HMB_2004_apostila03

17
Apostila do curso História da Música Brasileira Instituto de Artes da UNESP 3 MÚSICA MISSIONÁRIA NA AMÉRICA PORTUGUESA Paulo Castagna 1. Introdução Apesar dos princípios similares que nortearam a atuação dos missionários jesuítas na América Espanhola e na América Portuguesa, os resultados observados nas duas regiões foram muito diferentes. O processo de colonização e as atividades econômicas que se estabeleceram nos domínios portugueses da América, correspondentes ao atual Brasil, como a ocupação de grandes territórios para o plantio de cana-de-açúcar ou criação de gado, a atuação dos bandeirantes, caçadores de índios para sua venda como escravos, as guerras contra os holandeses e contra os próprios índios inimigos dos portugueses, acarretaram a extinção dos americanos nativos da costa brasileira já durante o século XVII. A exploração de minérios como ouro e diamante, a partir de fins desse século criou, em torno das Minas Gerais, uma atividade econômica capaz de provocar aumento substancial da população de colonos no Brasil, sobretudo pela intensificação do afluxo de portugueses e de escravos africanos, empurrando os poucos índios que sobreviveram para o interior das grandes florestas, no centro e norte do país. Se em muitas regiões da atual América Espanhola observamos que grande parte da população é formada por mestiços de índios e europeus, ou mesmo por índios nativos, a maioria dos habitantes das grandes cidades brasileiras é constituída por brancos, negros e mestiços de brancos e negros. A maior parte das populações indígenas e mestiças de índios e europeus que vivem no Brasil, encontram-se atualmente em territórios das regiões Centro-Oeste e Norte, regiões em sua maioria ainda ocupadas por florestas tropicais e que não participaram com tanta intensidade dos movimentos econômicos coloniais. Os jesuítas, que chegaram Brasil em 1549 para trabalhar na conversão dos naturais ao cristianismo, tiveram que encarar duas tarefas de realização extremamente complexa: na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do séc. XVII lutaram contra a resistência dos índios a esse processo, enquanto nos períodos subseqüentes lutaram contra o desaparecimento dos mesmos índios, devido aos avanços da colonização. Por outro lado, os indígenas brasileiros se viram entre a deculturação promovida pelos jesuítas em nome do ideal cristão, e a submissão à colonização branca, por escravidão, morte ou, no mínimo, expulsão de seus territórios nativos. A história dos jesuítas na América Portuguesa iniciou-se em 29 de março de l549, com a chegada dos primeiros quatro missionários na Bahia, entre eles Manuel da Nóbrega, o primeiro Provincial da Companhia de Jesus no Brasil. Apesar de outras ordens católicas enviarem missionários para a América Portuguesa, foram os inacianos os que mais se empenharam na catequese dos indígenas até que, em 1759, foram obrigados a se retirar de seus domínios. Tão logo se iniciava a aventura, seus representantes inauguravam, dentre todos os métodos que utilizariam, uma prática que, com algumas diferenças, subsiste até hoje nos sertões do país: o ensino de orações e

description

bom

Transcript of HMB_2004_apostila03

  • Apostila do cursoHistria da Msica BrasileiraInstituto de Artes da UNESP 3

    MSICA MISSIONRIA NA AMRICA PORTUGUESA

    Paulo Castagna

    1. Introduo

    Apesar dos princpios similares que nortearam a atuao dos missionriosjesutas na Amrica Espanhola e na Amrica Portuguesa, os resultados observados nasduas regies foram muito diferentes. O processo de colonizao e as atividadeseconmicas que se estabeleceram nos domnios portugueses da Amrica,correspondentes ao atual Brasil, como a ocupao de grandes territrios para o plantiode cana-de-acar ou criao de gado, a atuao dos bandeirantes, caadores de ndiospara sua venda como escravos, as guerras contra os holandeses e contra os prpriosndios inimigos dos portugueses, acarretaram a extino dos americanos nativos dacosta brasileira j durante o sculo XVII. A explorao de minrios como ouro ediamante, a partir de fins desse sculo criou, em torno das Minas Gerais, uma atividadeeconmica capaz de provocar aumento substancial da populao de colonos no Brasil,sobretudo pela intensificao do afluxo de portugueses e de escravos africanos,empurrando os poucos ndios que sobreviveram para o interior das grandes florestas, nocentro e norte do pas.

    Se em muitas regies da atual Amrica Espanhola observamos que grande parteda populao formada por mestios de ndios e europeus, ou mesmo por ndiosnativos, a maioria dos habitantes das grandes cidades brasileiras constituda porbrancos, negros e mestios de brancos e negros. A maior parte das populaes indgenase mestias de ndios e europeus que vivem no Brasil, encontram-se atualmente emterritrios das regies Centro-Oeste e Norte, regies em sua maioria ainda ocupadas porflorestas tropicais e que no participaram com tanta intensidade dos movimentoseconmicos coloniais.

    Os jesutas, que chegaram Brasil em 1549 para trabalhar na converso dosnaturais ao cristianismo, tiveram que encarar duas tarefas de realizao extremamentecomplexa: na segunda metade do sculo XVI e primeiras dcadas do sc. XVII lutaramcontra a resistncia dos ndios a esse processo, enquanto nos perodos subseqenteslutaram contra o desaparecimento dos mesmos ndios, devido aos avanos dacolonizao. Por outro lado, os indgenas brasileiros se viram entre a deculturaopromovida pelos jesutas em nome do ideal cristo, e a submisso colonizao branca,por escravido, morte ou, no mnimo, expulso de seus territrios nativos.

    A histria dos jesutas na Amrica Portuguesa iniciou-se em 29 de maro del549, com a chegada dos primeiros quatro missionrios na Bahia, entre eles Manuel daNbrega, o primeiro Provincial da Companhia de Jesus no Brasil. Apesar de outrasordens catlicas enviarem missionrios para a Amrica Portuguesa, foram os inacianosos que mais se empenharam na catequese dos indgenas at que, em 1759, foramobrigados a se retirar de seus domnios. To logo se iniciava a aventura, seusrepresentantes inauguravam, dentre todos os mtodos que utilizariam, uma prtica que,com algumas diferenas, subsiste at hoje nos sertes do pas: o ensino de oraes e

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 2

    outros textos cristos cantados, tanto na lngua braslica quanto em lnguas ibricas,ou seja, o portugus e o espanhol.

    O ensino musical, durante a permanncia dos jesutas no Brasil, sempre foiintenso, desempenhando forte papel no ministrio com os indgenas. A documentaojesutica dos sculos XVI e XVII informa que, no Brasil, os ndios chegaram a sertreinados na execuo de alguns instrumentos, em cantocho (canto gregoriano) e emcanto de rgo (polifonia), para suprir a msica das cerimnias religiosas nos ncleosde assentamento indgena as aldeias. No incio do sculo XVII, quando o nmero dendios aldeados comeou a diminuir sensivelmente, surgiram os nheengaribas oumsicos da terra, como seriam conhecidos entre os portugueses, ndios capazes dereproduzir todas as manifestaes musicais bsicas do culto cristo e que normalmenteviajavam de aldeia em aldeia levando seus instrumentos musicais, normalmentecharamelas. Na costa brasileira no se registrou, no entanto, a intensa produo musicale a preservao de grande quantidade de manuscritos musicais como se observou nasmisses jesuticas da Amrica Espanhola nos sculos XVII e XVIII, o que pode serexplicado pelo desaparecimento dos naturais americanos dessa regio j no sc. XVII.

    Inicialmente, nos ocuparemos no do ensino musical adiantado, aplicadosomente aos indgenas que se mostrassem mais dotados e freqentassem as classessuperiores. Interessa-nos, em primeiro lugar, o ensino bsico de canes, nas casas ealdeias da Companhia, por meio das quais os curumins - meninos indgenas -recebiam os elementos necessrios e suficientes para a vida crist: musicalmente, aqueleque resultaria no efeito que Jos Ramos Tinhoro cunhou de a deculturao da msicaindgena,1 cuja funo era substituir a tradio musical nativa, por um repertrioessencialmente cristo. Se a funo das grandes cerimnias oficiadas a coros cominstrumentos era levar aos ndios a exuberncia do universo cristo, a funo dascanes simples, normalmente cantadas na lngua dos prprios ndios, era transmitir osignificado dos principais smbolos e mistrios cristos.

    Do ponto de vista histrico, o estudo da msica que chegou ao Brasil nos sculosXVI e XVII pelo trabalho da Companhia de Jesus, aquele que mais tem atrado ospesquisadores que se ocuparam desse perodo na musicologia brasileira, em grandeparte estimulados pelas numerosas publicaes do historiador portugus Serafim Leite.Apesar da documentao acessvel ser, em sua maioria, referente ao sculo XVI, aquantidade de informaes que esses religiosos nos legaram so de uma riquezaextraordinria, jamais igualada por escritores de outra espcie.

