I. A Situação Contemporânea -...

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O Drama da Humanidade por Eric Voegelin traduzido por Mariano Henrique Rodrigues I. A Situação Contemporânea Senhoras e senhores, [deixem-me] chegar agora ao assunto em si, que está ligando ao que tenho a dizer sobre o drama da humanidade na situação contemporânea. Agora, a primeira coisa que talvez seja incomum, mesmo se usada como termo técnico, é falar de um drama da humanidade e não de um drama do homem. Veremos aqui porque há uma diferença importante. Mas isso nos dá um ponto de partida; temos que ser claros sobre isso: Qual é a concepção atual do homem em um sentido público? Você deve sempre distinguir entre como alguns filósofos especialistas lidam com tais problemas e o que é geralmente aceito e geralmente conhecido. Portanto, eu quero colocar primeiro, simplesmente enumerando- os, os termos em que o homem moderno é popularmente caracterizado de uma forma tópica geral. Então, em oposição, [quero] formular como as mesmas características devem ser caracterizadas a partir de uma posição crítica. Poderão ver melhor, por meio de uma clara enumeração de categorias, que existe uma grande lacuna entre a concepção publicamente aceita e o que é feito hoje na filosofia. Quando falamos do homem moderno e usamos a auto-caracterização dele na sociedade em que todos nós vivemos como homens modernos, encontramos termos tais como, primeiro, o homem moderno; então, frequentemente usado, é o peculiarmente moderno de ser um homem secular; então, [tendo] entrado muito na moda, começando especialmente com Toynbee, [há] a ideia de que o homem moderno está vivendo em uma era pós-cristã e, portanto, é um homem pós-cristão. Se o assunto adquirir algum tipo de polimento filosófico, o homem pós-cristão [será chamado] de homem imanentista ou de homem imanente ao mundo. Estes são os termos mais usuais em que falamos sobre o homem, se quisermos caracterizá-lo como um homem moderno. É claro que o homem moderno está vivendo em uma “era” – tudo o que é elegante vive em uma Era, e assim todos nós vivemos em uma era que é moderna ou algo assim, e vocês verão [em um momento] o que isso significa. Estes são os termos da auto-caracterização.

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O Drama da Humanidade

por Eric Voegelin

traduzido por Mariano Henrique Rodrigues

I. A Situação Contemporânea

Senhoras e senhores, [deixem-me] chegar agora ao assunto em si, que está ligando

ao que tenho a dizer sobre o drama da humanidade na situação contemporânea. Agora, a

primeira coisa que talvez seja incomum, mesmo se usada como termo técnico, é falar de

um drama da humanidade e não de um drama do homem. Veremos aqui porque há uma

diferença importante.

Mas isso nos dá um ponto de partida; temos que ser claros sobre isso: Qual é a

concepção atual do homem em um sentido público? Você deve sempre distinguir entre

como alguns filósofos especialistas lidam com tais problemas e o que é geralmente aceito

e geralmente conhecido. Portanto, eu quero colocar primeiro, simplesmente enumerando-

os, os termos em que o homem moderno é popularmente caracterizado de uma forma

tópica geral. Então, em oposição, [quero] formular como as mesmas características devem

ser caracterizadas a partir de uma posição crítica. Poderão ver melhor, por meio de uma

clara enumeração de categorias, que existe uma grande lacuna entre a concepção

publicamente aceita e o que é feito hoje na filosofia.

Quando falamos do homem moderno e usamos a auto-caracterização dele na

sociedade em que todos nós vivemos como homens modernos, encontramos termos tais

como, primeiro, o homem moderno; então, frequentemente usado, é o peculiarmente

moderno de ser um homem secular; então, [tendo] entrado muito na moda, começando

especialmente com Toynbee, [há] a ideia de que o homem moderno está vivendo em uma

era pós-cristã e, portanto, é um homem pós-cristão. Se o assunto adquirir algum tipo de

polimento filosófico, o homem pós-cristão [será chamado] de homem imanentista ou de

homem imanente ao mundo. Estes são os termos mais usuais em que falamos sobre o

homem, se quisermos caracterizá-lo como um homem moderno. É claro que o homem

moderno está vivendo em uma “era” – tudo o que é elegante vive em uma Era, e assim

todos nós vivemos em uma era que é moderna ou algo assim, e vocês verão [em um

momento] o que isso significa. Estes são os termos da auto-caracterização.

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Se usarmos agora um vocabulário empírico e filosófico crítico para caracterizar a

mesma situação, você teria que dizer que o homem moderno que é pretendido por esses

termos mais ou menos clichês é, em primeiro lugar, um fundamentalista, em segundo

lugar é analfabeto, em terceiro lugar ele está inflamado com fogo apocalíptico e, portanto,

está dividido entre estar assustado pelo mundo e cheio de expectativas de que algo

[melhor] virá. Essa atitude ambivalente, de estar amedrontado e expectante ao mesmo

tempo, é usualmente chamada de alienação, novamente um termo geral: alienação, um

“homem alienado”. Agora, deixe-me explicar em detalhes as características do

fundamentalismo, analfabetismo e apocalipse.

Frequentemente, [esses termos foram usados para caracterizar] um “composto”

peculiar, que o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (que se tornou vítima de Hitler)

chamou de “o homem chegou à maioridade” – esses três adjetivos. Agora deixe-me

elaborar sobre eles.

Disse que a primeira característica é o dogmatista, o fundamentalista. Por

fundamentalista entende-se uma peculiaridade da nossa civilização moderna, que já

começa no século XVI. Os grandes períodos de guerra do Ocidente desde o século XVI

são períodos de guerra intelectual – no sentido de guerras entre dogmas. Vamos chamá-

los brevemente de dogmatomaquias – “lutas entre dogmas”. No século XVI, essas eram

as lutas religiosas entre os vários tipos de teologias dogmáticas. No século XX, elas se

tornaram as grandes lutas entre várias ideologias dogmáticas.

Assim, temos uma série de dogmas cristalizando desde o século XVI,

aproximadamente os três que entraram na filosofia comteana da história. Começamos

com o dogma teológico; este é seguido pelo dogma metafísico; e o dogma metafísico, em

seguida, pelo dogma ideológico. Então, há uma série de três dogmas. Assim que você sai

de um, você cai no próximo. No presente, ainda estamos vivendo um dogma ideológico,

na medida em que dogmas teológicos ou dogmas metafísicos não são preservados. Agora,

quando falo de dogma, não me refiro ao que habitualmente se denomina ortodoxia, mas

ao tipo específico de literalismo ou fundamentalismo (e estes são de uma atitude religiosa

ou de uma atitude preocupada com a relação entre o homem e a divindade). Não resta

nada além da formulação literalista, que é o dogma, e não há a experiência original das

experiências que produziu o simbolismo [que foi dogmatizado], mas apenas o próprio

dogma é deixado. Assim, ao mesmo tempo que a situação chegou, em que apenas o

dogma é deixado, seja teológico ou metafísico ou ideológico, estamos na situação

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fundamentalista. Esta situação fundamentalista (por isso mencionei a situação toda), você

deve perceber, já dura mais de quatrocentos anos. Se em algum lugar, no momento,

estamos no final dessa atitude fundamentalista e estamos agora recapturando experiências

de várias fontes. É isso que quero dizer com fundamentalismo. O fundamentalismo é uma

das características do homem moderno.

Paralelamente ao fundamentalismo permanentemente agravante do dogma, temos

as tentativas, novamente desde o século XVI, de recapturar [...] as experiências originais,

que voltarão novamente ao dogma, para a realidade das relações entre o homem e sua

realidade circundante [...] Tais tentativas foram empreendidas, por exemplo, no século

XVII por Descartes e muito energicamente por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito

de 1807. A Introdução à Fenomenologia do Espírito de Hegel é um ensaio sobre a questão

de que, depois do dogmatismo do Iluminismo, temos de recorrer à experiência para

reconstituir a compreensão da relação do homem com a realidade circundante, incluindo

a realidade divina. Não se pode simplesmente continuar com um mero dogma, [cujas

origens não são compreendidas]. No século XX, paralelamente às guerras ideológicas,

também temos [...] os filósofos que tentaram recapturar a experiência. No início do

século, destaca-se um filósofo americano. Eu diria que o ensaio de William James de

1904, “Does Consciousness Exist?” tem talvez uma importância para o século XX

comparável às Meditações de Descartes no século XVI. Tentativas similares de recapturar

a experiência foram feitas por Bergson, especialmente em sua As duas fontes da moral e

da religião, e nos trabalhos metafísicos de Whitehead, começando em 1924. (Eu poderia

mencionar outros; por exemplo gosto muito do físico inglês Eddington, que fez uma boa

análise do problema da experiência representado pelo avanço das ciências naturais.)

Agora, este jogo duplo de um mergulho cada vez mais profundo no dogmatismo e

fundamentalismo, e nas tentativas mais ou menos desesperadas de recapturar a realidade,

a realidade da experiência, que durou quatrocentos anos, tem uma consequência muito

peculiar. E aqui chego à segunda característica, o que chamo de analfabetismo.

No nível do dogma, temos um alto grau de alfabetização. Em nenhum outro

momento tivemos um conhecimento tão perfeito de todos os tipos de religiões, religiões

comparadas, religiões de civilizações antigas, religiões de civilizações asiáticas

contemporâneas e assim por diante – mas não uma análise muito boa das experiências

nas quais elas repousam. Assim, a característica da instrução diz respeito à compreensão

das experiências e dos símbolos nos quais elas devem ser expressas. Por exemplo, há uma

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cultura extremamente pouco ativa de meditação no [sentido] cristão ou filosófico, ou

qualquer outro sentido, dos símbolos que repousam na meditação. (Eu [falarei] sobre eles

na segunda palestra, amanhã.) Nesse sentido, temos um analfabetismo peculiar em

relação aos problemas mais essenciais da realidade humana, juntamente com uma enorme

instrução em relação aos problemas periféricos. Essa é uma das peculiaridades – e tem

efeitos particularmente desastrosos sob as condições ocidentais – que levam à terceira

característica, à característica apocalíptica.

E isso é, que toda a nossa civilização ocidental, distinta digamos, de uma civilização

grega ou civilização egípcia, é uma civilização que cresceu através da aculturação. Ela

não cresce na base original das antigas civilizações cósmicas e do mito cosmológico,

puxando para sua substância daquela fase mais antiga, mas começa no nível relativamente

primitivo das tribos germânicas que assumem uma civilização altamente desenvolvida,

uma civilização mediterrânea de aproximadamente do século IV, V e VI. Este processo

de aculturação está agora exposto a grandes perigos, porque se esses conceitos culturais

que foram adquiridos, mas não foram originalmente fundamentados pela civilização, se

perderem, não há nada em que se possa recuar. Distinguindo-se de uma civilização grega

ou civilização egípcia, não há arcaísmo, por exemplo, possível na civilização ocidental,

porque a civilização ocidental não tem um período arcaico. Não existe tal coisa na

civilização ocidental como, por exemplo, o final do período egípcio, em que se pode

recorrer à escultura e às formas de arte do terceiro milênio a.C. E não se pode recorrer

aos vikings; eles são muito [remotos] de qualquer civilização desenvolvida.

Assim, desde os primórdios até o presente, não há coerência interna na civilização

ocidental. Mas quando você tem um processo de aculturação desse tipo, o processo de

desculturação, com a desordem resultante, é consideravelmente mais perigoso do que os

períodos de desordem em outras civilizações que têm conexões com uma ordem mítica

original. Não temos nada a que possamos recorrer. Portanto, o fenômeno da alienação,

que, como você verá, por exemplo, encontramos amplamente [presente] por volta de 2000

a.C. na grande crise egípcia, tem uma particular agudeza na civilização ocidental em

nosso tempo; [torna-se] uma alienação radical, porque não há nada em que se possa

recuar. Se certos conceitos culturais são destruídos, tem que se [tentar] recapturá-los de

alguma forma.

Esse é um dos problemas do século XX. Essa é a razão pela qual tantas pessoas

hoje, uma vez que não temos um mito próprio em nossa civilização, voltaram-se agora à

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arqueologia, à religião comparada, à literatura comparada e a assuntos similares, porque

esse é o lugar onde podem recapturar a substância que em nossa civilização aculturada e

agora desculturada está se perdendo. É por isso que as pessoas de repente se tornam zen-

budistas. Você tem que se tornar um zen-budista porque não há nada comparável na

civilização ocidental a qual você possa recuar, se um dogmatismo tiver acabado, como o

cristão tem na Era do Iluminismo. Portanto, nesse sentido, a partir do século XIX, temos

um desenvolvimento peculiar de construções históricas em que toda a história anterior é

descartada. Uma espécie de começo original é feito, sempre no presente, com o presente

estado de consciência, seja no sistema hegeliano, ou comteano, ou marxista, ou qualquer

um dos [outros] sistemas ideológicos do século XIX – uma espécie de construção

apocalíptica pela qual toda a história passada é descartada como mais ou menos

irrelevante, ou tendo sua relevância apenas como conduzindo ao seu ponto atual, [...] o

ponto moderno em que todos nós temos que viver. Vivendo em um ponto, jogando fora

toda a história passada, essa é talvez a característica do moderno humor apocalíptico.

Deve-se, no entanto, introduzir uma ligeira diferenciação (sobre a qual terei mais [a

dizer] na última palestra): os grandes pensadores apocalípticos do século XIX – acabei de

mencioná-los, homens como Hegel, Comte ou Marx – ainda baseiam sua visão

apocalíptica da história em um conhecimento muito minucioso de materiais históricos –

eles próprios são historiadores muito bons – enquanto hoje a posição apocalíptica

resultante geralmente é assumida, mas não assumida com todo o conhecimento histórico

que entrou em sua formação. Portanto, temos um peculiar apocalipse epigonal no século

XX que, por exemplo, resulta em uma atitude do que hoje na Rússia é chamada de

Comunismo Soviético, um tipo especial de comunismo que não é idêntico ao marxismo.

Os marxistas genuínos se opõem a esse tipo de comunismo. Há uma revolta interna, dos

marxistas contra os comunistas, que são o tipo epigonal do qual os burocratas são

recrutados. Os intelectuais voltariam a Hegel e Marx porque são onde se encontram as

origens, as origens existenciais desse apocalíptico. Assim, dessa maneira você tem um

dogmatismo epigonal peculiar que nem mesmo retém o conhecimento histórico mais

antigo que ainda estava presente nas décadas de 1830, 1840 e 1850. Foi-se tudo.

Deste modo, você tem, portanto, um processo de desculturação peculiar, resultando

em relegar a um reino de ignorância prática as áreas da realidade simbolizadas pelo mito,

pela filosofia, pelos símbolos da revelação e pelo misticismo. Estas são as quatro

principais simbolizações das experiências originais e, juntamente com as experiências

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originais, são na sua maioria retiradas do discurso intelectual atual. Quando digo isso,

estou pensando em coisas bastante concretas. Por exemplo, na área de filosofia anglo-

americana, o movimento filosófico dominante ainda é, pode-se dizer, a análise britânica;

e sem criticar de modo algum a análise britânica, se você restringir seu conhecimento à

análise britânica, terá eliminado todas as áreas da realidade simbolizadas pelo mito,

filosofia, revelação e misticismo. Praticamente tudo o que é importante na vida é

removido se você se limitar a esse tipo de análise lógica, o que é bastante sólido em si

mesmo. Sou um grande adepto a esse respeito da análise britânica, mas ela está confinada

a um tipo de lógica que toma seu modelo do ato da percepção sensorial. E todas essas

outras áreas não são áreas da percepção sensorial; como tal, elas são completamente

diferentes.

Neste desenvolvimento que acabei de caracterizar, você tem alguns marcos

excepcionais. Você pode, por exemplo, ver o progresso desse processo de desculturação

na mudança do significado do termo imanência do século XIX para o XX. Quando você

olha para os autores na primeira metade do século XIX, digamos, em homens como De

Quincey ou Browning, ou Matthew Arnold, que já se preocupavam com o problema de

Deus desaparecendo deste mundo, a palavra imanência é sempre usada no sentido de que

Deus, de alguma forma, desaparece e deixa de ser imanente. (Que ele é transcendente de

qualquer maneira, e além disso deve ser imanente, é dado como certo). Mas de alguma

forma ele deixa de ser imanente. O termo imanência aparece nessa conexão. Hoje, se você

ler literatura contemporânea, descobrirá que a imanência não é caracterizada como uma

ausência de Deus, mas como uma presença do homem; isto é, o homem é o sujeito de

quem a imanência é predicada, o homem é muito imanente. Esse é o significado no qual

o termo é usado agora, enquanto Browning ou De Quincey ou Matthew Arnold diriam

que Deus deveria ser imanente e infelizmente não é imanente. Nessa mudança no

significado do termo imanência de uso comum na literatura, pode-se ver como a ênfase

mudou de uma medida de consciência onde o problema repousa – que algum pedaço da

realidade está se perdendo porque não é mais imanente – para, pode-se dizer, uma

aceitação inconsciente da perda e a afirmação de que “o homem é o sujeito da imanência”.

Você tem um homem imanentista agora, e não uma falta de um Deus imanentista.

Da posição que acabo de esboçar, temos que distinguir entre as construções

imanentistas da história: o homem é construído em função da história em tais filosofias

da história como as de Comte, Hegel e Marx, com um presente apocalíptico, isto é, um

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presente em que toda a realidade passada é relegada a um passado morto e todo o presente

está concentrada neste presente empírico no tempo, carregado de expectativas de que algo

significativo virá desse presente. Essa é a característica da atitude apocalíptica,

projetando-se no futuro e esquecendo o passado: o passado morto e o futuro vivo. Com

relação a tal oposição de um passado morto ao futuro vivo, deve-se, por exemplo, estar

ciente de que essas ideias de um tempo que flui de um passado para o futuro em uma linha

simbolizada – apenas uma linha que passa pelo ponto atual – é uma concepção, eminente

da palavra futuro, que não se torna corrente antes de meados do século XVIII. Até meados

do século XVIII não temos prazo para o que hoje chamamos de “o futuro” – um futuro

melhor, um futuro mais pacífico ou sabe-se lá o que. Esse termo, [ou] significado de

futuro, não existia em nenhuma língua europeia antes de 1750 – mas um inteiramente

diferente ao qual retornarei atualmente.

Contra tais construções imanentistas da história, desenvolverei nessas palestras um

conceito diferente de história: a história como um campo aberto da existência. A diferença

entre as construções que acabamos de caracterizar e a que apresentarei aqui pode ser

formulada esquematicamente da seguinte maneira. Se você tem esse conceito de tempo

do final do século XVIII, teria que ter algo parecido com o tempo indo nessa direção. [A

partir de agora, nesta palestra, Voegelin escreve intermitentemente em um quadro negro.]

Se você tiver o problema do tempo aberto, você sempre terá que considerar que em

cada ponto de presença nesta linha [Voegelin traçou uma linha no quadro] nós não

estamos nos movendo somente nesta linha, mas na abertura para a realidade divina, de

modo que cada ponto de presença é, como T.S. Eliot formulou, um ponto de intersecção

do tempo com a eternidade. Esse é o ponto da presença. Assim, toda a série do tempo não

seria uma sequência em uma linha, mas uma série de pontos presentes nos quais nenhum

jamais é passado, mas apenas passado em relação ao seu presente, não realmente passado.

