História Natural do Galo de Barcelos - · PDF filepo do primeiro era provavelmente...

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Festa das Cruzes 2 Jornal de Barcelos . Quarta-feira 16 de Fevereiro 2011 3 Jornal de Barcelos . Quarta-feira 16 de Fevereiro 2011 Festa das Cruzes sa peça (indicada como “cerca de 1920”) é realmente desconhecida mas anterior a 1937, ano em que foi integrada no acervo. O Museu de Olaria de Barcelos também conserva no seu acervo alguns apitos des- te tipo, embora com cristas mais desen- volvidas que provavelmente são mais re- centes, datando das décadas de 1930 ou 1940. Existe uma diferença capital entre o ga- lito de 1900 e o da figura 7: é que o cor- po do primeiro era provavelmente maci- ço, enquanto que o do segundo é consti- tuído por uma cabaça oca tirada na roda de oleiro, cujo topo foi abatido como para formar um moringue, ligando-se-lhe de- pois o pescoço e a cauda, bem como duas pequenas protuberâncias que representa- vam as pontas das asas. Há uma razão téc- nica que justifica a importância desta di- ferença: durante a cozedura o barro sofre História Natural do Galo de Barcelos O Jornal de Barcelos convidou-me para contribuir para este número especial com um texto sobre a história do Galo de Barcelos e vou tentar não desiludir os leitores. Um jornal é um meio de transmitir informação, conhecimento, opiniões e até dúvidas, e é naquele imenso e fascinante espaço aquém da certeza, onde paira o “talvez”, que vou começar este artigo propondo uma hipótese inovadora que será aqui publicada pela primeira vez. João Manuel Mimoso António Ferro e Leitão de Barros) decidi- ra ofertar figurado regional aos congres- sistas. Carta de Leitão de Barros a Artur Maciel: "Caro Maciel, convém modelos de maior tamanho (...). Dos maiores vi em tempos uns galos grandes (...)." Carta de Artur Maciel a Manoel Cou- to Viana, datada de 15 de Setembro de 1931: "O Leitão de Barros lembrou-se de distri- buir bonecos de louça aí do Norte - Fa- malicão, Barcelos? Trata-se daqueles bo- necos decorativos que só vendem nas fei- ras, bois, galos vermelhos e primitivos. Há uns grandes, muito curiosos, que o Leitão de Barros comprou uma vez no Senhor de Matosinhos...". Neste documento há duas coisas notá- veis: a menção a "galos (grandes) verme- lhos e primitivos" e a referência a "bone- cos decorativos". É que o figurado desta época é geralmente considerado como brinquedo - pequenas peças, em geral utilizáveis como apitos – como, aliás, bem indica o nome da pintura de Sónia De- launay. A existência de galos vermelhos que possam ser chamados “grandes e de- corativos” já em 1931 é, por isso, interes- sante para a definição tentativa da evolu- ção deste figurado com a nota, no entan- to, de que não tendo sido possível identi- ficar a peça em causa, não se sabe sequer se seria de Barcelos e muito menos se co- nhece a sua morfologia. E isto é relevan- te porque nem todos os galos se enqua- dram nos padrões evolutivos que origi- naram o galo de Barcelos. Considere-se o artigo sobre “os bonecos de Barcelos” (sic) publicado em 1935 n’O Notícias Ilus- trado, cujo texto os descreve dizendo: Os animais são o motivo preferido: bois, ga- los, galinhas, cabras, cavalos, pombos... É curiosíssimo o galo a cantar que reprodu- zimos. Estes bonecos toscos (...)modela- dos grosseiramente, sem a preocupação das linhas esguias e harmoniosas da es- tética, possuem aquela ingenuidade que nos leva a olhá-los como obras de arte. Este texto é ilustrado com imagens de se- te peças de figurado local, nenhuma se enquadrando na linha que procuramos. O tal “galo a cantar” (figura 8) que, signi- ficativamente, o autor do texto classifi- ca como “curiosíssimo” e que pode bem ser vermelho com decoração dourada no Olaria inclui provavelmente um lote de peças vidradas, a castanho escuro ou ver- de, com que se tentou, creio que impro- priamente, recuperar técnicas oitocen- tistas. Apesar da sua relativa moderni- dade nenhuma é classificável como um galo de Barcelos. Mas no Museu de Cerâ- mica das Caldas da Rainha existe um galo muito arcaico, tirado na roda, cujo barro branco de Alvarães identifica como sen- do de Barcelos. Tem cerca de 25cm de al- tura, uma cauda de bordo liso e a cris- ta recortada. O pedestal é discoidal com apito, e a decoração em relevo resume-se a algumas linhas simples. O vidrado cas- tanho escuro sugere que tenha sido pro- duzido nesta época. Mas não foi apenas para a Casa de Bar- celos que foi necessário preparar figura- do. A Exposição do Mundo Português in- cluía o chamado Pavilhão da Vida Popu- lar, uma área coberta de grandes dimen- sões que mais tarde se tornou o Museu de Arte Popular, recentemente reaberto. Todo esse espaço seria preenchido com peças de interesse etnográfico, além das decorações alusivas. O centro das salas ti- nha grandes mesas curvilíneas que de- veriam receber as peças de maior efei- to, e pedestais sobre os quais seriam co- locadas peças de exibição particularmen- te atraentes. Uma dessas mesas foi decorada com três galos de Barcelos de grande porte (cerca de 50cm de altura) dois dos quais coro- avam os pedestais. O galo maior, qual fi- gura de proa, era seguramente uma pe- ça especial, fabricada por encomenda. Ti- nha uma decoração particularmente cui- dada, com grandes flores em relevo, e no peito ostentava uma cartela com a ins- crição “FÁBRICA CER(AMICA) / EDUAR- DO FERN(ANDES SOUSA)"- figura 9. Edu- ardo F. Sousa (dito “Persina”), infelizmen- A abrir, chamo a vossa atenção para a fi- gura 1, imagem de um galo de apito pu- blicada em 1900 na revista Portugália por Rocha Peixoto, no seu estudo sobre as olarias do Prado, concelho a que, naquela época, pertenciam Galegos, Pousa e ou- tras aldeias e lugares hoje integrados no vasto distrito de Barcelos. A imagem diz- -nos, sem sombra de dúvida, que a for- ma geral normalmente associada ao mo- derno galo de Barcelos já existia no sécu- lo XIX e portanto não se trata de uma in- venção recente. Não é possível dizer se este galito era in- teiramente moldado à mão livre, tira- do na roda, ou se resultava da utilização de um molde. Mas o detalhe, que inclui asas independentes, é surpreendente e a estilização é completamente inespera- da numa peça de Arte Popular, em que se esperaria antes a versão de um galo tão realista quanto a habilidade do hu- milde artesão permitisse - algo como o modelo da Figura 2, que ainda hoje se faz como se fazia há séculos e talvez há milénios atrás. As proporções do apito da figura 1 não são as de um galo real, afastando-se em particular pela forma do pescoço, fi- no e erecto, e pela da cauda que se as- semelha à lâmina de uma pequena foi- ce e constitui o detalhe mais intrigante. Estes desvios não são os que se espera- ria da inabilidade, antes parecem consti- tuir prova da permanência de uma mor- fologia muito antiga, cujas raízes vamos investigar. No estudo clássico que incluía o galo da figura 1, Rocha Peixoto aborda os te- mas inspiradores do figurado local, afir- mando: “O gallo, porém, excede em número e em variedade todas as espécies de fauna. É a melhor tratada em nobresa de porte, em insistência de detalhes, em apuro final de modelado. Na impressão que as aves exer- cem destaca-se a que produz esta, visi- velmente pelos costumes dominadores e Porquê lá? Antes da generalização na Pe- nínsula de uma versão simplificada do la- tim, falava-se celta no Minho actual e a hipótese que proponho é que "Galegos" seria uma transcrição do celta "cailech" que quer dizer “galo”. A partir da pronún- cia de “galo” em irlandês moderno (coi- leach) que deriva directamente do celta antigo, não é difícil reconhecer que "cai- lech" seria muito semelhante a "galegos" com um som gutural final que é transcri- to por “ch” no alemão moderno e por “g” em flamengo mas não é representável pela ortografia portuguesa. A aceitar esta hipótese, o nome de "Ga- legos" implicaria possivelmente uma tra- dição