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HVMANITAS - Vol. L (1998) ANOS DA MOCIDADE DO DOUTOR FREIRE ANTóNIO JOSé DIAS DA COSTA 1. A velha amizade Viver doze anos debaixo dos mesmos tectos, estudar doze anos em carteiras próximas, dormir doze anos nas mesmas camaratas, comer nos mesmos refeitórios, ouvir os mesmos discursos, ler os mesmos livros, rezar as mesmas orações, brincar nos mesmos recreios os mesmos jogos, participar do mesmo ambiente comum, respirar dos mesmos ares é realmente sinónimo da mais viva e forte camaradagem. Ε isso aconteceu ao Freire e a mim. O ideal era o mesmo. O caminho a tomar era o mesmo. Há assim desta espécie de amizades que não se escolheram, e nascem, dentro de convívios fechados, inalteráveis, e assim se formam, persistem, resistem e insistem caldeadas que são, em tempos longos, graves esperas e anseios comuns! 2. Tempo que flui Que fica de todo esse tempo? Que se poderá relatar dele? Histórias sem termo de um dia a dia monótono e ainda assim surpreendente, como sempre sementes novas a vir a terreno, e a caírem nele prenhes de esperanças de vastas searas... Tudo começara, naquele primeiro dia de entrada bisonha de um pequeno grupo de jovens, pelas portas do Seminário, na maior parte dos casos, sem saberem bem ao que iam: os pais assim o haviam disposto e aos filhos pertencia obedecer.

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HVMANITAS - Vol. L (1998)

ANOS DA MOCIDADE DO DOUTOR FREIRE

ANTóNIO JOSé DIAS DA COSTA

1. A velha amizade

Viver doze anos debaixo dos mesmos tectos, estudar doze anos em

carteiras próximas, dormir doze anos nas mesmas camaratas, comer nos mesmos

refeitórios, ouvir os mesmos discursos, ler os mesmos livros, rezar as mesmas

orações, brincar nos mesmos recreios os mesmos jogos, participar do mesmo

ambiente comum, respirar dos mesmos ares — é realmente sinónimo da mais

viva e forte camaradagem.

Ε isso aconteceu — ao Freire e a mim. O ideal era o mesmo. O caminho

a tomar era o mesmo.

Há assim desta espécie de amizades que não se escolheram, e nascem,

dentro de convívios fechados, inalteráveis, e assim se formam, persistem,

resistem e insistem — caldeadas que são, em tempos longos, graves esperas e

anseios comuns!

2. Tempo que flui

Que fica de todo esse tempo? Que se poderá relatar dele? Histórias sem

termo de um dia a dia monótono e ainda assim surpreendente, como sempre

sementes novas a vir a terreno, e a caírem nele — prenhes de esperanças de

vastas searas...

Tudo começara, naquele primeiro dia de entrada bisonha de um pequeno

grupo de jovens, pelas portas do Seminário, na maior parte dos casos, sem saberem

bem ao que iam: os pais assim o haviam disposto e aos filhos pertencia obedecer.

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Tinham eles onze anos ou um pouco mais. Tudo se passava em Alcains, num edifício branco, construído, sobre um outeiro daquela terra, não longe das faldas da Gardunha, o ponto mais saliente das redondezas.

Depois, ali ficaram a marchar, dispostos em filas de dois, onde os mais pequenos seguiam à frente, num encaminhamento predeterminado, sequente. Lá iam percorrendo os corredores que para eles eram forte novidade impressionante, em todo o seu comprimento... Ε por ali avançavam, rumo a todas as suas actividades quotidianas, dentro do grande edifício.

O seu caminho era o de um destino irremissível, como que à busca de si mesmos e do norte das suas vidas. Já se começavam a sentir outros. Já não eram somente os meninos das Escolas Primárias.

De todas as partes lhes chegavam vozes que os chamavam... Ε que

grandes chamos aqueles a que eles estavam afeitos! Quem os vinha acordar

assim, nos estados adormecidos da sua ainda meninice?

Às vezes sentiam-se perdidos: — onde estavam? Aquilo era mesmo com eles? Os padres e os seus novos amigos tinham-lhes substituído, num pronto, a sua família. Os padres pretendiam ajudá-los a encontrarem-se...