    Fenmeno tipicamente ibrico, oriundo da reao catlica s reformasprotestantes, a criao da Companhia de Jesus, em 1534, trouxe enormes conseqnciasna colonizao do Brasil e sensveis implicaes na histria de nossa prtica musical.Chegados na Bahia em 1549, o mesmo ano em que l se instalou o Governo Geral, osjesutas iniciaram de imediato suas atividades no ensino e no ministrio religioso daprovncia.

    Intensamente preocupados com a educao, cuja finalidade era tornargeneralizado no povo americano o respeito ao soberano portugus e ao Deus romano, osreligiosos da Companhia lograram, em menos de 150 anos, a implantao de todas ascategorias de ensino necessrias ao cumprimento de seus propsitos.

    De extrema importncia para a musicologia o estudo do ensino que os jesutaslevaram s crianas indgenas. Em todos os estabelecimentos da Companhia, osmeninos braslicos estiveram presentes como catecmenos. Os mais dotados aprendiama cantar e tocar instrumentos, com a finalidade de levar a msica s missas, procisses, 1 TINHORO, Jos Ramos. A deculturao da msica indgena brasileira. Revista brasileira de Cultura,Rio de Janeiro, n.13, jul/set 1972, p.9-25.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 3

    festas e autos promovidos por esses religiosos. Mas a msica tambm foi usada noprprio processo de catequese, que visava dar aos curumins os elementos bsicos davida crist.

    At h pouco, imaginava-se que a catequese tivesse sido uma conquista efetivada Companhia, na qual a msica teria participado ativamente. De fato, o uso da msicafoi constante, como revela a documentao de que hoje dispomos. Porm, ahistoriografia contempornea demonstrou que, das trs fases pelas quais deveria passaro ndio - catequese, batismo e converso - apenas as duas primeiras foram levadas aefeito e, mesmo assim, de forma imperfeita. Apesar da legislao catlica do sculoXVI instituir todas as formas possveis para a implementao desse processo, osresultados que os jesutas alcanaram foram bem diversos daqueles previstos nas teoriasdos discpulos de Santo Incio.

    As misses jesuticas do sculo XVI, na prtica, acabaram funcionando comoenormes reservas de trabalhadores escravos, que dali sairiam com os conhecimentosmnimos para o cumprimento das ordens dos proprietrios de terras, juntando-se massa de escravos indgenas que era tomada diretamente das selvas, sempre com ajustificativa da substituio de sua gentilidade pelas normas do cristianismo.

    Portanto, necessrio um grande cuidado ao se associar a prtica da msicaeuropia entre os catecmenos da Companhia e a msica religiosa que servia spopulaes coloniais nos primeiros sculos de nossa histria. Ao que se tem notcia, osconhecimentos musicais que os ndios obtinham do aprendizado com os jesutas,normalmente se perdiam com sua fuga ou morte. Mas a quantidade de ndios treinadosnessa arte, segundo a documentao, no foi pequena, levando-nos a supor possveistransferncias de msicos ensinados nessas instituies para estabelecimentos de outraespcie.

    Sabemos, hoje, que os jesutas foram os responsveis pela utilizao de diversosinstrumentos musicais no ensino dos ndios, como as flautas, trombetas, charamelas,baixes, violas, cravos e rgos. Fizeram difundir cantigas e chansonetas (aparentadasdos vilancicos) e ensinaram a cantar, em latim, portugus e na lngua tupi, as principaisoraes do rito cristo, ainda no sculo XVI. Nos seus colgios, casas e aldeias, amsica foi utilizada em missas e ofcios, festas, procisses e autos, as famosasrepresentaes teatrais que tm sua origem nos dramas sacros da Idade Mdia.

    Em virtude da fartura de informaes que existem nos relatos jesuticos daquelapoca, dezenas de pesquisadores e musiclogos foram estimulados a estud-las, mas sopoucos os trabalhos que tratam da implicao sociolgica da atuao musical jesutica.

    Um aspecto, em particular, nos chama a ateno, quando consultamos essesdocumentos. Os autores dos relatos deixaram uma boa quantidade de informaes sobreo canto de oraes crists nas lnguas braslicas, como se observa pela sua leitura. E, nosculo XVII, pelo menos quatro catecismos indgenas foram publicados em Lisboa comesses textos. Os mais comuns eram o Pater noster, a Ave Maria e o Credo.

    Existiu, ainda, um outro gnero de textos que os jesutas prepararam para ascrianas indgenas recitarem com melodia. Eram cantigas, romances, danas e outrasformas poticas, utilizadas em vrias circunstncias. Cristvo Valente (1566-1627) foio autor de quatro cantigas que Antnio Arajo imprimiu no seu Catecismo na lingoabrasilica, de 1618, certamente utilizada na catequese dos gentios. Mas o autor dostextos nada informa sobre a maneira como deveriam ser cantadas. Somente umapesquisa cuidadosa poder revelar se essas poesias tinham melodia prpria ou se oimproviso dos mestres e alunos foi a maneira encontrada para music-las.

    Jos de Anchieta tambm foi autor de versos que os garotos cantaram em vriosde seus autos. A coleo completa das poesias de Anchieta foi muitas vezes publicada e

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 4

    revela um dado extraordinrio: em alguns dos textos que esse autor comps nas lnguasde uso corrente na catequese, indicou o ttulo da melodia que deveria ser utilizada, masparecem no ter sido preservadas melodias com os ttulos indicados por Anchieta.

    2. Jesutas e a lngua geral

    A sistematizao da lngua geral ou tupi foi obtida com enorme rapidez. Em10 de abril de 1549, apenas 12 dias aps sua chegada na Bahia, Manoel da Nbregainformava que trabalhara para traduzir em sua lngua as oraes e algumas prticasde N. Senhor.2 De Porto Seguro, a 6 de janeiro de 1550, Nbrega escrevia que o padreJuan de Azpilcueta Navarro Faz tambm aos meninos cantar noite certas oraesque lhes ensinou em sua lngua, dando-lhes a melodia, estas em lugar de certas caneslascivas e diablicas que antes usavam.3 Nbrega d a entender que, por essa poca,Navarro j compunha ou adaptava melodias europias pr-existentes aos textosreligiosos que traduzia na lngua indgena.

    Navarro foi, de fato, o primeiro jesuta que se dedicou com afinco a essa novaprtica. Por uma carta que escreveu da Bahia, em 28 de maro de 1550, ficamossabendo que ensinava o canto das oraes em portugus e em tupi mas, agora, tambmao modo de seus cantares,4 ou seja, com a utilizao de melodias indgenas.Rapidamente, essas oraes comearam a se difundir como instrumentos prticos decatequese: em 1551 j eram encontradas nas aldeias de Pernambuco;5 em 1552 no Riode Janeiro;6 em 1553 em So Vicente;7 em 1554 em Piratininga (hoje So Paulo) 8 e noEsprito Santo.9 As verses em portugus eram teis para o aprendizado da nova lnguae as em tupi para a disseminao das idias crists entre os catecmenos e entre seuspais, menos suscetveis ao abandono da gentilidade.

    No somente as oraes, mas as cantigas de Nosso Senhor pela lngua 10 eramfceis de serem aprendidas e quase sempre bem recebidas pelos meninos da terra. Foitalvez com essa tcnica, que os jesutas obtiveram os maiores sucessos de ensino bsicono sculo XVI, uma vez que as dificuldades no contato com os ndios forampermanentes, mantendo sempre distantes os ideais da converso.

