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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga Niterói 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO

HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga

Niterói 2007

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ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO

HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense visando à obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social.

Orientador: Profº Drº CIRO FLAMARION SANTANA CARDOSO

Niterói 2007

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Carvalho, Alexandre Galvão Historiografia e paradigmas: A tradição primitivista-

substantivista e a Grécia Antiga – Alexandre Galvão Carvalho – Niterói: 2007.

261p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal

Fluminense, 2007. Bibliografia: f.256-261. 1. Historiografia – História antiga - Grécia. I. Título.

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ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO

HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense visando à obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social.

Aprovada em agosto de 2007

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________ Profº Drº Ciro Flamarion S. Cardoso – Orientador

Universidade Federal Fluminense

____________________________________________________________ Profª Drª Sônia Rebel de Araújo

Universidade Federal Fluminense

____________________________________________________________ Profº Drº Marcelo Aparecido Rede Universidade Federal Fluminense

____________________________________________________________

Profª Drª Cláudia Beltrão da Rosa Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

____________________________________________________________

Profº Drº Fábio Duarte Joly Universidade Federal do Recôncavo Baiano

Niterói 2007

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Dedico este trabalho à minha esposa Cláudia, que ajudou a transformar este sonho em

realidade. Seu incansável auxílio para o sucesso deste trabalho reforçou minha confiança na

consecução de um projeto de vida construído a dois. A você, meu amor, minha eterna e

calorosa gratidão.

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AGRADECIMENTOS

À UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), universidade na qual sou

professor do Departamento de História, que propiciou-me a tranqüilidade necessária para

desenvolver a pesquisa, liberando-me das atividades de regência e dando o suporte necessário

de infra-estrutura.

À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia), que por meio da

concessão de bolsa de doutorado e do auxílio-tese viabilizou as condições materiais para o

desenvolvimento do trabalho.

Junto a estas instituições, algumas pessoas foram fundamentais no desenvolvimento

de minha pesquisa.

Ao meu orientador, Ciro, minha maior referência intelectual desde que comecei a

trilhar pelos caminhos da História. É um privilégio continuar trabalhando com um

profissional tão cioso de suas responsabilidades, que transmite a segurança necessária para o

desenvolvimento de um trabalho satisfatório.

Ao amigo Miguel Palmeira, que nestes anos desenvolveu uma pesquisa muito próxima

da minha, e acompanhou este trabalho desde sua gestação. Municiou-me com um farto e

imprescindível material de pesquisa e, generosamente, leu e discutiu alguns dos principais

capítulos da tese.

A Fábio Joly, novo companheiro nas terras baianas, que também foi imprescindível na

sugestão e cessão de material de pesquisa.

Aos amigos Leonardo Maia, Klinton Senra, Daniel, Marcelo, Clínio e Stela, meus

esteios no Rio, Iguaba e em Niterói.

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Aos companheiros de Departamento: Luiz Otávio, Márcia Lemos, Roberto Oliveira e

a todos os amigos do “Clube do Carteado”.

À Zélia Chequer, pelo seu brilhante trabalho na correção ortográfica.

Ao meu pai, Nestor, Ivanise, meus irmãos Stefano, Cláudio e Nathália, que sempre me

receberam com enorme carinho, e não pouparam esforços para ajudar-me em todas as etapas

do trabalho.

Aos meus filhos, Alexandre e Carina, que desde pequenos aprenderam a conviver e

respeitar um pai que os divide com este trabalho solitário e ardoroso, mas que são o motivo

maior de tudo que faço em minha vida.

Finalmente, à minha mãe, Karina, que com seu amor infinito tem me mostrado que as

dificuldades foram feitas para serem vencidas.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é investigar a sociedade grega antiga por meio dos trabalhos dos autores paradigmáticos da tradição primitivista-substantivista. Esta tradição nasceu no final do século XIX, na Alemanha, dentro do contexto de debates científicos centrando no oikos, sob a influência da tradição histórica alemã. Karl Bücher, um economista, lançou as bases desta tradição, defendendo que uma organização econômica baseada no oikos foi predominante durante toda a Antiguidade, dentro de uma perspectiva evolucionista. Max Weber repensou a hipótese de Bücher e, adotando algumas das críticas dos historiadores alemães a Bücher, redefiniu os paradigmas da tradição, colocando a pólis no centro dos argumentos primitivistas. Hasebroek seguiu Weber, porém, dirigiu críticas violentas contra a tradição modernista. Karl Polanyi, que foi o responsável pela introdução do substantivismo na tradição inaugurada por Bücher e seguida por Weber, desenvolveu estudos em uma perspectiva antropológica, removendo os resquícios neoclássicos da tradição e redimensionando o conceito formalista do mercado. Moses Finley, sob a influência da História Social, deu contornos finais a esta tradição, juntamente com os argumentos antiformalistas baseados em uma análise social centrada no papel dos diferentes grupos de status e na importância da cidadania. Os trabalhos destes autores contribuíram para o nascimento e consolidação da ciência histórica moderna, inserindo a História Antiga na corrente da Historiografia moderna. Palavras-chave: Historiografia, História Antiga, Grécia Antiga.

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ABSTRACT

The objective of this work is to investigate the ancient Greek society by means of the works of paradigmatic authors of the primitivist-substantivist tradition. This tradition was born in the late nineteenth century, in Germany, in the context of scientific debates centering on the oikos, under the influence of German historical tradition. Karl Bücher, an economist, launched the bases of this tradition, defending that an economic organization based on the oikos was prevalent throughout Antiquity, doing so within an evolutionist perspective. Max Weber rethought Bücher’s hypothesis, and, adopting some of the German historians’ criticisms of Bücher, redefined the paradigms of the tradition, placing the polis at the center of the primitivist arguments. Hasebroek followed Weber, but directed violent criticisms against the modernist tradition. Karl Polanyi, who was responsible for the introduction of substantivism in the tradition inaugurated by Bücher and then Weber, developed studies in an anthropologic perspective, removing neoclassical traces from that tradition and reassessing the formalist concept of the market. Moses Finley, under the influence of social history, gave this tradition its final outline, together with antiformalist arguments based on a social analysis centered in the role of the different groups of status and the importance of citizenship. The works of these authors have contributed to the birth and consolidation of modern historical science, inserting Ancient History in the mainstream of modern historiography. Key words: Historiography, Ancient History, Ancient Greece.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

PARTE I - O NASCIMENTO DO “PRIMITIVISMO” SOB O DOMÍNIO DA TRADIÇÃO ALEMÃ

2 A ALEMANHA DO FINAL DO SÉCULO XIX E A CONTROVÉRSIA BÜCHER & MEYER ............................................................................................. 21

2.1 CONTEXTO SOCIAL, POLÍTICO E CULTURAL DA ALEMANHA DO FINAL DO SÉCULO XIX ATÉ OS ANOS DO SÉCULO XX ............................. 21

2.2 ILUMINISMO E IDEALISMO NA ALEMANHA NO FINAL DO SÉCULO XIX .......................................................................................................................... 24

2.3 A ESCOLA HISTÓRICA DE TEORIA ECONÔMICA E A CONTROVÉRSIA DOS MÉTODOS (METHODENSTREIT) ............................................................... 30

2.4 KARL BÜCHER E OS ESTÁGIOS ECONÔMICOS ........................................... 36

2.5 EDUARD MEYER E A TEORIA DA HISTÓRIA: O PARADOXO ENTRE O HISTORISMO E O ANACRONISMO ............................................................... 44

2.6 MEYER E A EVOLUÇÃO ECONÔMICA DA GRÉCIA ANTIGA ..................... 48

3 A PÓLIS TOMA O LUGAR DO OIKOS. O TIPO IDEAL DE MAX WEBER E O NEOPRIMITIVISMO DE HASEBROEK .................................................... 60

3.1 OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DOS TRABALHOS DE WEBER ............................................................................................................ 60

3.2 A GRÉCIA ANTIGA E SEUS VÁRIOS “TIPOS IDEAIS” .................................. 67

3.3 JOHANNES HASEBROEK E O NEOPRIMITIVISMO ........................................ 98

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3.3.1 Estado, Política e Comércio .................................................................................. 100

PARTE II - A GUINADA ANTROPOLÓGICA E O SUBSTANTIVISMO

4 O ATAQUE AO MERCADO “FORMALISTA”. KARL POLANYI E O NASCIMENTO DO MERCADO NA GRÉCIA ANTIGA .......................... 121

4.1 INFLUÊNCIAS INTELECTUAIS E O CONTEXTO POLÍTICO ..................... 121

4.2 A DEFINIÇÃO DO ECONÔMICO .................................................................... 125

4.3 RECIPROCIDADE, REDISTRIBUIÇÃO, HOUSEHOLD E INTERCÂMBIO . 137

4.4 O SURGIMENTO DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS E AS DIFERENÇAS ENTRE OCIDENTE E ORIENTE ....................................................................... 144

4.5 KARL POLANYI E A GRÉCIA ANTIGA .......................................................... 149

4.5.1 O Comércio ........................................................................................................... 151

4.5.2 O Mercado ............................................................................................................. 159

4.5.3 A Ágora e a Pólis ................................................................................................... 160

4.5.4 Dinheiro ................................................................................................................. 164

PARTE III - A CONSOLIDAÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL NO SEIO DA TRADIÇÃO PRIMITIVISTA-SUBSTANTIVISTA

5 O DOMÍNIO DO SOCIAL. MOSES FINLEY E A ECONOMI A ANTIGA ............................................................................................................. 174

5.1 A CRISE DO HISTORISMO CLÁSSICO E O CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO DA HISTÓRIA SOCIAL ............................................ 175

5.2 MOSES FINLEY E A HISTÓRIA SOCIAL ....................................................... 189

5.2.1 A Crítica do Historismo e a Discussão das Fontes .............................................. 190

5.2.2 A Utilização de Modelos e o Diálogo com a Sociologia e a Antropologia ......... 195

5.2.3 O Marxismo. A Influência do Instituto de Pesquisa Social e a História Total .... 203

5.3 MOSES FINLEY E A ECONOMIA ANTIGA ................................................... 219

6 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 249

7 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 256

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1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é investigar a sociedade grega antiga por meio dos trabalhos

de alguns autores paradigmáticos de uma tradição intitulada primitivista-substantivista,

gerada no seio de um centenário debate acerca da “economia antiga”, iniciado na Alemanha

no final do século XIX.

Tradição aqui é entendida como uma continuidade viva de idéias e reflexões, que não

são particulares nem parciais, mas de caráter universal, que se acumulam ao longo do tempo.

Os autores investigados, considerados paradigmáticos desta tradição, Karl Bücher, Max

Weber, Johannes Hasebroek, Karl Polanyi e Moses Finley, não são os únicos que defenderam

os postulados desta tradição, contudo eles foram escolhidos porque, além de servirem de

parâmetro para a produção historiográfica de seus contemporâneos, gestaram conceitos e

teorias que contribuíram para a cientificidade da História.

Não estamos nos propondo a investigar o debate entre primitivistas e modernistas ou

todos os matizes da controvérsia do oikos; isto ampliaria nosso raio de investigação a um

campo muito mais amplo e inviável ante os prazos estabelecidos para esta pesquisa. Nosso

objetivo é localizar a produção desses autores no debate, procurando demonstrar a existência

de postulados gerais acerca do lugar da economia antiga. Longe de ser uma simples

reafirmação de influência de um autor para outro, esses postulados apresentam convergências

e divergências entre esses autores e desdobramentos ao longo do tempo, o que procuraremos

demonstrar à luz das correntes historiográficas defendidas por eles. Além desses autores, o

primeiro grande autor paradigmático da corrente “modernista”, Eduard Meyer, que iniciou o

debate com Karl Bücher, também foi alvo de nossa preocupação, porque se tornou uma

referência para os autores analisados aqui e nos ajudou a compreender melhor as raízes

históricas desta tradição.

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É, portanto, em sua essência, um trabalho de historiografia. As correntes mais recentes

da produção histórica sobre a Antigüidade apresentam uma preocupação cada vez maior com

os problemas da historiografia. Trata-se de pesquisas que consistem em averiguar a

repercussão e a influência de idéias, conceitos e valores da Antiguidade sobre outros períodos

da História. Alguns dos expoentes deste tipo de trabalho são representados por Arnaldo

Momigliano, François Hartog, Ricardo Di Donnato, Claude Mossé, Vidal-Naquet e Dabdab-

Trabulsi (no Brasil) entre outros. O que tais análises têm em comum entre si e com este

trabalho é a percepção das condições gerais de uma época, neste caso específico, a

Antigüidade, e as marcas que elas deixaram nas construções intelectuais daqueles que

escreveram acerca dela, isto é, o “uso” que se fez desta Antigüidade. Segundo Peter Gay, os

grandes acontecimentos do presente estimulam os historiadores a descobrirem a importância

do que antes foi considerado sem importância, ou irrelevante aquilo que foi visto como

importante.1 O diálogo com a Antiguidade é parte da História. Para Vidal-Naquet, a Grécia,

por exemplo, não está na nossa História, mas, sim, o diálogo com a Grécia e, antes de tudo, o

diálogo com os textos gregos.

a reelaboração da herança grega, ora sob forma mítica ou ideológica, ora sob a forma do trabalho crítico e científico, é um dos dados da nossa história intelectual, que se exprime na criação, incessantemente renovada, de novos modos de discurso, de novos conceitos, de novos campos epistemológicos.2

Ao investigarmos a produção historiográfica dos autores paradigmáticos da tradição

primitivista-substantivista, relacionamos nosso trabalho a duas esferas analíticas temporais: a

Antiguidade clássica e historiografia contemporânea, pois o conjunto da obra daqueles

autores, objeto de nossas reflexões, situa-se em grande parte no final do século XIX e

primeira metade do século XX, demandando uma discussão dos grandes debates

historiográficos contemporâneos a eles. O campo da historiografia pode contribuir para o

aperfeiçoamento teórico da História, ao avaliar criticamente a produção de alguns autores com

o fim de aperfeiçoar procedimentos intelectuais de nossa própria “ operação historiográfica”.

Na medida em que se diluem as divisões que organizam uma época e sua historiografia,

aumentam nossas perspectivas de examinar os dados de seu tempo, pelo fato de estarmos

deslocados, o que possibilita revelar suas relações com outros elementos de sua época e

1 GAY, P. Os estilos na História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 2 VIDAL-NAQUET, P. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desafio. São Paulo: Companhia

das Letras, 2002, p. 254-255.

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inscrever sua historiografia na História, agora objeto de nossa historiografia. Segundo Michel

de Certeau, “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-

econômico, político e cultural. (...) É em função deste lugar que se instauram os métodos, que

se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes são

propostas, se organizam.”3

Cada trabalho individual se insere em uma rede cuja combinação dinâmica forma a

História em um momento dado. Assim, uma obra é reconhecida pelos seus pares, na medida

em que se situa em um conjunto operatório e representa um progresso em relação ao estatuto

atual dos objetos e métodos históricos, além de tornar possíveis novas pesquisas. Portanto,

muito mais ligada ao complexo de uma fabricação específica e coletiva, do que ao efeito de

uma filosofia individual, uma obra histórica é o produto de um lugar. Assim, a mudança de

uma situação social resulta em uma mudança no modo de trabalhar e no tipo de discurso. Se a

organização da História é relativa a um lugar e a um tempo, isto é possível pelas técnicas de

produção. Toda sociedade se pensa historicamente com os instrumentos que lhes são

próprios.4

Para Michel de Certeau, a escrita da História é uma prática social que confere ao leitor

um lugar determinado e se destaca do trabalho cotidiano, das eventualidades, dos conflitos da

pesquisa. Ela se separa do tempo que passa e fornece modelos no quadro fictício do tempo

passado. A escrita histórica está assegurada por certo número de conceitos, categorias

históricas de tipos diferentes: século, classe social, família, povo, guerra, heresia etc. Ela

impõe regras que são diferentes da prática e complementares a ela, mas são regras que

organizam lugares em vista de uma produção. A escrita permite que uma sociedade se situe,

dotando-a de uma linguagem sobre o passado. Abre para o presente um espaço próprio para

marcar o passado, a fim de redistribuir o espaço dos possíveis. Determina negativamente

aquilo que está por fazer, enterrando os mortos e estabelecendo um lugar para os vivos. Ela

honra e elimina o passado. Introduz aquilo que não se faz mais. Pretende criar no presente um

lugar a preencher, um “dever - fazer”. Portanto, ela é ao mesmo tempo performática e espelho

de uma realidade.5

O gesto de ordenamento do passado pelo historiador é formal e submetido a requisitos

de exposição, é uma ordem que o historiador não a faz, ele a encontra. A interpretação

3 CERTEAU, M. de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1982, p. 66-67. 4 ibid., p. 65-77. 5 ibid., p. 101-109.

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histórica é uma tentativa de oferecer uma explicação objetiva do passado, para a qual o

historiador usa estratégias expositivas persuasivas, cujo estilo é a marca que o diferencia e o

distingue; é a prova de sua subjetividade. Neste sentido, as técnicas estilísticas utilizadas pelos

historiadores apresentam semelhanças com as técnicas dos romancistas, diferindo-se pelo fato

de que, enquanto na ficção a verdade é um instrumento ocasional, na História é uma busca

incessante, sua finalidade essencial. Daí a dupla face do ofício do historiador: estar voltada

para as subjetividades e para a ciência, tal como os domínios da cultura e da personalidade

individual.6

A principal hipótese de trabalho é mostrar que todos os autores com os quais estamos

trabalhando estão comprometidos com a constituição e solidificação de uma historiografia

“moderna”. Ao investigar o desdobramento dos argumentos da tradição primitivista-

substantivista, procuraremos elencar os argumentos específicos desses autores acerca da

“economia antiga”, em particular, a grega, que, na verdade, contribuem para a formação da

historiografia moderna. O objetivo, então, é mostrar como os trabalhos de alguns autores

paradigmáticos constituíram-se em uma tradição que pode agora ser radiografada no interior

de uma grande corrente historiográfica que dominou o pensamento do Ocidente por mais de

dois séculos. Eis o grande desafio deste trabalho.

O trabalho está dividido em três partes. A primeira parte, O NASCIMENTO DO

“PRIMITIVISMO” SOB O DOMÍNIO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA ALEMÃ , com

dois capítulos, aborda o contexto intelectual em que se desenvolveu o debate acerca do lugar

da “economia” do mundo antigo na historiografia alemã do final do século XIX.

A Alemanha foi palco de um intenso debate, no final do século XIX e início do XX,

acerca do lugar do mundo antigo na ciência histórica. No centro deste debate estava o estudo

das relações econômicas na Antigüidade, pois o capitalismo e suas transformações,

desencadeadas a partir da Revolução Industrial, impulsionavam o desenvolvimento de uma

História Econômica. Na Alemanha, este interesse nasceu com os trabalhos de alguns

economistas que esboçavam esquemas de evolução do desenvolvimento econômico das

comunidades primitivas até épocas modernas. K. Bücher, por exemplo, afirmava que até o

século X, as comunidades existentes nunca haviam passado da etapa de economia doméstica

fechada. Com efeito, afirmava que a vida econômica dos gregos e romanos repousava no

oikos, unidade central auto-suficiente. Tal perspectiva, tributária de Rodbertus, enfatizava a

idéia de que uma economia monetarizada requeria uma estrutura social completamente 6 GAY, P. op. cit., p. 190-195.

