HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

20
HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO DE CINEMA NO MARANHÃO NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO FÍLMICO COMO LUGAR DE RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NAS DÉCADAS DE 1970/80 Leide Ana Oliveira Caldas IFMA-Campus Coelho Neto [email protected] Resumo O presente trabalho está inserido no campo da história precisamente, na interface desta com outras linguagens quanto à forma de olhar, tratar e falar acerca da vida cotidiana, que podemos definir como um campo específico denominado História e Cinema. O tema proposto relaciona-se com a problematização de documentos definidos pela linguagem do Cinema que nos possibilitará desse modo, examinarmos o discurso produzido pelo cinema no Brasil, mas especificamente em São Luís capital maranhense no período compreendido entre as décadas de 1970 e 1980. O tema-problema da pesquisa são os discursos produzidos acerca da dinâmica sócio-histórica da cidade através das maneiras de fazer e dizer desses realizadores e realizadoras. No Maranhão nesse recorte temporal, foram realizados em torno de 100 a 140 filmes dentre os gêneros documentários e ficção de curta-metragem e sua maioria expressos em bitola Super 8mm. Esses registros construíram espaços de micro liberdades, portanto micro resistências construídas na materialidade do espaço fílmico condicionado predominantemente pela câmera amadora de Super 8 mm os dando pistas de fragmentos materializados de memória tanto na forma subterrânea cotidiana quanto na forma emergente nos Festivais fabricados como espaços de exibição fora do contexto das práticas do circuito comercial do “cinemão” na ação de um cinema guerrilha. Palavras-chave: História e Cinema; Maranhão. Superoitismo Maranhense. Introdução A partir do evento da greve pela meia passagem dos estudantes secundaristas 1 e universitários de São Luís do Maranhão em 1979 várias temporalidades podem ser evidenciadas como a própria disputa nos espaços da cidade em forma de reivindicação pelo direito à meia passagem através da tensão entre a polícia militar e estudantes 2 , assim 1 Nomenclatura usada na época para denominar o que seria na norma atual o Ensino Médio. Na época a etapa do Ensino Básico dividia-se em Ensino Primário e Secundário. Na atualidade, divide-se em: Fundamental Menor, Fundamental Maior e Ensino Médio. 2 Ver Monografias: CALDAS, Leide Ana Oliveira. “GREVE PELA MEIA- PASSAGEM: Subversão ao Estado X Legitimação do Direito”. (Monografia Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de História, São Luís, 2004 e GOMES, Antonio Carlos Lima. A greve da meia-passagem de 1979: de políticos a politólogos, todos falaram, até o Balão. (Monografia Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de História, São Luís, 2008.

Transcript of HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Page 1: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO DE

CINEMA NO MARANHÃO NA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO FÍLMICO

COMO LUGAR DE RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NAS DÉCADAS DE 1970/80

Leide Ana Oliveira Caldas

IFMA-Campus Coelho Neto

[email protected]

Resumo

O presente trabalho está inserido no campo da história precisamente, na interface desta

com outras linguagens quanto à forma de olhar, tratar e falar acerca da vida cotidiana, que

podemos definir como um campo específico denominado História e Cinema. O tema

proposto relaciona-se com a problematização de documentos definidos pela linguagem

do Cinema que nos possibilitará desse modo, examinarmos o discurso produzido pelo

cinema no Brasil, mas especificamente em São Luís capital maranhense no período

compreendido entre as décadas de 1970 e 1980. O tema-problema da pesquisa são os

discursos produzidos acerca da dinâmica sócio-histórica da cidade através das maneiras

de fazer e dizer desses realizadores e realizadoras. No Maranhão nesse recorte temporal,

foram realizados em torno de 100 a 140 filmes dentre os gêneros documentários e ficção

de curta-metragem e sua maioria expressos em bitola Super 8mm. Esses registros

construíram espaços de micro liberdades, portanto micro resistências construídas na

materialidade do espaço fílmico condicionado predominantemente pela câmera amadora

de Super 8 mm os dando pistas de fragmentos materializados de memória tanto na forma

subterrânea cotidiana quanto na forma emergente nos Festivais fabricados como espaços

de exibição fora do contexto das práticas do circuito comercial do “cinemão” na ação de

um cinema guerrilha.

Palavras-chave: História e Cinema; Maranhão. Superoitismo Maranhense.

Introdução

A partir do evento da greve pela meia passagem dos estudantes secundaristas1 e

universitários de São Luís do Maranhão em 1979 várias temporalidades podem ser

evidenciadas como a própria disputa nos espaços da cidade em forma de reivindicação

pelo direito à meia passagem através da tensão entre a polícia militar e estudantes2, assim

1 Nomenclatura usada na época para denominar o que seria na norma atual o Ensino Médio. Na época a etapa do Ensino Básico dividia-se em Ensino Primário e Secundário. Na atualidade, divide-se em: Fundamental Menor, Fundamental Maior e Ensino Médio. 2 Ver Monografias: CALDAS, Leide Ana Oliveira. “GREVE PELA MEIA- PASSAGEM: Subversão ao Estado X Legitimação do Direito”. (Monografia Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de História, São Luís, 2004 e GOMES, Antonio Carlos Lima. A greve da meia-passagem de 1979: de políticos a politólogos, todos falaram, até o Balão. (Monografia Graduação) – Universidade Federal do Maranhão, Curso de História, São Luís, 2008.

Page 2: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

como a realização do filme maranhense A ILHA REBELDE OU A LUTA PELA

MEIA PASSAGEM (1980) do coletivo “Virilha Filmes”3. A existência do filme passou

a ser um apêndice episódico na memória a respeito da greve na posteridade.