    Resultados maiores sempre foram isolados, como o dos dois meninos indgenasque sabem bem ler e escrever e cantar, os quais Nbrega pretendia enviar a Lisboapara aprenderem l virtudes um ano e um pouco de latim, para se ordenarem quando

    2 No original: por tirar em sua lingoa as oraes e algumas practicas de N.Senhor. Cf. LEITE,Serafim. Monumenta Brasiliae. Roma, Monumenta Historica S.I., 1956. v.1, doc. 5, p.112.3 No original: Fa etiam a la notte cantare a li putti certe orazioni che li ha insegnato nella loro lingua,dando-li esso il tuono, et queste in loco di certe canzone lascive et diaboliche che usavano prima.LEITE, Serafim. Op. cit., v.11, doc. 10, p.159.4 No original: en modo de sus cantares. LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, doc. 14, p.180.5 Carta de Antonio Pires aos Padres e Irmos de Coimbra. Pernambuco, 2 de agosto de 1551. In: LEITE,Serafim. Op. cit., v.1, doc. 31, p.258.6 Carta annima aos Padres e Irmos de Portugal. So Vicente, 10 de maro de 1553. In: LEITE, Serafim:Op. cit., v.1, doc. 59, p.429.7 Carta de Antonio Rodrigues aos Padres e Irmos de Coimbra. So Vicente, 31 de maio de 1553. In:LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, doc. 65, p.478-479.8 Carta de Pero Correia a Brs Loureno. So Vicente, 18 de julho de 1554. In: LEITE, Serafim. Op. cit.,v.2, 1957, doc.17,p.70.9 Carta de Brs Loureno aos Padres e Irmos de Coimbra. Esprito Santo, 26 de maro de 1554. In:LEITE, Serafim. Op. cit., v.2, 1957, doc. 13, p.43.10 No original: cantigas de Nosso Senhor polla lingoa. Carta de Manoel da Nbrega a SimoRodrigues, Bahia, 10 de junho de 1552. In: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc. 48, p.350.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 5

    tiverem idade.11 Ainda que temporariamente manifestassem sua prodigiosidade noaprendizado cristo pois, via de regra, tornavam aos costumes tribais, to logoterminasse sua condio de catecmenos, o aproveitamento de casos excepcionais fezcom que sempre fosse possvel encontrar, aqui e acol, curumins que desenvolvessemuma habilidade na msica catlica bastante prxima quela observada em igrejasportuguesas, como atestam os relatos. Assim que, j em 1551, existem meninosindgenas que cantam todos uma missa cada dia,12 logo surgindo os que cantammissa de canto de rgo13 e os que aprendem cantar e tocar frautas,14 fenmenoque resultou em casos surpreendentes, ainda em fins do sculo XVI e que, por falta deespao, no podemos abordar neste trabalho.

    3. Manuel da Nbrega e a definio da msica crist na catequese

    Se a prtica simples do canto de oraes em portugus e em tupi mostrou-seeficaz em um primeiro momento, Nbrega e seus seguidores tiveram de enfrentar, em1552, vrios problemas em relao ao seu procedimento. Pero Fernandes Sardinha, oprimeiro bispo da Provncia do Brasil, chegado Bahia em outubro de 1551, noaprovou o uso de msica tradicional indgena na catequese. Em julho de 1552, D. Peroescrevia ao Padre Provincial, denunciando essa a pratica entre os meninos rfos,confraria de meninos colaboradores dos jesutas, que desde janeiro de 1550embarcavam de Portugal para o Brasil.15 O bispo informava, perplexo, que, emcompanhia do p. Salvador Rodrigues, os meninos cantavam canes a Nossa Senhoranos domingos e dias de festa, utilizando melodias e instrumentos indgenas.

    Nbrega, por sua vez, escrevia ao p. Simo Rodrigues sobre a posio do bispo,informando que sou eu to mal, que suspeito que no h por bem feito seno o que eleordena e faz, e tudo o mais despreza.16 Concordasse ou no, Nbrega sabia que j eramcomuns as duas formas de ensino musical na Bahia, de cantigas, na lngua indgena eem portugus, como escreve Francisco Pires, a 7 de agosto de 155217 e cantando [...]e tocando ao modo dos ndios e com suas mesmas melodias e canes, mudadas aspalavras em louvores de Deus, como relatam os meninos rfos, a 5 de agosto de1552.18

    No resta dvida sobre a ativa participao da confraria dos meninos rfos nodesenvolvimento e difuso dessa prtica, ainda que o bispo acusasse o padre SalvadorRodrigues e o colono portugus Gaspar Barbosa de serem os inventores dessa curiosa

    11 No original: sabem bem ler e escrever e cantar e aprenderem l virtudes hum anno e algum poucode latim, pera se ordenarem como tiverem idade. Idem supra, p.353.12 No original: cantam todos una missa cada dia. Cf.: Carta de Atonio Pires aos Padres e Irmos deCoimbra, Pernambuco, 2 de agosto de 1551. In: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1 cit., v.1, 1956, doc. 31,p.258.13 No original: missa de canto de rgano. Cf.: Carta annima aos Padres e Irmos de Portugal, SoVicente, 10 de maro de 1553. In: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc. 59, p.429.14 No original: cantar y taer frautas. Cf.: Carta de Manoel da Nbrega a Lus Gonalves da Cmara,So Vicente, 15 de junho de 1553. In: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc. 69, p.497.15 LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc. 49, p.359-360.16 No original: Sam eu to mao, que sospeito que nom ha por bem feyto senao o que elle ordena e faz, etodo o mais despreza. Cf.: Carta de Manoel da Nbrega a Simo Rodrigues, Bahia, fins de julho de1552. In: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc.51, p.373.17 No original: de cantigas, pella lingoa e em portugus. Cf.: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc.53, p.396.18 No original: cantando [...] y taiendo a modo de los negros [isto , indios] y con sus mesmos sones ycantares, mudadas las palabras en loores de Dios. Cf.: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc. 52,p.385.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 6

    e supersticiosa gentilidade.19 Da mesma carta, de 5 de agosto, possvel concluir queos meninos levavam s aldeias indgenas, tanto oraes e cantigas com letra e melodiacrist, ao falarem de msica que nunca ouviram, quanto aquelas ao modo deles,com taquaras e maracs, ou seja, com letra crist e msica indgena, justificando suaatuao pela opinio de Nbrega.20 Para facilitar sua atividade, os meninos pediam,ainda, que de Portugal lhes enviassem alguns instrumentos musicais, como flautas epequenos instrumentos de percusso.

    Pouco tempo depois, Nbrega voltou a escrever a Simo Rodrigues, a fim deconsult-lo sobre a questo, pois com a vinda do bispo se moveram algumas dvidas,nas quais eu no duvidava, porque sou soberbo e muito confiado em meu parecer.Dentre todos os problemas que aborda, claro no tocante ao uso da msica indgena,quando indaga a licitude de se cantar cantigas de Nosso Senhor em sua lngua pelo seutom e tanger seus instrumentos de msica que eles usam em suas festas.21

    No conhecemos a resposta do P. Provincial, mas quase certo que a utilizaode instrumentos indgenas no foi bem aceita em Portugal, uma vez que esse tipo derelato no volta a ocorrer, mesmo aps a morte do bispo. Alis, a prtica mesmo dosbailes indgenas ser constantemente proibida, como nas Atas da Cmara da Vila deSo Paulo, em 19 de janeiro de 158322 e em 21 de outubro de 1623,23 ou permitidaapenas em certos dias e horrios, como na Visita de Antonio Vieira ao Par, em 1658.24

    3. O cantocho e as cantigas na lngua braslica

    Ao que tudo indica, a partir de 1553 somente o uso de msica crist foipermitido nos estabelecimentos da Companhia. A msica indgena passou a serconhecida apenas para dela se extrair informaes que auxiliassem a catequese, como seencarregou pessoalmente o bispo Sardinha, enviando ao Reitor do Colgio de SantoAnto de Lisboa, em 6 de outubro de 1553, um tratadinho sobre o assunto, hojeperdido.25 Recuperar a msica crist empregada nessas ocasies, provavelmente formasportuguesas de cantocho, tarefa extremamente difcil, sem falar na msica indgenautilizada at 1552, sobre as quais no podemos discorrer neste trabalho. Contudo,alguns textos em tupi j so conhecidos, apesar de terem sido pouco estudados, at opresente, sob o ponto de vista musicolgico.

    Pero Domnech chegou a enviar ao prprio Incio de Loyola, em outubro de1552, uma verso do Pater Noster em lngua braslica,26 infelizmente nuncaencontrada. Mas h indcios de serem desta primeira fase da catequese um conjunto detextos religiosos em tupi impressos por Andr Thevet, em sua CosmographieUniverselle, de 1575.

