicativo dessa interpretação, o certo é que rapidamente o euro foi desenhado à imagem do marco, não por inevitabilidade política, económica, financeira ou de outra ordem, mas sim porque a ideia de um euro forte, valorizado, baseado num banco central independente, com um mandato limitado apenas ao controlo da inflação, e sem atribuições sobre o andamento do desemprego, como a maioria dos demais bancos centrais das principais potências mundiais, e ainda formalmente sem capacidade de intervenção nos mercados monetários, através da compra de dívida dos estados soberanos, foi uma decisão que ia ao encontro de uma determinada forma de ver a economia internacional da transição do milénio. Essa visão está patente, por exemplo, na forma com Alan Greenspan dirigiu

Pedro Lains

Page 82: Iberografias nº9

82

a Reserva Federal norte-americana no longo período entre 1987 e 2006 (cf. Greenspan 2007).

Assim, o euro seria criado numa região que não preenchia os requisitos de uma “área monetária óptima”, isto é, numa região com mercados do trabalho, dos produtos ou dos serviços não plenamente integrados. Porém, diziam-nos, tal não deveria ser considerado um problema mas sim uma oportunidade para alterar essa circunstância. A nova moeda obrigaria a importantes modificações das economias que abarcava, as quais deveriam responder de forma tão rápida quanto maior fosse a sua flexibilidade, a qual deveria ser promovida ainda pelas chamadas “reformas estruturais” no funcionamento dos mercados.

A forma como a criação da moeda única foi recebida pelos partidos maioritários e pela opinião pública num país periférico como Portugal mostra em que medida havia expectativas positivas sobre os seus efeitos, e a falta de preocupação quanto ao facto de o desenho estar ligado a uma moeda forte, sem mecanismos suficientes de gestão de crises. Em Portugal, o euro foi desde cedo associado a uma parte integrante e necessária do processo de reforço da integração europeia, ela também muito popular no país, desde o início. Não se tratou de um caso excecional, pois, comprovadamente, nos países institucionalmente menos desenvolvidos do Sul da Europa as opiniões públicas consideram as instituições europeias como sendo mais justas e eficazes do que as instituições nacionais e o euro não seria uma exceção. Para além disso, foi imediato o reconhecimento de que o euro traria benefícios económicos de curto prazo, por via da associada redução da incerteza e das taxas de juro. Ao apoio da opinião pública juntou-se o de muitos economistas com responsabilidades políticas no Banco de Portugal ou no Ministério das Finanças.

Esse apoio generalizado ao euro decorria da circunstância de a moeda única implicar duas opções populares entre políticos e técnicos portugueses, nomeadamente, o reforço da abertura e da integração europeia da economia portuguesa, e o apelo a reformas estruturais. A perspectiva segundo a qual Portugal beneficiaria grandemente de um estímulo externo que tornava a sua economia mais aberta e mais flexível era naturalmente positiva. Em conformidade, foi sem grande debate interno que, em Abril de 1992, Braga de Macedo, o Ministro das Finanças do Governo de Cavaco Silva, fez o escudo entrar no Sistema Monetário Europeu, fixando a respetiva paridade cambial num momento em que ela se encontrava relativamente alta, de tal modo que foi desvalorizada tempos depois, seguindo igual desvalorização da peseta espanhola. Em finais do mesmo ano, o mesmo Governo aboliu as últimas restrições à mobilidade internacional de capitais. O corolário dessas medidas era a necessidade de adesão ao euro, processo concluído por Sousa Franco, Ministro das Finanças do governo socialista de António Guterres (cf. Torres 2007).

O acordo sobre o euro juntava aqueles que queriam a economia e as finanças abertas ao exterior, os que favoreciam a flexibilização económica e reformas estruturais a desvalorizações cambiais, e os que queriam um maior nível de integração europeia. O caminho para a adesão levou a menor inflação, juros mais baixos, e ainda a algum crescimento económico e desemprego controlado. Portugal não foi exceção quanto a essa conjugação de forças, embora se possa admitir que o acordo no país era maior do que em outras partes da União Europeia. Neste contexto tão favorável à moeda única, pouco espaço foi deixado para a crítica do projeto ou para os avisos aos seus eventuais efeitos negativos (cf. Amaral 2013).

Os efeitos negativos da adesão ao euro podiam ser muitos e não seria seguramente fácil ponderá-los em relação às vantagens. Assim, qualquer apreciação que sobre o tema se fizesse teria de ser inconclusiva, não servindo para ajudar à tomada de uma decisão que, aliás, estava a ser realizada em coordenação com os demais países que viriam a aderir à União Económica e Monetária. Talvez se pudesse ter ponderado melhor o nível a que foi estabelecida a taxa de câmbio do escudo em relação às demais moedas, ou a data de plena adesão, mas apenas isso. Todavia, foram poucos os que expressaram publicamente

Portugal e o seu Destino

Page 83: Iberografias nº9

83

preocupações relativamente aos desequilíbrios internos na zona da futura moeda única.

Em 1999, sob a égide de uma encomenda do então Ministro das Finanças socialista, Sousa Franco, um grupo de economistas publicou um livro com um conjunto de estudos sobre o impacto do Euro na economia portuguesa (cf. Barbosa et. al. 1999 e Lains 2007). O livro trata de vários problemas, desde o impacto da adesão na disciplina macroeconómica, denominado de “efeitos de regime”, ao impacto via redução da taxa de juro e dos custos de transacção, ou dos choques assimétricos. As expectativas do livro são extremamente optimistas, uma vez que se defende que a ausência de política monetária e cambial não importava, pois o passado mostrava que ela não tinha sido eficaz. Para além disso, defende-se que a economia portuguesa, quer no mercado do produto, quer no mercado do trabalho, com as devidas reformas, apresentaria capacidade de ser suficientemente flexível para fazer as necessárias adaptações a eventuais choques externos negativos. Em todo o livro nada se diz sobre a eventual criação de défices na balança externa do país, uma vez que se esperava que não ocorressem. Anos depois, Olivier Blanchard (2007), um dos mais importantes observadores externos da economia portuguesa, notava a crescente importância dos desequilíbrios externos em economias “ricas” como a portuguesa, para reforçar a opinião de que os governos ou as autoridades monetárias não deveriam actuar para os corrigir directamente, e que apenas se deveriam aplicar as chamadas reformas estruturais, de modo a que as economias se adaptassem a variações do contexto económico internacional.

A crise financeira internacional iniciada nos Estados Unidos em 2007 viria a atingir a Europa um ano depois, particularmente a zona euro e dentro dela os países da periferia do Sul. Os contornos da crise são muito variados, reflectindo as alterações profundas no contexto internacional registadas desde a década de 1980, e marcados pelo aumento dos fluxos financeiros a nível mundial, incluindo cada vez mais os países emergentes da Ásia e da América Latina. O crescimento da economia internacional e o desenvolvimento dos fluxos financeiros não foi acompanhado pelo desenvolvimento apropriado de instituições de coordenação política internacional. Por exemplo, o Fundo Monetário Internacional viu o seu poder de intervenção reforçado, mas numa medida que ficou muito aquém das necessidades. Dado que ainda estamos no coração da crise, ainda é difícil concluir se os problemas decorreram da fraca coordenação ou se de facto eles resultam de um ajustamento demorado e por vezes doloroso àquilo que poderá aparecer como um novo equilíbrio da economia internacional.

Todavia, a verdade é que a crise do euro tem especificidades que a fazem distinguir claramente do resto da crise internacional. A primeira crise foi consequência directa da segunda, mas rapidamente entrou num caminho próprio. No caso da crise do euro pode todavia concluir-se legitimamente que ela foi reforçada e tem sido prolongada pela ausência de medidas de coordenação eficazes. O melhor exemplo dessa ausência prende-se com o fraco papel que o Banco Central Europeu tem tido no combate à falta de financiamento das economias do euro, particularmente na periferia, que contrasta de forma extrema com o papel assumido pela Reserva Federal norte-americana e o Banco de Inglaterra, entre outros. Essa inacção europeia é fruto da má construção do euro que não criou instrumentos de controlo e correcção de desequilíbrios financeiros.

Numa matéria tão complexa não basta todavia apontar eventuais erros de política: é preciso discuti-los e compreende-los. No passado, os erros decorreram de uma percepção excessivamente optimista relativamente à capacidade de ajustamento das economias perante uma moeda única. Esse excesso de optimismo baseou-se em teorias económicas com fracos fundamentos históricos, mas a verdade é que se tornou popular a ideia da capacidade das chamadas “reformas estruturais” em fornecer a capacidade de ajustamento. O erro, no fundo, foi acreditar-se que as economias se mudam por decreto, pois as reformas pedidas não são mais do que mudanças legislativas. Dificilmente, todavia, essa ideia tão popular morrerá.

Pedro Lains

Page 84: Iberografias nº9

84

Mas, mesmo que não morra, ela tem de ser completada por algo mais. Caso contrário, o euro não terá capacidade de sobrevivência. A solução para a crise que o euro atravessou foi a implementação de medidas de austeridade. Como a flexibilidade económica não apareceu, sobretudo na periferia, foi necessário, seguindo a mesma lógica de pensamento, contrair as economias para as tornarem menos dependentes do financiamento externo e, pelo caminho, reduzir o défice público e a dívida externa dos países da periferia. Esse plano, todavia, não está a funcionar, pelas razões que a História Económica, particularmente do período de entre as duas guerras mundiais, há muito conhece. Os responsáveis do plano e os seus executores estão a demorar mais do que devem a reconhecer isso (cf. Bento 2013). Porém, felizmente, a Europa é um espaço governado por democracias o que, mais tarde ou mais cedo, obrigará a procurar alternativas viáveis e eficazes. O euro apareceu para resolver problemas mas criou outros. Se o passado mostra alguma coisa, ela é que os novos problemas também serão resolvidos. No entanto, era melhor que fosse mais tarde do que cedo, dados os gravíssimos problemas sociais e económicos associados à demora.

Referências Bibliográficas

Amaral, João Ferreira do, 2013. Porque Devemos Sair do Euro. O Divórcio Necessário para tirar Portugal da Crise. Lisboa: Lua de Papel.

Barbosa, António Pinto et. al., 1999. O Impacto do Euro na Economia Portuguesa. Lisboa: Dom Quixote.

Blanchard, Olivier, 2007. “Current account deficits in rich countries”, NBER Working Papers, Nº 12925.

Bento, Vítor, 2013. Euro Forte. Euro Fraco. Duas Culturas, Uma Moeda: Um Convívio Impossível?. Lisboa: Bnomics.

Dinan, Desmond, 2004. Europe Recast. A History of European Union. Houndmills: Palgrave.

Eichengreen, Barry, 1992. Golden Fetters: The Gold Standard and the Great Depression, 1919-1939. Oxford: Oxford University Press.

Eichengreen, Barry e Flandreau, Marc, 1997. Gold Standard in Theory and History. Londres: Routledge.

Greenspan, Alan, 2007. A Era da Turbulência. Contribuições para um Mundo em Mudança. Lisboa: Editorial Presença.

Kindleberger, Charles P., 1993. A Financial History of Western Europe. Oxford: Oxford University Press.

Lains, Pedro, 2007. O Economista Suave. Lisboa: Edições Cosmos.

Marsh, David, 2011. The Euro: The Battle for the New Global Currency. New Haven: Yale University Press.

Torres, Francisco, 2007. “A convergência para a União Económica e Monetária: objectivo nacional ou constrangimento externo?”, in Marina Costa Lobo e Pedro Lains (orgs.). Em Nome da Europa. Portugal em Mudança, 1986-2006. Lisboa: Princípia, 97-120.

Portugal e o seu Destino

Page 85: Iberografias nº9

85

E agora?Condições institucionais e políticas com futuro

Pedro Adão e SilvaISCTE - Instituto Universitário de Lisboa

“Portugal falhou”. A afirmação é partilhada por muitos. Não admira que assim seja. Afinal, estamos sob tutela externa, com a soberania limitada e a beneficiar de um programa de ajustamento com forte condicionalidade nas nossas opções políticas e programáticas. Para uns, a margem de manobra é mínima; para outros, é mesmo inexistente. Não por acaso, o número daqueles que defendem uma rutura profunda (saída do euro) e uma denúncia do memorando de entendimento não para de crescer.

Mas uma coisa é a posição face à situação em que nos encontramos, outra, diferente, são as explicações sobre como é que aqui chegámos e, porventura mais relevante, que caminho podemos agora trilhar. A pergunta que coletivamente colocamos é, por isso: “E agora?”, que fazer perante a crise do euro e o fracasso do processo de ajustamento levado a cabo nos últimos anos em Portugal?

É possível distinguir dois tipos de explicações dominantes para o falhanço de Portugal. De um lado estão aqueles que sublinham a irresponsabilidade dos sucessivos Governos, que tomaram opções erradas, movidos, no essencial, pela demagogia e pela vontade de perpetuar o seu poder; de outro, os que sublinham a forma como os constrangimentos impostos pela adesão à moeda única, ao mesmo tempo que limitaram as possibilidades de crescimento da economia portuguesa, deram incentivos errados aos agentes económicos e ao sistema financeiro.

Não vejo estas duas explicações como mutuamente exclusivas. No entanto, têm um conjunto relevante de fragilidades. Não apenas não explicam totalmente os motivos pelos quais Portugal se encontra numa situação difícil como, acima de tudo, não são produtivas para encararmos os desafios do futuro.

Defendo uma posição com mais nuances.

Em primeiro lugar, é manifesto que procurar nos erros dos sucessivos governantes as causas de todos os males é completamente desajustado. Afinal, os progressos do país são evidentes e os exemplos de intervenção sistemática em áreas estruturantes, com eficácia, são muitos (das qualificações à modernização administrativa, passando pela sustentabilidade financeira da segurança social e da saúde), sendo um erro atribuir uma capacidade decisiva a atores políticos individuais. Se, retrospetivamente, esta asserção é válida, por maioria de razão é-o ainda mais quando pensamos no futuro. Do mesmo modo que não podemos justificar todo o mal com a ação individual de um Governo ou de um primeiro-ministro, não devemos esperar soluções salvíficas assentes no voluntarismo individual. As tarefas que enfrentamos são, aliás, bem mais exigentes e requerem transformações políticas e institucionais que escapam ao controlo dos atores políticos portugueses.

Page 86: Iberografias nº9

86

Além do mais, a ideia de que, em democracia, os Governos agem movidos, no essencial, pela vontade de reproduzir e reforçar o poder, designadamente dos partidos e dos interesses que primeiro os elegeram, revela uma visão maniqueísta e uma leitura errada, em última análise, da natureza humana. Não são apenas cálculos estratégicos, nem o interesse próprio, que movem os homens e, como sobejamente tem sido demonstrado em quatro décadas de democracia em Portugal, em muitos momentos os partidos souberam estar à altura das suas responsabilidades. Mesmo que tenham sido cometidos muitos erros e tomadas opções incorretas.

Mas se aqueles que culpam políticos e partidos atribuem um papel excessivo à ação de indivíduos e organizações, quem atribui todas as responsabilidades à forma como na adesão ao euro perdemos toda e qualquer possibilidade de crescer economicamente e, por isso, condenámo-nos ao declínio, desvaloriza de forma excessiva as margens de manobra políticas que estão sempre disponíveis. É evidente que a pertença ao euro, com a arquitetura atual, é, ao mesmo tempo, causadora da situação que vivemos e limita a nossa capacidade de ação futura. Contudo, deve ser reconhecido que, mesmo neste quadro institucional, tinha sido possível fazer diferente. Isto se pensarmos na forma passiva como, no momento da adesão à união económica e monetária, aceitámos regras e opções que não serviam o interesse nacional, e no modo como erradamente gerimos muitos dos incentivos dados pela moeda única.

Uma visão menos crítica sobre as opções políticas erradas tomadas pelos Governos ou que não confira uma dimensão tão estruturante às características institucionais da moeda única não implica uma secundarização destas dimensões. Os Governos, independentemente da sua cor política, cometeram erros (ainda que, no essencial, tenham sido acima de tudo impotentes perante o pesado legado de barreiras à modernização que Portugal carrega) e o euro é, de facto, um obstáculo que aparenta ser intransponível para o nosso desenvolvimento económico. Em todo o caso, estes dois fatores não nos devem impedir de olhar para outro tipo de condicionantes institucionais e políticas que são duradoras e revelam, além do mais, uma enorme resiliência.

Manifestamente, as possibilidades de Portugal superar o quadro de devastação económica e social em que se encontra exige uma alteração profunda das circunstâncias políticas europeias, do mesmo modo que requer uma recomposição dos mecanismos de funcionamento do sistema de representação e implica uma transformação, por exemplo, dos par- tidos políticos – que têm de alterar a cultura de funcionamento claustrofóbica que foram consolidando, sob pena de se tornarem irrelevantes. No entanto, estas estão longe de ser condições suficientes.

O país futuro será necessariamente o resultado negociado de um conjunto de possi-bilidades contingenciais e implica a resposta combinada a quatro desafios substantivos: défice de qualificações; desequilíbrios financeiros; desigualdades de rendimentos; e custos de contexto excessivos. Contudo, lidar com estes desafios pode bem assentar em estratégias políticas divergentes – umas mais de esquerda, outras mais de direita.