Ontologicamente, na verdade, é sempre em relação à presença, que é a mesma presença

que constitui o meu presente aqui e agora. Nesta concepção de uma presença divina, que

é a presença em cada ponto presente na linha, depende toda concepção de história que faz

sentido, todo sentido de história. Não haveria motivo algum para nos preocuparmos com

o que aconteceu há três mil anos, ou três minutos atrás, a menos que houvesse uma razão

talvez para relembrar, porque está ligado ao nosso ponto atual três minutos depois, porque

tem uma presença assim como o nosso ponto tem uma presença. Assim, uma formulação

diagramática adequada não seria a linha, mas você teria que fazer com que fosse algo

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como um fluxo de presença, como eu a chamo, com uma direção na qual há

permanentemente uma tensão entre os polos imanentes e transcendentes. Isso seria um

bom diagrama de tempo, mas não uma linha reta.

Mas eu deveria dizer mais algumas palavras sobre isso, porque, como eu disse, esse

ponto de linha, esse diagrama de linhas de tempo, surgiu no século XVIII e Kant tinha já

seu problema com essa concepção de uma linha reta do tempo. Porque ele tinha que se

perguntar: se nós temos uma linha tão direta do tempo indo em uma direção e se

aproximando de um ponto de perfeição em algum lugar num futuro indefinido, em um

futuro indefinido você teria, então, por um lado, o “Indefinido” e, por outro lado, em letras

maiúsculas, a “PERFEIÇÃO”. Essa é a sua concepção de história, a história como uma

abordagem indefinida ao reino da perfeição. E então ele se perguntava: quão grande é a

nossa perfeição em qualquer tempo finito em que vivemos? – porque, afinal de contas,

não vivemos infinitamente, mas apenas por um período de tempo.

Agora, pegue um pedaço finito de tempo, um pequeno “t” (que pode representar

dez anos ou cinquenta anos ou um século ou uma vida humana), e então se pergunte:

Quão grande é o progresso dentro desse tempo finito? E então você teria que formular

que esse tempo finito é igual a grande “PERFEIÇÃO”, de modo que a pequena

“perfeição” esteja relacionada à perfeição completa como “t” para infinito, que lhe dá

então a equação, “t” é o maiúsculo “T” vezes “t” pelo infinito, que é igual a...que?

[Membro da audiência:] “Zero.” Se você tem essa concepção de uma linha de tempo em

perfeição indefinida, todo progresso finito no tempo é zero, então esse é um termo ilógico.

Eu estou operando com a concepção de um fluxo de presença. A propósito, na

terceira palestra, teremos que lidar mais com essas coisas, mas deixe-me continuar com

essa questão de tempo apenas mais um passo. Por exemplo, Merleau Ponty deu, em sua

Fenomenologia da percepção, outra analogia muito divertida do problema do tempo. O

tempo não é senão uma relação entre mim e o que imagino ser o tempo. Portanto, se eu

tenho essa linha aqui, agora, não posso falar sobre isso de forma abstrata, mas tenho que

me colocar em relação a ela. E se eu imagino que seja um fluxo, e eu permaneço como

uma pessoa aqui na fronteira daquele rio de tempo, ele passa por mim nessa direção, um

fluxo presumivelmente terminando em algum tipo de oceano. Portanto, todo o tempo

passado está aqui no futuro e todo o tempo futuro volta aqui de muito tarde no passado.

Esse é um conceito adorável! – que tem uma importância considerável na realidade,

porque esse tempo passado é o que tentamos recuperar de vez em quando. Por exemplo,

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De Quincey tem essa simbolização em seu “Savannah-la-Mar”, que todo o tempo em sua

preocupação é o passado de sua vida, aparecendo como um subterrâneo ou submerso, e

tem que ser recapturado de alguma forma, iluminado talvez. É o tempo passado, e você

tem um problema semelhante na Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, o tempo que se

perdeu, e esse é o tempo com o qual você está ocupado, se você operar com tal concepção

de uma linha.

Claro que você pode pegar outra situação. Você pode supor que você está no meio

do fluxo e você é infinito: então o fluxo passaria por você. Você seria uma constante em

algum momento, e então, de fato, você estaria na corrente fluindo com ela para o futuro

– o que tem outra consequência muito interessante que não posso entrar agora.

Mas vejam, só quero afrouxar um pouco a sua ideia sobre o tempo. Não é uma

questão fácil, mas você pode usar todo tipo de simbolismo. Você deve estar ciente de que

você usa simbolismos, porque você usa simbolismos, e que a pergunta “Qual é o

simbolismo adequado a ser usado?” só pode ser resolvida por uma análise da realidade, e

não apenas falando sobre o tempo. É preciso analisar a realidade. Aqui estou usando o

conceito do fluxo de presença, ao qual terei que voltar agora, em detalhes. Essa é a posição

geral da história que usarei aqui.

O título dessas palestras é “O Drama da Humanidade”. Eles não são sobre o homem,

mas sobre a nossa humanidade. Ora, por quê? Estamos acostumados, por exemplo, a falar

sobre a natureza do homem, e então você geralmente tem as grandes lutas entre os adeptos

da filosofia clássica, que lhe dirão que a natureza do homem é uma constante e os

intelectuais excitados apocalipticamente, que lhe dirão que a natureza do homem muda e

que mudará cada vez mais no futuro, [que] todas as nossas expectativas para o futuro e

para um novo reino na terra dependem de mudanças na natureza do homem. Agora,

obviamente, aqui [temos] novamente um problema lógico, porque se pela natureza de

qualquer coisa você quer dizer os recursos constantes, eles não podem mudar, porque

então eles não seriam constantes. Isso é logicamente impossível: por definição, uma

natureza não pode mudar.

Mas há um problema real, no entanto, e esse problema real já está presente no

momento em que a concepção da natureza do homem é formada na antiguidade, na

filosofia clássica. É aí que ela é formada, e surge a concepção de que o homem tem uma

natureza no sentido de algo como qualquer objeto da percepção sensorial – como uma

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tabela que é desenvolvida de acordo com um plano ou como uma planta que obviamente

tem um plano de organismo em seu crescimento e assim por diante. Esse é o ponto

decisivo; vê-se que ainda estamos muito próximos – mesmo em nosso empirismo inglês

desde o século XVIII – à concepção aristotélica de que uma metafísica do homem precisa

ser formulada em termos de forma e matéria. Então, ou o artefato ou o organismo é o

modelo em que você filosofa, mas não é realmente o homem.

Se você transferir o modelo de uma forma e a matéria organizada por essa

determinada forma, para pessoas humanas ou para a sociedade, se terá dificuldades

porque a sociedade não é um artefato ou um organismo, mas algo totalmente diferente.

Ela está envolvida em algum tipo de processo que não é o mesmo que o modelo de um

artefato ou organismo. Portanto, se depara com o problema de que há um processo de

mudança em conflito com a forma assumida. Só é possível resolver esse problema

admitindo que há uma dificuldade aqui e correr o risco. Existem obviamente

características estáveis suficientes no homem para reconhecê-lo como um ser humano e,

obviamente, suficiente de processo nele para reconhecer que existe um processo

acontecendo nele, não apenas no nível orgânico, como um animal, mas também nos níveis

mental, intelectual e espiritual.

Tal processo da alma humana (ou o que quer que você queira chamá-la onde este

processo ocorre, porque não ocorre no organismo, mas é um processo mental ou

espiritual) produziu sua própria forma adequada de simbolização que é chamado

autobiografia. Onde quer que haja consciência do homem em processo, o problema da

autobiografia começa a se desenvolver como um assunto interessante. Caso contrário,

você teria apenas um tipo sólido, que nunca muda. Mas quando você se torna consciente

dessa mudança, da importância da mudança, os problemas autobiográficos começam a se

apresentar. Também na antiguidade, é aí que começa a autobiografia. Sempre temos o

problema de que, por um lado, existem características estáveis no homem, por outro lado,

há um processo em andamento, especialmente o processo de descobrir que o homem

possui características estáveis. Porque o homem como assunto a ser definido em qualquer

termos em tudo não é onipresente na história, mas surge na civilização grega com

definições específicas do homem como, por exemplo, o animal rationale (animal

racional), o zoon noun echon – em grego um animal que tem a mente ou nous ou razão –

e tal definição em si é um evento na história da humanidade.

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Agora, uma característica deste evento, como aconteceu na filosofia grega, é que

resulta uma formulação da natureza do homem em termos estáveis. Tal definição como

“o homem é um animal racional”, animal rationale, é o resultado; mas não incluído nesta

observação [é o fato] de que a observação em si é um novo evento na história. Com isso,

você tem uma estrutura peculiar de toda filosofia clássica da ordem. Você tem uma visão

da estrutura pessoal do homem como uma estrutura estável em uma dada situação da polis

tardia.

Esse é, por exemplo, o conteúdo típico da ética aristotélica: a estrutura do homem

e a estrutura de seu comportamento, através do comportamento de acordo com sua

natureza na sociedade e no mundo. Ou você pode expandir a imagem do homem como a

perfeita estrutura estável em uma perfeita estrutura estável da sociedade como deveria

ser. Esse é o conteúdo do paradigma, ou melhor a constituição, na política aristotélica ou

na política platônica. Mas em nenhum lugar da série de Ética e Política, que são afinal os

dois volumes de uma filosofia da ordem, está um terceiro volume que teria que ser

chamado de Históricos, onde se entraria no problema: que tais características estáveis

como descrito na Ética e na Política são descobertas em um certo ponto da história, em

Platão e Aristóteles, e por que, e o que foi, antes e o que poderia vir depois. O personagem

do evento em si não se torna temático, apenas o resultado.

Se desdobrado, este elemento reflexivo – que é o elemento de processo na natureza

do homem – conteria o problema de que a natureza do homem, a qualquer momento,

embora tenha características estáveis, [também] contém [um] auto-entendimento

específico do homem em suas relações com todos os outros setores da realidade: o mundo,

Deus e sociedade. Assim, todas essas outras relações são concebidas de uma certa maneira

que não foram previstas antes, e de uma maneira em que não concebemos mais hoje. Esse

elemento de prever a natureza do homem [como] compreender a si mesmo, [e]

desenvolver essas imagens de auto-compreensão além do resultado, [ou a] imagem de

uma humanidade específica [é o que eu chamo de humanidade]; (isto é, não apenas o

reconhecimento da estrutura do homem, mas [o reconhecimento] da humanidade no

sentido de ser homem de uma certa maneira em relação a todos os outros elementos da

realidade). [A humanidade é] distinta de uma natureza estável do homem; é isso que

significa a humanidade.

Isso nos deixa com várias definições com as quais posso concluir esta seção. A

Humanidade significa o homem em um modo de compreender a si mesmo em sua relação

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com Deus, mundo e sociedade, e esses modos mudam. A História seria o drama (se um

significado no qual pode ser descoberta) da humanidade, da auto-compreensão do

homem. Com isso quero deixar a parte introdutória, na esperança de que tenha cumprido

minhas obrigações a esse respeito e possa agora abordar o assunto das três palestras.

Aqui temos que lidar com o plano das três palestras. Desenvolverei apenas a

primeira palestra e mencionarei as outras. Os títulos das três palestras são “O Homem no

Cosmos”, “A Epifania do Homem” e “O Homem na Revolta”.

II. O Homem no Cosmos

Vou agora dar novamente apenas em forma de diagrama – porque às vezes é mais

persuasivo do que qualquer outra declaração elaborada – a relação desses três tópicos

entre si. Se você considerar o nível da experiência cósmica, um belo pudim como esse

[Voegelin desenha um diagrama no quadro], como incluindo todas as realidades, como

homem, Deus, céu, terra, sociedade, e Deus sabe mais o quê: com essa ordem dada, você

tem uma espécie de comunidade ordenada de parceiros em toda essa realidade global.

Quando, nessa realidade global, surge o elemento da consciência no homem até o nível

da autoconsciência, você receberá um pequeno globo neste sentido, representando a

consciência do homem em que ele está consciente de ser em relação ao fundamento divino

da existência. Essa é a constante real de consciência quando aparece. Agora, isso seria

um evento dentro da realidade cósmica, a diferenciação da consciência.

É possível, claro, isolar essa consciência contra o resto da realidade cósmica em

que ela surgiu. Então você teria um segundo globo contendo apenas essa parte aqui, com

essa tensão em que não há nada além de Deus como um polo transcendente e o homem

como um polo imanente, e todo o resto da realidade é esquecida. Essa é uma possibilidade

que realmente aconteceu. Então você pode continuar e esquecer, por exemplo, o polo

transcendente – o homem raramente se esquece de si mesmo. E então não resta nada além

de uma espécie de imanência decapitada, e essa é a situação na concepção contemporânea

do homem. Você tira um setor da realidade da realidade maior, isola-a contra toda a

realidade cósmica, chama isso de realidade da filosofia ou revelação, e então você corta

isso na metade, decapita a metade transcendente, e você fica com a parte inferior realidade

imanente.

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Esta primeira parte, este primeiro diagrama, seria o homem no cosmos; a segunda

parte isoladamente, a epifania do homem, a diferenciação dessa consciência da realidade

geral do cosmos; e então a quebra em dois, o abandono desta tensão para o Fundamento

Divino, e o homem em revolta seria a terceira parte. Isso é, naturalmente, um rascunho

muito difícil, mas você verá que não está muito longe da verdade. Então é isso que eu

quero dizer sobre a organização dessas palestras.

A primeira palestra é sobre o homem no cosmos, e lá temos que lidar com a

experiência primária do cosmos representada pelo primeiro pudim redondo. Nessa

realidade, os locais históricos são as antigas civilizações, especialmente as civilizações

do Egito, Suméria e Babilônia. Agora vamos ser claros sobre a terminologia: cosmos [é

o termo] temos que nos referir a esse tipo de experiência. (Eu explicarei mais tarde. É um

termo grego tardio, não um termo que aparece nas antigas civilizações orientais.) Nas

civilizações cosmológicas originais, não existe um termo abrangente para o cosmos; aí

falamos apenas das realidades que concretamente temos lá, por exemplo, céu e terra.

(Mesmo quando você entra no período profético, o melhor que você pode prever é um

“novo céu” e uma “nova terra”. Você às vezes vê isso traduzido como “novo mundo” ou

“novo cosmos”, mas a realidade cosmológica original é um “céu” e uma “terra”, o céu e

a terra que você pode ver. Não há conteúdo especulativo ainda. Ou: os “deuses, o homem

e a sociedade”, ou dentro da sociedade: um “governante, o rei e o povo”. Esses são os

termos em que se fala da realidade nos textos literários das civilizações cosmológicas.

Um termo para o cosmos [em si] não aparece. Existe apenas um termo para a ordem desta

“comunidade de parceiros” em algum tipo de comunidade para o qual não temos termo,

exceto o termo grego cosmos.

Eu quero especialmente chamar sua atenção para o problema de que os deuses são

intra-cósmicos. Não existe tal coisa como um Deus transcendente ao mundo em qualquer

civilização cosmológica; e por um tempo muito longo, mesmo na revelação e na filosofia,

não há Deus transcendente ao mundo. Esse é um problema muito peculiar, como esse

problema surge. Mas nas civilizações cosmológicas, os deuses são intra-cósmicos, parte

do cosmos.

Com isso em mente, deixe-me dizer uma palavra sobre as formas expressivas, as

simbolizações, nas quais tal ideia, tal experiência, é expressa. Geralmente é chamada de

mito. E aqui a ciência prática ainda está em considerável dilema metodológico. Os

religiosos e mitólogos e arqueólogos comparados usualmente assinam as antigas

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concepções de mito, que estão enraizadas na fenomenologia geral da religião. Isso é

[dizer] que eles são fundamentalistas: o fenômeno de um símbolo é aproveitado e não se

volta para a experiência que o produziu. Portanto, se você considerar o mito como o

fenômeno de um símbolo, chegará a tal definição do mito que encontra na obra Mito e

Realidade de Eliade. Deixe-me ler isso para você, porque assim você verá mais

facilmente qual é o novo problema. Eliade define o mito:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças

às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade

total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um

comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”:

ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.

Contra essa definição muito aceita de mito, gostaria de fazer as seguintes exceções:

Em primeiro lugar, quando você vai empiricamente aos materiais, os documentos

literários babilônicos de uma civilização cosmológica, os egípcios, os sumérios, os

assírios, ou mesmo os hindus, apenas uma porcentagem muito pequena de todos os

materiais são histórias de qualquer coisa. Quando você tem que lidar, por exemplo, com

a tensão entre um Governante e os Deuses, ou um Governante e o Povo, ou com a invasão,

digamos, dos Hicsos, aquele exemplo complexo no Egito, nenhuma história dos deuses

dirá a você qualquer coisa. São formas de expressão bem diferentes das histórias.

Portanto, a formulação “Mito é sempre a narrativa de uma criação” está errada em face

dos fatos empíricos. Existem muitos [outros] tipos de mitos.

O segundo ponto é que os deuses são designados como “seres sobrenaturais”. Isso,

é claro, é inadmissível. O termo sobrenatural, em oposição ao natural, é a terminologia

escolástica muito usada por Tomás de Aquino. Do escolasticismo, como parte do dogma,

entrou no dogmatismo iluminista no século XVIII. Eliade é, ao contrário, um ideólogo do

Iluminismo a respeito dos escolásticos. Nesse contexto, falamos de sobrenatural em

oposição a natural. Como indiquei, nenhum homem que vive em uma civilização

cosmológica jamais soube que os deuses eram uma natureza suprema contra uma

natureza; havia o céu e a terra, os deuses e os homens e o rei, e tudo fazia parte dessa

parceria. Nada nele era mais natural do que qualquer outra coisa. Assim, os termos natural

e sobrenatural não fazem sentido quando usados anacronicamente em relação à

civilização cosmológica. Isso faz sentido no século XIII do escolasticismo, que faz

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sentido no Iluminismo sob a influência das ciências naturais, mas não faz sentido quando

você lida com uma civilização antiga.

Por essa razão, não se pode aceitar essas definições nominalistas. Tem que se ter

uma definição realista, que é muito mais simples. Pode simplesmente dizer: o mito é

aquele corpo de símbolos que de fato foram encontrados adequados pelos membros de

tais civilizações para expressar suas experiências do cosmos em que viviam. Ninguém

pode objetar a isso – você simplesmente volta a fatos empíricos.

Agora deixe-me fazer bem que eu disse, que no mito você tem muitas coisas que

não são histórias. Por exemplo, listei nove tipos diferentes. Deixe-me apenas enumerá-

los; lidarei com dois deles como exemplos.

1. São simbolizações da ordem estabelecida do império. O império é uma analogia

do cosmos; você pode chamá-lo de um pequeno cosmo – um cosmion. Tais

formulações da analogia entre a estrutura do império e a estrutura cósmica são,

por exemplo, encontradas no famoso preâmbulo do Código de Hamurabi –

nenhuma história em absoluto; antes, estruturas paralelas entre o céu e a terra. O

império, o pequeno cosmion, é paralelo aos céus.