Diante do fenômeno das tecnologias digitais e popularização de plataformas como

o YouTube o filme emerge no ano de 2010 e finalmente o filme realizado com a câmera

filmadora amadora de bitola Super 8mm do cineclube da Universidade Federal do

Maranhão (Uirá) pôde ser visto (ou revisto) e ganhou materialidade diante dos olhos ao

passo que a digitalização dá aura ao “original” (HUYSSEN, 2000)4. Podemos dizer que

o citado filme constrói um ponto de partida sobre a problematização das práticas de

realização de cinema no Maranhão, escolhido aqui por esta narrativa. Contudo é

necessário afirmar que a realização superoitista Maré Memória de 1974 do

LABORARTE5 pode ser considerado um marco e o auge de experiências com várias

linguagens dentro de um espetáculo teatral exercido pelo grupo no Maranhão. Ele é um

objeto para se desvendar outras falas, filmes e outros produtores constituintes da dinâmica

do jogo de tensões, de silenciamento, esquecimento e memória das práticas culturais

relativas ao cinema como fala política de seus protagonistas acerca de diversos temas que

lhes chamaram atenção.

No ano de 1975, como consequência dessa virada cultural, o filme Os Pregoeiros

de São Luís, de Murilo Santos, ganhou o primeiro lugar no III FENACA (Festival

Nacional de Cinema de Aracaju). Foi um filme realizado como resultado da parceria entre

o Cineclube universitário Uirá e o LABORARTE. A partir de então, emergiu um

3 A ILHA REBELDE OU A LUTA PELA MEIA PASSAGEM. Direção/Produção: Raimundo Medeiros/Euclides

Moreira Neto/Carlos Cintra. São Luís- MA: Virilha Filmes, 1980. Super 8mm digitalizado no YouTube (30 min.). Coletivo: Fotografia de Luís Carlos Cintra, Raimundo Nonato Medeiros, Euclides Moreira Neto e Maria Joseh Lopes Leite (Mazeh). Trilha sonora de Joaquim Henrique Martins. Atores Raimundo Nonato Medeiros, Murilo Santos e Garcês. 4 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumento, mídia. 1. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora. 2000. 5 No dia 11 de outubro de 1972 foi fundado o Laboratório de Expressões Artísticas – o LABORARTE. Este foi um aglutinador de expressões artísticas no Maranhão se configurando como um movimento de vanguarda no contexto da repressão social e política e do conservadorismo artístico. A fundação foi fruto da ação de Tácito Borralho, Regina Telles, Murilo Santos, Sérgio Habibe, Wilson Martins, militantes políticos e pessoas ligadas à comunicação.

Laboratório de bricolagens artísticas experimentais.

Page 3: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

movimento de produção local de filmes articulado por uma geração de cineastas

amadores. Não é demais salientar que a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), por

meio do cineclube Uirá, foi o espaço incentivador dessa produção culminando, assim, na

I Jornada Maranhense de Super 8. A partir de 1977 pôde-se afirmar que uma cultura de

produção fílmica local passou a ter visibilidade.

A partir dessas evidências de experiências fílmicas CALDAS (2012)6 compreende

que a década de 1970 foi o espaço temporal no qual se verificam as iniciativas para a

produção de cinema no Maranhão, antes dessa geração não temos pistas de realização de

filmes com câmeras domésticas com intencionalidades de narrativas cinematográficas7

tampouco em 35mm. Importante ressaltar aqui a afirmação de UBALDO (2016): “...havia

muita câmera 8mm contrabandeada aqui. Muitas vezes as pessoas tinham em casa uma

câmera doméstica 8mm, mas nem usavam, ficavam guardadas”8, apesar da

caracterização de um artefato doméstico esses utensílios exigiam habilidades técnicas e

eram utilizadas por classes médias e altas, como será também a Super 8mm.

Desse modo, o filme sobre a greve de estudantes em São Luís- MA é utilizado

como ponto de partida para o percurso de investigação e problematização do fazer fílmico

local nessa narrativa, confirmando a especificidade das práticas de realização de cinema

no Maranhão sob a perspectiva da historiografia. Trata-se de um período pontual (1970 à

primeira metade dos anos 1980) onde os usos de uma câmera denominada Super 8 nos

leva a chegar a uma ideia de construção de espaços de fala ou ao que podemos chamar de

cinema superoitista ou cinema amador possibilitado por essa bitola, esse dispositivo

tecnológico/cultural que dialeticamente construiu uma prática também estética, cultural e

política.

A cinemática, ou seja, a imagem em movimento passou a exercer uma relação

democratizante através da produção dos usos de imagens no cotidiano doméstico, é um

desdobramento do consumo principalmente de câmeras Super 8, que se estabeleceu na

6 CALDAS, Leide Ana Oliveira. Maranhão 70: construção da produção cinematográfica de realizadores superoitistas no Maranhão na década de 1970. Monografia. Especialização em História do Maranhão. Universidade Estadual do Maranhão, São Luís: 2012. 7 As câmeras de filmes domésticos antes da Super 8mm eram bitola de 8mm. 8 João Ubaldo. Jornalista, documentarista e superoitista. Entrevista concedida (APUD) CALDAS, Leide Ana

Oliveira. SUPEROITISMO NO MARANHÃO: os modos de fazer, temas e formas de falar e a invenção do

Page 4: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

década de 1970 como uma ferramenta na confecção de filmes caseiros possibilitando o

exercício da linguagem fílmica por meio do uso da câmera Super 8 - uma prática

altamente tecnológica recente na época.

