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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
HOMENS DA RUA: MASCULINIDADES E VIDA SOCIAL DOS
FLANELINHAS DE SOBRAL/CE
Ivaldinete de Araújo Delmiro Gémes¹
RESUMO: Esta comunicação é estudo antropológico sobre a masculinidade nas ruas de Sobral/CE.
Tratei de compreender como ocorre o processo de construção da masculinidade dos atores sociais
que tem como atividade de trabalho ‘pastorar’ e lavar carros. Nesse sentido, realizei uma pesquisa
etnográfica no território de trabalho- Lado Esquerdo da Igreja São Francisco- por ser o território
onde se desdobra a reciprocidade entre os flanelinhas e outros sujeitos. O estudo propõe o debate
sobre o processo de construções das masculinidades de homens que modelam o cotidiano do
trabalho, da vida, da afetividade nas experiências, desejos, performances. O cenário dos
acontecimentos é um território demarcado pelos interesses e conflitos de gênero que marcam os
processos societários da construção do sujeito. Trata-se de um estudo etnográfico, permeado pela
interseccionalidade das práticas e formas de diferenciação social: classe, gênero, raça, geração. A
análise aqui expressa sobre o cotidiano do homem em situação de precarização, de trabalhador
informal nas ruas e praças de Sobral/CE, justifica-se pelo fato de que esses agentes vivenciam uma
invisibilidade e rejeição social traduzidas em várias formas de violências físicas e simbólicas,
infligidas pelo não reconhecimento de cidadania. Na pesquisa, entendi que o campo de trabalho dos
flanelinhas é um território marcador de identidade de gênero, que foi se corporificando através das
relações pautadas na etnia, geração, corporeidade e gênero.
Palavras chave: masculinidade, território, flanelinha.
Este artigo é resultado da análise da construção da masculinidade nas ruas da cidade de
Sobral/CE. Nele eu apresento uma abordagem antropológica, de como ocorre o processo de
construção da masculinidade dos pastores de carros (flanelinhas/homens) que têm como atividades
de trabalho o cuidar, pastorar (olhar) e lavar carros de outros agentes sociais que trafegam no
cotidiano da cidade.
O estudo propõe o debate e a compreensão, sobre as formas de construções de
masculinidades de indivíduos, que modelam o mundo do trabalho, o modo de vida, as performances
corporais, as práticas afetivas e as demais experiências de vida, através de conflitos e interesses que
marcam os processos societários da construção do sujeito no tecer da vida contemporânea.
Desse modo, a análise aqui expressa sobre a masculinidade no cotidiano do homem em
situação de trabalhador informal nas ruas de uma cidade de porte médio do interior do Nordeste
Brasileiro. Nesse sentido, fiz uma pesquisa etnográfica no território de trabalho- Lado Esquerdo da
Igreja São Francisco, Praça São Francisco e nos arredores do Mercado Municipal, espaços sociais,
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físicos e simbólicos, onde se desdobra a reciprocidade entre os pastores de carros (flanelinhas) e
outros sujeitos.
A escolha desta temática de pesquisa justifica-se pelo fato de que esses agentes sociais
vivenciam uma invisibilidade e rejeição social, espacial e temporal traduzidas em várias formas de
violências físicas e simbólicas, infligidas pelo não reconhecimento dos direitos, de cidadania. Dessa
forma, ao escolher esta temática eu tive a preocupação de realizar uma pesquisa com a finalidade de
prosseguir os estudos sobre as relações de gênero, trabalho, etnia, classe e cidadania; e ainda,
partilhar do imperativo da visibilidade que proponho discutir aqui como fonte que alimenta e
promove minhas utopias.
Nesta pesquisa, busquei compreender como a masculinidade ou a imagem de “homem” se
revela a partir de práticas, comportamentos, atitudes, discursos e sentimentos que se desenrolam no
cotidiano de homens que vivem do trabalho precarizado. Para compreender este fenômeno social,
eu busquei interpretar o cotidiano através do olhar etnográfico, alargado com as narrativas, histórias
de vida e de conversas informais com os homens flanelinhas de Sobral. As narrativas são modos de
dizer de cada sujeito: “Portanto, é o próprio sujeito que deve dizer o que lhe aconteceu, e deve-se de
fato empregar o tempo passado, pois sendo a identidade humana essencialmente narrativa, cabe ao
sujeito contar o que aconteceu para ele, e não outra pessoa” (CYRULNIK, 2004, p.121).
A pesquisa etnográfica foi realizada no período de dois anos (2015/2016). No início da
pesquisa, entendi que o campo de trabalho desses agentes sociais, é um território marcador de
formas identitárias de gênero e de expressões de masculinidades, que se corporificam através das
interações sociais e interseccionalidades de raça, geração, corporeidade, etnia, classe e gênero.
Compreender o cotidiano do homem que trabalha como pastor de carro -flanelinha- é penetrar no
complexo mundo físico, social e simbólico das classes subalternas, é buscar identificar a
experiência de classe e de gênero traduzida em uma linguagem das performances, dos gestos, dos
afetos e das ações produzidas nos processos dos rituais da vida cotidiana da cidade de Sobral/CE.
Aqui recorro à análise de classe social elaborada por Saffioti (2015, p.86):
Não existe classe social como entidade abstrata. Uma classe social negocia com outra por
meio de seus representantes, que tampouco são entidades abstratas, mas pessoas. Todas as
relações humanas são interpessoais, na medida em que são agenciadas por pessoas, cada
qual com sua história singular de contatos sociais. Por mais que desejem desvincular-se
desta história para representar sua classe, seu passado e sua singularidade pesam tanto que
se chama de bons negociadores e outros de maus negociadores.