céltica de cariz religioso associa- da ao galo, donde a predilecção local pe- las representações galiformes. Nalgumas tribos celtas o galo, que pelo seu cantar anunciava a alvorada, era considerado atributo do deus solar Belenos, a divinda- de suprema, e representado ao seu lado. A radicação numa devoção primeva ex- plicaria a quase inexistência de represen- tações cristãs no figurado antigo de Gale- gos – o galo constituiria a remanescência de um culto muito anterior, já esquecido, que a tradição cristã não teria consegui- do, nem substituir, nem obliterar como foi regra noutros locais. A lenda medieval do galo cujo canto anuncia um milagre de São Tiago pode, assim, ter constituí- do uma tentativa de incorporação de um ícone antigo na imaginária cristã. Quanto à curiosa estilização que se apon- tou no galo da figura 1, considere-se o vaso da Idade do Ferro, encontrado em Bussy-le-Chateau (França) que é encima- do por um galo em estilização céltica (fi- gura 3). Peço aos leitores que comparem as duas caudas... O galo não é o único figurado local de possível raiz céltica reproduzido no tra- balho de Rocha Peixoto, mas o nosso tex- to é sobre os galos e é deles que vamos agora tratar, começando por uma revi- são de fontes do século XX que nos elu- to e Sónia Delaunay “Jouets portugais” (Brinquedos portugueses- figura 5) con- servada nos museus franceses. Em ambos se reconhecem pequenos galos de api- to com uma altura que, comparada com outras figuras dos mesmos óleos, deveria rondar os 15cm. O galo do quadro de Eduardo Viana mos- tra claramente uma crista que se prolon- ga para trás de uma maneira muito pe- culiar. Esta morfologia constitui um arca- ísmo que também se reconhece no gali- to de 1900 da figura 1. O Museu de Olaria de Barcelos possui na sua riquíssima co- lecção um precioso galo de apito de ida- másculos. Altivo e magestoso, vigilante e cupid(íne)o, todo o povo o celebra, em con- tos, em superstições, em cantares. (...)” Apesar de notar esta predilecção, o autor não esclarece realmente sobre a razão... Porquê esta preferência pela represen- tação do galo em detrimento do boi, do porco e doutros animais domésticos de maior porte e eventual relevância? Vou responder formulando uma hipótese que se baseia em notar que o galo de Barce- los teve origem, não no burgo de Barce- los propriamente dito, mas nas povoa- ções vizinhas que constituem Galegos... 1. 2. 3. 4. 5. de indeterminada que tem exactamente a mesma crista (figura 6). A representação de Sónia Delaunay é mais impressionista, mas a cauda é sufi- cientemente detalhada para se confirmar que se trata de uma peça de Barcelos. No MuCEM (Museu das Civilizações da Euro- pa e do Mediterrâneo) de Marselha con- serva-se um pequeno galo de apito com 14,7cm de altura, cuja cauda tem uma de- coração idêntica e a crista a mesma ex- pressão reduzida (figura 7). A data des- 7. MuCEM inv.DMH 1937.61.7 © MuCEM – Pierre Catanes uma alteração volumétrica súbita a cer- ca de 570ºC quando se atinge o chamado “ponto de inversão do quartzo” que pro- voca a rotura de peças relativamente vo- lumosas que sejam maciças. Ao criar um galo na roda, o oleiro teve necessariamen- te que formar um corpo globular, aplican- do uma técnica que tornava possíveis pe- ças muito maiores e desenvolvendo uma parte essencial da morfologia distintiva do que um dia seria o galo de Barcelos. É, no entanto, necessário distinguir dois pas- sos diferentes: o primeiro foi o que trans- formou um apito maciço num galo oco de dimensões semelhantes, tirado ou não na roda; o segundo foi o desenvolvimento em tamanho e detalhe que iria originar a peça cerâmica que hoje conhecemos co- mo “galo de Barcelos” com as asas inde- pendentes e bem desenvolvidas e a proe- minente crista denteada que o caracteri- zam. O primeiro passo foi provavelmente dado há mais de 100 anos; o segundo terá ocorrido na década de 1930. Quanto a este aspecto, uma referência in- teressante data de 1931 e encontra-se numa troca de missivas enquadrada pe- la organização de um congresso interna- cional que decorreu no Estoril em finais de Setembro de 1931 e no qual a Comis- são Organizadora (de que faziam parte 8. da sem recortes, e corpo apoiado so- bre duas pernas a que acresce um supor- te posterior, dando a ideia de uma tercei- ra perna. Talvez fosse a um galo deste ti- po que a carta de 1931 se referia e apesar de terem constituído um tipo difundido na década de 1930, tendo um exemplar figurado na Exposição de Arte Popular Portuguesa realizada em Lisboa em 1936, não têm qualquer relação com o galo de Barcelos. Na colecção do Museu de Arte Popular em Lisboa, no entanto, conserva-se um galo vermelho com apito basal, morfo- logicamente semelhante ao da figura 7 mas muito maior (tem cerca de 27cm de altura) com a crista lisa mas já bem de- senvolvida, cuja morfologia e decoração denotam uma grande antiguidade e que pode corresponder aos galos que já exis- tiriam no início da década de 1930. O Designer Carlos Bártolo, colaborador do Museu de Arte Popular, comunicou- -me cópia de uma fotografia provenien- te de um espólio conservado na Torre do Tombo e referente à participação portu- guesa na Exposição Internacional de Paris de 1937. Essa imagem mostra claramen- te dois grandes galos de Barcelos, seme- lhantes ao que ilustrarei adiante na figu- ra 9. Deviam ter cerca de 45cm de altura e a decoração era muito simples, consti- tuída quase só por traços, pintas e áre- as coloridas sobre um fundo claro. Apa- rentemente ainda não tinham asas inde- pendentes – as asas eram definidas por um fio de barro que marcava o rebordo. Tinham uma característica única, que os distinguia imediatamente: o lóbulo auri- cular era circular. Esta característica per- mite identificar um galo existente no Mu- seu de Arte Popular como representativo desta época. Tem 37cm de altura, pé dis- coidal sem apito, contorno da cauda li- so e crista proeminente e com recortes triangulares. É pintado a azul baço, com a base do cabaço e o pedestal vermelhos. A decoração resume-se a alguns traços vermelhos no pescoço, e os contornos acentuados a tinta dourada. Referindo-se às preparações para a Expo- sição do Mundo Português de 1940, es- creveu João Macedo Correia no n.º 4 dos Cadernos de Etnografia: “A estatuária feita sem molde, como a des- creve Rocha Peixoto, estava reduzida em 1939 a pitos e gaitas, alguns galos peque- ninos... não sei se mais alguma coisa. Os músicos e os bois já eram em parte obtidos com o auxílio do molde. [...Para] represen- tarmos o artesanato de Barcelos (...) fez-se de tudo o que veio à ideia (...) Eram uns mi- lhares de peças que apresentámos na Ex- posição do Mundo Português, numa casa das Aldeias Portuguesas (a Casa de Barce- los), umas vidradas, outras pintadas. Levá- mos de tudo que havia na arte popular de Barcelos (...) mas no que respeita a cerâmi- ca, só as louças pintadas se vendiam bem. O figurado tinha muitos admiradores, mas não tinha compradores; vendiam-se algu- mas peças, especialmente galos, mas pou- ca coisa. (...) No nosso Museu Regional de Cerâmica estão algumas dessas peças fei- tas em 1939.” Esse figurado produzido em 1939/40 que o autor informa estar no actual Museu de bico, lóbulo auricular, asas e cauda, é se- melhante a vários outros “galos de três pernas” que o Museu de Olaria de Barce- los conserva na sua colecção, alguns dos quais com alturas da ordem dos 20cm. Têm a forma genérica de um galo com o pescoço direito ou curvado, crista e cau- cidem sobre as origens próximas do galo de Barcelos. Sónia e Robert Delaunay refugiaram- -se em Portugal durante a Grande Guer- ra tendo vivido em Vila do Conde entre 1915 e inícios de 1917. Durante esse pe- ríodo conviveram com Eduardo Viana e com Amadeo de Souza-Cardoso, ten- do pintado temas minhotos. Nesta épo- ca Eduardo Viana pintou “Bonecos de Bar- celos” (figura 4) que se conserva no Mu- seu Nacional de Soares dos Reis no Por- 9. 6.