2. Então, um caso em que você tem história, mas uma história de um tipo muito

peculiar, um mito da fundação do império. No caso de um estabelecimento, o mito

é simbolizado pelo paralelo, a analogia, enquanto o mito da fundação deve ser

simbolizado por uma ação entre os deuses. A forma não é estritamente uma

história, mas um drama, como a Teologia de Mênfis, provavelmente de 3000 a.C.,

um drama que conta a história da fundação do Egito como um drama encenado

entre os deuses.

3. Então, nos períodos de crise, por exemplo, no Primeiro Período Intermediário –

cerca de 2200 a 2000 a.C. foi o auge da crise no Egito – você encontra discussões

altamente intrincadas sobre os argumentos céticos contemporâneos, com a análise

existencial das duas existências que levam a essa confusão. Voltaremos a isso.

4. Ou você tem canções literárias expressando o ceticismo dos deuses, não uma

história dos deuses, mas expressando ceticismo do homem em relação às histórias

contadas sobre os deuses; por exemplo, a “Canção do Harpista” – canções do

ceticismo.

5. Então, um corpo vasto é aproximadamente equivalente ao que você encontraria

no nível comum do senso comum, no século XVIII [significado dessa palavra], a

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literatura da Sabedoria; nada sobre os deuses, apenas sobre o homem, mas neste

contexto de uma civilização cosmológica.

6. Então as grandes expressões de derrota, vitória e restauração do império;

nenhuma história, mas a relação entre o governante e os deuses. Esse é o

problema.

7. Então as renovações rituais da ordem nos Festivais de Ano Novo, o que Eliade

geralmente traz sob o “eterno retorno”. Não há “eterno retorno” em qualquer

civilização antiga; há apenas uma renovação rítmica e o ritmo não é uma

renovação eterna. Deixe-me explicar brevemente, porque ainda há muito mal-

entendido sobre isso. Quando você tem uma renovação rítmica, você tem algo

parecido com uma onda senoidal, como a primavera anual, o verão, o outono e o

inverno, o tempo indo e vindo. Mas então há algo como um retorno, um eterno

retorno do mesmo, e isso seria realmente um círculo de eventos. [Aristóteles toca

sobre esse] problema, quando ele faz a pergunta: “Se eu estou vivendo neste ponto

aqui, sendo esse o meu presente, e então eu tenho um evento histórico, como a

guerra contra Tróia, eu posso me fazer a pergunta: Qual o caminho que estou mais

perto da guerra contra Tróia, indo para trás, ou indo em frente?”. Isso seria o

eterno retorno. Mas tal retorno eterno em uma concepção histórica não é

encontrado antes do século VII a.C., no Hinduísmo e na Hélade. Nenhuma

civilização antiga tinha qualquer concepção de um eterno retorno, mas apenas de

renovação rítmica. Isso também não era uma história, mas a questão da renovação

ritual.

8. Então outra coisa, que não se encaixa apropriadamente no [termo] mito no sentido

de uma história dos deuses, é a construção da história unilinear, desde o começo

da criação do mundo, até o presente imperial, até o Império. Nós temos – isso

também é muito fácil de [averiguar] – uma história unilinear em civilizações

antigas, mas não temos história cíclica. Não há conceito de história cíclica nas

civilizações antigas dos impérios cosmológicos, mas há história unilinear.

Voltarei a isso na segunda palestra.

9. E aqui temos todos os tipos de sintomas de um avanço para além da experiência

cósmica na direção de um começo no tempo, [...] uma extrapolação para o passado

até o ponto de origem, ou [...] para a origem no transcendente. Temos

especulações ou extrapolações de uma longa história passada [...], extrapolando

[uma parte] de volta para o começo – isto é, uma maneira de colocá-lo – ou

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orações dirigidas, sem o benefício de outras partes da realidade, a uma Deus

desconhecido, além de todos os deuses conhecidos. Assim, o problema do Deus

desconhecido já é um problema na civilização egípcia. O principal deus do

período posterior é Amon, e a palavra egípcia Amon significa “o oculto”. Assim,

o deus oculto, que se torna muito relevante no gnosticismo, já está presente nos

Hinos a Amon, no mais tardar no século VIII a.C.

Aqui temos todos os tipos de literatura e expressões simbólicas, que são sempre

agrupadas como mitos e das quais apenas uma pequena parte tem o caráter de uma

história. Como já vimos da enumeração, todos os problemas e situações humanos com os

quais estamos familiarizados [são também mitos]. A questão da perda da existência, as

questões da alienação, da crise, do império, da crise pessoal, e assim por diante, todas

essas questões são objeto de expressão em um meio peculiar, então [não há] apenas uma

concepção peculiar disso ou daquilo.

Agora eu quero lhe dar um ou dois exemplos do que parece em tempos de crise, e

que expressão no meio da civilização cosmológica realmente é, o que parece se não é uma

história. Quero dar dois exemplos: um – talvez eu ainda possa fazer isso hoje – do ponto

de vista do governante, e o outro exemplo do ponto de vista do cidadão comum.

Do ponto de vista do governante, há uma lacuna muito interessante no texto. Não

há termo para isso, uma declaração da única mulher faraó, a rainha Hatshepsut (1501-

1480 a.C.), por ocasião da restauração da ordem após a expulsão dos nômades invasores,

os hicsos. Deixe-me ler essa informação da rainha para as pessoas (Ancient Near Eastern

Texts Relating to the Old Testament, James B. Pritchard, 1969, p.231 ):

Ouça todas as pessoas e pessoas, por mais que sejam:

Eu fiz estas coisas através do conselho do meu coração.

Agora ela conta o que está fazendo:

Eu não dormi esquecida,

mas restaurei o que foi arruinado

Eu levantei o que tinha se despedaçado,

Quando os asiáticos estavam no meio de Avaris, no Reino do Norte,

e entre eles havia nômades, derrubando o que fora feito.

Eles governaram sem Rá [o deus egípcio] e Ele não

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agiu através do comando divino até a minha majestade.

Essa foi a crise. Agora vem o resultado da restauração:

Eu estou estabelecida nos tronos de Rá

Eu fui predita pelos limites dos anos como aquela que nasceu para conquistar.

Eu venho como a serpente-uraeus de Hórus, flamejante contra o meu

inimigos.

Eu distanciei aqueles a quem os deuses abominam

E a terra levou suas pegadas.

Essa foi a restauração e agora a interpretação:

Este é o comando do Pai dos meus Pais

Quem vem em seus tempos determinados, de Rá [o deus do sol],

E não deve ocorrer dano ao que Amon ordenou.

Meu próprio comando dura como as montanhas.

O disco solar brilha

E espalha raios sobre os títulos da minha majestade,

E meu falcão é alto acima do meu nome comum

pela duração da eternidade.

Agora aqui você vê o que é uma expressão mítica. Aqui um governante fala depois

que os hicsos foram expulsos do país. E agora vem, em dois pares ordenados, primeiro, a

conquista da rainha. Ela restaurou o que havia sido arruinado, e a característica da ruína

é: esses invasores governaram sem o deus sol. Assim, há regra sem regra apropriada: “e

Deus não agiu por ordem divina até a minha majestade”. Essa é a ordem que é mediada

pelo faraó dos deuses. Deus não deixou a ordem fluir de si mesmo através do faraó para

o império das pessoas que viviam no império. Essa é uma definição de desordem. Agora,

quando é restabelecido, o faraó é novamente o mediador da ordem divina para o povo,

graças ao deus.

Então vem na segunda parte, novamente opostos um ao outro: “Este é o comando

do meu Pai” e “Meu próprio comando dura como as montanhas” – sempre o paralelo

entre o papel do rei e da ordem. O termo para a ordem no egípcio, a propósito, é ma'at.

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Então isso vai através dos deuses. O ma'at é dispensado dos deuses através do faraó para

o império, os administradores do povo. Quando esse processo é interrompido, é claro que

há desordem. Você pode chamar isso de uma história. Não sei se você acha que é uma

questão, mas é uma descrição da dinâmica da ordem em termos das relações entre os

deuses, o rei, o povo e os invasores.

Aqui está o problema. Nesse tipo de problema, você também tem os plebeus

sofrendo amargamente. Na famosa “Disputa de um homem, que quer cometer suicídio,

com sua Alma”, [o assunto] não é o faraó, mas um plebeu. Ele quer cometer suicídio

[porque] há desordem; ele não quer viver nesse tipo de império. (Eu só quero dar alguns

exemplos da questão, não posso dar toda a análise porque o tempo já avançou muito. Mas

pelo menos alguns exemplos.) Ele descreve o mundo social desordenado em que vive.

Agora olhe para as formulações: Elas são dadas em tercetos em que a primeira linha é

repetida. Ele diz, por exemplo,

Para quem posso falar hoje?

Os companheiros são maus;

Os amigos de hoje não amam.

Se você traduz isso em filosofia clássica ou na terminologia cristã, isso significa

que a clássica philia politike, ou o amor entre os homens em comunidade, desapareceu, a

ordem que emana dos deuses se foi. Todos se tornaram um homem solitário e, portanto,

tornaram-se maus. Muito drasticamente, esta solidão e perda de caráter são descritas no

seguinte terceto:

Para quem posso falar hoje?

Faces desapareceram

Todo homem tem um rosto abatido com seus companheiros.

Como uma sociedade moderna urbanizada, você poderia dizer. Lonely Crowd de

Riesman e tais paralelos surgem imediatamente. Ou:

Para quem posso falar hoje?

Não há ninguém contente de coração.

O homem com quem se foi já não existe.

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Assim, a dissolução da sociedade, a destruição, o desaparecimento do

contentamento, o fenômeno da alienação se faz sentir. Essa é a descrição da sociedade

quando há desordem, e como isso deve ser interpretado? Quando há tal desordem, o

homem se afasta de uma vida que se tornou sem sentido e contempla o suicídio. Deixe-

me dar-lhe pelo menos duas dessas frases suicidas:

A morte me enfrenta hoje

Como a recuperação de um homem doente

Como sair para o aberto após o confinamento.

A morte me enfrenta hoje

Como a saudade de um homem para ver sua casa novamente,

Depois de muitos anos, ele foi mantido em cativeiro.

E assim ele continua e continua com todas as metáforas da fuga desta realidade

como uma libertação de uma doença, uma libertação da prisão, uma libertação de uma

escuridão que faz você ver a luz, e assim por diante, e retornando a uma espécie de casa.

E o que deve resultar de tal fuga desta realidade sem sentido: uma espécie de julgamento

no Além. No último grupo de tercetos ele diz:

Por que certamente aquele que está lá

Será um deus vivo

Punindo o pecado daquele que o comete

Por que certamente aquele que está lá

Ficará na barca do sol,

Causando o mais seleto para ser dado aos templos.

Por que certamente aquele que está lá

Será uma sabedoria,

Não impedido de apelar para Rá quando ele fala.

[É a] concepção de um julgamento do Além, no qual o homem pode participar

porque é imortal, quando comete suicídio para escapar de um mundo em que está

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completamente alienado, que se tornou estranho para ele; e contra o qual a morte é então

a vida real. Isso é muito semelhante, por exemplo, à formulação que você encontra no

Górgias de Platão.

Aqui você tem quase uma análise completa de uma existência deficiente na

sociedade quando o ma'at, a ordem, desapareceu, ou a recuperação da verdade da

existência, no sentido da ordem divina que é necessária. Mas nesta situação particular

[há] o desespero que através de qualquer tipo de ação social [recuperação] poderia ser

alcançada. Portanto, o único curso sensato e significativo de ação seria o suicídio. Isso

traria o homem para a imortalidade, na companhia do deus sol, e ali reforçaria seu poder

de ordenação – novamente para o mundo, para a restauração do império do Egito.

Esta é uma condição egípcia, é claro, mas uma concepção revolucionária, porque

sob a concepção do império apenas o faraó é o mediador da ordem divina. Um único

egípcio não pode fazer nada sobre isso; ele só pode criar desordem. Quando aqui aparece

o homem solteiro, que por meio de suicídio se torna um deus vivo como o faraó na barca

do deus sol, ele se coloca no lugar do faraó.

Assim, o centro da ordem é entendido como sendo o homem e não o governante, o

centro final da ordem. Essa percepção existencial de que a ordem é o homem – não apenas

a organização social, não apenas o faraó - está absolutamente presente aqui. Mas não pode

cristalizar – ainda que sob outras condições – um movimento revolucionário, ou um

profeta capaz de reunir um corpo a seu redor, ou um filósofo que poderia fundar uma

academia ou algo assim, porque tudo isso ainda é impossível sob as condições egípcias.

O império no sentido cosmológico é tão fortemente institucionalizado que, se você não

tem status no nível administrativo, ou no nível sacerdotal do templo, e assim por diante,

você não é ninguém com relação à ordem do império entre os vivos.

Você teria que se juntar aos mortos na barca do deus sol para contar algo, e é por

isso que o suicídio se torna um problema. Se as instituições do império não estão mais

tão vivas que são um bloqueio absoluto à atividade individual, então você [só] pode entrar

no problema da ação revolucionária através de novos movimentos espirituais intelectuais

ou outros, com o centro da personalidade, um profeta ou algo parecido. [Aqui] isso ainda

não é possível. Deixe-me concluir lá. Na próxima vez, chegaremos à “Epifania do

Homem”, quando tais coisas se tornarem possíveis, [quando] tudo o que puder ser feito.

Muito obrigado.

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III. A Epifania do Homem

Há um período na história da humanidade que foi reconhecido como um período

peculiar por mais de cem anos, particularmente desde o Romantismo, quando mais e mais

materiais históricos se tornaram conhecidos. O que é peculiar sobre esse período, que se

estende aproximadamente do século VIII ao século III a.C., é que vários grandes homens

apareceram, representando avanços espirituais ou intelectuais, com um agrupamento

desses homens por volta de 500 a.C. Naquela época viviam como contemporâneos, no

Ocidente, Xenófanes, Heráclito e Parmênides; na Índia, o Buda; e na China, Confúcio.

Todos esses homens eram contemporâneos, e esse fato atraiu considerável atenção na

década de 1820. Karl Jaspers, em sua filosofia da história, chamou-a de era axial da

humanidade. Agora, esse era axial é um problema um pouco difícil. Não entrarei em

detalhes: Toynbee criticou-o fortemente por boas razões. Mas ainda assim, esse

agrupamento peculiar de grandes homens e avanços intelectuais e espirituais nesse

período é um fato. Refiro-me a esse período e ao fato desses avanços, como “A Epifania

do Homem”. Desse modo, quero dizer que o homem torna-se cônscio de si mesmo, como

distinto de sua existência no cosmos, onde você tem as duras realidades (como eu disse

ontem) do céu e da terra, da sociedade, do rei e do povo. Agora você tem a

autoconsciência do homem em sua imediação sob Deus. No entanto, no império egípcio,

como vimos ontem, o indivíduo solitário (o autor da “Disputa”) não tinha um centro de

significado como uma personalidade independente. Antes, o significado da existência era

mediado pelo império e seu representante, o faraó, que mediava a ordem dos deuses para

o império e para as pessoas que viviam no império.

Agora, porém, o indivíduo solitário, na forma de um homem sábio, um sábio como

Confúcio, ou uma pessoa iluminada como o Buda, ou um filósofo como Xenófanes ou

Parmênides, torna-se um centro da formação de comunidades nas quais a humanidade –

o caráter peculiar do homem em sua relação com todas as outras entidades no cosmos –

é entendida e pode formar uma comunidade rival para as instituições políticas existentes.

Isso ainda era impensável no contexto egípcio ou sumério. [Lá] só se podia substituir um

império por outro, um governante por outro, um império inteiro por um império

fracionado, e assim por diante, e então uma reunificação do império. Mas não se pode ter,

digamos, uma escola filosófica ou um profeta e seus seguidores e assim por diante. Isto é

novo no período sobre o qual eu quero falar hoje, e o ponto decisivo neste período é que

aqui o homem experimenta a si mesmo em sua imediaticidade sob Deus. O que lhe dá

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autonomia é que ele está sob Deus sem mediação. Podemos dizer que a nova compreensão

do homem, sua nova visão de sua própria humanidade, é a de sua relação imediata com a

divindade.

Agora, os tipos de experiência em que essa nova compreensão se cristaliza em

simbolização podem ser classificados. Eu não quero ir longe demais na classificação aqui

e agora, mas teremos que detalhar mais tarde, porque assim que você começar a formar

conceitos de tipos e dar definições, você se deparará com a dificuldade que eu indiquei

ontem, porque os tipos, enquanto estáveis por um tempo, mudam permanentemente. O

homem está em movimento, e se você realmente entrar no assunto, você pode dissolver

todos os tipos estáveis nos tipos preparatório e sucessivo, de modo que você obtenha mais

tipos transicionais do que os tipos estáveis. Nós teremos que falar sobre o problema da

transição um pouco hoje. Mas com essa reserva, pode-se dizer que existem duas

experiências marcantes no Ocidente. (Eu não reflito agora a Índia ou a China, onde há

outros problemas.) No Ocidente, [onde] novas experiências deram nomes a si mesmas,

pode-se distinguir entre a filosofia e a revelação, [representadas respectivamente] pela

Hélade e por Israel. No caso da filosofia, você tem uma experiência que podemos chamar

de experiência “noética”, porque seu centro, a área na qual a imediação sob Deus é

experienciada, é a diferenciação do nous ou “razão”. No outro caso, da revelação, você

pode falar de uma experiência pneumática, porque o pneuma (em hebraico, o ruach) é

novamente a área na qual a imediação é experienciada. As diferenciações dos significados

darei mais tarde.

Agora temos dois tipos, o tipo noético e o pneumático, ou a filosofia e a revelação;

ou, se você refletir diretamente sobre a questão do nous (traduzido como “razão”), pode

chamar-lhe a distinção [entre] razão e revelação. Aqui estão dois tipos distintos.

Antecipando o que tenho de explicar em detalhes mais tarde, pode-se dizer que, no tipo

noético, no tipo filosóficose tem uma tendência em explorar a estrutura da experiência.

(Claro, você não pode explorar a estrutura sem ter a substância, a substância também deve

estar lá, mas a tendência está para explorar a estrutura da experiência.) No tipo

pneumático, ou tipo revelatório, você tem a substância tão fortemente predominante. que

uma análise de sua estrutura nunca é feita, pelo menos não no contexto israelita e judaico.

(A análise da estrutura é introduzida na experiência pneumática somente através do

cristianismo e do desenvolvimento da teologia, e a teologia é baseada na filosofia clássica

e estóica).

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Estes são os dois tipos. Se queremos um vocabulário para expressar esses tipos de

experiência e o sítio onde elas ocorrem, temos uma escolha de termos. Não importa muito

quais termos se escolhe, mas sob condições modernas, alguns são preferíveis aos outros.

Na antiguidade, no contexto filosófico, o sítio de tal experiência foi definido como a

psique. Agora, o termo psique ocorre mais cedo do que os filósofos clássicos. Você já

encontra o termo psique em Homero, mas [lá] ainda significa a força vital no sentido

físico, que deixa um homem quando ele morre, por exemplo, em batalha, com o sangue

fluindo dele. Então o sangue é o sítio da psique como uma força vital, e quando isso o

deixa, permanece uma sombra que entra no submundo. Esse é exatamente o mesmo

significado de psique que você encontra em paralelo em hebraico no conceito de nephesh.