Posteriormente, essa prática foi apropriada por indivíduos e grupos com o

propósito de registrar imagens em movimento, invertendo a ideia inicial para qual o

produto foi criado, para uso doméstico, pois inicialmente o consumo das câmeras Super

8mm foram idealizadas para atender ao mercado consumidor doméstico, o qual, segundo

Roger Odin, se tratava de um modo privado de produção de memória, porque o público

do filme familiar é um público privado pois, como sublinhou:

As imagens do filme de família funcionam não

com representações, porém como índices,

permitindo que cada membro da família volte à

sua própria vivência e à de sua família. Isso

explica por que um filme familiar é muito

entediante para aqueles que não são membros da

família: eles não têm o contexto e não entendem

nada da sequência lógica de imagens às quais

estão assistindo (ODIN, 2005, p.41)9.

Portanto, os usos da Super 8 foram ressignificados, saltando (literalmente) do seu

uso inicial direcionado, ou seja, o uso privado “narcisístico” da classe média ganhou um

caráter de “câmera andante” coletivo com intencionalidades sociais, políticas e artísticas

mundo a fora.

O historiador Marc Ferro que inaugurou o campo Cinema e História como

perspectivas de novas abordagens na historiografia no início da década de 1970,

analisando filmes soviéticos e nazistas produzidos em sociedades aparelhadas

ideologicamente sob vigilância repressiva do estado, referiu-se ao uso anônimo da câmera

amadora 8 mm e 16 mm, nesse contexto, nos seguintes termos “... o filme se liberta mais

e mais da instituição que o governa: hoje, quando a câmera Super 8 e 16mm estão nas

mãos de qualquer pessoa, não há mais censura possível, a menos que se proíba a venda

de câmeras” (FERRO, 2010, p.116). Assim, a imagem em movimento saltou da moldura

das telas de salas de cinema e de TV’s dissolvendo as fronteiras entre os espectadores e

os produtores de cinema de forma anônima e resistente à ordem vigente.

9 ODIN, Roger. A questão do público: uma abordagem semiopragamática. IN: RAMOS, Fernão Pessoa

(Org). Teoria Contemporânea do cinema, volume II. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005. P.41.

Page 5: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Do ponto de vista de Pola Ribeiro, havia uma hierarquia no cinema brasileiro ao

considerar a tecnologia utilizada (bitola) e a lógica dos discursos de seus idealizadores,

pois para ele “os filmes em 35 mm dedicam-se a construir monumentos; os 16mm

propõem-se lhes colocar questionamentos; e os Super-8 vêm para jogar merda nos

monumentos"10. Não é demais lembrar que nas produções da indústria do cinema usavam

a câmera com rolos de películas de 35mm (padrão desde filme temporão) de largura. Na

televisão, em sua prática de gravação e de transmissão (antes do vídeo tape) usavam

filmes de 16mm (câmera utilizada pelos antropólogos desde a década de 1920), assim

como, nas práticas de gêneros documentais (profissionais). A partir dessa interpretação

de Pola Ribeiro sobre o superoitismo e seu caráter subversivo e desmonumentalizante das

imagens, podemos dialogar com a ideia do artista e poeta piauiense Torquato Neto quando

percebe o poder democrático da câmera super 8 (em dizer/registrar) sobre as localidades

de cada um quando convoca as pessoas a pegarem uma super 8 e sair por aí filmando o

que se achava importante: “uma câmera na mão e o Brasil no Olho11”, ideia que

transcendia sua “opinião de que a realidade seria mais educativa do que qualquer

história”12.

Diante da constatação que o superoitismo caracterizou as práticas de realização de

cinema no Maranhão na década de 1970/1980, CALDAS (2016)13 problematizou a

experiência de realização de cinema amadora local ao se apropriar do conceito de

‘bricolagem” de Michel de Certeau14 para pensar essa práxis de ocupação do não-lugar

de cineastas e construção de espaços fílmicos a partir de filmes localizados que até então

ainda não haviam sido analisados e problematizados a partir de sua materialidade

10 RIBEIRO, Pola Apud. MACHADO, Rubens Jr. O Pátio e o cinema experimental no Brasil:

apontamentos para uma história das vanguardas cinematográficas. História, cinema e outras histórias

juvenis/ organizador, Edward de Alencar Castelo Branco. Teresina: EDUFPI, 2009, p-23. 11 NETO, Torquato. Vamos transar a imagem. A Hora Fa-tal. Nº. 1. Teresina: mimeografado, junho de

1972. APUD MONTEIRO. Jaislan, Honório Em torno da geleia geral: intertextualidade e produção de

sentidos em manifestações artísticas brasileiras. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) –

Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2015. P. 105. 12 CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da

Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005. p. 198. 13 CALDAS, Leide Ana Oliveira. SUPEROITISMO NO MARANHÃO: os modos de fazer, temas e

formas de falar e a invenção do cinema local como prática de micro resistências 1970/80 (Dissertação de

Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Maranhão -UFMA). 226 f. 14 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Vol. 1 Petrópolis, RJ: Vozes, 2007

Page 6: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

(recuperados e digitalizados). Consequentemente analisou a emergência subterrânea das

realizações superoitistas às telas de cinema com seus “modos de fazer” e “de falar” do

superoitismo no (do) Maranhão através da fabricação do espaço para o público dessas

realizações, ao ser criado o festival de cinema I Jornada Maranhense de Superoito em

1977 que diante de seus desdobramentos se configura hoje no Festival Guarnicê de

Cinema (por conta da pandemia do COVID 19 até o momento, a sua 43ª edição em 2020

foi realizada de forma remota, ou seja, digital- on line) um dos mais antigos festivais do

país.

O Festival na sua inauguração sofreu censura prévia, e entre os filmes que tiveram

intervenção, foi o filme ZBM S/A de José da Conceição Martins (consta em jornais da

época).

