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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X HOMENS DA RUA: MASCULINIDADES E VIDA SOCIAL DOS FLANELINHAS DE SOBRAL/CE Ivaldinete de Araújo Delmiro Gémes¹ RESUMO: Esta comunicação é estudo antropológico sobre a masculinidade nas ruas de Sobral/CE. Tratei de compreender como ocorre o processo de construção da masculinidade dos atores sociais que tem como atividade de trabalho ‘pastorar’ e lavar carros. Nesse sentido, realizei uma pesquisa etnográfica no território de trabalho- Lado Esquerdo da Igreja São Francisco- por ser o território onde se desdobra a reciprocidade entre os flanelinhas e outros sujeitos. O estudo propõe o debate sobre o processo de construções das masculinidades de homens que modelam o cotidiano do trabalho, da vida, da afetividade nas experiências, desejos, performances. O cenário dos acontecimentos é um território demarcado pelos interesses e conflitos de gênero que marcam os processos societários da construção do sujeito. Trata-se de um estudo etnográfico, permeado pela interseccionalidade das práticas e formas de diferenciação social: classe, gênero, raça, geração. A análise aqui expressa sobre o cotidiano do homem em situação de precarização, de trabalhador informal nas ruas e praças de Sobral/CE, justifica-se pelo fato de que esses agentes vivenciam uma invisibilidade e rejeição social traduzidas em várias formas de violências físicas e simbólicas, infligidas pelo não reconhecimento de cidadania. Na pesquisa, entendi que o campo de trabalho dos flanelinhas é um território marcador de identidade de gênero, que foi se corporificando através das relações pautadas na etnia, geração, corporeidade e gênero. Palavras chave: masculinidade, território, flanelinha. Este artigo é resultado da análise da construção da masculinidade nas ruas da cidade de Sobral/CE. Nele eu apresento uma abordagem antropológica, de como ocorre o processo de construção da masculinidade dos pastores de carros (flanelinhas/homens) que têm como atividades de trabalho o cuidar, pastorar (olhar) e lavar carros de outros agentes sociais que trafegam no cotidiano da cidade. O estudo propõe o debate e a compreensão, sobre as formas de construções de masculinidades de indivíduos, que modelam o mundo do trabalho, o modo de vida, as performances corporais, as práticas afetivas e as demais experiências de vida, através de conflitos e interesses que marcam os processos societários da construção do sujeito no tecer da vida contemporânea. Desse modo, a análise aqui expressa sobre a masculinidade no cotidiano do homem em situação de trabalhador informal nas ruas de uma cidade de porte médio do interior do Nordeste Brasileiro. Nesse sentido, fiz uma pesquisa etnográfica no território de trabalho- Lado Esquerdo da Igreja São Francisco, Praça São Francisco e nos arredores do Mercado Municipal, espaços sociais,

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

HOMENS DA RUA: MASCULINIDADES E VIDA SOCIAL DOS

FLANELINHAS DE SOBRAL/CE

Ivaldinete de Araújo Delmiro Gémes¹

RESUMO: Esta comunicação é estudo antropológico sobre a masculinidade nas ruas de Sobral/CE.

Tratei de compreender como ocorre o processo de construção da masculinidade dos atores sociais

que tem como atividade de trabalho ‘pastorar’ e lavar carros. Nesse sentido, realizei uma pesquisa

etnográfica no território de trabalho- Lado Esquerdo da Igreja São Francisco- por ser o território

onde se desdobra a reciprocidade entre os flanelinhas e outros sujeitos. O estudo propõe o debate

sobre o processo de construções das masculinidades de homens que modelam o cotidiano do

trabalho, da vida, da afetividade nas experiências, desejos, performances. O cenário dos

acontecimentos é um território demarcado pelos interesses e conflitos de gênero que marcam os

processos societários da construção do sujeito. Trata-se de um estudo etnográfico, permeado pela

interseccionalidade das práticas e formas de diferenciação social: classe, gênero, raça, geração. A

análise aqui expressa sobre o cotidiano do homem em situação de precarização, de trabalhador

informal nas ruas e praças de Sobral/CE, justifica-se pelo fato de que esses agentes vivenciam uma

invisibilidade e rejeição social traduzidas em várias formas de violências físicas e simbólicas,

infligidas pelo não reconhecimento de cidadania. Na pesquisa, entendi que o campo de trabalho dos

flanelinhas é um território marcador de identidade de gênero, que foi se corporificando através das

relações pautadas na etnia, geração, corporeidade e gênero.

Palavras chave: masculinidade, território, flanelinha.

Este artigo é resultado da análise da construção da masculinidade nas ruas da cidade de

Sobral/CE. Nele eu apresento uma abordagem antropológica, de como ocorre o processo de

construção da masculinidade dos pastores de carros (flanelinhas/homens) que têm como atividades

de trabalho o cuidar, pastorar (olhar) e lavar carros de outros agentes sociais que trafegam no

cotidiano da cidade.

O estudo propõe o debate e a compreensão, sobre as formas de construções de

masculinidades de indivíduos, que modelam o mundo do trabalho, o modo de vida, as performances

corporais, as práticas afetivas e as demais experiências de vida, através de conflitos e interesses que

marcam os processos societários da construção do sujeito no tecer da vida contemporânea.

Desse modo, a análise aqui expressa sobre a masculinidade no cotidiano do homem em

situação de trabalhador informal nas ruas de uma cidade de porte médio do interior do Nordeste

Brasileiro. Nesse sentido, fiz uma pesquisa etnográfica no território de trabalho- Lado Esquerdo da

Igreja São Francisco, Praça São Francisco e nos arredores do Mercado Municipal, espaços sociais,

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físicos e simbólicos, onde se desdobra a reciprocidade entre os pastores de carros (flanelinhas) e

outros sujeitos.