Tem o mesmo significado que a psique no sentido homérico. Começando

aproximadamente com Pitágoras, pode-se notar a transformação do significado do termo

psique no sítio em que essa experiência de imediação sob Deus, ou o fundamento divino

de sua própria existência, ocorre. Essa é a transformação do significado do termo psique.

Eu não me oponho ao termo psique, desde que não o objetive e o torne uma hipóstase,

mas apenas o aceite como um termo, uma alavanca conveniente, que é uma analogia com

outros órgãos do corpo humano, os pés ou as mãos ou assim por diante. Você não

experiencia a imediação sob Deus com os pés ou com as mãos, mas com o que você

experiencia? Se você quiser chamar essa parte do homem de psique, tudo bem, chame de

psique. Mas não precisamos do termo porque, no período moderno, quase foi

completamente substituído, para dar um exemplo, começando com o século XVII pelo

termo consciência. O homem tem consciência e consciência significa a experiência de

uma tensão na existência em direção ao fundamento da própria existência. Isso é

consciência. O termo consciência neste significado já aparece ocasionalmente na filosofia

clássica. Você encontra passagens, por exemplo, na Ética a Nicômaco de Aristóteles,

onde o termo aesthesis não é usado no sentido usual da percepção sensorial, mas no

sentido da consciência; isso já ocorre lá. O termo consciência talvez seja mais adequado

hoje do que o termo psique.

A consciência [...] é o sítio no qual a participação no fundamento da existência do

homem é experienciada. É o sítio da participação em si. Devemos agora distinguir entre

a participação real e a consciência da participação. Esse é um ponto muito importante

para a interpretação dos fenômenos históricos, porque a própria participação sempre

acontece quando há o homem. Certamente, toda experiência cosmológica incorpora a

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participação do homem na realidade circundante, a realidade divina da natureza e todas

as outras partes da realidade cósmica geral; mas ainda não é temático, não se tornou

reflexiva. E quando você se torna consciente disso, você tem que distinguir entre a

consciência que sempre esteve lá como o sítio de participação, expressando-se em todos

os tipos de simbolismos além da filosofia, por exemplo, na oração, no mito ou na

“Disputa”.

Agora, com essa consciência, você teria que dizer que, quando se torna auto-

reflexiva, a consciência sempre tem um duplo sentido. Primeiro, é o sítio de participação

no fundamento divino. Segundo, é o sensorium pelo qual você se tornou consciente dessa

participação e a torna tópica e usa conceitos para descrevê-la. Assim, no nível filosófico

da experiência, a consciência é sempre o sítio e o sensorium. Portanto, quando [a

consciência] se torna consciente, [ela é] agora o centro de toda ordem. A ordem não está

mais lá simplesmente [como um dado]. Ainda existe essa ordem no cosmos, mas não é

em sua própria pessoa e na sociedade, a menos que você a produza em virtude da

compreensão de sua própria existência e de sua ordem na consciência. Portanto, você

encontra, por exemplo, na política clássica, que uma constituição paradigmática para a

sociedade pode ser desenvolvida com base em uma análise da consciência. A consciência

explodida na tela maior da sociedade entregará o tipo certo de constituição. Se você for

informado sobre a ordem correta de consciência, você pode descrever aproximadamente

qual seria a ordem correta para a sociedade. Nesse sentido, a consciência se torna o centro

de toda filosofia e especulação sobre problemas ou ordem.

Agora – [continuando com as características gerais] – essa vinda de consciência

para a autoconsciência tem, você poderia dizer, um efeito desastroso sobre a experiência

cosmológica anterior, sobre a experiência do cosmos no sentido primário. Você se lembra

do que eu disse ontem à noite sobre a experiência do cosmos: O cosmos é a realidade

dentro da qual você vive irrefletidamente e sem críticas, e nesse cosmos você encontra

todas as partes da realidade abraçadas. Existem os deuses e o homem, a sociedade, o rei

e o povo, o céu e a terra. Tudo está no cosmos, incluindo os deuses. Quando você agora

tem uma auto-reflexão em que o homem experiencia sua imediação sob Deus, Deus não

é mais uma das realidades dentro de um cosmos, mas uma realidade além de todas as

outras realidades, incluindo a sua própria. Todas as realidades do cosmos, incluindo as

suas, estão agora divididas em duas classes de realidade - aquela que não é Deus e a outra

que é Deus: Deus e as realidades de não-Deus. Nessa situação, você obtém a dissociação

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do cosmos no mundo transcendente a Deus e ao mundo que não contém Deus. Os deuses

são expulsos e concentrados no único Deus transcendente. Você vê porque é preciso ter

cuidado com o vocabulário. Não temos um vocabulário muito grande. Por isso, usarei o

termo cosmos deliberadamente, apenas com o propósito de descrever essa comunidade

de parceiros ainda compactos na comunidade do ser. Isso é o que chamei de cosmos.

Quando o cosmos se dissocia, precisamos de outro vocabulário, porque então não

temos deuses intracósmicos, mas um Deus transcendente ao mundo, e o termo cosmos

deveria então ser substituído pelo termo mundo. Quando falamos do mundo neste

contexto técnico, refiro-me ao remanescente do cosmo que permanece quando os deuses

são expulsos do cosmos e se concentraram no único Deus transcendente ao mundo. O

mundo e o Deus transcendente ao mundo substituem o cosmos e os deuses intracósmicos.

Nós vemos aqui já um grave problema de re-simbolização. E uma vez que esses símbolos

não são todos desenvolvidos em um [tempo], assim que tal experiência aparece, você

encontrará nos textos consideráveis dificuldades de transição e confusão, porque os

termos mais antigos são usados no novo significado, ou quando um novo termo é

desenvolvido pode estar associado a um significado mais antigo. Por exemplo, o termo

psique, como acabo de explicar, passou por uma mudança como essa, de uma força vital

que deixa você com o sangue em batalha até a área em que você experimenta a

consciência do imediatismo sob Deus. É preciso distinguir com muito cuidado em que

contexto a palavra aparece. Você não pode chegar a lugar algum com essa questão com

definições, mas [tem que] fazer uma análise cuidadosa das fontes em cada caso, [ver] o

que as palavras significam.

Portanto, agora temos essa dissociação do cosmos no mundo e do fundamento

transcendente ao mundo. Estou falando do fundamento, e sei por experiência que algumas

pessoas acreditam que eu inventei o termo fundamento transcendente, ou pelo menos que

o tirei de Tillich, ou que Tillich inventou, ou algo assim. Agora você pode descansar

[assegurou] que a palavra fundamento é uma tradução do termo clássico aition, que é o

fundamento e a causa, e o fundamento último é chamado de arche. Isso é vocabulário

clássico em filosofia. O fundamento divino é chamado de fundamento; esse é o termo

técnico para isso.

Um outro par de conceitos que surgem em conexão com isso (eu usei isso até agora

sem explicá-lo mais) são os termos imanência e transcendência. O termo transcendência

provavelmente se origina com Platão, que o utilizou ocasionalmente na Politeia como a

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epekeina, o Além. A Ideia, especialmente a ideia do Agathon, está além de todo o contexto

do mundo. Aqui você tem a ocasião em que surgem termos como imanência e

transcendência. Você pode falar do Deus que não é mais um deus intracósmico, como

um Deus transcendente ao mundo; ele é transcendente, e o mundo em relação àquele Deus

então se torna imanente. Nada é simplesmente transcendente e nada é simplesmente

imanente, mas imanência e transcendência são um par de correlativos que aparecem como

índices, ligados ao cosmos antigo, não tão diferenciado, e nunca devem ser usados

isoladamente.

Falar por exemplo (como expliquei no início da palestra de ontem) do homem

imanente, ou de um mundo imanente, ou de uma concepção imanentista do mundo, ou

algo parecido, é pura tolice. Não há nada que seja imanente; a imanência só é algo em

relação à transcendência. Se não há transcendência, nada é imanente; você simplesmente

confundiu filosofia. Deixe-nos ser claros sobre isso. Para deixar isso claro, tenho algumas

análises, que publiquei na minha obra Anamnese, que distingue símbolos de linguagem

como imanência e transcendência, ou o mundo e o Deus transcendente do mundo, de

conceitos de tipo que se referem a coisas imanentes ao mundo, e “índices linguísticos” ou

a experiência de participação.

Quando você tem uma experiência de participação e quer expressar seu conteúdo,

você desenvolve tais índices para os polos: um polo imanente do mundo e um polo

transcendente ao mundo, um Deus transcendente ao mundo e um conteúdo do mundo

imanente em relação àquele Deus, e assim por diante. Todas essas coisas não têm

significado, exceto no que diz respeito à experiência que as engendra. Se você os separar

da experiência que os engendra, eles se tornam letras mortas que não significam nada e

não se referem a nada. Vamos ser claros sobre isso. Há uma correlação entre os termos

consciência, transcendência, imanência, Deus transcendente, mundo imanente, e assim

por diante que não devem ser quebrados. Se você romper este triângulo da consciência

que engendra o símbolo da imanência e transcendência e falar de uma consciência sem

imanência ou transcendência, ou dizer que a consciência é imanente, ou se você fala de

uma realidade imanente sem uma realidade transcendente, ou de uma realidade

transcendente sem uma realidade imanente; se você quebrar de qualquer maneira e

objetificar esses símbolos linguísticos das experiências, você ficará irremediavelmente

em proposições sem sentido. Este triângulo nunca deve ser quebrado terminologicamente.

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Agora isso é até onde a consciência se tornou o sítio de tal participação. Mas como

eu disse, há também um sensorium de tal participação, e você pode expressar o resultado

de tal dissociação do cosmos por (agora eu vou usar o termo em seu sentido técnico)

ideias, e nós podemos chamá-las as “ideias universais”. Você verá imediatamente por

quê. Porque quando esta consciência é reconhecida como o caráter específico humano –

o homem é a criatura que tem consciência de tal natureza que é auto-reflexiva e produz

tais símbolos linguísticos e assim por diante – e [você] diz, isso é especificamente

humano, você tem criou a ideia de homem que até agora não existia. É preciso estar ciente

disso. Não há ideia do homem antes dessa diferenciação filosófica. Há uma ideia do

homem e, se você levar o homem coletivamente ao longo da história, a ideia da

humanidade. A ideia do homem e da humanidade é uma ideia que surgiu concretamente,

por ocasião desse processo de diferenciação em que a consciência se torna autoconsciente

ou auto-reflexiva. Não há humanidade independente dessa experiência; caso contrário [o

termo] não faz sentido.

Isso tem implicações práticas. Quando a origem na experiência da transcendência,

da imediação de todos os homens sob Deus como a fonte da humanidade comum, é

destruída por uma razão ou outra – como é, por exemplo, nas ideologias modernas – você

tem a ideia universal do homem substituída por alguma outra ideia do homem. Por

exemplo, você tem a ideia de que o homem verdadeiro é o proletário, ou o adepto de uma

ideologia comunista, ou a pessoa que pertence a essa ou aquela raça, ou algo parecido.

Você tem ideias parciais que reivindicam ser universais, um tipo de processo que não era

possível antes que houvesse ideias universais. Uma vez que a ideia universal do homem

é desenvolvida, você pode ter ideias parciais do homem, ou ideias fragmentadas do

homem, e atribuir-lhes a qualidade de ser universal. Isso significa que você tem que matar

todos que não concordam com você porque ele não é um homem - uma das fontes

importantes da política contemporânea. É preciso ver a estrutura da universalidade. Antes

que a estrutura da universalidade se desenvolvesse, ninguém afirmava ser universalmente

homem. Mas uma vez desenvolvido, todo idiota [poderia] alegar que a idiotice é a

característica universal do homem. E assim que alguém não concorda [com ele, esse

alguém tem que ser morto]. Isso só é possível depois que a ideia do homem se

desenvolver.

Isso nos dá a ideia de humanidade universal, aquela que é universal. A segunda

ideia é igualmente importante: que, em contraste com a experiência primária do cosmo,

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toda a divindade está concentrada numa divindade transcendente ao mundo. Existe apenas

uma divindade, a única divindade transcendente ao mundo, a ser encontrada em nenhum

lugar do mundo. Assim, você tem uma ideia da divindade universal correspondente à

universalidade do homem. Isso também é muito importante porque a ideia de uma

divindade universal é longa na criação, por milhares de anos antes de Cristo. Por exemplo,

nos primeiros egiptólogos – no estudo de Breasted sobre o problema do monoteísmo

egípcio – você já encontrou uma tentativa de [atribuir] o prestígio de ter desenvolvido a

ideia do monoteísmo pelo menos para Akhenaton, de modo que os egípcios são os

verdadeiros criadores do monoteísmo. monoteísmo. E de alguma forma hoje, um homem

como Albright ainda adere a essa posição e escreve um livro sobre a gênese do

monoteísmo. Agora, eu não acho que alguém possa fazer isso, porque o monoteísmo é

um dos “-ismos”, e os “-ismos” são um produto tipicamente do século XVIII. Não se pode

simplesmente jogar em torno desses “-ismos”, monoteísmo, politeísmo, ou seja lá o que

for.

O problema real [por trás disso é que há uma tendência, um impulso, para descobrir

nos textos egípcios] a ideia de uma divindade universal já reconhecível no terceiro

milênio antes de Cristo. Isso é verdade. A divindade universal chega a uma expressão

aproximadamente boa no cristianismo, mas apenas aproximadamente, porque até o

cristianismo ainda está sobrecarregado com a ideia de que a divindade universal é, por

assim dizer, um privilégio dos cristãos. Todos nascidos antes de Cristo são mais ou menos

relegados ao limbo, se não ao inferno, porque ainda não estavam sob a divindade

universal. Como um problema, a extensão da [divindade] universal para o resto da

humanidade antes de Cristo foi conscientemente formulada pela primeira vez, penso eu,

por Tomás na Idade Média, e [a noção] não foi muito eficaz. Uma verdadeira filosofia da

história baseada no problema da divindade universal, como estou tentando aqui, por

exemplo, nunca foi feita, até onde sei. É uma ideia muito lenta no desenvolvimento.

Temos uma pré-história de dois mil anos antes de Cristo e uma pós-história de dois mil

anos depois de Cristo, e ainda não é, você poderia dizer, geralmente aceita. Ainda se faz

exceções a essa divindade universal como o único fundamento divino de todo ser.

A terceira ideia universal que surge nesta ocasião é o mundo como o mundo comum

de todos, com uma estrutura autônoma. Ou seja, o mundo não é nem homem, nem Deus,

nem o cosmos em que o céu e a terra, e reis e pessoas, e deuses, e assim por diante, são

abraçados indiscriminadamente, mas existe uma estrutura do mundo. Você tem uma ideia

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universal do mundo que também é muito lenta no desenvolvimento. Você pode dizer que

a ideia universal do mundo foi totalmente desenvolvida apenas a partir do século XVI,

com o surgimento da ciência moderna. [Mas] como um problema, ele já está presente em

Aristóteles e no desenvolvimento da astrofísica pós-aristotélica em sua própria escola.

Estas são as três ideias principais que surgem: humanidade universal, divindade

universal, mundo universal. Vou me referir brevemente a eles como "os universais" que

surgiram naquela ocasião. O que eu disse para o triângulo de consciência, imanência e

transcendência [também é válido para eles]: você obtém os três como uma unidade ou

não obtém nada. Se você entregar um ou outro, todo esse sistema, ou todo esse aparato

de ideia que é inerente à exegese de tal experiência, entrará em colapso. Tal colapso

(temos que lidar com isso na terceira palestra) é uma das características do período

moderno. No geral, pelo menos no Ocidente, as pessoas concordam que temos um mundo

universal, mas não que tenhamos um homem universal e um Deus universal. Assim, você

vê que a divindade não é universal, mas será apropriada a certas partes do conteúdo

mundial, por exemplo, ao proletariado, ou a uma nação, ou a uma raça, e assim por diante.

Quando você torna a divindade imanente ao mundo, coloca-o no mundo, e seleciona um

fragmento do conteúdo do mundo e o dota com a qualidade da divindade universal, você

destruiu a tensão na qual esses universais devem permanecer. [Assim, isso deve ser

evitado], a menos que você queira causar um estrago horrível e se tornar completamente

irracional – às vezes com a consequência de uma doença mental, se o triângulo entrar em

colapso. O colapso do triângulo, dessas três ideias, é uma das características da história

moderna.

Estas são as características gerais. Agora podemos entrar em alguns problemas

especiais. Eu falei sobre as experiências de participação e da imediação sob Deus e o

conteúdo de tais experiências. Isso soa muito abstrato, e acredito que se você entrar em

um pequeno detalhe com materiais, será muito mais fácil entender qual é o problema.

Quero dar alguns exemplos de tais experiências de participação, e eu vou usar o

mais simples possível. Pegarei do Upanishad, de um contexto hindu. Lá você tem a

situação de um homem sábio com o nome de Yajnavalkya questionado por uma pessoa

interessada, neste caso uma menina, sobre a realidade e o fundamento da realidade. As

perguntas e respostas são o conteúdo do Upanishad. Esse é um caso típico; há dezenas de

tais nos Upanishads. Eu faço uma breve para que se possa ver a estrutura. O nome da

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menina é Gargi, e o ponto crítico em que temos que lidar com o assunto começa com as

seguintes linhas [Brihadaranyaka Upanishad III.6]:

Então Gargi perguntou:

“Yajnavalkya”, ela disse, “tudo aqui é tecido,

como urdidura e trama, na água. O que é então isso em

Que água é tecida, como urdidura e trama?”

Aqui ainda estamos na esfera cosmológica. Os elementos da água, fogo, terra e

assim por diante. O elemento básico é a água, tudo é tecido na água. Mas no que a água

é tecida? Qual é o fundamento disso?

“No ar, ó Gargi”, ele respondeu.

“Em que então o ar é tecido como urdidura e trama?”

“Nos mundos do céu, ó Gargi”, ele respondeu.

E isso continua então através do céu, o céu é tecido no mundo dos Gandharvas; os

Gandharvas nos mundos de Aditya (o sol), de Chandra (a lua), dos Nakshatras (as

estrelas), dos Devas (os deuses), de Indra (os deuses superiores), de Prajapati (deuses

ainda mais elevados) e finalmente os mundos de Brahman. O questionamento termina da

seguinte maneira, depois que Yajnavalkya explicou que tudo está tecido nos mundos de

Brahman.

“Em que então os mundos de Brahman são tecidos, como urdidura e trama?” (Essa garota

é persistente!)

Yajnavalkya disse: “Ó Gargi, não pergunte demais, para que sua cabeça não caia.

Você pergunta muito sobre uma divindade sobre a qual não devemos pedir muito. Não

pergunte muito, O Gargi”.

Depois disso, Gargi Vachaknavi manteve a paz.

Aqui você tem isso de uma forma muito simples. Você pode questionar através de

toda a hierarquia do ser. Não precisa estar na terminologia cosmológica. Você pode

questionar, como, digamos, Agostinho, através do mundo inorgânico, do mundo

orgânico, do vegetativo, do animal, do psicológico, até que você entre na esfera desse

ponto transcendente - da anima animada para Deus; você pode fazer isso dessa maneira

em uma descrição posterior da hierarquia do ser. Mas o problema está sempre

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pressionando a pergunta: Qual é o fundamento e qual é o fundamento daquilo que você

determinou? até chegar ao [...] fundamento que não tem fundamento em si, o fundamento

sem [...] fundamento de todo ser. Isso é o que se chama Deus ou, neste caso, Brahman.