A autora também compreende que o superoitismo caracteriza a construção de

sentido de invenção do cinema como prática de realização na história local através de

ações subterrâneas iniciadas pelo LABORARTE com o filme Maré Memória (1974)

passando pelo exercício do cineclube universitário Uirá da UFMA (participando e

ganhando prêmios em festivais) até emergir à condição de apropriação de espaço a partir

da I Jornada Maranhense de Super 8 em 1977 (monumento da geração 70), construindo

também um outro sentido, o de invenção de tradições recentes de cinema local. Foram já

localizados através de sua pesquisa15 os filmes: ZBM S/A (1977) de José da Conceição,

Idade da Razão (1981) de Welington Reis e Ivanildo Ewerton, Periquito Sujo (1979)

realizado por Luís Carlos Cintra e Euclides Moreira Neto, Côco Amargo (1980) de João

Mendes, Pesadelo (1981) do Coletivo Virilha Filmes e E lá se vem o trem (1983) de

Nerine Lobão (destaque para direção e argumento da única mulher nessa condição até

então). Filmes que discutem respectivamente a zona do baixo meretrício de São Luís; a

“loucura confinada do hospício e a loucura frenética da cidade”; o exílio e a trajetória do

15 Por conta de ações de restauração e digitalização de instituições como a Universidade federal do

Maranhão - UFMA (Projeto Memória Guarnicê) e a Fundação de Amparo à Pesquisa Estadual do

Maranhão-FAPEMA; e com consultoria do professor Murilo Santos (um dos principais realizadores de

cinema e hoje professor do Departamento de Arte da UFMA, conseguimos localizar vários filmes. É

importante lembrar também o acesso que tivemos ao material do Museu da Memória Áudio Visual do

Maranhão (MAVAM) com a localização de um número significativo de produções cedidas pelos

superoitistas João Ubaldo, Murilo Santos e Euclides Moreira Neto, podendo assim proporcionar uma visão

mais ampla das práticas superoitistas no Maranhão.

Page 7: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

poeta maranhense Ferreira Gullar através do seu “Poema sujo16” pra falar da cidade de

São Luís; Sobre a invisibilidade social das Quebradeiras de Coco na mídia oficial e

enfretamento delas com latifundiários; Filme a pedido do movimento civil em Defesa da

Ilha de São Luís conta a instalação do Consórcio Alumínio do Maranhão -ALUMAR

discutindo a invasão do alumínio ( poluição) e desapropriação de habitantes na cidade.

Além de tantos outros filmes (documentos) que podemos problematizar.

Destacamos também os trabalhos de pesquisa de COSTA (2015)17 que analisa

jornadas do festival maranhense e MORAES (2017)18 que analisa filmes pedagógicos

voltados para a educação popular na perspectiva de “cinema engajado” também no recorte

temporal de 1970/80.

Portanto é importante pensar essas práticas de realização de cinema no Maranhão

através da noção de temporalidades que constroem no cotidiano ações subterrâneas de

ocupação de lugar (espaço fílmico superoitistas) e fabricação de lugar de um púbico para

consumo desses filmes através da experiência de festivais.

Superoitismo e espaço fílmico de resistência no Maranhão

Através da perspectiva de categorias como resistência e espaço de memória (tão

caras na atualidade, pois “toda história é contemporânea”) e do campo de observação da

História e Cinema surgem interrogações sob a experiência de pesquisa no que diz respeito

às práticas de realização de cinema no Maranhão nas décadas de 1970 e 1980 e relações

entre construções de documentos, temporalidades e o ofício dos historiadores e

historiadoras na escrita da história.

O superoitismo inventa o cinema como prática de produção de discursos no

Maranhão, uma outra vaga como espaço para se falar e fazer sobre. Suas práticas eram

16 GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. In: GULLAR, Ferreira. Toda Poesia (1950-1987). Prefácio de Franklin

de Oliveira. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. 17 COSTA, Alexandre Bruno Gouveia. Cinema e filosofia: Um estudo da narrativa cinematográfica

maranhense das Jornadas por meio da tríplice mímesis. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e

Sociedade) – Universidade Federal do Maranhão-UFMA, São Luís.

MORAES, José Murilo dos Santos. CNEMA ENGAJADO NO MARANHÃO: Interfaces com a

educação popular (Dissertação de Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação/ CCSO,

Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017. 109.f

Page 8: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

subterrâneas, iniciando-se como práticas experimentais artísticas cotidianas, passando

pelos cineclubistas universitários até emergirem com a instauração do festival de cinema

local, que inclusive carrega a força do seu significado naquele momento: resultado de

práticas fílmicas de uma geração de superoitistas. Cria-se uma tradição recente de práticas

de cinema a partir da emergência dessas produções através do festival superoitista. O

festival fomenta a produção local de cinema que surge dessa prática local. Através das

maneiras de fazer seus filmes (bricolagens) e de suas falas, o superoitismo pode inverter

a perspectiva imposta. A linguagem cinematográfica é um espaço que abriga várias

outras, o uso da imagem é sua característica de identificação.

As maneiras de fazer e dizer superoitistas contextualizaram novas formas de olhar

sobre determinados elementos, em determinadas situações, de formas diferentes e sobre

diversos sujeitos. O superoitismo foi seguramente ferramenta na tática de construção de

espaço e de fala de resistência sobre questões marginais e subterrâneas, assim como sua

própria condição de bricolagem cinematográfica na “escrita da história”, pois o cinema

também é lugar de memória.