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sa peça (indicada como “cerca de 1920”) é realmente desconhecida mas anterior a 1937, ano em que foi integrada no acervo. O Museu de Olaria de Barcelos também conserva no seu acervo alguns apitos des-te tipo, embora com cristas mais desen-volvidas que provavelmente são mais re-centes, datando das décadas de 1930 ou 1940.Existe uma diferença capital entre o ga-lito de 1900 e o da figura 7: é que o cor-po do primeiro era provavelmente maci-ço, enquanto que o do segundo é consti-tuído por uma cabaça oca tirada na roda de oleiro, cujo topo foi abatido como para formar um moringue, ligando-se-lhe de-pois o pescoço e a cauda, bem como duas pequenas protuberâncias que representa-vam as pontas das asas. Há uma razão téc-nica que justifica a importância desta di-ferença: durante a cozedura o barro sofre

História Natural do Galo de Barcelos

O Jornal de Barcelos convidou-me para contribuir para este número especial com um texto sobre a história do Galo de Barcelos e vou tentar não desiludir os leitores. Um jornal é um meio de transmitir informação, conhecimento, opiniões e até dúvidas, e é naquele imenso e fascinante espaço aquém da certeza, onde paira o “talvez”, que vou começar este artigo propondo uma hipótese inovadora que será aqui publicada pela primeira vez.

João Manuel Mimoso

António Ferro e Leitão de Barros) decidi-ra ofertar figurado regional aos congres-sistas. Carta de Leitão de Barros a Artur Maciel: "Caro Maciel, convém modelos de maior tamanho (...). Dos maiores vi em tempos uns galos grandes (...)." Carta de Artur Maciel a Manoel Cou-to Viana, datada de 15 de Setembro de 1931: "O Leitão de Barros lembrou-se de distri-buir bonecos de louça aí do Norte - Fa-malicão, Barcelos? Trata-se daqueles bo-necos decorativos que só vendem nas fei-ras, bois, galos vermelhos e primitivos. Há uns grandes, muito curiosos, que o Leitão de Barros comprou uma vez no Senhor de Matosinhos...".