A escolha desta temática de pesquisa justifica-se pelo fato de que esses agentes sociais

vivenciam uma invisibilidade e rejeição social, espacial e temporal traduzidas em várias formas de

violências físicas e simbólicas, infligidas pelo não reconhecimento dos direitos, de cidadania. Dessa

forma, ao escolher esta temática eu tive a preocupação de realizar uma pesquisa com a finalidade de

prosseguir os estudos sobre as relações de gênero, trabalho, etnia, classe e cidadania; e ainda,

partilhar do imperativo da visibilidade que proponho discutir aqui como fonte que alimenta e

promove minhas utopias.

Nesta pesquisa, busquei compreender como a masculinidade ou a imagem de “homem” se

revela a partir de práticas, comportamentos, atitudes, discursos e sentimentos que se desenrolam no

cotidiano de homens que vivem do trabalho precarizado. Para compreender este fenômeno social,

eu busquei interpretar o cotidiano através do olhar etnográfico, alargado com as narrativas, histórias

de vida e de conversas informais com os homens flanelinhas de Sobral. As narrativas são modos de

dizer de cada sujeito: “Portanto, é o próprio sujeito que deve dizer o que lhe aconteceu, e deve-se de

fato empregar o tempo passado, pois sendo a identidade humana essencialmente narrativa, cabe ao

sujeito contar o que aconteceu para ele, e não outra pessoa” (CYRULNIK, 2004, p.121).

A pesquisa etnográfica foi realizada no período de dois anos (2015/2016). No início da

pesquisa, entendi que o campo de trabalho desses agentes sociais, é um território marcador de

formas identitárias de gênero e de expressões de masculinidades, que se corporificam através das

interações sociais e interseccionalidades de raça, geração, corporeidade, etnia, classe e gênero.

Compreender o cotidiano do homem que trabalha como pastor de carro -flanelinha- é penetrar no

complexo mundo físico, social e simbólico das classes subalternas, é buscar identificar a

experiência de classe e de gênero traduzida em uma linguagem das performances, dos gestos, dos

afetos e das ações produzidas nos processos dos rituais da vida cotidiana da cidade de Sobral/CE.

Aqui recorro à análise de classe social elaborada por Saffioti (2015, p.86):

Não existe classe social como entidade abstrata. Uma classe social negocia com outra por

meio de seus representantes, que tampouco são entidades abstratas, mas pessoas. Todas as

relações humanas são interpessoais, na medida em que são agenciadas por pessoas, cada

qual com sua história singular de contatos sociais. Por mais que desejem desvincular-se

desta história para representar sua classe, seu passado e sua singularidade pesam tanto que

se chama de bons negociadores e outros de maus negociadores.

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Nesta perspectiva, de entender as relações humanas, como relações interpessoais e

históricas, eu apresento aqui, a dimensão da masculinidade através do estudo da vida social e modo

de vida, nas narrativas de experiências no trabalho e nas ações e performances dos pastores de

carro. É importante ressaltar que parti da premissa de que estas experiências estão intimamente

relacionadas às dimensões de classe, étnicas e de gênero.

Isto significa que em minha experiência no campo de pesquisa, pude perceber que minha

identidade étnica e de gênero pressupõe uma troca epistemológica e simbólica. De facto, eu articulei

minha postura étnica e generificada nas várias trocas e negociações no campo, ou seja, na rua. Esta

postura de gênero, juntamente com esta postura étnica, é o lugar de onde eu falo de onde eu me

defino, onde me encontro, me assumo e me reconheço socialmente. Assim, eu mergulhei no campo,

na condição de mulher, de negra e pesquisadora que tem uma enorme empatia pelo “outro”. Como

afirma Velho (1981, p.45): “Cabe distinguir o lugar do indivíduo na construção social da identidade

de qualquer grupo ou sociedade e o desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em

princípio, estaria vinculada a tipos particulares de experiência e de história”.

Durante o processo de pesquisar a masculinidade e vida social do pastor de carro ou

flanelinha Sobralense, eu potencializava a minha percepção daquela realidade. Era o momento de

conversa sem rodeios, sem máscaras, nesse instante histórico, eu buscava ouvi-los dentro de uma

condição humana, em situação singular: o corpo, a rua, o mundo do trabalho, as dores, as

brincadeiras, o sorriso, os discursos, as trocas, os cheiros, gritos, ruídos e a rede de estigmas.

“Chamo atenção para o espaço que possibilita a emergência de situações em que o indivíduo

enquanto sujeito moral se destaque e onde o ethos individualista possa existir mesmo subordinado a

uma ordem holística dominante”. (VELHO, 1981, p.49):

No espaço da pesquisa de campo, eu vivi e senti a dimensão proxêmica com os pesquisados.

Não havia quase distância entre nós. A “bolha protetora” foi rompida pela coexistência da vontade,

a bolha não estava lá. Essa “distância proxêmica” se realizava por inteiro no encontro e na tessitura

das conversas e gestos corporais: psíquicos, biológicos e afetivos. “As investigações proxêmicas

levam em conta que os homens de diferentes culturas não só falam diferentes linguagens como

também habitam diferentes mundos sensórios” (GOMES, 2000, p.31).

A pesquisa exigia de mim um período de convivência com os pastores de carro (flanelinhas)

em seu espaço/campo laboral, naquele sol escaldante, naquelas ruas, praças, becos e vielas da

cidade. Quando estava com eles na rua, eu senti a pele queimando pelas altas temperaturas (42º

Graus) da cidade. A garganta ressecada, eu sentia muita sede, sentia o calor e a intensa luz do dia de

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sol sertanejo atravessava fortemente em minha retina. Muitas vezes, a luminosidade dos raios

ultravioleta aumentava minha sensibilidade bio/antropológica e também aumentava à pressão intra-

ocular. Eu estava ali com eles durante poucas horas; mirava o ser e me inquietava saber de como

meus interlocutores suportavam estas condições de trabalho na jornada diária.

Na alquimia da pesquisa, a sensibilidade de mulher, negra que pesquisa as camadas

subalternas (ou dos indivíduos excluídos) aflorava em mim, os laços de afetividade; e explodia a

vontade de amar o outro sem medos imaginários, positivismos científicos ou receitas religiosas.