Se você quer uma definição de Deus, você pode dizer que, em tal processo de

questionamento, seria o ponto em que você esgotou todos os tipos conhecidos de

realidade e ainda não sabe o que é o fundamento; é o que é o fundamento, isso é Deus.

Essa seria a definição de Deus com base em tal questionamento, após o esgotamento de

todos os tipos conhecidos; o não típico, o que é o além. Esse é o caso indiano.

Agora, deixe-me dar outro exemplo, um que é muito mais elaborado e muito mais

bonito, chamado de Apocalipse de Abraão. O Apocalipse de Abraão é um documento dos

essênios, em algum lugar em torno do período de Cristo – apenas um pouco antes, apenas

um pouco depois, não se sabe exatamente. Ali o jovem Abraão relata seu tipo de

experiência pneumática. Eu gosto particularmente porque achei acidentalmente quando li

o romance de Thomas Mann, José e seus irmãos. O credo é o descrito por Thomas Mann.

Quando leio Thomas Mann, sempre me perguntei de onde ele tirou sua concepção

peculiar do credo e fé de Abraão, porque não está no Antigo Testamento. E quando eu li

o Apocalipse de Abraão [caps. 7–8] descobri que é de onde ele tirou, quase literalmente.

Não é um diálogo, mas um monólogo. Ele fala para si mesmo:

Mais venerável que todas as coisas é fogo

para muitas coisas sujeitas a ninguém cairão nisso...

Mais venerável mesmo é a água,

porque supera o fogo...

Ainda não chamo Deus

Pois está sujeito à terra...

Terra eu chamo mais venerável

pois supera a natureza da água.

Ainda não chamo Deus

como é secado pelo sol;

Mais venerável que a terra, eu chamarei o sol;

o universo que ele faz luz pelos seus raios

Mesmo ele eu não chamo Deus,

como seu curso é obscurecido pela luz e pelas nuvens.

Ainda a lua e as estrelas eu não chamo Deus

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Porque eles em seu tempo diminuem sua luz à noite...

Ouça isso, Terah meu pai,

que eu te anuncio o Deus, o Criador de todos,

não aqueles que consideramos deuses!

Obviamente, a situação é de um ambiente politeísta muito considerável. Todos

esses itens enumerados podem ser considerados deuses, são encontrados em uma ou outra

das formulações politeístas, e nenhum deles é Deus. Agora vem a questão de onde ele

está? você vê que a técnica é a mesma que nos Upanishads, o esgotamento de todas as

possibilidades elementares, de todos os tipos de conteúdo do céu e da terra! Então vem a

grande pergunta:

Mas onde ele está?

E o que é Ele?

que avermelha o céu

quem doura o sol,

e ilumina a lua e as estrelas?

que seca a terra no meio de muitas águas,

Quem se colocou no mundo?

que me procurou na confusão da minha mente.

Agora vem a questão da consciência. Ele o desperta para o questionamento:

Que Deus se revele através de si mesmo! (ele continua)

Quando assim falei com Terah, meu pai,

no tribunal da minha casa,

A voz do forte caiu do céu

em uma nuvem de fogo e chamado,

Abraão! Abraão!

Eu disse: aqui estou eu!

E ele disse:

Você procura o Deus dos deuses,

o Criador,

na mente do seu coração.

Eu sou Ele!

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Lá você tem a transição de uma concepção mais primitiva de um Deus criador para

um Deus que deve ser encontrado “na mente do seu coração”. Essa é uma frase em

aramaico para a parte mais interna da sua consciência: “do seu coração”. É muito

semelhante à anima animae de Agostinho, que pode estar ligada a ele. Depois que você

tem uma maneira negativa de esgotar a hierarquia de ser dentro do mundo, vem a questão

da causa: quem nos criou, quem enrubesce o céu, quem ouve o sol, e assim por diante.

[Mas] você não encontra em nenhum lugar; Deus tem que se revelar através de si mesmo.

E a revelação assume a forma de um chamado: “Abraão! Abraão! ” – e ele se sente

chamado. Então ele [responde] ao chamado: “Aqui estou eu”. E Ele diz: “Eu sou Ele”.

Isso é semelhante na simbolização verbal do episódio da Sarça ardente na revelação de

Moisés. Obviamente, há uma tradição.

Esse é um relato muito cuidadosamente construído de tal experiência. O problema

em si se torna perfeitamente claro. Também [ilustra] o ponto em que indiquei ontem:

Quando tais experiências ocorrem, elas são eventos importantes na vida da respectiva

pessoa e, portanto, tornam-se objeto de uma narrativa, de uma autobiografia. Você

poderia dizer, por ocasião de tal experiência, que é mais ou menos um relato

autobiográfico, como tudo isso aconteceu, tão cedo quanto um fenômeno como o episódio

da Sarça ardente no livro do Êxodo. O aparecimento de Deus na sarça ardente para Moisés

é um tipo minúsculo de autobiografia que pode se expandir para tipos mais complicados

de autobiografia. Quando algo importante muda o estado de consciência de um tipo de

auto-compreensão para outro, você tem um assunto que vale a pena registrar. É assim que

tudo começa, com o registro de um fenômeno da consciência.

Esses dois exemplos devem ser suficientes para [nosso propósito], isto é, para

entender, para que saibamos sobre o que estamos falando. Agora temos que voltar aos

detalhes técnicos. Existem todos os tipos de transições. Deixe-me referir a alguns deles.

Mesmo no ambiente cosmológico, você pode especular sobre o fundamento. Enquanto o

problema do fundamento como fundamento [...] aparece apenas como um termo técnico

em filosofia, o fundamento, a busca pelo fundamento sempre se passa na esfera

cosmológica [também]. Portanto, você sempre encontra construções especulativas do

tipo: Quem é responsável pelo mundo e seu fenômeno? Você pode atribuir a origem do

mundo ou a criação do mundo a um deus ou outro. Os deuses favoritos no Egito, por

exemplo, são sempre os deuses elementares, o deus do sol, o deus do vento, o deus da

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terra e assim por diante vários elementos, deuses da água, o Nilo – especulação sobre o

fundamento ainda na forma politeísta. Tais explicações variadas, você pode dizer, são

pluralisticamente coexistentes como explicações de como o mundo veio a ser o que é, e

como você é, e assim por diante.

Quando você aborda o problema da consciência historicamente, você se torna

consciente de que os deuses no sentido intracósmico não podem ser a causa, porque

quando a consciência desperta, os deuses politeístas desaparecem. Mas essa especulação

de que um dos deuses está na origem ainda está presente na especulação inicial jônica, na

fase inicial da especulação pré-socrática. Lá os deuses são agora substituídos por

elementos: a água é a origem de todos os seres, o fogo é a origem de todos os seres, a

terra é a origem de todos os seres e assim por diante. Em vez dos deuses politeístas, como

no Egito, você encontra no início da especulação jônica, no século VII, os elementos

denominados, novamente um grupo inteiro de elementos. Heráclito preferia o fogo, a água

de Tales e assim por diante. Elementos são usados e substituem os deuses. Mas, uma vez

iniciado o processo, você entra no problema de que, se não um único deus politeísta pode

ser usado como o originador de todos os seres, qual é a origem de todo ser? Naquela

ocasião – novamente, é preciso estar ciente dessas coisas – o termo ser é introduzido.

Na história da criação, no ambiente mitológico, no ambiente cosmológico

propriamente dito, você sempre descobrirá que um deus cria os céus, ou um deus cria a

terra, ou um deus cria o homem, sempre concretamente falando. Mas agora temos que

entrar na questão de que todas essas várias realidades, que são concretamente nomeadas,

têm que receber um nome universal; são algo genérico, são todos seres, e o termo ser é

introduzido para todas essas realidades. Então a questão de qual deus cria isto ou aquilo

é transformada na questão: Qual é o fundamento do ser de todos os seres-coisas que

vemos lá, que também devem ser de alguma coisa-ser? Ser torna-se um termo genérico

para todos os tipos de realidade que ainda são nomes concretos no sentido cosmológico.

Assim, os nomes concretos são substituídos pelo termo genérico sendo, e, nesse contexto,

surge a pergunta: Qual é o fundamento de todo ser, a arche, a origem de tudo isso?

Quando se desenvolveu o vocabulário até aqui, surgem vários problemas de

construção, porque agora se está confrontado com todas as coisas que existem dentro do

mundo, e com outro tipo de ser [também] que é a causa, ou o fundamento originário de

todas as coisas que nós experienciamos no mundo. E agora, em experiências agudas de

transcendência, digamos do tipo de Parmênides, podemos chegar à ideia de que o ser real

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é o ser transcendente que é o fundamento de todos os outros seres. Só isso é ser real, todo

o resto tem um caráter secundário de ser, um caráter ilusório. Portanto, Parmênides

distingue [entre] o ser real como aletheia, sendo, na verdade, a verdadeira realidade e o

ser secundário como doxa, a realidade ilusória, ou a realidade da opinião, realidade

secundária.

Uma vez que esta dissociação tenha ocorrido, nós entramos no problema do

descarrilamento, [para] você pode mudar o assunto. A experiência original foi: Há um ser

real, o ser eminente que é o ser divino no Além. Mas você pode dizer: eu só tenho

experiência de coisas no mundo. Essas coisas existentes – isso é realidade, isso é ser; e

tudo o mais que você quer me dizer é simplesmente um absurdo, não está lá, não existe

tal coisa. Agora, se você tomar essa posição e simplesmente disser: Não há um

fundamento de ser, o assunto chegou ao fim, porque você usou esses termos que são

baseados na experiência da transcendência, de uma participação em uma base do ser, e

que são válidos apenas quando o triângulo, do qual falei antes, está preservado. Você

pegou uma parte do [triângulo] e decapitou o resto. Mas então, o que você fala, a parte

que você deseja preservar, é um absurdo, porque não existe um ser imanente sem o ser

transcendente, ao qual ele está em correlação, a base da experiência.

Mas também se pode dizer legitimamente: quero [reservar o termo] sendo para

todos os seres-coisas que existem, e eu chamo de existente o que existe, por exemplo, no

tempo e no espaço, incluindo o homem. Então alguém teria que continuar e dizer que este

fundamento é algo como uma realidade inexistente. É real, mas é inexistente. A divindade

não tem o modo de existência no tempo e no espaço; pode-se dizer isso. Se você quiser

falar sobre isso e reconhecer que ele não existe no tempo e no espaço, você não pode

simplesmente atribuir a ele os atributos mitológicos mais antigos. Você tem que

desenvolver uma lógica específica, a analogia do ser, para falar dessa realidade

transcendente que não está no tempo e no espaço.

Este problema da analogia do ser já era um problema em 500 a.C., mas recebeu sua

designação e foi totalmente desenvolvido na Suma Teológica de Tomás de Aquino. Aqui

você tem novamente um longo processo de cerca de 1700 anos ou mais, até que surge a

questão de como falar de uma realidade inexistente (isto é, uma realidade que não existe

no tempo e no espaço) e em que terminologia. Aplicando termos a ela analogicamente,

[termos] que tomo da minha experiência mundana, posso dizer que Deus dura todo o

tempo, Ele é onipresente, Ele é todo justo, Ele é todo o Bem e assim por diante. Mas esses

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termos só têm significado em nossas relações humanas no mundo, e quando são [usados

como] uma resposta para [questões relativas a] Deus, eles só podem ser usados

analogicamente e não univocamente ou equivocadamente. Esse é um desenvolvimento

técnico em filosofia que, a seu modo, não pode ser superado. Você pode renunciar a falar

sobre os atributos de Deus em geral, mas se você os usa, você está na analogia do ser.

Essas são algumas das dificuldades técnicas relacionadas a ele.

Quando você tem essa consciência, você entra no problema de como reconstruir o

mundo inteiro que você dissociou com sua experiência de consciência, porque o mundo

continua mesmo agora que a consciência é descoberta. Agora que você descobriu que

existe um Deus transcendente no mundo, você tem que reconstruí-lo dizendo que as

coisas no mundo, como por exemplo na concepção platônica, se tornam coisas se elas

participarem das ideias transcendentes do mundo. Essa é uma maneira de interpretar isso.

Ou você precisa construir o sentido peculiar da consciência – o que isso significa?

Significa que você é – pense no Apocalipse de Abraão – em busca de um fundamento do

ser e você é chamado ou movido por esse fundamento do ser. Há uma dinâmica

experienciada e existe um vocabulário para essa dinâmica. Temos termos definidos como

fé, esperança e caridade, já desenvolvidos por Heráclito. E temos termos desenvolvidos

por Aristóteles para descrever a parte questionante, a zetesis; isto é, buscando e sendo

movido para a busca, a kinesis vinda do outro lado, o lado divino (algo muito semelhante

ao que no cristianismo se chama graça). Todo um vocabulário surge agora para descrever

a operação interior dessa consciência, toda a linguagem da descrição espiritual e

intelectual e da auto-expressão.

Finalmente, quando a consciência é um sítio no qual o transcendente e o imanente

se encontram, então essa consciência, ou [que] o homem com relação à sua consciência,

não pertence nem a um nem ao outro, mas está naquela esfera do “entremeio”, entre o

atemporal ou eterno e o temporal do tempo imanente. [Assim, o vocabulário para

entremeio se desenvolve]. Platão tem sido muito [completo] no desenvolvimento deste

vocabulário; ele chamou de metaxy, o “entremeio”. Nós vivemos no entremeio. Vocês se

lembram da noite passada que eu expliquei que o “fluxo de presença” que não é nem o

tempo nem o atemporal, mas o fluxo em que o tempo e o atemporal se encontram. Essa é

o tempo em que nós existimos. Neste fluxo de presença, no entremeio, é onde todas as

[preocupações] do homem são realizadas.

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Tenho que ser um pouco seletivo agora, mas alguns problemas são muito

importantes [porque revelam] onde os problemas posteriores se originam. Essa

consciência é chamada por Platão e, especialmente, por Aristóteles, de nous. Agora

existem várias traduções possíveis em vários contextos. Eu simplesmente uso a tradução

“razão” porque sob esse nome, em latim durante toda a Idade Média e o Iluminismo e

assim por diante, nas línguas ocidentais, estamos lidando com esse problema. Agora

temos que esclarecer sobre o problema da razão, porque a revolta do homem é uma revolta

contra a razão. Temos que saber exatamente o que a razão significa no sentido clássico.

Aqui nos deparamos com uma dificuldade técnica, em dificuldades que estão do lado

confuso. A dificuldade é que na filosofia clássica a razão é usada em pelo menos dez

significados diferentes, [nenhum] deles aleatórios [ou] acidentais, [e todos eles]

sistematicamente interconectados para descrever todo o complexo do que chamamos de

razão. Deixe-me apenas enumerá-los:

1. A razão é, em primeiro lugar, (sempre traduzindo o nous de Aristóteles e Platão)

a consciência de existir a partir de um fundamento da existência. Então a razão

tem um conteúdo que é extremamente importante, porque assim que você esvazia

a razão do conteúdo, a consciência de ter um fundamento, a razão se torna vazia

e um instrumento para lidar com as coisas imanentes do mundo. E desde que o

homem ainda é homem (eu devo lidar com isso na quinta-feira), a questão da

substituição [surge], porque você tem que preencher a substância que falta com

alguma outra substância. Existe toda uma série de possibilidades de substituir

outros conteúdos por este conteúdo. É por isso que o período moderno,

especialmente desde o século XVIII, é tão profundamente irracional, como você

já sabe. Então, a razão é a consciência de existir a partir de um fundamento.

2. Você vai para os polos dessa consciência e diz: a razão significa a transcendência

da existência humana em direção a seu fundamento, o movimento em direção a

ela, a dinâmica, a zetesis.

3. Ou você pode dizer: a razão, como o fundamento criativo da existência, atrai o

homem: essa é a kinesis de Aristóteles. Para Aristóteles, nous significa a faculdade

do homem de compreender o problema do fundamento e o fato de que o homem

é atraído por algo que ele chama de nous, o divino. Então, nós já temos três

[significados]: consciência como um todo; e como os polos, o polo imanente da

razão humana; e o polo divino da razão.

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4. Razão como a faculdade do homem para entender a si mesmo como existente a

partir de um fundamento. Essa é a questão do sensorium e, portanto, a origem

dessas várias ideias universais. Ele entende a si mesmo como existente a partir de

um fundamento.

5. Razão como a faculdade do homem, intimamente conectada, para articular essa

compreensão através da formação de ideias. Consciência e as próprias ideias –

razão significa tudo isso.

6. Razão como uma perseverança em preocupação com a relação com o

fundamento. Você obtém uma espécie de virtude existencial – que às vezes recebe

um nome especial. Tanto Platão como Aristóteles chamavam a virtude existencial

de perseverar na busca de um fundamento através de uma phronesis vitalícia, a

virtude da sabedoria, de perseverar na busca.

7. Razão como o esforço para ordenar a existência pelo discernimento obtido. Isso

se torna uma grande operação intelectual uma vez que você tenha entendido a si

mesmo, [entendido] sua verdadeira natureza como [um ser] conscientemente

existindo a partir de um fundamento. Isso tem consequências para a formação de

hábitos em sua conduta diária em relação a outras pessoas, para então formar sua

vida de acordo com essa natureza compreendida de si mesmo. Por exemplo, todo

o sistema de ética é uma elaboração de tais problemas.

8. Razão como o esforço persuasivo para induzir a participação de outros homens

na razão. Platão deu especial importância a isso, à persuasão, ao peitho. Uma vez

que a razão é descoberta, ela é acompanhada, você pode dizer, da obrigação de

comunicar e persuadir outras pessoas do tipo peculiar de realidade que você

descobriu e de entrar na comunidade dessa realidade. Esse esforço persuasivo

também é razão.

9. Razão como a constituinte do homem através de sua participação na razão do

fundamento. O homem é constituído pela razão como uma forma. [Este é] um

problema muito especial em Aristóteles, assim como no escolasticismo. Então,

razão como a forma do homem.

10. E finalmente, a razão como um constituinte da sociedade através da participação

de todo homem no fundamento comum, no sentido da homonoia aristotélica. Essa

é uma categoria fundamental muito importante em todas as ciências sociais. A

ciência política clássica baseia-se na suposição de que há um nous comum para

todos os homens e, através da participação nesse nous comum, todo homem é

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ordenado em direção a esse nous. Essa ordem na relação entre os homens constitui

a ordem da sociedade. Portanto, a razão comum, a razão comum, é a substância

que torna a sociedade mais ordenada quanto possível. Se você concorda com a

ordem em sua existência e sua relação com os outros pela razão, você tem a

sociedade. Essa substância da sociedade é chamada a semelhança de razão, a

homonoia; todos têm a semelhança da razão. Esse termo, cunhado por Aristóteles,

foi tomado por Alexandre, o Grande na criação de sua religião imperial: a

homonoia deveria unir todas as várias nações de sua conquista em uma irmandade.