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Nesta perspectiva, de entender as relações humanas, como relações interpessoais e
históricas, eu apresento aqui, a dimensão da masculinidade através do estudo da vida social e modo
de vida, nas narrativas de experiências no trabalho e nas ações e performances dos pastores de
carro. É importante ressaltar que parti da premissa de que estas experiências estão intimamente
relacionadas às dimensões de classe, étnicas e de gênero.
Isto significa que em minha experiência no campo de pesquisa, pude perceber que minha
identidade étnica e de gênero pressupõe uma troca epistemológica e simbólica. De facto, eu articulei
minha postura étnica e generificada nas várias trocas e negociações no campo, ou seja, na rua. Esta
postura de gênero, juntamente com esta postura étnica, é o lugar de onde eu falo de onde eu me
defino, onde me encontro, me assumo e me reconheço socialmente. Assim, eu mergulhei no campo,
na condição de mulher, de negra e pesquisadora que tem uma enorme empatia pelo “outro”. Como
afirma Velho (1981, p.45): “Cabe distinguir o lugar do indivíduo na construção social da identidade
de qualquer grupo ou sociedade e o desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em
princípio, estaria vinculada a tipos particulares de experiência e de história”.
Durante o processo de pesquisar a masculinidade e vida social do pastor de carro ou
flanelinha Sobralense, eu potencializava a minha percepção daquela realidade. Era o momento de
conversa sem rodeios, sem máscaras, nesse instante histórico, eu buscava ouvi-los dentro de uma
condição humana, em situação singular: o corpo, a rua, o mundo do trabalho, as dores, as
brincadeiras, o sorriso, os discursos, as trocas, os cheiros, gritos, ruídos e a rede de estigmas.
“Chamo atenção para o espaço que possibilita a emergência de situações em que o indivíduo
enquanto sujeito moral se destaque e onde o ethos individualista possa existir mesmo subordinado a
uma ordem holística dominante”. (VELHO, 1981, p.49):
No espaço da pesquisa de campo, eu vivi e senti a dimensão proxêmica com os pesquisados.
Não havia quase distância entre nós. A “bolha protetora” foi rompida pela coexistência da vontade,
a bolha não estava lá. Essa “distância proxêmica” se realizava por inteiro no encontro e na tessitura
das conversas e gestos corporais: psíquicos, biológicos e afetivos. “As investigações proxêmicas
levam em conta que os homens de diferentes culturas não só falam diferentes linguagens como
também habitam diferentes mundos sensórios” (GOMES, 2000, p.31).
A pesquisa exigia de mim um período de convivência com os pastores de carro (flanelinhas)
em seu espaço/campo laboral, naquele sol escaldante, naquelas ruas, praças, becos e vielas da
cidade. Quando estava com eles na rua, eu senti a pele queimando pelas altas temperaturas (42º
Graus) da cidade. A garganta ressecada, eu sentia muita sede, sentia o calor e a intensa luz do dia de
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sol sertanejo atravessava fortemente em minha retina. Muitas vezes, a luminosidade dos raios
ultravioleta aumentava minha sensibilidade bio/antropológica e também aumentava à pressão intra-
ocular. Eu estava ali com eles durante poucas horas; mirava o ser e me inquietava saber de como
meus interlocutores suportavam estas condições de trabalho na jornada diária.
Na alquimia da pesquisa, a sensibilidade de mulher, negra que pesquisa as camadas
subalternas (ou dos indivíduos excluídos) aflorava em mim, os laços de afetividade; e explodia a
vontade de amar o outro sem medos imaginários, positivismos científicos ou receitas religiosas.
Neste encontro, entre minha autoestima com o sofrimento do outro, fui direcionada pelas
plasticidades dos comportamentos às estratégias de resiliências fluídicas, onde eu fui diretamente
tomada por uma relação de respeito, de solidariedade, de confiança e cumplicidades com os
pastores de carros ou melhor, “os homens da rua”.
Nossos encontros (destinos) foram, de certa forma, marcados pelo processo interativo de
outrora, pelas sociabilidades constituídas das relações sociais e pelo estilo e apoio afetivo e pelos
processos de entrelaçamento e empatia que mantivemos na durante as fases da pesquisa.
O homem fanelinha é marcado pelas contingências da vida árdua, pela falta de trabalho fixo,
pelo caos provocados pelo sistema liberal. Desta forma pude perceber que esses homens eram
excluídos por vários motivos, como: o fato de ser ex-presidiário, de serem dependentes químicos de
álcool, de crack e outras substâncias entorpecentes, por ser desempregados (sem emprego formal),
portadores de HIV ou outras patologias consideradas contagiosas, alguns eram desnutridos,
desidratados, analfabetos e todos muito queimado e envelhecidos pelos raios solares e por tantos
outros sofrimentos.
Nesse contexto, no espaço da rua, eu fui “afetada”, e deslocando-me entre as praças, ruas,
becos e avenidas da cidade, que eu pude viver os dramas desses agentes sociais. Portanto, a rua é
um lugar que eu defino aqui, como espaço de atitude, de performances, de conflitos, de trocas, de
trabalho e “bicos”, lazer, de afetos e de outras sociabilidades. Neste sentido a rua é uma
configuração espacial e temporal, nela os flanelinhas prescrevem e circunscrevem seus códigos,
regras, interesses e estratégias de sobrevivência. Esses indivíduos negociam à vida social, como
observa Velho (1981, p.86): “vendo a vida social como uma constante negociação entre atores e
(indivíduos, grupos, categorias) envolvendo os mais diversos díspares interesses e motivos,
materiais e não materiais, o significado do mundo está sempre, em alguma medida, em questão”.