Independentemente das opções programáticas e da superação dos bloqueios acima referidos, há um conjunto de condições políticas e institucionais que têm de estar presentes e cuja ausência explica, em importante medida, como é que chegámos à situação em que nos encontramos. Podemos ter soluções mais protecionistas, outras mais liberais, políticas com maior intervencionismo estatal, outras mais assentes na ação do mercado, o que não podemos é descuidar sistematicamente princípios formais e processuais que têm implicações políticas.

Destaco três cuja ausência foi determinante para a atual crise, naquilo que é a sua dimensão

Portugal e o seu Destino

Page 87: Iberografias nº9

87

nacional, e que têm de ser desenvolvidos em Portugal: estabilização, institucionalização e cultura de negociação.

Estabilização: uma das marcas distintivas e também mais negativas das políticas públicas em Portugal é a sua variação sistemática, com escassa ou nenhuma monitorização do impacto. Muda o Governo, ou basta mesmo mudar o ministro no mesmo Governo, e as políticas mudam. Este deslumbramento com o novo é uma constante e tende a ser visto como uma forma privilegiada para os novos protagonistas se afirmarem politicamente, através da ilusão de que deixam uma marca. Mas a tendência para fazer tábua rasa do lega- do é um fator de enorme fragilização do Estado. As políticas públicas devem, naturalmente, assentar em opções programáticas ancoradas ideologicamente, mas requerem também planeamento e avaliação de impacto. Além do mais, o tempo no qual as políticas produzem de facto efeito é distinto do tempo da política e, frequentemente, este sobrepõe-se àquele. Com consequências claras: descartam-se e substituem-se políticas que poderiam revelar-se eficazes apenas por vontade política e necessidade mediática de lançar medidas “novas”. Esta substituição sucessiva de políticas, sendo que muitas delas nem chegam sequer a ser implementadas, enquanto introduz uma enorme perturbação no funcionamento da administração pública, implica um desperdício de recursos humanos e financeiros difícil de quantificar. Por isso, estabilizar políticas, disseminar uma cultura de planeamento e avaliação, condicionando a mudança a um conhecimento factual dos impactos, é um requisito necessário para que estejamos em condições de sairmos do atual bloqueio.

Institucionalização: não menos relevante para compreender os nossos insucessos é a fraca institucionalização dos processos políticos. A volatilidade nas opções das políticas encontra na opacidade e fluidez dos processos de formação das decisões, de implementação das medidas e de avaliação dos impactos, o contexto propício para a sua reprodução sistemática. Esta escassa institucionalização, ao mesmo tempo que dá margem para a mudança excessiva, torna difícil identificar pontos de consenso, mesmo quando eles existem. Ao contrário do que é muitas das vezes sugerido, o problema de Portugal não é falta de pensamento estratégico, é excesso de estratégias pouco formalizadas e com escassa coerência. Este excesso de estratégias, que variam ao longo do tempo e entre áreas políticas, leva a que seja difícil encontrar afinidades eletivas entre políticas, promovendo complementaridades institucionais. Sem esse reforço institucional, pura e simplesmente estaremos condenados a reproduzir as causas dos nossos fracassos.

Cultura de negociação: é comum os processos negociais em Portugal serem avaliados pelas perdas e ganhos que cada uma das partes tem. Entre muitos outros equívocos, esta visão tende a cristalizar posições, promovendo um imobilismo com custos. Mais do que uma esfera instrumental para gerar entendimentos que valorizem continuidades nas políticas e promovam entendimentos, o diálogo social é demasiadas vezes uma extensão da luta política e um recurso para reproduzir relações de poder. A disponibilidade para a negociação e a possibilidade de alcançar acordos não impede, de forma alguma, que se preservem posições diferenciadas. Há um par de anos, após uma difícil negociação de um Orçamento de Estado, o Presidente Obama afirmava “não esperar que os detalhes do acordo final se parecessem exatamente com a sua proposta. Isto é uma democracia; e é assim que as coisas funcionam.” Uma cultura de negociação é um ativo pouco presente entre nós – sempre visto em termos de “vitórias” e “recuos” – e que tem um valor incomensurável, mas o seu desenvolvimento requer uma abordagem muito distinta da que tem sido dominante e que tem de ecoar na abordagem refletida nas palavras do Presidente norte-americano.

A estabilização, a institucionalização e uma cultura de negociação são condições ne-cessárias para enfrentarmos os dois principais desafios que temos a curto prazo: renegociar as condições da nossa participação no euro e reestruturar a dívida. Trata-se de desafios que colocam exigências com algumas semelhanças, ainda que superiores, às que estiveram

Pedro Adão e Silva

Page 88: Iberografias nº9

88

presentes no processo de adesão à União Europeia – que, como sabemos, foi um fator determinante para a consolidação do regime democrático. Tal como então, precisamos de um acordo político e social alargado.

Em primeiro lugar, um acordo a curto prazo que permita a Portugal renegociar o memorando de entendimento. Esta renegociação exige uma nova liderança política, que corporize o amplo consenso hoje existente na sociedade portuguesa, que vai de setores da direita à esquerda, e que rejeita a estratégia de ajustamento que tem sido seguida. Só sob uma nova liderança será possível defender os interesses do país junto da troika. Contudo, uma nova liderança não deve ser entendida apenas como um processo de alternância à imagem dos que têm caracterizado a democracia portuguesa nos últimos 30 anos. Não estamos em tempos de business as usual.

Em segundo lugar, um acordo de médio prazo que permita uma estabilização das opções orçamentais, fiscais e de regulação da atividade económica nas suas várias vertentes (da legislação laboral à justiça). Essa estabilização depende de um apoio parlamentar sólido, mas também de um consenso alargado na concertação social. A capacidade de Portugal negociar com os credores uma reestruturação da dívida e de fazer parte de uma coligação, ao nível europeu, que assuma uma posição contra-hegemónica no que toca às opções em torno da arquitetura da zona euro, depende da existência destes acordos. Este processo é decisivo para desbloquear- mos economicamente o país. Sem reestruturação da dívida e sem alteração da arquitetura do euro não poderemos ser economicamente competitivos, e a viabilidade política do regime estará posta em causa.

Há uma certeza que resta. Do mesmo modo que o futuro não está inscrito no passado, existindo sempre, por isso, uma margem de manobra política significativa, nada voltará a ser como dantes em Portugal. Passado o período de maior turbulência provocado pela atual crise, os desafios que teremos pela frente não serão menos exigentes dos que os que conhecemos agora. Este novo contexto altera, também, o lugar e o papel da análise e do estudo da política. Como bem resumia o historiador Tony Judt, num livro póstumo resultante de uma longa conversa com o também historiador Timothy Snyder (Pensar o século XX), é provável que, enquanto intelectuais e filósofos políticos, estejamos perante uma situação em que a nossa tarefa principal não é imaginar mundos melhores mas, antes, pensar como é que podemos prevenir mundos piores”. Por agora, talvez seja essa a principal tarefa que temos pela frente. Não se trata de uma tarefa menor.

Nota: Este texto foi retirado do livro: “E Agora? – A crise do euro, as falsas reformas e o futuro de Portugal”de

Pedro Adão e Silva, edição Clube do Autor, em 2013.

Portugal e o seu Destino

Page 89: Iberografias nº9

89

O tédio no Livro do Desassossego– em homenagem a Eduardo Lourenço

José GilUniversidade Nova de Lisboa

Este texto é um esboço do que poderia ser um projeto, um projeto do género “Tratado das Paixões” no Livro do Desassossego, quer dizer, mapear dinamicamente as paixões, os sentimentos, como diz Bernardo Soares, principais, que atravessam o Livro do Desassossego e que são, como toda a gente sabe, o desassossego, o cansaço, o tédio, a náusea, o mal-estar, a angústia, o horror da vida, etc., etc.

Ora, isto é um projeto, que é muito interessante, acho eu, para fazer, não à maneira cartesiana, talvez à maneira mais do livro III da Ética de Espinosa, que é mais interessante e mais dinâmico, e fala de forças. Nisto há uma ligação com um sentimento e com uma relação entre dois sentimentos: um de Fernando Pessoa, de Bernardo Soares, o outro de Eduardo Lourenço, que merece um trabalho, certamente. É que há em Eduardo Lourenço… há um desassossego, também, e seria extremamente interessante comparar o desassossego e os regimes variados do desassossego num e noutro. E tudo o que se tece, e tudo o que se comunica entre eles, sendo tão diferentes e tão iguais. Hoje falou-se até numa possível, se não real, heteronímia de Eduardo Lourenço. Ora o desassossego, na minha opinião, quero dizer na própria opinião de Fernando Pessoa, de Bernardo Soares, é um dos movimentos que estão na fonte do surgimento da escrita dos heterónimos. Eu vou ler, portanto, uma coisa muito pequenina dentro deste vasto contexto. É uma análise, portanto, minuciosa, e que eu dedico, como disse, a Eduardo Lourenço, com toda a minha imensa admiração, pelo homem e pela obra.

Portanto, começo assim, abruptamente, por um texto do Livro do Desassossego sobre o tédio, em que Fernando Pessoa, ou Bernardo Soares, procura definir o tédio. Há imensos textos sobre o tédio, há dois essenciais no Livro do Desassossego, em que ele procura definir mesmo o que é o tédio e eu parto de um trecho, corto-o ao meio e começo.

Cito, portanto:

“…O tédio é, assim, um aborrecimento do mundo, um mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido. O tédio é deveras a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisa, mas o tédio é mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não, um mal-estar de ter que viver, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo. O cansaço não só de ontem e de hoje mas de amanhã também e da eternidade se a houver e do nada, se é ele que é a eternidade. Não é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio, é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo e que nele de si se enoja e se repudia. O tédio é a sensação física do caos e de que o caos é tudo, o

Page 90: Iberografias nº9

90

aborrecido, o mal estante, o cansado, sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande, mas o que tem tédio sente-se preso, em liberdade fruste, numa cela infinita. Sobre o que se aborrece ou tem mal-estar ou fadiga podem desabar os muros da cela e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas e ele fugir ou doer de não as poder tirar e com ele, com o sentir a dor, reviver sem desgosto, mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar porque não existem, nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém pôs.

E é isto que eu sinto, ante a beleza plácida desta tarde que finda imperecivelmente, olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua, baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trémula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo, ergo de novo os olhos ao céu e há já, entre o que de vagamente colorido se desfia em farrapos no ar invisível um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa também das coisas onde são mais altas e frustes tivesse um tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e de desolação. Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens de que já duvido, mais que os reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isso se não Eu. Ah, mas o tédio é isso, é só isso, é que em tudo isto: céu, terra, mundo, o que há em tudo isto não é senão Eu…”

Bernardo Soares compara o tédio ao aborrecimento, ao mal-estar e ao cansaço por os diferenciar e os relacionar uns com os outros e com o próprio tédio. Este compreende-os a todos, mas cada um deles caracteriza-se por uma certa relação ao mundo, às coisas, à vida e ao tempo. O tédio vai mais longe, ultrapassando e englobando essas relações que marcam cada um desses sentimentos. Como? Eles implicam a desvitalização do mundo, a vacuidade prolixa das coisas, a paralisia do movimento da vida e o mal-estar a que outros textos chamam angústia, horror ou náusea de viver. Mas a tudo isso o tédio acrescenta uma dimensão maior que alarga e absolutiza o sentimento. Não é só deste mundo que a alma se aborrece, mas de outros mundos, quer existam quer não. Não é só do presente que se está cansado, mas do passado, do futuro e da eternidade, se a houver ou se a não houver, e do nada, se este é a eternidade. Não é a vacuidade das coisas que dói no tédio, mas a própria alma que sente e que é vácuo. Não é a existência presente que causa o horror, mas o ter existido e o não poder já, não poder ter sido. Como compreender o mal-estar de ter que viver ainda que noutro mundo? Como conceber o horror de não poder não ter existido? Um sentimento que parece não visar nada que exista, uma dupla operação simultânea produz a vacuidade das coisas e a sua identidade absoluta. O afastamento e corte da alma com a vida e a paragem e a estagnação da própria alma, cujas funções se reduzem a puras representações formais, sem conteúdo nem movimento.

Cito:

“(…) O tédio, pensar sem que se pense, com o cansaço de se pensar. Sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir, não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer. Tudo isto está no tédio, sem ser o tédio. O tédio, sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio…”.

O desprendimento, o alheamento do sujeito da vida real, retira ao espírito o movimento da vida. Separado, o sujeito não se alimenta já da vida exterior das coisas, não as podendo pensar, sentir, querer, através das suas imagens. Estas representam agora um mundo oco e vazio. O sujeito cindiu-se, ele vê-se querer e não quer, sentir e não sente, porque ficou a imagem vazia de um querer que não quer, porque nada há a querer, de um sentir que não sente, porque não há vida para sentir.

Portugal e o seu Destino

Page 91: Iberografias nº9

91

Citação:

“…há um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isolamento em que o que separa está estagnado como nós, água suja, cercando o nosso desentendimento…”

Agora, com a cisão nascem os sentimentos que acompanham cada uma das separações, angústia, cansaço, náusea de pensar sem pensar, de sentir sem sentir, mesmo de sofrer sem sofrer. O sujeito conserva todas as suas funções mas sem efetivamente as exercer. Está anestesiado, como que paralisado por um “embruxamento”, imobilizado pela pos-sessão de um demónio negativo, negativo porque não há bruxos, o demónio sou eu e o “embruxamento” é por coisa nenhuma. Mas a separação é também um aprisionamento. Separa-se a alma da vida, mas ambas pararam deixando o sujeito preso entre dois vazios: o das coisas exteriores e o do espírito que as vê sem poder desposá-las. De certo modo, o aprisionamento redobra-se. O espírito do tédio está preso entre a separação e o aprisionamento.

Citação:

“(…) o que tem tédio sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Nada de material o prende, o mundo corre, as coisas passam esvaziadas, o tempo escoa-se infinitamente, mas repetindo-se em absoluto. E no entanto o mundo é uma prisão, a cela é infinita, sem paredes, mas estagnada, deserta, como uma sombra e na cela os sentimentos que animavam a ligação do sujeito à vida fundiram-se no horror de se sentir preso assim. Sentir-se preso e livre sem liberdade, como antes se sentia sem sentir e num sentimento de revolta incipiente no horror em estar assim.”

Citação:

”Quantas vezes sob o peso de um tédio que parece ser loucura ou de uma angústia que parece passar além dele, paro hesitante antes que me revolte…”

Revolta que destrói o tédio e liberta o espírito ou revolta inútil, que entra também na desolação do tédio. Os textos variam, os destinos dos afetos, dos restos dos afetos que sobraram diferem segundo as relações das forças em presença, pois o tédio pode ser mais forte e mais puro do que os outros afetos com que se mistura, ou breve e mais fraco, insinuando-se nas emoções e logo desparecendo. A cela é infinita. Nada escapa à estagnação sem fim das coisas. É que o tédio contamina, começa por um sentimento e alastra a toda a alma. Tira o sentido ao conjunto, a um conjunto de coisas, de ambições e desígnios e estende-se ao mundo inteiro. É a sensação física do caos e que o caos é tudo. A vida é sem sentido porque as coisas não se ordenam segundo um nexo. Assim, no fim de um longo fragmento que citei, quando Bernardo Soares ergue de novo os olhos ao céu e já lá há um tom algendo de branco baço, como se também as coisas, onde são mais altas e frustes, tivessem um tédio imaterial próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e desolação. Até onde o material está preso por um tédio próprio? De onde vem afinal o horror do tédio?

Paradoxalmente a paragem do movimento do desassossego, o sentimento da vacuidade do mundo, a angústia de existir e de não deixar de ter existido, a fixação estática que aprisiona o sujeito entre dois polos opostos, dois sentimentos contrários, deixa o mundo intacto e o horror mais profundo do tédio vem daí. De que qualquer coisa é, (ou não é, o que supõe o ser), de que há qualquer coisa, em vez de nada. Mas mais uma vez, se nada houvesse, nada sobre esse nada se pensaria ou se diria. Portanto, a questão da razão suficiente só incide sobre o que é dispensando o nada e sobre uma coisa particular e não sobre o todo. O horror inerente ao tédio é o horror de não poder deixar de haver qualquer coisa, porque eu existo. É isso que aprisiona, porque da questão: porque é que há qualquer coisa em vez de nada? nasce a demanda infindável pelo sentido das coisas e do mundo,

José Gil

Page 92: Iberografias nº9

92

nasce o caos, o desassossego e o próprio tédio. Mas este manifesta, pelo menos, o desejo de afirmar uma espécie de princípio da sem razão suficiente, qualquer coisa de absurdo, que não há maneira de poder ser, mas que surge como o avesso crítico, destruidor absoluto do que dá sentido ao mundo pondo a nu a não fundamentação desse sentido.

É pois o facto de haver qualquer coisa que não pode deixar de haver ou de ter havido que aprisiona numa cela infinita. Por isso, o tédio se estende ao mundo inteiro e nele se entranha. Mas precisamente porque se levanta o princípio da sem razão suficiente, o mundo talvez não exista mesmo, nem de facto, nem de direito.

Não é esse o sentido do último parágrafo: ”Mas quê? Que há no ar alto mais do que o ar alto que não é nada?” Afinal, não é a pura existência do mundo que provoca o tédio e a angústia de ter de existir. Não é o mundo a cela infinita que me revela o tédio, porque a existência do mundo se funda afinal noutra coisa como diz a continuação do texto: “Que há em tudo isto senão eu? Ah! Mas o tédio é isso, é só isso.”