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diferente da existente em uma economia de intercâmbios em espécie. As opiniões destes

autores, classificados de “primitivistas”, foram fervorosamente combatidas por outros

classicistas alemães liderados por E. Meyer, que destacava, por outro lado, a importância do

comércio e dos transportes na vida econômica da Antigüidade. Ao afirmar a existência de

manufaturas e de dinheiro em grande escala, Meyer pressupunha que a organização das

atividades econômicas da Antigüidade seguia o modelo do mercado.7 O avanço comercial

demandava a produção de artigos para o comércio, pois a criação de uma indústria

exportadora exigia a importação de matérias-primas e produtos alimentares para as cidades

superpovoadas. Tudo isto favoreceu o capitalismo e, no plano social, a formação de uma

“aristocracia comercial” dominante nas grandes cidades industriais.8 Hasebroek classificou a

posição de Meyer de “modernista”, pois este sugeria que o mundo antigo seguia a mesma

linha de desenvolvimento do mundo moderno, isto é, um desenvolvimento sem precedentes

da capacidade produtiva. Max Weber retomou muitas das questões abordadas por estes

autores e, sem demonstrar um claro alinhamento entre primitivistas e modernistas, mas

estando, aparentemente, mais próximo dos primeiros, pôs de relevo as características únicas

da cultura antiga, afirmando que a força que movia a economia do mundo clássico era a

orientação político militar da cultura antiga.9 Também acreditava haver capitalismo no mundo

antigo, mas de natureza bem diferente do capitalismo moderno. O capitalismo, ali, é de

orientação política e o excedente econômico advém dos aluguéis de terras e da exploração de

mão-de-obra escrava. Hasebroek foi signatário dessas idéias e aprofundou muitas das idéias

de Weber, sendo seu principal mérito o de ter associado às atividades econômicas com a vida

política, recolocando a vida econômica no quadro único da Cidade, mostrando que, na cidade

grega, diferentemente dos Estados modernos, havia uma dissociação entre a comunidade

política dos cidadãos e a maioria dos elementos ativos do artesanato e comércio.10 Estes

autores desempenharam um papel fundamental neste debate, tanto que sua influência

ultrapassou os limites do mundo acadêmico alemão, com defensores e opositores em diversos

países da Europa. Outros sábios alemães também produziram trabalhos sobre este tema e

merecem ser mencionados, porém, não serão investigados aqui, como é o caso de R. von

7 PEARSON, W. El debate secular sobre o primitivismo económico. In: POLANYI, K; ARENSBERG, C;

PEARSON, H. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: Labor universitária, 1976. p. 51-59.

8 Ver WILL, E. Trois quarts de siècle de recherches sur L’économie grecque antique. Annales ESC, v. 1, n. 9, p. 10, 1954.

9 PEARSON, W. El debate secular sobre o primitivismo económico. In: POLANYI, K; ARENSBERG, C; PEARSON, H. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: Labor universitaria, 1976. p. 51-59.

10 WILL, E. op. cit., p.14.

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Pöhlmann que aplicou a análise marxista à economia e à sociedade antigas; Fr. Oertel e R.

Laqueur que admitiam a existência de uma certa forma de capitalismo orientado para o

comércio e caracterizado pelos grandes empréstimos; e A.E. Zimmern, que realizou um

primeiro trabalho sobre a mentalidade econômica dos gregos, de caráter mais “primitivista”

que “modernista”.11

O primeiro capítulo explora a divergência entre os trabalhos de Bücher e Meyer,

autores que iniciaram a contenda entre “primitivistas” e “modernistas”, procurando mostrar

que, apesar das divergências, os trabalhos deles estão perfeitamente envolvidos pela

“atmosfera” intelectual da tradição histórica alemã. O segundo capítulo apresenta o arcabouço

teórico da obra de Max Weber e sua inserção nos debates intelectuais travados na Alemanha

no início do século XX. O “tipo ideal” e a sua utilização na análise do mundo antigo, em

particular da Grécia Antiga, e o “racionalismo” econômico são as questões privilegiadas neste

capítulo. O oikos, argumento central de Bücher, é agora redimensionado por Weber e

colocado em segundo plano em relação à pólis. Finalmente, aborda, ainda, o trabalho de

Hasebroek segundo duas perspectivas: convergências e divergências em relação à obra de

Weber; e retomada de um ataque violento aos “modernistas”.

A segunda parte da tese, A GUINADA ANTROPOLÓGICA E O

SUBSTANTIVISMO, compõe-se de um capítulo sobre o trabalho de Karl Polanyi. O título

desta parte indica uma substituição do referencial intelectual da tradição “primitivista”, na

qual o Historismo era um dos elementos centrais da ossatura historiográfica e o Idealismo, a

matriz filosófica, por um referencial antropológico. O austríaco Karl Polanyi (1886-1964) é o

protagonista mais ilustre desta vertente, depois dos alemães, tendo desenvolvido pesquisas

pioneiras acerca do lugar da economia nas sociedades antigas.

Agora um novo elemento invade o centro das preocupações da tradição investigada: o

mercado. Polanyi procura mostrar primordialmente que o mercado, da forma como descrito

pelos formalistas, é algo historicamente datado, e que a indissociabilidade entre mercado,

comércio e dinheiro é uma falácia formalista. Além disso, procura, junto com seus

colaboradores, remover os resquícios formalistas do conceito de economia presentes nos

trabalhos de Weber e seus seguidores.

O debate entre as correntes formalistas e substantivistas abre o capítulo e, em seguida,

a crítica polanyiana aos elementos formalistas orientadores do arcabouço teórico de Weber. A

11 ibid., passim.

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seção sobre a Grécia Antiga será utilizada como exemplo para comprovar a hipótese de que o

mercado, o comércio e o dinheiro não assumem na Grécia Antiga as mesmas características

que têm nas sociedades modernas, definidas segundo os parâmetros formalistas. Procuramos

apontar as divergências e convergências de Polanyi com os autores já explorados nos

capítulos anteriores.

A terceira parte, A CONSOLIDAÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL NO SEIO

DA TRADIÇÃO PRIMITIVISTA-SUBSTANTIVISTA , é composta por um capítulo, o

quarto desta tese, sobre os trabalhos de Moses Finley, cujo objetivo é demonstrar que eles

constituem uma defesa dos princípios da História Social no interior da tradição estudada.

Procuramos, inicialmente, mostrar as influências intelectuais e teóricas dos neomarxistas da

Escola de Frankfurt, da Escola dos Annales, da sociologia weberiana e do substantivismo

polanyiano sobre as idéias de Finley.

Três temas da produção historiográfica finleyniana são abordados com mais ênfase

para reafirmar a influência da História Social: a discussão sobre as fontes, a utilização de

modelos e a defesa da História total. A exploração destes temas é antecedida, na parte inicial

do capítulo, por um preâmbulo sobre a constituição e o fortalecimento da História Social no

espaço acadêmico norte-americano e europeu. Este preâmbulo ajuda-nos a entender a crítica

de Finley aos chamados “antiquaristas” e positivistas, identificados por ele como defensores

de uma História tradicional, isto é, Historista.

Finley procura conciliar o institucionalismo histórico weberiano com o substantivismo

polanyiano em sua análise sobre a economia antiga à luz dos princípios da História Social. Os

temas explorados neste capítulo, conceito de economia, a escravidão, a cidade antiga, a

mentalidade dos proprietários de terras e o papel do Estado nos assuntos econômicos, são

temas de escritos que atravessam toda a carreira de Finley e estão presentes no livro, A

Economia Antiga, e sobre os quais se debruçaram os autores da tradição primitivista-

substantivista que o precederam.

Subjacente à analise dos autores paradigmáticos desta tradição encontra-se uma

reflexão sobre o estatuto científico da História. Os modelos apresentados pelos autores

analisados indicam como se estabeleceu o diálogo, ou a sua ausência, entre a História e as

outras ciências humanas, em determinados períodos.

Esperamos, assim, fomentar uma reflexão crítica acerca de um momento em que os

grandes modelos da economia e da sociedade grega contribuíram para mostrar as diferenças

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pontuais entre o antigo e o moderno, evitando assimilações confusas e estéreis entre épocas

diferentes.

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PARTE I

O NASCIMENTO DO “PRIMITIVISMO” SOB O

DOMÍNIO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA ALEMÃ

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2 A ALEMANHA DO FINAL DO SÉCULO XIX E A CONTROVÉRSI A BÜCHER

& MEYER

2.1 CONTEXTO SOCIAL, POLÍTICO E CULTURAL DA ALEMANHA DO FINAL DO

SÉCULO XIX ATÉ OS ANOS 20 DO SÉCULO XX.

Ao longo do século XVIII e início do século XIX, o desenvolvimento econômico da

Alemanha foi bem menos acelerado do que de outros países da Europa que já haviam

desencadeado um processo de industrialização, como Inglaterra e França. A produção de

carvão da Prússia de 1846, por exemplo, correspondia à terça parte da produção da França, e o

consumo de carvão era menor do que o da cidade de Londres sozinha.

Nesse ambiente econômico, não se desenvolveu uma burguesia empresarial forte nem

uma tradição de liberalismo de classe média. Enquanto os intelectuais ingleses tinham suas

raízes numa elite industrial independente, em que o liberalismo constituía uma extensão do

utilitarismo empresarial e das teorias econômicas do laissez faire, a classe média alemã estava

preocupada com a ascensão social por meio da instrução, com objetivo de ingressar numa das

burocracias do Estado, no clero, no magistério ou nos setores da medicina ou do direito. Esta

elite mostrou, desde suas origens, “uma propensão a afastar-se da condição de camponeses e

artesãos e a procurar uma posição especial no tradicional sistema de classes.”12 Seu objetivo

era a educação plena e harmoniosa do indivíduo integral. Os temas recorrentes na filosofia e

na teoria social na Alemanha implicavam um afastamento parcial da situação existente:

O puro saber, contemplação absolutamente desinteressada do bem e da verdade, é a principal vocação do homem. Serve melhor a humanidade quem

12 RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. p. 30.

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cultiva ao máximo o seu próprio espírito; pois o mundo não tem propósito e realidade em si mesmo, nenhum sentido fora do trabalho criativo da mente e do espírito humano. Comparado a esse trabalho, tudo o mais é insignificante: os conhecimentos práticos da vida cotidiana, os detalhes da organização social e os acidentes da hierarquia e da posição social.13

Os grandes poetas alemães, os neo-humanistas e os filósofos idealistas do final do

século XVIII foram envolvidos por essas idéias. Homens como Wilhelm von Humboldt,

Friedrich von Schiller, Gottlieb Fichte, F.W.J. Schelling e Friedrich Hegel exaltaram a

vocação do intelectual puro e foram os sacerdotes da nova filosofia idealista, constituindo-se,

para as gerações futuras, em uma nova aristocracia da “cultura”. O ideal de liberdade

acadêmica foi redigido por uma série de memorandos escritos por boa parte desses homens. O

Estado deveria apoiar esse ideal sem exercer controle direto sobre as matérias ensinadas, e a

formação de funcionários pelas universidades deveria ser realizada sob o espírito da cultura

filosófica.

Entre 1870 e 1914, a Alemanha passou por tal processo de industrialização –

crescimento sem precedentes em termos de velocidade e amplitude, aumento da população

urbana, de fábricas e indústrias pesadas – que, em algumas décadas, já era uma das maiores

potências do mundo. A esse crescimento, seguiu-se a formação de grandes cartéis, que

concentravam enorme poder econômico nas mãos de poucas empresas gigantescas. De 1870 a

1890, surgiram diversas associações de empresários para defender seus interesses, entre eles,

a proteção tarifária e o combate às greves. O sindicalismo, por outro lado, também cresceu em

proporções impressionantes, atingindo mais de dois milhões de trabalhadores. Todo esse

processo foi perturbador para a antiga classe burguesa, composta de artesãos e pequenos

comerciantes, que se viu ameaçada pelo novo poder político e pela nova força econômica, que

demonstrava grande potencial organizativo. Muito mais a perder tinha a classe alta tradicional

não produtiva: funcionários públicos, profissionais liberais e acadêmicos. Esse grupo

desfrutara de grande poder político antes de 1870, mas, no final do século XIX, já havia

perdido a maior parte de sua influência. As mudanças tendiam a transformar o caráter da

política alemã. Os setores organizados com interesses socioeconômicos fortemente

relacionados ao advento da industrialização ingressaram na arena político-eleitoral e travavam

lutas declaradas com os antigos grupos dominantes, que defendiam uma política “idealista”.

Começava a haver mudança na representação política da Alemanha.14

13 ibid., p. 35. 14 ibid., p. 59.

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Os cargos não eletivos do governo continuavam sendo dominados pelos setores

acadêmicos, mas a posição dessa elite ficou mais difícil no período entre guerras, quando foi

afetada política e economicamente pela desastrosa inflação e pela enorme carga de reparações

de guerra imposta pelo Tratado de Versalhes. Os primeiros anos da República foram

marcados por distúrbios políticos, que contribuíram, ao lado do conflito franco-germânico de

1923, para o colapso do marco.

Em termos gerais, portanto, a inflação significou a ruína econômica, sobretudo daqueles grupos sociais que já se achavam em desvantagem comparativa numa época de rápida industrialização. Na verdade, ela fortaleceu as novas elites empresariais, administrativas e técnicas e não causou dano à mão-de-obra industrial de forma significativa ou permanente. Seus efeitos mais devastadores concentraram-se, ao contrário, nos dois segmentos mais antigos da classe média tradicional: de um lado, os que viviam de rendas, os funcionários públicos, os profissionais liberais e os acadêmicos e, de outro, os artesãos, os lojistas e os empregados de escritório do escalão inferior.15

O status dos professores universitários ainda continuou elevado por muito tempo, mas

seus gastos eram superiores a sua condição social, o que os levou a uma crescente insatisfação

com o ambiente moderno. Além disso, o período de Weimar acirrou as lutas de classes,

motivadas, em grande parte, pela revolução de 1918 e pela queda da monarquia burocrática. A

República não tinha tradição, era apenas uma arena de discussão das opções políticas. As

dificuldades econômicas trouxeram para o centro do palco as batalhas entre a indústria e a

agricultura e entre empregadores e trabalhadores. As graves tensões sociais e culturais geradas

pela industrialização abrupta depois de 1870 foram percebidas pelos intelectuais com enorme

intensidade. Tanto foi assim que, no começo dos anos 20 do século passado, estavam

convencidos de que viviam uma crise profunda nas áreas da cultura, ensino, valores e,

mesmo, do espírito.16 Quanto aos intelectuais que defendiam uma filosofia “idealista” para a

educação, suas posições foram gradativamente se tornando mais conservadoras e refratárias a

qualquer mudança institucional ou social. Tudo que os ameaçava, da era moderna, era

recusado, incluindo aí a República, a nova política partidária e as transformações sociais

ligadas à industrialização e à inflação. Estavam dispostos a defender seu lugar social e

profissional a qualquer custo, e isto incluía uma batalha contra aqueles que queriam reformar

a educação, pois entendiam que esta reforma pretendia levar as massas a capturar as

15 ibid., p. 73 16 RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. p. 19-20.

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instituições de ensino superior, desestruturar sua organização interna, transformá-las em

instrumento de nivelamento social e obrigá-las a abandonar suas tradições eruditas em favor

de um tipo prático de educação moderna.17

Fritz Ringer separa os intelectuais alemães, depois de 1890, em dois grupos. O

primeiro engloba os professores e eruditos que aprovavam a estratificação da sociedade,

toleravam os aspectos pouco liberais do regime político vigente e compartilhavam o medo e a

hostilidade com as classes dominantes, que enfrentavam o movimento social-democrata.

Defendiam, portanto, uma posição “ortodoxa” e constituíam a maioria da comunidade

acadêmica alemã, porém com um discurso político menos sofisticado e intelectualmente

menos brilhante. Já outro grupo de eruditos alemães, formado, sobretudo por cientistas

sociais, desenvolveu argumentos mais complexos e assumiu uma atitude mais equilibrada

acerca dos problemas da época. Reconhecia que a industrialização e a democratização eram

irreversíveis e acreditava que alguns processos da modernização em curso estavam ligados às

necessidades e às vantagens da mudança socioeconômica. Os membros dessa minoria

progressista eram chamados de “acomodacionistas”, porque eram mais submissos às

transformações da vida moderna, que lhes pareciam inevitáveis. Em seus escritos políticos,

estava presente um forte ataque à representação política dos setores rurais no legislativo

prussiano e aos privilégios fiscais e tarifários concedidos à aristocracia agrária. Queriam a

reforma social, mas sem marxismo.18 Foi nesse contexto que boa parte dos intelectuais que

vamos investigar produziu seus trabalhos.

2.2 ILUMINISMO E IDEALISMO NA ALEMANHA NO FINAL DO SÉCULO XIX

O Iluminismo da Europa ocidental, mais especificamente o anglo-francês, nunca foi

totalmente assimilado na Alemanha. Diferente daquele, o Iluminismo alemão (Aufklärung)

rejeitava a tendência utilitarista do conhecimento, a associação entre ciência e educação com a

idéia de manipulação prática, técnica racional e controle ambiental. A aquisição da cultura

relacionava-se a um crescimento interior e autodesenvolvimento integral. Paralelamente, a

palavra alemã Kultur (cultura) tinha o significado de cultura pessoal; referia-se ao cultivo da

17 ibid., p. 90. 18 ibid., p. 129-133.

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mente e do espírito. Posteriormente, passou a ser usada como síntese de todas as realizações

do homem civilizado na sociedade. Em resumo, cultura refletia cultivo.19

Estas idéias orientadoras do Iluminismo alemão estavam relacionadas à filosofia

kantiana, de caráter idealista, de forte impacto sobre a intelectualidade alemã. No modelo

kantiano, as impressões e as idéias são comparadas entre si, e, não, com objetos físicos ou

com eventos. Tal procedimento é uma operação exclusivamente interior. Na filosofia

idealista, as coisas são produto da consciência. A palavra alemã Geist não significa apenas

“mente”, mas, também, “espírito”, “alma”. Também aparece como o pensamento coletivo da

humanidade e, por vezes, como uma consciência transcendental que garante a concomitância

entre aparência e realidade. O termo Geisteswissenschaft (ciência da cultura) parece implicar,

a partir do século XIX, uma abordagem idealista das disciplinas humanistas que ela

representa.20

O Idealismo (Idealismus) exerceu forte influência sobre os historiadores alemães,

estando presente nas obras de Humboldt, Hegel, Dilthey, Herder e Ranke, entre outros. As

obras desses autores foram as mais representativas da tradição histórica alemã e, similarmente

ao movimento iluminista, opunham-se à idéia de que o passado devesse ser utilizado como

“uma coleção de exemplos a ser usados para glorificar o homem, o progresso e o presente,

para construir máximas genéricas da arte do governante, ou para tabular os avanços da ciência

e da razão.”21

Ranke que foi, durante a maior parte do século XIX, o grande decano e mestre dos

historiadores alemães, combatia veementemente a crença na possibilidade de o historiador

aplicar teorias para o conhecimento histórico e rejeitava como abstratas as idéias puras,

permanentes e metafísicas. Sua extensa obra se caracteriza por uma tensão entre a exigência

de uma investigação objetiva e os supostos políticos e filosóficos que determinavam esta

investigação. Por um lado, insistia nos métodos da crítica filológica, pois uma historiografia

científica não poderia se apoiar na credibilidade das narrativas, sem antes passar pelo exame

crítico, que exigia um conhecimento das línguas em questão e das ciências auxiliares da

História. Assim, os primeiros preceitos de uma História científica para Ranke seriam:

exposição, recompilação, articulação e compreensão dos fatos. Dever-se-iam desvendar as

grandes unidades de sentido dos fatos para encontrar sua verdadeira significação histórica.