    19 No original: curiosa y suprestiosa gentilidad. Cf.: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 1956, doc. 49,p.359-360.20 No original: msica que nunca oyeron e al modo dellos. Cf.: Idem supra, p.383-384.21 No original: Com a vinda do Bispo se movero algumas dvidas, nas quais eu no duvidava, porquesam soberbo e muito confiado em meu parecer e cantar cantigas de Nosso Senhor em sua lingoa pelloseu toom e tanger seus estromentos de musica que elles usam em suas festas. Cf.: Carta de Manoel daNbrega a Simo Rodrigues, Bahia, fins de agosto de 1552. In: LEITE, Serafim. Op. cit., v.1, 195,doc.54, p.406-407.22 ATAS da Camara da Villa de S. Paulo 1562-1696. S. Paulo, Archivo Municipal, v.1, 1914, p.201.23 ATAS da Cmara da Villa de So Paulo 1623-1628 . Idem, v.3,1915, p.56.24 LEITE, Serafim. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Nacional doLivro; Lisboa, Livraria Portugalia, 1943. v.4, cap.II, p.113.25 LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae. Idem, v.1, 1957, doc.2, p.11.26 No original: Pater Noster en lingua brasil.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 7

    Thevet esteve no Rio de Janeiro entre 10 de novembro de 1555 e 31 de janeirode 1556, onde encontrou Cunhambeba, chefe dos ndios tupinamb, aliado dosfranceses. O cosmgrafo do rei da Frana afirma que, levado pela curiosidade deCunhambeba, resolveu verter e adaptar sua lngua, com auxlio de um escravocristo, nossa Orao Dominical, a Saudao Anglica e o Smbolo dos Apstolos, afim de levar esse grande Rei e todos os seus sditos ao conhecimento de sua sade eadmirao dos feitos de Deus.27 Considerando-se que os franceses no empreenderamqualquer tipo de catequeses no Rio de Janeiro e, sabendo-se ainda, que jesutas jhaviam estado com ndios daquelas localidades, onde, em fins de 1552, os faziadecorar cantares de Nosso Senhor em sua lngua e lhes fazia cantar.28 Provavelmente,Thevet obteve verses jesuticas dos principais textos utilizados na catequese,29ouvindo-os de algum ndio que os aprendeu com missionrios da Companhia, talvezmesmo seu escravo cristo. Sejam ou no de origem jesutica, so essas as verses maisantigas que se conhecem do Pater Noster, da Ave Maria e do Credo em tupi,denominados, respectivamente, Oraison Dominicale en Sauvage, SalutationAngelique e Le Simbole des Apostres:

    Oraison Dominicale en Sauvage

    Ore rure vbacp Ereico. Toicoap pauemgatu aua vbuIagatou oquoauae charai b-amo derera recoOreroso Iepp vuacp. Toge mognangaderemipotare vbucp vuacp igemonang iau.Araiauion ore remiou Zimeng cori oreue. De guron oruoorememoan angai paue sup, orerecomemoa-sara supe supe oregiron iau.Eipotarume aignang oremomoaug. Eipea pauemgne ba ememoam ore fuy.Emona n toico, Iesus.

    Salutation Angelique.

    De rori Maria Toupan oico de irumnamo de ognonnian,Ereico imombeou gatoupiramo cogna sui ae aude suy osanuae puera de Iesus.Sancta Maria Toupan su eierur demembouira suptigburon oreue, ore memoan angat paua sup.Emona ne toico Iesus.

    Le Simbole des Apostres.

    Arobia Toupan rouua mae letiroan sup y hauangauemaVbacque mognangare, vboy aue mognangare.Arobia Iesu Christo taure Iepp, Toupan Espirito sanctos, Iaese,Igemosae nandape turi y anderoo rauo aosen Maria virgon suy,barasy catpaue. Pilato oiporarauoap ysup vbuira gecunasaueriymo iamaruca seon rire, ita caramemoamPupe ytuma yanga oso ognanga retam,asioytury ouo oraue, opoerapecarai caturamo oicou mosapoi araroupe ygeou poiri

    27 No original: tourner & reduire en leur lgue, auec vn esclaue Chresti, nostre oraison Dominicale, lasalutati Angelique, & le Simbole des Apostres: afin dattirer ce grand Roy, & tous ses subiets, lacognoissance de leur salut, & admiration des faits de Dieu. Cf.: THEVET, Andr. La CosmographieUniverselle [...]. Paris: Guillaume Chandiere, 1575. v.2, cap.VIII, f. 294v.28 No original: les hazia decorar cantares de N.Seor en su lengua y les hazia cantar. Cf.: Cartaannima aos Padres e Irmos de Portugal, So Vicente, 10 de maro de 1553. In: LEITE, Serafim.Monumenta Brasiliae. Idem, v.1, 1956, doc. 59, p.429.29 THEVET, Andr. Op. cit., v.2, 1575, cap.VIII, f. 925r.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 8

    vbacp teonbouere reid suy oua picqua iuoua,Ecatouuaua, cotoyoine matetiroan supe yhauangabmae aesuiturine oicaueua, omenoueuae,puera, recopuera repugme enge ysupene,Arobia Espirito sanctos, Arobia Toupan roqu_gemonga-raipaueToupan rofe ogerobia ruuae gemongaraipaue:Arobia ychegnuam pupe catou Toupan roupapy cataicatonae gagnugnangaue se raroaue soupgurundaua se rete poropaue, Arobia Toupanroripaue sereco be boucon.Emona ne toico Iesus.

    Iniciou-se uma nova fase, por essa poca, com a intensificao do uso de oraese de cantigas, gnero originalmente portugus e profano, mas com nova letra, agoracrist e, na maioria das vezes, vertida para o tupi. Essas cantigas se diferenciavam docanto das oraes por utilizarem melodias medidas, ou seja, com compasso e ritmoprprio. So citados, a partir de ento, cantares de Deus em sua lngua,30 SalveRegina e Ladainhas,31 o Rosrio do Nome de Jesus,32 cantares devotos e diversose o Veni Creator Spiritus,33 alm da costumeira msica para as missas e festas,inclusive com o uso de instrumentos.

    Papel importantssimo, nessa fase, desempenhou o padre Jos de Anchieta, noBrasil de 1553 a 1597. Quircio Caxa, em 1598, informa que comps tambm cantigasdevotas na lngua, para que os moos cantassem34 e Pero Rodrigues, em 1607, afirmaque Mudava cantigas profanas ao divino, e fazia outras novas, honra de Deus e dossantos, que se cantavam nas igrejas e pelas ruas e praas, todas mui devotas com que agente se edificava e movia ao temor e amor de Deus.35

    Um volume das poesias de Anchieta foi recuperado e est hoje impresso.36Escritas em portugus, tupi, espanhol e latim, grande parte delas destinava-se ao canto,havendo, entre os prprios depoimentos que no sculo XVII se anexaram aos processospara a sua beatificao, relatos de pessoas que declararam ter entoado tais cantigas.37Mas a informao mais importante que aparece nesse volume, so as indicaes, emalgumas das poesias, da melodia que deveria ser utilizada. Anchieta registrou, ao lado

    30 No original: cantares de Dios en su lingua. Cf.: Carta de Jos de Anchieta a Incio de Loyola.Piratininga, setembro de 1554. In: LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae Idem, v.2, 1957, doc. 23, p.112.31 No original: Salve e ladainhas. Cf.: Carta de Antonio Rodrigues a Manoel da Nbrega. Paraguau(Bahia), 28 de setembro de 1559. In: LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae. Idem, v.3, 1958, doc. 26,p.155.32 No original: rosrio do Nome de Jesu. Cf.: Carta de Rui Pereira aos Padres e Irmos de Portugal In:LEITE, Serafim. Idem supra, v.3, 1958, doc. 40, p.296.33 No original: cantares devotos y diversos e Veni Creator Spiritus. Cf.: Carta de Amaro Gonalves aFrancisco de Borja. Bahia, 16 de janeiro de 1568. In: LEITE, Serafim. Idem supra, v.4, 1960 doc. 60,p.440 e 445.34 No original: comps tambm Cantigas devotas na lngua, para que os moos cantassem. Cf.: CAXA,Quircio. Breve relao da vida e morte do P . Jose de Anchieta (1598). In: LEITE, Serafim. A primeirabiografia indita de Jos de Anchieta. Broteria, Lisboa, v.18, mar/abr. 1934, p.14.35 No original: Mudaua cantigas profanas ao divino, e fazia outras nouas, ha onrra de Deus e dossantos, q. se cantau nas Igrejas e pellas ruas e praas, todas muy devotas com que. a gente se edeficaua,e mouia ha temor e amor de Deus.. Cf.: RODRIGUES, Pero. Vida do Padre Jos de Anchieta pelo PadrePedro Rodrigues conforme a cpia existente Biblioteca Nacional de Lisboa (1607). Annaes da BibliotecaNacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v.29, 1907, p.209.36 ANCHIETA, Joseph de. Poesias; Manuscrito do sculo XVI, em portugues, castelhano, latim e tupi;transcrio, tradues e notas de M. de L. de Paula Martins. So Paulo: Ed.Comemorativa do IVCentenrio da Fundao de So Paulo, 1954. 833 p.(Museu Paulista, Documentao Linguistica, 4;Boletim 4)37 ANCHIETA, Joseph de. Idem supra, prefcio de Hlio Abranches Viotti, p.xxiv-xxv.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 9

    de alguns textos, o nome de cinco melodias ibricas, todas j desconhecidas: a Canodo moleiro, El ciego amor, Quien tiene vida en el cielo, O sem ventura eQuerendo o alto Deus. O emprego de melodias pr-existentes foi informado somentepor Anchieta, mas um indcio de que o processo deveria ser comum no sculo XVI.