Como sentiram, friorentamente, a vinda do primeiro inverno, sem, ao menos, a ajuda tépida de uma lareira! As frieiras deixavam as suas primeiras marcas nos dedos — uns dedos que, de um momento para o outro, se tomavam vermelhos, engrossavam e começavam a doer.

Era em vão que os escondiam nas mangas da pequena batina preta, preta, de um luto a que não estavam ainda acostumados...

(É certo que nem sempre andavam de preto: também vestiam um guarda-pó, de um pano às riscas, que lhes dava mais liberdade de movimentos — para os estudos e brincadeiras do recreio).

Mas essas frieiras e outros pequenos males de adaptação - que preço precário não eram eles para a paga do alargamento do horizonte que ali se lhes ia fazendo! — para a revelação da existência de outros mundos maiores que eles jamais podiam ter adivinhado!

A cada hora, uma notícia de imensidades até ali desconhecidas... Ε essas

notícias também fazem crescer... As revelações alimentam como bons alimentos...

3. O Seminário

Era naquele tempo em que a palavra Seminário ainda não tinha

um múltiplo sentido, mas significava tão-somente — "estabelecimento

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onde recebem instrução os jovens que se destinam à carreira eclesiás­

tica".

Era o Seminário um terreno a sementes. Sementes que se destinavam a

dar muitos e bons frutos. Seu destino era ser reservatório seguro de valores

ancestrais, repositório a fermento que vá levedar toda a massa. Dele pertencia

sair o sal e a luz de que fala o Evangelho.

Ali a formação do clero se fazia — com toda a seriedade. Ε mais: — com

devoção, tratando-se de uma obra de moldar homens para funções divinas... A

sua finalidade era criar ali o "homem novo" de que fala S. Paulo — de carácter

a toda a prova, e mais: revestido de Cristo.

Era o Seminário de um tempo de preparação insubstituível, funcionando

como pedra de toque de ortodoxia, bem longe das ventanias dos tempos que

após se sucederam e das vastas demissões e da hora dos desertores, como ao

adiante se viu.

Era assim um campo destinado a reservas morais, a firmezas de dog­

mas e certezas sólidas, fixo como rochas inabaláveis. Descontentes, descrentes,

más experiências—há-de sempre havê-los: e, por acinte do destino, virão estes,

com frequência, a ser assoalhados como regras, quando, afinal, não se trata

senão de escuras, obscuras excepções.

4. Questão de vocação

Quem poderia, então, vir a adivinhar o que iria acontecer àqueles jovens?

Desde cedo, os informavam do que naquele novo estado da sua vida se

lhes pedia, se lhes exigia... E, um a um, se foram determinando, tomando seus

próprios apontamentos mentais, no sentido de poder perscrutar, ouvido atento,

a sua própria chamada...

Ε muito se exigia deles. Não se tratava de uma carreira como as

outras. Não: era singular. Carecia-se de uma atitude de espírito que para

muitos poderia constituir verdadeiro heroísmo. Avançar por ali — era não ser

como seu pai e seus irmãos. Era abandonar tudo e seguir o Mestre. Ε isso,

rigorosamente, embora o Mestre lhes fosse apresentado como sendo benigno e

doce.

Poderiam, então, aventar-se muitas previsões, todas elas fortuitas, sobre

o que o futuro reservava para cada um daqueles jovens. Boa parte não passaria

dos primeiros anos. Outros arrastariam a sua formação até ao meio. Uma parte

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pequena chegaria ao fim. Ε ainda dos que chegaram ao fim, um desistiu: eu Só

5 — de entre os 23 iniciais — chegaram a padres.

Muitas são os chamados, poucos são os escolhidos.

5. O Latim

A fábrica de latinistas que ali ia! E, logo de começo, desde o primeiro

dia. O professor dos primeiros rudimentos foi o P.e Ramiro, que Deus haja.

Reuníamo-nos todos na grande sala de estudo, em frente da mesa do

professor, colocada sobre um estrado.

Declinações e disciplina. Hora, horae... Qui, quae, quod... Mas as

declinações frequentemente se avariavam... Ε a disciplina, às tantas, também

entrava em apuros. Ε era, então, ocasião de o bom do P.e Ramiro se ver obrigado

a fazer repressão, por muito que lhe doesse — e lá castigava o prevaricador,

mandando-o pôr de joelhos.