19 RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. p. 93-94 20 ibid., p.98-103 21 ibid., p.104-105

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Para Ranke, o historiador não deveria julgar o passado, mas expô-lo em sua essência, mesmo

que sempre estivesse insatisfeito com os resultados que alcançasse. Por outro lado, sua

concepção de ciência apoiava-se em valores políticos e culturais de uma cultura burguesa,

para a qual o Estado prussiano aparecia como uma realidade política e ética garantidora das

liberdades. Assim, por trás da idéia de objetividade, escondiam-se uma metafísica e uma

ideologia que impediam aquela aproximação “objetiva” e imparcial da História.22 Sua famosa

observação sobre descobrir apenas “o que realmente aconteceu” propõe uma interpretação

histórica em que épocas, instituições e indivíduos históricos são descritos “em seus próprios

termos”, em vez de julgados por meio de padrões contemporâneos. Este foi o tema central da

tradição histórica alemã.

Já estavam presentes na obra de Ranke dois princípios fundamentais da tradição

histórica: empatia e individualidade. O princípio de empatia ressalta mais as intenções e

sentimentos conscientes do que as regularidades estatísticas ou as leis atemporais do

comportamento. Implica na tentativa de “colocar-se no lugar de” indivíduos históricos. O

princípio de individualidade traduz uma análise em que todos os tipos de sujeitos – uma

época, uma nação, uma idéia ou um governante – devem ser tratados como personalidades

únicas, com ênfase em sua unicidade e concretude indivisa. Ao analisar o passado, o

historiador deve-se voltar sempre para o contexto histórico em que investiga, e, não, procurar

conceitos atemporais. Deve tratar a cultura e todo o espírito de uma época como um complexo

singular e auto-suficiente de valores e idéias.23 Eis as diferenças de método entre a História e

as Ciências naturais. As relações históricas, ao contrário das leis da mecânica, baseiam-se, em

parte, nas intenções humanas. Neste sentido, têm significado.

Entender um homem ou uma época do passado é reconstituir uma individualidade

histórica a partir das “objetivações” remanescentes de seu espírito. Uma vez que esta

reconstituição envolve a reconstrução de padrões significativos de pensamento e atitudes, o

modo de explicar a História depende do elemento de significado.24

Ernest Troeltsch, em 1923, discursando sobre as origens do individualismo,

relacionou-o ao Romantismo alemão e o descreveu como uma reação à Revolução francesa,

como uma revolta contra “a moralidade igualitária universal”, contra todo o “espírito

22 IGGERS, G. La ciencia historica en el siglo XX. Una vision panorámica y crítica del debate

internacional. Barcelona: editorial Labor, 1995, p. 28-30. HOLANDA, S. B. Introdução: o atual e o inatual em Leopold Von Ranke. In: Ranke, Leopold von. Org. (da coletânea) Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1979. Coleção Grandes cientistas sociais, 8, p. 7-61.

23 RINGER, F. op. cit., p.105. 24 ibid., p.105-106

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científico matemático-mecanicista da Europa ocidental” e contra a árida abstração de uma

humanidade universal e igual. Como produto do Romantismo alemão, está presente também,

nesse conceito de individualidade, um senso místico-metafísico de uma concretização

particular do espírito divino em pessoas isoladas e em organizações comunais suprapessoais.

Os constituintes básicos da realidade não são átomos materiais e sociais semelhantes e leis universais (...) mas personalidades únicas diferentes e forças formativas individualizadoras.(...) O Estado e a sociedade não são criados a partir do indivíduo por meio de um contrato e uma construção pragmática (zweckrationale), mas a partir de forças espirituais suprapessoais que emanam dos indivíduos mais importantes e criativos, do espírito do povo (Volkgeist) ou da idéia ética religiosa. (...) Além disso, essa abordagem leva à concepção de que o desenvolvimento histórico é uma progressão de culturas qualitativamente diferentes, nas quais a principal nação num determinado momento passa a tocha a seu sucessor e nas quais todas (as culturas) juntas em complementação mútua representam a totalidade da vida.25

Esses traços da tradição histórica alemã contribuíram para preeminência dos grandes

indivíduos “históricos”, uma tendência a discutir as culturas, os Estados e as épocas como se

fossem “totalidades” personalizadas, e a convicção de que cada uma dessas totalidades

encarnava seu próprio espírito particular.26

Os pensadores alemães reformularam os conceitos de direito natural e de contrato

social de forma a minimizar suas implicações antiabsolutistas. O Estado deveria ser muito

mais um guardião das liberdades do que um potencial inimigo delas. Os argumentos para tais

premissas amparavam-se nas idéias de que o indivíduo deveria transferir para a sociedade

muitos de seus direitos, e, conseqüentemente, a absorção da sociedade pelo Estado,

conferindo-lhe imensos poderes. O resultado dessas idéias gerou dois conceitos de Estado: o

legal e o cultural. O ideal do Estado legal requeria que o governo agisse com base em

princípios fixos e racionais, expostos de modo claro e público e ajustados às exigências da

ética. São elementos decisivos desta definição: atribuição de propósitos morais ao Estado e

exigência de legalidade. Tal ideal só significou necessariamente um Estado constitucional

após o início do século XIX. Antes disso, o termo legal constituía uma expressão da

campanha burocrática por racionalidade e previsibilidade no governo. Esse conceito não

aspirava limitar o alcance do absolutismo burocrático nem qualquer espécie de participação

25 TROELTSCH, E. Naturrecht und Humanität in der WeltpolitiK: Vortrag bei zwetein Jahresfeier der

Deutschen Hochschule für Politik. In: RINGER, F. op. cit., p. 106-107 26 ibid., p. 107.

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popular. O ideal do Estado cultural, que desempenhou importante papel no pensamento

político alemão, tinha o desenvolvimento cultural como seu valor supremo, subordinando

outros interesses e problemas às reivindicações da cultura. O Estado tinha a função de um

agente dos valores espirituais e era apoiado e defendido pela elite instruída que o servia no

papel de funcionário público. A doutrina do Estado cultural esteve entrelaçada com a origem

do sentimento de nacionalidade no começo do século XIX. O caráter peculiar desse processo

deveu-se parcialmente à ausência de um Estado alemão unificado. A nação tinha que ser

definida em termos puramente culturais, em razão da ausência de um sentimento

constitucional de nação. Outrossim, este nacionalismo foi uma criação quase exclusiva das

classes instruídas, daí a transferência dos valores culturais dos neo-humanistas e dos idealistas

para o quadro da nação cultural. A nação e, por meio dela, o Estado foram definidos como

criaturas e como agentes ideais culturais daqueles que se consideravam os mais instruídos,

particularmente os professores universitários. Sua linguagem estabeleceu os parâmetros da

discussão política alemã do século XIX. Foi este o verdadeiro significado do casamento entre

Geist e Estado.27

Outro traço desta tradição é a crença de que a História deve constituir-se em uma

disciplina científica. O ambiente político e cultural do processo de cientificização da História

nas universidades alemãs do século XIX refletia uma ordem social moderna, em que a

sociedade burguesa integrava-se a um estado monárquico burocrático. Desta forma, em

consonância com as outras ciências especializadas, a comunidade científica, diferentemente

dos aficcionados e diletantes, acreditava alcançar um conhecimento objetivo por meio de um

conhecimento metódico. Contudo, como ciência cultural, a História distanciava-se do objetivo

cognitivo das outras ciências ao não formular regularidades e ao sublinhar elementos do

singular e espontâneo, preocupada em entender as intenções e os valores humanos.28

Esta particular concepção de ciência histórica foi denominada de Historismo

(Historismus). Tal concepção remonta a Herder, que fundou a idéia de que cada povo tem seu

próprio devir, cujo entendimento não se dá pela projeção do presente no passado, mas, sim,

pela percepção do que é próprio de cada época. Suas idéias representavam uma reação às

tendências generalizantes do Iluminismo e foram retomadas por Meinecke, na segunda

metade do século XIX, que negava qualquer concepção de leis explicativas para o processo

histórico. Como visão de mundo, o Historismo significa que a realidade tem um sentido e só

27 ibid. p. 118-122. 28 IGGERS, G. La ciencia histórica en el siglo XX. Una visión panorámica y crítica del debate

internacional. Barcelona: Editorial Labor, 1995, p. 15-23.

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pode ser compreendida em seu desenvolvimento histórico, portanto como teleologia social

restrita a um determinado povo.29 No Historismo, todos os enunciados e juízos de valor são

tratados historicamente, como partes de um processo em perpétua transformação. Nada parece

fixo e permanente; tudo flui. Tal concepção está mais próxima de uma “concepção

hermenêutica do método”, em que a pesquisa opera em grande medida com fontes que

documentam ações intencionais. A História é definida como “ciência compreensiva do

Espírito”, entendida como processo cultural evolutivo, que se desenrola na esfera da ação

intencional. É uma concepção idealista, pois

as forças motrizes decisivas da transformação temporal no passado são concebidas como sendo de natureza ideal, como idéias motrizes, que se expressam em intenções condutoras de ações e se manifestam como “cultura” nas formações resultantes da socialização (vergesellschaftung) humana, realizadas através da ação.30

Os princípios de empatia e individualismo estão relacionados com o Historismo.

Ernest Troeltsch31 o identifica com a tradição histórica alemã. Segundo este autor, o

verdadeiro historiador deve compreender os significados e os valores de outras épocas; por

isso, ao escolher sua prova, deve privilegiar o essencial (das Wesentliche), em vez de leis

históricas, e sublinhar aspectos do passado que os próprios homens da época julgavam mais

importantes, descrevendo idéias e valores inerentes à própria estrutura de um determinado

período. O mergulho no passado o leva a perceber o sentido que cada época tem de seu

próprio espírito particular, contestando, assim, verdades eternas e atemporais. Tais afirmativas

deixam um terreno aberto a um extremo relativismo cultural e moral. Troeltsch argumenta

que é possível fugir de um ceticismo ilimitado na estrutura do método histórico, pois o estudo

do passado não é totalmente passivo. Os nossos valores culturais são decisivos para

compreendermos as idéias passadas, sendo, portanto, um fator de julgamento e vontade. Há,

neste sentido, uma estreita ligação entre nossa concepção do passado e nossos valores e

objetivos para o presente e para o futuro.

29 IGGERS, G. op. cit., p. 25-30 e CARDOSO, C.F. Introdução à historiografia ocidental. Mimeografo. s/d. p.

16. 30 RÜSEN, J. Reflexão sobre os fundamentos e mudança de paradigma na ciência histórica alemã-ocidental. In:

BAETA NEVES, A. e GERTZ, R. (Orgs). A nova historiografia alemã. Porto Alegre: Editora da UFRS- Instituto Goethe, 1987, p. 14 – 40.

31 Ringer cita vários trabalhos deste autor, contudo para este tema os mais importantes são Der historismus und seine probleme,Buch 1: Das logishe Problem der Geschichtsphilosophie, Tübigen, 1922 e o artigo Die Krisis des historismus. In: Die neue rundschau, v. 33, p. 572-590, 1920.

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Nossos próprios valores culturais são, ao mesmo tempo, os produtos do passado e os critérios utilizados para compreendê-lo.(..). Quando estudamos relações significativas na história, estamos também desvelando as dimensões e as potencialidades de nossas próprias mentes. Como todo ato de julgamento histórico, tendemos a descrever nosso próprio lugar na estrutura do mundo intelectual. Nossa escolha final de uma posição é uma síntese ativa, um ato de autodefinição, em que nossas perspectivas com relação ao passado se fundem com nosso senso de identidade e com nossos desejos para o futuro.32

2.3 A ESCOLA HISTÓRICA DE TEORIA ECONÔMICA E A CONTROVÉRSIA DOS

MÉTODOS (METHODENSTREIT)

É necessário agora relacionar os princípios da tradição histórica alemã com a teoria

econômica desenvolvida pela intelectualidade alemã no século XIX. A preferência pelos

métodos históricos com o intuito de historicizar a economia política clássica constituiu o

objetivo mais geral da economia política histórica, presente nas reflexões de pensadores do

início do século XIX, como Adam Müller, Friedrich List e F. K. Savigny. Seus trabalhos

inspiraram os membros da chamada Escola Histórica de Teoria Econômica, que remonta à

década de 1840, cujos primeiros representantes foram Wilhelm Roscher, Bruno Hildebrand e

Karl Knies e, posteriormente, Gustav Von Schmoller, na década de 1870.

O diálogo com a economia política britânica constituiu o vetor programático dos

fundadores dessa Escola. Contudo, os economistas históricos alemães argumentavam que os

economistas clássicos ingleses defendiam axiomas que representavam as leis naturais da vida

econômica e, por isso, a Economia política tinha se tornado uma ciência dedutiva, já que

certas definições eram afirmadas como de aplicação universal, para todos os países sobre a

superfície do globo e todas as classes de sociedade, e, dessas definições, foi deduzido um

sistema completo de proposições, que eram observadas como de validade demonstrada. Em

oposição, os alemães empreenderam um projeto de construir uma ciência histórica, indutiva,

em que a diversidade de circunstâncias econômicas seria reconhecida.33

32 RINGER, F. op. cit., p. 314-318. 33 A contraposição que estamos apontando aqui não quer dizer que na Inglaterra, apesar da predominância da

“Economia clássica”, não tenha havido economistas ingleses simpatizantes de traços historistas. Segundo Tribe, a crítica historista na economia atravessou a Grã-Bretanha durante os anos de 1870-1880, porém seus defensores não conseguiram estabelecer um programa pedagógico dentro das universidades e foram relegados a uma esfera marginal em relação à tendência predominante na virada do século. Para uma melhor compreensão da trajetória dos estudos históricos de economia na Inglaterra, ver TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p. 1-20.

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31

Durante os anos de 1830, o ecletismo dominou o ensino e as publicações sobre os

estudos de economia na Alemanha, inspirados tanto na economia política inglesa e francesa,

quanto nos trabalhos de economia existentes até então no país. A primeira crítica feita à

economia política cosmopolitana smithiana, embora em tom contencioso, foi apresentada em

Das nationale System der politischen Ökonomie, por Friedrich List, em que ele argumenta

que as leis econômicas geralmente válidas, universais, expostas em Wealth of Nations

fracassaram justamente por não levar em conta as diferenças nacionais e históricas.

Os fundamentos programáticos da Escola Histórica de Teoria Econômica são,

contudo, atribuídos a Wilhelm Roscher, que, em 1843, em uma planilha de aula publicada,

afirmou que seu objetivo não era compreender melhor a riqueza nacional e seu aumento, mas

entender a representação do aspecto econômico do que os povos pensavam, queriam e

sentiam, o que eles aspiravam e realizavam e os motivos desta aspiração e realização. Isto era

uma ciência política que envolvia estágios culturais mais primitivos, pois um “povo não é

simplesmente a massa de indivíduos vivendo no presente.”34 Ele também exigiu um estudo

comparativo de todos os povos, para discernir os traços semelhantes que poderiam se

constituir em lei de desenvolvimento. Apesar de defender uma abordagem indutiva, Roscher

recomendou os trabalhos de Smith e Ricardo e evitou uma crítica geral à economia política.

Seu programa de estudo comparativo não foi realizado e, entre 1854 e 1874, ele devotou-se ao

estudo da história do pensamento econômico. Seus trabalhos são uma fusão da escola de

historiadores culturais com a visão histórico-universal. Ele não abre mão dos velhos

economistas teóricos, como Adam Smith, Ricardo e Malthus, porém acrescenta as explicações

históricas. Neste sentido, Roscher representa um divisor de águas de duas épocas científicas.

Bruno Hildebrand propôs, em seu Nationalökonomie der Gegenwart und Zukunft,

um estudo das leis econômicas de desenvolvimento dos povos em linhas históricas. Sua

crítica a Smith, similar a de Rocher, descreve a escola smithiana como uma ciência natural do

comércio, na qual o indivíduo é uma força puramente egoísta, ativa, semelhante a qualquer

força natural. Para diferenciar-se de List, Hildebrand teceu, em um capítulo inteiro, críticas a

List, ressaltando que os estágios de desenvolvimento de List eram tomados emprestados da

história britânica. Hildebrand esboçou um modelo evolucionário de formas econômicas, mas

suas três formas amplas – economia natural, economia monetária e economia de crédito –

34 ROCHER, W. Grundrib zu Vorlesungen über die Staatswirthschaft. Nach geschichtlicher methode,

Dieterische Buchhandlung, Göttingen. In: TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p. 6.

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32

também eram similares em tipo e nível de generalidade aos estágios de desenvolvimento

econômico esboçados por Smith no livro III de Wealth of Nations.35

O terceiro membro da Escola Histórica de Teoria Econômica foi Karl Knies, que,

também em seus programas de trabalho, sugeriu que a tarefa da economia política não era a

de ser responsável somente pelo desenvolvimento histórico da teoria econômica, mas,

também, pelas condições econômicas e desenvolvimento em diferentes nações e períodos. Em

suas notas de aula de seu curso de 1886, Knies criticou a teoria socialista, particularmente as

doutrinas de Marx, associando-as, quanto aos conceitos de produção, distribuição, valor e

preço, aos economistas clássicos ingleses. Knies rejeitava a idéia de que o preço é

determinado pelo custo da produção e argumentava que, se isto fosse verdade, os preços não

flutuariam quando os custos da produção ficassem estáveis. Ao contrário, ele identifica a

interação entre oferta e demanda como o fator dominante. Onde a produção não pode se

expandir ou reduzir, os preços aumentam com demanda maior ou diminuem com demanda

menor. Além disso, uma variação da produção não é acompanhada necessariamente por uma

variação dos preços. As idéias de Knies sobre a relação entre demanda e oferta inspiraram

muitos autores pré-marginalistas e, tal como Roscher e Hildebrand, Knies fez referências

constantes aos economistas clássicos.36

O que distingue a “Escola” mais antiga da geração mais nova é que, enquanto a

primeira enfatiza a linha programática, mas falha em realizá-la, a segunda enfatiza o

programa, mas perde a visão mais geral de suas pesquisas. Os membros da antiga Escola não

se engajaram em histórias comparativas sistemáticas de sistemas econômicos que eles tanto

pregavam, enquanto os membros da nova Escola geraram grandes quantidades de estudos

econômico-históricos, deixando, porém, de relacioná-los com o programa originalmente

estabelecido por Rocher em 1843.37 Mas há que se observar um elemento de continuidade

entre as duas Escolas: o traço evolucionista.

Gustav Schmoller, fundador da Escola mais jovem, apresentou-se como o paladino de

uma nova era científica. Propôs abandonar os “velhos dogmas”, substituindo a economia

política clássica por uma ciência social unificada, “que por meio de investigações históricas

cumulativas colocaria fatores econômicos em seu ‘contexto total’.”38 As leis gerais e os

35 TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p. 7-8. 36 ibid. p. 8-9. 37 ibid. p. 9. 38 NAFISSI, M. Ancient Athens & Modern Ideology. Value, theory & evidence in historical sciences. Max

Weber, Karl Polanyi & Moses Finley. London: Institute of classical studies, 2005, p. 22.