A rua é um espaço, onde ordinário é uma forma de aprendizado constante de uma linguagem
específica de cada grupo. No que se refere à linguagem da rua, posso afirmar que esta se manifesta,
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a partir das diversas dimensões elaboradas pelos agentes sociais que evidenciam as experiências
sociais e individuais na fluidez dos processos.
A peculiaridade desse espaço é demarcada pela configuração de cada grupo ou sujeito
social. Nestes aspectos, Roberto DA Matta afirma que, a rua é um espaço onde se desenrolam ações
éticas e culturais, pois:
Não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas
acima de tudo, entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de
positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar
emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.
(DAMATTA, 1997, p.36).
Este território é marcado, e aqui definido, não só pelas características topográficas ou pelos
processos líquidos da mobilidade urbana, das ações e experiências transitórias dos apressados e
modernos indivíduos. Mas, é também demarcado, pela dialética da construção do mundo do
trabalho, do universo das emoções, dos afetos, das identidades de gênero, dos conflitos étnicos, das
divisões sociais, do agir histórico e pelas relações de poder que disciplinam e permeiam o cotidiano
desses agentes sociais. Nos rituais do trabalho na rua há códigos de pertença e códigos estruturados
de condutas sociais. O corpo aparece como um sistema de signo e um símbolo que expressam essas
condutas permeadas pelos modos do fazer humano. Na cartografia da rua o trabalho denota uma
relação de hierarquia entre o mundo dos homens e das mulheres. Também, é na rua que os
indivíduos reinventam as estratégias de sobrevivência, recriam a vontade de trabalhar no campo das
possibilidades culturais e afetivas.
Neste aspecto, afirma Rolnik (2002, p.66) que: “A prática de um cartógrafo diz respeito,
fundamentalmente, às estratégias da formação do desejo no campo social, O que ele quer é
mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo inventar pontes para fazer a sua travessia:
pontes de linguagem”. Foi assim que eu me senti na rua, construindo várias pontes de comunicação
e afetos para atravessá-las no limiar do fazer acadêmico.
Nessa perspectiva, percebo aqui que as relações sociais são modeladas pelas relações de
poder entre os grupos que mantêm a hierarquia social além de se tornaram agenciadoras ou, meras
instâncias de dispositivos, controle, de punição que naturalizam ou normatizam as regras sociais e
as identidades dos indivíduos. Como analisei alhures, em meu texto sobre a masculinidade e o lazer
dos torcedores do Guarany de Sobral.
Na visão de Garcia (2006) a forma de socialização de nossa sociedade transmite e estabelece
valores hierarquizados e espaços generificados, e, estes definem os códigos e símbolos que regulam
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as relações de poder e prestígio em um contexto cultural determinado. Nesse sentido os espaços
proclamados de espaço de homem e espaço de mulher são resultantes do tipo de socialização que
foi construída. Como afirma este autor.
Um homem pode passar o dia com aqueles que têm poder sobre ele, sofrer essa situação em
quase todos os níveis da sociedade e, contudo, ao retornar para casa todas as noites, retomar
uma esfera na que ele domina. E sempre que ele entra no universo doméstico, a mulher
pode estar lá para prover meios para sua demonstração de competência. Onde quer que o
homem vá, ele pode carregar consigo uma divisão sexual do trabalho. (GARCIA, 1977.
315).
Os modelos de estruturação de alguns espaços são definidos por sistemas de práticas
fechadas, diga-se de passagem, com a necessidade de estabelecer as regras de pertença. Não se
fundamenta em um mero espaço de uso. O que o define é a intencionalidade dos atores em
demarcar com seus códigos e regras sociais, a ocupação por determinado segmento, produção do
mundo objetivo, o trabalho, a atividade produtiva, a sua relação com a natureza e as forças
essenciais do homem:
Esta produção é a atividade genérica operativa. Por ela, a natureza aparece como obra da
realidade. O objeto do trabalho, é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na
medida em que ele se duplica não só no intelectualismo, como na consciência, mas também
operativamente (wektätig), realmente, e comtempla-se por isso num mundo criado por ele.
(KARL MARX, p.313).
Nos processos de objetivação e subjetivação os seres humanos, elaboram ações, práticas e
discursos como uma forma de falar de si através da linguagem do corpo, de espaço, do trabalho, do
afeto, da política, do lazer, do poder e da sexualidade. A partir de disso, pude neste estudo refletir
sobre a historicidade, interseccionalidade e interdependência do conceito atribuído as condições e
performances de masculinidades em determinado contexto temporal, espaço cultural. De acordo
com Louro (1998, p.23),
Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou
os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar
os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem.
É importante ressaltar que, é só a partir do olhar relacional entre sexo e gênero, masculino e
feminino, é que os estudiosos irão fundamentar as críticas e discussões sobre a temática do corpo. A
utilização dos termos corpo e gênero aparecem na contemporaneidade como característica
fundamentalmente complexa das relações bioantropológica humanas.
Na contemporaneidade as representações corporais podem ser encontradas como matéria de
experiências no âmbito das práticas e movimentos do corpo humano no mundo permeado pelos
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processos sociais e pelas redes e dispositivos de criações de intencionalidades e escolhas dos
sujeitos sociais diferentes e generificados na aldeia global. Nessa aldeia os indivíduos mantêm
relações entre si como sujeitos reais e virtuais que se conectam a partir de cada experiência do e no
mundo. No agir histórico através das relações de poder que disciplinam e permeiam o cotidiano
desses agentes sociais pode-se apanhar o olhar gênero de Schienbinger (2010. P.45):
Gênero, hoje, é com frequência usado impropriamente como uma palavra de código para
“sexo”, “mulher”, ou “feminista”. Ele é mais propriamente usado para referir um sistema de
signos e símbolos denotando relações de poder e hierarquia entre os sexos. Ele pode
também referir-se a relações de poder e modos de expressão no interior de relações do
mesmo sexo (SCHIENBINGER, 2010, p.45).