    Rogrio Budasz recentemente demonstrou que, mesmo em poesias nas quais amelodia no foi indicada por Anchieta, o processo de construo do texto, conhecidoem como divinizao, nos permite conhecer algumas melodias com as quais essaspoesias foram cantadas. Nesse processo, poesias hoje encontradas em cancioneirosibricos do sculo XVI eram alteradas, de modo que seu contedo profano fosseconvertido em religioso, como ocorre no exemplo ibrico Venid a sospirar al verdeprado, transformado por Anchieta em Venid a sospirar con Jesu amado,provavelmente com a preservao da melodia original.38

    4. Catecismos na lngua braslica

    A proliferao desses gneros e a necessidade de sua sistematizao estimulou, apartir da dcada de 1570, a produo de catecismos em tupi, para uso dos missionrios.Um autor annimo do sculo XVI informa que O p. Leonardo [do Vale] comps esteano [1574] uma doutrina na lngua do Brasil, quase trasladando a que fez o P. MarcosJorge [em 1571].39 Escrevendo sobre os ndios das aldeias da Bahia, j em 17 dedezembro de 1577, Lus da Fonseca declara que Les Dimanches et jours de festes leursenfans vont chantant par les rues le Catechisme en langue Brasiliane, te Portugaise sidextrement, quils ne adent en rien aux enfans des Portugalois.40 Jos de Anchieta teveum papel fundamental nesse processo. Em fins do sculo XVI preparou uma arte degramtica da lngua braslica e uma doutrina crist em dilogos,41 cuja publicao foiautorizada pelo Santo Ofcio em 1594, mas apenas a arte de gramtica foi realmenteimpressa:42

    Somente em 1618 foi publicado o primeiro catecismo braslico, dirigido porAntonio de Arajo (Catecismo na lngua braslica...),43 reimpresso em 1686, comcorrees e atualizao da lngua por Bartolomeu de Leo (Catecismo braslico dadoutrina christ...).44 Essa obra, alm de conter as principais oraes catlicas, entreelas o Padre nosso, a Ave Maria, a Salve Rainha e o Credo em tupi,normalmente cantados pelos meninos indgenas, traz o texto de quatro Cantigas nalngua, para os meninos da Sancta Doutrina. Feitas pelo Padre Cristvo Valente

    38 BUDASZ, Rogrio. A presena do Cancioneiro Ibrico na Lrica de Jos de Anchieta - um EnfoqueMusicolgico. Revista de Msica Latino Americana / Latin American Music Review, Austin, v.17, n.1,p.42-77, Spring / Summer 1996.39 No original: El pe. Leonardo [do Vale] compuso este ao [1574] una doctrina en la lengua del Brasilquasi tresladando la q hizo el Pe. Marcos Jorge [in 1571].. Cf.: Histria dos Collegios do Brasil;Manuscripto da Bibliotheca Nacional de Roma (copia). Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio deJaneiro, Rio de Janeiro, Bibliotheca Nacional, v.19, 1897, p.117.40 No original: Les Dimanches & iours de festes leurs enfans vont chantant par les rues le Catechisme enlangue Brasiliane, & Portugaise si dextrement, quils ne adent en ri aux enfans des Portugalois. Cf.:Lettres dv Iappon, Perv, et Brasil [...]. Paris, Thomas Brumen, 1578. p.54.41 Cf.: ARAJO, Antonio de. Catecismo na Lingua Brasilica; Reproduo fac similar da 1a. edio(1618). Rio de Janeiro, PUC do Rio de Janeiro, 1952. Apresentao de A. Lemos Barbosa, p.IX-XI.42 ANCHIETA, Jos de. Arte de gramtica da lngua braslica. Coimbra, 1595.43 ARAJO, Antonio de. Catecismo na Lingoa Brasilica [...]. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1618. 16 f.inum., 179 f. num 1 f. inum.44 ARAJO, Antonio de. Catecismo Brasilico da Doutrina Christa [...]. Lisboa: Officina de MiguelDeslandes, 1686. 16 f.inum., 371 p., 4 f. inum.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 10

    Telogo, e mestre da lngua.45 Na edio de 1686, intitulam-se Poemas braslicos doPadre Cristvo Valente, Telogo da Companhia de Jesus, emendados para os meninoscantarem ao santssimo nome de Jesus.46

    Estas cantigas, semelhana das de Anchieta, difundiram-se por longasdistncias. Em 1698, 80 anos aps sua publicao em Lisboa, Joo Felipe Bettendorfinformava que uma delas, Tvpa ci angaturama / Sancta Maria xejra, ainda eracantada nas aldeias do Par, em fins do sculo XVII.47 Cantigas e oraes cantadas emtupi j eram extremamente usuais na poca de Cristvo Valente (1566-1627), entre osindgenas aldeados pelos jesutas, como atesta Pierre du Jarric, em 1610:48

    Assim que esses brbaros comeam a tomar gosto e a seafeioar s coisas da nossa santa f, envolvem-se ento com oscatecmenos, dando s rvores, barcos e rios os nomes sagrados deJesus e Maria, cantando com singular gosto e prazer o Pater noster, aAve Maria, o Credo e outras oraes crists.

    Sebastiano Berettari, em 1618, d este depoimento:49

    Depois que tocam e rezam as Ave Marias, antes de ouvir Missa,juntam-se porta da igreja os meninos e meninas brass, e divididos emdois grupos cantam a coros, em alta voz, o Rosrio da Virgem. Doprincpio ao Rosrio os meninos, dizendo: Bendito e glorificado seja osantssimo nome de Jesus; e respondem as meninas: e o da santssimaVirgem Maria sua me, para sempre. Amem. E logo comeam cantandoseu Rosrio; depois de cada dez Ave Marias, dizem o Gloria Patri; e

    45 No original: Cantigas na lingoa, para os meninos da Sancta Doctrina. Feitas pello Padre ChristouaValente Theologo, et mestre da lingoa.46 No original: Poemas brasilicos do Padre Christovo Valente, Theologo da Companhia de Jesus,Emendados para os mininos cantarem ao Santssimo nome de Jesus.47 BETTENDORF, Joo Felipe. Chronica da misso dos padres da Companhia de Jesus no Estado doMaranho (1698). Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brazileiro, Rio de Janeiro, v.72, parte 1,1910, p.271.48 No original: De la vingt que ces barbares commencerent prendre goust & s`affectioner aux choses denostre saincte foy, si que plusieurs demanderent destre enroolez au nombre des Catechumenes, lesquelsfaisoyent retenir les bois, le chalups, & les riuages des noms sacrez de Iesvs, & de Marie, chantans auecvn singulier goust & plaisir, le Pater, lAue, le Credo, & les autres oraisons Chrestiennes. Cf.: JARRIC,Pierre du. Seconde Partie de lHistoire des choses plus memorables advenues tant ez Indes Orientales,que autres pais de la descouuerte des Portugais [ ... ]. Bourdeaus: Simon Millanges Imprimeur, 1610.Cap.XXV, p.271.49 No original: Despues que se tocan, y se rezan las Auemarias, antes de oyr Missa se juntan a la puertade la Iglesia los muchachos, y muchachas Brasiles, y diuididos en dos ordenes ct a coros en alta voz elRosario de la Virgen.D principio al rosario los muchachos dizido. Bendito y glorificado sea elStissimo nbre de Iesvs; y respden las nias, y el de la Santissima Virgen Maria su madre, por siemprejamas amen.Y luego comiencan cantando su Rosario; despues de cada diez Auemarias, dizen el GloriaPatri; y acabado el Rosario entran en la Iglesia; y oyen con los demas la Missa [...]. Cf.: BERETTARI,Sebastiano. Vida del Padre Ioseph de Ancheta de la Compania de Iesvs, y Provincial del Brasil.Tradvzida de Latin en Castellano por el Padre Esteuan de Patermina de la misma Compaia, y naturalde Logroo. Salamanca: Emprenta de Antonia Ramirez viuda, 1618. Libro Tercero, Cap II, p.157. Estefragmento j havia sido publicado em latim na Vita R. P.Iosephi Anchiet Societatis Iesv Sacerdotis inBrasilia defuncti. Ex iis qv de eo Petrvs Roterigvs Societatis Iesv Prses Prouincialis in Brasiliaquatuor libris lusitanico idiomate collegit, alijs gss monumentis fide dignis a Sebastiano Beretario exeadem Societate descripta. Prodit nunc primum in Germania. Coloni Agripin, Ioannem Kinchivm subMonocerote, 1617. Liber Secvndvs, 35, p.163.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 11

    acabado o Rosrio, entram na igreja e ouvem a Missa com os demais[...].