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conceitos, em vez de se constituírem ponto de partida, seriam os resultados dos estudos

históricos refletindo a complexidade da realidade empírica. A ciência econômica deveria,

portanto, ser uma ciência indutiva. Para Schmoller, só é possível compreender a vida

econômica de uma nação “no contexto das instituições, dos padrões sociais e das atitudes

culturais em que ela se desenvolveu.”39 Como estas condições estão sujeitas às mudanças no

tempo, seu estudo requer mais as técnicas do historiador do que a dos cientistas naturais. Sem

excluir completamente as generalizações, estas, no entanto, deveriam

basear-se em observações meticulosas e inicialmente assistemáticas das condições reais de produção e comércio em vários países e períodos.(..) Neste sentido, o procedimento devia ser mais puramente “empírico” do que o dos economistas ingleses.40

Na verdade, Schmoller acreditava que a pesquisa dedutivo-histórica prepararia as

bases de uma ciência social dedutiva universal. As objeções metodológicas teóricas de

Schmoller à economia política clássica eram amparadas por oposições políticas. Ele e seus

discípulos faziam objeções às proposições sobre as economias nacionais em diferentes

períodos históricos com fundamento nos pressupostos axiomáticos extraídos da teoria clássica

inglesa. Viam nessas teorias parte de uma ética utilitarista peculiar do individualismo

empresarial. Daí sua crítica à subordinação dos interesses sociais e políticos às exigências da

indústria e do comércio, sem deixar lugar para aspectos intelectuais e culturais, isto é,

aspectos “não-produtivos” da atividade humana. Isto explica sua ênfase metodológica no

contexto não econômico da vida econômica, não aceitando que “o homem econômico”

imponha suas preferências ao restante da nação.41 Schmoller identificou-se não somente com

uma Alemanha reunificada, mas com a dominação prussiana. Em 1872, Schmoller, Adolph

Wagner e Lujo Brentano fundaram a Associação de Política Social, cujo objetivo era

estimular as discussões acadêmicas dos problemas econômicos e sociais da época, de um

ponto de vista ético, visando à reforma social. Para eles, os vocábulos “utilitarismo”,

“materialismo” e “interesses particulares” (Sonderinteressen) quase sempre tinham

conotações negativas. À frente do jornal mais importante de política econômica, Jahrbuch

für Gesetzgebung, Verwaltung und Volkswirthschaft im Deutschen Reich, Schmoller

procurou encontrar uma base comum entre os acadêmicos para reforma das relações sociais,

39 RINGER, F. op. cit., p. 143 40 ibid., p. 142-143. 41 idem.

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uma posição que pudesse influenciar a opinião pública. As divisões sociais da Alemanha

recém-unificada já se afirmavam como uma ameaça à jovem nação, e somente o Estado

estava em uma posição de reduzir a tensão social e encorajar a unidade nacional, por se

manter acima dos interesses egoístas de classe. Os escritos de Schmoller são distintos de seus

predecessores por seu foco nas forças sociais e econômicas, fundamentadoras do

desenvolvimento do Estado alemão, em vez do foco na discussão contemporânea de comércio

e salários. A investigação histórica e comparativa das condições financeiras, agrárias ou

industriais estava ligada às forças de industrialização e ao papel do Estado em moderar os

efeitos negativos do progresso econômico. Esta abordagem estimulou Lujo Brentano a se

debruçar sobre as uniões britânicas de comércio e comparar os altos salários britânicos com as

reduzidas horas de trabalho das uniões alemãs. Concluiu que o progresso econômico só seria

possível com a redução das horas de trabalho. Os economistas acadêmicos da geração de

Schmoller estavam mais interessados pelos estudos empíricos deste tipo e prestaram pouca

atenção aos pontos mais sutis da teoria econômica.42 Tencionavam assumir uma posição

intermediária entre o capital e o trabalho, tentando superar tanto o “materialismo” marxista

quanto o “egoísmo” empresarial. Com o fito de atingir esses fins, quase todos eles acabaram

por “reconhecer uma justificativa para a interferência do Estado na vida econômica”, para

usar a formulação de Brentano.

Uma divisão entre os intelectuais que tinham vivenciado a unificação emergiu da

Associação de Política Social. Uma geração mais jovem, mais interessada na desintegração

social e política dos anos 1880 e 1890 – Eugen von Bortkiewicz, Carl Grünberg, Max Sering,

Ferdinand Tönnies e, decerto, Max e Alfred Weber – estava mais aberta aos argumentos

teóricos, embora não deixasse a investigação empírica detalhada de lado. Os trabalhos de

Schmoller, contudo, levaram a um acirramento das discussões sobre a relação entre teoria e

História e, conseqüentemente, entre teoria e economia política histórica. Sua orientação

metodológica abriu cada vez mais um fosso entre uma perspectiva nomológica da Economia

política e outra empirista da História. Tal perspectiva resultou em questionamentos de suas

teses, principalmente daqueles que estavam mais preocupados com a teoria econômica. O

primeiro questionamento sério das tradições da Associação de Política Social foi feito pelos

austríacos Carl Menger, E. von Böhm-Bawerk e F. von Wieser. A famosa “controvérsia dos

métodos” (Methodenstreit) irrompeu em 1883, quando Menger publicou Untersuchungen

über die Methode der Sozialwissenschaften und der politischen Ökonomie insbesondere

42 TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p.9-12.

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(Investigações acerca do método das ciências sociais com referência especial à economia), em

que criticava o caráter antiteórico da Escola Histórica Alemã – Schmoller e seus discípulos –

e ressaltava a necessidade da análise teórica.43 Os trabalhos de Menger apresentavam-se como

um contraponto à Escola Histórica de Teoria Econômica e às propostas historistas. Mais

inspirado pela Física do que pela História, Menger buscava as leis gerais, que ele acreditava

serem as mais verdadeiras para um mundo abstratamente concebido, e, opondo-se a Dilthey,

rejeitava a distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais com relação aos métodos.

Para ele, as leis universais abstratas deveriam ser chamadas de exatas e poderiam ser

aplicadas tanto ao mundo natural quanto ao social. No campo da teoria econômica, Menger

distingue as orientações exatas das “realísticas” ou históricas. A primeira está mais próxima

da Física e Química, e a segunda, da Psicologia. Apesar de negligenciar, em sua economia

exata, as determinações políticas e culturais dos fenômenos econômicos, Menger sugere que,

em todas as ciências teóricas, há uma segunda orientação, o “método realístico-empírico”, que

também visa à natureza geral, mas que funciona por meio da observação e do exame direto da

realidade empírica. Tal abordagem restringe-se à descoberta de leis empíricas, pois as leis

exatas ou absolutas estão sob o domínio da abordagem exata. Assim, Menger delimita o

método dos teóricos econômicos e o dos economistas históricos – duas orientações de

pesquisa que não se complementam, pois revelam a compreensão de campos diferentes da

economia. Estavam estabelecidos os cânones da teoria marginalista, que tenta aprofundar os

dogmas da economia clássica e procura redefinir as fronteiras entre a Economia teórica e a

História econômica.44

O pensamento econômico alemão parece apresentar três aspectos comuns e relevantes:

historismo, institucionalismo e intervencionismo, os quais parecem ultrapassar os limites dos

autores da Escola Histórica de Teoria Econômica no século XIX, tendo ressonância nos

trabalhos de Marx, apesar do caráter crítico a ela. O Historismo, como até agora viemos

demonstrando, caracteriza-se pela presença da História nos diversos trabalhos econômicos.

Como veremos mais à frente, esta visão assume, para alguns, um corolorário acentuadamente

empirista, para outros, nem tanto. O institucionalismo é um contraponto à idéia de que as leis

universais da economia eram aplicáveis à realidade alemã, em razão das particularidades

institucionais do povo alemão. Diferentemente da Inglaterra, o pensamento econômico

alemão não foi gestado sob o domínio da instituição básica dos tempos modernos - o Estado

nacional unificado. Compostas por diversos reinos e principados, as instituições estatais – 43 RINGER, F.,op. cit., p. 145-150. 44 NAFISSI, M. op. cit., p. 27-30.

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exército, burocracia e absolutismo – eram fortes na Prússia, principal reino da Alemanha. As

decisões econômicas estavam subordinadas à lógica expansionista prussiana, associando

crescimento econômico a poderio militar. Portanto, a existência de instituições locais e a

inexistência de outras de caráter nacional propiciaram o fortalecimento de um pensamento

econômico mais voltado para a realidade histórica e institucional, em detrimento de um

pensamento que defendesse, por exemplo, teorias liberais de livre comércio internacional,

vistas como benéficas somente para os interesses britânicos. Finalmente, o intervencionismo.

É natural que uma instituição assuma o premente papel socializador do mercado, tão

difundido entre os liberais. O Estado assumiu este papel. Apesar do aspecto difuso –

abrigando os não liberais, socialistas, positivistas – o intervencionismo constituiu-se em uma

marca distinta do pensamento alemão aos diversos tipos de laissez-faire e daqueles que

defendiam o equilíbrio do mercado.45 Estes aspectos aparecem com mais ou menos

freqüência nos trabalhos dos autores que vamos analisar, contudo são elementos que nos

ajudam a entender as suas reflexões acerca da economia antiga. É neste contexto intelectual

que se desenvolveu um fervoroso debate acerca do lugar do Mundo antigo na historiografia

alemã do final do século XIX, a controvérsia do oikos. Vejamos a seguir o quanto os

princípios da tradição histórica alemã e de seus críticos estão presentes nos trabalhos de Karl

Bücher e Eduard Meyer, os dois principais protagonistas desse fervoroso debate.

2.4 KARL BÜCHER E OS ESTÁGIOS ECONÔMICOS

Maurice Godelier considerou o famoso ensaio do economista histórico Karl Bücher,

Die Entstehung der Volkswirtschaft (As origens da economia nacional), de 1893, como “um

evolucionismo empobrecido.”46 É uma denominação, de fato, verdadeira, para uma coletânea

que se propõe a historicizar a contribuição de vários autores no desenvolvimento da

antropologia econômica, mas oculta a importância desse autor no limiar das discussões sobre

a “economia antiga” na Alemanha. Dez anos depois da publicação do trabalho de Menger,

mas, em meio aos acirrados debates do Methodenstreit, o ensaio de Bücher era uma tentativa

de reconciliar os preceitos nomológicos abstratos da Escola Austríaca e da economia política

inglesa com o Historismo, que, apesar de ainda dominante nas universidades alemãs, já

45 FONSECA, P.C.D. O pensamento econômico alemão no século XIX. In: HELFER, I. (org). Os pensadores

alemães dos séculos XIX e XX. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 9-19. 46 GODELIER, M. Antropología y economía. Barcelona: Anagrama. 1976, p. 85.

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começava a sofrer ataques de alguns setores da intelectualidade das ciências da cultura. Tendo

as teorias evolucionistas – já desenvolvidas em trabalhos de economistas históricos anteriores

– como elemento fundamental de seu trabalho, Bücher afirma em seu ensaio que o

estabelecimento de estágios econômicos é um procedimento metodológico indispensável,

pois, na medida em que os fenômenos e as instituições econômicas se modificam lentamente

no curso dos séculos, o teórico da economia política deve se restringir a conceber o

aparecimento da evolução nas suas fases principais e omitir os períodos de transição onde

todos os fenômenos estão em vias de formação. Só assim é possível achar as características

fundamentais, ou as leis de evolução.47

As leis que presidem o desenvolvimento econômico só podem ser metodologicamente

descobertas, segundo Bücher, pela abstração e pela dedução lógica. O procedimento indutivo

e estatístico não é suficiente para reunir os fatos e apresentá-los de um ponto de vista

morfológico. Bücher aproxima-se da orientação exata de Menger e distancia-se dos preceitos

de Schmoller; limita, porém, a aplicabilidade da economia política clássica ao estágio da

economia capitalista moderna e preconiza a descoberta de leis específicas – evolucionistas –

às sociedades pré-capitalistas, fazendo o que Adam Smith e Ricardo tinham feito

adequadamente para as economias modernas. As condições de existência de épocas

desaparecidas e das antigas concepções econômicas não serão jamais reconstruídas de

maneira racional enquanto se utilizarem categorias da teoria econômica moderna amparadas

na circulação de bens.

Assim somente as pesquisas histórico-econômicas me parecem poder fecundar as teorias da economia política atual e vice-versa e não há outro meio para chegar a conhecer de maneira mais íntima as leis que presidem o desenvolvimento econômico e a chegada da economia nacional.48

Bücher se volta então contra os seus antecessores da Escola histórica, particularmente

List e Hildebrand, que, apesar de utilizarem os métodos evolucionistas, caíram no erro de

utilizar as categorias da economia política clássica, isto é, da economia nacional moderna.

Bücher os criticava por acreditarem que em todas as épocas havia uma economia nacional

baseada no princípio da troca de bens e que só as formas de produção e de circulação

variavam ao longo do tempo.

47 BÜCHER, K. Les origines de l’économie nationale. In: _____________. Études d’histoire et d’économie

politique. Bruxelas e Paris: Henri Lamertin Éditeur e Félix Alcan Éditeur, 1901, p. 44. 48 BÜCHER, K. op. cit., p. 114.

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Estavam preocupados em mostrar que a diversidade de medidas político-econômicas ao longo do tempo justifica as características diferentes da produção ou da circulação de bens e que, na época atual, uma ordem de coisas diferentes reclama medidas diferentes.49

Para Bücher, a economia política clássica é uma teoria fundada em uma economia

com divisão do trabalho e circulação de bens, ou seja, fundada na economia nacional. Esta

doutrina estuda os fenômenos e as leis da divisão do trabalho, do capital, dos preços das

coisas, do salário, da renda fundiária, do lucro e do capital. Assim, para os economistas sob a

influência de Adam Smith e Ricardo, não se pode encontrar um regime sem circulação de

bens.

Feitas estas advertências, Bücher estabelece que, em qualquer pesquisa econômica,

para compreender a economia de um povo de uma época recuada, deve-se perguntar se esta

economia é ou não nacional e se os fenômenos que ela determina são ou não análogos àqueles

que aparecem na nossa atual economia à base de trocas. Estas questões remetem ao

verdadeiro tema que o autor se propõe a investigar: a economia nacional (Volkswirtschaft),

definida pelo aparecimento de instituições e procedimentos que requerem a satisfação de

necessidades de todo um povo. Esta economia se subdivide em uma infinidade de economias

particulares e interdependentes ligadas pelo comércio.50

Para entender o contexto histórico da evolução da economia nacional, é necessária

uma abordagem que remeta as categorias da economia clássica ao seu devido lugar temporal,

que adote os preceitos historistas de combate ao anacronismo e que utilize a evolução

histórica como teoria dirigente.

Um estudo penetrante fundado sobre as condições de existência do passado e não julgando os fenômenos econômicos desaparecidos com nossas idéias atuais chegará à conclusão que a economia nacional é o produto de uma longa evolução histórica que abrange milhares de anos, que não nasce antes do Estado moderno, que antes de sua aparição a humanidade conheceu longos períodos econômicos que não se pode designar como de “economia nacional”, pois naquela época as relações de troca ou não existiam, ou revelavam a forma de trocas de produtos e de serviços.51 (o grifo é do autor)

49 ibid. p. 47. 50 ibid. p. 43. 51 ibid., p. 48.

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Para compreender esta evolução, é necessário, portanto, entender as características

essenciais da economia nacional e penetrar na organização íntima dos estágios econômicos

que a precederam. Isto significa se preocupar com as origens, causas e transformações de uma

dada organização econômica ao longo do tempo. Este ponto de vista não pode ser aquele da

relação entre produção e consumo de bens, ou do caminho que os bens percorrem para passar

do produtor ao consumidor, pois estes são característicos da economia nacional.

A evolução econômica, pelo menos a dos povos da Europa central e ocidental, se

divide em três estágios: economia doméstica fechada; economia urbana; e economia nacional.

A presença ou ausência da troca, definida pelas características da economia nacional, é o fio

condutor de comparação entre os estágios. No primeiro estágio, economia doméstica fechada,

não há troca, pois a produção é pessoal e os bens são consumidos no mesmo local onde são

produzidos. No segundo estágio, economia urbana, a troca é direta, pois os bens passam do

produtor direto para o consumidor. O terceiro estágio, economia nacional, é o período de

circulação de bens, pois os bens passam geralmente por uma série de economias antes de

serem consumidos. Bücher acreditava que, com a utilização desses estágios, era possível

delimitar as leis de evolução, ou melhor, as instituições econômicas “normais”, ou típicas de

cada estágio.52

Abordaremos mais detalhadamente a economia doméstica fechada, cuja ascensão se

dá com o fim do estágio tribal primitivo. Nesse tipo de economia, cuja produção é

determinada pelas necessidades de consumo de seus membros, toda a circulação, da produção

ao consumo, se efetua no círculo fechado da casa (da família, da tribo). Produção e consumo

formam um processo único, indivisível e não se separam da aquisição dos bens de

manutenção da casa.53 Há, portanto, coincidência entre a comunidade de produção e a de

consumo. Todos os produtos têm valor de uso.

Uma economia dessa natureza depende, inicialmente, do solo de que ela dispõe. Os

membros da casa não só fabricam os produtos que necessitam, como, também, transformam

as matérias-primas para sua própria utilização. “Tudo isto gera uma multiplicidade de

ocupações e exige uma diversidade nas capacidades e conhecimentos que o homem moderno

não tem uma idéia exata.”54 Tais procedimentos de trabalho atendem muito mais às

necessidades de cooperação do que à divisão de trabalho entre os indivíduos. Esta cooperação

52 ibid., p. 49. 53 ibid., p. 50 54 ibid. p. 51

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está amparada no parentesco de sangue. Cada grande família se compõe de muitos grupos de

parentes. Um homem que não tem família é um pária. É no interior das grandes famílias que

se dá a união e divisão do trabalho.55

O crescimento e refinamento das necessidades do círculo familiar foram supridos pelo

alargamento artificial dos seus membros, o que foi realizado pela admissão e incorporação de

elementos estrangeiros. As instituições da escravidão e da servidão foram um meio de

conservar a economia doméstica fechada com a organização do trabalho então existente e de

atender ao aumento das necessidades. O trabalho estrangeiro, na economia doméstica fechada,

com respeito ao produtor, se encontrava em uma relação durável de contrato, e não em uma

relação de serviços. A economia dos gregos, cartagineses e romanos caracterizava-se como

uma economia doméstica fechada com utilização do trabalho estrangeiro. Segundo Nafissi,

Bücher traça uma linha divisória no Mundo antigo com a introdução da escravidão.

O mundo clássico é visto como primitivo não somente porque representa o primeiro, e conseqüentemente o último estágio menos desenvolvido na ascensão da economia nacional, mas também, porque conserva a instituição essencial do estágio tribal universal, embora de forma menos desenvolvida. Grécia, Cartago e Roma requerem uma designação diferente como um resultado da introdução de trabalho servil “estrangeiro”, e registram a inauguração do processo evolucionário de desenvolvimento econômico culminando na “economia nacional” moderna.56

A designação de economia antiga como economia doméstica é uma influência de Karl

Rodbertus, que apresentou a “teoria do oikos” em 1860. O oikos, a casa, o household, a

unidade da constituição econômica não era somente a habitação, era também o grupo de

homens que formavam a comunidade econômica, os oiketas, com exceção dos escravos da

casa. O oikos era uma espécie de modelo ideal, sem uma precisa identificação histórica,

embora tendesse a remeter à grande propriedade escravista da época romana.