Neste documento há duas coisas notá-veis: a menção a "galos (grandes) verme-lhos e primitivos" e a referência a "bone-cos decorativos". É que o figurado desta época é geralmente considerado como brinquedo - pequenas peças, em geral utilizáveis como apitos – como, aliás, bem indica o nome da pintura de Sónia De-launay. A existência de galos vermelhos que possam ser chamados “grandes e de-corativos” já em 1931 é, por isso, interes-sante para a definição tentativa da evolu-ção deste figurado com a nota, no entan-to, de que não tendo sido possível identi-ficar a peça em causa, não se sabe sequer se seria de Barcelos e muito menos se co-nhece a sua morfologia. E isto é relevan-te porque nem todos os galos se enqua-dram nos padrões evolutivos que origi-naram o galo de Barcelos. Considere-se o artigo sobre “os bonecos de Barcelos” (sic) publicado em 1935 n’O Notícias Ilus-trado, cujo texto os descreve dizendo: Os animais são o motivo preferido: bois, ga-los, galinhas, cabras, cavalos, pombos... É curiosíssimo o galo a cantar que reprodu-zimos. Estes bonecos toscos (...)modela-dos grosseiramente, sem a preocupação das linhas esguias e harmoniosas da es-tética, possuem aquela ingenuidade que nos leva a olhá-los como obras de arte. Este texto é ilustrado com imagens de se-te peças de figurado local, nenhuma se enquadrando na linha que procuramos. O tal “galo a cantar” (figura 8) que, signi-ficativamente, o autor do texto classifi-ca como “curiosíssimo” e que pode bem ser vermelho com decoração dourada no

Olaria inclui provavelmente um lote de peças vidradas, a castanho escuro ou ver-de, com que se tentou, creio que impro-priamente, recuperar técnicas oitocen-tistas. Apesar da sua relativa moderni-dade nenhuma é classificável como um galo de Barcelos. Mas no Museu de Cerâ-mica das Caldas da Rainha existe um galo muito arcaico, tirado na roda, cujo barro branco de Alvarães identifica como sen-do de Barcelos. Tem cerca de 25cm de al-tura, uma cauda de bordo liso e a cris-ta recortada. O pedestal é discoidal com apito, e a decoração em relevo resume-se a algumas linhas simples. O vidrado cas-tanho escuro sugere que tenha sido pro-duzido nesta época.

Mas não foi apenas para a Casa de Bar-celos que foi necessário preparar figura-do. A Exposição do Mundo Português in-cluía o chamado Pavilhão da Vida Popu-lar, uma área coberta de grandes dimen-sões que mais tarde se tornou o Museu de Arte Popular, recentemente reaberto. Todo esse espaço seria preenchido com peças de interesse etnográfico, além das decorações alusivas. O centro das salas ti-nha grandes mesas curvilíneas que de-veriam receber as peças de maior efei-to, e pedestais sobre os quais seriam co-locadas peças de exibição particularmen-te atraentes.

Uma dessas mesas foi decorada com três galos de Barcelos de grande porte (cerca de 50cm de altura) dois dos quais coro-avam os pedestais. O galo maior, qual fi-gura de proa, era seguramente uma pe-ça especial, fabricada por encomenda. Ti-nha uma decoração particularmente cui-dada, com grandes flores em relevo, e no peito ostentava uma cartela com a ins-crição “FÁBRICA CER(AMICA) / EDUAR-DO FERN(ANDES SOUSA)"- figura 9. Edu-ardo F. Sousa (dito “Persina”), infelizmen-

A abrir, chamo a vossa atenção para a fi-gura 1, imagem de um galo de apito pu-blicada em 1900 na revista Portugália por Rocha Peixoto, no seu estudo sobre as olarias do Prado, concelho a que, naquela época, pertenciam Galegos, Pousa e ou-tras aldeias e lugares hoje integrados no vasto distrito de Barcelos. A imagem diz--nos, sem sombra de dúvida, que a for-ma geral normalmente associada ao mo-derno galo de Barcelos já existia no sécu-lo XIX e portanto não se trata de uma in-venção recente.

Não é possível dizer se este galito era in-teiramente moldado à mão livre, tira-do na roda, ou se resultava da utilização de um molde. Mas o detalhe, que inclui asas independentes, é surpreendente e a estilização é completamente inespera-da numa peça de Arte Popular, em que se esperaria antes a versão de um galo tão realista quanto a habilidade do hu-milde artesão permitisse - algo como o modelo da Figura 2, que ainda hoje se faz como se fazia há séculos e talvez há milénios atrás.

As proporções do apito da figura 1 não são as de um galo real, afastando-se em particular pela forma do pescoço, fi-no e erecto, e pela da cauda que se as-semelha à lâmina de uma pequena foi-ce e constitui o detalhe mais intrigante. Estes desvios não são os que se espera-ria da inabilidade, antes parecem consti-tuir prova da permanência de uma mor-fologia muito antiga, cujas raízes vamos investigar.

No estudo clássico que incluía o galo da figura 1, Rocha Peixoto aborda os te-mas inspiradores do figurado local, afir-mando:

“O gallo, porém, excede em número e em variedade todas as espécies de fauna. É a melhor tratada em nobresa de porte, em insistência de detalhes, em apuro final de modelado. Na impressão que as aves exer-cem destaca-se a que produz esta, visi-velmente pelos costumes dominadores e

Porquê lá? Antes da generalização na Pe-nínsula de uma versão simplificada do la-tim, falava-se celta no Minho actual e a hipótese que proponho é que "Galegos" seria uma transcrição do celta "cailech" que quer dizer “galo”. A partir da pronún-cia de “galo” em irlandês moderno (coi-leach) que deriva directamente do celta antigo, não é difícil reconhecer que "cai-lech" seria muito semelhante a "galegos" com um som gutural final que é transcri-to por “ch” no alemão moderno e por “g” em flamengo mas não é representável pela ortografia portuguesa.

A aceitar esta hipótese, o nome de "Ga-legos" implicaria possivelmente uma tra-dição céltica de cariz religioso associa-da ao galo, donde a predilecção local pe-las representações galiformes. Nalgumas tribos celtas o galo, que pelo seu cantar anunciava a alvorada, era considerado atributo do deus solar Belenos, a divinda-de suprema, e representado ao seu lado. A radicação numa devoção primeva ex-plicaria a quase inexistência de represen-tações cristãs no figurado antigo de Gale-gos – o galo constituiria a remanescência de um culto muito anterior, já esquecido, que a tradição cristã não teria consegui-do, nem substituir, nem obliterar como foi regra noutros locais. A lenda medieval do galo cujo canto anuncia um milagre de São Tiago pode, assim, ter constituí-do uma tentativa de incorporação de um ícone antigo na imaginária cristã.