O que é a cela infinita? O Eu? De onde vem a homogeneização de todas as coisas? A monotonia de ver o mesmo em tudo? Do facto de ver em tudo o Eu. Como se produzem aquelas paisagens lacustres, estagnadas, crepusculares que acompanham os estados de alma de Bernardo Soares, ao longo de tantos fragmentos do Livro do Desassossego? Com a desvitalização do Eu e a estagnação do movimento do seu espaço, paisagem interior. Como surgem as separações do pensamento, que pensa sem que pense, do não querer sem que não se queira, se não com a cisão do Eu e a petrificação dessa cisão. Na verdade, é supondo um Eu petrificado, dividido entre dois polos congelados que Bernardo Soares caracteriza o tédio pela projeção do Eu no mundo. Assim, também o mundo se petrifica. Neste sentido, poder-se-ia considerar o tédio como o avesso do desassossego, no seu regime de produção do sonho. Porque, como eu analisei num outro texto, há dois regimes do desassossego, pelo menos: um que leva ao sonho, que leva à produção da escrita e à produção de um devir-outro, e portanto à produção de um heterónimo; e, depois, um desassossego que se enquista, precisamente, e que é aterrador.

Como dizia, assim o mundo se petrifica. Neste sentido, poder-se-ia considerar o té-dio como o avesso do desassossego, no seu regime de produção do sonho, este supõe um movimento, em princípio, perpétuo, aquele, a paralisação de todo o movimento. O desassossego é o puro movimento da vida, neste segundo regime, indo para além, sempre para além, dos polos opostos que encontra. O tédio esvazia o mundo e o sonhador de toda a vida, congelando os contrários e fazendo desaparecer o movimento.

O desassossego pode libertar, o tédio aprisiona. O desassossego dissolve o Eu, o tédio enquista-o em cisões e dilemas. A dissolução do Eu pelo desassossego provoca um devir-outro múltiplo. Por isso, no Livro do Desassossego nascem, aqui e ali, a escrita de Alberto Caeiro, a escrita de Campos, a de Ricardo Reis, etc., etc., como Jorge de Sena viu pela primeira vez.

Pelo contrário, a petrificação do Eu, no tédio, é, muitas vezes, assimilada por Bernardo Soares à impossibilidade de se tornar outro. Como se o devir-outro o libertasse do horror do tédio. Isto é, o tédio é o cárcere em que o Eu se enquista, incapaz de entrar no movimento do sonho que o torna outro.

O tédio é o rebatimento do Eu petrificado sobre todas as coisas, em todos os tempos e o horror de viver que o acompanha vem desse não poder deixar de ser Eu. Preso em mim próprio, nunca deixo de ter consciência de mim. É o redobramento da consciência de si que enquista e petrifica, como é também ele que pode transformar o desassossego na repetição do espelhamento do Eu, que faz nascer a consciência de si. Repare-se como a angústia, o cansaço, o mal-estar, a náusea são todos afeções da consciência de si. Em nenhuma delas o Eu sai de si, em todas se fecha, se concentra e se redobra sobre si mesmo.

Portugal e o seu Destino

Page 93: Iberografias nº9

93

Se devêssemos traçar um mapa dinâmico das principais afeções que atravessam e animam o Livro do Desassossego, teríamos de ter em conta uma propriedade essencial de que Bernardo Soares nunca fala: não haver, no seu universo interior, nem determinismos nem causalidades unívocas. Não se pode dizer que o desassossego sai do cansaço, porque este pode nascer daquele. Não se pode afirmar que o tédio provém, acompanha, ou constitui uma variante do cansaço, porque pode formar-se o extremo cansaço do tédio ou mesmo o tédio do cansaço. O tédio implica a monotonia das emoções, mas pode também surgir da sua diversidade um tédio insuportável. E, se é verdade que seria inconcebível que o tédio, sentimento paralisado e paralisante, produzisse um devir ou um devir-outro do Eu, já se imagina bem, porque se experimentou, ele, um devir em si próprio, uma heteronimização do próprio tédio agora tornado personagem.

Cito: “Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo”

Numa palavra, há um movimento inerente ao tédio, ao cansaço, à angústia que pode inverter totalmente a relação que cada uma dessas afeções estabeleceu com as outras em certo momento, uma espécie de universal reversibilidade aleatória, imprevisível, que nasceu num espaço aberto pelo cansaço, o cansaço do tédio englobando aquele espaço, no mais vasto espaço do tédio, que pode tudo abranger na cela infinita do Eu petrificado.

Cada relação que vai em tal direção, por exemplo na direção do mistério, volta-se brus-camente para outra direção. O conteúdo passa a continente, o peso de existir torna-se pura leveza apenas porque uma brisa me tornou diferente.

Como se cada sentimento tivesse duas faces espelhadas, o avesso e o direito e que elas girassem sem causa nem razão, o avesso transformando-se em direito e inversamente. Por isso, duas afeções em relação determinada podem subitamente trocar de lugar. O mapa não é só dinâmico é móvel. Mais, no caos do nevoeiro em que as imagens das coisas, dos farrapos das emoções soltas flutuam, no espaço crepuscular do Livro do Desassossego, cada afeto pode devir um outro afeto, o cansaço, a angústia e o mal-estar devir em tédio, por exemplo.

Como neste poema de Álvaro de Campos, em que o cansaço puro, exclusivo, cansaço de nada e de tudo, cansaço de cansaço, cansaço até do sonho que o exclui em princípio, cansaço até do desejo, mas cansaço feliz por ser infecundo, cansaço em movimento ultra excessivo do devir cansaço apenas.

Cito o poema:

“O que há em mim é sobretudo cansaço -

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada;

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém.

Essas coisas todas -

Essas e o que faz falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.

José Gil

Page 94: Iberografias nº9

94

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...”

Portugal e o seu Destino

Page 95: Iberografias nº9

95

Fernando Pessoa e o Livro do Desassossego

Eduardo LourençoEnsaísta, Director Honorífico do CEI

Fernando Pessoa é uma espécie de tóxico divino para a nossa pretensão, que constituiu a essência do que nós somos, de que há qualquer coisa que efectivamente tem sentido e que nele mesmo contém o sentido dos sentidos. O texto “O tédio no Livro do Desassosse-go” de José Gil, é daqueles textos que fecha todas as saídas. Não há nenhuma espécie de saída. Esta meditação sobre o tédio só é compreensível para quem tem, verdadeiramente, a experiência do tédio. E a experiência do tédio faz parte das experiências possíveis de cada um de nós. Provavelmente, uma criança ainda não tem tédio. E é por isso que de algum modo aquilo que nós chamamos a infância é o equivalente, simbólico e real, do paraíso que sonhamos ou pensamos que pode existir. Portanto, dá sentido, ou não sentido, ao que nós experimentamos, naquilo que chamamos a existência deste lado de cá, se é que há outra do lado de lá. Mas eu não vou imitar o Bernardo Soares, ou por outra, Fernando Pessoa, Bernardo Soares interposto, que já tantas vezes cruzei. Mas este texto é o texto mais radical, certamente, de todo o Livro do Desassossego. Nada fica de pé!

O próprio Antero de Quental que, enquanto poeta português, enquanto português e enquanto filósofo, está na origem desta primeira consciência de que a existência podia não ter verdadeiramente sentido. Que o não ser é o único ser absoluto. Isso está escrito num soneto célebre de Antero de Quental. Foi o primeiro que teve a consciência de que a normal confiança que temos da vida é uma confiança ilusória, que a vida não tem verdadeiramente um sentido, que mereça esse nome e que justifique essa própria vida. Mas todo o pessimis-mo de Antero de Quental, um pessimismo que é uma espécie de optimismo às avessas, foi de alguém que sonhou, também, muito mais do que os portugueses já fazem actualmente, que é uma espécie de confiança absoluta no sentido da existência. A ideia de que o sol está antes da escuridão, quando realmente, apareceu num certo momento no imaginário oci-dental, tinha já dado a volta ao oriental. Mas aquilo que no Oriente é uma espécie de con-clusão, é aquilo que o ocidente vai pôr em dúvida, declarando que a essência do universo é uma ilusão. Portanto, parece que, à primeira vista, não se pode ir mais longe do que numa imagem da humanidade em que a noite é mais profunda que o dia, em vez da ideia inversa de Nietzsche, de que o dia é mais profundo que a noite.

Todavia, este texto do Livro do Desassossego, aqui evocado e lido por José Gil, que é um filósofo a sério e não aprendiz como eu, é um texto que não deixa nenhuma espécie de saída para ninguém, e todavia, a resposta está no interior do próprio texto do Fernando Pessoa e em qualquer poema de qualquer dos heterónimos, mas, fundamentalmente, no Pessoa ele mesmo, no poema “Sombras que somos”.

* Texto transcrito a partir da intervenção de Eduardo Lourenço na Conferência “Portugal e o seu Destino”

Page 96: Iberografias nº9

96

Esta saída sem saída, ou este apelo a uma saída, é como que uma porta sempre aberta. A porta aberta somos nós, a nossa própria palavra e a nossa própria consciência.

Não há outra saída, é ela que nos oferece o mundo, ou por outro lado, é o mundo que se oferece como tal à nossa visibilidade, a exterioridade absoluta com que nos encontramos quando abrimos os olhos, mais profunda de todas as noites. Não há nenhuma definição que possamos conceber, algum conceito de verdade, em que a palavra luz não esteja inclusiva, aquilo a que nós chamamos pura verdade. É aquilo que luz, que brilha, aquilo que pensa por nós antes de nós pensarmos. Toda esta iluminação nocturna, mórbida, terrificante, sobre o tédio em Fernando Pessoa, é a mesma versão mas às avessas, é uma espécie de levar ao limite aquilo que em Antero de Quental já era limite.

O texto do Livro do Desassossego é certamente a obra mais extraordinária da Literatura Portuguesa. Hoje se o Fernando Pessoa existe deve-se, fundamentalmente, ao Livro do De-sassossego porque é muito acessível e porque é de uma lucidez infernal.

A minha amiga Mécia de Sena nem quer ouvir falar nesse livro, que considera realmente sinistro, o mais sinistro dos livros. Mas se é o mais sinistro dos livros é porque há a possibili-dade de o ler como tal. Portanto, há uma comparação e uma alternativa possível a todas as coisas. Na Bíblia está escrito que Deus, quando criou o mundo e criou Adão, deixou-lhe a nomeação do mundo. A coisa era tão delicada, mesmo para Deus, que ele deixou a Adão o encargo de nomear o mundo e assim o responsabilizou. Portanto, somos nós, que atribuí-mos o sentido às coisas. Mas nós queríamos que a nomeação que fazemos do mundo fosse ratificada por Deus. Que Deus nos dissesse: “É assim”, que Ele viesse cada vez que temos uma dificuldade de distinguir o que é bom do que é mau, o que é claro do que é luminoso, o que é verdadeiro do que é falso. Que houvesse uma entidade superior visível, que desse uma mão, como o Jesus Cristo, do Eça de Queiroz, num conto infantil, que nos desse a mão e dissesse: “Estou aqui”. Mas Ele não está aqui, ou se está nós não sabemos identificá-lo, ou temos de identificá-lo à nossa própria custa, conhecendo a resposta.

Em todo o caso este é um daqueles textos que nos deixam, não num desassossego banal de qualquer coisa que nos aflige, mas um desassossego que faz parte da essência, mesmo da existência. O fundo da existência é desassossego, ou na terminologia de Santo Agostinho inquietude. Essa inquietude faz parte da condição humana, como tal, mas não faz menos parte dessa inquietude o querer sair dela.

Nestes dois textos parece que Fernando Pessoa nos quer encerrar definitivamente numa espécie de “Casa Verde”, ao lembrando-me de um famoso conto de Machado de Assis, que é uma fábula tenebrosa e maravilhosa ao mesmo tempo, em que um psicanalista, instalado numa aldeia pobre do Brasil, tem a ideia de colocar todas as pessoas na Casa Verde, que é o hospital dos loucos. E ele decide que toda a gente é candidata a esse hospital de loucos e não descansa enquanto, pouco a pouco, vai pondo cada pessoa dentro da Casa Verde. Até que já não existe mais ninguém, toda a gente está na Casa Verde! Este texto é uma espécie de Casa Verde: toda a gente está lá, excepto ele. Até que, faz uma segunda reflexão e diz: “não, provavelmente eu enganei-me, eu é que devia estar na Casa Verde”. Então os outros saem todos da Casa Verde e fica lá o sujeito que manda os outros para a Casa Verde. Fernando Pessoa joga esses jogos todos ao mesmo tempo, e não há saída para isto. É uma fábula mais atroz que as fábulas do Kafka.

Uma espécie de saída, ao mesmo tempo terrível, terrificante e com um humor trans-cendente. É engraçado que este texto, como em muitas páginas do Livro do Desassossego é virtualmente, ou inconscientemente, de um humor de ninguém, um humor sem sujeito, absoluto, uma paródia de tudo que é a certeza, que é luminoso, que é claro. Na verdade, ele tem uma táctica extraordinária, em que, pensamento sobre pensamento, se traduz numa espécie de nevrose absoluta, da qual só sai por uma espécie de regresso àquilo que é mais primitivo ainda do que toda a nossa angústia, que é a não angústia da inocência quando

Portugal e o seu Destino

Page 97: Iberografias nº9

97

ainda não caímos nessa espécie de paraíso perdido onde nos supomos tombados. O que é maravilhoso num texto como este, é o de facto de ser uma espécie de odisseia, através da noite, da obscuridade, daquilo que não tem sentido, daquilo que é uma espécie de riso sardónico de um Deus que existe ou não existe, pouco importa, e cujo refúgio é dado por um outro olhar, que é o olhar mítico e mitificado do Alberto Caeiro, uma espécie de reserva do lugar do sentido para àquilo que a natureza nos diz sem pensamento. E daí as descrições maravilhosas que ele faz, nesse livro terrífico que é o Livro do Desassossego, sobre as luzes da cidade de Lisboa, os crepúsculos que morrem, quer dizer, tudo o que fala, uma fala que não é a nossa fala, mas na qual encontramos, senão um sentido que não existe em parte nenhuma, nem sequer na natureza, mas uma espécie de felicidade, o anúncio de uma feli-cidade possível, uma cor que se esvai, um pássaro que foge.

Encontrar Fernando Pessoa não é um encontro de que se possa sair incólume, ninguém sai o mesmo se o leu verdadeiramente. Assim como de nenhum poeta, ficcionista, ou gran-de criador. Não se sai incólume. Porque a palavra dessa gente tem o condão de ser para nós uma palavra mais importante, do que a nossa própria palavra. É a palavra na qual nós nos reconhecemos, a qual nos dá um eu que nós não tínhamos, um eu suplementar, diferente do eu inacessível. Porque para cada um de nós, o nosso próprio eu é a realidade mais mis-teriosa, provavelmente a que tem menos sentido, e o sentido vem-nos do confronto com o outro, com os outros e com o exterior propriamente dito. Não se sai incólume. E eu, como outra gente que se encontrou com Fernando Pessoa, quis de facto conhecê-lo, lê-lo, apren-der com ele. Descobrir uma espécie de anti-mundo. Um mundo às vezes mais terrífico que todos esses mundos que a ficção científica inventa.

Eu desejei, na leitura que fiz, ou na leitura que faz o José Gil, que é uma leitura mais moderna que a minha, digamos até pós-moderna, desejei afrontar esse mar tenebroso, uma nova espécie que é o texto de Fernando Pessoa com a ilusão de que podia atravessá-lo, sair e encontrar nele a famosa porta aberta. Claro que não encontrei. Ninguém encontra. A porta aberta é aquilo que cada um de nós é, como palavra, como consciência de si, como consciência do universo, como suporte transcendente de todas as realidades que existem da própria existência.

Não sei se a porta aberta existe, mas nenhum de nós, nem a título pessoal, nem a título coletivo, pode existir sem imaginar uma qualquer porta aberta, numa cela tão tenebrosa como esta que é descrita no Livro do Desassossego. Ou ficamos na Casa Verde, e essa é a grande tentação de ler o jovem Pessoa, o jovem Pessoa que queria a toda a força um certi-ficado dos psiquiatras da época, dizendo que era louco. O que já pode ser um atestado de uma certa loucura, mesmo no sentido banal da palavra. Mas a verdade era mais profunda. A interrogação de Pessoa, a perplexidade de Pessoa é de um grau tal que efetivamente não há nada a fazer. Ou se não lê, ou se lê e deixa de fora, ou, se nos confrontamos com ele, temos que estar dispostos a saber que encontrámos, nem Deus nem o Diabo, mas qualquer coisa mais terrível que um e o outro, que é, realmente, a nossa própria impotência em ser, nós mesmos, a luz do mundo. Mas, de qualquer modo, os poetas, um grande poeta, serve para uma luz provisória, se de facto o mundo não tem um sentido esclarecedor e eu penso que a existência terá realmente um sentido, e sobretudo os sentidos que os homens e a actividade humana lhe conferem.