Este termo servia, sobretudo, para definir conceitualmente a articulação e o funcionamento estruturais de uma economia natural, sem comercialização ou circulação difundida de mercadorias e dinheiro; e atuava como indicador quase simbólico de uma especificidade produtiva e social que o desenvolvimento moderno teria completamente anulado.57

55 ibid., p. 52-53. 56 NAFISSI, M. op. cit., p, 41. 57 SCHIAVONE, A. Uma história rompida. Roma Antiga e Ocidente Moderno. São Paulo: Edusp, 2005, p. 76.

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Rodbertus procurou mostrar em seu trabalho sobre crise e superprodução que, na

economia moderna, “a receita social, a fonte da qual é o tempo de trabalho gasto no produto

social, é dividida em arrendamento e salários.”58 Enquanto o arrendamento, aí incluídos os

juros e os lucros (industriais e comerciais), tendia a crescer, os salários tendiam a diminuir,

pois, apesar do aumento de produtividade do trabalho, os salários se mantinham em um nível

de subsistência. Assim, “o capital e a produção aumentam sem haver um número suficiente de

aquisições pelos produtores, pois os capitalistas não desejam consumir mais e os

trabalhadores não têm condições.”59 O resultado disso foi uma crise de superprodução e

subconsumo, só resolvida com a intervenção do Estado, que poderia garantir aos

trabalhadores um retorno adequado por seus trabalhos. Este socialismo de Estado ajusta-se

muito mais à monarquia prussiana do que às idéias de Marx e Engels, que o acusaram de

reformista.60

Rodbertus tinha em mente uma filosofia gradualista da História Econômica Universal.

Para ele, o único meio para se chegar a uma reconstrução verossímil “da vida econômica da

Antiguidade clássica consistia em realçar seu drástico atraso com relação às experiências

produtivas, comerciais e financeiras da época moderna.”61 Em seu trabalho sobre a

Antiguidade, Rodbertus contrapôs o modelo do capitalismo moderno, com sua complexa

estrutura de taxas – taxação de rendimento pessoal e de propriedade – correspondendo a

várias divisões de arrendamento e várias classes sociais, em que os vários estágios de

produção estão ligados por um processo de compra e venda, à economia do oikos que requeria

uma forma simples de tributação realizada pelo senhor do oikos sobre o produto social.

Assim, na economia do oikos, freqüente nas sociedades antigas, a compra e a venda não se

separavam, pois em nenhum lugar as mercadorias trocavam de mãos. Como os dividendos

nunca trocavam de mãos, não havia divisão dos dividendos nacionais em várias categorias

como na era moderna, não havendo necessidade de dinheiro para conduzir o dividendo

nacional de uma fase à outra da produção. Portanto, o oikos define a Antiguidade como um

estágio distinto, e “o movimento de uma economia amplamente autárquica e relativamente

primitiva para uma economia organicamente ligada, complexa e diferenciada caracterizava a

longa atração entre os estágios antigo e moderno da história mundial.”62

58 RODBERTUS, K. Overproduction and crises. Apud NAFISSI, M. op. cit., p. 36. 59 idem. 60 idem. 61 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 77. 62 idem.

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42

O conceito de oikos como tipo ideal, salientado por Weber em trabalhos posteriores,

foi ainda mais acentuado nas pesquisas de Bücher, que o sistematizou em um contexto

interpretativo mais amplo. Pela primeira vez, o estudo da economia antiga foi articulado às

pesquisas etnográficas sobre as sociedades primitivas, que viviam à época um grande

impulso.

Bücher enfatizou, em seu modelo, o papel dos escravos na Antiguidade, tanto em

Atenas como em Roma, onde a organização econômica estava fundada no trabalho escravo,

responsável por todas as tarefas, de pedreiro a oficial de polícia, de arauto nas assembléias

públicas a contador do Estado. Por outro lado, as relações econômicas entre o senhor

territorial e seus homens não se encontravam em nenhuma categoria da economia de troca,

pois nesta economia dominial não havia preço, salário, renda, aluguel e lucro de capital. As

manifestações que se produziam eram de natureza particular. Mesmo o desenvolvimento

experimentado com a incorporação de trabalhadores não livres não era suficiente para atender

a todas as necessidades, pois, ou as necessidades são imperfeitamente satisfeitas, ou o

excedente de bens produzidos não é consumido pela economia que o produziu.63

Mesmo com a introdução das trocas e do dinheiro no Mundo antigo, resultado de um

processo evolutivo, a estrutura íntima da vida econômica não foi alterada. O comércio de

trocas se desenvolveu como resultado da limitação ou da ausência de certos produtos em

certos lugares levando a uma procura em territórios vizinhos. Alguns artigos serviam como

meios de troca universais: peles, tecidos, gado, metais preciosos, em seguida, apareceram o

dinheiro, a venda ambulante, os mercados e, finalmente, os traços de uma troca de caráter

creditício. Estas transformações, entretanto, modificaram de forma superficial a economia

doméstica fechada, pois, nem na Antiguidade nem na Idade Média, os produtos

indispensáveis às necessidades dos trabalhadores se tornaram objetos de uma troca regular.

Tanto os produtos naturais, quanto os industrializados de valor considerável eram artigos

raros de comércio. E quando tais produtos se tornaram de consumo geral – como o âmbar, os

objetos de metal e os produtos de cerâmica –, eles eram produzidos em quantidade superior às

necessidades gerais para serem trocados por produtos de valor equivalente com outras

economias, que atendessem também às necessidades mais gerais. São, sob estas condições,

que se encontravam os mercados de comércio de alimentos na Antiguidade clássica.64 A idéia

63 BÜCHER, K. op.cit., p. 63-69. 64 ibid. p. 70-71.

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de troca equivalente, já esboçada aqui, seria posteriormente um dos argumentos centrais do

modelo polanyiano, para se contrapor aos formalistas.

Mesmo o uso aparentemente difundido do dinheiro não contradiz este modelo. O

dinheiro não era apenas um instrumento que facilitava a troca, ele era também medida de

valor, meio de pagamento e de conservação das riquezas. O dinheiro, na economia doméstica

fechada, era, em grande parte, o retorno de um contra-valor provisório. Seu papel principal

não era o de servir de intermediário nas trocas, mas conservar os valores e as medidas e servir

como meio de transmissão. Os empréstimos serviam apenas para os propósitos de consumo.

Numerosos pagamentos se faziam sem que fosse questão de troca, por exemplo: multa em

dinheiro, tributos, impostos, identidades, presentes para honrar uma pessoa ou o pagamento

de hospitalidade. Estes pagamentos originariamente eram feitos com trigo, carne bovina,

tecido, sal, gado e escravos, indo diretamente para a casa daquele que os recebia. Esse papel

limitado do dinheiro explica por que todas as antigas formas de numerário circulavam sob a

forma de emprego, destinado prioritariamente à satisfação das necessidades de cada

economia, em detrimento do uso para troca por outros produtos de consumo. Enquanto valor

estável, o numerário formava um tesouro, particularmente os metais preciosos, que tomavam

a forma de objetos de adorno grosseiros. Portanto, os metais preciosos poderiam servir como

medida de valor de diferentes bens em situações de troca.65

Em consonância com a teoria de Rodbertus, Bücher afirma que não se encontrava no

Mundo antigo nenhum traço da economia nacional com divisão do trabalho, pois não havia

classes profissionais, não havia empresas nem capital no seio de um aprovisionamento de

bens para servir à aquisição de novos bens, sequer eram encontradas as categorias de capital

industrial e comercial, capital de empréstimo e capital de uso. O que na teoria moderna se

chama de capital circulante, era, na economia doméstica, um simples fundo de utilização que

atendia às necessidades do consumo. Desta forma, no curso regular dessa economia, não

havia mercadoria, preço, circulação de bens, repartição de rendimento e, conseqüentemente,

como espécies de rendimento, salário e lucro dos empresários.66

Apesar da renda fundiária já ter começado a se separar do produto da terra, ela não

aparecia em nenhum momento totalmente pura e era ainda confundida com outros elementos

da renda. A renda na economia moderna é um resultado da troca; na economia doméstica

fechada, era a soma de todos os bens de consumo que produzia a economia, era tudo que o

65 ibid. p. 72-73. 66 ibid. p. 74.

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senhor do oikos retirava de seus domínios. A idéia de um imposto sobre os rendimentos era

inconcebível naquela economia. O imposto público direto era, em regra geral, uma

contribuição sobre a fortuna. O Estado e as cidades tomavam a fortuna dos particulares e lhes

obrigam a intervir diretamente na construção de navios, na organização de festas e nas

construções públicas. Assim, renda e fortuna formavam um todo, não separado e separável;

contudo a renda fundiária começava a aparecer.

Bücher procura responder com os diversos estágios, fundamento do Historismo da

Nationalökonomie, aos teóricos que colocavam a História em um plano subalterno, mas com

um avanço em relação aos trabalhos de List e Hildebrand, ao não atrelar os diversos tipos de

economia aos períodos históricos e ao não usar categorias da economia nacional nos estágios

anteriores. A economia doméstica, a urbana e a nacional designam uma gradação na qual os

diversos graus não se excluem. Uma espécie de economia sempre predominou aos olhos de

seus contemporâneos. Dessa forma, não se exclui a possibilidade de se encontrarem

elementos constitutivos da economia urbana e mesmo da economia doméstica fechada nas

sociedades em que predominava a economia nacional. Se é possível, porém, encontrar traços

de economias mais simples nas economias mais complexas, o contrário não é mencionado.

Com isso, Bücher já traçava um quadro evolucionista menos linear que seus antecessores e

procurava estabelecer um modelo evolutivo que se constituísse em um meio termo entre os

rígidos preceitos das teorias universalistas abstratas da economia política clássica e a não

menos rígida receita indutiva de acúmulo de informações de Schmoller. Os estágios

econômicos são uma tentativa de encontrar as “leis” gerais de desenvolvimento econômico,

partindo da dedução ou do isolamento de elementos, por meio de informações históricas. A

instituição dos estágios econômicos é a única maneira de explicar os resultados das

investigações de História Econômica. Bücher procurou historicizar a economia política e

teorizar a História. Contudo estas informações históricas, envolvidas em sérios equívocos, e a

unilateralidade de sua tese, serão fortemente combatidas pelos historiadores profissionais,

liderados por Eduard Meyer.

2.5 EDUARD MEYER E A TEORIA DA HISTÓRIA: O PARADOXO ENTRE O

HISTORISMO E O ANACRONISMO

O debate sobre o oikos começou no dia 20 de abril de 1895, no Terceiro Congresso de

Historiadores Alemães, quando Eduard Meyer (1855-1930) fez críticas contundentes ao

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modelo evolucionista de Karl Bücher. O foco de suas críticas era o primeiro estágio, o dos

households, apontado por Bücher como predominante até o final do mundo antigo. Esta

crítica representava, em primeiro lugar, uma reação às teorias evolucionistas advindas tanto

de economistas históricos quanto de historiadores, como, por exemplo, Karl Lamprecht, e, em

segundo lugar, o desejo dos historiadores profissionais, no caso de Meyer, um “ortodoxo”,

segundo a denominação de Ringer, de reafirmar seu “lugar” no campo dos estudos históricos.

Eles não aceitaram uma teoria, formulada por um economista, que estabelecia estágios

econômicos para longos períodos temporais, sem considerar as diversidades dos fatos

históricos contidos nos períodos. Na verdade, a teoria evolucionária de Bücher e o rigor de

sua teoria serviram para reafirmar as fronteiras entre a História e as outras ciências da cultura.

Eduard Meyer nasceu em Hamburgo em 1855. Foi professor e depois reitor da

Universidade de Berlim a partir de 1918. Meyer escreveu sobre diversas sociedades do mundo

antigo – Grécia, Roma, Egito, Mesopotâmia, Israel – enfocando, em geral, a evolução

econômica e política de tais sociedades. Foi um dos historiadores mais atentos às descobertas

arqueológicas e papirológicas de seu tempo, além de ser um dos mais bem preparados para

enfrentar as questões metodológicas e teóricas da ciência histórica. Seus trabalhos

representam uma defesa dos preceitos historistas, já, naquela época, sob questionamentos de

pensadores das mais diversas áreas das ciências da cultura que difundiam teorias

evolucionistas. Seus escritos apresentam um traço marcante: reação a qualquer tentativa de

aplicar à História os preceitos das ciências naturais e oposição à idéia de um método único

para a História como garantidor do estatuto científico. A prática do historiador, segundo

Meyer, ajustar-se-ia a seus preceitos imanentes, e a técnica combinar-se-ia com a sua

atividade criativa, fator determinante do conhecimento.67 Meyer dirigia seus ataques aos

defensores de uma ciência histórica, que perseguiam o descobrimento de leis e sua

demonstração nos fenômenos concretos estudados, conforme os preceitos das ciências

naturais. Os economistas Karl Bücher e Karl Rodbertus e o historiador Karl Lamprecht eram

os principais alvos desses ataques. Bücher e Rodbertus eram criticados por tentarem reduzir

“a uma fórmula única o segredo do desenvolvimento histórico com o esquema da economia

doméstica, da economia urbana e da economia nacional.” 68 Lamprecht era condenado por

enfatizar os fenômenos de massa, nos quais o singular e o individual davam lugar à exposição

67 MEYER, E. El historiador y la historia antigua. Estudios sobre la teoría de la Historia y la Historia

economica y política de la Antigüedad. México - Buenos Aires: Fondo de cultura económica, 1955, p. 3-4. 68 ibid., p. 9.

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das grandes mudanças típicas, caracterizadas não por uma determinada manifestação, mas

sim, por muitas.

Meyer, contra-argumentando, enfatiza a importância do singular e do individual na

História e não aceita a oposição entre casualidade e necessidade, pois todo real, pelo simples

fato de ser, é necessário. Dessa forma, a decisão da vontade de um homem e um pensamento

são tão necessários quanto uma sensação qualquer, formando parte da cadeia de causa e

efeito, associada, pelo autor, a fenômenos psíquicos, representados não como algo já

realizado, mas como um processo em desenvolvimento, como resultado de uma entre infinitas

possibilidades.69 Em conformidade com Ranke, Meyer afirma que os fatos concretos são o

centro de gravidade da História, e, como esses fatos já não existem mais no momento em que

o historiador os investiga, resta analisar suas repercussões. É histórico, portanto, o que produz

efeitos. O interesse e a relevância dos acontecimentos são proporcionais a sua repercussão:

quanto maior a repercussão no presente, maior o interesse histórico por eles. Nesta

perspectiva, o interesse histórico recai sobre os povos civilizados, pois “estes povos e suas

culturas têm influído e seguem influindo diretamente sobre o presente muito mais que os

demais.”70

A História política assume uma posição primordial, tendo o Estado como organização

decisiva da vida do homem, a tal ponto que qualquer modificação em seu interior influi de

modo determinante sobre a evolução econômica e social.71 Deixando clara sua concepção

idealista e conservadora em relação às concepções da História mais voltadas para o social, que

naquele momento emergiam, Meyer sublinha a importância da vontade individual na criação

de fenômenos. Daí, a ênfase às decisões tomadas pelos personagens históricos e “a energia

espiritual que levou aos que as adotaram a impô-las contra todas as tendências em contrário e

a submeter estas à sua vontade.”72 O estudo das personalidades, porém, só interessa na medida

em que tenham deixado uma marca histórica. Meyer conclui que o geral não é histórico por si

mesmo, mas somente quando associado a um acontecimento concreto. É, na verdade,

premissa e não objeto da História.

O geral se torna histórico quando passa a formar parte de um acontecimento concreto e cobra uma forma individual (singular), entrando assim em um plano de interdependência e de conflito com os demais fatores da vida

69 ibid., p. 13-15. 70 ibid., p. 45. 71 ibid., p. 36 72 ibid., p. 17.

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histórica, que são os propriamente individuais. Todo o processo de desenvolvimento histórico discorre através destes conflitos, destes vínculos de interdependência. O geral não é nunca mais que a premissa e suas conseqüências são essencialmente negativas ou, para dizê-lo com maior precisão, restritivas: estabelecem os limites dentro dos quais se encerram as infinitas possibilidades das formas históricas concretas. Dos fatores superiores, individuais, da vida histórica depende qual destas possibilidades chega a ser realidade, isto é, se converte em um fato histórico.73

Do exposto acima, é possível perceber algumas características historistas: a

importância dos fatos, sem questionar a origem das fontes; o papel primordial da História

Política; o interesse pelas grandes civilizações; o caráter idealista de suas convicções acerca

do conhecimento. O critério de seleção do objeto histórico de Meyer parece entrar em

contradição com a oposição a qualquer tipo de anacronismo na investigação histórica, pois

segundo ele, “a seleção responde ao interesse histórico que o presente põe em qualquer efeito,

em qualquer resultado do desenvolvimento e que o leva a averiguar as causas e os fatos que o

têm produzido.”74 Em tal afirmativa, está presente a idéia de que numa História da

Antiguidade, por exemplo, só têm importância aqueles fatos que ainda hoje possuem uma

significação causal em nossa situação atual, seja no setor político, econômico, social, ou em

qualquer outro elemento de nossa vida cultural, cujos efeitos sejam percebidos no presente.

Contudo, mais próximo de uma posição historista, Meyer também afirma, em concomitância

com o método filológico, que, em relação ao passado, devemos imaginar alguns de seus

aspectos como atuais. Esta contradição, um dos principais alvos das críticas de Weber, como

veremos mais à frente, também pode ser explicitada por contradições de natureza similar às

que Ranke viveu, já que o contexto da ciência histórica estava estreitamente associado a uma

ideologização da História a serviço das aspirações nacionais burguesas.

Diante das considerações já feitas, podemos apresentar a seguinte questão: se os

defensores das teorias dedutivas utilizavam as categorias do capitalismo para entendimento

das sociedades em todas as épocas, em uma perspectiva – segundo os membros da Escola

Histórica pós-Schmoller – anacrônica, como se explica a hipótese de historiadores mais

próximos do Historismo enxergarem, no mundo antigo, a presença do capitalismo? Isto nos

parece paradoxal. Um paradoxo que só pode ser esclarecido à luz dos argumentos teóricos dos

próprios autores investigados. No caso de Meyer, o capitalismo responde a uma seleção do

presente, pois, naquele momento, seus efeitos eram sentidos em todos os aspectos da vida

73 ibid., p. 43. 74 ibid., p. 34

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social. Para ele, a investigação histórica procede sempre à base de dedução de efeito e causa.

Portanto, a premissa é sempre a mesma: apreciar a realidade de um efeito, para investigar,

partindo dele, suas causas. Daí a necessidade de investigar as causas do capitalismo, que não

remontam necessariamente ao mundo moderno, mas a épocas muito mais remotas. Ao

ressaltar os aspectos capitalistas da sociedade antiga, Meyer procura desmontar o edifício

teórico construído pelos economistas históricos evolucionistas, representados por Bücher e

Rodbertus, que também salientavam a importância do capitalismo (ausente do mundo antigo),

além do Estado nacional, só que sob uma perspectiva evolucionista linear, apontada por

Meyer como ahistórica, pois utiliza conceitos que não correspondem à realidade do mundo

antigo. Parece-nos, contudo, que a dedução não está totalmente ausente de seu arcabouço

teórico, o que o aproxima de Bücher. O que está ausente é a procura por leis gerais. Sua

oposição mais contundente a Bücher se dá no estabelecimento dos estágios econômicos.