Durante a fase de campo, em plena manhã de domingo às 8:43m horas, eu estaciono o carro
no lado esquerdo da Rua desembargador Moreira. E quando chego a Rua Como afirma esse agente
social:
Na semana quando eu em casa estou muito cansado, pois na empresa que trabalho o serviço
é pesado. Mas eu ajudo nos trabalhos de casa, faço alguma coisa, lavo o banheiro, olho a
comida quando a mulher fica olhando os meninos. Tenho dois meninos e a mulher estar
esperando uma menina. Estamos muito felizes agora, esse momento. Também a mulher
ganhou uma casa e melhorou as coisas lá em casa.
Assim, quando os pastores de carros -flanelinhas- transgridem as regras, assimilam, criam
novos comportamentos e performances eu identifico como uma maneira de mostrar atitude e
assumir novas identidades em espaço demarcado socialmente. É, pois, no agir dessas práticas
desviantes ou não,que os indivíduos executam formas na construção dos novos processos de
subjetivação, construção, afirmação da masculinidade e identidade.
Para Butler (2002) a identidade é um construto performativo que se constitui numa teoria
complexa. Para Butler o sujeito é um ator que se põe de pé e encena sua identidade em um palco de
sua própria escolha. Para ela a Identidade de Gênero é uma sequência de atos (existencialismo), mas
afirma que não existe um ator (performer) preexistente que pratica esses atos. O sujeito é um
construto performativo. Para esta autora, o sujeito existe em processo, pois está construído no
discurso pelos atos que executa. Para ela gênero é um processo e não tem começo nem fim, de
modo que é algo que fazemos e não que somos.
Butler (se afasta da noção de que sexo, gênero e sexualidade existem de maneira mútua.
Exemplo de que alguém é biologicamente fêmea de comporte e exiba traços femininos e tenha
desejo por homens. Ela afirma que gênero não é natural, assim não é necessário a relação entre o
corpo de alguém e seu gênero. Por isso pode existir uma fêmea masculina e um macho feminino.
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Butler questiona: Existe um corpo físico anterior ao corpo percebido? O corpo não é um fato da
natureza, tal como o gênero, ele é construído por ela. Para Lacan o sujeito é construído pela falta e
pela perda do desejo. Para Kristeva o corpo é um conjunto heterogêneo de impulsos e necessidades
É uma forma de afirmar a correlação entre o gênero e as demais formas societárias: classe,
trabalho, meio urbano e ambiente. Pois, neste sentido as identificações de gênero são pautadas na
materialidade de muitos conflitos dos descontínuos movimentos da história humana. A abordagem
de gênero é compreendida aqui, a partir de uma dimensão de masculinidade, territorialidade e
exclusão dos indivíduos dos processos de trabalho. Este fato é percebido através da pouca ou
nenhuma visibilidade social dos sujeitos que são os protagonistas desse estudo.
O conceito de invisibilidade social está diretamente relacionado a noção de exclusão social.
Em sua obra Giddens (2005) procurou trabalhar o conceito de modernidade aceitando a
inevitabilidade da diferenciação social. Já na sua crítica contemporânea ao materialismo histórico
vai retrabalhar o problema da diferenciação social e da sua relação com a perda do controle dos
indivíduos sobre as suas relações sociais, a partir do conceito que irá se tornar central na sua obra, o
conceito de distanciamento espaço-temporal. Também fala sobre “a estruturação de qualquer
sistema social, grande ou pequeno, ocorre no tempo e no espaço e, ao mesmo tempo, coloca o
tempo e o espaço entre parênteses”. (GIDDENS, 2005).
Trata-se de indivíduos que foram ao longo do tempo excluído do mercado formal de
trabalho, devido à baixa qualificação, às situações pessoais, ao baixo nível de escolaridade, aos
problemas de saúde com as drogas lícitas e ilícitas. Por outro lado, trata-se de sujeitos que são
excluídos economicamente do sistema de produção capitalista. Pois, muitos deles, antes de se
tornarem trabalhadores informais assumiam outros tipos de trabalhos: artista, professor, agentes de
limpeza geral, cozinheiro, artesão entre outras, mas que por algum motivo, perderam seus postos de
trabalhos e não voltaram para o mercado formal.
Antes de vim trabalhar na rua, eu tinha meu emprego em uma loja de tecidos. Daí a loja
fechou e todos os empregados foram parar na rua. Eu vim para aqui, e estou nesta situação
há uns cinco anos. É uma luta diária para levar as coisas para casa. Fico pensando na vida,
como tudo é difícil, eu vou vivendo nesta, fico olhando os carros. Às vezes, um cidadão dar
uns trocados, mas, às vezes, eu não ganho nada e ainda sou visto como um marginal. Eu só
estou fazendo o meu trabalho aqui patroa, não faço nada de errado entendeu? (C.P pastor de
carro, 32 anos).
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Sobre estes aspectos, trago aqui para a discussão, outro conceito de exclusão social de José
de Sousa Martins (p:100) que o analisa, a partir da perspectiva das relações sociais capitalista de
produção tanto no campo, como na cidade:
A exclusão é uma noção que abrange as minorias subalternizadas e marginalizadas de
diferentes categorias sociais, tanto no campo como na cidade. A sujeição desses indivíduos,
a diferentes ordens de privações, não só no plano econômico, mas também no político,
social e cultural. Considerando o universo dos sujeitos sociais dessa pesquisa. Trata-se de
uma exclusão integrativa, em que a utilidade das populações excedentes está na exclusão do
trabalhador do processo de trabalho capitalista e sua inclusão no processo de valorização
por meio de formas indiretas de subordinação do trabalho ao capital. (MARTINS, 1993,
p:100).