    5. Novas ordens e novas paragens

    No sculo XVII, essa prtica jesutica comeou a se deslocar da costa leste parao interior e para o norte. No Maranho, independente do Brasil desde 1621, osmissionrios passaram a ensinar aos ndios os dogmas da nossa f, pelo mtodo quepara isso traziam, conforme o louvvel costume das nossas aldeias do Brasil, comodeclara Jos de Morais, em 1759.50 O mesmo autor afirma que, no Par, em 1637, LuisFigueira querendo-lhes fosse mais suave o jugo da lei que professaram, lhes compsem devotas canes pela sua mesma lngua, com que haviam de louvar a Deus e suaMe Santssima, aos Anjos e Santos do Cu.51 Andr de Barros, em 1746, informa que,entre os ndios da Serra de Ibiapaba (Cear), nos anos de 1656-1657, os missionriosCompuseram a santa doutrina em verso, e a ensinavam a cantar com agradveis tonsaos meninos, que a aprendiam.52 Joo Felipe Bettendorf foi o ltimo jesuta do sculoa publicar um catecismo em tupi, destinado ao ministrio no Maranho, o Compendioda Doutrina Christa na lingua portugueza, & Brasilica..., de 1678,53 contendo aOrao do sinal da Sancta Cruz, o Padre Nosso, a Ave Maria, a Salve Rainhae o Creio em Deos Padre, em verso bilnge.54

    A empresa jesutica, nesse sculo, no penetrava os sertes simplesmente paraexpandir a f. Na costa leste, o sonho da converso tornava-se, paulatinamente, umaesperana morta, obrigando-os busca de novas paragens. Mecenas Dourado foi ohistoriador que melhor ilustrou o drama da Companhia nesses tempos.55

    E nos princpios do sculo XVII j no havia ndios paracatequisar, porque haviam emigrado, fugindo a essa catequese da qualnada compreendiam e nem lhe sabiam o proveito. Os jesutasentretinham-se com os que puderam ficar ou com os que se renovavam -a servio deles prprios e dos colonos. Convertidos? No. Maldomesticados e recebendo passivamente - como sempre fizeram - ou pormera imitao, sem contedo psicolgico, como si acontecer aosprimitivos, as cerimnias externas que os jesutas lhes queria fazerrepresentar.

    50 No original: os dogmas da nossa f, pelo methodo que para isso trazio, conforme o louvavel costumedas nossas aldeas do Brasil. Cf.: MORAIS, Jos de. Histria da Companhia de Jesus na extinctaProvncia do Maranho e Par. In: ALMEIDA, Cndido Mendes de. Memrias para a Histria doExtincto Estado do Maranho [...]. Rio de Janeiro: Typ.do Commrcio de Brito e Braga, 1860. Livro I,cap.X, p.76.51 No original: querendo-lhes fosse mais suave o jugo da lei que professaro, lhes compoz em devotascanes pela sua mesma lngua, com que havio de louvar a Deos, e sua Me Santssima, aos Anjos eSantos do Ceo. Cf.: Idem supra, livro II, cap.III, p.202.52 No original: Compuzero a santa doutrina em verso, e a ensinavo a cantar com agradveis tons aosmeninos, que a aprendio. Cf.: BARROS, Andr de. Vida do Apostolico Padre Antonio Vieira [...].Lisboa: Nova Officina Sylviana, 1746. Livro II, Pargrafo CCXVII, p.232.53 BETTENDORF, Joo Felipe. Compndio de Doutrina Christa na lingua Portugueza, & Brasilica [...].Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1678, 10 f. inum., 142 p.54 No original: Orao do sinal da Sancta Cruz, Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha e Creioem Deos Padre.55 Cf.: DOURADO, Mecenas. A converso do gentio. Rio de Janeiro: Livraria So Jos, 1958. p.101-102.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 12

    O procedimento desenvolvido pelos jesutas no sculo XVI foi utilizado noBrasil at sua expulso, em 1759. Contudo, a partir da dcada de 1590, suasexperincias passaram a ser aproveitadas por religiosos de outras ordens. Nas aldeias daParaba, em c. 1593, os Franciscanos j se utilizavam do canto cristo em tupi, comodeclara Antonio de Santa Maria Jaboato, em 1761 : Costumavam tambm os ndioscantar muitas cantigas brutais, e gentlicas; e como, eles naturalmente sejamafeioados msica, algumas vezes de noite cantavam as ditas cantigas, ao que osReligiosos acudindo, lhes compuseram algumas devotas, que eles cantavam.56 Manuelda Ilha, em texto de 30 de agosto de 1621, confirma a prtica dos franciscanos, na aldeiade S. Miguel de Iguna (Paraba), em fins do sculo XVI: muitos dentre eles somestres em msica tanto vocal quanto instrumental, com o que nos dias de festasolenizam o culto divino.57 Os capuchinhos, diviso da ordem franciscana, deramseqncia ao aproveitamento da tcnica jesutica na Franca Equinocial(Posteriormente Maranho), entre 1612-1615. Capuchinhos franceses verteram para otupi a Oraison Dominicale (Pater Noster), a Salutation Angelique (Ave Maria), oSymbole des Apostres (Credo), os dix Commandemens de Dieu (TenCommandments), os Commandemens de la Saincte Eglise (Commandments of th HolyChurch) e os Sept Sacremens (Seven Sacraments), publicados por Yves dEvreux em1615.58 Claude dAbbeville, em 1614, escreveu sobre um dos ndios catequizados doMaranho, o qual comeou a Orao Dominical em sua lngua, que eles o faziamseguir palavra por palavra. E para o fazer memorizar de forma mais eficaz, fizeram-lhedizer cantando a Ave Maria, o Credo, os Mandamentos de Deus, da Igreja e os SeteSacramentos.59 DEvreux tambem registrou uma informao dos meninoscatecumenos, os quais teriam declarado que Eles fizeram vir os nheengariba, ou seja,os cantores msicos, para cantar as grandezas de Tup.60

    Na segunda metade do sculo XVII, instaurou-se uma nova fase. Devido progressiva extino dos ndios da costa e ao avano da colonizao, a lngua geraltornou-se, pouco a pouco, desinteressante ao governo portugus, chegando a serproibida nas povoaes de colonos e em ncleos mistos, por proviso rgia de 1727. Osreligiosos, a partir dessa poca, passaram a se utilizar tambm de lnguas no tupis,sendo os franciscanos, notadamente os capuchinhos, os primeiros que expandiram oensino musical s naes cariri. Um de seus representantes, Martin de Nantes, residente, 56 No original: Costumavo tambm os Indios cantar muitas cantigas brutaes, e gentilicas; e como, ellesnaturalmente sejo affeioados a musica, algumas vezes de noite cantavo as ditas cantigas, ao que osReligiosos acudindo, lhes compuzero algumas devotas, que elles cantavo. Cf.: JABOATO, Antoniode Santa Maria. Orbe Serafico Novo Brasilico [...]. Lisboa: Officina de Antonio Vicente da Silva, 1671.Cap.XIV, Relatrio I, p.36.57 No original: et illorum quam plurimi musicis artibus canendi et pulsandi omnia instrumenta, quibusdiebus festivis rem divinam decantant, sunt periti. Cf.: ILHA, Manuel da. Narrativa da Custdia deSanto Antonio do Brasil - 1584-1621 (texto bilingue. Introduo, notas e traduo portuguesa por FreiIldefonso Silveira). Petrpolis: Vozes / Provncia Franciscana da Imaculada Conceio do Brasil, 1975.p.89.58 DEVREUX, Yves. Svitte de lHistorie des choses plus memorables aduenues en Maragnan, es annees1613, & 1614, Second Traite. Paris: Imprimerie de Francois Huby, 1615. Second traite, cap.VII, f. 286v-290r.59 No original: commenoit lOraison Dominicale en leur langue, quil leur faisoit dire mot a mot apresluy. Et pour leur faire retenir plus aisement, il trouua inuention de leur faire dire en chantant, auec lAueMaria, le credo, les Commandements de Dieu, de lEglise, & les Sept Sacremens. Cf.: DABBEVILLE,Claude. Histoire de la Mission des Peres Capucins en lIsle de Maragnon et terres circonuoisines [...]Paris: Imprimerie de Francois Huby, 1614. Cap.XIX, f.118 v.60 No original: Ils feront venir des Miengarres [ou seja, nheengaribas`] cest a dire, des chantresMusicies, pour chanter les grandeurs du Toupan. Cf.: DEVREUX, Yves. Op. cit., Second Trait, cap.I,f. 247v.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 13

    entre 1671 e 1686, em um grupo de aldeias cariri do rio So Francisco (das quaisUracap era a mais importante), ensinou-lhes a cantar, em portugus, o Pater Noster, aAve Maria, o Credo e a Salve Regina. Em sua publicao de 1707, declarava que, nessaaldeias, Eles possuem o costume de cantar todas as noites, aps o jantar, o rosrio daVirgem divididos em dois coros, cada um de seu sexo, e cantam maneira portuguesamuito agradavelmente, com uma espcie de fabordo.61

    Martin de Nantes tambem autor de um Cntico Espiritual sobre o Mistrio daEncarnao do Verbo Divino62 e de um Cntico Espiritual a So Francisco, orago daIgreja Matriz dos ndios de Uracap,63 em verso bilngue portugus-carir, publicadosem 1709 por seu irmo Bernardo de Nantes.64 Provavelmente utilizados entre os ndios,estes dois cnticos esto entre as primeiras formas de poesia cantada em lngua no tupi.