O superoitismo exerceu múltiplos olhares cinematográficos no país construindo

narrativas a partir de si através de um cinema alternativo e literalmente experimental. Na

década de 1940, surge a bitola de 8mm com qualidade inferior às duas anteriores e destina

a concretizar registros caseiros. Em 1965 a KODAK coloca no mercado uma versão de

mais qualidade na imagem e facilidade de manuseio, a Super 8mm, que tinha como

principal vantagem a introdução de cartuchos de filmes na câmera. Era um objeto de

consumo doméstico da classe média que serviu para muitos aficionados pelo cinema

como uma forma de iniciar as suas atividades no mundo da cinematografia. Muitos

diretores renomados do cinema mundial começaram com uma câmera Super 8mm, e ao

subverterem a ordem estabelecida dando um novo uso a essa ferramenta. Nesse sentido,

Michel de Certeau contrapõe argumentos em relação à idealização de usuários, “dos quais

se esconde, sob o pudico nome de consumidores, o estatuto de dominados (o que não quer

dizer passivos ou dóceis)”19. Entretanto, invertendo o sentido inicial imposto pela

indústria de consumo doméstico, a câmera de bitola Super 8mm passou a ser usada, a

19 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Vol. 1 Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

P.39

Page 9: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

partir da década de 1970, como ferramenta fundamental para registros relacionados a

indivíduos ou grupos com objetivos de aglutinação de linguagens artísticas, para realizar

produções fílmicas com intenções de registrar sua cidade ou para produzir trabalhos com

atribuição fílmica ficcional.

O uso da câmera Super-8 se expressa como prática artística de uma geração de

jovens de classe média influenciados pela estética da fome (cinema novo), marginal, por

experimentalismos estéticos, estética erótica e ou documentários de cunho social. Em

vista disso, a sua expressiva produção deve ser, também, problematizada e pesquisada

porque é uma variável característica do fazer cinematográfico brasileiro.

O movimento de realizadores de cinema em Super-8 também é um tema

redescoberto, pois o levantamento catalográfico de Rubens Machado Jr sobre Super 8mm

no país traz-nos a noção da intensidade das maneiras de fazer das táticas superoitistas ao

traçar um panorama deste movimento no Brasil, pontuando o seu momento inaugural para

dar visibilidade nacional ao tema. Trata-se da mostra “Marginália 70: o

experimentalismo do Super 8 brasileiros”20, o resultado da investigação histórica sobre

as obras mais radicais de superoitistas experimentalistas, os anarquistas cinematográficos

– um total de 681 filmes em todo o país, com a remasterizarão de 180 deles. Dadas às

condições de produção dos filmes superoitistas, bem como precariedade técnica e

ausência no circuito comercial dessa prática, há certa aura de ineditismo dos filmes:

Motivo que impossibilita a discussão do

quadro experimental no país é a sua grande

produção em bitolas menores (também o 8 mm

regular, bem como os primeiros formatos do

vídeo), cuja "irreprodutividade técnica" tronou a

memória de suas poucas, fugidias e auráticas

primeiras sessões constituídas não raras o único

acesso às obras. Isto equivale dizer que tais obras

não têm sido mais vistas ou revistas por qualquer

público, e nem mesmo por pesquisadores, desde

os anos 70, época de sua maior produção (MACHADO JR, 2009, p.18)21.

20 Exposição do levantamento das produções superoitistas e lançamento do catálogo no Espaço Itaú em São

Paulo. 21 MACHADO JR, Rubens. O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma

história das vanguardas cinematográficas. In: BRANCO, Edwar (org.). História, cinema e outras

histórias juvenis/ Teresina: EDUFPI, 2009. P. 18.

Page 10: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Segundo Rubens Machado Jr, perante a descoberta recente de uma ampla

produção quase clandestina de Super 8 na década de 1970, predominantemente

experimental, mas também com outras intencionalidades como o gênero documental, por

exemplo, "obriga-nos a reconsiderar completamente este lugar-comum"22 de que houve

no Brasil uma prática ínfima dessa estética, salvo Bressane ou Arthur Omar personagens

que surgiram no cenário ainda na década de 1960:

Há uma história a ser escrita. Sua

concentração na década de 70 e início dos 80

coincide com os estertores do regime militar [...]

tanto a tensão da pesquisa estética feita em

espaços forçosamente reclusos quanto um corpo a

corpo irônico com o espaço público juntaram

poetas, artistas plásticos e uma nova geração de

cineastas radicais. 23

Os Festivais eram a forma de fabricação de espaço naquele contexto em

contraponto à ditadura de um padrão de produção dominante. O primeiro festival de

cinema alternativo no país foi o GRIFE (Grupo de Realizadores Independentes de Filmes

Experimentais) em São Paulo no ano de 1973. Além do GRIFE, vale destacar a Jornada

de Curta Metragem de Salvador (surge em 1972), que em 1973, na sua segunda edição,

passou a incluir na sua programação a competição de filmes Super-8. O evento estimulou,

em vários lugares do país, a iniciativa de jovens para a produção de filmes, construindo,

assim, a figura do realizador de cinema de superoito de festivais. Tudo isso influenciou a

criação de vários outros festivais no Norte e Nordeste a exemplo da I Jornada Maranhense

de Superoito em 1977 na capital maranhense. Acrescentando a essa lista de festivais o

FENACA (Festival Nacional de Cinema de Aracaju) e o Festival de Curitiba. Contudo,

as relações entre os participantes nas configurações de festivais como espaço para os

vários formatos e bitolas, evidenciavam as tensões na disputa por atribuições e ocupação

de espaços.

22 Idem. P.17. 23 MACHADO JR, Rubens. O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma

história das vanguardas cinematográficas. In: BRANCO, Edwar (org.). História, cinema e outras

histórias juvenis/ Teresina: EDUFPI, 2009. P. 17.

Page 11: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Imagem 1: Cartaz da I Jornada Maranhense de Super 8

Portanto os realizadores de filmes que fizeram uso da câmera Super 8 são

identificados aqui como geração superoitista, isso foi feito para pontuar as suas diferenças

em relação aos produtores de televisão e do cinema já consolidados no circuito nacional.