Nos anos posteriores, o P.e Augusto -com os avançados poetas Vergílio

e Horácio. E, em todos os primeiros 8 anos, foi um latim que superabundou,

naquela casa —desd&os quotidianos actos litúrgicos miudinhamente repetidos

— até às aulas de Filosofia. Aulas e livro em latim. Em latim era a perlenga do

mestre, o P.e Marujo que inexorável, metódica e taxativamente — martelava o

seu intróito: "Vidimusjam..."

6. A aula de Inglês

O Monsenhor Reitor. O respeito vivo que ele inspirava! Ensinava

Inglês e Trignometria. Inglês pelo livro do P.e Albino. Tinha sido missionário

em Africa, tinha visto ingleses na sua vida. Nas aulas, lia-se e traduzia-se.

Falar, isso nunca. Era assim como se de língua morta se tratasse. Dicionários

e escrita.

Ε eis que, numa dessas aulas, no meio de todo o solene, perscrutante

silêncio que restava para além das palavras da aula, — num momento

imprevisível, se ouviu, com som de assobio, uma cantilena, em volume piano,

mas ainda assim francamente irreverente.

De que se tratava? De que lugar tão vizinho, e ao mesmo tempo

tão alheado, se tinha soltado e se mantinha no ar — tal ave canora? Estancou

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o Monsenhor a ministração do ensino da sua foreign language. Ε criou-se,

ali, um momento de perplexidades, que paralizou todas as respirações.

Ε foi então, à mão-tente, a jeito de tiro de instinto com arma de cano

serrado, que o Monsenhor interveio, inexorável, dizendo:

— Quer vender-me o seu assobio?

Olhamos: era o Freire, o visado. Na segunda carteira do lado esquerdo

do professor, ali se via ele — pequeno e reduzido.

Claro que nunca nenhuma resposta foi dada àquela pergunta negocial

do professor. Mas, também, pela negação da resposta a ser dada pelo interpelado,

ficámos a entender que o aluno nunca, em tempo algum, quereria vender tal

assobio, e por preço nenhum do mundo.

Ε mais se infere desta história — que para o dono de tal assobio se tinha

tornado evidente que havia mais coisas no mundo do que aprender Inglês e

que se estaria até mesmo um pouco nas tintas — para quem o ensinava ou

aprendia.

Ε deixava-se também perceber que, no usufruto do seu divagar, aquele

assobio chegaria mesmo a querer dizer: "A vida é bela, para quê estragá-la!".

Ε ainda: aquele clandestino assobiador da aula de Inglês, com aquele

seu brunido silêncio de não-resposta, tinha ali acabado de dar um exemplo

eficaz do mais rotundo e cabal fair play que possa alguma vez ser dado — e,

afinal, à inglesa.

7. O salto da parede

Naquele tempo, tinha eu a preocupação de, a olho, a todo o momento,

medir distâncias, tendo em vista o superá-las, com o salto que fizesse. Olhava

os espaços, como matéria transponível, num golpe de músculo. Assim, de um

momento para o outro, me encontrava eu em operações de desafio de atléticos

cometimentos.

Conhecedor de tal facto, numa altura em que eu chegava ao recreio da

segunda divisão — a dos mais velhos, o Freire, de combinação com outros

companheiros, saltou, a pés juntos, a altura de um muro. Ele tinha saltado de

cima de um banco, que sobrepticiamente retiraram e esconderam dos meus

olhos e que, dado o meu posicionamento, julgaram eu não ter visto.

Foi então a vez de o Freire querer fazer render o seu peixe. E, dirigindo-

-se a mim, exclamou, em ar de grande desafio:

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— Salta tu agora, vê se és capaz.

Percebi a razão da algazarra que ali se estava levantando, entre todos os

mancomunados. Mas, vendo que a altura a saltar estava dentro dos limites do

meu alcance, saltei-a mesmo, fazendo de conta de que de nada me tinha

apercebido. Ε a algazarra terminou de vez. Tinham ido por lã e tinham ficado

tosquiados...

Mas o Freire ainda hoje acredita que eu não vi o banco.