Durante a investigação, o processo de aproximação com os pastores de carro ou flanelinhas
do Largo da Igreja de São Francisco e dos outros territórios da cidade, foi permeado pelas relações
de trocas simbólicas, afetivas, solidárias e performativas, no sentido de estabelecer um
envolvimento direto no universo social construído pelos agentes da pesquisa. Era uma manhã de
sol, mais precisamente, o dia 09 de setembro de 2016, quando eu cheguei ao Mercado Central de
Sobral/CE, no instante que estacionei o carro e desci, o Senhor Antônio (nome fictício) aproximou
de mim com muita atenção, sua fala transmitia calma e muito educadamente me perguntou:
Bom dia patroa, cadê o patrão. Tá tudo bem com a senhora? Respondi. Estou bem, o patrão
ficou em casa dormindo. Como você está? Como estão as coisas? Vamos conversar um
pouco Antônio. (Diário de Campo). Estou bem Patroa, hoje tá tudo tranquilo. Esse local é
bom para trabalhar porque eu venho todos os fins de semana e fico aqui. Esse era o ponto
de um amigo, mas ele deixou que eu ficasse aqui, antes, nós trabalhávamos juntos neste
local. Hoje eu fico aqui, porque ele colocou um negócio para ele. Eu passo a semana
trabalhando em uma firma e nos finais de semanas venho para cá. O que você faz na
firma?Eu trabalho na limpeza, mas o salário é pouco. (Antônio, 30 anos, pastor de Carro)
No trabalho etnográfico, a aproximação com “o outro” foi marcado pelas tramas do jogo de
intersubjetividades entre eu e os demais atores envolvidos no palco de suas experiências. Na visão
de Fravet-Saada (2005), a pesquisadora para ser afetada participa ativamente do processo da
pesquisa. Pois:
Quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de
vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo.
Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de
conhecimento desfazer. (FRAVET-SAADA, 2005, p.160).
Essa identificação e afetação com os trabalhadores (flanelinhas) de rua foram tecidas, ao
longo de muito tempo de (mais de15 anos) de convivência com alguns. Esta convivência foi
demarcada pelas relações sociais, culturais, simbólicas e pela geografia dos afetos, geradas nas
sombras de muitos preconceitos sociais produzidos no âmbito da cultura local.
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Neste momento, eu resgatei de minha memória de moradora da cidade há mais de vinte
anos as circunstâncias, convivências e conversas que tive com Elias, um jovem rapaz, pastor de
carro e pai de uma menina, ele vivia à margem da sociedade. Elias vinha uma família tradicional da
Cidade de Sobral, mas devido ao fato de ter se transformado em um alcoolista, ele viveu e sentiu na
pele vários tipos de preconceitos sociais lhes eram impostos pelos moradores da cidade.
Elias morreu no devaneio etílico da vida, quando eu o encontrava na rua (ao lado da Igreja
São Francisco) com os olhos vermelho da cor de sua flanela, ele estava sempre com sua provisão de
aguardente. Aquele homem jovem tinha uma cor pálida devido ao estado de seu fígado fragilizado
pela cirrose, o seu corpo estava sempre fatigado pelo calor, pela bebida e pelo trabalho de cuidar e
lavar carros. Ele viveu no processo da embriaguez da exclusão.
Neste contexto notei que o meu envolvimento com a temática era a própria experiência
ancorada pela memória de cada narração histórica. Como afirma Michele Bertrand (2008, p.25) “O
relato permite reintroduzir temporalidade na representação e, assim, transformar o traço em
pensamento, a cena em roteiro, a revivescência em rememoração”. Neste sentido o ato de narrar é
um processo de interpretação construído e constituído através do fenômeno da experiência vivida.
É notório afirmar que as formas de relacionamentos e trocas sociais não estão prontas nem
acabadas nesse espaço social e simbólico. Elas foram recriadas e reinventadas no processo das
descontinuidades de cada devir. Neste sentido pesquisar a masculinidade e o modo de vida através
do trabalho dos pastores de carro (trabalhadores informais) e as formas de estabelecer ou recriar
relações sociais, constituiu uma experiência que envolveu trocas de sentimentos, mutualidade de
interesses além de afetividades.
Por isso devemos recorrer ao discurso de Porteli (1997, p:9) quando aponta que, para fazer
pesquisa, os dois sujeitos sociais (pesquisador e pesquisado) devem se reconhecer a partir da
mutualidade de interesses ou de condições de igualdade, pois esse fato reside no reconhecimento e
na constatação da diversidade dos horizontes individuais de cada ator em seu universo cultural.
A entrevista de campo não, por conseguinte não pode criar uma igualdade, que não existe,
mas ela pede por isso. A entrevista levanta em ambas as partes uma consciência de
necessidade por mais igualdade, a fim de alcançar maior abertura nas comunicações. Desse
modo que a hierarquia desigual de poder da sociedade cria barreiras entre pesquisadores e o
conhecimento que buscam, o poder será uma questão central levantada, implícita ou
explicitamente, em cada encontro entre o pesquisador e o informante. (PORTELI, 1997,
p.9).