Nesse sentido, não é demais esclarecer que, nos anos de 1970, a TV já era o espaço

de domínio de divulgação do discurso modernizante conservador da ditadura civil-militar

e de visibilidade de assuntos ligados ao mercado de consumo. Os profissionais deste

segmento e os do cinema, incluído no mercado de lazer, ou até mesmo quando tratava de

críticas à “ordem vigente” usavam, em geral, a bitola 16mm.

A escolha destes filmes superoitistas para análise segue o critério do ineditismo

de um “filme temporão”24 (característica comum entre filmes superoitistas restaurados

recentemente no Maranhão)25 Levando em consideração o conceito de bricolagem, ou

seja, os usos táticos das maneiras de fazer com diante das possibilidades e circunstâncias

(segundo Certeau), que neste caso específico, tomamos de empréstimo o sentido para as

maneiras de fazer cinematográfica dos realizadores com a câmera de bitola Super 8mm

ou superoitistas, ou seja, começaram a exercer o lugar de realizadores no não-lugar de

cineastas.

24 MOLINARI JR, Clóvis. Super 8-tamanho Também é Documento. Canal Brasil. Série de 13 episódios

dirigida e apresentada pelo superoitista Clóvis Molinari Jr que estreou no dia 04 de Jan. 2010. O episódio

01 que fala especificamente do superoitismo foi retirado das mídias sociais 25 Com exceção do filme A Ilha Rebelde ou A Luta pela Meia Passagem que já ocupa há um tempo espaço

na mídia digital no site da Cinemateca Brasileira.

Page 12: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Imagem 2: superoitismo e inversão/apropriação

Dessa forma, a apropriação dos usos da câmera Super 8mm como uma ferramenta

cinematográfica que desenvolve novas maneiras de fazer, possibilitou, para além do uso

doméstico, a realização de filmes amadores em contraponto ao padrão industrial-

profissional de fazer cinema; daí a formulação de seu uso semântico, o superoitismo. A

utilização da câmera Super 8mm para compor uma linguagem fílmica fora do contexto

profissional do cinema em 35mm configurou-se como uma prática de bricolagem com a

distinção de atribuição de lugar. Nesse sentido, as ações superoitistas, configuraram-se

como táticas desviacionistas, porque não obedeciam às leis do lugar autorizado devido às

circunstâncias impostas pela formalidade industrial.

Observando as produções superoitistas, podemos dizer que em uma enorme escala

eram realmente "anarcoproduções", pois carregavam em si a subversão das relações de

produções mercadológicas. Se analisarmos a relação produção superoitista/público,

vamos perceber que o destino de suas exibições era precisamente ligado a festivais,

congressos, cineclubes, ou seja, para um público definido, fora do circuito comercial.

Consequentemente acabavam subvertendo ou desconstruindo a imagem por exemplo que

foi construída do Nordeste em produções autorizadas pela produção nacional no eixo sul

e sudeste. Segundo Karla Holanda26:

No final dos anos de 1960 até o início dos

anos de 1980, foi marcante a produção

superoitista em quase todos os estados

26 HOLANDA, Karla. Documentário nordestino: mapeamento, história e análise. São Paulo:

Annablume; Fapesp, 2008.p. 95.

Page 13: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

nordestinos. O contexto político do país nesse

período, caracterizado pelo cerceamento da

liberdade de expressão, certamente foi um

elemento motivador desse boom na produção, que

escoava através de festivais e, com menos

vigilância ainda, através dos cineclubes

(HOLANDA, 2008, p.95).

O uso da câmera doméstica gerou, no mundo ocidental, uma espécie de cinema

subterrâneo. No Brasil, esta prática desenvolveu-se em vários estados do país, a exemplo

da Paraíba, Pernambuco, Piauí e Maranhão. Essa nova expressão, embora estivesse à

margem do circuito de produção e exibição de cinema comercial no eixo Sul e Sudeste,

conseguiu formar um público cativo.

Não é demais sublinhar que as narrativas destes filmes são permeadas por um

filtro ideológico. Os filmes constroem uma narrativa filtrada pela visão de mundo de seus

realizadores naquele contexto social, político e econômico de final dos anos de 1970.

Segundo Boris Kassoy, imagens são imaginadas e materializadas segundo o filtro

cultural e conforme determinada visão de mundo e das intenções de seu autor27. No

sentido especificamente ideológico podemos citar Edgar-Hunt:

Ao contrário da vida real, o filme

geralmente apresenta um ponto de vista claro, que

oferece uma resolução ideológica, se não uma

resolução narrativa. Assim, o realismo

inevitavelmente apresenta uma unidade

ideológica e uma visão de mundo ideológica318

(EDGAR-HUNT, 2013, p.102)28.

27 KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 28 EDGAR-HUNT, Robert; MARLAND, John; RAWLE, Steven. A linguagem do cinema. Porto Alegre:

Bookman, 2013. P.102.

Page 14: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Nessa perspectiva, Bill Nichols argumenta que “todo filme é um documentário.

Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a

aparência das pessoas que fazem parte dela”29. Percebem-se essas particularidades no

filme Pesadelo, embora o seu autor se utilize de artifícios ficcionais e efeitos especiais na

narrativa, discute-se sobre aspectos críticos de sua realidade socioeconômica e impactos

ambientais na cidade. O filme Pesadelo (1981) é permeado pela satisfação de desejos dos

seus realizadores. Isto pode ser notado pela utilização efeitos especiais, dando um caráter

de aspecto fantástico ao materializar supostas imagens de um sonho do personagem

anônimo e ao transformar um manequim de loja em uma mulher de alumínio. Ao mesmo

tempo, o dito filme discute de maneira crítica questões tão caras à realidade ligada à

questão urbana de São Luís do Maranhão.