E sobreviveu a Alexandre. Foi assumido por São Paulo para designar o nous

comum em todo o Corpo Místico de Cristo, com Cristo funcionando como o nous

comum. Naquela capacidade, passou pela história cristã até a forma secular atual

e adquirida. Por exemplo, se você tomar os antigos sociólogos seculares como

Giddings na virada do século, ele fala de uma consciência do tipo que mantém

todos os homens juntos na sociedade. “Consciência do tipo” é uma tradução de

homonoia. Ou Dewey, que é ainda mais puritano em seu secularismo do que

Giddings, fala de uma mentalidade parecida: essa é a versão da bíblia do Rei

James da homonoia! Assim, bem na sociologia contemporânea na forma

secularizada, ainda temos a homonoia de Aristóteles como a razão comum

presente em todos os homens. Com essa substância da razão comum em todos os

homens pode-se ter sociedade. Se alguém não tem isso, se o amor dentro da

comunidade não é baseado na divindade da razão no outro homem, você não tem

a philia politike. Para Aristóteles, o amor na sociedade, mantendo-o em comum

em razão, é a virtude fundamental de qualquer comunidade política. Philia, o amor

entre os homens de um para o outro, porque eles são todos iguais na razão divina,

é a base de toda a teoria política.

Nietzsche viu isso muito bem, porque se você se render àquela base clássica da

razão comum, não há razão particular para amar alguém. Você observa muito bem isso

empiricamente: não vejo razão para amar alguém, apenas olhar para esses [rostos], a

menos que eu os considere iguais no espírito divino. A divindade do espírito que está

presente em todos os outros [é o que] constitui o homem e a dignidade do homem e a

obrigação de ter respeito pelos outros homens. Esta divindade comum é formulada aqui

pela primeira vez. Como você vê no vocabulário cristão, o vocabulário filosófico foi

assumido; homonoia, a mentalidade semelhante e assim por diante isto é, o vocabulário

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cristão: [Ele] foi tirado da “fé, esperança e caridade” de Heráclito; e aqui, do vocabulário

aristotélico.

Estes são os significados da razão, e quando todo este complexo é quebrado e você

escolhe isto ou aquilo e omite outra coisa, você entra novamente nas construções

desequilibradas, que constituem a característica da revolta. O que quero destacar aqui

especialmente hoje é que, com a Epifania do Homem, surgiu um sistema muito complexo

de símbolos, que [deve] ser mantido em equilíbrio adequado [e isso só pode ser feito

através de instituições e transmissão de ensino sobre tais assuntos. Você não pode

descobrir tudo por si mesmo. É preciso cultivar [os símbolos e mantê-los em equilíbrio];

isso tem que ser ensinado e transmitido em alguns processos educacionais e alguns

processos de ensino e assim por diante. Se esse equilíbrio for destruído pelo colapso das

instituições, no sentido de que essas [questões] não são mais ensinadas – pelas igrejas,

pelas escolas ou pelas universidades – então a sociedade não pode funcionar

adequadamente. Isso não significa que a sociedade irá quebrar imediatamente, porque

existe depois de toda a família e há tradições de costume e hábito que você aprende com

os pais e assim por diante, e a sociedade segue em frente por um tempo. Mas se

sistematicamente, ao longo de um século, o ensino em tais assuntos for interrompido,

então o conhecimento do problema [dos símbolos] se atrofiará e você terá esse problema

peculiar do analfabetismo ao qual me referi ontem. Você simplesmente não sabe mais do

que está falando. Então você vê porque esse método é tão perigoso. Você tem uma

construção racional realmente complicada, um corpo de símbolos a ser mantido em

equilíbrio, tão importante [para manter] a sociedade em equilíbrio como, por exemplo, a

continuação e tradição e ensino de rito e culto através de um sacerdócio organizado

sociedade cosmológica. Todas essas coisas também precisam ser transmitidas para

manter a sociedade em ordem. O que temos que fazer é manter essa estrutura intelectual

em ordem. Se todo um corpo, como a filosofia, é jogado fora ou distorcido,

inevitavelmente, as interpretações errôneas rastejam para dentro.

Bem, acho que talvez devesse concluir com isso hoje, porque qualquer outra coisa

levaria a problemas muito complicados. Deixe-me apenas [mencionar] um [assunto] que

eu tenho que lidar mais extensivamente amanhã. Isto é, essa busca pelo fundamento,

como eu disse, torna-se temática e é elaborada na ocasião do aparecimento da consciência,

no sentido auto-reflexivo, na filosofia. Mas a busca [do] fundamento e a construção de

simbolismos que incluem o fundamento e insistem no fundamento ocorrem antes da

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filosofia. Terei que lidar com um desses [simbolismos] da próxima vez, com o

simbolismo da historiogênese; isto é, a construção unilinear da história [que decorre

continuamente] do terceiro milênio a.C. nas construções ideológicas mais recentes. É um

dos grandes simbolismos que vão desde as origens cosmológicas até o presente. É preciso

[entender] por que ele passa [até o presente] e por que ainda estamos preocupados com

exatamente os mesmos problemas na construção da história, como os sumérios e os

babilônios em 2000 a.C. Vou deixar isso para a próxima vez.

IV. A Revolta do Homem

Deixe-me [resumir] o curso do argumento das duas primeiras palestras, para que

possamos continuar com ela. Na primeira palestra, desenvolvi a posição do homem no

cosmos. O homem no cosmos tem um certo tipo de autocompreensão; esse tipo de

autocompreensão é o que eu chamo de humanidade. Quando esse cosmos dissocia-se sob

o impacto do despertar da consciência, a autocompreensão cósmica do homem é

substituída por uma nova autocompreensão à luz da consciência da participação do

homem no divino. Temos então um novo tipo de humanidade, um novo tipo de homem

compreendendo a si próprio.

[Na última palestra], tive que passar pelas consequências desse avanço em direção

a um novo autocompreensão. A consequência é que a estrutura da consciência se torna

clara como uma tensão do homem em direção ao fundamento de sua existência; esse é o

conteúdo da consciência. Ao mesmo tempo, isso é o que [os filósofos clássicos]

chamavam de razão: ter consciência do fundamento de si mesmo e de todas as coisas.

Todo raciocínio de um fundamento tem sua origem na estrutura de uma mente que tem

um fundamento e é consciente de um fundamento. A menos que você estivesse consciente

de um fundamento e tivesse problemas de um fundamento, não haveria nenhuma questão

de fundamento, e você não teria lógica nem argumento científico – não há critérios [para

eles]. Nesse contexto, o termo razão adquire vários significados, porque, na filosofia

clássica, a razão é, por um lado, a razão humana pela qual o homem se entende como

estando em tensão em relação à base da existência; [por outro] a razão também tinha o

significado do próprio fundamento. Então, a própria tensão é chamada razão e assim por

diante – na razão como constituinte do homem e da razão como constituinte da sociedade.

Além disso, quando esta dissociação do cosmos no mundo e numa divindade

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transcendente ao mundo ocorreu, todo o conteúdo mundial deve ser reconstruído sob este

novo aspecto, e temos os problemas da Ideia Platônica e da questão que uma coisa tem

forma através da participação na forma transcendente e assim por diante. Todas as coisas

que [...] aparecem no contexto de uma experiência primária do cosmos são o que são sem

necessidade adicional de construção. O novo fator que surge quando a consciência se

diferencia é, por um lado, a necessidade de construir, por outro lado, a possibilidade de

construir. Dada a necessidade de construir e, ao mesmo tempo, a aparência da

possibilidade de construir, você pode facilmente imaginar que se pode entrar em muita

má interpretação. [De fato], uma das consequências dessa aparência das possibilidades de

construção é, na verdade, um grande número de interpretações errôneas. Um bom

negócio, de certo tipo, de tal interpretação equivocada é peculiar ao período moderno,

com o qual eu quero lidar agora sob o título de “A Revolta do Homem”.

Deixe-me explicar brevemente o que quero dizer com isso. Na última hora,

expliquei que você tem a diferenciação da consciência no sentido de uma consciência de

que o homem tem uma base de existência e vive existencialmente em tensão em direção

a ela. Vamos simbolizar isso por uma linha com dois polos: do homem e do divino, ou

Deus. Com isso é dado, desde que eu tenho consciência reflexiva, um número de ideias

universais, como expliquei, uma ideia universal do homem que é caracterizado por essa

tensão. Ele é aquele que tem consciência – outras coisas no mundo não têm consciência

nesse sentido. Então a ideia universal da humanidade aparece, o homem e a humanidade.

Então, no polo de transcendência, surge agora a ideia de uma divindade universal sob a

qual todos os homens vivem, tornando-se homem pela sua presença sob a divindade

universal. Então o resto do mundo, agora com exceção do homem e da divindade, é um

mundo comum a todos – nós temos uma ideia universal do mundo nesse sentido. Essas

três ideias universais devem ser mantidas em equilíbrio. Você não pode isolar um contra

o outro porque assim que você isola um ou outro, os outros dois ficam sem sentidos.

Somente os três juntos são uma descrição adequada da realidade que antes era

experienciada na forma primária da experiência cósmica, e agora, no nível da consciência,

se divide nesses três universais, que cobrem toda a realidade. No nível da consciência, a

integridade da tensão, o equilíbrio da tensão, você pode dizer, é a condição de [manter]

toda a realidade em um equilíbrio adequado.

Mas obviamente, o equilíbrio pode se perder. Quero primeiro definir a questão da

revolta em termos do tipo peculiar de perda de equilíbrio que está ligada à revolta do

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homem – é claro que existem outras perdas de equilíbrio possíveis –, mas quero

caracterizar a do tipo moderna. Essas três ideias, como eu disse, são ideias e referem-se à

realidade, e elas se referem exatamente à mesma realidade que você também teve antes

de haver uma consciência diferenciada, e antes que houvesse alguma ideia. Nada mudou

na realidade, mas as ideias chegaram agora. Quando você hipostasia tal ideia e ergue-a

em um absoluto, como por exemplo a ideia universal do mundo, e tomá-lo como uma

realidade absoluta e exaustiva, [essas três ideias são deformadas e] você tem uma perda

de equilíbrio. O que acontece no período moderno é a construção da ideia do mundo em

um absoluto, como se o mundo existisse em si mesmo, o que não existe. Talvez esse seja

um problema difícil de entender porque estamos tão acostumados a falar do “mundo em

que vivemos”, ou do “mundo da física”, ou “o universo da física”, e assim por diante.

Nós tomamos como certo que existe tal coisa.

É absolutamente essencial para entender os problemas das ciências naturais, bem

como os problemas com os quais estamos preocupados aqui, que tal universo ou mundo

não existe. O que existe são as coisas únicas na existência espaço-temporal que nos

rodeiam. Os objetos que nos cercam, o prédio que nos rodeia, são coisas existentes no

tempo e no espaço. Mas o mundo não é uma coisa existente no tempo e no espaço. O

mundo, a expressão “mundo”, é uma ideia. O mundo não existe. Se você finge que o

mundo é um existente em qualquer sentido, você tem o ponto de partida para todo um

conjunto de novas construções, diferindo das construções originais, quando o cosmos se

dissociou no mundo e divindade transcendente sob o impacto de uma consciência

diferenciadora. Como eu disse ontem, [com] uma consciência diferenciada, você tem o

conceito de uma ideia de consciência como [constituindo] a natureza do homem. Você

tem uma ideia de um mundo imanente ao mundo e um Deus transcendente ao mundo, e

até agora está em equilíbrio. Se você ergue o mundo em um absoluto, um conjunto

inteiramente diferente de construções se estabelece. Você pode formulá-lo desta maneira:

se você tem o mundo como um absoluto, em vez das realidades anteriores, o homem se

torna uma função do mundo; Deus se torna uma função do homem.

Se, em vez da realidade original, uma parte da realidade for erigida em absoluto,

todas as outras partes devem ser interpretadas como uma função da realidade una e

absoluta, que [no fato real] é apenas uma parte da realidade. Porque a realidade, claro,

passa a existir como antes. Se você insiste que uma parte dessa realidade é “a” realidade,

o absoluto, você deve fazer algo sobre o resto da realidade que você não mais acredita ser

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realidade; você tem que interpretar como dependente. Para esta construção como

dependente eu uso o termo uma função. Há certas construções favoritas para expressar

tal característica funcional.

Quando dizemos que o homem é uma função do mundo, podemos pensar

especificamente no papel que a teoria da evolução desempenhou para fazer do homem

uma função do mundo. Porque uma teoria da evolução [...] – não como uma teoria

científica, mas no sentido ideológico mais amplo, em que geralmente falamos de evolução

– reduz o homem à última consequência natural de uma evolução natural, começando de

alguns princípios e, através da cadeia do ser orgânico, culminando no homem. O homem

é uma função dessa natureza que está em evolução, o último produto dela.

Agora, por que não deveria ser assim? Não se pode usar essa construção pela

seguinte razão – deixe-me explicar isso imediatamente. No século XVIII, quase um

século antes de a teoria da evolução ser formulada na forma darwiniana, as pessoas já

falavam sobre o problema da evolução. Isso foi muito discutido pouco antes de 1750. Em

sua Crítica do Juízo [1790], Kant deu a razão pela qual uma teoria da evolução não pode

servir para fazer do homem uma função da natureza e deste mundo, o uso para o qual já

se destinava naquele tempo. Se você colocar o homem como o último item em uma cadeia

de evolução, você pode diagramaticamente [...] rastrear, de alguma forma, a vida em suas

formas mais simples, [...] orgânicas ou matéria animal. Você pode então demonstrar que

essa vida orgânica pode ter sua origem em uma cadeia de vida vegetativa ainda mais

avançada [no tempo]. Você pode então dizer que a vida vegetativa tem sua origem em

uma cadeia de várias formas de matéria inorgânica, até chegar ao último elemento da

física atômica, ou algo parecido. Isto é, você não tem um começo de homem. Você não

pode explicar o homem colocando arbitrariamente um começo em algum lugar dentro

dessa cadeia. Mas se você levar a evolução a sério, você sempre terá que voltar ainda

mais para o vegetativo, para a parte inorgânica, e assim por diante [até que] chegue à

questão da matriz de uma questão que potencialmente contém toda a evolução.

Mas você ainda se depara com a questão: de onde vem essa matéria, quem a

inventou e dotou-a do tipo de evolução que levou, no final, a culminar no homem? Não

remontar a um começo imaginário nos levará em torno da questão de que não há começo

no tempo. O começo é sempre um problema mítico ou metafísico. Ainda nos deparamos

com as famosas perguntas de Leibniz: Por que há algo? Por que não nada? e por que as

coisas são como são? Isso está no começo. Sem qualquer preconceito sobre o conteúdo

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empírico de toda observação científica sobre evolução – eles estão perfeitamente corretos

– uma teoria da evolução não fornece uma explicação do homem, apenas empurra-o de

volta a um começo imaginário. Essa é uma possibilidade, e essa possibilidade já contém

um sério problema estrutural do pensamento moderno (ao qual teremos de voltar mais

tarde). Explicações, como a explicação do homem como uma função da natureza com

base em uma teoria da evolução, sempre se baseiam na suposição de que não há ninguém

presente na audiência que faça perguntas desagradáveis como Kant, [aquelas que] e

analisar [evolução] para os seus primórdios, levantando o problema do começo e origem

de tudo. Somente quando as premissas não são questionadas, o argumento da evolução

pode funcionar.

Aqui voltamos a um problema que eu [toquei] na primeira dessas palestras, a

questão do analfabetismo, especificamente no campo filosófico. Quando há um certo grau

de analfabetismo crescente na sociedade, é possível desenvolver todo tipo de teoria, como

uma teoria da evolução com essa intenção [ideológica], e ninguém a questionará, porque

ninguém sabe o suficiente sobre filosofia para fazer perguntas desagradáveis. Isso é

suficiente para essa pergunta: o homem como uma função do mundo.

O próximo ponto é que Deus é uma função do homem. Esse ponto [tornou-se

agudo] no século XIX com a “psicologia da projeção” de Feuerbach. Todas as ideias

religiosas, especialmente a ideia de Deus, foram concebidas por Feuerbach como uma

projeção de conteúdos da mente humana em um além. Hoje, a psicologia da projeção é

praticamente uma parte aceita da ciência da psicologia, especialmente em sua forma

psicanalítica. Lá foi desenvolvido em uma psicologia da religião como uma ilusão. Mas

começou com o colapso dos sistemas idealistas alemães depois de Hegel, quando, muito

[urgentemente], a pergunta tinha que ser feita: se alguém não consegue explicar essas

ideias na forma gnóstica específica de um sistema hegeliano que foi rejeitado, de onde

elas vêm? A psicologia da projeção de ideias religiosas tem seu começo crítico aqui. É

claro que sua pré-história remonta ao século XVII, mas eu não quero entrar nisso. A

explicação psicológica das ideias religiosas é o veículo pelo qual Deus e as ideias

religiosas são transformadas em funções da psique humana. Aqui você tem o primeiro

espectro de construções que são usadas quando o mundo é erguido em uma entidade

absoluta. Ou seja, a ideia do mundo é transformada em uma entidade, o que Whitehead

chamou de “a falácia da concretude equivocada”.

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Se você atribui a uma ideia [a] concretude [de] uma entidade [...] se você tem tal

concepção do mundo como se "o mundo" fosse real, você pode deixar que essas outras

construções sigam. O homem é uma função deste mundo e Deus é uma função do homem;

e nisso depende toda uma riqueza de problemas adicionais. Desde que acabei de

mencionar Feuerbach, deixe-me mencionar também Marx. Feuerbach ainda deixava o

assunto no nível da psicologia das projeções, enquanto Marx dizia de maneira mais

consistente: “Por que deveríamos projetar? Vamos puxar essas projeções de volta para

nós mesmos onde começaram!” Isso significa: Vamos trazer a divindade de volta à nossa

humanidade e, assim, tornar-nos deuses, ou, se não, deuses, pelo menos, super-homens.

A expressão “super-homem” foi usada por Marx para designar o homem que puxou a

projeção de Deus de volta para si mesmo. O mesmo termo foi então usado por Nietzsche

para praticamente o mesmo propósito. Então, isso seria o fim de tudo: quando essas

funções são entendidas como funções e uma delas as traz de volta à realidade originária

do homem. Com isso, a revolta do homem se torna visível como uma revolta contra Deus.

Deus é tragado no homem e o homem divinizado se torna o centro de toda a realidade,

como foi feito nos séculos XIX e XX.

Esta é a primeira cadeia de tais construções que temos que seguir. Eu darei mais

duas construções principais nesta hora, e elas [seguirão] o problema que eu toquei na

primeira dessas palestras, a questão do tempo. Eu expliquei que se você pode imaginar o

tempo como uma linha, você teria que definir o ponto de presença como a interseção do

tempo com a dimensão da eternidade: onde esses dois se cruzam, seria o ponto de

presença. [Voegelin aponta para um diagrama.] Você sempre tem construções

especulativas, penetrando em uma ou outra dessas direções de tempo, até a origem, seja

no começo (no tempo) aqui, seja na origem no início transcendente (na eternidade), aqui.

Esses dois problemas de origem estão de acordo com as duas dimensões do tempo.

Descreverei agora algumas construções modernas que exemplificam essa revolta:

primeiro, passando pelo que acontece na dimensão vertical, em relação ao transcendente,

e então [passando pelo] que acontece na horizontal, o início do tempo de forma mítica.