No ambiente da pesquisa pude perceber a forma descontraída que Carlos envolvia-se com
as suas e os seus clientes. Em determinada ocasião de outubro de 2016 eu fiquei em campo durante
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o período de três horas. E presenciei muito afeto e brincadeira que acontecia no desenrolar do seu
ambiente de trabalho. Em determinada manhã ficamos conversando e eu observava a relação afetiva
que este agente social mantinha com as pessoas que se aproximava dele. Na narrativa abaixo,
Carlos narra sobre seu mundo:
Hoje posso conversar com a senhora. Podemos ficar ali (ficamos em frente à uma
residência era 10:30horas). Todo dia eu venho para cá. Começo aqui às 8:00horas da
manhã. Porque lá em casa quem faz as coisas sou eu. Faço café, lavo prato, gosto de
fazer comida. Faço cada salgado só a senhora vendo. Eu saio daqui às 5 horas, quem
fica aqui à noite é outro rapaz. Quando chego em casa, eu ainda faço café e salgados
para todo mundo, o povo fica jogando e me espera para eu fazer o café. Sou casado e a
mulher é mais velha do que eu e braba. Ela implica comigo, diz que eu tenho outra
mulher (risos), é porque que eu sou desse jeito brincalhão. Mas a patroa sabe que aqui é
tudo com muito respeito, a senhora entende NE (risos).
Durante a alquimia da conversa, Carlos estava, todo momento muito solicito com as
pessoas, principalmente com as mulheres, sempre pronto para auxiliá-las com as manobras de
estacionar em determinada vaga. Ajudá-las com as manobras de estacionar os carros. Com os
clientes homens percebi muitas brincadeiras e conversas amigáveis. Teve um momento, que eu
observei como ele foi chamado por uma moradora do lado esquerdo da rua onde fica situada a
Igreja São Francisco, era uma senhora que morava na vizinhança. Chamou-o para resolver um
pequeno problema ordinário. O rapaz teria que pegar as garrafas de água e levar para dentro de sua
casa. Notei que ele penetrou no interior da residência e conversou um pouco com a dona de casa. E
quando voltou falou:
Aqui é sempre assim, eu ajudo todo mundo. É só dizer que eu faço sorrindo (risos), gosto
de ajudar, estou sempre fazendo um favor aqui e outro ali. Essa senhora que me chamou
agora, todos os dias ela me dá meu almoço. Faço questão de ser atencioso com ela e com as
pessoas que param aqui. Lavo o carro de um, cuido da moto de outro e assim vou fazendo
meu trabalho. Tem dia que eu lavo uns 10 carros. Aí eu peço ajuda aos meninos que estão
sempre aqui comigo. Também gosto de brincar com todo mundo. Ah, isso a senhora já
sabe.
Parecia-me que a relação era de intimidade entre eles. Carlo estava sempre com um sorriso
no rosto enquanto conversava comigo. Todos os sujeitos que se aproximava ele conversava ou fazia
alguma brincadeira. Parou um carro de mudança e dois homens se aproximaram de nós. Um deles
estava com uma garrafa bebendo algo e repassou-a para que meu interlocutor tomasse. Nós
permanecíamos envolvidos na conversa. Chegava e saía as suas clientes (ou patroas, como ele
costumava chamá-las) em seus automóveis e motos. Reparei que naquele horário e lugar, a maioria
das pessoas que usava as vagas de estacionamento eram pessoas do sexo feminino.
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Nessa oportunidade, Carlos me relatou muitas histórias revividas em sua memória. No
contexto da pesquisa os sentidos atribuídos pelos narradores sobre os eventos vividos carregavam
intrinsecamente a avidez de compreensão dos desertos afetivos, da exclusão social, econômica, e
cultural impregnados na plasticidade dos acontecimentos que modelam suas existências. Como
aponta nesta narrativa feita por Carlos:
Eu já sofri muito nesta vida, passei por muitas coisas. Eu me considero um andarilho que
experimentei de tudo um pouco. Eu fiquei 12 anos e seis meses no regime prisional. A
minha pena foi toda cumprida em regime fechado e lá na cadeia eu fiz muitos amigos, mas
foi difícil. Meu crime foi porque eu matei o assassino de meu pai. Eu amava o meu pai ele
fazia furtos. Eu fiquei seis anos atrás do cara que assassinou meu pai. Mas quando eu matei
eu tirei um peso de minhas costas. Eu não me arrependo do que fiz. Depois que sai da
prisão passei seis meses em busca de trabalho. Daí eu consegui ficar neste ponto. Foi muita
disputa ficar aqui.
Para ficar no lugar ou território demarcado, como espaço de trabalho, foi para ele um
período de grandes conflitos com os demais sujeitos que ali transitam ou permanecem, seja em
situação de dependência química, seja com outros indivíduos que disputavam o espaço como
território de trabalho, ou ainda nas várias sociabilidades construídas. É notório identificar que o
território demarcado como local de trabalho dos pastores de carro é um local que compreendem as
práticas sociais construídas a partir da gramática dos conflitos cotidianos. Esses conflitos são
erguidos no sentido de se fazer perceber pelas atividades e lutas simbólicas e corpóreas. Veja esta
narrativa:
Quando eu cheguei aqui neste lugar, era a Goreti quem estava aqui, mas como ela vivia
muito noiada, atava cheia de pedra de crak, sabe como é, aqui ninguém mais, confiava
nela. Eu cheguei e tinha que fazer minha parte, respeitar as pessoas, ajudar e fazer o que era
certo, fazer o meu serviço direito. O padre falou se eu domasse os leões que estavam aqui, o
ponto era meu. Teve um dia que tive que acertar as contas com um cara que roubou meu
balde de lavar os carros (instrumento de trabalho). Mas eu dei uma lição nele. Porque ele
andava com um pedaço de ferro para me pegar, mas eu expulsei ele com muita pancada, ele
sumiu. Ele foi agora lá para perto do Supermercado Rainha. Aqui na rua é assim se
bombear a gente dança. Eu me dou bem com todo mundo, mas, tenho que ficar esperto.