Neste encontro, entre minha autoestima com o sofrimento do outro, fui direcionada pelas

plasticidades dos comportamentos às estratégias de resiliências fluídicas, onde eu fui diretamente

tomada por uma relação de respeito, de solidariedade, de confiança e cumplicidades com os

pastores de carros ou melhor, “os homens da rua”.

Nossos encontros (destinos) foram, de certa forma, marcados pelo processo interativo de

outrora, pelas sociabilidades constituídas das relações sociais e pelo estilo e apoio afetivo e pelos

processos de entrelaçamento e empatia que mantivemos na durante as fases da pesquisa.

O homem fanelinha é marcado pelas contingências da vida árdua, pela falta de trabalho fixo,

pelo caos provocados pelo sistema liberal. Desta forma pude perceber que esses homens eram

excluídos por vários motivos, como: o fato de ser ex-presidiário, de serem dependentes químicos de

álcool, de crack e outras substâncias entorpecentes, por ser desempregados (sem emprego formal),

portadores de HIV ou outras patologias consideradas contagiosas, alguns eram desnutridos,

desidratados, analfabetos e todos muito queimado e envelhecidos pelos raios solares e por tantos

outros sofrimentos.

Nesse contexto, no espaço da rua, eu fui “afetada”, e deslocando-me entre as praças, ruas,

becos e avenidas da cidade, que eu pude viver os dramas desses agentes sociais. Portanto, a rua é

um lugar que eu defino aqui, como espaço de atitude, de performances, de conflitos, de trocas, de

trabalho e “bicos”, lazer, de afetos e de outras sociabilidades. Neste sentido a rua é uma

configuração espacial e temporal, nela os flanelinhas prescrevem e circunscrevem seus códigos,

regras, interesses e estratégias de sobrevivência. Esses indivíduos negociam à vida social, como

observa Velho (1981, p.86): “vendo a vida social como uma constante negociação entre atores e

(indivíduos, grupos, categorias) envolvendo os mais diversos díspares interesses e motivos,

materiais e não materiais, o significado do mundo está sempre, em alguma medida, em questão”.

A rua é um espaço, onde ordinário é uma forma de aprendizado constante de uma linguagem

específica de cada grupo. No que se refere à linguagem da rua, posso afirmar que esta se manifesta,

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a partir das diversas dimensões elaboradas pelos agentes sociais que evidenciam as experiências

sociais e individuais na fluidez dos processos.

A peculiaridade desse espaço é demarcada pela configuração de cada grupo ou sujeito

social. Nestes aspectos, Roberto DA Matta afirma que, a rua é um espaço onde se desenrolam ações

éticas e culturais, pois:

Não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas

acima de tudo, entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de

positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar

emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.

(DAMATTA, 1997, p.36).

Este território é marcado, e aqui definido, não só pelas características topográficas ou pelos

processos líquidos da mobilidade urbana, das ações e experiências transitórias dos apressados e

modernos indivíduos. Mas, é também demarcado, pela dialética da construção do mundo do

trabalho, do universo das emoções, dos afetos, das identidades de gênero, dos conflitos étnicos, das

divisões sociais, do agir histórico e pelas relações de poder que disciplinam e permeiam o cotidiano

desses agentes sociais. Nos rituais do trabalho na rua há códigos de pertença e códigos estruturados

de condutas sociais. O corpo aparece como um sistema de signo e um símbolo que expressam essas

condutas permeadas pelos modos do fazer humano. Na cartografia da rua o trabalho denota uma

relação de hierarquia entre o mundo dos homens e das mulheres. Também, é na rua que os

indivíduos reinventam as estratégias de sobrevivência, recriam a vontade de trabalhar no campo das

possibilidades culturais e afetivas.

Neste aspecto, afirma Rolnik (2002, p.66) que: “A prática de um cartógrafo diz respeito,

fundamentalmente, às estratégias da formação do desejo no campo social, O que ele quer é

mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo inventar pontes para fazer a sua travessia:

pontes de linguagem”. Foi assim que eu me senti na rua, construindo várias pontes de comunicação

e afetos para atravessá-las no limiar do fazer acadêmico.

Nessa perspectiva, percebo aqui que as relações sociais são modeladas pelas relações de

poder entre os grupos que mantêm a hierarquia social além de se tornaram agenciadoras ou, meras

instâncias de dispositivos, controle, de punição que naturalizam ou normatizam as regras sociais e

as identidades dos indivíduos. Como analisei alhures, em meu texto sobre a masculinidade e o lazer

dos torcedores do Guarany de Sobral.

Na visão de Garcia (2006) a forma de socialização de nossa sociedade transmite e estabelece

valores hierarquizados e espaços generificados, e, estes definem os códigos e símbolos que regulam

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as relações de poder e prestígio em um contexto cultural determinado. Nesse sentido os espaços

proclamados de espaço de homem e espaço de mulher são resultantes do tipo de socialização que

foi construída. Como afirma este autor.

Um homem pode passar o dia com aqueles que têm poder sobre ele, sofrer essa situação em

quase todos os níveis da sociedade e, contudo, ao retornar para casa todas as noites, retomar

uma esfera na que ele domina. E sempre que ele entra no universo doméstico, a mulher

pode estar lá para prover meios para sua demonstração de competência. Onde quer que o

homem vá, ele pode carregar consigo uma divisão sexual do trabalho. (GARCIA, 1977.

315).

Os modelos de estruturação de alguns espaços são definidos por sistemas de práticas

fechadas, diga-se de passagem, com a necessidade de estabelecer as regras de pertença. Não se

fundamenta em um mero espaço de uso. O que o define é a intencionalidade dos atores em

demarcar com seus códigos e regras sociais, a ocupação por determinado segmento, produção do

mundo objetivo, o trabalho, a atividade produtiva, a sua relação com a natureza e as forças

essenciais do homem:

Esta produção é a atividade genérica operativa. Por ela, a natureza aparece como obra da

realidade. O objeto do trabalho, é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na

medida em que ele se duplica não só no intelectualismo, como na consciência, mas também

operativamente (wektätig), realmente, e comtempla-se por isso num mundo criado por ele.