Conclusão. Esta história a intitular-se de "Embuste frustrado", ou de

"suposta partida de amigos" — que diz ela dos seus intervenientes senão

— aproveitamento da psicologia alheia, em função de possível desfrute, aliado

ao gosto de brincadeira e de riso? Ε como classificar a atitude dos seus ânimos?

De alegre e álacre, gargalhantemente saudável — de jovialidade, ante a vida.

8. O canto da fonte

O que se passa a relatar aconteceu perto da fonte a que ninguém ia

beber. Uma fonte encimada de ornamentos de granito, em que os canteiros de

Alcains tinham posto a marca do seu labor.

Por ali passava a estrada que leva à Lardosa, a Castelo Novo, a

Alpedrinha, ao Fundão, etc.

Não longe, uma pequena lagoa, constituída por uma pedreira, em que

as chuvas tinham depositado alguma água, uma pequena cobra deslizante

mostrava os macios coleios da sua classe de natação.

Por aquelas horas de tarde mornenta, estavam-se, ali e então, a ouvir as

notas dolentes de uma melodia, que, ao elevar-se no ar, — hábil, docemente,

lá se iam entretendo a embalar, revestir, imbuir, edulcorar — uns versos de

"Os Simples" de Guerra Junqueiro:

Toque, toque, toque,

moleirinha errante...

Deitados, sentados entre fetos e pedras, o mundo parado — os

seminaristas, no término do seu passeio, ocupavam-se, ali, em a ir escutando

— atentos, deliciados...

Ε a voz que ali soava, mantendo-se no ar, por entre os silêncios dos

espaços circundantes—por lá continuou a andar a entornar—romançosa, rítmica

— seus delíquios sonoros, — até que, de todo, se esgotou o poema...

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Quem assim cantava, entre os seus companheiros? O Freire. Ele próprio

havia feito a música para tais versos e — de presente — ali a oferecia, em

encantamento dos tímpanos dos seus amigos...

9. O único citadino

De entre os seus colegas, era o Freire o único que habitava a cidade.

Sua família, tendo deixado a terra natal, S. Miguel de Acha, tinha vindo

a residir para Castelo Branco, para que assim pudessem ser ajudados os estudos

dos seus irmãos mais novos que, então, frequentavam o Liceu.

O seu pai, entretanto, tinha ido a trabalhar como carpinteiro para

Moçambique. Em Lourenço Marques, onde vivi alguns anos como professor,

tive ocasião de ver o púlpito de Sé que ele, com a sua arte, havia fabricado.

Quanto não trabalhara arduamente para ganhar o suficiente para a educação

dos seus filhos! Ε foi assim, com o suor do seu rosto, que pôde conseguir

formar um padre, três professoras e um médico.

Ao Freire, do facto de passar as férias na cidade — algum prestígio

lhe adveio. O prestígio que o aldeão dá automaticamente ao citadino, vendo

nele — o mais vivido, o dos horizontes maiores do que aqueles que uma aldeia

disfruta. Era ele que assim respirava, sem dúvida, mais do que os seus

companheiros, um outro ar menos comezinho, menos rústico, numa palavra

— mais civilizado.

Ε foi assim, por exemplo, que, depois de termos passado pelo piano

e pelo violino, sem ter feito qualquer aprendizagem de órgão, no Seminário,

— de um momento para o outro, depois de umas férias grandes, apareceu a

tocar esse instrumento. Ε ficou a revezar comigo e o Carlos — a acompanhar,

na capela, os cânticos litúrgicos.

10. A vocação eclesiástica

Não é fácil ser padre e cumprir as suas obrigações.

O problema número um que, de ordinário, se punha a todos os que

entravam no Seminário era realmente este: ter ou não ter vocação — dilema

difícil, deveras hamletiano. Quantas dores de cabeça comporta a sua solução,

para, afinal, ao fim e ao cabo, sair, quantas vezes, errada!

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Mas, excepcionalmente — pelo menos, quanto me foi dado observar

— para o Freire esse problema nunca se pôs! Ε foi, até contrariando o próprio

pai, que ele avançou para o sacerdócio. Este o lamentou, um dia, nestes termos:

— Ai, filho desgraçado, que não serves para mais nada do que para

padre!