Quanto à curiosa estilização que se apon-tou no galo da figura 1, considere-se o vaso da Idade do Ferro, encontrado em Bussy-le-Chateau (França) que é encima-do por um galo em estilização céltica (fi-gura 3). Peço aos leitores que comparem as duas caudas...O galo não é o único figurado local de possível raiz céltica reproduzido no tra-balho de Rocha Peixoto, mas o nosso tex-to é sobre os galos e é deles que vamos agora tratar, começando por uma revi-são de fontes do século XX que nos elu-

to e Sónia Delaunay “Jouets portugais” (Brinquedos portugueses- figura 5) con-servada nos museus franceses. Em ambos se reconhecem pequenos galos de api-to com uma altura que, comparada com outras figuras dos mesmos óleos, deveria rondar os 15cm. O galo do quadro de Eduardo Viana mos-tra claramente uma crista que se prolon-ga para trás de uma maneira muito pe-culiar. Esta morfologia constitui um arca-ísmo que também se reconhece no gali-to de 1900 da figura 1. O Museu de Olaria de Barcelos possui na sua riquíssima co-lecção um precioso galo de apito de ida-

másculos. Altivo e magestoso, vigilante e cupid(íne)o, todo o povo o celebra, em con-tos, em superstições, em cantares. (...)”

Apesar de notar esta predilecção, o autor não esclarece realmente sobre a razão... Porquê esta preferência pela represen-tação do galo em detrimento do boi, do porco e doutros animais domésticos de maior porte e eventual relevância? Vou responder formulando uma hipótese que se baseia em notar que o galo de Barce-los teve origem, não no burgo de Barce-los propriamente dito, mas nas povoa-ções vizinhas que constituem Galegos...

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de indeterminada que tem exactamente a mesma crista (figura 6). A representação de Sónia Delaunay é mais impressionista, mas a cauda é sufi-cientemente detalhada para se confirmar que se trata de uma peça de Barcelos. No MuCEM (Museu das Civilizações da Euro-pa e do Mediterrâneo) de Marselha con-serva-se um pequeno galo de apito com 14,7cm de altura, cuja cauda tem uma de-coração idêntica e a crista a mesma ex-pressão reduzida (figura 7). A data des-

7. MuCEM inv.DMH 1937.61.7 © MuCEM – Pierre Catanes

uma alteração volumétrica súbita a cer-ca de 570ºC quando se atinge o chamado “ponto de inversão do quartzo” que pro-voca a rotura de peças relativamente vo-lumosas que sejam maciças. Ao criar um galo na roda, o oleiro teve necessariamen-te que formar um corpo globular, aplican-do uma técnica que tornava possíveis pe-ças muito maiores e desenvolvendo uma parte essencial da morfologia distintiva do que um dia seria o galo de Barcelos. É, no entanto, necessário distinguir dois pas-sos diferentes: o primeiro foi o que trans-formou um apito maciço num galo oco de dimensões semelhantes, tirado ou não na roda; o segundo foi o desenvolvimento em tamanho e detalhe que iria originar a peça cerâmica que hoje conhecemos co-mo “galo de Barcelos” com as asas inde-pendentes e bem desenvolvidas e a proe-minente crista denteada que o caracteri-zam. O primeiro passo foi provavelmente dado há mais de 100 anos; o segundo terá ocorrido na década de 1930. Quanto a este aspecto, uma referência in-teressante data de 1931 e encontra-se numa troca de missivas enquadrada pe-la organização de um congresso interna-cional que decorreu no Estoril em finais de Setembro de 1931 e no qual a Comis-são Organizadora (de que faziam parte

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da sem recortes, e corpo apoiado so-bre duas pernas a que acresce um supor-te posterior, dando a ideia de uma tercei-ra perna. Talvez fosse a um galo deste ti-po que a carta de 1931 se referia e apesar de terem constituído um tipo difundido na década de 1930, tendo um exemplar figurado na Exposição de Arte Popular Portuguesa realizada em Lisboa em 1936, não têm qualquer relação com o galo de Barcelos.

Na colecção do Museu de Arte Popular em Lisboa, no entanto, conserva-se um galo vermelho com apito basal, morfo-logicamente semelhante ao da figura 7 mas muito maior (tem cerca de 27cm de altura) com a crista lisa mas já bem de-senvolvida, cuja morfologia e decoração denotam uma grande antiguidade e que pode corresponder aos galos que já exis-tiriam no início da década de 1930.

O Designer Carlos Bártolo, colaborador do Museu de Arte Popular, comunicou--me cópia de uma fotografia provenien-te de um espólio conservado na Torre do Tombo e referente à participação portu-guesa na Exposição Internacional de Paris de 1937. Essa imagem mostra claramen-te dois grandes galos de Barcelos, seme-lhantes ao que ilustrarei adiante na figu-ra 9. Deviam ter cerca de 45cm de altura e a decoração era muito simples, consti-tuída quase só por traços, pintas e áre-as coloridas sobre um fundo claro. Apa-rentemente ainda não tinham asas inde-pendentes – as asas eram definidas por um fio de barro que marcava o rebordo. Tinham uma característica única, que os distinguia imediatamente: o lóbulo auri-cular era circular. Esta característica per-mite identificar um galo existente no Mu-seu de Arte Popular como representativo desta época. Tem 37cm de altura, pé dis-coidal sem apito, contorno da cauda li-so e crista proeminente e com recortes triangulares. É pintado a azul baço, com a base do cabaço e o pedestal vermelhos. A decoração resume-se a alguns traços vermelhos no pescoço, e os contornos acentuados a tinta dourada.

Referindo-se às preparações para a Expo-sição do Mundo Português de 1940, es-creveu João Macedo Correia no n.º 4 dos Cadernos de Etnografia:

“A estatuária feita sem molde, como a des-creve Rocha Peixoto, estava reduzida em 1939 a pitos e gaitas, alguns galos peque-ninos... não sei se mais alguma coisa. Os músicos e os bois já eram em parte obtidos com o auxílio do molde. [...Para] represen-tarmos o artesanato de Barcelos (...) fez-se de tudo o que veio à ideia (...) Eram uns mi-lhares de peças que apresentámos na Ex-posição do Mundo Português, numa casa das Aldeias Portuguesas (a Casa de Barce-los), umas vidradas, outras pintadas. Levá-mos de tudo que havia na arte popular de Barcelos (...) mas no que respeita a cerâmi-ca, só as louças pintadas se vendiam bem. O figurado tinha muitos admiradores, mas não tinha compradores; vendiam-se algu-mas peças, especialmente galos, mas pou-ca coisa. (...) No nosso Museu Regional de Cerâmica estão algumas dessas peças fei-tas em 1939.”