(KARL MARX, p.313).

Nos processos de objetivação e subjetivação os seres humanos, elaboram ações, práticas e

discursos como uma forma de falar de si através da linguagem do corpo, de espaço, do trabalho, do

afeto, da política, do lazer, do poder e da sexualidade. A partir de disso, pude neste estudo refletir

sobre a historicidade, interseccionalidade e interdependência do conceito atribuído as condições e

performances de masculinidades em determinado contexto temporal, espaço cultural. De acordo

com Louro (1998, p.23),

Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou

os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar

os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem.

É importante ressaltar que, é só a partir do olhar relacional entre sexo e gênero, masculino e

feminino, é que os estudiosos irão fundamentar as críticas e discussões sobre a temática do corpo. A

utilização dos termos corpo e gênero aparecem na contemporaneidade como característica

fundamentalmente complexa das relações bioantropológica humanas.

Na contemporaneidade as representações corporais podem ser encontradas como matéria de

experiências no âmbito das práticas e movimentos do corpo humano no mundo permeado pelos

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processos sociais e pelas redes e dispositivos de criações de intencionalidades e escolhas dos

sujeitos sociais diferentes e generificados na aldeia global. Nessa aldeia os indivíduos mantêm

relações entre si como sujeitos reais e virtuais que se conectam a partir de cada experiência do e no

mundo. No agir histórico através das relações de poder que disciplinam e permeiam o cotidiano

desses agentes sociais pode-se apanhar o olhar gênero de Schienbinger (2010. P.45):

Gênero, hoje, é com frequência usado impropriamente como uma palavra de código para

“sexo”, “mulher”, ou “feminista”. Ele é mais propriamente usado para referir um sistema de

signos e símbolos denotando relações de poder e hierarquia entre os sexos. Ele pode

também referir-se a relações de poder e modos de expressão no interior de relações do

mesmo sexo (SCHIENBINGER, 2010, p.45).

Durante a fase de campo, em plena manhã de domingo às 8:43m horas, eu estaciono o carro

no lado esquerdo da Rua desembargador Moreira. E quando chego a Rua Como afirma esse agente

social:

Na semana quando eu em casa estou muito cansado, pois na empresa que trabalho o serviço

é pesado. Mas eu ajudo nos trabalhos de casa, faço alguma coisa, lavo o banheiro, olho a

comida quando a mulher fica olhando os meninos. Tenho dois meninos e a mulher estar

esperando uma menina. Estamos muito felizes agora, esse momento. Também a mulher

ganhou uma casa e melhorou as coisas lá em casa.

Assim, quando os pastores de carros -flanelinhas- transgridem as regras, assimilam, criam

novos comportamentos e performances eu identifico como uma maneira de mostrar atitude e

assumir novas identidades em espaço demarcado socialmente. É, pois, no agir dessas práticas

desviantes ou não,que os indivíduos executam formas na construção dos novos processos de

subjetivação, construção, afirmação da masculinidade e identidade.

Para Butler (2002) a identidade é um construto performativo que se constitui numa teoria

complexa. Para Butler o sujeito é um ator que se põe de pé e encena sua identidade em um palco de

sua própria escolha. Para ela a Identidade de Gênero é uma sequência de atos (existencialismo), mas

afirma que não existe um ator (performer) preexistente que pratica esses atos. O sujeito é um

construto performativo. Para esta autora, o sujeito existe em processo, pois está construído no

discurso pelos atos que executa. Para ela gênero é um processo e não tem começo nem fim, de

modo que é algo que fazemos e não que somos.

Butler (se afasta da noção de que sexo, gênero e sexualidade existem de maneira mútua.

Exemplo de que alguém é biologicamente fêmea de comporte e exiba traços femininos e tenha

desejo por homens. Ela afirma que gênero não é natural, assim não é necessário a relação entre o

corpo de alguém e seu gênero. Por isso pode existir uma fêmea masculina e um macho feminino.

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Butler questiona: Existe um corpo físico anterior ao corpo percebido? O corpo não é um fato da

natureza, tal como o gênero, ele é construído por ela. Para Lacan o sujeito é construído pela falta e

pela perda do desejo. Para Kristeva o corpo é um conjunto heterogêneo de impulsos e necessidades

É uma forma de afirmar a correlação entre o gênero e as demais formas societárias: classe,

trabalho, meio urbano e ambiente. Pois, neste sentido as identificações de gênero são pautadas na

materialidade de muitos conflitos dos descontínuos movimentos da história humana. A abordagem

de gênero é compreendida aqui, a partir de uma dimensão de masculinidade, territorialidade e

exclusão dos indivíduos dos processos de trabalho. Este fato é percebido através da pouca ou

nenhuma visibilidade social dos sujeitos que são os protagonistas desse estudo.

O conceito de invisibilidade social está diretamente relacionado a noção de exclusão social.

Em sua obra Giddens (2005) procurou trabalhar o conceito de modernidade aceitando a

inevitabilidade da diferenciação social. Já na sua crítica contemporânea ao materialismo histórico

vai retrabalhar o problema da diferenciação social e da sua relação com a perda do controle dos

indivíduos sobre as suas relações sociais, a partir do conceito que irá se tornar central na sua obra, o

conceito de distanciamento espaço-temporal. Também fala sobre “a estruturação de qualquer

sistema social, grande ou pequeno, ocorre no tempo e no espaço e, ao mesmo tempo, coloca o

tempo e o espaço entre parênteses”. (GIDDENS, 2005).

Trata-se de indivíduos que foram ao longo do tempo excluído do mercado formal de

trabalho, devido à baixa qualificação, às situações pessoais, ao baixo nível de escolaridade, aos

problemas de saúde com as drogas lícitas e ilícitas. Por outro lado, trata-se de sujeitos que são

excluídos economicamente do sistema de produção capitalista. Pois, muitos deles, antes de se

tornarem trabalhadores informais assumiam outros tipos de trabalhos: artista, professor, agentes de

limpeza geral, cozinheiro, artesão entre outras, mas que por algum motivo, perderam seus postos de

trabalhos e não voltaram para o mercado formal.