(Pastor de Carro, Carlos, 36 anos, casado).
O Lugar ou espaço da Igreja São Francisco, é repleto de ações de vários sujeitos, onde se
expressam os rituais de reza, lazer, de trabalho, passeios, paquera, brigas, brincadeiras, trocas
econômicas e afetivas, dilemas e conflitos. Assim, pude perceber que este lugar passou agregar
elementos de dominação de gênero e de construção da identidade de Gênero. A rua foi
ressignificada pelo pastor de carro, como seu espaço de trabalho e de luta permanente pela
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sobrevivência. A rua é o lugar da ordem é o palco dos acontecimentos como afirma De Certeau
(1994, p. 170):
O lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistências. Aí se acha, portanto, a relação de possibilidade para duas coisas ocuparem o
mesmo lugar. Aí impera a lei do próprio: os elementos considerados se acham uns ao lado
dos outros, cada um situado num lugar próprio e distinto que define. Um lugar é, portanto,
uma configuração instantânea de posição. Implica uma indicação de estabilidade
Para o flanelinha Carlos, a sua posição no lugar de trabalho foi condicionada e demarcada
a partir de sua posição de “Homem”, que tem peito e muita fibra, tem poder e força física, homem
que não tem medo. Veja a narrativa:
Professora a senhora sabe que aqui na rua o bicho pega. Eu vejo tudo e não tenho medo de
nada (bate no peito). Já vi muitas brigas e muitas coisas erradas. Vou ficando por aqui.
Todos os dias eu faço meu serviço, mas sou esperto, quem quiser ficar aqui tem que ser
macho para tomar esse ponto.
Carlos narra que, anteriormente à sua vinda para o local, quem estava no lugar era uma
mulher que assumia essa atividade de pastorar os carros. Também afirma que ela a Goreti foi
expulsa do lugar de forma violenta (tema que pretendo abordar em outra pesquisa). “Eu botei ela
para correr ela não fazia o trabalho correto”. Nessa conversa com o flanelinha, eu pude
compreender uma ideia de gênero construída por uma série de atos performativos, gerada nos
conflitos dos espaços, e pautada nas performances do corpo, como afirma Butler (2005, p. 36.).
A ideia de que gênero seja uma performance foi concebida para mostrar que o que vemos
no gênero como uma essência interior é fabricado através de uma série de ininterrupta de
atos, que essa essência é colocada como tal em e pela estabilização do gênero do corpo.
Desse modo, torna-se possível mostrar que o que pensamos ser uma de nossas propriedades
internas de ser considerada como o que esperamos e produzimos através de alguns atos
corporais, que ela poderia ser, inclusive, ao levarmos essa ideia ao extremo, um efeito
alucinatório de gestos naturalizados. (BUTLER
Durante a fase da pesquisa, eu ainda percebi que a Goreti era uma leoa fácil de ser domada,
pois além do vício do crack, pois já não sabia cuidar de si, gerenciar sua vida, era vítima das
contingências da vida e pela sua condição de Ser mulher, negra e pobre. Entendo aqui que, nesta
realidade, a rua passou a ser para as mulheres um espaço de dor, tragédia, violências, sofrimento,
exclusão social e invisibilidade. A rua é um território/mundo ainda muito androcêntrico. A presença
da mulher na rua na atividade de pastorar carros é mínima (observei em torno de 6 mulheres, no
universo de mais 200 pessoas), chega a configurar uma ajuda para o companheiro, já que elas tem
filhos e outros condicionamentos sociais e culturais. Falarei disso em outro momento.
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Há muitos modos de compreender o lugar, o território é um conceito que traz um sentido
de pertença do grupo, por outro lado, ele pode ser definido a partir de três dimensões, como: o local,
as configurações em que relações sociais são construídas, os processos sociais e econômicos que
operam em escalas mais amplas e o senso de pertencimento local. (Jonh Agnew, 1989).
Este autor oferece-nos uma compreensão da escolha deste conceito, referindo-se ao lugar,
como ambiente de configurações do mundo do trabalho dos pastores de carro abrangendo a noção
de campo de ação. A ideia de território de pertença como ambiente de trabalho, de relações sociais,
de lutas e conflitos me possibilita, igualmente, descrever a Praça, o Lado Direito da Igreja São
Francisco e as ruas das vizinhanças do mercado Público de Sobral, como sendo um campo de ação
social repleto de fazeres e saberes difusos elaborados pelos agentes sociais excluídos e invisíveis na
gramática do contexto local.
A exclusão social pode ser definida como uma combinação de falta de meios econômicos,
de isolamento social e de acesso limitado aos direitos sociais e civis, representando uma
acumulação de fatores sociais e econômicos ao longo da vida cotidiana que são
caracterizadas por padrões de educação e de vida, saúde, violência, desigualdade social,
miséria, injustiça, exploração social e econômica. A exclusão social está relacionada a um
processo histórico pela relação de impacto da pessoa humana em sua própria
individualidade, de maneira que a exclusão acontece em grupos, ambientes e situações, nas
quais, quem estar fora das margens estipuladas pela sociedade, sem possibilidade de
participação é um ser excluído do social. (SANTOS, 2006, p. 311)
Na gramática da exclusão atual, a saída e mobilização dos trabalhadores de empregos
formais para as funções em situação de trabalhadores informais ou precarizados, tem se
intensificado devido à nova reestruturação produtiva e pela ausência de políticas públicas que
atendam as demandas dos diversos setores, extratos e grupos sociais. A exclusão social é um
fenômeno humano, que se perpetua ao longo dos processos históricos, e ocorre devido aos vários
fatores como: sociais, políticos, econômicos, étnicos e culturais. Esse fenômeno da exclusão se
tornou cada vez mais distante de ser compreendido ou aceito e de ser superado. Embora as
evoluções históricas da sociedade tenham contribuído de forma fundamental para o alcance de
conquistas significativas na diminuição das desigualdades sociais, muitos aspectos da exclusão
continuaram proporcionando diferenças sociais, econômicas e políticas dentro da sociedade. O
conceito exclusão é demasiado complexo, e nele pode ser identificada e atravessada algumas noções
de desigualdades.