Não é muito consolador, mas entre uma clássica perspetiva de uma visão optimista do mundo, de uma antevisão optimista do mundo, nós não somos obrigados a escolher e, provavelmente, não temos a capacidade de escolher. Jorge de Sena tinha esse sentimento. Nós não temos capacidade para essas questões últimas que nos pomos. Pomos as questões, mas não temos as respostas, mesmo a questão que é ao mesmo tempo a mais alta e mais infantil de todas, de que existe alguma coisa, em vez de coisa nenhuma. Quem me pode responder a isso? Apenas a podemos formular. Temos uma ideia que isso tem algum sen-

Eduardo Lourenço

Page 98: Iberografias nº9

98

tido, mas o sentido que tem, nós não o podemos precisar. Está na própria questão. Quem dá essa resposta? Precisávamos de um Deus para nos dizer qual era a resposta. Ele é que sabe. Se criou, como dizia José Saramago, que se explique. Como Ele não dá explicações corretas às perguntas se não através de uma lei deferida, cada um de nós é responsável pela resposta que dá às perguntas que Ele próprio faz, ou a título pessoal ou a título coletivo, pouco importa.

Na verdade, podemos inverter um pouco a famosa perplexidade de Pascal, a primeira e mais profunda em relação à crença tradicional da civilização ocidental, enquanto ocidental cristã.

Apostemos que um sentido existe. Se existe, ganhamos tudo, se não existe, não perde-mos nada.

Portugal e o seu Destino

Page 99: Iberografias nº9

99

Prémio Eduardo LourençoIX Edição | 2013

Galeria de Premiados

Jerónimo Pizarro: breve perfil

Intervenções na cerimónia de entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2013

Page 100: Iberografias nº9

100

Page 101: Iberografias nº9

101

2004 | Maria Helena da Rocha Pereira

Catedrática jubilada da Universidade de Coimbra, Maria Helena da Rocha Pereira desenvolveu ao longo da sua carreira uma intensa actividade pedagógica e científica nas áreas da cultura clássica greco-latina, cultura portuguesa e latim medieval. Foi a primeira mulher catedrática da Universidade de Coimbra, tendo ensinado ao longo de 40 anos e publicado mais de 300 trabalhos, entre ensaios e traduções. Jubilada desde 1995, a especialista em culturas grega

e latina, não abandonou a vida académica, continuando a orientar mestrados, a fazer conferências, a estudar e a escrever, estando ligada a trabalhos como a tradução completa da “Ilíada” de Homero.

2006 | Agustín Remesal

Jornalista e correspondente da TVE (cargo que exerceu em Lisboa de 2000 a 2004), Agustín Remensal é natural de Zamora, o que ditou uma estreita ligação à fronteira e a Portugal, compartilhando vivências e tradições raianas. Destacou-se pelo seu trabalho literário e profissional ligado a Portugal e Espanha, incidindo nas culturas e identidades fronteiriças. O documen tário “La Raya Quebrada” é uma obra de referência para a compreensão da história partilhada entre Espanha e Portugal.

Galeria de Galardoados

2007 | Maria João Pires

Reconhecida internacionalmente como uma exímia intérprete de compositores do período clássico e romântico, como Mozart, Chopin, Schubert e Beethoven, a pianista Maria João Pires percorreu – e esgotou – as melhores salas de espectáculo do mundo. Exemplo excepcional de como o talento português ultrapassa fronteiras, Maria João Pires é hoje uma referência internacional. Cidadã do Mundo, defende a ideia de uma

aproximação entre Portugal e Espanha por considerar que as diferenças culturais entre os dois países são no, no fundo, do mesmo tipo das que podem existir, por exemplo, entre a Catalunha e a Andaluzia. Maria João Pires destacou-se pelo trabalho de cooperação e intercâmbio cultural entre Portugal e Espanha, através do desenvolvimento de projectos comuns, com particular realce para os que têm tido lugar na região raiana.

2008 | Ángel Campos Pámpano

Natural de Badajoz, Ángel Campos Pámpano (1957-2008) distinguiu-se enquanto poeta, tradutor, editor e professor. Director da revista bilingue “Espacio/Espaço Escrito”, um projecto inovador no domínio das relações literárias entre os dois países ibéricos, traduziu destacados poetas portugueses como Fernando Pessoa, António Ramos Rosa, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andersen, Ruy Belo e Al Berto, entre outros. Ángel Campos Pámpano interpretou singularmente a Fronteira, entendendo-a como forma de comunicação e não de separação. Em 2005 recebeu o Premio Extremadura a la Creación pelo livro “La semilla en la nieve”. A sua obra foi recolhida em diversas antologias.

Galeria de Premiados

Page 102: Iberografias nº9

102Prémio Eduardo Lourenço

150

2010 | César Antonio Molina

César Antonio Molina é autor de obras de ensaio, prosa e poesia e quando desempenhou o cargo de director do Instituto Cervantes «intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha». “O seu trabalho cultural a partir do Círculo de Belas Artes de Madrid ampliou os laços peninsulares com a criação da “Semana de Cultura Portuguesa”, referiu o júri, lembrando que “como Director do Instituto Cervantes intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha”. César Antonio Molina nasceu na Corunha em 1952 e é um destacado nome das letras espanholas, na prosa, na poesia e no ensaio. Além de ter presidido ao Instituto Cervantes e ao Círculo de Belas Artes de Madrid, ocupou a pasta da Cultura no anterior Governo de José Luis Zapatero.

2011 | Mia Couto

Escritor, jornalista e biólogo moçambicano, António Emílio Leite Couto nasceu em 1955, na Beira. Filho de uma família de emigrantes portugueses chegados a Moçambique no princípio da década de 50, frequentou a escola primária na Beira e iniciou os seus estudos de Medicina em 1971, na Universidade de Lourenço Marques (actualmente, Maputo). Por esta altura, o regime exercia grande

pressão sobre os estudantes universitários. Ligado à luta pela independência de Moçambique, tornou-se membro da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). A partir do 25 de Abril e da independência de Moçambique, interrompeu os estudos para trabalhar como jornalista. Em 1985, ingressou na Universidade Eduardo Mondlane para se formar em Biologia. Iniciou o seu percurso literário em 1983 com o livro “Raiz de Orvalho” (poemas). Seguiram-se, entre outros, “Vozes Anoitecidas” (1986), livro de contos com que se estreou na ficção e que foi premiado pela Associação de Escritores Moçambicanos; “Cada Homem é uma Raça” (1990), “Cronicando” (1988), livro de crónicas; “Terra Sonâmbula” (1992), o seu primeiro romance; “Estórias Abensonhadas” (1994), “A Varanda do Frangipani” (1996), “Contos do Nascer da Terra” (1997),“Vinte e Zinco” (1999) e “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (2002).

2009 | Figueiredo Dias

Jorge Figueiredo Dias é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ensinou Direito Penal, Processo Penal e Ciência Criminal naquela Faculdade e, entre outras funções, integrou o Conselho Científico da Faculdade de Direito de Macau e foi membro do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Também foi presidente da Comissão de Revisão do Código Penal

e do Código de Processo Penal, membro do Conselho de Estado (1982/1986) e deputado à Assembleia da Republica de 1976 a 1978. Personalidade incontornável da nossa ciência jurídica nacional e internacional, Figueiredo Dias desenvolveu um trabalho relevante em Portugal e Espanha no âmbito das ciências jurídicas e em particular no Direito Penal.

Prémio Eduardo Lourenço

Prémio Eduardo Lourenço150

2010 | César Antonio Molina

César Antonio Molina é autor de obras de ensaio, prosa e poesia e quando desempenhou o cargo de director do Instituto Cervantes «intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha». “O seu trabalho cultural a partir do Círculo de Belas Artes de Madrid ampliou os laços peninsulares com a criação da “Semana de Cultura Portuguesa”, referiu o júri, lembrando que “como Director do Instituto Cervantes intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha”. César Antonio Molina nasceu na Corunha em 1952 e é um destacado nome das letras espanholas, na prosa, na poesia e no ensaio. Além de ter presidido ao Instituto Cervantes e ao Círculo de Belas Artes de Madrid, ocupou a pasta da Cultura no anterior Governo de José Luis Zapatero.

2011 | Mia Couto

Escritor, jornalista e biólogo moçambicano, António Emílio Leite Couto nasceu em 1955, na Beira. Filho de uma família de emigrantes portugueses chegados a Moçambique no princípio da década de 50, frequentou a escola primária na Beira e iniciou os seus estudos de Medicina em 1971, na Universidade de Lourenço Marques (actualmente, Maputo). Por esta altura, o regime exercia grande

pressão sobre os estudantes universitários. Ligado à luta pela independência de Moçambique, tornou-se membro da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). A partir do 25 de Abril e da independência de Moçambique, interrompeu os estudos para trabalhar como jornalista. Em 1985, ingressou na Universidade Eduardo Mondlane para se formar em Biologia. Iniciou o seu percurso literário em 1983 com o livro “Raiz de Orvalho” (poemas). Seguiram-se, entre outros, “Vozes Anoitecidas” (1986), livro de contos com que se estreou na ficção e que foi premiado pela Associação de Escritores Moçambicanos; “Cada Homem é uma Raça” (1990), “Cronicando” (1988), livro de crónicas; “Terra Sonâmbula” (1992), o seu primeiro romance; “Estórias Abensonhadas” (1994), “A Varanda do Frangipani” (1996), “Contos do Nascer da Terra” (1997),“Vinte e Zinco” (1999) e “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (2002).

2009 | Figueiredo Dias

Jorge Figueiredo Dias é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ensinou Direito Penal, Processo Penal e Ciência Criminal naquela Faculdade e, entre outras funções, integrou o Conselho Científico da Faculdade de Direito de Macau e foi membro do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Também foi presidente da Comissão de Revisão do Código Penal

e do Código de Processo Penal, membro do Conselho de Estado (1982/1986) e deputado à Assembleia da Republica de 1976 a 1978. Personalidade incontornável da nossa ciência jurídica nacional e internacional, Figueiredo Dias desenvolveu um trabalho relevante em Portugal e Espanha no âmbito das ciências jurídicas e em particular no Direito Penal.

José María Martín Patino, Escritor e Teólogo Jesuíta espanhol, foi o galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço 2012. Nasceu em Lum-brales (Salamanca) em 1925. Licenciado em Filosofia e doutorado em Teologia desenvolveu uma intensa atividade de cariz social e litúrgico em Espanha. Foi fundador e preside à Fundación Encuentro, uma reco-nhecida plataforma de debate de cariz independente cujo objetivo é a

análise dos principais problemas da sociedade espanhola, promovendo espaços de com-preensão e consenso.Para além do protagonismo histórico e do papel que desempenhou nos anos da transição para o regime democrático em Espanha, o júri considerou relevante a trajetória e a atividade de Martín Patino e da Fundación Encuentro no desenvolvimento sócio-económico e coesão territorial na ampla zona transfronteiriça entre Portugal e Espa-nha, nomeadamente através do projeto “Raya Duero”, iniciativa de formação e educação nos meios rurais de baixa densidade.

2012 | José María Martín Patino

Prémio Eduardo Lourenço150

2010 | César Antonio Molina

César Antonio Molina é autor de obras de ensaio, prosa e poesia e quando desempenhou o cargo de director do Instituto Cervantes «intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha». “O seu trabalho cultural a partir do Círculo de Belas Artes de Madrid ampliou os laços peninsulares com a criação da “Semana de Cultura Portuguesa”, referiu o júri, lembrando que “como Director do Instituto Cervantes intensificou a colaboração ibérica com o Instituto Camões, realizando acções conjuntas que se viram reforçadas através do Ministério da Cultura do Governo de Espanha”. César Antonio Molina nasceu na Corunha em 1952 e é um destacado nome das letras espanholas, na prosa, na poesia e no ensaio. Além de ter presidido ao Instituto Cervantes e ao Círculo de Belas Artes de Madrid, ocupou a pasta da Cultura no anterior Governo de José Luis Zapatero.

2011 | Mia Couto

Escritor, jornalista e biólogo moçambicano, António Emílio Leite Couto nasceu em 1955, na Beira. Filho de uma família de emigrantes portugueses chegados a Moçambique no princípio da década de 50, frequentou a escola primária na Beira e iniciou os seus estudos de Medicina em 1971, na Universidade de Lourenço Marques (actualmente, Maputo). Por esta altura, o regime exercia grande

pressão sobre os estudantes universitários. Ligado à luta pela independência de Moçambique, tornou-se membro da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). A partir do 25 de Abril e da independência de Moçambique, interrompeu os estudos para trabalhar como jornalista. Em 1985, ingressou na Universidade Eduardo Mondlane para se formar em Biologia. Iniciou o seu percurso literário em 1983 com o livro “Raiz de Orvalho” (poemas). Seguiram-se, entre outros, “Vozes Anoitecidas” (1986), livro de contos com que se estreou na ficção e que foi premiado pela Associação de Escritores Moçambicanos; “Cada Homem é uma Raça” (1990), “Cronicando” (1988), livro de crónicas; “Terra Sonâmbula” (1992), o seu primeiro romance; “Estórias Abensonhadas” (1994), “A Varanda do Frangipani” (1996), “Contos do Nascer da Terra” (1997),“Vinte e Zinco” (1999) e “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra” (2002).

2009 | Figueiredo Dias

Jorge Figueiredo Dias é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ensinou Direito Penal, Processo Penal e Ciência Criminal naquela Faculdade e, entre outras funções, integrou o Conselho Científico da Faculdade de Direito de Macau e foi membro do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Também foi presidente da Comissão de Revisão do Código Penal

e do Código de Processo Penal, membro do Conselho de Estado (1982/1986) e deputado à Assembleia da Republica de 1976 a 1978. Personalidade incontornável da nossa ciência jurídica nacional e internacional, Figueiredo Dias desenvolveu um trabalho relevante em Portugal e Espanha no âmbito das ciências jurídicas e em particular no Direito Penal.

Page 103: Iberografias nº9

103Prémio Eduardo Lourenço

Jerónimo Pizarro: breve perfil

Jerónimo Pizarro, Professor de Literaturas Hispânicas e investigador da obra de Fernando Pessoa, foi o galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço 2013.

A decisão foi anunciada no dia 26 de abril, por João Gabriel Silva, Reitor da Universi-dade de Coimbra, que presidiu à reunião do Júri do Prémio Eduardo Lourenço 2013.

Jerónimo Pizarro, cidadão da Colômbia e de Portugal, é professor da Universidade dos Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia e dou-tor pelas Universidades de Harvard (2008) e de Lisboa (2006), em Literaturas Hispânicas e Linguística Portuguesa. No âmbito da Edição Crítica das Obras de Fernando Pessoa, publica-das pela INCM, já contribuiu com sete volumes, sendo o último a primeira edição crítica de Livro do Desassossego. Em 2013, assumiu funções de comissário da presença portuguesa na Feira do Livro de Bogotá (Colômbia).

O júri decidiu atribuir o Prémio a Jerónimo Pizarro em reconhecimento do seu papel no desenvolvimento e divulgação dos estudos pessoanos e da sua atividade como promotor da cultura portuguesa no espaço ibero-americano.

O Prémio anual, que tem o nome do ensaísta Eduardo Lourenço, mentor e diretor hon-orífico do CEI, destina-se a galardoar personalidades ou instituições com intervenção rele-vante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas.

Para além do Reitor da Universidade de Coimbra, João Gabriel Silva, o Júri que decidiu a atribuição do Prémio Eduardo Lourenço 2013, era formado por Maria Angeles Serrano, Vice-Reitora da Universidade de Salamanca, Virgílio Bento, Vice-Presidente da Câmara Mu-nicipal da Guarda, Valentín Cabero e Fernando Rodríguez de la Flor, professores da Universi-dade de Salamanca, António Pedro Pita e Manuel Santos Rosa, professores da Universidade de Coimbra e Simonetta Luz Afonso e Carlos Fiolhais, convidados pela Universidade de Coimbra.

A sessão solene de entrega do galardão a Jerónimo Pizarro teve lugar, na Guarda, no dia 7 de junho de 2013.

Page 104: Iberografias nº9

104

Page 105: Iberografias nº9

105

Intervenções na cerimónia de entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2013

Joaquim ValentePresidente da Câmara Municipal da Guarda

É com enorme satisfação e orgulho que, uma vez mais, dou nesta sala as boas-vindas a um ilustre galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço, em boa hora instituído pelo Centro de Estudos Ibéricos.

Um sentimento redobrado nesta ocasião em que pela última vez participo, enquanto Presidente da Câmara, nesta cerimónia. Dentro de poucos meses os cidadãos do concelho da Guarda serão chamados a fazer democraticamente a sua escolha, à qual por opção própria não me submeto. Mas até por isso, quero aqui testemunhar, sem quaisquer equívocos, o quanto me honra – o quanto nos honra a todos – o trabalho realizado nos domínios da Cultura, da Educação e do Conhecimento, de que o Centro de Estudos Ibéricos é dos principais expoentes. Se dúvidas existissem, a Vossa presença nesta sessão – e nas oportuníssimas reflexões que realizaram, ontem e hoje, no colóquio sobre «Portugal e o seu futuro» – seria apenas mais uma prova da dimensão deste projecto, que já ultrapassa o espaço geográfico da Ibéria.

Estou certo de que os próximos protagonistas, sejam eles quais forem (quem os ci-dadãos, livre e democraticamente, designarem), continuarão a apostar na afirmação deste espaço de diálogo e cooperação entre dois países, separados por uma fronteira imaginária que não representa o fim do caminho mas uma linha de horizonte novo, que se define e partilha pela Cultura e pelo Saber.