Antes de vim trabalhar na rua, eu tinha meu emprego em uma loja de tecidos. Daí a loja

fechou e todos os empregados foram parar na rua. Eu vim para aqui, e estou nesta situação

há uns cinco anos. É uma luta diária para levar as coisas para casa. Fico pensando na vida,

como tudo é difícil, eu vou vivendo nesta, fico olhando os carros. Às vezes, um cidadão dar

uns trocados, mas, às vezes, eu não ganho nada e ainda sou visto como um marginal. Eu só

estou fazendo o meu trabalho aqui patroa, não faço nada de errado entendeu? (C.P pastor de

carro, 32 anos).

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Sobre estes aspectos, trago aqui para a discussão, outro conceito de exclusão social de José

de Sousa Martins (p:100) que o analisa, a partir da perspectiva das relações sociais capitalista de

produção tanto no campo, como na cidade:

A exclusão é uma noção que abrange as minorias subalternizadas e marginalizadas de

diferentes categorias sociais, tanto no campo como na cidade. A sujeição desses indivíduos,

a diferentes ordens de privações, não só no plano econômico, mas também no político,

social e cultural. Considerando o universo dos sujeitos sociais dessa pesquisa. Trata-se de

uma exclusão integrativa, em que a utilidade das populações excedentes está na exclusão do

trabalhador do processo de trabalho capitalista e sua inclusão no processo de valorização

por meio de formas indiretas de subordinação do trabalho ao capital. (MARTINS, 1993,

p:100).

Durante a investigação, o processo de aproximação com os pastores de carro ou flanelinhas

do Largo da Igreja de São Francisco e dos outros territórios da cidade, foi permeado pelas relações

de trocas simbólicas, afetivas, solidárias e performativas, no sentido de estabelecer um

envolvimento direto no universo social construído pelos agentes da pesquisa. Era uma manhã de

sol, mais precisamente, o dia 09 de setembro de 2016, quando eu cheguei ao Mercado Central de

Sobral/CE, no instante que estacionei o carro e desci, o Senhor Antônio (nome fictício) aproximou

de mim com muita atenção, sua fala transmitia calma e muito educadamente me perguntou:

Bom dia patroa, cadê o patrão. Tá tudo bem com a senhora? Respondi. Estou bem, o patrão

ficou em casa dormindo. Como você está? Como estão as coisas? Vamos conversar um

pouco Antônio. (Diário de Campo). Estou bem Patroa, hoje tá tudo tranquilo. Esse local é

bom para trabalhar porque eu venho todos os fins de semana e fico aqui. Esse era o ponto

de um amigo, mas ele deixou que eu ficasse aqui, antes, nós trabalhávamos juntos neste

local. Hoje eu fico aqui, porque ele colocou um negócio para ele. Eu passo a semana

trabalhando em uma firma e nos finais de semanas venho para cá. O que você faz na

firma?Eu trabalho na limpeza, mas o salário é pouco. (Antônio, 30 anos, pastor de Carro)

No trabalho etnográfico, a aproximação com “o outro” foi marcado pelas tramas do jogo de

intersubjetividades entre eu e os demais atores envolvidos no palco de suas experiências. Na visão

de Fravet-Saada (2005), a pesquisadora para ser afetada participa ativamente do processo da

pesquisa. Pois:

Quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de

vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo.

Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de

conhecimento desfazer. (FRAVET-SAADA, 2005, p.160).

Essa identificação e afetação com os trabalhadores (flanelinhas) de rua foram tecidas, ao

longo de muito tempo de (mais de15 anos) de convivência com alguns. Esta convivência foi

demarcada pelas relações sociais, culturais, simbólicas e pela geografia dos afetos, geradas nas

sombras de muitos preconceitos sociais produzidos no âmbito da cultura local.

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Neste momento, eu resgatei de minha memória de moradora da cidade há mais de vinte

anos as circunstâncias, convivências e conversas que tive com Elias, um jovem rapaz, pastor de

carro e pai de uma menina, ele vivia à margem da sociedade. Elias vinha uma família tradicional da

Cidade de Sobral, mas devido ao fato de ter se transformado em um alcoolista, ele viveu e sentiu na

pele vários tipos de preconceitos sociais lhes eram impostos pelos moradores da cidade.

Elias morreu no devaneio etílico da vida, quando eu o encontrava na rua (ao lado da Igreja

São Francisco) com os olhos vermelho da cor de sua flanela, ele estava sempre com sua provisão de

aguardente. Aquele homem jovem tinha uma cor pálida devido ao estado de seu fígado fragilizado

pela cirrose, o seu corpo estava sempre fatigado pelo calor, pela bebida e pelo trabalho de cuidar e

lavar carros. Ele viveu no processo da embriaguez da exclusão.

Neste contexto notei que o meu envolvimento com a temática era a própria experiência

ancorada pela memória de cada narração histórica. Como afirma Michele Bertrand (2008, p.25) “O

relato permite reintroduzir temporalidade na representação e, assim, transformar o traço em

pensamento, a cena em roteiro, a revivescência em rememoração”. Neste sentido o ato de narrar é

um processo de interpretação construído e constituído através do fenômeno da experiência vivida.

É notório afirmar que as formas de relacionamentos e trocas sociais não estão prontas nem

acabadas nesse espaço social e simbólico. Elas foram recriadas e reinventadas no processo das

descontinuidades de cada devir. Neste sentido pesquisar a masculinidade e o modo de vida através

do trabalho dos pastores de carro (trabalhadores informais) e as formas de estabelecer ou recriar

relações sociais, constituiu uma experiência que envolveu trocas de sentimentos, mutualidade de

interesses além de afetividades.