A nova organização internacional do trabalho, juntamente com divisão social e sexual do
trabalho são processos massificadores dos tipos de intervenções do mercado e do Estado no
cotidiano dos indivíduos. No Brasil essas alterações nos setores da indústria, no setor agrário e de
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serviço geraram processos de deformações e adaptações no sentido, de criar novos arranjos no
quadro técnico de gestão e de divisão da sociedade.
Esse fenômeno, fundamentalmente acelerou o processo de criação de profissionais
polivalentes no setor da indústria, trabalhadores precarizado em outros setores, a terceirização do
processo de produção, além do aumento do desemprego e a informalidade da cultura do trabalho. O
trabalho informal, na sociedade contemporânea, é socialmente tido como uma atividade
compulsória e muito desvalorizado, sendo, portanto, aquele que o exerce torna-se um indivíduo
excluído e invisibilizado socialmente. O indivíduo que pastora carro nas ruas, nem sequer é
reconhecido como um trabalhador. Nestes aspectos, há um tensionamentos em torno da sua
atividade laboral e as demais formas de atividade absorvida pelo mercado. Pois:
O modo como uma determinada sociedade se organiza para o trabalho e o tipo de relações
que se estabelece na produção podem levar à desumanização e à alienação. Há trabalhos
que embrutecem e deformam, além de não proporcionar condições para escapar das
situações de penúria e privação na vida pessoal, familiar e social. (RUBIN, 2001, p.13).
Neste sentido, compreendi que a atividade de pastorar e lavar carros, embora demande de
tempo, de energia gasta, de responsabilidade, de habilidade por parte daqueles assumem esta
atividade não é, na maioria das vezes, reconhecida e nem valorizada. A partir do grande avanço das
tecnologias, da economia globalizada e da própria sociedade em si, os indivíduos que não
conseguem acompanhar essa evolução (por uma série de fatores), acabam tornando-se excluídos
socialmente. De acordo com Velho (1994, p. 101) ele interpreta projeto de vida como:
O projeto é a antecipação no futuro dessa trajetória e biografia, na medida em que busca,
através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais
esses poderão ser atingidos. ... O projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar
significados à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, á própria identidade.
Durante a elaboração deste trabalho pude investigar sobre a masculinidade através do
modo de vida, das histórias de vidas narradas pelos pastores de carro de Sobral. A partir desta
pesquisa pude perceber que no desempenho das atividades laborais, os homens executam práticas:
como demarcar o território de trabalho, impor-se diante das condições e das circunstâncias:
violência física e simbólica, temperaturas elevadas, falta de banheiros, falta de água, e outras. O
“quebrar das fronteiras” entre eu e o outro, é muitas vezes definidas através das trocas afetivas e/ou
até muito violentas, controle do pedaço, o discurso do homem. Essas práticas são espécies de
interações que definem os atributos de gênero e reforçam as práticas de masculinidade no contexto
pesquisado. Tal fato reforça o conceito de corpo como construção do político, ou seja, “o corpo
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representa “um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas
(BUTLER, 2003, p. 551).
Em suma, neste artigo procurei entender como se dá a construção da masculinidade nas
ruas. Neste artigo sobre as relações de gênero, eu pude entender que o ato de pastorar carros nas
ruas de Sobral/CE é uma atividade predominantemente masculina. E, no modo de vida, e nas
performances da vida social dos fanelinhas abarcam uma masculinidade específica. O trabalhar na
rua, em situação precária configura-se em um processo intenso e conflituoso, também se constitui
através de relações de poder de forma emblemática, pois implica em um esforço cotidiano dos
agentes envolvidos, pela permanência no lugar incorporando sem dúvida uma disputa de gênero e
uma construção de masculinidade.
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Menonthe Street: masculinity in the flanelinha’s everyday life in Sobral/CE
Abstract: This communication consists of the result of a research about masculinity on the streets of
Sobral/CE. My aim was to understand how the process of constructing masculinity works in social
actors whose function and work consists of keeping an eye on or washing cars. In this context, I
carried out an ethnographic research inside the work territory – the left side of the São Francisco
church – as it is the territory where the reciprocity between the flanelinhas (parking attendants) and
other subjects unfurls. The study proposes a debate about the process of construction of masculinity
by the men that give form to the everyday experience of work and life, to the affectivity of
experience, of desires and performances. The setting of the action is a territory staked out by
interests and gender conflicts that mark the societal processes of the subject’s construction. This is
an ethnographic study, permeated by the intersectionality of social differentiation forms and
practices: class, gender, race and generation. The analysis expounded here about the everyday of
men living precariously, of the informal worker on the streets of Sobral/CE is justified by the
circumstance that these agents experience social invisibility and rejection which translate into
various forms of physical and symbolic violence, inflicted by the non-acknowledgement of
citizenship. In consequence of this study, I understood that the flanelinha’s field of work constitutes
itself as a territory that marks gender identity that is embodied through relations based on ethnicity,
generation, corporeality and gender.
Keywords: masculinity, territory, flanelinha (parking attendant)