Meyer, entretanto, seria vítima de um outro tipo de evolucionismo, o cíclico.

2.6 MEYER E A EVOLUÇÃO ECONÔMICA DA GRÉCIA ANTIGA

Em sua conferência na Terceira Assembléia de Historiadores Alemães em Frankfurt,

Meyer pretendia demonstrar que as características da economia nacional estabelecidas por

Bücher estavam presentes em sociedades anteriores àquelas do mundo moderno. Naquela

conferência, Meyer abordou o desenvolvimento econômico de várias civilizações antigas, do

Oriente e do Ocidente, sempre procurando confrontar a realidade, os fatos concretos de tais

sociedades com a “economia do oikos” de Rodbertus, defendida por Bücher. Da sua análise,

abordaremos apenas a sociedade grega, suficiente para esclarecer questões relacionadas às

concepções historistas e às teses modernistas.

No debate com Bücher, Meyer opôs-se à idéia de uma evolução linear da História

dividida em três grandes períodos, Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna, associados

respectivamente à economia doméstica, economia urbana e economia nacional. Ele defendeu

uma outra forma de evolução histórica, não linear, mas, segundo sua visão, homóloga e

paralela ao mundo moderno, que apresenta, em um “plano muito reduzido e sob formas

muitas vezes distintas, as mesmas influências e os mesmos antagonismos que dominavam o

mundo moderno.”75 Meyer estava persuadido que o mundo clássico coincidia com uma

75 ibid., p. 142.

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exaltação incontrolada de “modernidade” em que, anulando todas as diferenças, apresentava

uma economia já completamente desenvolvida tanto no plano industrial quanto capitalista e

com realce em um Estado onipresente e totalizante.76

Não havia mais qualquer vestígio do sistema primitivo do oikos, nem de uma difundida economia natural. As condições gregas ou romanas não necessitavam, para serem descritas, de qualquer conceitualização específica. Podiam-se usar tranquilamente noções como a de fábrica e de operários, e reivindicar uma semelhança completa entre a economia antiga e a contemporânea.77

Enquanto para Bücher, a troca e o comércio, pensados segundo as categorias do

mundo moderno, inexistiam na economia doméstica fechada, para Meyer, eles assumiam

importância capital, sendo o comércio o fio condutor da evolução histórica grega e um dos

fatores primordiais das culturas antigas. Muito antes da civilização clássica grega, o comércio

já estava presente na civilização micênica, como mediador e agente fundamental desta

cultura, e a descoberta de monumentos dessa época acusou uma forte influência oriental e

colocou em dúvida a concepção do mundo greco-romano como um estágio unitário,

essencialmente estático.

No período retratado pelos poemas homéricos, que ele designa como Idade Média

grega, o comércio retrocedeu em favor da agricultura, refletindo uma economia autárquica da

família como forma de vida fundamental. São encontradas, nesse período, as mesmas

condições características da Idade Média cristã germânica: posição predominante da nobreza

guerreira e divisão entre estamentos hereditários; “sujeição progressiva dos camponeses que

vai das formas mais suaves de submissão ou vassalagem até a plena servidão por gleba, um

artesanato livre, porém pouco estimado;”78 abundância de servos e escravas feitas

prisioneiras, roubadas ou compradas, pela escassez de escravos, quadro típico quando a

agricultura é predominante. Assim, Meyer apresenta o primeiro contraponto às teses de

Bücher, ao afirmar que as características da economia doméstica fechada da Idade Média

grega apareceram depois da estagnação de uma época em que o comércio desempenhou papel

fundamental na cultura.

76 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 78. 77 idem. 78 ibid., p. 152.

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Comércio e agricultura aparecem como atividades antagônicas. O predomínio de uma

significa a estagnação da outra. Esse antagonismo, em muitos momentos, constituiu uma

marca da trajetória do mundo grego. O século VIII a.C. foi o embrião das grandes

transformações: constituiu-se o auge do comércio marítimo e da colonização e quando se

espalhou a indústria de cerâmica por todo o mundo grego. A introdução do comércio e do

dinheiro transformou as relações sociais e gestou o movimento revolucionário que derrubou a

nobreza. Foram realçados o descobrimento e o domínio comercial – e talvez político – de

zonas comerciais, que pressupunham a produção de mercadorias, em grande parte produtos da

terra. Uma importância muito maior adquiriram os produtos da indústria de exportação – a

indústria milesiana, corintiana, calcidiana, argólida, tebana, siciliana e eginetana. A nova

indústria reclamava o aumento da mão-de-obra. O afluxo da população para as colônias e a

“pouca inclinação de camponeses e artesãos para o trabalho fabril” levaram a uma importação

intensiva de escravos.79

O auge da economia monetária mina e desintegra as velhas relações patriarcais, o camponês vai se endividando e se arruinando, o capitalismo muda pouco a pouco a economia baseada na grande propriedade da terra. O camponês já não pode trocar o que produz pelas mercadorias de que necessita; interpõe-se o dinheiro, e os preços dos mercados são ditados pelas constelações do comércio de grande escala, pela importação de produtos de ultramar.80

O quadro apresentado pelo autor começa a adquirir uma semelhança enorme com o

início dos tempos modernos na Europa e um grande contraste com o modelo de Bücher. O

desenvolvimento do comércio e da indústria, nos séculos VII e VI a.C., propiciou o

surgimento de uma nova classe social: a dos industriais e comerciantes, além de marinheiros e

trabalhadores livres que viviam dos novos ramos produtivos. “Estes setores se unem aos

camponeses para derrubar o domínio da nobreza e instaurar o regime da burguesia.”81 A

contrário dos tempos modernos – uma das poucas diferenças que ele encontra –, a cidade era

o expoente único e exclusivo da vida política, o que levava a uma dispersão nacional em um

grande número de pequenos estados. Por isso, para os gregos, cidade e Estado eram termos

sinônimos. Com o crescimento de novos grupos sociais, a aliança entre camponeses e

comerciantes não perdurou por muito tempo. A tirania tentou, aqui e acolá, compaginar os

79 ibid., p. 86. 80 ibid., p. 87. O grifo é nosso. 81 ibid.

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interesses comerciais e agrícolas, mas sem lograr sucesso por muito tempo. O crescimento da

produção e a circulação de mercadorias – principalmente nas regiões próximas ao Mar Egeu –

e a crescente divisão do trabalho advinda da industrialização sufocaram os interesses do

campesinato. A aliança entre camponeses e comerciantes permitiu, em muitos lugares, o

surgimento de conflitos extremamente violentos.82

As condições econômicas apresentaram diversas gradações, segundo os lugares. Nas

regiões mais remotas e sem acesso às vias de comunicação, as novas condições impunham-se

lentamente, enquanto, nas costas do Mar Egeu, encontravam-se cidades com forte fisionomia

comercial e industrial. Weber iria ampliar muito esta idéia do desenvolvimento comercial na

costa. Nos lugares onde vingou o regime democrático, Atenas é o exemplo típico: os

interesses da classe dominante capitalista confrontaram-se com os interesses do partido

agrário (formado por camponeses e nobres), que sucumbiu ante o poder dos capitalistas, que,

por sua vez, fizeram uma série de concessões a uma massa proletária, formada por cidadãos

livres pobres, que procuravam crescentemente exercer maior influência no seio do Estado.

São tidos por Meyer como uma classe revolucionária, pois clamam “expulsar ou matar os

ricos, confiscar suas fortunas e repartir suas terras”.83 Mais proximidade com o limiar da

revolução industrial na Inglaterra é impossível! Vejamos uma consideração de Meyer sobre o

período, que, se aparecesse sem referência temporal, ninguém duvidaria que se tratasse da

Europa moderna.

O comércio e a exportação, e conseqüentemente a fabricação para o exterior, são os verdadeiros propulsores da economia: graças a isso crescem as grandes cidades e se concentram nelas riquezas que tornam possível o luxo e a divisão do trabalho.84

Estas transformações na sociedade grega – aumento da importância da troca e do

comércio e, conseqüente desenvolvimento da indústria e da economia monetária –, aliadas às

transformações do Estado – abolição dos privilégios políticos e de classes e implantação da

liberdade política e igualdade jurídica para todos os cidadãos, sendo esta última mais

importante que aquela –, criaram condições para a introdução e expansão da escravidão. As

fontes de produção escravista eram, por um lado, as guerras e, por outro, o comércio com o

Oriente e as grandes zonas não cultivadas do Ocidente e do Mar Negro. Dessa forma, a

82 ibid., p. 90-92. 83 ibid., p. 157. 84 ibid., p. 93.

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escravidão se estendeu por todo o mundo grego, paralelamente à indústria e ao comércio. Os

grandes centros da vida industrial do século V a.C. – Corinto, Atenas, Egina e Siracusa –

eram também os lugares com maior número de escravos. Apesar das manifestações de

trabalhadores livres contra a escravidão e das tímidas intervenções do Estado, a escravidão se

impôs na mineração e na agricultura e, de maneira mais contundente, na “indústria, na

fábrica”. Meyer lembra que a Antiguidade não conheceu as grandes máquinas nem as

gigantescas fábricas dos tempos modernos, mas pergunta se não se pode chamar de fábrica

uma empresa de armas de Demóstenes, na qual trabalhavam trinta e três escravos

especializados como armeiros.85

Esta trajetória justifica sua comparação entre os séculos VII e VI a.C. da História da

Grécia e os séculos XIV e XV, e entre o século V a.C. e o século XVI de nossa era. Não é

uma ousada e anacrônica comparação, para quem se propunha a explicar a evolução

econômica da Grécia antiga por meio dos fatos concretos? Sim. Esta afirmação é, porém,

emblemática por dois motivos: 1) ao estabelecer esse paralelismo, o autor deixa claro, à luz de

seus argumentos, que é possível não traçar uma trajetória linear do mundo antigo atado a

grandes esquemas, ou estágios de desenvolvimento econômico, apesar de cair em um outro

tipo de evolucionismo; 2) Esta idéia não deveria lhe parecer anacrônica, exatamente porque

ele buscava, nos fatos e acontecimentos concretos do passado, as causas de fenômenos

reconhecidamente históricos, pois seus efeitos estavam ainda presentes. Para o autor, em vez

de simples transposição do mundo moderno ao antigo, aplicando àquela realidade as

instituições de seu mundo, seria mais correto pensar em homologia e paralelismo. Na verdade,

o autor procura demonstrar a longa sobrevivência de traços culturais que estavam presentes

tanto no Mundo antigo como no moderno. Uma justificativa pouco convincente, mas coerente

com seu arcabouço teórico.

É possível perceber que as análises de Meyer e de Bücher acentuam a possibilidade de

aceleração e desaceleração da economia antiga. Meyer, ao comparar o mundo antigo com o

moderno, credita à economia antiga um caráter dinâmico e descontínuo. A intensa

interligação daquela realidade, particularmente nas comunicações, representa uma projeção

conceitual de grandes acelerações históricas. Por outro lado, Bücher e Rodbertus acentuam

bloqueios estruturais que identificam aquela realidade com sistemas imóveis e em tudo iguais

entre si. Estes não conseguem vislumbrar a possibilidade de tais sociedades criarem

condições, mesmo que limitadas, de bem-estar e opulência. A ausência de troca, de um lado, a

85 MEYER, E. op. cit., p. 161.

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presença de sistemas desenvolvidos de troca, por outro, retratam antagonismos extremos de

visões, que não conseguem perceber a dualidade das realidades investigadas. Ao lado da

economia mercantil, como observou Schiavone para a sociedade romana, mas que pode ser

estendido à sociedade grega em menor escala, existia uma extensa área de economia natural

ou de subsistência, voltada para o autoconsumo direto dos produtores ou para o restrito

comércio local. Nos tempos modernos, a coexistência dos dois níveis – economia natural e

economia de troca – inclinava-se a assumir uma posição instável, com tendência à

incorporação do menos dinâmico pelo mais dinâmico. No mundo antigo, a forma “arcaica” e

a “avançada” estabilizaram-se, sem o predomínio da segunda sobre a primeira.86 A

unilateralidade das duas teses envolveu seus defensores em uma “ilusão de ótica” do muito

próximo e do muito distante. Isto levou a posições inconciliáveis para a mesma problemática:

“a total assimilação entre o antigo e o moderno, ou a descoberta de uma alteridade sem pontos

de contato, que impelia à sistematização das duas economias nos extremos de uma rígida

periodização.”87

O que Meyer não conseguiu perceber, porém, é que a produção mercantil no mundo

antigo se mantinha sob um ambiente de pobreza e escassez e que as inovações européias da

Idade Moderna passaram por mutações relacionadas a melhoramentos tecnológicos,

institucionais, jurídicos, de gestão financeira e de crédito, de mentalidade, além da própria

função “capitalista” e produtiva dos centros urbanos.88 Outrossim, o mundo moderno foi

palco de uma transformação vital em relação à força de trabalho, com a quase total extinção

do trabalho escravo e a progressiva consolidação de um mercado de força de trabalho

praticamente desconhecido no mundo antigo. Meyer procurou provar que o trabalho escravo

não exercia um predomínio absoluto no mundo antigo89 e acusava Bücher de compartilhar os

preconceitos reacionários dos círculos cultos da Antiguidade, que expressavam a idéia de que

o cidadão “com plenitude de direitos deve gozar de uma situação de independência material,

de que o trabalho físico é desonroso e de que o traficar com dinheiro e obter lucro constitui

algo reprovável e desonesto.”90 Em seguida, denunciou a falsidade das opiniões que

86 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 107. 87 ibid., p. 82. 88 ibid. p. 139. 89 Em sua análise sobre a escravidão, feita em uma conferência de 1898, Meyer está empenhado em demonstrar

que a escravidão não é anterior ao trabalho livre, mas, sim, distinta e concorrente. Ver MEYER, E. La esclavitud en el mundo antiguo. In: MEYER, E. El historiador y la historia antigua. Estudios sobre la teoría de la Historia y la Historia económica y política de la Antigüedad. México - Buenos Aires: Fondo de cultura económica. 1955, 139-172.

90 MEYER, E. op. cit., p. 99.

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creditavam somente aos antigos a origem destas idéias, e conseqüentemente, fez novas

críticas às teorias de Bücher.

A opinião predominante vê nestas idéias atitudes características e específicas da Antiguidade, por oposição às concepções modernas; considera-as como o reflexo da instituição da escravidão, do deslocamento do trabalho físico para os braços dos escravos, a quem se depreciava. Prejulgamento totalmente falso: a mentalidade dos tempos modernos não se diferencia em nada, neste ponto, da dos antigos. Ainda que, hoje como ontem, o regime da democracia apague as diferenças jurídicas, o abismo social entre os ricos e os indivíduos das classes altas e as chamadas profissões liberais, de uma parte, e de outra os subalternos, os artesãos e os operários, segue sendo tão grande como na Antiguidade.91

Apesar de as ocupações serem hierarquizadas (a agricultura e a pecuária consideradas

as mais dignas, e o artesanato em uma escala inferior) e o trabalho muitas vezes ser uma

maldição, o Estado – principalmente a Atenas do período clássico – condenava a ociosidade e

exigia que o cidadão assegurasse o seu sustento por si só. Portanto, diversamente da imagem

de ociosidade do homem livre, o que se via eram os escravos e os homens livres concorrendo

nas mais diversas funções.

Os escravistas sempre foram minoria, e o número de escravos nunca superou o de

homens livres, a não ser em alguma cidade-Estado industrial. A escravidão nunca chegou a

impor-se de modo exclusivo na agricultura e abundavam em todos os lugares os cidadãos que

viviam do seu trabalho e exerciam as mais diversas atividades. O trabalho livre tinha na

escravidão um competidor tão perigoso quanto irresistível, levando o Estado a velar pela sua

existência mediante subsídios e entrega de trigo, bem como a imposição da liturgia aos ricos.

O trabalho livre, longe de ser um tardio sucessor da escravidão, produto de largas etapas intermediárias, surge pelo contrário no mesmo momento em que se manifesta também a escravidão como um fator econômico importante; os dois têm a mesma Antiguidade e são, simplesmente, duas formas distintas e concorrentes que satisfazem a mesma necessidade econômica, em que se expressa uma transformação econômica que é, no fundo, a mesma.92

O que se pretende ressaltar é que, se a servidão da época aristocrática dos épicos

corresponde às condições econômicas da Idade Média cristã, a escravidão da época seguinte 91 ibid., p. 100. 92 ibid., p. 163-164.

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corresponde ao trabalho livre dos tempos modernos e nasceu sob o calor dos mesmos fatores

que lhe deram vida. Seus argumentos para explicar o fortalecimento do trabalho escravo

repousam, no entanto, em uma lógica ahistórica e universal:

Os trabalhadores livres que se oferecem para trabalhar são caros e rendem pouco. Exigem um salário para viver e estão na mesma situação jurídica e política que seus patrões. A indústria reclama trabalhadores baratos, cujas energias possam ser exploradas sem limitações e que estejam totalmente disponíveis.93

Meyer aqui confunde dois tipos de exploração do trabalho com formalismos

completamente diferentes. No sistema escravista, a relação de dependência ocultava o

trabalho realizado pelo escravo, fazendo-o aparecer apenas como um sustento para o seu

senhor. O formalismo antigo, baseado no status, sustentava-se no domínio pessoal, e não no

domínio do capital ou do trabalho. A sujeição e a anulação total do escravo impediam a

separação entre personalidade (jurídica, política, intelectual, ética) do trabalhador e venda da

força de trabalho. Por outro lado, o formalismo moderno, amparado na relação contratual

entre indivíduos juridicamente iguais, exalta a liberdade do trabalhador, atuando sempre ao

lado do capital e do mercado, ocultando a exploração sob a sombra da igualdade entre as

partes contratantes.94 Sob esta perspectiva, fica claro como Meyer transpõe as características

de um tipo de formalismo – o contratual – para uma realidade baseada em relações de

trabalho regidas por relações de dependência, isto é, por um formalismo amparado no status.

Depois, ele não consegue perceber as profundas modificações advindas das inovações

européias como um elemento completamente novo na História das civilizações.

A preocupação central de Meyer, contudo, era manter a equivalência “entre a Grécia e

a Europa moderna (ou mais precisamente entre a Grécia e a Prússia moderna), mesmo que

para isso fosse necessário obliterar as características e funções da escravidão no mundo greco-

romano.”95 Afirmando uma lógica do capital, Meyer assegurava que a forma jurídica, na qual

a mão-de-obra explorada pelo capital se encontrava, tem uma importância secundária. “Se se

pode escolher entre a escravidão e o contrato de trabalho livre, em igualdade de condições, se

preferirá a primeira.”96 Esta situação restringia o acesso da população livre à indústria e

93 ibid., p. 159. 94 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 139. 95 MOMIGLIANO, A. Introduction to a discussion of Eduard Meyer. In: ________. A.D. Momigliano Studies

on modern scholarship. Los Angeles e London: University of California Press, 1994, cap. 15, p. 218-219. 96 idem.