Por isso devemos recorrer ao discurso de Porteli (1997, p:9) quando aponta que, para fazer

pesquisa, os dois sujeitos sociais (pesquisador e pesquisado) devem se reconhecer a partir da

mutualidade de interesses ou de condições de igualdade, pois esse fato reside no reconhecimento e

na constatação da diversidade dos horizontes individuais de cada ator em seu universo cultural.

A entrevista de campo não, por conseguinte não pode criar uma igualdade, que não existe,

mas ela pede por isso. A entrevista levanta em ambas as partes uma consciência de

necessidade por mais igualdade, a fim de alcançar maior abertura nas comunicações. Desse

modo que a hierarquia desigual de poder da sociedade cria barreiras entre pesquisadores e o

conhecimento que buscam, o poder será uma questão central levantada, implícita ou

explicitamente, em cada encontro entre o pesquisador e o informante. (PORTELI, 1997,

p.9).

No ambiente da pesquisa pude perceber a forma descontraída que Carlos envolvia-se com

as suas e os seus clientes. Em determinada ocasião de outubro de 2016 eu fiquei em campo durante

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o período de três horas. E presenciei muito afeto e brincadeira que acontecia no desenrolar do seu

ambiente de trabalho. Em determinada manhã ficamos conversando e eu observava a relação afetiva

que este agente social mantinha com as pessoas que se aproximava dele. Na narrativa abaixo,

Carlos narra sobre seu mundo:

Hoje posso conversar com a senhora. Podemos ficar ali (ficamos em frente à uma

residência era 10:30horas). Todo dia eu venho para cá. Começo aqui às 8:00horas da

manhã. Porque lá em casa quem faz as coisas sou eu. Faço café, lavo prato, gosto de

fazer comida. Faço cada salgado só a senhora vendo. Eu saio daqui às 5 horas, quem

fica aqui à noite é outro rapaz. Quando chego em casa, eu ainda faço café e salgados

para todo mundo, o povo fica jogando e me espera para eu fazer o café. Sou casado e a

mulher é mais velha do que eu e braba. Ela implica comigo, diz que eu tenho outra

mulher (risos), é porque que eu sou desse jeito brincalhão. Mas a patroa sabe que aqui é

tudo com muito respeito, a senhora entende NE (risos).

Durante a alquimia da conversa, Carlos estava, todo momento muito solicito com as

pessoas, principalmente com as mulheres, sempre pronto para auxiliá-las com as manobras de

estacionar em determinada vaga. Ajudá-las com as manobras de estacionar os carros. Com os

clientes homens percebi muitas brincadeiras e conversas amigáveis. Teve um momento, que eu

observei como ele foi chamado por uma moradora do lado esquerdo da rua onde fica situada a

Igreja São Francisco, era uma senhora que morava na vizinhança. Chamou-o para resolver um

pequeno problema ordinário. O rapaz teria que pegar as garrafas de água e levar para dentro de sua

casa. Notei que ele penetrou no interior da residência e conversou um pouco com a dona de casa. E

quando voltou falou:

Aqui é sempre assim, eu ajudo todo mundo. É só dizer que eu faço sorrindo (risos), gosto

de ajudar, estou sempre fazendo um favor aqui e outro ali. Essa senhora que me chamou

agora, todos os dias ela me dá meu almoço. Faço questão de ser atencioso com ela e com as

pessoas que param aqui. Lavo o carro de um, cuido da moto de outro e assim vou fazendo

meu trabalho. Tem dia que eu lavo uns 10 carros. Aí eu peço ajuda aos meninos que estão

sempre aqui comigo. Também gosto de brincar com todo mundo. Ah, isso a senhora já

sabe.

Parecia-me que a relação era de intimidade entre eles. Carlo estava sempre com um sorriso

no rosto enquanto conversava comigo. Todos os sujeitos que se aproximava ele conversava ou fazia

alguma brincadeira. Parou um carro de mudança e dois homens se aproximaram de nós. Um deles

estava com uma garrafa bebendo algo e repassou-a para que meu interlocutor tomasse. Nós

permanecíamos envolvidos na conversa. Chegava e saía as suas clientes (ou patroas, como ele

costumava chamá-las) em seus automóveis e motos. Reparei que naquele horário e lugar, a maioria

das pessoas que usava as vagas de estacionamento eram pessoas do sexo feminino.

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Nessa oportunidade, Carlos me relatou muitas histórias revividas em sua memória. No

contexto da pesquisa os sentidos atribuídos pelos narradores sobre os eventos vividos carregavam

intrinsecamente a avidez de compreensão dos desertos afetivos, da exclusão social, econômica, e

cultural impregnados na plasticidade dos acontecimentos que modelam suas existências. Como

aponta nesta narrativa feita por Carlos:

Eu já sofri muito nesta vida, passei por muitas coisas. Eu me considero um andarilho que

experimentei de tudo um pouco. Eu fiquei 12 anos e seis meses no regime prisional. A

minha pena foi toda cumprida em regime fechado e lá na cadeia eu fiz muitos amigos, mas

foi difícil. Meu crime foi porque eu matei o assassino de meu pai. Eu amava o meu pai ele

fazia furtos. Eu fiquei seis anos atrás do cara que assassinou meu pai. Mas quando eu matei

eu tirei um peso de minhas costas. Eu não me arrependo do que fiz. Depois que sai da

prisão passei seis meses em busca de trabalho. Daí eu consegui ficar neste ponto. Foi muita

disputa ficar aqui.