    De composio to antiga quanto os exemplos de Martin de Nantes, so os queLodovico Vincenzo Mamiani delle Rovere imprimiu no Catecismo da doutrinaChrista na Lingua Brasilica da Naao Kiriri..., em 1698.65 Mamiani delle Rovere eraum dos jesutas que partiu para os sertes do pas, escrevendo trs Cantigas na LinguaKiriri para cantarem os Meninos da doutrina com a verso em versos Castelhanos domesmo metro,66 alm de uma verso em cariri do Stabat Mater dolorosa. A novidade que, pela primeira vez, o autor dedicou um espao de seu livro solfa desses textos,ou seja, msica com a qual deveriam ser cantados, fato nico na Amrica Portuguesa,que indica uma preocupao com o aprimoramento da tcnica do emprego musical.Esse espao, no entanto, foi deixado em branco, provavelmente para que cadamissionrio nele registrasse a melodia de seu agrado.

    Na Amrica Espanhola, foram comuns os catecismos com msica impressa,sobretudo no sculo XVIII,67 mas possvel que, no Brasil, o acmulo de insucessos nacatequese tenha desestimulado os esforos nesse tipo de publicao.

    6. Os ndios msicos de Pernambuco

    Na Carta ao P. Provincial do Brasil, Maranho, datada de 10 de junho de 1658,o jesuta portugus Antnio Vieira refere-se a alguns msicos da mesma naoTobajara, dos que se retiravam de Pernambuco que, dessa capitania, transferiram-separa a Serra de Ibiapaba, no Cear.68 Mas esse assunto foi melhor explorado por Vieiraem um texto intitulado Relao da Misso da Serra de Ibiapaba, datado de 1659,69

    61 No original: Ils ont de cotume de chanter tous les soirs la Couronne de la Vierge partages en deuxcoeurs, chacun de son sexe, & cela aprs leur soper, & ils chantent la maniere Portugaise fortagrablement avec une espece de faux bourdon. Cf.: NANTES, Martin de. Relation Succinte et Sincerede la Mission du Pere Martin de Nantes [...] Quimper: Jean Perier, [1707]. Second Partie, p.33.62 No original: Cantico Espiritual sobre o Mysterio da Encarnao do Verbo Divino.63 No original: Cantico Espiritual a S. Francisco, orago da Igreja Matriz dos Indios de Wracapa.64 NANTES, Bernardo de. Katecismo Indico da Lingua Kariris [...] Lisboa: Officina de Valentia da CostaDeslandes, 1709. p.152-167.65 MAMIANI DELLE ROVERE, Lodovico Vincenzo. Catecismo da doutrina Christa na LinguaBrasilica da Nao Kiriri [...]. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1698. XVI, 236 p.66 No original: Cantigas na Lingua Kiriri para cantarem os Meninos da doutrina com a verso emversos Castelhanos do mesmo metro.67 LEMMON, Alfred E. Jesuit Chroniclers e Historians of Colonial Spanish America: Sources for theEthnomusicologist. Inter-American Music Review, v.10, n 2, spring/summer 1989. p.119-121.68 VIEIRA, Antonio. Cartas do Padre Antonio Vieira coordenadas e anotadas por J. Lucio dAzevedo.Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925. v.I, carta 80, p.477-478.69 BARROS, Andr de (ed.). Vozes saudosas, da eloquencia, do espirito, do zelo; e eminente sabedoriado Padre Antonio Vieira, da Companhia de Jesus, Pregador de Sua Magestade, e Prncipe dos OradoresEvanglicos: acompanhadas com um fidelissimo echo, que sonoramente resulta do interior da obraClavis Prophetarum. Concorda no fim a suavidade dass Musas em elogios raros todo reverente dedica

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 14

    referente chegada dos Padres nesse stio em 1656. Neste fragmento, Vieira elogia otrabalho dos padres que, naquela localidade, ensinaram os ndios por meio da msica,evocando a opinio de Nbrega, emitida um sculo antes, para justificar o cultivo dessatradio jesutica:

    [...] A [tarefa] do edificio espiritual se comeou juntamente [com ado levantamento da igreja] , porque desde o primeiro dia comeara osPadres a ensinar a doutrina no campo, a que concorria principalmenteos pequenos, que muito brevemente tomara de memoria as oraoens, erespondiam com promptida a todas as perguntas do Catecismo. Masdepois, que os Padres lhes ensinara a cantar os mesmos mysterios, quecompuzera em versos, e tons muito accommodados, viase bem comquanta raza dizia o Padre Nobrega, primeiro Missionario do Brasil, quecom musica, e harmonia de vozes se atrevia a trazer a si todos os gentiosda America. Fora daqui por diante muito mayores os concursos, edoutrinas de todos os dias; e mayores tambem as esperanas, que osPadres concebera de que por meyo desta musica do Ceo queria o divinoOrfeo das almas encantar estas fras destas penhas, para as trazer aoedificio da sua Igreja. [...]

    Em outro fragmento, Vieira descreve sua chegada na Serra de Ibiapaba, naQuarta-feira Santa, 24 de maro de 1656, referindo-se, agora, aos ndios que vieram dePernambuco (provavelmente trazidos pelos prprios jesutas) no para seremcatequizados pelos missionrios, mas para os auxiliarem em suas tarefas decristianizao. Esses ndios de Pernambuco, que tinham vozes, e musica de canto deOrgo, foram representantes de um fenmeno produzido pelos jesutas entre fins dosc. XVI e incios do sc. XVII: o surgimento de ndios treinados em msica religiosaportuguesa que integravam capelas de msica, provavelmente em troca de pagamento,gneros de consumo ou at de abrigo:70

    [...] Entrara na serra em quarta feira de Trevas pela huma hora;e logo na mesma tarde comeara os officios, que se fazem com toda adevaa, e perfeia por serem quatro os Sacerdotes, e os Indios dePernambuco terem vozes, e musica de canto de Orgo, com que tambemcantara a Missa da quinta feira, e sexta feira a Paixo, em que vieratodos adorar a Cruz com grande piedade, e na tarde ao pr do Sol sefechou a tristeza daquelle dia com huma procissa do Enterro, em quehia todos os mininos, e moos em duas fileiras com coroas de espinhos, ecruzes s costas, e por fra delles na mesma ordem todos os Indiosarrastando os arcos, e frechas ao som das caixas destemperadas, q em talhora, em tal lugar, e em tal gente accrescentava na poucco a devaanatural daquelle acto. O officio do Sabbado sancto, e o da madrugada daRessurreia se fez com a mesma solemnidade, e festa, a qual acabada,comeara os Padres a entender na reformao daquella Christandade,ou na forma, e assento, que se havia de tomar nella; e porque a materiaera chea de tantas difficuldades, como se tem visto no discurso de todaesta relaa, era necessaria muita luz do Ceo para acertar em os mayores

    ao Prncipe Nosso Senhor O P.Andr de Barros, da Companhia de Jesus, Academico do numero daAcademia Real da Historia Portugueza. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1736. VIII, p.37-38.70 VIEIRA, Antonio. Idem supra, XVII, p.85-87.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 15

    convenientes, e muita mayor graa de Deos para os Indios os aceitarem, epr em execua. [...]

    Os ndios msicos de Pernambuco foram freqentemente citados por cronistasdos sculos XVII e XVIII. Lus Figueira foi o primeiro a escrever sobre eles, em 1607,chamando-os de nheengarabas e informando que seguiam com ele de Pernambuco parao Maranho e que praticavam msica por papel:71

    So todos estes incrivelmente inclinados a cantar e danar, eporque os Pitiguares so nisto afamados e conosco iam algunsnheengarabas ou mestres de capela desatinavam-nos que cantassem paraos ensinarem; e, fazendo revezar ora uns ora outros, cantavam dias enoites, de 24 em 24 horas, sem interromper, at no poderem falar deroucos, tendo isto por valentia e delrios. E a ns pediram que lhesensinssemos seus filhos o papel (como eles dizem), querendo dizer quelhes ensinssemos a ler e cantar o nosso canto, o que ns com facilidadefizemos para os domesticar; mas eles mostram mui pouco talento para onosso canto; os do mar, facilmente. Com isto domesticamos muito osmeninos, que dantes fugiam de ns, e alguns que estavam em suas roasme vieram dizer que queriam aprender o que eu ensinava aos outros, emuitos diziam resolutamente que se haviam de ir conosco, fugindo de seuspais ou aps ns. Entre os quais teve graa um, que representava 12 anos,em dizer que, se os Padres se fossem, no tinha outra coisa que fazerseno abrir uma cova e meter-se nela; e isto com grande sentimento. Eoutro, estando eu ocupado no sei em qu, se chegou a mim, e, depois deestar um pedao, me disse: No sei que isto, que dantes fugia de ti, eagora no me posso apartar. Isto nos servia para os ensinar e doutrinar, ej sabiam muitos deles a doutrina e algumas coisas de nossa santa f.Tambm os fazamos ensinar a danar ao modo portugus, que para elesera a coisa de mais gosto que pode ser.