Esse figurado produzido em 1939/40 que o autor informa estar no actual Museu de

bico, lóbulo auricular, asas e cauda, é se-melhante a vários outros “galos de três pernas” que o Museu de Olaria de Barce-los conserva na sua colecção, alguns dos quais com alturas da ordem dos 20cm. Têm a forma genérica de um galo com o pescoço direito ou curvado, crista e cau-

cidem sobre as origens próximas do galo de Barcelos.

Sónia e Robert Delaunay refugiaram--se em Portugal durante a Grande Guer-ra tendo vivido em Vila do Conde entre 1915 e inícios de 1917. Durante esse pe-ríodo conviveram com Eduardo Viana e com Amadeo de Souza-Cardoso, ten-do pintado temas minhotos. Nesta épo-ca Eduardo Viana pintou “Bonecos de Bar-celos” (figura 4) que se conserva no Mu-seu Nacional de Soares dos Reis no Por-

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Page 2: História Natural do Galo de Barcelos -   · PDF filepo do primeiro era provavelmente maci- ... vaso da Idade do Ferro, encontrado em ... galo na roda, o oleiro teve necessariamen

Festa das Cruzes4 Jornal de Barcelos . Quarta-feira 16 de Fevereiro 2011 5Jornal de Barcelos . Quarta-feira 16 de Fevereiro 2011Festa das Cruzes

te já falecido, era casado com Rosa Côta e, portanto, genro de Domingos Côto a quem é atribuída a modelação de ga-los de dimensão apreciável já no início da década de 1930 e a quem me referi-rei mais adiante. Numa vitrina embuti-da na parede da mesma sala da Exposi-ção ainda se descortinam outros quatro galos semelhantes, embora de menor di-mensão.

Da apreciação da fotografia da Exposição do Mundo Português reproduzida na fi-gura 9 pode concluir-se que a par das ca-racterísticas morfológicas que identifi-cam um galo de Barcelos se notam, tam-bém, alguns arcaísmos incluindo a altu-ra excessiva do corpo moldado na roda, a cauda sem recortes e a ausência da re-presentação das patas.Com a Exposição do Mundo Português, da qual existe abundante documentação fotográfica testemunhando a presença de galos de grandes dimensões com a ti-pologia associada ao galo de Barcelos, in-cluindo as asas desenvolvidas, a proemi-nente crista recortada e as decorações de tipo floral, pintadas ou aplicadas em re-levo, encerra-se a época obscura durante a qual a informação de que actualmente se dispõe é insuficiente para estabelecer cronologias ou autorias.

Tenho lido textos que identificam “o pai do galo de Barcelos” atribuindo-o a es-te ou àquele barrista. Na minha opinião o galo de Barcelos é um produto da Ar-te Popular e como tal não tem pai indi-vidual mas apenas uma origem radicada numa colectividade. De qualquer manei-ra, para discutir esta questão seria neces-sário definir o que é um galo de Barcelos, detalhe que nunca vi tratado senão por mim próprio numa publicação recente. Consoante a definição, assim o Galo terá uma origem mais ou menos remota. Se a morfologia da figura 1 for aceitável como correspondendo a um galo de Barcelos, então a sua origem é anterior ao século XX; se se impuser que um galo de Barce-

los tenha o cabaço vazado, a origem é in-determinada mas seguramente anterior a 1915, como demonstram as pinturas des-sa época. Se se associar o Galo a uma ti-pologia mais refinada, então a origem depende dos critérios que se adoptem, mas pode ser tão tardia quanto os mea-dos da década de 1950, quando começa-ram a aparecer os galos com a típica de-coração de motivos minhotos, onde im-peram os corações vermelhos, sobre um fundo negro. Sem prejuízo do que ficou dito, pode-se discutir atribuições de certas peças, as-sinadas ou não, produzidas pelos gru-pos familiares de modestos barristas pa-ra venda em feiras ou para a satisfação

apostas no pedestal, marcados com um sinete “G.gos” (Galegos) “BARCELOS” mas muitos outros evidenciam, quer pe-la morfologia característica, quer tam-bém pela decoração terem a mesma pro-veniência. Todos comprovam uma pro-dução variada e evolutiva, com uma sur-preendente pureza estética, e isto numa época livre de influências eruditas. A de-signação “Fábrica (de) Cerâmica” inscrita no Galo de 1940, seguramente cópia ce-ga de uma qualquer inscrição constante de uma peça fabril, não se poderia aplicar com propriedade à pequena produção familiar do agregado de Eduardo F. Sou-sa. No entanto essa produção tinha, pelo menos no que respeita aos galos de Bar-celos, uma qualidade artística, quer mor-fológica, quer decorativa, que recomenda um estudo mais aprofundado, sobretu-do tendo em atenção o contexto essen-cialmente anónimo e rural em que se de-senvolvia.

Encerrada a Exposição do Mundo Portu-guês, os galos de Barcelos poderiam ter regressado ao anonimato em que se ti-nham originado, mas não foi assim... As fotografias da época mostram galos de Barcelos presentes nas exposições de ar-te popular realizadas nos anos seguintes, tal como mostram peças mais pequenas expostas nas delegações de propaganda turística, onde eram vendidas como ar-tesanato regional e puderam, assim, ser submetidos ao julgamento do merca-do. As vendas devem ter sido animado-ras, o que encorajou outros barristas da região a fabricar versões próprias do Ga-lo que colocavam nas feiras, e assim se foi afirmando o novo figurado à custa da ex-tinção progressiva dos tipos arcaicos, e se foi afinando um padrão morfológico e variantes decorativas em função das pre-ferências dos compradores. Mas este pro-

cesso não foi instantâneo e a iconografia existente aliada à raridade de exempla-res realmente arcaicos parecem demons-trar que o Galo só se começou a divulgar durante a segunda metade da década de 1940. A mesma iconografia comprova a importância que deve ter tido o Secreta-riado de Propaganda Nacional (SPN, de-pois SNI) de António Ferro, tanto na di-vulgação da figura do Galo, como na pa-dronização do modelo que originalmente difundiu através de encomendas repeti-das a um mesmo barrista.