Durante a pesquisa, inicialmente, os filmes foram mapeados e os identificados

com a categoria resistência passaram pelo processo de decupagem, uma espécie de

“decomposição”, ou observação densa sobre a montagem do discurso do filme: Imagem,

som, quadro por quadro até chegarmos na ideia da composição do filme.

Consequentemente construiremos a leitura histórica do documento fílmico, paralelo à

Análise do discurso dos entrevistados e filmes- História oral temática

29 NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário; tradução Mônica Saddy Martins. Campinas, SP: Papirus,

2005.p. 26.

Imagem 3: sequência de fotogramas/frames do filme Pesadelo de 1981

Page 15: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

No percurso metodológico para a análise do uso da câmera super 8 e da produção

fílmica subsequente, toma-se como ponto de partida alguns conceitos formulados por

Certeau no que se refere às práticas de construção do “cotidiano”. Dentre eles, o conceito

de inversão:

“Como se criar”, “criar o quê e como?” Nesta

pergunta eu reconheço a primeira forma de

inversão de perspectiva que fundamenta A

invenção do cotidiano, deslocando a atenção do

consumo supostamente passivo dos produtos

recebidos para a criação anônima, nascida da

prática do desvio no uso desses produtos (GIARD,

1998, p.13).30

Para Certeau, isso ocorre quando, em determinados contextos sociais, os produtos

impostos para consumo passivo têm seu sentido invertido em consumo ativo quando

apropriado por seu consumidor que o ressignifica. Ainda deste autor, nos apropriamos

dos conceitos maneiras de fazer (os usos, a arte de fazer nas práticas cotidianas) e

bricolagem (práticas de exercer funções cotidianas sem a formação especializada

profissional) para analisarmos as práticas e os arranjos de produtores superoitistas em

relação aos cineastas que usavam a bitola de 35mm e a de 16mm. Para a tessitura do tema-

problema proposto informo que o método de trabalho é a análise do discurso e história

oral, e os conceitos fundamentais são: práticas culturais, identidade, circuito

comunicacional, gênero fílmico, ideologia e memória. A memória é um conceito, uma

categoria para a história e opera a lembrança e o esquecimento, logo faz a mediação entre

presente e passado.

A escolha destes filmes superoitistas para análise segue o critério do ineditismo

de um filme temporão (característica comum entre filmes superoitistas restaurados

recentemente). Levando em consideração o conceito de bricolagem, ou seja, os usos

táticos das maneiras de fazer com diante das possibilidades e circunstâncias (segundo

Certeau), que neste caso específico, tomamos de empréstimo o sentido para as maneiras

de fazer cinematográfica dos realizadores com a câmera de bitola Super 8mm ou

superoitistas. Nos chama a atenção com relação aos realizadores dos filmes Coco

30 GIARD, Luce. Apresentação. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de

fazer. Vol , 3ª edição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 1998. P.13.

Page 16: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

Amargo, ZBM S/A e Pesadelo, o fato de construírem um lugar para discussões sobre as

quebradeiras de coco no Estado, a zona do baixo meretrício e críticas sobre a instalação

da indústria do alumínio na cidade de forma peculiar e que altera a lógica dominante do

lugar profissional cinematográfico estabelecido.

Partindo da perspectiva de bricolagem na feitura dos três filmes, destacamos

respectivamente três características: a fala marginal sob uma narrativa intensamente

fragmentada, dando ideia de temporalidades simultâneas no espaço da ZBM (Zona de

Baixo Meretrício) do filme superoitista; a narrativa linear e cíclica do cotidiano das

quebradeiras de coco e a bricolagem de efeitos especiais na narrativa de Pesadelo

dialogando com citações de outros filmes e com a cultura pop (linguagem dos quadrinhos,

música de discotecas).

Para tratarmos da bricolagem marginal tomamos como referência o filme ZBM S/A.

Este foi de simultaneidade de ações representadas nos planos de cortes bruscos para uma

narrativa fílmica sobre a zona do Baixo Meretrício.

Em relação à bricolagem narrativa tomamos como referência o filme Coco

Amargo, o qual trata a respeito do cotidiano de trabalho e da resistência de quebradeiras

de coco e, por extensão, da questão agrária e das condições de vida dos trabalhadores

rurais no Maranhão à época.

Para a análise da bricolagem fílmica escolheu-se o filme Pesadelo por conta de

seus arranjos de efeitos especiais e do uso da cultura pop para discutir a invasão do

Alumínio e dos problemas ambientais que provocariam na ilha por conta da instalação da

ALCOA31 na ilha de São Luís- MA.

Reafirmamos, então, a importância dos usos do superoitismo enquanto prática

cultural, social e como ferramenta cinematográfica na apropriação de falas políticas.

Certamente não podemos esquecer que o fazer cinematográfico não segue uma linha fixa

de oposição entre o discurso da ordem dominante e exercício de práticas subversivas em

relação a esse discurso. O cinema feito em 35 mm, 16mm ou Super 8mm constrói espaços

que dependem do que e para quem se fala. Em se tratando de discurso, cinema não tem

31 instalação das multinacionais que foram implantadas para compor um complexo industrial exportador de

alumínio como a ALCOA/ALUMAR (Aluminum Company of America/Alumínio do Maranhão), para

transformar o Estado em um pretencioso polo industrial e consequentemente provocou a mudança no

cotidiano da comunidade devido a expulsão de moradores dessas áreas de instalação, assim como e o

desmatamento causado por essas ações.

Page 17: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

bitola segundo Glauber Rocha e constrói a máxima secreta dessa linguagem, cinema de

verdade é aquele que pode ser feito, proposição do cinema moderno vivenciada pelo

cineasta brasileiro.