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ocasionava a criação de um contingente de trabalhadores livres que dependiam direta e

indiretamente do Estado para sobreviver. Finalmente, parecendo dar uma resposta a um

questionamento acerca da não-utilização de escravos na Europa, no início dos Tempos

Modernos, Meyer aponta a diferença fundamental entre a trajetória cristã germânica e a

trajetória antiga. Enquanto esta partiu do isolamento das nações e dos pequenos Estados para

a aglutinação, a Idade Média partiu da idéia da unidade do gênero humano, herdada dos

tempos antigos, enquadrando-a nos marcos da nacionalidade, impedindo a escravização de

povos vizinhos. Onde a escravidão se difundiu, na América, não houve um desenvolvimento

industrial, razão pela qual a escravidão adquiriu um traço agrícola, semelhante à escravidão

romana.97 Contudo, segundo Shciavone, se, por um lado, as escravidões modernas

desenvolveram-se em cenários rurais relativamente periféricos com relação ao centro cada vez

mais industrial e manufatureiro da nova economia européia e do norte, por outro, o sistema

escravista romano representava a forma econômica mais avançada e unificada das civilizações

antigas: “o verdadeiro centro propulsor de toda a economia mediterrânea”.98 Como pode

aquele sistema ser similar à escravidão romana?

Finalmente, a decadência do mundo antigo. Aqui, o evolucionismo cíclico assume um

caráter mais transparente. Segundo Meyer, as incessantes revoluções, as mudanças constantes

no poder e as lutas entre Estados em torno da hegemonia contribuem para levar a Grécia a

uma miséria cada vez maior. Simultaneamente ao formidável auge da inteligência e da arte,

assistiu-se a uma decadência cada vez maior da vida política e econômica. O grande número

de “proletários” entrega-se às tropas de mercenários, ou à bandidagem e pirataria. Enquanto

Atenas e Siracusa vivem situações semelhantes, Cartago aparece como uma cidade comercial

e industrial e torna-se a grande potência que domina todo o ocidente do Mediterrâneo,

concentrando em sua capital o comércio das cidades tributárias e procurando bloquear toda a

influência estrangeira, à maneira de Veneza ou das potências coloniais européias dos séculos

XVII e XVIII. Apesar dos grandes latifúndios escravistas dos comerciantes cartagineses, a

política e o Estado são dominados pelos interesses do comércio e da indústria, da mesma

forma que “a política inglesa dos séculos XVIII e XIX. Meyer então pergunta: Como pode um

Estado como este ser dominado pela economia do oikos?”99

O advento do helenismo é responsável por um retrocesso da metrópole grega em

virtude do afluxo populacional para as cidades da Ásia Menor e das constantes conturbações

97 ibid., p. 164. 98 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 168 99 ibid., p. 107.

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políticas na Grécia. O fator mais importante desse retrocesso, porém, é a separação da

situação mundial: a Grécia deixou de ser o centro político e comercial do mundo. “Atenas

estava agora à margem da grande rota do comércio.”100 A realidade helenística, com o

comércio marítimo entorpecido, comunicações terrestres lentas, embaraçadas pelos tributos e

salvo-condutos, e coexistência de uma cultura refinada com governos “maus” e

“degenerados”, porém com um comércio mundial altamente desenvolvido, e com uma

“economia nacional”, como entendia Bücher, poderia ser comparada aos séculos XVII e

XVIII. Enquanto o Estado era forte comercial e politicamente, foi possível manter, com

subsídios, a população livre afastada das atividades exercidas pelo escravo. Contudo, com a

diminuição de rentabilidade da agricultura, causada pela penetração da “empresa capitalista”,

e a concentração da terra nas mãos dos ricos, a população camponesa é levada a migrar para

as cidades, exercendo pressão sobre o estado que não a podia suportar por ser fraco comercial

e politicamente. Daí decorre, segundo o autor, a força corrosiva da escravidão, que ocupa os

espaços da população livre e pobre. Meyer, amparado em trabalhos de Beloch, associa o

crescimento da escravidão ao crescimento do comércio e da indústria. Admitindo a presença

de trabalhadores livres, de artífices autônomos, os “modernistas” associaram os oikoi, dos

primitivistas com o comércio e a indústria. Com a estagnação destes, estagna-se a escravidão.

Eis aqui o maior antagonismo a Bücher e Rodbertus, os quais associam escravidão à ausência

de qualquer tipo de comércio e indústria.

Doravante, o fim do mundo antigo, em sua análise da civilização romana, está

associado: 1. à influência da cidade e da vida urbana; 2. ao enfraquecimento do campo e,

conseqüentemente, dos camponeses; 3. ao pleno desenvolvimento do capitalismo, da

economia monetária e do direito capitalista, com todas as conseqüências desintegradoras das

condições de vida do campo e destruidoras do sistema de trocas dos camponeses. Este

processo todo leva séculos, até que se manifestam as desastrosas conseqüências: a pobreza do

campo se transfere para a cidade; o comércio e o tráfico começam a estancar-se; a indústria é

paralisada; os trabalhadores livres permanecem ociosos, e a atividade industrial já não

consegue prover os meios de sustento. O resultado disso tudo é o retorno às condições de vida

primitiva. Meyer se refere às condições do oikos autárquico de Bücher: a restauração dos

estamentos sociais herdados de pais e filhos; o surgimento do colonato; a transformação dos

camponeses em camponeses vinculados à gleba; a volta à economia natural em grande escala.

O fim do ciclo histórico da Antiguidade é o fim da pólis e do governo autônomo, com o

100 ibid., p. 109.

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surgimento do Estado burocrático bizantino. O Ocidente é arrebatado pelo Império e se

afunda na mais profunda barbárie.101 Chegava-se ao final de um longo período de

desenvolvimento completamente diverso daquele descrito por Bücher. O declínio do comércio

e da indústria e o crescimento das organizações sócio-econômicas próximas dos households

invertiam completamente o evolucionismo dimensional de Bücher. A ascensão da “economia

nacional” moderna não poderia ser retrojetada sobre um processo evolucionista iniciado com

o antigo sistema do household fechado. O Mediterrâneo tinha experimentado dois processos

paralelos de capitalismo urbano, ambos partindo de uma situação inicial que se caracterizava

pela predominância da servidão e da agricultura.102

Assim, Meyer apresenta uma trajetória do mundo antigo diferenciada da de Bücher e

Rodbertus, embora o caráter evolucionista, traço característico dos primitivistas criticados,

também apareça, só que acentuados, em sua regressão causal, o valor que o presente atribui a

um fato e a extensão dos efeitos desse fato, negando a importância de elementos do passado

que não tivessem uma relevância causal para o presente, ou seja, o específico de cada

realidade. Encontramo-nos em nova contradição: se a crítica de Meyer aos “primitivistas” é a

de que estes dilaceravam a realidade do passado ao atrelar lhe esquemas que não

correspondiam aos fatos de acordo com as fontes, ele atrelava uma eficácia, originada no

presente, aos fatos históricos do passado, isto é, o sentido da ação evolutiva repousa na

eficácia de seus efeitos no presente e em fatores culturais.

Como exposto, o início dos Tempos Modernos na Europa reúne as condições para a

instauração da escravidão, mão-de-obra mais “lucrativa que o trabalho livre”, que é,

entretanto, impossibilitada por uma trajetória cultural diferente. Quando esta particularidade

não ocorre, o que se vê é o desenvolvimento da escravidão, caso da América, que é

comparado à escravidão romana. Apesar do grave equívoco, que é o de substituir um

evolucionismo linear por outro cíclico, Meyer consegue demonstrar, com base no crescente

material empírico disponível na época, que a hipótese de Rodbertus e Bücher carecia de

fundamentação histórica.

O ataque dos modernistas suscitou algumas explicações de Bücher em edições

posteriores, como a reafirmação de que os estágios econômicos eram indispensáveis do ponto

de vista metodológico e que, só desta forma, a teoria econômica poderia explicar os resultados

das investigações históricas. Também contra-atacou Meyer, apontando a incompreensão deste

101 ibid., p. 125-128. 102 NAFISSI, M. op. cit., p. 46.

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no tocante ao economicamente essencial e as conclusões equivocadas acerca das evidências

atenienses, incluindo aí também Beloch.

Apesar da resposta, a hipótese modernista acabou por prevalecer, pois se conciliava

melhor com a massa de dados (arqueológicos, numismáticos, papirológicos e apigráficos) que

os especialistas começavam a oferecer. Tal hipótese também permitia a formulação de uma

percepção mais familiar e um menor esforço conceitual. Nas palavras de Schiavone,

“descobrir o capitalismo era mais fácil do que perdê-lo”.103 Entretanto, a vitória revelou-se

frágil e suscitou novas reflexões partindo de novos argumentos. Cabia aos “primitivistas” se

desvencilharem do evolucionismo linear de Bücher e Rodbertus e procurar desenvolver um

quadro conceitual que removesse os resquícios da economia política clássica de seu

arcabouço teórico. Esse é o grande desafio que Bücher se propunha a resolver, e não

conseguiu, e que se apresenta para os autores que vamos investigar, Weber, Hasebroek,

Polanyi e Finley. Eis aqui a primeira grande questão de fundo da tradição que nos propomos a

investigar.

103 SCHIAVONE, A.op. cit., p. 82.

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3 A PÓLIS TOMA O LUGAR DO OIKOS. O TIPO IDEAL DE MAX WEBER E O

NEOPRIMITIVISMO DE HASEBROEK

Os autores que vamos investigar agora retomaram e aprofundaram as questões

levantadas por Bücher e Meyer.

Max Weber (1864-1920) imergiu, em um primeiro momento, em um projeto histórico,

discutindo questões prementes da controvérsia do oikos; em um segundo momento, após seu

colapso nervoso, apresentou uma série de estudos teórico-metodológicos, por meio dos quais

procurou solucionar as lacunas teóricas dos membros da “Escola Histórica de Teoria

Econômica”; finalmente, em um terceiro momento, já maduro, desenvolveu um projeto

histórico-sociológico, no qual seus conceitos teóricos são complementados por uma erudição

histórica impressionante, sobre os mais diversos temas. Contudo, desde seus primeiros

trabalhos de História Antiga, o autor já esboça elementos de seu arcabouço teórico.

Johannes Hasebroek (1893-1957) escreveu trabalhos empíricos sobre a Grécia Antiga,

retomou elementos “anti-modernistas” de Weber e deflagrou um novo ataque aos

modernistas, procurando, em primeiro lugar, sanar as lacunas empíricas presentes nos

trabalhos de Bücher e Rodbertus e, em segundo lugar, levando para o centro dos argumentos

primitivistas, a pólis, em vez do oikos.

3.1 OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DOS TRABALHOS DE

WEBER

Os trabalhos de Max Weber (1864-1920), na primeira metade do século XX, sobre a

“economia antiga”, estão inseridos no seio do fervoroso debate iniciado na Alemanha no final

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do século XIX e início do XX, protagonizado por historiadores e economistas alemães. A

posição de Weber nesse debate encontra-se no liame entre a Escola Histórica de Teoria

Econômica e a Ciência Econômica Austríaca. Em relação à esfera do objeto de estudo da

Ciência Econômica, sua posição está mais próxima à de Schmoller, porém aproxima-se mais

da de Menger quanto ao uso da racionalidade como método da pesquisa econômica e quanto à

idéia que as instituições são o resultado involuntário de ações individuais.104

Após seu colapso nervoso, que durou cinco anos, de 1898 a 1902, Weber escreveu

uma série de trabalhos teórico-metodológicos a fim de, por um lado, alertar os historiadores

sobre a importância da teoria para os estudos históricos e, por outro lado, demonstrar aos

economistas que a História não era uma “serva”, uma simples coletora de dados para os

teóricos. Weber posicionava-se no seio do debate entre economistas e historiadores,

apresentando a História e a teoria como momentos necessários de uma divisão unificada de

trabalho. Seus trabalhos teórico-metodológicos são estudos críticos dos principais autores da

Escola Histórica de Economia Política e respostas teóricas a Eduard Meyer. Nesses ensaios,

de 1903-1906, Weber estava convencido que a teoria dos estágios não contribuía para uma

reconciliação entre teoria e História. A sua estratégia era alcançar um consenso entre

historiadores especialistas, que o viam como um dos seus, e economistas políticos, que

também o respeitavam, demonstrando suas necessidades recíprocas dentro de uma divisão

geral de trabalho.105

Em um artigo de 1904, “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na

ciência política”, o autor afirma que o papel da Ciência Social é entender o que há de

específico na realidade que nos circunda, “por um lado, as conexões e a significação cultural

das nossas diversas manifestações na sua configuração atual e, por outro, as causas pelas

quais ela se desenvolveu de uma forma e não de outra.”106 Como a realidade não pode ser

esgotada em todos os seus aspectos, em razão da infinita diversidade dos eventos que nos são

apresentados, apenas um fragmento limitado pode ser conhecido de cada vez, e só este

fragmento é “essencial” para o conhecimento. Procurando definir o estatuto das ciências da

cultura, Weber aponta a peculiaridade do método dessas ciências:

104 Para uma consulta do contexto intelectual dos trabalhos de Weber ver SWEDBERG, R. Max Weber e a idéia

de sociologia econômica. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005. 105 NAFISSI, M. op. cit., p. 74. 106 WEBER, M. A ‘objetividade’ do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: ___________.

Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 124

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A significação da configuração de um fenômeno cultural e a causa dessa significação não podem contudo deduzir-se de qualquer sistema de conceitos de leis, por mais perfeito que seja, como também não podem ser justificadas nem explicadas por ele, tendo em vista que pressupõe a relação dos fenômenos culturais com idéias de valor. O conceito de cultura é um conceito de valor. A realidade empírica é ‘cultura’ para nós porque e na medida que em que a relacionamos com idéias de valor. Ela abrange aqueles e somente aqueles componentes da realidade que através desta relação tornam-se significativos para nós.107

Sob a influência de Dilthey, Weber valoriza a interpretação racional fundamentada na

relação com os valores, como método para nos fazer compreender, pela causalidade ou

compreensão, “relações significativas entre os fenômenos ou os elementos de um mesmo

fenômeno.”108 Afasta-se de Dilthey, contudo, pois, apesar de não minimizar o papel da

intuição, não considera a experiência vivida como um conhecimento científico. Assim, a

delimitação do tema a ser investigado é subjetiva, pois é determinada por pontos de vista

relacionados com valores, cujas concepções estão submetidas à mudança histórica. Além

disso, a relação com os valores orienta a distinção entre o que é essencial e o que é acessório e

indica quais as relações de causalidade a estabelecer. Esta subjetividade, porém, não nos

impede de alcançar um conhecimento válido e absoluto no que diz respeito às causas de um

objeto histórico. Eis aqui o argumento central da contenda entre Meyer e Weber e o elemento

que pode nos ajudar a esclarecer a posição de Weber acerca da economia antiga.

Para Weber, a cientificidade da História como ciência social exige a aplicação de

conceitos causais. Esta união de ciência e causalidade em Weber se apóia na concepção

neokantiana, segundo a qual as causalidades não se acham radicadas em uma realidade

objetiva, mas, sim, no pensamento científico. Dessa forma, o problema da causalidade é

determinar o papel dos diversos antecedentes na origem de um acontecimento. Esta

determinação pressupõe alguns passos: o primeiro consiste em definir com precisão as

características do indivíduo histórico que se quer explicar, seja ele um acontecimento

particular ou uma individualidade histórica de proporções mais amplas; o segundo convém

analisar os elementos do fenômeno histórico, pois uma relação causal é sempre uma relação

parcial, isto é, construída entre certos elementos do indivíduo histórico e determinados dados

anteriores. Em terceiro lugar, devemos pressupor que um desses elementos antecedentes não

se produziu, ou se produziu de modo diferente. Aplicada a uma seqüência histórica singular, a

análise causal deve passar pela modificação irreal contrafactual de um dos seus elementos e 107 idem., p. 127. 108 FREUND, J. Sociologia de Max Weber. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 1980. p. 46.

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responder à seguinte pergunta: que teria ocorrido se este elemento não tivesse existido ou

tivesse sido diferente? Finalmente, o último passo é a comparação do devenir irreal,

construído mediante a hipótese de modificação de um dos antecedentes, com a evolução real,

para poder concluir que o elemento modificado pelo pensamento foi de fato uma das causas

do indivíduo histórico considerado no ponto de partida da pesquisa. Deste modo, a construção

do irreal é um meio necessário para compreender, como, na realidade, os acontecimentos se

desenrolam. Para esta reconstrução, basta partir da realidade histórica tal como se apresentou

para demonstrar que, se este ou aquele antecedente não tivesse ocorrido, o acontecimento que

queremos explicar também teria sido diferente. A relação de causalidade pode ser mais bem

compreendida pela idéia defendida por Weber de que a ética protestante poderia ser encarada

como um componente causal significativo para o desenvolvimento do capitalismo moderno.

Já a ausência desse componente significaria um empecilho ao desenvolvimento de uma

orientação da conduta econômica análoga à capitalista racional.109

Os juízos de validade geral são alcançados por meio do “tipo ideal”, um modo de

construção conceitual “utópico”, orientador da pesquisa, peculiar ao método histórico,

destinado a dar o rigor conceitual aos fenômenos em sua singularidade. O tipo ideal é obtido

mediante a acentuação unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É impossível encontrar empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia.110

Um tipo ideal da estrutura capitalista moderna, por exemplo, “acentuaria diferentes

traços difusos da vida cultural, material e espiritual moderna e os reuniria num quadro ideal

não contraditório, para efeito de investigação” 111, cuja tentativa seria traçar uma “idéia” da

cultura capitalista, dominada unicamente pelo interesse de valorização dos capitais privados.

Segundo Weber, é possível traçar várias “utopias” deste tipo, todas diferentes umas das

outras, mas cada uma poderia pretender ser uma representação da “idéia” na cultura

capitalista e poderia conseguir tal objetivo, desde que solucionasse características da nossa

109 ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes e Ed. UnB. 1987. p. 475-478. 110 WEBER, M. A ‘objetividade’ do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: _________.

Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 124. 111 ibid., p. 137.

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cultura, significativas na sua especificidade, reunidas num quadro homogêneo.112 O tipo ideal

é, portanto, um quadro de pensamento, pelo qual se mede a realidade e com a qual é

comparado, a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos

importantes. São, assim, “configurações, nas quais construímos relações, por meio da

utilização da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada

segundo a realidade, julga adequadas.”113

Podemos dizer que o tipo ideal é um conceito genético, pois designa um indivíduo

histórico que se encontra em relação causal com fenômenos de reconhecida significação

cultural, ou efeitos de uma causa de significação cultural. Além disso, tal conceito designa

objetos de “significação cultural tendo em conta que ele dá a entender ou conota

características essenciais para a ordenação do objeto respectivo no contexto cultural.”114

Weber procurou remover as bases “naturalísticas” das tradições teóricas, advindas da

Escola Histórica de Economia Política, e desenvolveu, pelo menos em parte, a noção de tipo

ideal para combater e substituir a teoria evolucionista proposta por Bücher, pois, seguindo as

críticas dos historiadores, ele percebeu que a teoria do oikos não poderia explicar ou fornecer

leis de desenvolvimento de sociedades antigas. Isto não significa dizer que Weber tenha

descartado os conceitos e classificações de Bücher. Ele considerou o oikos como um tipo ideal

e não o descartou da pesquisa histórica, desde que usado como hipótese empírica a ser testada

na pesquisa. Assim, apesar de concordar com Bücher de que a História e a teoria são

atividades distintas, esta última, contudo, não exaure ou incorpora a essência da “realidade”,

que, para Weber, se confunde com a História.115

Weber escreveu, em 1906, um artigo intitulado “Estudos críticos sobre a lógica das

ciências da cultura”, em torno do entendimento do trabalho histórico, em que trava uma

polêmica com Meyer acerca da concepção de causalidade no âmbito das ciências culturais,

apontando, no trabalho de Meyer, confusões de natureza lógica. Segundo Weber, só são

“significativas historicamente aquelas ‘causas’ em que o regresso que parte de um elemento

cultural ‘valorizado’ inclui em si seus elementos indispensáveis.”116 E estes nada têm a ver

com sua eficácia em relação à nossa cultura, pois os pontos de vista valorizados em cada

momento da História, passíveis de mutações ao longo do tempo, avaliam e convertem em

112 ibid. 113 ibid., p.139-140. 114 JANOSKA-BENDL, J. Max Weber y la sociología de la Historia. Buenos Aires: Editorial Sur, 1972. p. 30. 115 NAFISSI, M.op. cit., p. 83-85. 116 WEBER, M. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: ________. Metodologia das ciências

sociais. São Paulo: Cortez editora, 1992, p. 184.