O problema vertical, como você pode imaginar depois do que acabei de dizer em

relação à primeira construção geral, será muito peculiar. Se você primeiro construiu o

mundo como o absoluto, então o homem como uma função do mundo, então Deus como

uma função do homem, então obviamente a estrutura da consciência como uma tensão

em direção ao fundamento divino é destruída. Você não tem mais razão em sua forma

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original, mas decapitou Deus, e o que resta é o polo humano da razão. Quando somente

o polo humano da razão é deixado, o conteúdo da razão, que é precisamente a tensão em

direção ao fundamento, a consciência do fundamento, é destruído. Uma vez que o homem

não pode viver, ou não vive, sem contar para si mesmo em termos de um fundamento,

Deus, o fundamento transcendente, deve ser substituído por motivos substitutos do ser.

Deixe-me enumerar algumas das instâncias.

Começa no século XVIII com a substituição de uma ordem divinamente concebida

de homem e sociedade pela ideia de ordem na sociedade através do equilíbrio das forças

econômicas e a lógica de um ótimo de produção de bens. A concepção da economia do

século XVIII é que, quando todos os homens lutam pela máxima satisfação de seus

desejos e trabalham o melhor que podem competindo uns com os outros por um aumento

na produção de bens, o resultado será uma ordem equilibrada da sociedade. pela

concorrência econômica.

Assim como a “razão” e a “razão imanente”, a competição econômica foi um dos

substitutos da razão que desapareceu. Em vez de ser orientado para Deus, o propósito da

ação [foi substituído] pela racionalidade econômica e pelos tipos de racionalidade

imanentes ao mundo.

Ou, também no século XVIII, a ideia parece que a sociedade, tanto internamente

quanto nas relações internacionais, pode ser mantida em equilíbrio através do equilíbrio

de poderes. A paz de Utrecht em 1713 já previa uma ordem mundial (na época uma ordem

europeia) com base no equilíbrio das grandes potências. Em vez de orientar a vida de uma

pessoa para com Deus, a lógica do poder, assim como a lógica da ação econômica, [era]

fornecer os propósitos pelos quais se esforçar.

Ou o fundamento do ser pode ser colocado estritamente no sentido geral, não no

esforço individual pelo lucro, mas nas condições sociais de trabalho. Marx fez isso em

sua concepção dos Produktionsverhältnisse. Então a luta de classes se torna uma situação

insatisfatória. E quando a luta de classes é superada pela vitória de outra classe sobre a

agora dominante, haverá novamente ordem. Se a ordem social fosse adaptada à ordem

econômica dos Produktionsverhältnisse, haveria ordem. Isto é para ser alcançado através

da revolução.

Ou, em vez de uma ordem divinamente orientada, pode-se ter evolução. A teoria da

evolução, que acabei de mencionar, era, em sua forma original darwinista, baseada em

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grande parte no tipo de argumento utilitarista inglês da sociedade burguesa. Na sociedade

competitiva, os mais aptos sobreviveriam; novamente a sobrevivência do mais apto [era]

fornecer algum tipo de ordem. De lá, você teria que tomar medidas: se você derrotar o

outro homem na competição, competição política ou competição internacional, e assim

por diante isso provaria que você é o mais apto. Eu não vejo o que mais poderia provar,

[...], mas que algo poderia ser concebido como [uma] ordem [para substituir] uma ordem

ética.

Ou pode-se dizer que a base de toda ordem no mundo, de toda ordem inteligível,

está nas raças e na luta entre raças. Também encontramos isso no século XIX com Klemm

e Gobineau.

Ou pode-se dizer que a ordem da existência humana é determinada por algum tipo

de equilíbrio nos instintos ou impulsos naturais. Isso remonta à psicologia dos séculos

XVII e XVIII, à ideia da libido dominandi, do amour propre como princípio de ordenação

na vida de alguém. Permite a calculabilidade nas ações do homem: calcula-se que ele fará

o que satisfará suas paixões. Se isso é usado como regra, pode-se governar o homem

apelando para as paixões, [...] condicionando-as adequadamente. [Essa é a] concepção do

instinto como fator de equilíbrio, um fator determinante.

E assim por diante, é possível desenvolver filosofias complicadas da história sobre

as quais terei mais a dizer mais tarde. Você vê, pode-se percorrer toda a hierarquia do ser,

a partir do argumento racional utilitarista geral [que] você opera para obter lucro através

dos níveis biológicos da raça, ou [...] no nível psicológico, como as psicologias mais

antigas ou a psicanálise moderna. e sempre encontrar, em algum nível, [o fundamento

substituto do ser] para o fundamento do ser que se perdeu. Se você colocar isso em um

diagrama, você pode dizer: Se essa é a figura de um homem, e aqui está a relação vertical

com sua divindade transcendente, você pode cortar o psicológico, o fisiológico, o

orgânico, o inorgânico, o vegetativo, [o] animal – qualquer coisa fora da hierarquia do ser

e usá-lo como um fundamento ao invés do fundamento [real]. Atravessar os vários tipos

de fundamentos substitutos é de certa importância porque, como você vê, o homem

participa em todos os níveis da hierarquia do ser – ele também faz parte da matéria

inorgânica, parte da vida orgânica, da vida vegetativa, vida animal e vida psicológica. Se

você passar por todos esses níveis, eles podem esgotar-se, mais cedo ou mais tarde,

porque há um suprimento limitado de tais níveis. De fato, durante os últimos duzentos

anos, [a especulação esgotou] todos os níveis. Isso [fato] tem uma certa consequência:

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você pode agora quase prever, na história das ideias, que quando todos estão exaustos,

dificilmente serão repetidos, porque não se cai duas vezes pela mesma fraude [...]!

De fato, não surgiram grandes ideologias no século XX. Todas as grandes

ideologias, como o marxismo ou o positivismo, pertencem ao século XIX e estão

praticamente esgotadas. Temos apenas as formas epigonais dos retardatários que, de

maneira burocrática ou institucional, exploram as ideologias criadas nos séculos XVIII e

XIX. Isso não significa que as ideologias vão morrer de repente. Uma vez que uma

ideologia é institucionalizada na forma de um regime, sua vida não depende de seu

esgotamento intelectual – já está intelectualmente exaurida – mas da vida de uma

burocracia, e isso dura muito mais que uma ideia! Do fato de que, digamos, o marxismo

foi criticado em partes já na primeira década de nosso século, por exemplo, pela análise

de Max Weber, não se seguiu que uma revolução comunista não pudesse ocorrer na

Rússia em 1918. Nem se segue que este regime comunista, agora estabelecido, não durará

mais uns duzentos anos, apesar do fato de que a ideologia marxista como tal tenha sido

criticada até a morte e de que não resta mais nada dela.

Isso vale para todas as ideologias assim que são institucionalizadas, seja na forma

de um grupo dominante ou de um grupo socialmente dominante em uma sociedade – ela

não pode simplesmente ser derrubada. Sua exaustão no nível intelectual não significa que

esteja exaurida como força social. É preciso ter em conta que estas interpretações erradas

são conhecidas como interpretações erradas. E claro, também sob regimes totalitários,

como o regime comunista, os homens não são comunistas, mas seres humanos e sabem

disso. Eu estava na Iugoslávia no outono passado, em Zagreb, e encontrei na faculdade

de ciência política (havia seis pessoas [...]), que todos insistiram que não eram

“comunistas”, mas “marxistas”, como eles chamavam isto. Quando você pergunta qual é

a diferença entre o comunismo e o marxismo, verifica-se que o marxismo são as ideias

do jovem Marx, especialmente do manuscrito econômico-filosófico de 1844. (Essas

pessoas estão muito perto do existencialismo do século XX, e eles estão muito

intimamente familiarizados com o existencialismo francês.) De qualquer forma, não é o

comunismo. O comunismo é para burocratas e outras pessoas estúpidas. Aqui está uma

estratificação social interna que é importante e que, tanto quanto sei, existe de uma forma

ou de outra em todas as sociedades comunistas. Você não pode dizer como esta resistência

interna sairá a longo prazo, mas nenhuma mudança inicial é esperada.

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Esse é o terceiro desses grandes equívocos na direção do transcendente – que na

verdade não pode estar na direção do transcendente porque isso é cortado – que se

expressa na intervenção de fundamentos substitutos em vez do fundamento do ser. Esse

é um desses corpos de construção com os quais temos de lidar, “o homem revoltado”. É

claro que, a propósito, isso significa que todas as ideologias, sejam elas de uma ou de

outra variedade, são teoricamente, ou como ciência, todas erradas – [a esse respeito] não

temos que nos preocupar com eles. Nós podemos esquecê-las.

A outra direção para o começo é a horizontal; estas são as duas possibilidades. Mais

uma vez, começando com o final do século XVII e depois no século XVIII, temos a

filosofia da história; às vezes se esquece que isso é peculiar ao período moderno. A

filosofia da história é também uma forma moderna de simbolizar os problemas da história

– nem sempre temos uma filosofia da história. Podemos ter a substância do problema,

mas o termo filosofia da história é moderno. Começa no século XVIII, praticamente com

Voltaire. Nestas filosofias modernas da história, as [...] socialmente dominantes

[expressam] a situação do homem em revolta. Todos eles são construções unilineares da

história. Ou seja, eles constroem a história como algo que começa em algum lugar no

começo, muitos milhares de anos atrás, às vezes centenas de milhares de anos atrás, e leva

até o presente em uma linha reta de significado. A construção unilinear é o problema, e

nisso há uma história um pouco mais longa.

Deixe-me explicar isso brevemente. Já na primeira dessas palestras, expliquei que,

no que diz respeito às civilizações cosmológicas e aos problemas gerais da experiência

cósmica, ainda temos o equívoco amplamente difundido de que nas primeiras civilizações

sempre há uma concepção de tempo cíclico. Mencionei que nas primeiras civilizações

nunca há uma concepção de tempo cíclico; isso ocorre em nenhum lugar. Mas há outra

concepção de tempo além do tempo rítmico, e esse é o tempo linear. Deixe-me explicar

um pouco como o tempo linear funciona e como essas construções operam. As

construções da história no padrão linear aparecem pela primeira vez aproximadamente no

século XXII antes de Cristo, nas civilizações suméria e egípcia, e continuam até o

presente. Caracteristicamente elas aparecem em períodos de crise. Esse é um ponto

importante porque nossas [concepções] também aparecem em um período de crise. Eles

aparecem em um período de crise quando um império está em perigo, ou um regime fo i

derrubado – ou após um período de desordem [quando o regime] foi reconstruído, ou

durante um período de desordem, ou perigo, e assim por diante. De alguma forma, o

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perigo para um império de ser derrubado ou de [um império] ter sido derrubado está

sempre envolvido. Essa é a situação em que tais construções aparecem.

Eu lhes darei agora o modelo da construção suméria da história, porque esse é o

padrão que é continuado diretamente nas construções contemporâneas. A Lista de Reis

Sumérios é feita da seguinte maneira (a análise foi feita por Thorkild Jacobsen,

anteriormente do Chicago Oriental Institute, agora na Harvard Divinity School). Havia

várias cidades-estados sumérias com histórias paralelas – nós pegaremos as mais

importantes. Deixe-me colocá-los assim [Voegelin faz um esboço]; há mais de duas

histórias paralelas de cidades-estados suméria. Em um ponto todas as cidades-estados

foram unificadas por uma dessas cidade-estado em um império sumério, e os

historiadores, ou talvez se devesse dizer neste caso, os teólogos, os teólogos da corte desse

império sumério, [construíram] uma história suméria. Essa história assumiu a seguinte

forma. Em primeiro lugar, há a parte das histórias da Lista de Reis Sumérios que correm

nesta parte paralela a esta. E então eles começam a extrapolar - tomando uma dessas

histórias da cidade após a outra e fingindo que estão em uma linha que precede o império

sumério, [e] seguindo um ao outro, não correndo [lado a lado].

[Mas] isso não foi suficiente, já que ainda havia uma grande parte das pessoas que

estavam bastante próximas das histórias das cidades-estados. Então eles os cortam em

pedaços. Eles não tomam toda a primeira parte em cada período, mas tiram uma parte

daqui, uma parte de lá, adicionam-nos e fazem uma colcha de retalhos de três ou quatro

dessas subseções desta história, empurrando-a cada vez mais para trás até a história das

cidades-estados suméria, com base nos registros, está esgotado. E então eles ainda não

estão felizes. Mas quando eles têm muito bem empurrado [na linha temporal] de volta

para os limites externos – extrapolando para o começo do mundo e a criação do mundo

pelos deuses com uma pré-história mítica – o registro histórico começa, organizado neste

peculiar estilo de retalhos, até chegar à história do Império Sumério. Dessa forma, você

faz de um tipo pluralista de história paralela uma história de uma linha chegando até o

presente que explica por que o atual império sumério é a única ordem legítima do mundo,

criada desde o princípio pelos deuses.

É assim que começou. A mesma técnica é seguida por todas as outras filosofias da

história e especialmente as modernas. Deixe-me dar um exemplo, por exemplo, a filosofia

da história de Hegel. Eu não quero entrar nos menores; lá você entra em outras coisas. Eu

vi uma vez, infelizmente eu esqueci o autor, mas era um americano, que fez uma história

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unilinear do mundo dividida em três fases. A primeira fase foi do começo do mundo até

1798. A segunda fase foi de 1798 à Legislação Anti-Católica. E a terceira fase [foi] o

declínio da humanidade, começando com a Legislação Anti-Católica! Então você pode

fazer todo tipo de coisa e pegar as coisas mais engraçadas se entrar nos cantos e recantos.

Mas vamos nos ater aos grandes, como Hegel. O que ele faz? Sob o pretexto de uma

sequência cosmológica, ele tem uma sequência de impérios. Existem primeiro os

impérios asiáticos, os chineses, os indianos e os persas; então entramos no mundo romano

e no mundo greco-romano e, finalmente, no moderno mundo germânico e cristão.

Vamos nos ater ao tipo antigo. Acima de tudo, o interessante é o império persa.

Porque se você olhar para a cronologia (e a cronologia já era muito conhecida no tempo

de Hegel), você pensaria que o filósofo da história começaria seus materiais com as

civilizações mais antigas conhecidas. E eles seriam o Oriente Próximo, o Egípcio, o

Sumério e o Babilônico. Isso seria a coisa natural a fazer. Em vez disso, ele começa com

os chineses, que é posterior. E agora o persa tem uma função muito peculiar. Sob o

império persa, ele compreende (e explica por que ele faz assim) o império que vem no

final de toda uma civilização, neste caso até mesmo uma área multi-civilizacional. Com

o império persa, ele significa apenas todos os estados do reino único, ou seja, lá como

você queira chamá-los, que foi gradualmente absorvido ou conquistado pelo império

persa. Isso significa que sob o império persa aparecem os sumérios, os babilônios, os

assírios, os egípcios, os judeus e os sírios – tudo: todo o Oriente Próximo, que em um

tempo foi o império persa e foi, de fato, unificado no império persa.

Aqui você tem a mesma técnica que no caso sumério. Existem várias histórias

paralelas; há história egípcia, suméria, babilônica, assíria e judaica, os reinos da Síria e

Lídia, e Deus sabe o que mais. Tudo isso não lhe interessa. Todos são reunidos no último

ramo do império persa a fim de obter uma boa linha, porque se ele não fizesse a construção

dessa maneira, ele nunca poderia elaborar uma única linha da história. Ele obteria

histórias paralelas. [Se ele tivesse usado seus materiais] corretamente, ele teria, digamos,

a linha mais antiga, começando pelos antigos impérios do Oriente Próximo, como o Egito,

a Suméria e a Babilônia e descendo, digamos, para o Império Romano ou algo assim. E

você teria uma história chinesa paralela e uma história indiana funcionando

paralelamente, mas você nunca chegaria a uma linha porque há várias histórias paralelas.

Então ele deve fazer o mesmo trabalho de retalho e de mendicância que um

historiador da cidade e historiador do império sumério fez para produzir uma única linha

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de história, que culmina em seu pleno significado no presente de Hegel. Se ele não fizesse

isso, o presente de Hegel se tornaria um pouco duvidoso. Isso é muito importante. Um

historiador mais objetivo, como Voltaire no século XVIII, já havia visto isso e falsificado

a história cristã de uma linha de Bossuet naquele terreno. O que significa, essa

maravilhosa história que remonta ao começo do mundo com base no Antigo Testamento,

subindo então através do cristianismo, do império romano e do império ocidental até o

presente? Existem paralelos que são muito mais importantes do que qualquer coisa: os

impérios islâmicos, os impérios chineses, existem outros continentes inteiros e assim por

diante. E onde está essa história de uma linha? Não há histórico de uma linha. Assim,

Voltaire tinha essa concepção, mas não estava mais na construção ideológica de Hegel.

Lá você tem a única linha da história; e esta obsessão de uma linha, se você quiser chamá-

la de uma espécie de construção obsessiva – a história deve ser uma linha – é seguida por

todas as construções ideológicas. Você tem a mesma construção de uma linha na

construção de Marx-Engels de um comunismo primitivo, depois o período do estado e a

guerra de classes, e depois o comunismo final. Mais uma vez, uma linha reta que atravessa

toda a humanidade.

Esse problema peculiar e seu significado tornam-se visíveis pela primeira vez, e

talvez tenham sido melhor formulados - conscientemente ou semi-conscientemente –

porque, se a arrogância tivesse sido bastante consciente, isso não teria sido feito por

Turgot no século XVIII. Turgot fez tal construção de uma linha, essencialmente já a

construção de uma linha que encontramos em Comte e outros exemplos de três fases. Ele

disse que estava ciente de que, obviamente, a humanidade não se encaixa em tal padrão.

Embora haja muitas pessoas que [assumem] que chegaram agora a um período de ciência

e iluminação positivistas, a vasta maioria da humanidade não sabe que está vivendo em

tal período de iluminação, porque a era do Iluminismo é confinada a um enclave muito

pequeno da humanidade na Europa Ocidental ou, em casos especiais, a intelectuais

parisienses. No entanto, para justificar a construção, Turgot supõe que a humanidade é

uma masse totale, uma massa total.

Você pode fazer julgamentos com relação a toda a humanidade referindo-se à sua

parte representativa, que presume que você que faz os julgamentos é a parte

representativa. Todos os intelectuais franceses no século XVIII estavam dispostos a dizer

que eles eram a parte representativa da humanidade. Turgot o fez, depois Condorcet, e

depois, é claro, tornou-se costume geral de todos os intelectuais serem a parte

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representativa da humanidade e julgar toda a humanidade sob a suposição de que eles

mesmos são representantes da humanidade. Essa suposição da totalidade da massa [e de

seu ser] representada pelo respectivo especulador da história é o pressuposto das

modernas construções unilineares da história, seja de Condorcet, ou Comte, ou Hegel, ou

Marx, ou de qualquer [outra pessoa]. Cada um deles só é possível e só faz sentido sob a

suposição de que há de fato apenas uma linha da história, que é uma linha de crescente

significado, que seu significado chega ao seu mais alto desenvolvimento na pessoa do

respectivo pensador, que o que é representado por este pensador é representativo de toda

a humanidade, e [que] a construção é, portanto, válida para toda a humanidade; [apenas]

como a construção suméria, a história da humanidade é representada pelo império

sumério, e [isso é].