Referências Bibliográficas

CALDAS, Leide Ana Oliveira. “GREVE PELA MEIA- PASSAGEM: Subversão ao Estado

X Legitimação do Direito”. (Monografia Graduação) – Universidade Federal do Maranhão,

Curso de História, São Luís, 2004.

________, Leide Ana Oliveira. Maranhão 70: construção da produção cinematográfica de

realizadores superoitistas no maranhão na década de 1970. Monografia. Especialização em

História do Maranhão. Universidade Estadual do Maranhão, São Luís: 2012.

________, Leide Ana Oliveira. SUPEROITISMO NO MARANHÃO: os modos de fazer,

temas e formas de falar e a invenção do cinema local como prática de micro resistências 1970/80

(Dissertação de Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Maranhão -UFMA).

2016-226 f.

CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a

invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.

COSTA, Alexandre Bruno Gouveia. Cinema e filosofia: Um estudo da narrativa cinematográfica

maranhense das Jornadas por meio da tríplice mímesis. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura

e Sociedade) – Universidade Federal do Maranhão-UFMA, São Luís.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Vol. 1 Petrópolis, RJ: Vozes,

2007.

EDGAR-HUNT, Robert; MARLAND, John; RAWLE, Steven. A linguagem do cinema. Porto

Alegre: Bookman, 2013.

Page 18: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual

Paulista: Editora Boitempo, 1997.

FERRO, Marc. Cinema e História; tradução Flávia Nascimento-São Paulo: Paz e Terra, 2010.

GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. In: GULLAR, Ferreira. Toda Poesia (1950-1987). Prefácio de

Franklin de Oliveira. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

HOLANDA, Karla. Documentário nordestino: mapeamento, história e análise. São Paulo:

Annablume; Fapesp, 2008.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumento, mídia. 1. ed. Rio

de Janeiro: Aeroplano Editora. 2000.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

LAGNY Michele. O cinema como fonte de história. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni

Biscouto; FEIGELSON, Kristian (orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador:

EDUFBA; São Paulo: Editora UNESP, 2009.

MACHADO JR, Rubens. O Pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para

uma história das vanguardas cinematográficas. In: BRANCO, Edwar (org.). História, cinema

e outras histórias juvenis/ Teresina: EDUFPI, 2009

MOLINARI JR, Clóvis. Super 8-tamanho Também é Documento. Canal Brasil. Série de 13

episódios dirigida e apresentada pelo superoitista Clóvis Molinari Jr que estreou no dia 04 de Jan.

2010. O episódio 01 que fala especificamente do superoitismo foi retirado das mídias sociais

MONTEIRO. Jaislan, Honório. Em Torno da Geleia Geral: intertextualidade e produção de

sentidos em manifestações artísticas brasileiras. 2015. Dissertação (Mestrado em História do

Brasil) – UFPI, Universidade Federal do Piauí, Teresina.

MORAES, José Murilo dos Santos. CNEMA ENGAJADO NO MARANHÃO: Interfaces com

a educação popular (Dissertação de Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação/

Page 19: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

CCSO, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017. 109.f

MOREIRA Neto, Euclides. O Cinema dos anos 70 no Maranhão. São Luís. EDUFMA, 1990.

NETO, Torquato. Vamos transar a imagem. A Hora Fa-tal. Nº. 1. Teresina: mimeografado,

junho de 1972. APUD MONTEIRO. Jaislan, Honório Em torno da geleia geral: intertextualidade

e produção de sentidos em manifestações artísticas brasileiras. Dissertação (Mestrado em História

do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2015.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário; tradução Mônica Saddy Martins. Campinas, SP:

Papirus, 2005.

ODIN, Roger. A questão do público: uma abordagem semiopragamática. IN: RAMOS,

Fernão Pessoa (Org). Teoria Contemporânea do cinema, volume II. São Paulo: Editora SENAC

São Paulo, 2005.

RIBEIRO, Pola Apud. MACHADO, Rubens Jr. O Pátio e o cinema experimental no Brasil:

apontamentos para uma história das vanguardas cinematográficas. História, cinema e outras

histórias juvenis/ organizador, Edward de Alencar Castelo Branco. Teresina: EDUFPI, 2009.

FILMOGRAFIA

A ILHA REBELDE OU A LUTA PELA MEIA PASSAGEM. Direção/Produção: Raimundo

Medeiros/Euclides Moreira Neto/Carlos Cintra. São Luís- MA: Virilha Filmes, 1980. Super 8mm

digitalizado no YouTube (30 min.).

COCO AMARGO (1980) de João mendes e Pesadelo (1981) do Coletivo Virilha Filmes: São

Luís. Curta Metragem. Ficção. 9’ .

E LÁ SE VEM O TREM. Direção, Roteiro e Argumento: Nerine Lobão. Montagem: João

Ubaldo. Sonorização: Wellington Reis. Narração: Murilo Santos. São Luís: MA, 1983, Super

8mm.

IDADE DA RAZÃO (1980) de Ivanildo Ewerton e Welington Reis. Documentário. Curta

Metragem. 6:10’.

MARÉ MEMÓRIA (1974). Super 8mm. MURILO SANTOS. Documentário. São Luís-MA.

Page 20: HISTÓRIA E CINEMA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE REALIZAÇÃO …

PERIQUITO SUJO (1979) de Carlos Cintra e Euclides Moreira Neto. Experimental. Média

Metragem, 27:07’. Super 8mm. PESADELO (1981) do Coletivo Virilha Filmes. Ficção.

Experimental. Curta Metragem. Super 8mm.

ZBM S/A (1977) de José da Conceição Martins. Documentário. Curta Metragem.6:05’. Super

8mm.