Em finais dessa década já estava estabe-lecida a morfologia clássica do galo de Barcelos e os respectivos esquemas de acabamento que viriam a ser dominantes durante cerca de dez anos. Uma referên-cia segura é constituída por um conjun-to de três galos de tamanhos diversos, to-dos com pintura de base negra, dos quais o de tamanho intermédio está marcado "Feira de Sacavém, 18-V-1951". Deste con-junto ilustra-se em silhueta as admiráveis proporções do de tamanho intermédio (figura 12) e em fotografia o galo maior (figura 13) que tem a particularidade ra-ra de ser um mealheiro que tinha que ser quebrado para recuperar as moedas. To-dos são atribuíveis à produção familiar de Eduardo F. Sousa.A figura 14 ilustra um tipo alternativo da mesma época, mais entroncado e robus-to e com um acabamento menos vistoso. Os galos das figuras 12 a 14 exemplificam

furações sob o bico e sob as asas para re-duzir o risco de quebra durante a coze-dura;

cor de fundo - em geral vermelha ou cre-me, mais tarde negra, por vezes laranja, cinza, ou azul;

decoração - floral, em relevo nos tama-nhos maiores, ou plumiforme, ou ainda geométrica e construída a partir de pon-tos brancos ou coloridos (ausência de motivos em forma de coração).

Nesta época, e dando continuidade a uma tradição muito anterior à Exposi-ção do Mundo Português, eram fabrica-dos, não só galos de várias tipologias, mas também galinhas com aspecto afim (a crista era baixa nas galinhas e a cauda tinha, nestas, um desenvolvimento hori-zontal em leque). Esta tradição teve se-quência nos galos de Barcelos e a figu-ra 15 ilustra uma galinha datável a finais da década de 1940. A cor e a decoração eram inicialmente idênticas às dos galos, mas posteriormente passaram a utilizar--se nas galinhas cores mais claras e, rara-mente, o negro. A produção de galinhas foi decaindo até praticamente desapare-cer na década de 1950.

O Galo moderno começou a evoluir a partir de 1950, com o aparecimento da cor-base negra que permite obter um efeito de grande impacto dramático. Apesar do negro ser utilizado no traçado e pintura de detalhes, não parece ter sido anteriormente usado como cor de fun-do na pintura do figurado de Barcelos e é provável que só tenha sido introduzido dada a facilidade em se produzir a quan-tidade considerável de tinta necessária ao acabamento de grandes áreas, recor-

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de encomendas cuja finalidade última lhes era desconhecida. Em 1958, Domin-gos Côto afirmou a um jornalista do Diá-rio de Lisboa a paternidade de uma mor-fologia inovadora que dataria do início da década de 1930 e que ele considerava como antecessora dos galos de Barcelos de então. Tenho-me perguntado muitas vezes: “como seriam os galos de Domin-gos Coto”? Na colecção do Museu de Ola-ria de Barcelos existe um galo de gran-des dimensões que é peculiar pela mor-fologia, pela decoração e pelas cores uti-lizadas (figura 10). Esta peça parece datar da década de 1940, mas poderia ser ante-rior. Infelizmente não está assinada, mas no mesmo Museu existe um outro galo, muito mais recente mas que parece ser da mesma mão, marcado “D C”. O galo da figura 10 é o mais provável candidato de que tenho conhecimento a ser da mão de Domingos Côto o que, a confirmar-se, seguramente lhe conferirá um interesse muito especial.

Uma autoria bem estabelecida é a do grupo familiar de Eduardo F. Sousa e Ro-sa Côta. No acervo do Museu de Olaria de Barcelos conserva-se um galo vermelho marcado “EFS”, com características idênti-cas às dos galos da Exposição do Mundo Português e datável, portanto, ao início da década de 1940 (figura 11) enquan-to que na colecção do Museu de Arte Po-pular, em Lisboa, subsiste um importante conjunto de galos claramente posterio-res, marcados “E F S / BARCELOS”, que de-vem ter sido fabricados por encomenda para o acervo original do Museu de Arte Popular inaugurado em 1948. Alguns galos datáveis à década de 1940 estão também, além das iniciais “EFS”

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as características clássicas, que são:cauda - bem desenvolvida, com dentea-do triangular isósceles (tal como a crista) e recorte inferior tipicamente semi-circu-lar ou elíptico;

pedestal - campaniforme, em geral pinta-do de laranja ou de verde escuro;

patas - quase sempre representadas. Ves-tigiais nos galos pequenos, bem desen-volvidas nos maiores, modeladas separa-damente e sobrepostas ao pedestal, tipi-camente pintadas a dourado ou a ama-relo;

bico - mediano, forte, rectilíneo e arre-dondado, por vezes adunco, pintado de dourado, amarelo ou laranja, tal como os olhos e os lóbulos auriculares;

perfurações - utilização frequente de "bu-racos para palitos" de diâmetro conside-rável ao longo da base das asas a que, em tamanhos maiores, podiam acrescer per-

15. rendo a matérias-primas de fácil procura (cola de peixe e fuligem das chaminés).Alguns anos mais tarde deu-se uma alte-ração crucial da decoração, com a intro-dução de motivos minhotos, tendo como foco central um ou vários corações ver-melhos que formavam conjunto com a crista e, sobre o fundo negro, ofereciam directamente um grande efeito estético a que os observadores não ficavam alheios. Ao mesmo tempo as áreas decorativas (a crista, a cauda e a superfície das asas) foram sendo aumentadas para oferecer uma tela tão vasta quanto possível à cria-tividade dos pintores. Os recortes da cris-ta e da cauda reduziram-se, para não in-terferirem com a continuidade das gra-ciosas curvas que as definiam. O galo da figura 16 ilustra um dos primeiros exem-plos destes “galos modernos”, quando apenas os recortes da crista junto ao bi-co eram abatidos em dente de serra, per-manecendo a restante margem dentea-da em triângulos isósceles. Este exemplar, também atribuível à produção familiar de Eduardo F. Sousa e Rosa Côta, é extraor-dinário por diversas razões: além da crista de tipo intermédio, a decoração das asas é floral “à antiga” no peito e na asa direita e com corações “à moderna” na cauda e na asa esquerda. O galo tem um grão no bico e demonstra a aparente facilidade com que estes barristas modelavam uma peça complexa com um admirável senti-do das proporções.