Para ficar no lugar ou território demarcado, como espaço de trabalho, foi para ele um

período de grandes conflitos com os demais sujeitos que ali transitam ou permanecem, seja em

situação de dependência química, seja com outros indivíduos que disputavam o espaço como

território de trabalho, ou ainda nas várias sociabilidades construídas. É notório identificar que o

território demarcado como local de trabalho dos pastores de carro é um local que compreendem as

práticas sociais construídas a partir da gramática dos conflitos cotidianos. Esses conflitos são

erguidos no sentido de se fazer perceber pelas atividades e lutas simbólicas e corpóreas. Veja esta

narrativa:

Quando eu cheguei aqui neste lugar, era a Goreti quem estava aqui, mas como ela vivia

muito noiada, atava cheia de pedra de crak, sabe como é, aqui ninguém mais, confiava

nela. Eu cheguei e tinha que fazer minha parte, respeitar as pessoas, ajudar e fazer o que era

certo, fazer o meu serviço direito. O padre falou se eu domasse os leões que estavam aqui, o

ponto era meu. Teve um dia que tive que acertar as contas com um cara que roubou meu

balde de lavar os carros (instrumento de trabalho). Mas eu dei uma lição nele. Porque ele

andava com um pedaço de ferro para me pegar, mas eu expulsei ele com muita pancada, ele

sumiu. Ele foi agora lá para perto do Supermercado Rainha. Aqui na rua é assim se

bombear a gente dança. Eu me dou bem com todo mundo, mas, tenho que ficar esperto.

(Pastor de Carro, Carlos, 36 anos, casado).

O Lugar ou espaço da Igreja São Francisco, é repleto de ações de vários sujeitos, onde se

expressam os rituais de reza, lazer, de trabalho, passeios, paquera, brigas, brincadeiras, trocas

econômicas e afetivas, dilemas e conflitos. Assim, pude perceber que este lugar passou agregar

elementos de dominação de gênero e de construção da identidade de Gênero. A rua foi

ressignificada pelo pastor de carro, como seu espaço de trabalho e de luta permanente pela

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sobrevivência. A rua é o lugar da ordem é o palco dos acontecimentos como afirma De Certeau

(1994, p. 170):

O lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de

coexistências. Aí se acha, portanto, a relação de possibilidade para duas coisas ocuparem o

mesmo lugar. Aí impera a lei do próprio: os elementos considerados se acham uns ao lado

dos outros, cada um situado num lugar próprio e distinto que define. Um lugar é, portanto,

uma configuração instantânea de posição. Implica uma indicação de estabilidade

Para o flanelinha Carlos, a sua posição no lugar de trabalho foi condicionada e demarcada

a partir de sua posição de “Homem”, que tem peito e muita fibra, tem poder e força física, homem

que não tem medo. Veja a narrativa:

Professora a senhora sabe que aqui na rua o bicho pega. Eu vejo tudo e não tenho medo de

nada (bate no peito). Já vi muitas brigas e muitas coisas erradas. Vou ficando por aqui.

Todos os dias eu faço meu serviço, mas sou esperto, quem quiser ficar aqui tem que ser

macho para tomar esse ponto.

Carlos narra que, anteriormente à sua vinda para o local, quem estava no lugar era uma

mulher que assumia essa atividade de pastorar os carros. Também afirma que ela a Goreti foi

expulsa do lugar de forma violenta (tema que pretendo abordar em outra pesquisa). “Eu botei ela

para correr ela não fazia o trabalho correto”. Nessa conversa com o flanelinha, eu pude

compreender uma ideia de gênero construída por uma série de atos performativos, gerada nos

conflitos dos espaços, e pautada nas performances do corpo, como afirma Butler (2005, p. 36.).

A ideia de que gênero seja uma performance foi concebida para mostrar que o que vemos

no gênero como uma essência interior é fabricado através de uma série de ininterrupta de

atos, que essa essência é colocada como tal em e pela estabilização do gênero do corpo.

Desse modo, torna-se possível mostrar que o que pensamos ser uma de nossas propriedades

internas de ser considerada como o que esperamos e produzimos através de alguns atos

corporais, que ela poderia ser, inclusive, ao levarmos essa ideia ao extremo, um efeito

alucinatório de gestos naturalizados. (BUTLER

Durante a fase da pesquisa, eu ainda percebi que a Goreti era uma leoa fácil de ser domada,

pois além do vício do crack, pois já não sabia cuidar de si, gerenciar sua vida, era vítima das

contingências da vida e pela sua condição de Ser mulher, negra e pobre. Entendo aqui que, nesta

realidade, a rua passou a ser para as mulheres um espaço de dor, tragédia, violências, sofrimento,

exclusão social e invisibilidade. A rua é um território/mundo ainda muito androcêntrico. A presença

da mulher na rua na atividade de pastorar carros é mínima (observei em torno de 6 mulheres, no

universo de mais 200 pessoas), chega a configurar uma ajuda para o companheiro, já que elas tem

filhos e outros condicionamentos sociais e culturais. Falarei disso em outro momento.

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Há muitos modos de compreender o lugar, o território é um conceito que traz um sentido

de pertença do grupo, por outro lado, ele pode ser definido a partir de três dimensões, como: o local,

as configurações em que relações sociais são construídas, os processos sociais e econômicos que

operam em escalas mais amplas e o senso de pertencimento local. (Jonh Agnew, 1989).

Este autor oferece-nos uma compreensão da escolha deste conceito, referindo-se ao lugar,

como ambiente de configurações do mundo do trabalho dos pastores de carro abrangendo a noção

de campo de ação. A ideia de território de pertença como ambiente de trabalho, de relações sociais,

de lutas e conflitos me possibilita, igualmente, descrever a Praça, o Lado Direito da Igreja São

Francisco e as ruas das vizinhanças do mercado Público de Sobral, como sendo um campo de ação

social repleto de fazeres e saberes difusos elaborados pelos agentes sociais excluídos e invisíveis na

gramática do contexto local.