Da minha parte, quero aqui agradecer tudo quanto aprendi e manifestar desde já toda a minha disponibilidade, enquanto cidadão, para promover e defender sempre o Centro de Estudos Ibéricos e participar nas suas iniciativas. Se possível, e espero que sim e por muito anos, no prazer da companhia do Senhor Professor Eduardo Lourenço, porque esta é a sua Cidade – aquela que, depois de visitada pela primeira vez, o preparou para não se admirar em nenhuma das outras; aquela que lhe abriu as portas para o Mundo; aquela onde se reencontra consigo e com o seu tempo; aquela onde descobre, sempre, o começo do Labirinto.

Page 106: Iberografias nº9

106Prémio Eduardo Lourenço

É nesta sua Cidade, onde está a sua Biblioteca, que continuaremos a pugnar para a concretização do desafio que nos fez por ocasião do Oitavo Centenário.

Estávamos em 1999 quando nos lançou a ideia da criação do Centro de Estudos Ibéricos, impulsionando a Guarda a reafirmar a sua centralidade e valorizar o espaço transfronteiriço.

Um desafio não teria sido possível sem o empenho e compromisso das Universidades de Coimbra e de Salamanca e do Instituto Politécnico da Guarda, que ousaram embarcar com a Câmara Municipal nesta aventura.

Ao longo destes anos, o Centro de Estudos Ibéricos tem sabido afirmar-se como espaço de diálogo e investigação, encontro de culturas e centro de transferência de conhecimentos, congregando vontades entre pessoas e instituições.

A Guarda vai continuar a honrar esta enorme responsabilidade, para que, utilizando as palavras do senhor Professor, “uma simples sugestão se converta em vida partilhada”.

O percurso do Centro de Estudos Ibéricos assume-se cada vez mais numa perspectiva além-fronteiras. O Prémio Eduardo Lourenço, instituído em 2004 e destinado a galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, da cidadania e da cooperação ibéricas, tem acompanhado esta perspectiva.

Por isso o júri entendeu este ano deixar o espaço ibérico europeu galardoando um investigador da Ibéria para além do Atlântico. Um cidadão colombiano que se apaixonou por Portugal e pela sua cultura e que passou também a ser cidadão português.

O Professor Jerónimo Pizarro vai hoje receber a Edição de 2013 em reconhecimento da sua atividade como promotor da cultura de Portugal no cada vez mais importante espaço ibero-americano.

Parabéns, Senhor Professor.

Felicitamo-lo e estamos-lhe gratos pelo seu trabalho de mensageiro incansável de Portugal em novos mundos.

Este também é, no fim de contas, o Espírito da Guarda.

Bem-Hajam.

Page 107: Iberografias nº9

107Prémio Eduardo Lourenço

Joaquim Ramos de CarvalhoVice Reitor de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra

Em representação do Sr. Reitor da Universidade de Coimbra cumpre-me manifestar a profunda satisfação da Universidade de Coimbra ao estar presente em mais uma cerimónia de atribuição do Prémio Eduardo Lourenço, atribuído pelo Centro de Estudos Ibéricos, um prémio e um centro que nos são particularmente queridos.

O Centro de Estudos Ibéricos representa para UC, de facto, uma iniciativa muito relevante: é um elemento importante da nossa estratégia de internacionalização e temos em relação ao Centro as maiores expectativas futuras. Como sabem a atual liderança da Universidade de Coimbra é relativamente recente, mas já soubemos reconhecer aqui um fértil campo de trabalho feito e de futuras oportunidades.

As razões do nosso empenho tornam-se particularmente transparentes neste momento de entrega do Prémio ao Professor Jerónimo Pizarro, ao reconhecermos a importância e significado de um trabalho que transcende o espaço ibérico. Agraciamos alguém que tem feito um trabalho de divulgação global de um dos exponentes mais emblemáticos da cultura portuguesa, Fernando Pessoa, através de um notável esforço de divulgação no seu país de origem, a Colômbia, mas também nos Estados Unidos e em muitos outros palcos internacionais académicos.

A dimensão global do nosso património comum ibérico é algo que entendemos como fundamental e a sua divulgação como atividade da maior importância estratégica. E por isso, em nome do Sr. Reitor, é com muito prazer que cumprimento e felicito o agraciado e agradeço à Câmara Municipal da Guarda todo o empenho, esforço, dedicação e entusiasmo que tem colocado na dinamização deste Centro, que é, de facto, para nós, fundamental, agradecimento que obviamente estendo ao Sr. Professor Eduardo Lourenço da ideia original que permitiu que tudo isto fosse possível.

Page 108: Iberografias nº9

108Prémio Eduardo Lourenço

Noemi Domínguez GarcíaVice Reitora de Relações Internacionais da Universidade de Salamanca

Pensando en este viaje que me había de traer hasta aquí, venía a mi mente ese Duero que es una parte de la frontera entre la provincia de Salamanca y Portugal. Ese Duero que a veces nos une y a veces nos separa. Pensaba también en esas ciudades como Buda y Pest que separadas y unidas por un río acabaron siendo una sola por los puentes tendidos entre ellas.

Ya otros han dicho que los traductores son como puentes entre dos culturas y el trabajo de los traductores es, sin duda, meritorio y necesario. Pero algunos traductores van mucho más allá y se convierten, además, en los mejores especialistas acerca de los autores que traducen. Este es el caso de Jerónimo Pizarro. No es fácil buscar información sobre Pessoa en español sin encontrarse a cada paso con Jerónimo Pizarro.

Siguiendo con mi metáfora del puente, supongo que a veces habrán tenido como yo la sensación de olvidarse de que el puente es puente y que llega a parecer que el puente es una parte más del camino, que se ha integrado en él.

Por eso celebro mucho que me hayan invitado a este acto. Jerónimo Pizarro se ha pre-guntado en varias ocasiones si existe Pessoa. Él basa su interrogante en lo fragmentario de su obra. Yo, a mi vez, me estaba preguntando si existe Jerónimo Pizarro, si no se trataría quizá de otro heterónimo de Fernando Pessoa elegido por él para reescribir toda su obra en lengua española. Aunque el motivo de mi pregunta fuese, precisamente, el contrario: mucho de lo que Pessoa es para quienes hablamos español es inseparable de Jerónimo Pizarro. Decía, pues, que celebro que me resuelvan la duda y poder felicitar personalmente a don Fernando, perdón, a don Jerónimo por este premio.

Y por todo esto que les digo y por lo muchísimo que se queda sin decir, no se me ocurre candidato más merecedor de este premio que promueve no ya el intercambio entre Portugal y España, sino entre dos mundos mucho más amplios como son la lusofonía y la comunidad de habla hispana. Enhorabuena, Sr. Pizarro.

Page 109: Iberografias nº9

109Prémio Eduardo Lourenço

Eduardo LourençoEnsaísta, Director Honorífico do CEI

O mais natural seria que o Presidente do Júri deste Prémio, o Senhor Reitor da Universi-dade de Coimbra, estivesse aqui no meu lugar. É um pouco bizarro, não quero que isto rime com Pizarro, que seja eu quem aqui esteja, embora seja com muito orgulho e muita alegria que aqui estou neste momento no dia em que se confere o Prémio ao escritor e investigador, o Professor Jerónimo Pizarro.

Nem sempre me foi possível estar na Guarda noutras ocasiões em que outras pessoas receberam este Prémio e aproveito esta ocasião para saudar um dos premiados que não tive ocasião de felicitar quando recebeu este mesmo Prémio, o jornalista Agustín Remesal que só agora tive a honra de conhecer!

A Senhora Vice-Reitora da Universidade de Salamanca deu a tónica da situação muito particular em que se encontra alguém que intitulou outro e o encontra no seu caminho, que se a pessoa se heteronimiza de maneira a podermos jogar indefinidamente o jogo dos reflexos que essa heteronímia produz, por exemplo, podia lembrar-me que além de ser o mais jovem dos heterónimos pessoanos, Jerónimo Pizarro também fosse uma reencarnação do famoso conquistador Colombo Pizarro, mas ele tem algumas razões próprias para em seu próprio nome receber este Prémio que o Júri achou bem conferir-lhe e que foi grato dar-lhe o meu nome e quero saudá-lo dessa condição.

Os pessoanos começam a constituir uma família particular que se multiplica e este Pré-mio é a ocasião de dar uma expressão concreta a uma das intenções que me levaram, em tempos, através de passagem na altura em que se celebrava um centenário da nossa querida Cidade, a sugerir a criação do Centro de Estudos Ibéricos. Mas nunca imaginei que dessa simples sugestão, que provavelmente nunca teria passado a efetivar-se se quem de direito a não acolhesse, entre nós o Presidente da Câmara dessa época, e igualmente isso me pareceu importante para o futuro dessa sugestão que um Presidente que eu muito admiro e estimo, o Doutor Jorge Sampaio, tivesse acolhido essa sugestão e estivesse disposto a incitar aqueles que me ouviram nesse momento a tomá-la a sério. Ora nunca imaginei - que apesar de tudo tenho pouca imaginação - que essa sugestão aludisse, e a comparação é muito atrevida e um pouco absurda, ao famoso arbusto de que fala o Evangelho, que é muito modesto mas que cresce e onde veem pousar as aves do céu aqui não serão propriamente as aves do céu mas é já certo número de pessoas que, a partir deste Centro e através deste Prémio, levaram o nome da nossa cidade, e através dele um pouco do nome da nossa própria cultura, não só ao espaço ibérico, a quem em princípio se destinava, mas para além do espaço ibérico, um espa-ço filho desta mesma Ibéria como é o caso do primeiro destes premiados latino-americanos, o jovem colombiano Jerónimo Pizarro.

A Colômbia já existia para nós não só aqueles que amam, conhecem a América Latina mas porque a Colômbia teve a sorte de ter entre eles um verdadeiro génio de ficção cha-mado García Márquez, que pôs com outros grandes Latino-americanos, colocou a América Latina na Galáxia da Cultura Universal. Quanto a Jerónimo Pizarro, não sei exatamente quais os caminhos que o levaram a vir da sua América, da sua alta Bogotá, ao pé da qual a nossa Guarda, a mais alta cidade do País, é uma pequena colina - até aqui à nossa beira e até Por-tugal e a interessar-se como ele fez por Fernando Pessoa. São inumeráveis naturalmente os exegetas da obra de Fernando Pessoa, e ele é o último mais conhecido com outro que não é Latino-americano mas é americano Zenith.

No caso de Jerónimo Pizarro depois de ter recebido este Prémio, li nos jornais que ele tinha declarado que a obra de Pessoa ainda não foi suficientemente explorada, que ainda

Page 110: Iberografias nº9

110Prémio Eduardo Lourenço

há, por assim dizer, uma outra arca, sem arca invisível mas real ao mesmo tempo que conti-nua a merecer a atenção de quem se interessa pela obra de Fernando Pessoa, além daquela que já foi publicada, e ele mesmo é um exemplo de que certas obras de Fernando Pessoa e, particularmente, aquelas de mais difícil acesso e compreensão que são as dos primeiros tempos da vida e da obra de Fernando Pessoa merecem até hoje. O nosso Premiado é autor de uma obra extremamente interessante sobre as relações entre poesia e loucura, um tema que diz respeito a Fernando Pessoa, por Pessoa ter vivido toda a sua adolescência com uma espécie de fascínio mórbido e inquietante convicto de que génio e loucura tinham uma relação íntima entre eles, o que não era coisa nova porque toda a antiguidade já tinha tido essa percepção. É ao estudo pormenorizado desse fascínio, quase tentação, de que Jerónimo Pizarro consagrou um ensaio notável que bastaria e basta para merecer o Prémio. Fernando Pessoa é um poeta, hoje, universalmente conhecido e não será a última vez que alguém se debruça sobre ele, convicto e com razão, de ter acrescentado alguma coisa às exegeses de outros mais velhos e já alguns deles desaparecidos, outros em vias de desaparecimento mais ou menos crepuscular. Fernando Pessoa, ele próprio, referiu num poema a espécie de ciú-me, quase de raiva que ele tinha por saber, como ele diz, que o menor dos seus versos seria mais eterno e mais perene que ele próprio e que já há muito tempo a sua memória, a não ser aquela inscrita nos seus próprios versos, teria desaparecido mas os versos continuariam, como se tivessem uma existência em si que ele nunca realmente alcançaria, porque nós so-mos eternamente efêmeros ou efemeramente eternos. E é verdade que há um drama, um drama intelectual, ainda mais doloroso do que este ciúme do poeta de si mesmo, por aquilo que ele criou, que a dos seus críticos dos seus exegetas. Pode perder-se uma vida inteira ao serviço de pessoas convencidos de que deciframos o seu mistério e quando estávamos tão contentes de ter decifrado o mistério ou enigma, vem outra geração que propõe um outro enigma e assim sucessivamente. Aquilo que é consolador, para quem escreve um poema verdadeiramente digno desse nome ou uma ficção, é qualquer coisa que garante a alguém subjetivamente uma espécie não só de alegria criadora da mais consoladora de todas mas uma espécie de eternidade sensível. Mas um crítico, uma exegese, nunca está seguro disso, pois ele escreve, passa uma vida dedicada realmente ao estudo ou à devoção com o outro e depois outras devoções relegam-no para o seu passado. É natural que cada geração que vem tenha sobre os grandes autores a sua própria visão e que sobre essa visão a exegese daqueles que os precederam se torne menos clara, ou mesmo perca a força que já teve. Pro-vavelmente, algum dia, outros autores, mais novos ainda que ele, escreverão ou reescreverão o que ele já escreveu sobre essa vida imaginária, que todas o são, mas a de Fernando Pessoa é voluntariamente e só pura imaginação.

Em todo o caso, é grato para quem está no passado dessa exegese, como eu, receber a companhia e o reforço dum jovem exegeta com as suas novidades. Provavelmente, todos os críticos têm essa missão de enterrar aqueles que os precederam com flores, e esse é um belo enterro. É bom que os mais jovens renovem aquilo que os mais velhos tentaram fazer e o nosso Premiado é tão jovem que pode ainda conhecer o destino daqueles que o precede-ram. Ele está de parabéns e tenho a certeza que não só o estudo de Pessoa, mas o estudo de outros poetas merecerá dele a mesma atenção que ele dedicou já a Fernando Pessoa.

Parabéns, meu caro Jerónimo Pizarro! Parabéns e agradecimentos por ter incluído na galáxia Pessoa um espaço que até agora era um espaço possível, mas não real. Passou para o outro lado do Atlântico a língua espanhola, onde já estaria para poetas, mas agora é um jo-vem colombiano latino-americano que consagra o melhor do seu esforço ao estudo do nosso poeta, que não tem pátria senão a pátria que ele próprio cedeu escrevendo os versos que escreveu. Mas é bom que na língua espanhola do outro lado do Atlântico ele dê a conhecer mais do que até agora se conhecia, o Fernando Pessoa, e isso justificaria que só por isso o Centro de Estudos Ibéricos tivesse sido inventado e criado. Os meus agradecimentos.

Texto transcrito a partir da gravação da comunicação proferida por ocasião da sessão de entrega do Prémio Edu-ardo Lourenço - 2013.

Page 111: Iberografias nº9

111Prémio Eduardo Lourenço

José BarretoInstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Começo por saudar o inspirador da criação do Centro de Estudos Ibéricos, Prof. Eduardo Lourenço, aqui presente, figura maior das letras e do pensamento portugueses, a quem esta conferência presta homenagem por ocasião do seu recente aniversário. Queria especialmente evocar o exemplo que o seu labor pioneiro ofereceu às gerações mais novas de estudiosos pessoanos e o estímulo que muitos receberam dele no passado e continuam no presente a receber. Qualquer encorajamento vindo deste Mestre é sempre um prémio.

Cabe-me a grata tarefa de fazer o elogio do galardoado com o prémio Eduardo Lourenço de 2013, o Dr. Jerónimo Pizarro.

Conheço particularmente bem a pessoa do premiado, o seu currículo académico, a sua extraordinária actividade como investigador na última década, a vasta obra que já publicou e o papel multiforme que tem desempenhado na divulgação da literatura e da cultura por-tuguesa aquém e além-fronteiras, nomeadamente no espaço ibero-americano.

Apesar de bastante mais velho do que ele, tenho tido, desde há alguns anos, a hon-ra e o proveito de pertencer ao número dos que têm colaborado assiduamente com Jerónimo Pizarro no estudo e edição dos escritos de Fernando Pessoa e que com ele têm participado em diversos projectos e reuniões científicas em Portugal e no estrangeiro –� conjunto de actividades em que Jerónimo Pizarro se destaca, discretamente, como o grande impulsionador. Muitos são os que recebem dele um permanente incentivo e auxílio no trabalho. A sua produtividade infatigável a todos causa admiração. Independentemente da amizade que a ele me liga, não posso omitir o conhecimento directo que eu e bom número de outros investigadores portugueses e estrangeiros temos da sua generosidade, disponibilidade, contagiante dinamismo, abertura de espírito e, não em último lugar, da sua seriedade. Estas qualidades humanas de Jerónimo Pizarro espelham-se e frutificam na excelência do seu labor científico e no nível de eficiência que imprime ao trabalho colectivo, em equipas informais sob a sua supervisão ou efectiva liderança.