Era o caso de uma vocação a toda a prova. Afirmo-o isentamente, eu

que me situava nos antípodas — que, afinal, também contrariei o meu pai, mas

em sentido contrário ao que acontecia com o Freire, pois o meu pai queria, à

viva força, que eu fosse padre. Mas não fui.

11. Carteiras de Marvão

Depois da passagem pelo Seminário de Gavião, de que se omitem

histórias, e onde se processaram os estudos do primeiro ano de Teologia, seguiu-

-se o Seminário de Marvão, numa pequena vila situada ao alto de uma serra do

Alto Alentejo.

Os lugares das carteiras escolhiam-se, no princípio do ano. Escolher

esse lugar, na sala de estudo, não era uma coisa somenos, mas antes funda­

mental. Era aí que se ia estudar e assistir às aulas, durante todo o ano. Neles se

passava uma boa parte das horas do dia — funcionando eles assim como um

poiso fixo, como uma abrigada para o infinito que com as nossas mentes

quereríamos devassar, como um estádio aberto para as velocidades dos nossos

espíritos, que por ali se iriam lançar em grande aventura...

A sala não tinha senão duas janelas-varandas, que se encontravam, na

parte detrás das costas das carteiras.

O Freire escolheu a primeira carteira da frente. O seu horizonte, em

frente, não era mais do que uma chapada branca de parede, em toda a extensão,

e ao lado da mesa frontal dos professores que ali vinham dar as aulas. Ε isso a

indicar — o propósito firme de não precisar jamais de outros horizontes que

não fosse o seu, o interno, aquele que inviolavelmente guardava consigo...

Eu, porém, escolhi uma carteira do fundo da sala, para captar um ar

mais fresco e para, se olhasse para trás, poder também e ainda obter um pouco

de nesga de céu e de espaço livre—divisando mesmo algo de fora do Seminário

— um largo de chafariz, onde inclusive vinham mulheres à fonte, entre elas a

filha do cabo da Guarda Republicana-umajovem loura de cabelos compridos,

corpo escultural.

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Mas a escolha do local da minha carteira, ao fundo da sala, foi corrigida

pelo director do Seminário - o P.e Brás Jorge. Ao regressar das férias tinham-

-me mudado a carteira, ficando a ocupar o lugar imediatamente atrás do Freire.

Ε foi, nesse lugar e por essa circunstância, que pude, involuntariamente,

acompanhar mais de perto a actividade do tempo de estudo do Freire.

Todos os dias, invariavelmente, no final do estudo das lições, fazia a

sua escrita pessoal: e dessa actividade saía escorreito e pronto todo um género

de longos poemas de verso livre, de tipo místico, feitos ao correr da pena...

Mostrou-me alguns deles. Deles eu lhes admirava assaz—o jacto, aliado

à veemência e à fluência a toda a prova, num caminho longo; e admirava

também, nesse não-se-quedar a curto prazo, nesse derrame na abundância, e

nessa forte expansividade—o sempre conseguimento. Qualquer coisa que dizia

muita energia...

Jamais, porventura, esses seus escritos serão publicados. Entretanto,

como eu lhe disse uma vez—nada se faz por geração espontânea, não é em vão

que se treina a caneta: ela faz a aprendizagem necessária para aquilo que sejam

os voos sequentes.

12. Secretário do Bispo

E, ainda como seminarista, o Freire foi nomeado secretário do senhor

bispo D. António Ferreira Gomes. Datando desse tempo, não me furto a relatar

a história que então lhe ouvi.

Tinha o D. António programada uma viagem. Para esse efeito, dá uma

ordem ao seu motorista particular, que envergava indumentária própria, a ten­

der para o escuro, aparentava os seus quarenta anos, exibia um bem fornido,

penteado cabelo preto, e tinha estatura mediana.

À hora aprazada, o automóvel a acercar-se do paço episcopal; o prelado

a chegar. E-lhe a porta do veículo franqueada. Instala-se. Entra também o seu

secretário. Por fim, o motorista, já no seu lugar, aguarda. Decerto, espera a voz

que lhe indique o destino da viagem... Mas em vão. A voz episcopal veio clara

e curta, sem nome de local:

- Marche em frente!

Motor em movimento. O automóvel avança... Mas até aonde? Mais

adiante, chegado o cruzamento, a bifurcação advinha, e, a tornar-se necessário

a tomada de nova decisão ao volante, outra vez, o antístite:

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— Volte à direita!