    Entre 1613-1614, Ives dEvreux, que esteve na colnia francesa de So Lus doMaranho, no territrio ento denominado Frana Equinocial, informa, em relao aosndios da localidade, que Ils feront venir des Miengarres cest a dire, des chantresMusicis, pour chanter les grandeurs du Toupan,72 utilizando expresso que podecorresponder aos Nheengarabas ou Nheengaribas descritos por Lus Figueira.73 Jos de

    71 LEITE, Serafim. Artes e ofcios dos jesutas no Brasil (1549-1760). Lisboa: Edies Brotria; Rio deJaneiro: Livros de Portugal, 1953., p.61. Serafim Leite informa que o manuscrito de Lus Figueira estarquivado no arquivo da Companhia de Jesus em Roma, cdigo Bras. 8, f. 76v-77r e j transcrito em seuLivro Lus Figueira (Lisboa, 1940, p.129-130), no consultado para este artigo.72 DEVREUX, Yves. Svitte de lHistorie des choses plus memorables aduenues en Maragnan, es annees1613, & 1614 Second Traite. Paris: Imprimerie de Francois Huby, 1615. Second Trait, Cap.I, f.247v.Nossa traduo: Fazem vir os Nheengaribas, ou seja, os cantores msicos, para cantar asgrandezas de Tup.73 De acordo com Serafim Leite, esses ndios msicos de Pernambuco Eram os Nheengarabas, mestrescantores, ou como traduz, meio etimolgica meio humoristicamente, Lus Figueira, mestres de capela.No era cantar de ouvido, mas por msica e papel. A alguns deles levou o mesmo Lus Figueira, quandocom o P.Francisco Pinto, tentou em 1607 a juno de Pernambuco ao Maranho. E lhes serviram naSerra de Ibiapaba (Cear), para ensinar os moos ndios dela, ensino que os Nheengarabas lhesministravam por papel ( a expresso de Lus Figueira), e ao qual os ndios da Serra assistiam horas afio, para aprender. Tambm lhes ensinavam a danar ao modo portugus que para eles era a coisa demais gosto que pode ser. E na Festa da Assuno (15 de Agosto de 1607) celebraram o dia com uma

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 16

    Morais, por sua vez, assinala sua presena em So Lus do Maranho em 1615, semutilizar a expresso de Figueira, mas referindo-se provavelmente ao mesmo grupo queeste acompanhara de Pernambuco para o Maranho em 1607:74

    Nos domingos se juntavo todos e antes de entrar a Missa resavoa santa doutrina, ouvio a explicao dos divinos mysterios e assistio sMissas que nos dias classicos ero cantadas e acompanhadas de muitobom e ajustado som de charamelas, para o que tinho trazido j ensinadosalguns dos Tupynambs no tempo que estivera em Pernambuco, o quetudo convidava os mesmos Indios, que pela sua natural preguia so deordinario pouco affectos a qualquer trabalho.

    Joo Felipe Bettendorf, referindo-se j ao perodo de Antnio Vieira, informa quefaziam-se em a alda da residencia [de Ibiapaba, em 1656] , os officios divinos a cantode orgam com os indios musicos, e charameleiros que l se achavam vindos dePernambuco onde dantes moravam.75 O mesmo autor volta a mencion-los poucotempo depois, chamando-os agora de Tabajaras (j foram denominados Nheengarabase Tupinambs): 76

    Logo que os Padres Missionarios e indios da alda souberam quevinha o Padre Subprior Antonio Vieira, o foram receber ao caminho comos Principaes com muita festa e danas dos meninos, e assim oacompanharam at a egreja onde se repicou sino, tocando os TabajarasPernambucanos suas charamellas e frautas.

    Andr de Barros tambm comenta a chegada de Vieira Serra:77

    Era huma hora, e o dia de quarta feira de Trvas, em que secontava 24 de Maro [de 1656] ; e sem mais descano, nem perder ponto religiosa regularidade, ordenou logo os Officios daquella tarde, quecelebrro com devaa piedza. Era quatro os Sacerdotes, queacompanhados dos Indios Pernambucanos, que Tinha, e sabia o cantode Orga, dra terra nva ternura, ao Ceo alegria.

    Por fim, Bettendorf aponta a existncia de alguns deles no Maranho em c.1663,relacionando-os aos que estiveram em Ibiapaba, na companhia de Vieira e insistindo nadenominao Tabajaras:78

    [...] s mais aldas todas, assim da ilha como Itapecur, corriacom grande perigo incansvel zelo o Padre Gonalo de Veras, umas por

    procisso, a primeira festa naquela apartada Serra, com uma dana e um diabrete, etc., o que tudocausou admirao por ser para eles grande novidade; e depois dela, todos foram para suas casas aprantear, por verem que os seus antepassados morreram sem verem tanto bem. Cf. LEITE, Serafim. Amsica nas escolas jesuticas do Brasil no sculo XVI. Cultura, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p.29, jan./abr.1949. Serafim Leite cita seus Livros Luiz Figueira (Lisboa, 1940, p.30, 125, 129, 130) e Histria daCompanhia de Jesus no Brasil (Rio de Janeiro, v.4, 1934, p.295), no consultados para este texto.74 MORAIS, Jos de. Op. cit., Livro I, Cap.X, 15, p.76-77.75 BETTENDORF, Joo Felipe. Op. cit., Livro III, Cap.3, 1, p.96.76 BETTENDORF, Joo Felipe. Op. cit., Livro III, Cap.11, 4, p.123.77 BARROS, Andr de. Vida do apostlico padre Antnio Vieira, Op. cit., Livro III, LXI, p.300.78 BETTENDORF, Joo Felipe. Op. cit., Livro IV, Cap.15, 2, p.224.

  • PAULO CASTAGNA. Msica missionria na Amrica Portuguesa (HMB - Apostila 3) 17

    terra, outras por mar, no tendo outros remeiros que os rapazes que lheserviam e tocavam as flautas do tempo do sacrifcio da Missa, por ser umdelles Tabajara da serra, que sabia tocar, e ter alem destes uns indioscharameleiros da mesma nao, com um indio velho, mestre de todos, oqual morava em a aldeia de S. Jos.

    Os ndios msicos de Pernambuco - Nheengarabas, Tupinambs ou Tabajaras -observados de 1607 a c.1663, provavelmente aprenderam msica com os jesutas emPernambuco e, aps a extino da maior parte das aldeias da costa, na transio do sc.XVI para o sc. XVII, os poucos ndios catequizados que sobreviveram (entre eles osndios msicos) iniciaram a procura por regies menos habitadas, seguindo os jesutasem sua migrao para o centro e para o norte do pas. Tais ndios, descritos por Vieira eoutros autores do sc. XVII, eram j representantes da fase de decadncia do ensinomusical jesutico, cujo apogeu ocorreu no Nordeste na segunda metade do sc. XVI,perodo ao qual o escritor portugus alude freqentemente ao discorrer sobre a prticamusical que defende.

    7. Concluso

    Nesses primeiros sculos da colonizao do pas, foram desenvolvidas todas astcnicas bsicas de catequese indgena, sobretudo no que se refere utilizao damsica. Inovaes surgiram apenas na era do rdio e das gravaes, a bem da verdade,em uma poca na qual a catequese j no tem mais qualquer funo colonizadora, frente brutal invaso dos territrios indgenas pelas populaes brancas. Em perodos maisrecentes, a msica chegou a ser utilizada at com uma finalidade aparentemente opostaquela que analisamos, ao pretender libertar e no mais catequizar. De qualquerforma, a interferncia direta na cultura e na vida do ndio brasileiro, at o presente, novem demonstrando resultados muito construtivos, do ponto de vista sociolgico.

    Observamos que, nesse processo, a utilizao da msica exerceu um papelcrucial, se no na prpria converso, ao menos na deculturao. Desse passado, departicular interesse para a musicologia, resta recuperar e estudar os documentos maisimportantes, principalmente os documentos sonoros, para incorpor-los histria daprtica musical americana. No como peas de museu, mas como exemplos vivos deum tempo ainda no to distante, para no ter o que nos ensinar.