Chegado ao nosso país não ainda há uma década e meia com vinte e poucos anos de idade, recém-licenciado pela Universidad de los Andes, em Bogotá, Jerónimo Pizarro completaria a sua formação académica entre Portugal e os Estados Unidos, com um mestrado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, concluído em 2003, e depois, a um ritmo muito invulgar, o doutoramento em Linguística Portuguesa pela Universidade de Lisboa, em 2006, e o doutoramento em Literaturas Hispânicas pela Universidade de Harvard, em 2008. Durante esses anos integrou também a chamada Equipa Pessoa, isto é, o grupo de trabalho criado pelo governo para o estudo do espólio e edição crítica da obra completa de Fernando Pessoa. Foi ainda colaborador do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa e do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Foi só em 2003 que Jerónimo Pizarro, ao travar conhecimento na Biblioteca Nacional com o espólio literário de Fernando Pessoa, teve a epifania, como ele diz, que iria determinar o principal objecto do seu trabalho na década seguinte. O jovem desejoso de pôr em prática e desenvolver o saber adquirido tinha-se deparado com o espólio trilingue de um grande escritor europeu do século XX – um acervo imenso e algo caoticamente organizado, imerso

Page 112: Iberografias nº9

112Prémio Eduardo Lourenço

em confusão cronológica, sem catálogo detalhado, já visitado por muitos e estudado por alguns especialistas, mas ainda vastamente inexplorado e só muito parcialmente divulgado. Eram as dezenas de milhares de páginas de texto que o escritor guardara ao longo da vida, a uma média de quase três páginas por dia. O conteúdo da famosa arca – cujo estado era bem o reflexo dos conhecidos constrangimentos existenciais da vida de Fernando Pessoa e do modo como esta fora abruptamente interrompida aos 47 anos de idade – permanecia aberto a investigadores corajosos, de preferência com uma boa dose de obsessão e de gosto pelo trabalho policial, que aceitassem o imenso desafio daquela massa de papéis, respeitassem a sua verdade e lhe quisessem devotar um trabalho crítico persistente e rigoroso, contemplando especialmente a vertente não poética da obra pessoana, a menos divulgada e estudada até então. Restava por fazer muito do trabalho mais duro: era necessário enfrentar com saber e denodo aquela multidão de textos, muitos deles inacabados ou fragmentários, de penosa legibilidade e trabalhosa contextualização. A Equipa Pessoa tinha-se ocupado a partir de 1990 quase só da edição crítica da poesia. Numa confissão do seu responsável, os muitos milhares de páginas de texto não poético eram tendencialmente encarados como �o resto�. Essa depreciação da obra em prosa vinha de trás, desde os primeiros editores literários de Pessoa, nos anos 40. Ora tornou-se com o tempo evidente, graças ao trabalho de vários investigadores e editores literários e, muito em particular, graças a Jerónimo Pizarro, que é redutivo rotular o escritor e intelectual visionário Fernando Pessoa como um poeta, porque ele foi, além de grande poeta, um prosador de idêntica valia e também um singularíssimo pensador filosófico, sociológico e político, um ensaísta de interesses muito variados, um jornalista interventivo, um cultor de saberes esotéricos, um tradutor e várias outras coisas mais. Uma personalidade plurifacetada com uma actividade artística e intelectual multipolar –�”galáxia Fernando Pessoa”�lhe chamou Eduardo Lourenço. Como Jerónimo Pizarro compreendeu, essa galáxia tinha que ser abordada na totalidade do ser que estava no seu centro e a sua obra reconstruída, a partir das fontes, nessa perspectiva globalizante e unificadora.

Atingindo rapidamente o patamar mais alto do trabalho filológico de crítica textual junto do espólio pessoano, Jerónimo Pizarro tem-se dedicado ao longo dos últimos dez anos à reconstrução e à construção da obra Fernando Pessoa. Reconstrução no sentido, por exemplo, de ler, fixar e editar os textos inéditos, mas também de reler e reeditar escritos que no passado tinham sido publicados com deficiente critério. Jerónimo já é considerado um dos melhores decifradores da tremenda caligrafia pessoana, o que é muito de realçar sendo o espanhol a sua língua materna. Reconstrução quer dizer também repor laboriosamente ordem no caos, reunir fragmentos afins ou dispersos, identificar núcleos temáticos e descobrir conexões escondidas entre textos ou projectos. Quer dizer ainda datar com o maior rigor possível, a partir da materialidade do texto e do seu suporte, grande número de escritos sem data ou incorrectamente datados no passado, restituindo assim o contexto cronológico a uma obra que, sem ele, corre o risco de ser deficientemente interpretada, como já o tem sido repetidamente. Por construção entenda-se algo mais complexo e arriscado, só ao alcance de muito poucos, pois essa acção envolve tomar decisões que o autor não tomou ou deixou apenas esboçadas. Assim a decisão de Jerónimo Pizarro de propor nova configuração para a edição de uma obra grandiosa, mas irremediavelmente estilhaçada e inacabada, como o Livro do Desassossego, ou a decisão de enveredar pela edição autónoma da prosa de Álvaro de Campos, até agora principalmente encarado como poeta. Com este paciente e sistemático trabalho de reconstrução e construção, a que consagrou os melhores anos da sua juventude – despertando aliás essa circunstância etária, aliada à sua qualidade de “estrangeiro”, alguns sentimentos maus conselheiros –, com este trabalho, dizia eu, Jerónimo Pizarro tem vindo a estabelecer novos padrões de exigência e qualidade, contribuindo destacadamente para revolucionar os estudos pessoanos e fazer avançar a edição crítica de obras literárias em Portugal. Graças ao labor de Pizarro, é também uma nova fisionomia do Fernando Pessoa escritor, intelectual e homem que tem vindo a surgir.

Page 113: Iberografias nº9

113Prémio Eduardo Lourenço

Não irei sobrecarregar a audiência com o longo rol das obras de Jerónimo Pizarro nesta década. Como falei da sua notável produtividade, prová-la-ei mencionando os principais marcos da sua edição crítica de Pessoa, desde 2006: Escritos sobre Génio e Loucura, Obras de Jean Seul de Méluret, A Educação do Stoico, Sensacionismo e Outros Ismos, o vol. I dos Cadernos, Carta a um Herói Estúpido, Livro do Desasocego, Provérbios Portugueses (co-editor), Prosa de Álvaro de Campos e o mais recente Ibéria: introdução a um imperialismo futuro (co-editor), agora publicado também em Espanha. Junte-se, na sua qualidade de autor, organizador ou co-organizador, estes livros publicados desde 2007 em Portugal, Colômbia, Inglaterra e Espanha: Fernando Pessoa: entre o génio e a loucura, A Arca de Pessoa: novos ensaios, O Guardador de Papéis, A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, Portuguese Modernisms. Multiple Perspectives on Literature and the Visual Arts, La mediación editorial, Pessoa Existe? E mais duas edições pessoanas bilingues: Todos los sueños del mundo / Todos os Sonhos do Mundo e Plural como el universo. O tempo é curto para dizer algo sobre cada um destes livros – entre os quais avultam meia dúzia de obras de grande vulto, marcos históricos da edição crítica da prosa pessoana – para não falar já das restantes publicações de Pizarro no mesmo curto período, compreendendo dezenas de artigos ou capítulos de livros publicados em Portugal e no estrangeiro. Isto ao mesmo tempo que ia promovendo e coordenando reuniões científicas no país e fora dele, organizando números temáticos de revistas internacionais, criando e dirigindo colecções de livros e a nova série das Obras de Fernando Pessoa na editora Ática, bem como participando em outros projectos colectivos, orientando teses, dando aulas, etc. Quero destacar, por ser um trabalho talvez menos conhecido do público, o monumental catálogo da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, obra de grande qualidade produzida por um trio colombiano-argentino-italiano de investigadores liderados por Pizarro e que, como complemento, ainda digitalizaram em regime de trabalho voluntário todos os livros da biblioteca pessoana, mais de mil títulos, que a breve trecho ficaram disponíveis online, no site da Casa Pessoa, para todo o mundo. Esse trabalho mereceu a Pizarro em 2010 uma medalha da cidade de Lisboa. Acrescente--se o igualmente valioso trabalho de digitalização, realizada por ele e outro trabalhador benévolo, por sinal alemão, da parte do espólio de Fernando Pessoa que ficou na posse dos descendentes, acervo de milhares de páginas, na sua maioria desconhecidas, trabalho que foi depois cedido à Biblioteca Nacional.

Em 2011, Jerónimo Pizarro liderou a partir da Colômbia a criação da primeira revista electrónica de estudos pessoanos, Pessoa Plural, organizada em moldes académicos inter-nacionais, com a colaboração de Onésimo Teotónio de Almeida na Universidade de Brown e Paulo de Medeiros na Universidade de Utreque, uma revista bianual cujos primeiros números, sob a sua direcção, ficaram disponíveis em 2012. Pessoa Plural é a primeira revista internacional de estudos pessoanos. É a segunda revista de estudos pessoanos, trinta e poucos anos depois de Persona, criada no Porto no final da década de 1970 pelo Prof. Arnaldo Saraiva.

Recentemente, nesta etapa da sua vida académica que decorre novamente com sede na Colômbia, Jerónimo Pizarro tem ligado o seu nome à promoção de sucessivas e importantes iniciativas de divulgação da cultura portuguesa naquele país sul-americano, como a Semana de Portugal, que teve lugar na Universidad de los Andes, em Bogotá, em 2011. No mesmo ano tinha sido criada na mesma universidade, em cooperação com o Instituto Camões, uma cátedra de estudos portugueses com o nome de Fernando Pessoa, de que Pizarro foi nomeado titular. Mais recentemente, em Abril deste ano, Jerónimo Pizarro foi o comissário da presença portuguesa na importante Feira Internacional do Livro de Bogotá, de que Portugal foi convidado de honra, aonde levou mais de vinte escritores portugueses e lusófonos e em que foram apresentadas dezenas de novas traduções de obras da literatura lusófona, além da realização de um conjunto de outros eventos culturais. Pela excelência do seu desempenho nestas tarefas recebeu muito recentemente duas condecorações do

Page 114: Iberografias nº9

114Prémio Eduardo Lourenço

Estado português.

O Prémio que hoje lhe é conferido não constitui apenas o reconhecimento de toda a actividade pretérita do galardoado, pois que, dada a sua juventude e os horizontes que se abrem à sua frente, representa também um valioso incentivo à prossecução e pleno florescimento da sua brilhante carreira como investigador, professor, estudioso das literaturas ibéricas e ibero-americanas e divulgador da literatura portuguesa, muito em particular da obra pessoana. Por tudo o que enumerei, Jerónimo Pizarro é uma clara mais-valia para a cultura portuguesa e para a sua divulgação além-fronteiras. O Centro de Estudos Ibéricos, ao atribuir-lhe o prémio Eduardo Lourenço, provou tê-lo compreendido plenamente. Pena é – como já foi dito e escrito por outros – que na segunda pátria a que Jerónimo Pizarro desejou ligar-se indelevelmente, à qual tantos serviços tem prestado e onde tão notável currículo académico construiu, não tenha ainda uma cátedra Fernando Pessoa numa uni-versidade, nem lhe tenha sequer sido oferecido um lugar de professor, ao qual, pelo seu indiscutível mérito, mostrou ter pleno direito. Sustentando o grosso do seu trabalho de uma década quase só com bolsas nacionais e norte-americanas, em 2011 Jerónimo Pizarro sentiu – porque nós lho fizemos sentir por inércia, impotência ou simplesmente incúria – que tinha que olhar pela sua carreira, regressando como já disse, esperemos que transitoriamente, à pátria de origem. O prémio que hoje recebe representa por isso também um sinal muito forte e oportuno, para que se repare uma situação que nem na crise por que passamos encontra justificação plausível e para que possamos num futuro próximo ter Jerónimo Pizarro de volta a Portugal. Trata-se não de o roubarmos à sua primeira pátria ou à actividade académica transnacional, mas de lhe assegurarmos aqui as condições ideais ao prosseguimento de um trabalho precioso em que ele provou ser o mais capacitado. E com esta nota de esperança encerro o meu discurso, agradecendo o convite do Centro de Estudos Ibéricos.

Page 115: Iberografias nº9

115Prémio Eduardo Lourenço

Jerónimo PizarroPrémio Eduardo Lourenço 2013

Há pouco tempo, em Bogotá, uma amiga portuguesa disse, numa reunião: «Cultu-ralmente, Portugal sempre foi avesso à mudança. É uma Nação pouco intervencionista e, como tal, menos reformista». Confesso que esta declaração me chocou, particularmente numa altura em que as redes sociais estão tão cheias de vozes e alvitres e os locais de decisão política tão vazios de pessoas e acções. Não sei qual é a saída para a crise actual, que voltou a tornar vigentes tantos textos da geração de 70 e dos Vencidos da Vida, mas sei que sem uma transformação significativa no andamento do País que conhecemos e tanto amamos, será difícil transformar a nossa «vidinha» – essa palavra tão portuguesa, a que Alexandre O’Neill foi tão sensível em Feira Cabisbaixa, e não só – numa Vida, com maiúscula de dignidade e plenitude.

As conquistas da Europa, que se medem cidadão a cidadão, nomeadamente nos planos social e cultural, não podem ser colocadas em cheque por uma crise que é menos dos valores europeus, do que de uma inércia individual e colectiva demasiado prolongadas. Mudar, às vezes, é uma afirmação de Vida, um modo de proteger o nosso património, material e imaterial, de abandonar uma rotina, tantas vezes «tão mansa, quase vegetal», a que nos submetemos por melancolia ou cansaço. E Portugal precisa de mudar de ânimo e de rumo, e para o fazer tem de se abrir, como já antes o fez tantas vezes, ao mundo, para lá da própria Europa, sem abandonar, naturalmente, a própria Europa, que terá de sacudir o seu imobilismo, o que Eduardo Lourenço bem retratou numa frase simples: “Esta Europa tornou-se um museu de si mesma”.

Cansativa Europa esta, de equipas incultas de gestores e contabilistas viajantes, impondo restrições, sem criar, em simultâneo, as condições para tornar mais pujantes cada um dos países visitados. Mas basta lembrar, para sonhar um país do novo milénio, a forte identidade nacional, ibérica e mediterrânica, a vitalidade expandida e universalista da língua lusófona, a febre sempre viva de independência e liberdade. Basta lembrar o tempo e os feitos de uma longa e surpreendente História, pautada sempre pela capacidade de luta e superação das dificuldades.

Neste sentido lamento profundamente a existência e a perseverança de todo o tipo de redutos fechados, a que as Universidades também não escapam, numa espécie de apoucada nostalgia do senhorio e do feudo, e celebro amplamente a abertura, o diálogo, a cooperação e o espírito construtivo, sem mediar falsas fronteiras e outros absurdos limites e poderes. Concordo com Guilherme d’Oliveira Martins quando disse que: «A cultu-ra portuguesa sempre se tornou mais rica, abrindo-se, dando e recebendo». E não só a portuguesa: qualquer cultura sempre se tornará mais rica quando se abrir, pronta a dar e a receber. Hoje, na América Latina, os países mais pobres são os culturalmente mais fechados. Hoje, na Europa, os países mais ricos são os culturalmente mais abertos. E um dos mais abertos, sem dúvida, e desde as suas origens, é Portugal, pelo que, se ao arrepio da História não se deixar limitar financeiramente, só poderá ser também um dos países mais ricos. Os portugueses sempre foram um povo aberto e plural. Tanto que Fernando Pessoa refundou a identidade portuguesa sonhando-se, a si próprio, prolixamente diverso. E nunca esteve tão só como poderia parecer.

Page 116: Iberografias nº9

116Prémio Eduardo Lourenço

Falar da identidade de um povo é também falar da sua capacidade de incólume projecção no mundo, por reflexão e refracção, preservando as diferenças e exaltando as afinidades, abrindo passo ao que Oliveira Martins certeiramente chama �múltiplas trocas e complementaridades. Esse é o Portugal que somos. Que sempre fomos. De pé e de braços abertos.

E hoje, portanto, venho aqui agradecer esses braços abertos com que este país me recebeu há mais de uma década e reafirmar os laços transatlânticos que me unem com a literatura e a cultura portuguesas, desde que aceitei ser o titular da Cátedra do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua – na Colômbia e o Comissário da visita portuguesa à Feira Internacional do Livro de Bogotá, 2013; e já muito antes, desde que, quer através dos meus estudos de pós-graduação, quer através dos trabalhos críticos que tenho levado a cabo, tentei aproximar as literaturas portuguesas e hispânicas. Neste momento, em que divido o meu tempo mental e físico entre o continente europeu e o americano, sinto que estou a viver nos dois mundos em que me formei e encaro com serenidade e alegria esta partilha.

É neste contexto que aceito, humilde e reconhecidamente, a honra deste Prémio! Tudo farei para o merecer!

Uma outra amiga, também portuguesa e, casualmente hoje parte da minha família, disse-me, há muito tempo, que tinha aprendido a pensar com Eduardo Lourenço; que só achava que tinha começado realmente a pensar depois de passar por Eduardo Lourenço. E que um dia, recentemente, quando se encontraram no adro da Basílica da Estrela, durante o acto oficial que assinalou a trasladação dos restos mortais de Jorge de Sena, seu primo, foi capaz de dizer isso mesmo e pessoalmente a Eduardo Lourenço, beijando-lhe as mãos, que eram a fonte material da sua escrita. Haverá algo mais sagrado e mais fundo que possa dizer-se de um Mestre?