Isso é extremamente importante na política prática porque, com base nessa

suposição – que o credo desse respectivo intelectual é representativo de toda a

humanidade – repousa, é claro, a agressividade de todos os movimentos ideológicos,

intelectuais e totalitários. Ou seja, todos os movimentos intelectuais e ideológicos são

inerentemente totalitários porque o homem é feito em função da história e [as ideologias]

afirmam ser válidas para todos. Se alguém é ignorante o suficiente para não saber que ele

pertence àquela idade particular da humanidade representada pelos respectivos

intelectuais, isso é muito ruim para ele. Se ele resiste, ele deve ser morto ou colocado em

um campo de concentração ou algo assim. [Em qualquer caso,] ele tem que se submeter.

Portanto, temos aqui todo um conjunto de construções que são a base dos regimes

totalitários modernos e sua eficácia. Essa é a suposição de que há uma história unilinear,

que a história tem uma série de idades, que suas idades estão em uma linha ascendente, e

que a última, que é sempre o presente, é a mais alta dentro dela, para não ser superada por

qualquer outro. É o mais alto e o último. Nesta dupla qualidade do mais alto e último,

repousa a reivindicação de seus representantes, de que todos os que vivem têm que se

submeter a ela. Parte da eficácia de tal ideia repousa no fato de que a maioria das pessoas

que estão imediatamente interessadas tem, na melhor das hipóteses, uma variante de tal

afirmação absoluta e, portanto, já existencialmente deformada o suficiente para aceitar a

reivindicação do outro homem, se provar ser poderoso. Mas a concepção geral de que

estamos vivendo em uma “era” é uma concepção ideológica. A noção de que estamos

vivendo em uma “idade” e temos que nos comportar apropriadamente para sermos

membros dessa “era” tem suas origens nessas construções da história e é a base da

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imposição terrorista totalitária em outras pessoas. Aqui você tem o problema da

horizontal, e isso remonta à sua forma mais antiga, aos primórdios sumérios e egípcios

da construção não-historiogênica da história. Uma dessas construções historiogenéticas

da história, a mais importante, é claro, é que no Antigo Testamento, desde a criação do

mundo até Israel.

Estes são dois tipos especulativos. Eu não quero ir mais longe neles; eles são muito

complicados. Mas vamos um pouco nas consequências. O que é construído em tais

construções – na direção de um substituto para o fundamento, na direção vertical ou em

construções históricas na direção do tempo horizontal – é o que hoje é frequentemente

chamado de segunda realidade. A realidade em que vivemos é substituída por uma

segunda realidade da construção humana. A imposição de segundas realidades é o

momento de perigo em nossa civilização contemporânea, porque essas segundas

realidades se tornaram tão socialmente dominantes, e a primeira realidade se atrofiou tão

fortemente (pelo menos no nível público de debate), que facilmente se submete a

segundas realidades. Então, se alguém propõe algo para você em termos de ciência,

digamos, “a ciência diz isto ou aquilo”, você já está chocado porque acredita que a ciência

tem algo a dizer. Você não está ciente de que “ciência” é uma figura alegórica e “ciência”

não diz nada, mas alguma pessoa específica diz algo que pode estar totalmente errado.

Você pode dizer que essas segundas realidades já possuem um valor de prestígio. Ora,

esses valores de prestígio só podem ser mantidos, é claro, se não forem feitas perguntas

sobre as evidências trazidas para tais construções de segundas realidades. (Eu já toquei

neste problema.) Mesmo no caso de um sistema filosófico – seja ele hegeliano ou marxista

– você não faz perguntas desagradáveis com relação à validade de suas premissas. Se

você admitir as premissas, tudo segue bem porque esses homens pensam mais ou menos

logicamente. Mas se você fizer perguntas sobre as instalações, todo o sistema se rompe.

Então, não fazer perguntas é muito importante. Ou, na esfera empírica, em detalhes com

o caso de Hegel, que eu apresentei, parece maravilhoso se você acabou de ler essa

filosofia da história e não fazer perguntas. Mas o que, por exemplo, se tornou do império

egípcio em todo esse assunto? Se for necessária evidência empírica, se você fizer

perguntas, essas coisas se quebram. Um fenômeno interessante do nosso tempo é que, em

primeiro lugar, as pessoas que fazem tais construções não são dissuadidas pela evidência

de fazê-las; segundo, [e] curiosamente, aqueles que são as supostas vítimas de tais

construções geralmente não fazem perguntas, mas acreditam no que lhes é dito.

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Esse é um fenômeno peculiar. Nós estamos realmente vivendo em uma atmosfera

de segundas realidades, porque os construtores das segundas realidades não se fazem

perguntas sobre os sistemas e aqueles que são as vítimas também não fazem perguntas.

Como esse fenômeno, se não deve ser explicado, pelo menos, deve ser descrito?

Quero dar a descrição do fenômeno, com alguns comentários, que Sartre deu em

sua obra O Ser e o Nada. É o capítulo sobre má fé. Estamos na esfera da má fé se

construções obviamente em conflito com evidências são feitas e se questões relativas a

evidências não devem ser feitas e de fato não são feitas. Por que não se, apesar da

pergunta, todo mundo sabe que algo não está na melhor ordem? Deixe-me ler essa página

de Sartre com alguns comentários.

Má fé [diz ele] não mantém as normas e critérios da verdade, pois são aceitos pelo

pensamento crítico de boa fé.

Definição geral.

O que decide primeiro, na verdade, é a natureza da verdade.

É má fé que decide sobre a natureza da verdade.

Com má fé, uma verdade aparece, um método de pensar, um tipo de ser que é como o dos

objetos; a característica ontológica do mundo da má-fé com que o sujeito se envolve

subitamente é esta: que o ser aqui é o que não é e não é o que é.

Existe uma nova definição de verdade contida em todas as construções de má fé. E

essa nova definição de verdade é que o que é real não é verdadeiro e o que não é real é

verdadeiro. Todo mundo que já viu um regime totalitário em ação sabe como isso

funciona.

Consequentemente, um tipo peculiar de evidência aparece: evidência não persuasiva.

Por não-persuasivo entenda-se “evidência que não é real, mas que é aceita como

evidência mesmo que não seja”. Você veja! Todo o processo foi muito bem analisado por

Koestler em sua obra O Zero e o Infinito, a evidência não persuasiva.

A má fé apreende provas, mas resigna-se antecipadamente a não ser cumprida por esta

evidência...

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A descrição moderna dessa fé.

Torna-se humilde e modesto; não é ignorante, diz, que fé é decisão e que após cada intuição,

ela deve decidir e querer o que é. Assim, a má fé em seu projeto primitivo e em sua vinda

ao mundo decide sobre a natureza exata de suas exigências.

Você imediatamente vê o que isso significa...A verdade é apenas intrasistêmica –

digamos, na interpretação do sistema hegeliano, como ensinado por um hegeliano.

Primeiro você deve aceitar as premissas e depois discutir seu conteúdo. Claro, então você

está afundado porque o erro está na premissa e não nos detalhes. Condições especiais para

argumento são definidas. Um deles é: nunca permita questionar as instalações. Como isso

é feito?

A má-fé se destaca na firme resolução de não exigir demais, de se considerar satisfeito

quando mal é persuadido, de se forçar nas decisões de aderir às verdades incertas.

Agora, o que está aqui discretamente formulado significa que você está disposto a

ser persuadido de evidências insuficientes se quiser acreditar em algo e simplesmente não

olhar para o restante da evidência. Para dar um exemplo concreto: pude observá-lo, por

exemplo – você pode observá-lo em qualquer situação totalitária – nos anos 1930, em

Viena, quando o regime nacional-socialista já estava em ação na Alemanha. Em Viena,

pode-se obter todos os jornais, não apenas os nacional-socialistas, mas todos os jornais

franceses, suíços, alemães e assim por diante. Mas um bom nacional-socialista

simplesmente não leria os melhores jornais, dizem os jornais suíços, porque lá ele

descobriria coisas sobre o nacional-socialismo que ele não gostaria de saber. Claro, ele

só podia fazer isso - recusar-se a lê-los porque já sabia o que encontraria neles. Caso

contrário, antes de lê-los, ele não poderia saber que havia coisas neles que ele não queria

ler. Então você vê, sempre a complicada estrutura da má fé. Não é simplesmente

ignorância; você tem que saber que certas coisas são verdadeiras para não querer saber

que elas são verdadeiras. É uma complicação de muitos andares. Então, não é exigir

muito.

Este projeto original de má fé é uma decisão de má fé sobre a natureza da fé.

Acreditar em evidências insuficientes é uma decisão; é um ato imoral de acreditar

com evidências insuficientes.

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Vamos entender claramente que não há questão de uma decisão voluntária reflexiva, mas

de uma determinação espontânea de nosso ser.

Aqui chegamos agora ao ponto crucial, a determinação do nosso ser. Não é assim

que este homem diz, eu sei que é assim e eu não quero saber porque estou simplesmente

dizendo o contrário, ou algo assim. Ele não é um mentiroso. É um complicado processo

psicológico em que se sabe ao mesmo tempo que não se sabe. Por exemplo, Sartre, muito

excelentemente, dá um exemplo de tais problemas em casos patológicos, um conceito da

psicologia de Freud, o censor. O censor da psique é aquela função da psique assim

chamada por Freud, pela qual o conteúdo do subconsciente é impedido de chegar à

superfície. O que, é claro, o censor só pode fazer se ele sabe o que está lá e, portanto,

impede que ele chegue à superfície. Se ele não soubesse o que estava lá e por que não

deveria vir à superfície, não poderia ser impedido de vir à superfície. Assim, o

inconsciente não é inconsciente, mas é uma repressão consciente do que se sabe. Isso nos

dá um problema muito interessante. O conceito de inconsciente em si é insustentável,

porque, a menos que o inconsciente fosse mantido pelo censor, o que pressupõe que a

consciência saiba o que está no inconsciente, você não teria problema algum. Aqui, em

casos patológicos, você tem um bom exemplo disso. Ele continua:

Põe-se de má fé quando se vai dormir e se é de má fé como se sonha.

Então a comparação com um estado de dormir ou sonhar; estas são as comparações

que ele desenha. Não é uma ação voluntária, não uma mentira reta. Um mentiroso

contumaz é uma pessoa honesta em comparação com tal.

Uma vez que esse modo de ser tenha sido percebido, é tão difícil sair dele quanto despertar-

se...

Por isso estou dando uma descrição vívida: acho que é uma boa descrição; as

pessoas não podem sair disso.

Má fé é um tipo de ser no mundo, como acordar ou sonhar, o que por si só tende a se

perpetuar, embora sua estrutura seja altamente desequilibrada.

Ele chama isso de um tipo “metaestável”; isso significa, de um equilíbrio precário.

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A má-fé é consciente de sua estrutura e tomou precauções ao decidir que a estrutura

[desequilibrada] metaestável é a estrutura do ser e que a não-persuasão é a estrutura de toda

convicção.

Então, se você entrar em discórdia com alguém e pressioná-lo no assunto, ele dirá:

“Toda fé é má fé” ou “Toda opinião é apenas opinião”, ou o que se pensa ser uma

ideologia, e “Nada é realmente verdade”, e assim por diante. Esse é o fim disso – nós não

pedimos. Ou o argumento continua:

Toda crença é uma crença que fica aquém; ninguém acredita totalmente no que acredita.

Caso contrário, alguém saberia com certeza.

Consequentemente, o projeto primitivo de má fé é apenas a utilização dessa autodestruição

do fato da consciência.

Que toda crença contém um elemento de não crença.

Se toda crença em boa fé é uma crença impossível, então há um lugar para toda crença

impossível.

Essa seria a estrutura interna da má fé. E ele continua explicando:

É muito verdade que a má-fé não consegue acreditar no que deseja acreditar. Mas é

precisamente a aceitação de não acreditar no que acredita ser má fé. A boa fé deseja fugir

do “não-crer no que acredita” encontrando refúgio no ser.

Agora vem a solução do problema. Pode-se sair da má fé a qualquer momento pelo

refúgio do ser, apelando para a realidade, tendo respeito pelas evidências. Se alguém não

tem que ele tem que duvidar de todas as crenças com antecedência, mas:

A má fé foge ao se refugiar em “não acreditar no que acredita”.

Então erigindo má fé na natureza geral da humanidade. Todas as opiniões são

opiniões e uma opinião é tão boa ou tão ruim quanto qualquer outra e, portanto, e assim

por diante. O que Sartre está perfeitamente ciente é a possibilidade de sair da má fé

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encontrando contato com a realidade e aceitando evidências. Ele é perfeitamente claro

sobre isso. Agora essa é a descrição dele.

É uma descrição muito boa, mas toda essa passagem tem outra função muito

interessante, porque Sartre desenvolveu essa página com base em certas experiências

psicológicas na esfera privada, em relação a um amigo, a uma amante, a um expectador

em uma fé, e em breve. Ele nunca exemplifica esse problema no caso de uma ideologia,

um credo político, seja ele comunista ou outro. E se ele aplicasse sua descrição da má fé

à sua própria atitude em relação ao comunismo, por exemplo, sua atitude em relação ao

comunismo não seria possível. Se você aplicá-la nele, você tem no próprio Sartre a melhor

lição objetiva de um homem que pode até analisar o problema da má fé e ainda viver de

má-fé. [...] Portanto, essa passagem tem uma dupla importância, não apenas como uma

descrição, mas como uma lição objetiva em si mesma.

Deixe-me concluir com um ponto mais engraçado (não tem qualquer relação, mas

gostaria de chamar a sua atenção). Essa questão das segundas realidades, suas causas e

formas de aparência e assim por diante, atraiu a atenção durante todo o século XIX, e

recentemente encontrei na obra Paraísos Artificiais de Baudelaire com uma descrição

divertida do assunto. Os Paraísos Artificiais são sonhos induzidos por haxixe ou maconha

– drogas alucinógenas. Esse foi um grande problema na época de Baudelaire. O próprio

Baudelaire havia tomado haxixe e outros intelectuais ingleses antes dele como Coleridge,

De Quincey e assim por diante. Baudelaire estava realmente muito interessado no estudo

de De Quincey sobre o assunto, e ele faz os seguintes comentários sobre esse problema.

Ele diz que pelo uso de tais drogas pode-se induzir certos tipos de sonhos, e ele distingue

para esse propósito entre sonhos de paixão e sonhos de natureza hierofânica, como ele a

chama, preocupados com as relações com o divino. Ele acha que os sonhos de haxixe

estão principalmente preocupados com o sonho da paixão. Então ele faz um levantamento

das características dos homens que tomariam maconha com o propósito de ter tais visões.

Ele diz que seriam pessoas eticamente muito sensíveis, pessoas muito humanitárias,

pessoas que seriam tocadas por suas próprias boas intenções e, portanto, teriam uma

opinião muito boa sobre si mesmas, comparadas com outras que não têm tais boas

intenções, mesmo que tenham melhor ações; ou pessoas que são muito sensíveis ao curso

da história, e o peso dos problemas impostos pela história, e assim por diante. Então ele

vai um passo além e diz: “Aqui estou dando uma breve descrição de Jean Jacques

Rousseau. Lá você tem o homem que pode ter essas ideias sem usar drogas!”

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Agora isso abre certas perspectivas. Esse problema das drogas como indução a

certos tipos de sonhos que, na época de Baudelaire, já eram identificados como sonhos

[do tipo] em que intelectuais do tipo de Jean Jacques Rousseau se entregavam, dá uma

ideia aproximada de onde esses problemas mentem. Há uma séria deformação mental que

se tornou virulenta desde o século XVIII [ou seja,] o colapso dos três universais – a

estrutura lógica que expliquei – e a redução dos universais à ideia universal do mundo.

Isso apela para um certo tipo de pessoas que chamamos de intelectuais ou para tipos

relacionados. Quando os sonhos dessa forma não podem ser ativamente cumpridos na

vida desperta da construção por um homem como Comte ou Marx, eles também podem

ser realizados e levar à mesma satisfação com sonhos de expansão pessoal e

engrandecimento, e assim por diante, tomando drogas. Você tem uma sequência muito

curiosa, que às vezes é formulada como: Marx considerava a religião como ópio para o

povo, depois, na formulação de Raymond Aron, o marxismo é ópio para o intelectual e

agora o povo toma o ópio diretamente!

Os problemas, penso eu, têm que ser tomados nesse nível. Há uma relação séria

entre esse tipo de pensamento no modo da revolta e a deformação patológica que também

pode ser fornecida pela ingestão de drogas. Tenho a impressão de que em nosso tempo

essas duas linhas convergem em movimentos contemporâneos de consumo de drogas e

assim por diante que têm o propósito de produzir no nível individual precisamente

experiências de expansão e engrandecimento como no nível intelectual um homem.

digamos, por exemplo, Comte, poderia experimentar sem tomar drogas e, como o

fundador da nova religião da humanidade, se expandir para o substituto de Cristo. Isso

também pode ser feito por meio de LSD ou algo parecido.

Com isso, quero agora fechar, não para sempre, não no sentido de que chegamos à

última palavra. Podemos analisar esses problemas hoje porque, com aproximadamente

duzentos anos, se não mais, [dessa] revolta moderna específica, as [formas] seguiram seu

curso e tornaram-se inteligíveis. E não apenas hoje; já há cem anos, como você vê em

casos como Paraísos Artificiais de Baudelaire, sabia-se qual era o problema com pessoas

desse tipo. Mas hoje sabemos muito melhor; e temos o que não há cem anos atrás, os

instrumentos intelectuais para analisar os estados que tentei explicar aqui. Se alguém

formulasse o problema, talvez fosse necessário falar – o que eu expliquei na primeira

palestra – a realidade plena, como está presente na experiência primária do cosmos.

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Sempre que ocorre uma diferenciação, como a diferenciação da consciência, há o

perigo de que partes da realidade que não estão tanto no foco de interesse como a realidade

da consciência recém-diferenciada [seja] de alguma forma recuada para um pano de fundo

e não permaneçam no campo total da consciência. Quando as realidades são

negligenciadas, elas se tornam perigosas porque, fora da existência, elas emergirão em

alguma forma inconsciente ou em deformações no nível consciente. Quando, no nível da

consciência, a parte mais importante, a base, é obscurecida pelo tipo de construções que

expliquei hoje, praticamente toda a realidade relevante é movida para fora do horizonte

consciente da simbolização, e você [consegue] tudo tipos de distúrbios mentais, que eu

não posso entrar neste momento. Em parte, eles se expressam em tantas doenças quanto

foram analisadas, por exemplo, por Jung em sua versão da psicanálise. (As palestras de

Jung sobre religião, “As Conferências de Yale”, ou quaisquer outras obras de Jung, dão

exemplos interessantes do tipo de distúrbios causados pelo obscurecimento de setores da

realidade sob condições modernas).

Todos esses problemas são bastante conhecidos hoje em dia. Tudo tem a ver com a

estrutura da realidade. E o problema que enfrentamos hoje na ciência é a recuperação da

estrutura da realidade para saber que partes da realidade faltam em nossa imagem

contemporânea da realidade e como reintroduzi-las para sair dessa deformação mental

peculiar que, em alguns casos, pode assumir a mesma forma dos sonhos por meio de

intoxicação ou uso de drogas.

Muito obrigado a todos.

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