O carro desliza. O motorista continua a carecer, a todo o momento, de

uma indicação toponímica esclarecente. Expectativa baldada. Surge, antes, um

som, como o dos comandos, nas paradas militares:

— Sempre em frente!

Ε assim se seguiu, com sempre e só, a cada momento do aflorar de

alternativas, - o sobrevoo sonoro, alertante: "direita", "esquerda", "em frente",

"esquerda", "direita", "em frente". Nada mais.

Ε quanto ali se ansiou por um nome, um simples e pequeno nome de

terra, lugar que fosse, mas um nome que chegasse e bastasse! Mas não: tal não

aconteceu.

Que suspensão esta a dos acompanhantes de tal missão prelatícia! A

atenção sempre desperta e alertada, mas nada logrando...

"Aonde vamos?" — foi a pergunta que nunca foi feita, mas que andou,

durante toda a viagem, sempre por ali vagando, — subentendida, adivinhada,

esperançosa, angustiada, desesperada —nos interiores daquele carro, por onde

dançou, bailou, cabritou, revoluteou-passageira clandestina daquela excursão

esquipática, excepcional, memorável.

Entretanto, a viagem, graças a Deus, tinha chegado a seu termo: estavam

nas abas que levavam a Marvão... Tinham começado já a subida.

E, foi ali que, enfim, já então e só então, os espíritos, até aqui suspensos

— puderam, no momento, alijar a sua carga de suspensão e até de suspeição, e,

finalmente, quedar-se em sossego: iam para abrir um Seminário! O Senhor

Manuel Vivas tudo explicava e anotava as episcopais recomendações.

13. Redactor do Jorna!

Chefiou o Freire, depois, a redacção do jornal O Distrito de Portalegre.

O cheiro da tinta, a mancha da tinta e dos óleos que servem as

máquinas, o baralho dessas mesmas, na hora da impressão, o aberto convívio

com os tipógrafos — também foi esse, de certo, um ambiente familiar e

uma parte da ocupação dos tempos do Freire. Quatro anos a iniciar-se em

tudo!

Essa experiência de jornalista não o deixou, seguramente, de marcar:

a facilidade e a celeridade da notícia, a acuidade e a pertinácia da observação

expedita e directa, — exorcizando toda a espécie de adiamento ou retardamento,

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o enérgico aproveitamento do justo momento — tudo isso é um pouco da

bagagem de quem tem a ocupação e a preocupação de escrever nos jornais.

Ε são esses mesmos predicados que, por vezes, vêm a faltar àqueles

que guardam os seus escritos, na gaveta, para, de remanso, no decorrer dos

tempos, os ir tratando, tal como a ursa faz às suas crias, "lambendo-os", na

expressão de Horácio.

Escreveu-me, o Freire, por essa altura, uma carta, propondo-me que lhe

enviasse um meu poema extenso "A Pedra do Altar do Crato", para poder ir

publicando uma parte, semanalmente, no seu jornal.

Não lhe respondi, não sei porquê, e disso me penitencio, porque o poema

ainda está por publicar—e fora muito apreciado no dia da cardinalícia colocação

daquela auspicalis lápis.

14. Ε não foi bispo

Lembrei, um dia, ao Freire a existência de uma velha e consabida

asserção latina que nós por lá ouvíamos, nos longos e lentos tempos de

convívio clerical: "Qui episcopatum desiderat, bonum opus desiderat"; e

rematei perguntando-lhe "Porque não?"

Recapitulando os factos da memória, num rebuscar dos seus arquivos

mentais, sem hesitar, foi ele satisfazer a minha curiosidade, segredando-me:

"—Não quis aproveitar a ocasião favorável..."

("L 'occasion est chauve" — lembrei-me eu do adágio francês).

Ε ainda me quis confidenciar como o Bispo de Portalegre, senhor D.

Agostinho de Moura, lhe tinha feito uma proposta para Bispo Auxiliar, e como,

tendo o Freire deixado passar um tempo, o prelado desistiu de triplicar o convite.

Resolveu o problema de outro modo.

Nesse comenos, pensei eu, quem ficou a ganhar foi a Universidade de

Coimbra, onde já era doutor e Professor Auxiliar.

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