Eduardo Lourenço, na sua «Lembrança espectral da Guarda», com essa linguagem dura e cândida que também me ensinou a pensar, lembrou uma frase de Vergílio Ferreira, «Da minha língua vê-se o mar», e disse que era curioso que o Vergílio Ferreira a tivesse dito, porque «da sua língua natal, da língua desta beira serrana, não se vê o mar». De Bogotá também não se vê o mar, mas pressente-se, oculto e longínquo, por trás das muralhas andinas, e esse mar, simbolicamente, é um elo entre a Europa e a América. «O mar é, foi-nos, porta para o mundo», disse Eduardo Lourenço. E, num outro discurso afirmou que a «Todos nós ibéricos» convinha repensar «quem fomos, quem realmente somos e quem podemos ser. Todos nós ibéricos». Pois bem, deixem-me apenas reiterar que o mar pode continuar a ser o limiar do mundo para muitos países, nomeadamente para Portugal, e que convém, é claro, repensar quem somos. Mas não apenas nós ibéricos, mas nós ibero-americanos, numa «iniciativa Trans-ibérica», como disse o Mestre Lourenço («CEI – Dez anos»), porque como o próprio disse, citando-o uma última vez, «a América no seu conjunto, desde o norte até ao sul da Patagónia […] não é o nosso passado, é, eu penso, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso futuro» (in «A Península como Problema Europeu»). Eis o Eduardo Lourenço vidente, o Eduardo Lourenço profeta, que mesmo sendo resistente às «seduções exteriores» e moldado como a «pedra dura para resistir ao vento» (in «Oito Séculos de altiva Solidão»), percebe a necessidade de uma abertura trans-ibérica, de uma abertura para a América no seu ubérrimo conjunto.

Sim, Eduardo Lourenço ensina-nos a pensar, sugere-nos caminhos, orienta-nos em tempos de labirintos e fantasmas.

É justo que neste lugar e nesta ocasião eu reconheça que sem o guia de Eduardo Lourenço, eu não teria sido «iniciado» em Fernando Pessoa, eu não teria ultrapassado o limiar de um conhecimento incipiente e, em suma, eu não estaria hoje nesta sala a receber

Page 117: Iberografias nº9

117Prémio Eduardo Lourenço

este prémio. Eduardo Lourenço foi o primeiro Mestre, antes de eu concluir estudos em duas universidades portuguesas, onde também encontrei outros decisivos orientadores e amigos. Lembro aqui Fernando Cabral Martins, Isabel Allegro de Magalhães, Fernando J. B. Martinho, Ivo Castro, Manuel Gusmão, João Dionísio, Arnaldo Saraiva, Maria Aliete Galhoz, Onésimo Almeida, Paulo de Medeiros, Patricio Ferrari, Claudia Fischer, António Cardiello, Pauly Ellen Bothe, Steffen Dix, José Barreto. Eles e muitos outros.

Page 118: Iberografias nº9

118Prémio Eduardo Lourenço

Page 119: Iberografias nº9

119

CEIActividades | 2013

Page 120: Iberografias nº9

120

Page 121: Iberografias nº9

121

I. Ensino e Formação

XIII Curso de Verão “Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança”

Teve lugar de 3 a 6 de Julho, na Guarda, a décima terceira edição dos Cursos de Verão, iniciativa que o Centro de Estudos Ibéricos realiza desde 2001 e que é já uma das imagens de marca do Centro.

Subordinado ao tema “Espaços de Fronteira, Territórios de Esperança” e com a Raia Central de Portugal e Espanha em pano de fundo, o Curso teve como objectivo aprofundar o debate sobre os significados económicos, sociais e políticos que os espaços fronteiriços assumem no contexto europeu, enquanto se revisitaram êxitos e fracassos de duas décadas de cooperação transfronteiriça. Tais objectivos foram abordados a partir das seguintes co-ordenadas:

• Espaços de fronteira: valorizar recursos, promover a competitividade;• Territórios fronteiriços e suas dinâmicas: das vulnerabilidades à coesão;• Esperança em tempos de crise: interioridades, cultura, futuro;• Cooperação e desenvolvimento territorial: velhos problemas, novas soluções.

Page 122: Iberografias nº9

122

O debate destes temas foi complementado com visitas de estudo cujo trabalho de campo se integra nas Rotas Ibéricas organizadas segundo o lema “andar, ver e conhecer”.

À semelhança de edições anteriores, o Curso foi creditado pela Universidade de Salamanca com 3 créditos de libre elección e faz parte da oferta de Cursos de Verão daquela Universidade.

3 de Julho

Tema 1. Territórios fronteiriços e suas dinâmicas: das vulnerabilidades à coesão

Moderação: Lúcio Cunha (UC); Ignacio Plaza (USAL) . Política Regional da EU e alterações climáticas António Sobrinho (Geógrafo). Dinámicas actuales en la «raya» de Castilla y León y Portugal Alfonso Hortelano (USAL). El territorio de la EUROACE (Alentejo-Centro Extremadura) en el horizonte 2020 Antonio J. Campesino (Unex). Envelhecimento Demográfico vulnerabilidades e oportunidades no Séc. XXI Paulo Nossa (UC)

Tema 2. Cooperação e desenvolvimento territorial: velhos problemas, novas soluções

Moderação: Valentín Cabero (USAL); Rui Jacinto (UC)

Workshops (Comunicações livres):Tema 1. Espaços de fronteira: valorizar recursos, promover a competitividadeTema 2. Territórios fronteiriços e suas dinâmicas: das vulnerabilidades à coesãoTema 3. Esperança em tempos de crise: interioridade, cultura, futuro

4 de Julho

Trabalho de campo - Rota Ibérica: Património, cultura e requalificação urbana

Roteiro: Guarda – Castelo Branco (Museu Cargaleiro; Centro Histórico) – Castelo Novo – Portela da Gardunha – Fundão – GuardaCoordenação: Rui Jacinto (UC); Fernando Paulouro; Pedro Salvado

CEI Actividades | 2013

Page 123: Iberografias nº9

123

5 de Julho

Tema 3. Espaços de fronteira: valorizar recursos, promover a competitividade

Moderação: Valentín Cabero (USAL); Rui Jacinto (UC). Especificidade Territorial e Reconfigurações nas relações entre Recursos e Comunidades na CenCyL Gonçalo Poeta (IPG). Valorización, promoción y gestión de recursos culturales fronterizos en la Comarca de Ciudad Rodrigo Fernando Ramos (Adecocir). Quando o interior era pioneiro João Figueira (ISEG). Un modelo de desarrollo rural ibérico ineludible: “Juzbado, libro abierto”. Construyendo pueblo entre la literatura y el paisaje Fernando Rubio (Alcade de Juzbado)

Tema 4. Esperança em tempos de crise: interioridade, cultura, futuro

Moderação: António Pedro Pita (UC). Faia Brava - O desafio de criar conservação da natureza sustentável em Portugal Alice Gama (Associação Faia Brava). Ganhar a vida nas nossas aldeias José João Rodrigues (Casa do Sal). Una década de iniciativas culturales en la Fundación Ciudad Rodrigo: la suma de esfuerzos para poner en valor nuestra identidad y para desafiar la decadencia y la despoblación de estas tierras de fronteraJuan Carlos Sánchez (Fundación Ciudad Rodrigo)José Fernández Blanco (Alcalde Puebla de Sanabria)

6 de JulhoTrabalho de campo - Rota Ibérica: Paisagens rurais e património natural e culturalRoteiro: Guarda – Espeja - Siega Verde - San Fellices de los Gallegos - Castro de las Merchanas - GuardaCoordenação: António Gama (UC); Valentín Cabero (USAL)

Ensino e Formação

Page 124: Iberografias nº9

124

Cursos de Língua e Cultura EspanholasDecorreram de 18 de Janeiro a 23 de

Março dois cursos de Língua e Cultura Espanholas.

Esta iniciativa resulta da parceria do CEI com a Universidade de Salamanca (Cursos Internacionales), sendo as acções creditadas por esta instituição.

Os Cursos – nível B2 e nível C1 – tiveram a duração de 60h, em regime pós-laboral e foram ministrados por professores da Universidade de Salamanca. Tiveram como objetivos ampliar e melhorar o domínio lin-guístico do espanhol nos aspetos gramaticais e léxicos numa perspetiva comunicativa e funcional. Paralelamente, procurou-se dar a conhecer diferentes aspetos da cultura e da civilização espanholas, com o objectivo de contribuir para uma melhor compreensão do país e do modo de vida do seu povo.

Ciclo de Conferências “O Direito em tempos de crise”O CEI retomou, no dia 14 de Março, iniciativas na área do Direito, com a Conferência

“Insolvências e recuperação de empresas”, integrada no Ciclo “O Direito em tempos de crise”.

Este Ciclo de Conferências foi coorde-nado cientificamente pelo Prof. José Manuel Quelhas, da Universidade de Coimbra, e pelo Prof. Ricardo Rivero, da Universidade de Salamanca e conta com a colaboração da Ordem dos Advogados.

As conferências deste Ciclo foram as seguintes:

“Insolvências e recuperação deempresas” - 14 de MarçoComunicações: Alexandre Soveral Martins, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ciências Jurí-dico-Empresariais) e Fernando Carbajo Cascón, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (Direito Comercial).

“Reforma de leis laborais e cessação do contrato de trabalho” - 31 de MaioComunicações: Enrique Cabero Morán, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca e João Leal Amado, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

CEI Actividades | 2013

Page 125: Iberografias nº9

125

“Reforma do Processo Civil” - 12 de SetembroComunicações: Maria José Capelo Pinto, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e por Fernando Martín Diz da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca.

“O Direito e a Crise Financeira” – 17 de OutubroComunicações: Prof. José Manuel Quelhas - Universidade de Coimbra; Prof. José María Lago Montero - Universidade de Salamanca.

Ciclo de Conferências “Saúde sem Fronteiras 2013”Teve início no dia 4 de Abril o 9º Ciclo de Conferências “Saúde Sem Fronteiras”, com

a conferência sobre “Ética e Direitos na Saúde”. Esta conferência marcou a abertura desta iniciativa, que visa o debate e intercâmbio de experiências na área da Saúde. Coordenado cientificamente pelas Faculdades de Medicina das Universidades de Coimbra, o Ciclo conta com a colaboração da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros, da Unidade Local de Saúde da Guarda, Escola Superior de Saúde da Guarda e Liga Portuguesa contra o Cancro.

Para além das conferências habituais, este ano o Ciclo foi enriquecido com as “Conversas à noite”, três tertúlias sobre saúde dirigidas ao público em geral onde foram abordados os temas: “O Sol, amigo e inimigo” (8 de Maio), “Comer bem, viver melhor” (26 de Junho), e “Demências” (6 de Novembro).

As conferências do Ciclo foram as seguintes:

Conferência “Ética e Direitos na Saúde” - 4 AbrilComunicações: Prof. Doutor João Pedroso de Lima - Serviço de Medicina Nuclear - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e Prof. Doutor José I. Paz Bouza – Departamento de Anatomia – Faculdade de Medicina - Universidade de Salamanca

Conversas à noite “O sol amigo e inimigo” – 8 MaioContou com as intervenções de elementos da Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros e da Liga Portuguesa contra o Cancro.

Conferência “O sol amigo e inimigo” – 9 MaioComunicações: Prof. Doutor Javier Bravo Piris (Departamento Dermatologia - Faculdade de Medicina - Universidade de Salamanca), Prof. Doutor Américo Figueiredo (Serviço de Dermatologia - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), Prof.ª Maria de Fátima Roque e Estudantes do Núcleo de Farmácia da Associação de Estudantes (Escola Superior de Saúde – Instituto Politécnico da Guarda)

Conversas à noite “Comer bem, viver melhor” - 26 de Junho Intervenções: Dr. João Correia - Ordem dos Médicos, Enfº Rui Dionísio - Ordem dos Enfermeiros, Dr. Tiago Paredes - Liga Portuguesa contra o Cancro.Trata-se de uma conversa informal, dirigida ao público em geral, onde todos são convidados a participar.

Ensino e Formação

Page 126: Iberografias nº9

126

Conferência “Comer bem, viver melhor” - 27 JunhoComunicações: Prof. Doutor Manuel Teixeira Veríssimo (Serviço de Medicina Interna - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), Prof.ª Doutora Consuelo Sancho Sánchez (Departamento de Fisiologia e Farmacologia - Faculdade de Medicina - Universidade de Salamanca), Dr. Carlos Laginhas (ESTH - IPG), Prof. Maximiano Ribeiro, Prof.ª Paula Coutinho (Escola Superior de Saúde – Instituto Politécnico da Guarda) e Prof.ª Doutora Ermelinda Marques (Escola Superior de Saúde – Instituto Politécnico da Guarda)A terminar a sessão, terminou com um “Almoço Saudável”, promovido pela Escola Supe-rior de Turismo e Hotelaria do Instituto Politécnico da Guarda, aberto aos inscritos na conferência.

Conferência “Sono de qualidade: boa noite, melhor dia” – 3 de OutubroComunicações: Dra. Maria João Matos (Serviço de Pneumologia – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), Prof. Doutor José Luis Fernández (Faculdade de Medicina – Universidade de Salamanca), Dr. José Manuel Silva (Serviço de Pneumologia – Unidade Local de Saúde da Guarda), Prof. António Batista (Escola Superior de Saúde – Instituto Politécnico da Guarda)

Conversas à noite “Demências” – 6 de NovembroIntervenções: Enfermeiro Hélder Lourenço (Ordem dos Enfermeiros), Enfermeiro David Coutinho (ULS da Guarda).

Conferência “Demências” – 7 de NovembroComunicações: Prof. Doutor Ginés Llorca (Departamento de Psiquiatria - Faculdade de Me-dicina - Universidade de Salamanca), Prof. Doutor Horácio Firmino (Serviço de Psiquiatria - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), Enfermeiro Hélder Lourenço (Ordem dos Enfermeiros)

CEI Actividades | 2013

Page 127: Iberografias nº9

127

III Curso de Formação “Novas Metodologias para Ensinar e Aprender: Outdoor Learning (Nível Intermédio)”

O Centro de Estudos Ibéricos levou a efeito nos dias 21,22, 23 de Março e 6 de Abril o III Curso Novas Metodologias para Ensinar e Aprender: Outdoor Learning (Nível Intermé-dio), especialmente destinado a professores do 1º Ciclo e educadores de infância, este curso teve como objetivo a compreensão dos pressupostos e princípios pedagógicos da me-todologia de “outdoor learning” (educação em espaços abertos), através do conhecimento de processos de ensino e aprendizagem in-tegradores e transdisciplinares.

Nos quatro dias de formação, os partici-pantes assistiram a sessões teóricas e par-ticiparam em três saídas de campo onde se pretendia uma aplicação prática dos conhecimentos adquiridos: 21 de Março – Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço; 22 de Março – Parque Arqueológico do Vale do Côa; 23 de Março – Sabugal e 6 de Abril – Manteigas.

Coordenado pelo Prof. Carlos Reis, Director da Escola Superior de Educação, Comunicação e Desporto do Instituto Politécnico da Guarda e membro da Comissão Executiva do CEI, o Curso conta com a participação de professores da Universidade de Coimbra, da Universidade de Salamanca e do Instituto Politécnico da Guarda e foi creditado pelo Conselho Científico Pedagógico de Formação Contínua.

III Jornadas Ibéricas “A Criança e a Leitura: experiências, estratégias e desafios”

O Centro de Estudos Ibéricos e a Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço realizaram, no dia 30 de Abril, as III Jornadas Ibéricas “A criança e leitura: experiências, estratégias e desafios”.

Esta iniciativa contou com a colaboração da Fundación Germán Sánchez Ruipérez, uma das mais reputadas instituições espanholas na área da promoção do livro e da leitura.

Destinadas a professores, educadores, técnicos de biblioteca e promotores de leitura, estas Jornadas visaaram o debate e intercâmbio de experiências na área da promoção da leitura e da literatura infantil, utilizando estratégias e abordagens inovadoras.

Ensino e Formação

Page 128: Iberografias nº9

128

As jornadas contaram com as seguintes intervenções:

Andreia Brites “Escolher livros para adolescentes: da expectativa ao juízo crítico”

Dora Batalim “Num álbum ilustrado, o mundo antes e depois das palavras”

Centro Internacional do Livro Infantil e Juvenil – Fundación Germán Sánchez Ruiz Pérez “La lectura, recurso para promover aprendizajes curriculares”

Durante a tarde decorreu um atelier prático: “Nos entendemos: practicando el lenguaje de la ilustración” orientado pelo Centro Internacional do Livro Infantil e Juvenil da Fundación Germán Sánchez Ruiz Pérez

CEI Actividades | 2013

Page 129: Iberografias nº9

129

II. Investigação

Apoios a Trabalhos de Investigação

No âmbito do Projecto Territórios, Sociedades e Culturas em tempo de mudança, decorreram, até 30 de Abril, as inscrições aos Apoios a Trabalhos de Investigação.

Esta iniciativa, que vai na oitava edição, visa apoiar a realização de trabalhos de investigação com incidência nos espaços de baixa densidade e nos territórios transfronteiriços, enquadrados nos seguintes temas:

- Paisagens, património natural e valorização dos recursos locais;- Património e turismo cultural; - Ensino, condições sociais e coesão dos espaços rurais;- Dinâmicas económicas, sociais, cooperação territorial e desenvolvimento local.

A avaliação das candidaturas foi feita por um Júri constituído por membros das Comissões Cientifica e Executiva do CEI em função da apreciação dos curriculae e da qualidade das propostas de trabalho apresentadas. Destinados prioritariamente a jovens investigadores, foram selecionados até três trabalhos por tema, sendo o apoio a concedido de 750 Euros.