A mais antiga referência que li a este novo estilo data de Novembro de 1957 e consta de um artigo no Jornal de Barcelos:

“Há tempos o Gonçalves Torres meteu-se a aperaltar este nosso galo e saiu-lhe então das mãos o "moderno galo de Barcelos". [...] Deixou de ser o ingénuo para ser o donairo-so mas continua a ser caracteristicamente regional. Nenhum dos tipos anteriores per-deu venda, pois todos continuam a fabri-car-se e a vender-se. [...] É certo que são os modernos que mais se vendem. [...] Honra e glória ao Gonçalves Torres, já que dinhei-ro não ganhou. Bem sabemos que isto es-candaliza a maior parte dos admiradores das nossas loiças [...] E onde está o mal das alterações se todos continuam a encontrar no mercado galos de todas as épocas? Ten-dem a desaparecer os primitivos? É só pre-venirem-se com umas boas colecções! “Não se sabe exactamente em que con-sistiu este “redesenho” mas o termo “do-nairoso” costuma referir-se à elegância e portanto sugere que não se tratou ape-nas da introdução dos motivos minhotos

na decoração mas também de uma alte-ração da forma. O pintor de Barcelos Ma-nuel Gonçalves Torres deve ter reconhe-cido que as duas superfícies mais impor-tantes no impacto decorativo do galo de Barcelos eram a crista e a cauda e que estas deviam ser estendidas para apro-veitamento como suportes de decora-ção. O seu redesenho do Galo (provavel-mente nada mais do que um exercício de

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que não esperaria grandes consequên-cias) deve datar de cerca de 1955 porque num cartaz da sua autoria para a Festa das Cruzes que se realizou em Maio des-se ano aparece um galo estilizado já com o pescoço alongado e recortes da crista e da cauda que anunciam o Galo moder-no. Do texto anterior ficamos a saber que houve uma reacção contra a moderniza-ção do estilo mas, como é o mercado que rege os fabricantes e não o tradicionalis-mo, o novo modelo acabou por triunfar. Talvez o galo da figura 16 tenha sido pin-tado para satisfazer simultaneamente os apreciadores da decoração antiga e os da moderna, ou como resposta espirituosa à polémica...

Com a adopção do novo estilo entrou-se num período de experimentação em que ocorreram cristas excessivas, variantes dos recortes e simplificação do pedestal. No início da década de 1960 o estilo mo-derno do galo de Barcelos estava estabili-zado numa morfologia duradoura ilustra-da pelo exemplar da figura 17, comprado em Barcelos cerca de 1966 e cuja esbel-tez parece indiciar influências estrangei-ras talvez porque, por esta época, o Galo era já apreciado pelos decoradores dou-tros países cujo gosto havia que satisfa-zer. Comparando-o com os das figuras 12 a 14 notam-se as principais característi-cas distintivas:forma mais esbelta, com o pescoço mais fino e alto em relação ao corpo; crista maior, inclinada para a frente e pro-longada para baixo na parte posterior, re-cortada em dente de serra através de in-cisões, por contrapartida com a antiga que era recortada em triângulos isósceles e exigia uma modelação mais demorada;cauda maior, prolongada para baixo, re-cortada como a crista;bico mais fino e comprido, aguçado e adunco, ao contrário do anterior que era linear ou muito ligeiramente adunco, es-pesso e arredondado.Foi com esta forma e a decoração ten-do como motivo central corações verme-

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AgradecimentosDra. Cláudia Milhazes (Museu de Olaria de Barcelos) Dra. Carina Reina (Museu de Olaria de Barcelos)Dra. Patrícia Moscoso (Museu de Olaria de Barcelos)Dr. Víctor Pinho (Biblioteca Municipal de Barcelos) Designer Carlos Bártolo (Lisboa)Dra. Marie-Barbara Le Gonidec (MuCEM- Marselha)Dr. Pierre Catanès (Paris)

Fontes

1. A. Rocha Peixoto, As olarias de Prado, in Portugália, Tomo I, Fasc 2, Porto 1900 (reimpresso nos Cadernos de Etnografia do Museu de Olaria, Barcelos 1966, e acessível online na biblioteca digital nacional);

2. J. Macedo Correia, As louças de Barcelos; Cadernos de Etnografia 4; Museu de Olaria; Barcelos 1965;

3. A. Viana, Gente e cousas d’antre Minho e Lima (cita-do por Conceição Rios em Figurado de Barcelos - de-senhos de barro, Museu de Olaria, 2006);

4. T. Felgueiras, Os bonecos de Barcelos in O Notícias Ilustrado Nº 353 (17-03-1935) pg.8, Lisboa, 1935;

5. S/A, Mundo Português- Secção da Vida Popular (fo-lheto), 1940;

6. M. As louças de Barcelos - O Galo de Barcelos in Jor-nal de Barcelos de 21 de Novembro de 1957;

7. T.A, A delegação do SNI no Porto in Panorama vol.4, nº 24, pp23-24, SNI, Lisboa, 1945.

8. João Manuel Mimoso- Origem e evolução do ga-lo de Barcelos in Olarias 04, Câmara Municipal de Bar-celos, 2011.

Créditos fotográficosPedro Cunha: Figuras 6, 11 (Colecção Museu de Olaria)

Figuras 13, 14, 15, 17, 18 (Colecção particular)

Patrícia Moscoso: Figuras 10, 16 (Colecção Museu de Olaria)

Museu Nacional de Soares dos Reis (figura 4)

© MuCEM – Pierre Catanès (figura 7)

João Manuel Mimoso – Figura 12

lhos, que o galo de Barcelos foi imagem turística de Portugal e se divulgou atra-vés de cartazes, revistas e capas de dis-cos. Foi, até, símbolo da Selecção Nacio-nal que disputou o Mundial de 1966 em Inglaterra (figura 18). Estas promoções tornaram-no um logotipo reconhecido internacionalmente mas, note-se, a figura do Galo só foi utilizada porque os respon-sáveis pelo marketing turístico, os publi-citários, e os artistas gráficos lhe reconhe-ceram à partida qualidades estéticas ím-pares para o fim em vista.

Por causa da sua esbeltez os Galos des-ta época eram necessariamente frágeis e evoluíram posteriormente num sentido inverso (o pescoço tornou-se mais curto, a crista menor e os recortes cada vez me-nos numerosos e mais pequenos). Menos airoso mas mais robusto, é este o patri-mónio cultural que levou o nome de Bar-celos a todo o mundo e continua a ale-grar semanalmente a sua secular Feira.

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