A exclusão social pode ser definida como uma combinação de falta de meios econômicos,

de isolamento social e de acesso limitado aos direitos sociais e civis, representando uma

acumulação de fatores sociais e econômicos ao longo da vida cotidiana que são

caracterizadas por padrões de educação e de vida, saúde, violência, desigualdade social,

miséria, injustiça, exploração social e econômica. A exclusão social está relacionada a um

processo histórico pela relação de impacto da pessoa humana em sua própria

individualidade, de maneira que a exclusão acontece em grupos, ambientes e situações, nas

quais, quem estar fora das margens estipuladas pela sociedade, sem possibilidade de

participação é um ser excluído do social. (SANTOS, 2006, p. 311)

Na gramática da exclusão atual, a saída e mobilização dos trabalhadores de empregos

formais para as funções em situação de trabalhadores informais ou precarizados, tem se

intensificado devido à nova reestruturação produtiva e pela ausência de políticas públicas que

atendam as demandas dos diversos setores, extratos e grupos sociais. A exclusão social é um

fenômeno humano, que se perpetua ao longo dos processos históricos, e ocorre devido aos vários

fatores como: sociais, políticos, econômicos, étnicos e culturais. Esse fenômeno da exclusão se

tornou cada vez mais distante de ser compreendido ou aceito e de ser superado. Embora as

evoluções históricas da sociedade tenham contribuído de forma fundamental para o alcance de

conquistas significativas na diminuição das desigualdades sociais, muitos aspectos da exclusão

continuaram proporcionando diferenças sociais, econômicas e políticas dentro da sociedade. O

conceito exclusão é demasiado complexo, e nele pode ser identificada e atravessada algumas noções

de desigualdades.

A nova organização internacional do trabalho, juntamente com divisão social e sexual do

trabalho são processos massificadores dos tipos de intervenções do mercado e do Estado no

cotidiano dos indivíduos. No Brasil essas alterações nos setores da indústria, no setor agrário e de

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serviço geraram processos de deformações e adaptações no sentido, de criar novos arranjos no

quadro técnico de gestão e de divisão da sociedade.

Esse fenômeno, fundamentalmente acelerou o processo de criação de profissionais

polivalentes no setor da indústria, trabalhadores precarizado em outros setores, a terceirização do

processo de produção, além do aumento do desemprego e a informalidade da cultura do trabalho. O

trabalho informal, na sociedade contemporânea, é socialmente tido como uma atividade

compulsória e muito desvalorizado, sendo, portanto, aquele que o exerce torna-se um indivíduo

excluído e invisibilizado socialmente. O indivíduo que pastora carro nas ruas, nem sequer é

reconhecido como um trabalhador. Nestes aspectos, há um tensionamentos em torno da sua

atividade laboral e as demais formas de atividade absorvida pelo mercado. Pois:

O modo como uma determinada sociedade se organiza para o trabalho e o tipo de relações

que se estabelece na produção podem levar à desumanização e à alienação. Há trabalhos

que embrutecem e deformam, além de não proporcionar condições para escapar das

situações de penúria e privação na vida pessoal, familiar e social. (RUBIN, 2001, p.13).

Neste sentido, compreendi que a atividade de pastorar e lavar carros, embora demande de

tempo, de energia gasta, de responsabilidade, de habilidade por parte daqueles assumem esta

atividade não é, na maioria das vezes, reconhecida e nem valorizada. A partir do grande avanço das

tecnologias, da economia globalizada e da própria sociedade em si, os indivíduos que não

conseguem acompanhar essa evolução (por uma série de fatores), acabam tornando-se excluídos

socialmente. De acordo com Velho (1994, p. 101) ele interpreta projeto de vida como:

O projeto é a antecipação no futuro dessa trajetória e biografia, na medida em que busca,

através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais

esses poderão ser atingidos. ... O projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar

significados à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, á própria identidade.

Durante a elaboração deste trabalho pude investigar sobre a masculinidade através do

modo de vida, das histórias de vidas narradas pelos pastores de carro de Sobral. A partir desta

pesquisa pude perceber que no desempenho das atividades laborais, os homens executam práticas:

como demarcar o território de trabalho, impor-se diante das condições e das circunstâncias:

violência física e simbólica, temperaturas elevadas, falta de banheiros, falta de água, e outras. O

“quebrar das fronteiras” entre eu e o outro, é muitas vezes definidas através das trocas afetivas e/ou

até muito violentas, controle do pedaço, o discurso do homem. Essas práticas são espécies de

interações que definem os atributos de gênero e reforçam as práticas de masculinidade no contexto

pesquisado. Tal fato reforça o conceito de corpo como construção do político, ou seja, “o corpo

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representa “um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas

(BUTLER, 2003, p. 551).

Em suma, neste artigo procurei entender como se dá a construção da masculinidade nas

ruas. Neste artigo sobre as relações de gênero, eu pude entender que o ato de pastorar carros nas

ruas de Sobral/CE é uma atividade predominantemente masculina. E, no modo de vida, e nas

performances da vida social dos fanelinhas abarcam uma masculinidade específica. O trabalhar na

rua, em situação precária configura-se em um processo intenso e conflituoso, também se constitui

através de relações de poder de forma emblemática, pois implica em um esforço cotidiano dos

agentes envolvidos, pela permanência no lugar incorporando sem dúvida uma disputa de gênero e

uma construção de masculinidade.

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Menonthe Street: masculinity in the flanelinha’s everyday life in Sobral/CE

Abstract: This communication consists of the result of a research about masculinity on the streets of

Sobral/CE. My aim was to understand how the process of constructing masculinity works in social

actors whose function and work consists of keeping an eye on or washing cars. In this context, I

carried out an ethnographic research inside the work territory – the left side of the São Francisco

church – as it is the territory where the reciprocity between the flanelinhas (parking attendants) and

other subjects unfurls. The study proposes a debate about the process of construction of masculinity

by the men that give form to the everyday experience of work and life, to the affectivity of

experience, of desires and performances. The setting of the action is a territory staked out by

interests and gender conflicts that mark the societal processes of the subject’s construction. This is

an ethnographic study, permeated by the intersectionality of social differentiation forms and

practices: class, gender, race and generation. The analysis expounded here about the everyday of

men living precariously, of the informal worker on the streets of Sobral/CE is justified by the

circumstance that these agents experience social invisibility and rejection which translate into

various forms of physical and symbolic violence, inflicted by the non-acknowledgement of

citizenship. In consequence of this study, I understood that the flanelinha’s field of work constitutes

itself as a territory that marks gender identity that is embodied through relations based on ethnicity,

generation, corporeality and gender.

Keywords: masculinity, territory, flanelinha (parking attendant)