Os apoios concedidos foram os se-guintes:

Tema 1.1 Paisagens, património natural e valorização dos recursos locais Coordenadores: Prof. Lúcio Cunha e Prof. Ignácio Izquierdo 1 - Lúcia Marisa Maia Ribeiro - Rotas de plantas e saberes da Terra-fria Transmontana2 - Catarina Pinto Ferreira de Mateus Soares - A ocupação Alto-Medieval da bacia do rioSever - contributo para o estudo dos con-celhos de Marvão (Portalegre, Portugal) e Valencia de Alcántara (Cáceres, Espanha)3 - Paulo Celso Lopes Pinto - Paisagem e valorização do património geomorfológico no concelho do Sabugal

Tema 1.2 Património e turismo cultural Coordenadores: Prof. Fernanda Cravidão, Prof. Mª Helena Cruz Coelho e Dra. Celestina Trejo Giménez 1 - Maria Isabel Chaves Carneiro - Moinhos de água – Memórias, tradição e identidade(s)2 - Sílvia do Carmo Marcelo Lézico - Arte Pastoril - do Alentejo para o Mundo3 - Sofia Isabel Domingos Carrusca - Contributo para a história do património industrial corticeiro de S. Brás de Alportel – valorização turística

Investigação

Page 130: Iberografias nº9

130

Tema 1.3 Ensino, condições sociais e coesão dos espaços rurais Coordenadores: Prof. Pedro Hespanha, Prof. Carlos Reis e Prof. Valentín Cabero 1 - Álvaro Terrón Sánchez - A educação bilingue na Raia

Tema 1.4 Dinâmicas ecónomicas, sociais, cooperação territorial e desenvolvimento localCoordenadores: Dr. Rui Jacinto e Prof. Valentín Cabero 1 - Carolina Davide Alves – Interioridade e mobilidades sócio-espaciais: presenças e ausências, permanências e sazonalidades2 - Vera Dulce Fernandes Martinho – A morfologia urbana no interior norte de Portugal3 - Teresa Constança Lisboa Sampaio da Nóvoa - Vidas Faladas: Histórias de vida do Planalto Mirandês

A Sessão de entrega dos Apoios a Trabalhos de Investigação realizou-se no dia 7 de Junho, na sede do CEI.

CEI Actividades | 2013

Page 131: Iberografias nº9

131

III. Eventos e Iniciativas de Cooperação

Conferência Comemorativa do 90º Aniversário de Eduardo Lourenço: “Portugal e o seu Destino”

A Conferência comemorativa do 90º ani-versário de Eduardo Lourenço visou o debate e a reflexão em torno da obra de ensaísta e director honorífico do CEI e da sua visão de Portugal, da Ibéria e da Europa, congregando na Guarda pensadores e investigadores de diferentes áreas.

Programa:

6 de Junho de 2013 Guilherme d`Oliveira Martins - Presidente do Centro Nacional de Cultura 10h30 - Painel I. A nau de Ícaro: diásporas e exílios Apresentação e moderação: Fernando Paulouro - Jornalista e Escritor . Margarida Calafate Ribeiro - Universidade de Coimbra . Roberto Vecchi - Universidade de Bolonha

Eventos e Iniciativas de Cooperação

Page 132: Iberografias nº9

132

15h00 - Painel II. Heterodoxia: a cultura e as artes Apresentação e moderação: Pilar del Rio - Fundação José Saramago . Mário Vieira de Carvalho - Universidade Nova de Lisboa . Carlos Mendes de Sousa - Universidade do Minho 17h00 - Painel III. Eduardo Lourenço revisitado Apresentação e moderação: Fernando Catroga - Universidade de Coimbra . Barbara Aniello - Investigadora . Teresa Filipe - Investigadora . Maria Dulce Tavares Martinho - Investigadora 18h00 - Intervenção de José Gil 18h30 - Intervenção de Eduardo Lourenço - Ensaísta, Diretor Honorífico do CEI 19h00 - Apresentação de livros - Coleção Iberografias

7 de Junho de 2013 9h30 - Painel IV. Portugal e o seu labirinto: economia e sociedade Apresentação e moderação: António José Teixeira - SIC Notícias . Manuel Carvalho da Silva - Universidade de Coimbra . Pedro Lains - Universidade de Lisboa . Pedro Adão e Silva - ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa . José Carlos Vasconcelos - Jornal de Letras/Visão

CEI Actividades | 2013

Page 133: Iberografias nº9

133

Prémio Eduardo Lourenço 2013: Sessão de Entrega a Jerónimo Pizarro

A sessão solene de entrega do galardão a Jerónimo Pizarro teve lugar, na Guarda, no dia 7 de Junho de 2013. Jerónimo Pizarro, Professor de Literaturas Hispânicas e investigador da obra de Fernando Pessoa, foi o galardoado com o Prémio Eduardo Lourenço 2013.

A decisão foi anunciada por João Gabriel

Silva, Reitor da Universidade de Coimbra, que presidiu à reunião do júri do Prémio Eduardo Lourenço 2013, realizada na sede do Centro de Estudos Ibéricos, na Guarda.

Jerónimo Pizarro, cidadão da Colômbia e de Portugal, é professor da Universidade dos Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia e doutor pelas Universidades de Harvard (2008) e de Lisboa (2006), em Literaturas Hispânicas e Linguística Portuguesa. No âmbito da Edição Crítica das Obras de Fernando Pessoa, publicadas pela INCM, já contribuiu com sete volumes, sendo o último a primeira edição crítica de Livro do Desassossego. Em 2013, assumiu funções de comissário da presença portuguesa na Feira do Livro de Bogotá (Colômbia).

O júri decidiu atribuir o Prémio a Jerónimo Pizarro em reconhecimento do seu papel no desenvolvimento e divulgação dos estudos pes-soanos e da sua atividade como promotor da cultura portuguesa no espaço ibero-americano.

Eventos e Iniciativas de Cooperação

Page 134: Iberografias nº9

134

O Prémio anual, que tem o nome do ensaísta Eduardo Lourenço, mentor e diretor honorífico do CEI, destina-se a galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas.

Para além do Reitor da Universidade de Coimbra, o júri era formado por María Ángeles Serrano, Vice-Reitora da Universidade de Salamanca, Virgílio Bento, Vice-Presidente da Câmara Municipal da Guarda, Valentín Cabero e Fernando Rodríguez de la Flor, professores da Universidade de Salamanca e Simonetta Luz Afonso e Carlos Fiolhais, convidados pela Universidade de Coimbra.

Personalidades de relevo de Portugal e Espanha já foram galardoadas nas anteriores edições: Maria Helena da Rocha Pereira, Professora Catedrática de Cultura Greco-Latina

CEI Actividades | 2013

Page 135: Iberografias nº9

135

(2004), Agustín Remesal, Jornalista (2006), Maria João Pires, Pianista (2007), Ángel Campos Pámpano, Poeta (2008), Jorge Figueiredo Dias, Professor Catedrático de Direito Penal (2009) e César António Molina, Escritor (2010), Mia Couto, Escritor (2011) e José María Martín Patino, Teólogo (2012).

“Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras” 2013: exposição e lançamento do catálogo

Foi inaugurada a exposição e apresentado o catálogo “Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras 2013”.

Esta exposição destaca as 28 fotografias seleccionadas e uma mostra das mais de 1000 imagens submetidas à 2ª edição deste Concurso, documentando a diversidade de Territórios, Sociedades e Culturas Ibéricas nas temáticas “Paisagens, bio-diversidade e património natural”; “Espaços rurais, povoamento e processos migratórios”, “Cidade e processos de urbanização” e “Cultura e sociedade: diversidade cultural e social”.

O catálogo conta com uma amostra mais alargada das fotografias candidatadas, contextualizando cada tema com textos de António Gama, António Pedro Pita, Eugenio Baraja Rodríguez, Henrique Cayatte, Jorge Gaspar, Pedro Hespanha e Victorino García entre outros.

Através deste projecto o CEI procura superar o seu âmbito de atuação mais imediato, confinado à Raia portuguesa e espanhola, alargando-o a países de outros continentes onde figuram marcas da presença ibérica, promovendo desta forma o diálogo entre Territórios, Sociedades e Culturas e alicerçando uma nova cultura territorial mais responsável e inclusiva de pessoas e territórios.

Eventos e Iniciativas de Cooperação

Page 136: Iberografias nº9

136

Homenagem ao Prof. Jaime Couto Ferreira

A Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos decidiu homenagear o Prof. Jaime Alberto Couto Ferreira, antigo membro daquele órgão do CEI, com uma Conferência, no dia 03 de Julho de 2013, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (Guarda). Proferiram palavras de agradecimento/homenagem: o Presidente da Câmara Municipal da Guarda e membro da Direção do Centro de Estudos Ibéricos, Eng.º Joaquim Valente; o Dr. António José Dias de Almeida, um amigo e conterrâneo; a Dr.ª Antonieta Garcia, colega de liceu e amiga do homenageado; o Prof. Valentín Cabero, da Universidade de Salamanca, que falou em nome da Comissão Executiva; o Prof. Doutor Avelãs Nunes, ex Vice Reitor da Universidade de Coimbra, amigo pessoal do homenageado; o Prof. Doutor Joaquim Romero Magalhães, amigo e orientador da Tese de Doutoramento, e a quem se deve o convite para o Prof. Jaime Couto Ferreira integrar o corpo docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;

Foram lidas mensagens de amigos e colegas, que não podendo estar presentes, quiseram associar-se a esta merecida homenagem (Prof.ª Doutora Helena Cruz Coelho, Prof. Doutor Manuel Santos Rosa, atual membro da Comissão Executiva, em substituição do Prof. Jaime Couto Ferreira, Prof. Doutor José Manuel Pureza e Prof.ª Helena Freitas).

“Aspectos da Romanização das terras beirãs de Entre Tejo e Douro” e “25º Aniversário do Museu Nacional de Arte Romana de Mérida”: exposições

Foram inauguradas no dia 26 de setembro, na Galeria do Paço da Cultura da Guarda, as exposições “Aspetos da Romanização das terras beirãs de Entre Tejo e Douro” e “25º Aniversário do Museu Nacional de Arte Romana de Mérida”.

As exposições, promovidas pela Câmara Municipal da Guarda, em colaboração com a Câmara Municipal da de Celorico da Beira, Centro de Estudos Ibéricos, a Agência para a Promoção da Guarda, e a Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da Beira Interior.

A exposição “Aspetos da Romanização das terras beirãs de Entre Tejo e Douro” tem como objetivo a divulgação dos testemunhos da história da ocupação do território da Beira Interior no período da Antiguidade Clássica, numa área que vai do Douro ao Tejo, abrangendo ainda a vertente poente da Serra da Estrela.

Pretende-se proporcionar uma imagem coerente e atualizada do que foi a romanização da paisagem beirã, incidindo na apresentação das características gerais do povoamento da região, a rede dos assentamentos principais e as suas características tipológicas essenciais, enquanto locais de apoio dos moradores, romanos, indígenas e estrangeiros, à sua orga-nização social, à sua vida económica e às suas práticas culturais e religiosas.

A exposição “25º Aniversário do Museu Nacional de Arte Romana de Mérida” pretende assinalar o centenário do início das escavações oficiais em Augusta Emérita, que conta a sua história nos últimos cem anos.

CEI Actividades | 2013

Page 137: Iberografias nº9

137

3º Ciclo de Cultura Judaica

Na sequência da colaboração no 1º e 2º Ciclos de Cultura Judaica, o CEI colaborou com a Agência para a Promoção da Guarda (APGUR) no 3º Ciclo realizado nos dias 19 e 20 de junho, na Guarda.

II Jornada Técnica de Turismo de Fronteira – Oferta e demanda turística na raia ibérica

O Centro de Estudos Ibéricos, em colaboração com a Universidade de Salamanca, Universidade da Extremadura, Universidade de Vigo, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Universidade de Huelva, Eixo Atlântico do Noroeste Peninsular e Rede Ibérica de Entidades Transfronteiriças (RIET), realizou, na Guarda, no Auditório do Paço da Cultura, nos dias 12 e 13 de Setembro de 2013, a II Jornada Técnica de Turismo de Fonteira.

Esta Jornada visou fazer uma reflexão sobre o turismo na raia ibérica, como espaço de investigação conjunta e seus efeitos sobre o desenvolvimento regional e local. Consequentemente, fez-se uma análise comparada das políticas, planos e projetos turísticos de cooperação transfronteiriça, definindo a oferta de recursos turísticos e caracterizando a demanda nas distintas regiões de fronteira portuguesas e espanholas.

Simpósio Internacional Sociedade Cultura e Economia nas Regiões Serranas da Hispânia Romana

A Câmara Municipal da Guarda, em colaboração com a Câmara Municipal de Celorico da Beira, Centro de Estudos Ibéricos, a Agência para a Promoção da Guarda, a Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da Beira Interior, a Universidade Coimbra e o Museu Nacional de Arte Romana de Mérida, promoveram nos dias 26, 27 e 28 de setembro de 2013 o “Simpósio Internacional Sociedade Cultura e Economia nas Regiões Serranas da Hispânia Romana”.

O Simpósio conta com a participação de investigadores de três países europeus e pretende ser um lugar de encontro para a análise de aspetos diretamente representativos do quotidiano das regiões serranas e da forma como estas se relacionaram com o restante território, num processo onde romanidade e tradição se aliaram com a harmonia possível, garantindo séculos de paz onde antes largamente predominara a instabilidade e o conflito.

Eventos e Iniciativas de Cooperação

Page 138: Iberografias nº9

138

IV. Edições

Coleção Iberografias

Volume nº 21 - «Vida Partilhada – Eduardo Lourenço, o CEI e a Cooperação Cultural»

Este número compila vários textos de Eduardo Lourenço, concretizando uma edição comemorativa do 90º aniversário do autor. «Com esta iniciativa, manifestamos a nossa reconhecida gratidão a quem permitiu que “uma simples sugestão se convertesse em vida partilhada”. E assim, mais do que mostrar o nosso afeto é continuarmos a aventura dum Regresso sem Fim à Guarda e às nossas matriciais origens.» (do Prefácio)Ver em www.cei.pt

Volume nº 22- «Falar Sempre de Outra Coisa – Ensaios sobre Eduardo Lourenço»

O livro, da autoria de João Tiago Lima, reúne quinze ensaios escritos em ocasiões muito variadas, tendo grande parte deles aparecido anteriormente em publicações dispersas. No entanto, em todos os capítulos, ou pelo menos naqueles que compõem a primeira parte desta edição, o leitor encontrar um traço comum, pois são sempre ensaios ou interpretações, mais ou menos amplos, escritos sobre ou a pretexto do pensamento de Eduardo Lourenço. Deste modo, desenvolvem-se e aprofundam-se alguns dos tópicos já estudados em “Existência e Filosofia - O ensaísmo de Eduardo Lourenço” (2008, nº 12 da presente coleção Iberografias).

Ver em www.cei.pt

Volume nº 23 - «Metafísica da Revolução – Poética e Política no ensaísmo de Eduardo Lourenço»

O principal objectivo deste ensaio, da autoria de Teresa Filipe, é o de aproximar a noção de poética crítica desenvolvida na obra de Eduardo Lourenço, especificamente em Tempo e Poesia (publicado em 1974), a uma conceção original de Existência como Poesia. Desta aproximação, que procura um modo de ser mais autêntico, evidencia-se a necessidade de adoção de um pensamento meditativo-poético em detrimento de um pensamento categorizador, calculador ou ordenador. Entendemos ser isto informado por um “paradigma metafísico” singular, a famosa Heterodoxia.

Ver em www.cei.pt

CEI Actividades | 2013

Page 139: Iberografias nº9

139

Volume nº 24 - «Paisagens, Patrimónios e Turismo Cultural»

Coordenado por Rui Jacinto, este número da Coleção Iberografias reúne textos de vários autores escritos no âmbito dos Apoios a Trabalhos de Investigação 2012 e textos resultantes de comunicações proferidas no Curso de Verão 2012.Ver em www.cei.pt

Volume nº 25 Condições de vida, Coesão social e Cooperação Territorial

Este número da Coleção Iberografias, coordenado por Rui Jacinto, reúne textos de vários autores escritos no âmbito dos Apoios a Trabalhos de Investigação 2012 e textos resultantes de comunicações proferidas no Curso de Verão 2012.Ver em www.cei.pt

Catálogo“Transversalidades: Fotografia sem Fronteiras” - 2013

O Catálogo Transversalidades reúne uma profusão de fotografias selecionadas que foram submetidas à 2ª edição do concurso com o mesmo nome, documentando a diversidade de Territórios, Sociedades e Culturas Ibéricas nas temáticas “Paisagens, biodiversidade e património natural”; “Espaços rurais, povoamento e processos migratórios”, “Cidade e processos de urbanização” e “Cultura e so-ciedade: diversidade cultural e social”. Cada tema está contextualizado com textos de António Gama, António Pedro Pita, Eugenio Baraja Rodríguez, Henrique Cayatte, Jorge Gaspar, Pedro Hespanha e Victorino García entre outros.

Através deste projeto o CEI procura su-perar o seu âmbito de atuação mais imediato, confinado à Raia portuguesa e espanhola, alargando-o a países de outros continentes onde figuram marcas da presença ibérica, promovendo desta forma o diálogo entre Territórios, Sociedades e Culturas e alicerçando uma nova cultura territorial mais responsável e inclusiva de pessoas e territórios.

Edições

Page 140: Iberografias nº9

140