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indivíduos históricos elementos culturais totalmente passados e que não podem ser

reconduzidos a um elemento cultural do presente.117 De acordo com Weber, Meyer confunde

o “eficaz” com o “histórico” porque não diferencia “aqueles componentes da realidade que

são avaliados na sua especificidade concreta como objetos do nosso interesse”118 daqueles

descobertos por nossa necessidade de compreendê-los pela regressão causal.

Weber demonstra afinidades com Meyer em duas questões: 1) rejeição à dedução do

significado dos fenômenos culturais e da causa desta significação mediante qualquer sistema

de leis e conceitos; 2) concordância com a advertência de Meyer sobre o “perigo de

supervalorizar a importância dos estudos metodológicos para a práxis da investigação

histórica”119, isto é, não é tarefa de uma ciência empírica proporcionar normas que se possam

aplicar como receitas para a prática. Apesar das diferenças pontuais, como, por exemplo, a

reivindicação de um rigor conceitual maior para as ciências da cultura, Weber continua, pelo

menos em relação às observações feitas ao trabalho de Meyer, ainda próximo da concepção

historista.

No seu diálogo com os historiadores, Weber procura conciliar uma proposta

metodológica com o espírito “descritivo” dos historiadores. Esta função descritiva não deveria

ofuscar o que as ciências históricas compartilham com as ciências naturais: a explicação

causal. As explicações causais são concebidas como hipóteses que são verificáveis com os

fatos; sua validade é testada em procedimentos que envolvem o uso de conhecimento

empírico já disponível e “formulado” de um modo logicamente correto. Sem negar o papel

dos indivíduos e das idéias nas mudanças históricas, Weber queria pôr a prova esses valores

por meio de um procedimento científico, a avaliação. Assim, no diálogo crítico com os

historiadores, emerge uma divisão do trabalho que envolve os três momentos de construção

do objeto: descrição, explicação e avaliação120.

Com efeito, a análise interpretativa está a serviço da formação de conceitos

historiográficos quando investiga a especificidade de determinadas “épocas culturais”, isto é,

um conceito histórico deve ser gradualmente estruturado de acordo com as partes individuais

tomadas da realidade histórica que o instituiu, mediatizado por valores que não se deixam

117 ibid., p. 188. 118 ibid. , p. 186. 119 WEBER, M. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: Metodologia das ciências sociais.

Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 155– 210. 120 NAFISSI, M. op. cit., passim.

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universalizar.121 Essa reflexão, considerada por Cohn, como uma espécie de individualismo

metodológico, sustenta-se na idéia de que “no estudo dos fenômenos sociais não se pode

presumir a existência já dada de estruturas sociais dotadas de um sentido intrínseco; (..) e

independente daqueles que os indivíduos imprimem às suas ações.”122 Assim, a Antiguidade é

apropriada em seu conteúdo cultural como meio de conhecimento para a formação de tipos

gerais, pois suas fontes possibilitam-nos a “obtenção de conceitos gerais, de analogias e de

regras de desenvolvimento que são aplicáveis não apenas à nossa cultura, mas a ‘todas’ as

culturas.”123 Eis aqui um elemento importante de diferenciação entre a concepção modernista

e aquela mais próxima da primitivista.

Segundo Tenbruck, as críticas de Weber a Meyer estão restritas ao campo

metodológico, pois estão presentes, nos trabalhos “históricos” de Weber fatos “históricos e

etnológicos que derivam de Meyer, mas também as ‘teorias’ pelas quais Meyer (e outros

historiadores) tinham focalizado a visão deles sobre a História por meios de aplicação de tipo

ideal.”124 O autor ainda lembra que as teorias dos historiadores modernistas formam o

fundamento para os temas e, freqüentemente, para as teses que Max Weber usou para

comparação, criticou e desenvolveu em Economia e Sociedade. Tenbruck, portanto, realça a

influência de Meyer sobre os estudos históricos, e mesmo sociológicos de Weber. Esta visão

não é compartilhada por Finley, que ressalta as diferenças entre esses autores tanto no campo

metodológico quanto histórico, nem por Nafissi, que, apesar de aceitar a influência de Meyer

sobre os trabalhos históricos de Weber, não observa nenhuma influência daquele sobre os

trabalhos sociológicos de Weber, e acentua que os trabalhos de cunho mais sociológicos eram

uma resposta aos historiadores da época, inclusive Meyer. A visão de Nafissi nos parece a

mais razoável.

As considerações de Weber acerca dos trabalhos teóricos de Meyer ainda se

encontram no âmbito do Historismo. Contudo, enquanto Meyer nos parece mais idealista,

ressaltando a importância do individual na criação de pensamentos nascidos de modo

espontâneo, além de afirmar a liberdade da vontade em contraposição às determinações

causais, Weber acredita ser possível estabelecer juízos de validade geral, apostando em

121 MONTEIRO, J.C. S e CARDOSO, A.T. Weber e o individualismo metodológico. [S.l]2002. Disponível em:

http://www.cienciapolitica.org.br/encontro/teopol5.2doc. Acesso em: 10 de maio de 2003. 122 COHN,G. Introdução. In: _________(org.). Max Weber. Sociologia. São Paulo: Ática,1981.col. Grandes

cientistas sociais, p. 26. 123 WEBER, M. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: WEBER, M. Metodologia das

ciências sociais. São Paulo: Cortez editora, 1992. p. 191-192. 124 TENBRUCK, F. H. Max Weber and Eduard Meyer. In: MOMNSEN, F; OSTERHAMMEL, J. Max Weber

and his contemporaries. London: Allen & Unwin, 1987. p. 243-244.

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conceitos genéticos. Esta crença o afastava do idealismo historista, porém o levava a uma

contradição: como seu instrumental teórico, o tipo ideal, uma construção intelectual,

“utópica”, deveria ser submetido a regras de experiência previamente dadas, isto é, passar

pela prova empírica? Como pode haver regras de experiência de coisas irreais? Como

procurar uma validade geral de juízos de valor na esfera do estritamente empírico? Os textos

“históricos” de Weber podem nos ajudar a responder a estes questionamentos.

Passemos a investigar a análise de Weber sobre a Grécia Antiga tomando como

parâmetros de investigação três questões: perceber até que ponto Weber se afasta ou se

aproxima de Meyer e de Bücher; relacionar as análises de Weber sobre a Grécia Clássica com

as categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica e os tipos de dominação

associados à noção de racionalidade e de irracionalidade; e procurar entender como Weber

constrói o “tipo” particular de capitalismo no desenrolar da civilização grega.

3.2 A GRÉCIA ANTIGA E SEUS VÁRIOS “TIPOS IDEAIS”

As análises mais específicas de Weber sobre a civilização grega antiga estão contidas

em dois livros. O primeiro, Agrarverhältnisse im Altertum , inicialmente escrito em 1897,

reescrito no ano seguinte e, finalmente, publicado em 1908, foi traduzido para o inglês, em

1909, sob o título The agrarian sociology of ancient civilizations.125 Nele, Weber apresenta

um painel amplo da organização econômica e social das sociedades do mundo antigo, e o que

era pensado para ser um ensaio sobre a Grécia Antiga tornou-se uma obra de ambições muito

mais amplas, última contribuição mais direta de Weber para a controvérsia do oikos.

O segundo livro, a sua grande obra Economia e Sociedade, produto de um outro

momento da sua carreira intelectual, inicialmente pensado como uma coletânea, contém

reflexões dispersas sobre a Grécia Antiga e nele as preocupações de Weber estão voltadas

para o capitalismo moderno e as diversas formas de dominação, e o mundo antigo está

inserido em uma análise comparativa mais ampla. Contudo, há no livro uma seção intitulada

dominação não legítima (a tipologia das cidades),126 escrito entre 1911-1913, com reflexões

mais específicas e sistematizadas sobre a Grécia e Roma. Este texto contém uma série de

125 WEBER, M. Economic theory and ancient society. In: __________. The Agrarian sociology of ancient

civilizations. Tradução de FRANK, R.I. Londres e New York: Verso, 1998. p. 37-79. 126 idem., A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 408-517.

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reflexões já iniciadas em The agrarian sociology of ancient civilizations, em que Weber

aprofunda sua análise acerca da estrutura da cidade antiga, comparando-a com outros “tipos”

de cidade, de outros períodos históricos, particularmente do período medieval.

Nas suas reflexões sobre a Grécia clássica, Weber não abre mão da construção de

conceitos, porém vincula a vida econômica a outras esferas da sociedade. Tais trabalhos

também demonstram a possibilidade de construir tipos de teorias econômicas para diferentes

estágios da História. É possível perceber, em sua análise, a presença de diversos “tipos”

entrelaçados e misturados no curso da história econômica e social grega. Desde o período

micênico até o final do clássico, estão presentes elementos da dominação tradicional e

carismática e de um capitalismo particular, característico do mundo antigo, o capitalismo

político. Em suas reflexões está presente implicitamente a seguinte questão: por que o mundo

antigo não reuniu as condições necessárias para transformar-se em uma economia capitalista

com as características modernas? A resposta para tal questão permeia toda sua obra: porque

não atingiu a mesma “racionalidade” econômica e política da sociedade capitalista moderna.

Em The agrarian sociology of ancient civilizations, Weber apresenta suas críticas, já

iniciadas nos seus estudos metodológicos, aos estágios lineares, assume algumas críticas dos

historiadores modernos a Bücher e retoma o papel da economia do oikos como um tipo ideal,

porém de importância secundária para compreender os desenvolvimentos econômicos antigos.

Karl Bücher aceitou a explicação de Rodbertus do oikos, mas com uma diferença. Suas visões podem, creio eu, ser interpretadas – a partir de suas próprias afirmações – dessa maneira: ele considerou o oikos como um “tipo ideal”, denotando um tipo de sistema econômico que apareceu na Antiguidade com seus traços básicos e conseqüências características em uma aproximação mais estreita com seu “conceito puro” do que em qualquer outro lugar, sem essa economia do oikos tornar-se universalmente dominante, tanto no tempo como no espaço. Pode-se acrescentar com confiança que mesmo naqueles períodos quando o oikos foi dominante isso não significava mais do que uma limitação no comércio e seu papel de suprir as necessidades do consumidor. Esta limitação foi, esteja certo, forte e efetiva, e casou uma degradação social e econômica correspondente daquelas classes que teriam levado avante um comércio mais extensivo.127

Apesar dessa defesa de Bücher, Weber afirma que o uso da Antiguidade para

exemplificar o conceito de “economia do oikos” o levou a enfatizar aspectos paradigmáticos

da História econômica que resultou em uma impressão errônea. A interpretação de que a 127 WEBER, M. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R.I. Londres e New

York: Verso, 1998. p. 43.

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economia do “oikos” era característica de toda a Antiguidade foi o alvo principal das críticas

de Eduard Meyer, levando-o a rejeitar completamente o conceito de oikos. A utilização por

Meyer de conceitos econômicos modernos, com o uso de termos como fábricas e indústrias,

tal como na Idade Moderna, é rechaçada por Weber, que não encontra nenhuma evidência no

mundo antigo da existência de fábricas, mesmo no sentido técnico ou operacional do termo.

“O estágio que precedeu o desenvolvimento do sistema de fábrica em épocas modernas não

tem paralelo na Antiguidade.”128 Weber cede às críticas dos historiadores modernistas ao

limitar a importância do oikos na economia do mundo antigo e ao seccionar a Antiguidade em

zonas socioeconômicas e culturais distintas, em civilizações, em que cada uma passou por

formas específicas de desenvolvimento. Finalmente, Weber dá um passo além dos

primitivistas, ao separar a pólis clássica da economia do oikos, associando o declínio do oikos

ao desenvolvimento da polis e, posteriormente, ao capitalismo. O oikos tem um papel de

destaque na Grécia nos estágios iniciais, no Oriente Próximo e, no final da Antiguidade, no

Império Romano. Esse papel do oikos está associado à realeza no Ocidente e Oriente, sendo,

no entanto, interrompido no Ocidente com o surgimento da pólis aristocrática e a abolição da

realeza. A historicidade desses estágios históricos dissolve os conceitos unitários elaborados

por Bücher, em que a visão linear é substituída por uma visão cíclica, diferente daquela de

Meyer, que relacionava períodos da Antiguidade com períodos da Idade Média de forma

homóloga.

Weber, tendo como fonte privilegiada os poemas homéricos, os quais retratam

diversos períodos da civilização, estabelece na introdução do livro The agrarian sociology of

ancient civilizations os estágios de organização dos povos antigos, associando-os ao período

micênico. O primeiro estágio é o das “comunidades camponesas amuralhadas” (construídas

para defesa). Nessas comunidades, os households e a vila eram os centros econômicos; o clã,

o culto e as associações militares, além de serem responsáveis pela segurança, moldavam as

instituições religiosas e políticas; os membros livres detinham uma parte da propriedade da

terra, os escravos não eram numerosos e trabalhavam lado a lado com esses pequenos

proprietários; os chefes eram transitórios, isto é, eram indicados nos momentos de guerra e

sustentados pela sua autoridade moral. No segundo estágio, desenvolve-se um assentamento

de feições mais urbanas, a fortaleza, que se caracteriza pela presença de um rei, sustentado

pela posse de terras, escravos, rebanhos e tesouros e rodeado por uma comitiva pessoal, que o

servia nas guerras e desfrutava das posses reais. Os reis conquistadores formaram grandes

128 ibid., p. 44.

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reinos com o apoio de seguidores militares, em geral estrangeiros à comunidade primitiva de

camponeses, quase sempre mercenários, que davam suporte aos reis mais poderosos. Estes

reis conseguiam transformar reis menos poderosos em vassalos, dando origem a quase todos

os Estados antigos. As relações entre o rei e os vassalos variavam de uma simples entrega de

dádivas ocasionais por parte dos súditos, em tempos de paz, a tributos, trabalhos forçados e

fornecimento de homens para o exército, caso o monarca tivesse pretensões expansionistas.

Uma terra fértil e o lucro proveniente do comércio são fatores necessários para o

estabelecimento da fortaleza real.129

Primitivamente a posição do governante (anax) era beneficiada por gado e marcada

ideologicamente pelo favorecimento dos deuses nas guerras e nos julgamentos, recebia a

maior parte do espólio, presentes em ocasiões especiais e contava com a ajuda de um

conselho de anciões, oriundo das famílias enobrecidas pela riqueza e coragem militar. Estas

famílias aristocráticas também legitimavam sua posição pelo favorecimento divino, eram

responsáveis pelos cultos comunais e estavam ligadas por laços consangüíneos – o genos,

formando grandes clãs, em que o oikos constituía a base econômica.130 A autoridade do anax

variava de acordo com as circunstâncias, dependendo em grande parte da ameaça de ataque

militar do estrangeiro.

O estabelecimento da cidade-Estado (pólis) é fruto do contato com o Oriente Próximo,

em razão do comércio marítimo monopolizado pelos reis das fortalezas das regiões costeiras e

do avanço da tecnologia militar, com a extensão de táticas de lutas em carros de combate e a

utilização de armaduras somente acessíveis a guerreiros ricos e atleticamente treinados. Tais

aspectos marcaram uma nítida diferenciação, no interior da população, entre os pertencentes a

esta aristocracia militar e comercial e a massa de camponeses subjugada e obrigada a

trabalhos forçados.131

O desenvolvimento de organizações comerciais reais levou as expedições ultramarinas

a ocupar territórios distantes e dar início à expansão colonial, sendo responsável pelo

comércio micênico de exportação de trabalhos em metal e cerâmica, que enriqueceram os

tesouros e os túmulos dos membros da classe governante. A fortaleza micênica era circundada

por artesãos que produziam as mercadorias para a venda.132

129 idem. Economic theory and ancient society. In: The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução

de FRANK, R.I. Londres e New York: Verso, 1998. pp. 69-70. 130 ibid., p. 151-152. 131 ibid., p. 154-155. 132 ibid., p. 156.

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Segundo Weber, o mundo micênico era formado por grandes Estados, que eram

“essencialmente não mais do que uma aglomeração de ‘feudos’ fortificados sob um grande

rei.”133 Dos vários grupos dependentes da aristocracia das fortalezas, os clientes

representavam o elemento feudal, homens sem terras e provenientes do estrangeiro, enquanto

na costa predominavam homens nascidos livres que, em razão de dívidas, perderam sua

liberdade. Estes formavam o elemento “capitalista” da sociedade e estava em posição superior

aos prisioneiros capturados em guerra e escravos comprados no mercado, naquele momento,

em pequena quantidade.

A análise tecida por Weber da civilização micênica como um exemplo de

comunidades camponesas amuralhadas e, em seguida, de características mais urbanas, a

fortaleza, tendo os poemas homéricos como fonte principal, é hoje, após as descobertas

arqueológicas, totalmente insustentável. Weber, à época, desconhecia os achados

arqueológicos que demonstraram a enorme afinidade das burocracias micênicas com os

Estados burocráticos do Oriente Próximo. Para ele, os poemas homéricos, constituíam-se em

uma fonte ideal para ligar o mundo micênico, sem burocracia, ao nascimento das cidades-

Estados. A decifração do Linear B iria posteriormente quebrar este elo e elucidar, junto com

outros achados arqueológicos, a fratura entre uma sociedade, muito mais próxima das realezas

orientais, burocratizadas, do que com a polis grega, desburocratizada. A identificação de

Weber dos mundos micênicos e homéricos foi determinada por sua visão comparativa entre os

Estados do Oriente Próximo com as poleis greco-romanas: os poemas ajustavam-se à

tipologia weberiana dos reinos de fortaleza e subseqüentes seqüências ocidentais, já a

possibilidade de um Estado micênico, burocrático, não se ajustava a esta lógica. As cidades-

Estados determinaram a lógica micênica. A identificação do Estado micênico com uma

burocracia real próxima do modelo oriental iria romper com um arcabouço geral de

desenvolvimento estrito somente ao Ocidente. Weber começava a esboçar de forma clara

modelos de desenvolvimento diferentes entre Ocidente e Oriente, nos quais o Ocidente, não

continha em suas raízes um traço predominante no Oriente, a burocracia real.

Em Economia e Sociedade, a análise muda, talvez pelo conhecimento melhor do

material arqueológico. Já são encontradas maiores afinidades da civilização micênica com o

Oriente, uma vez que esta civilização pressupunha “uma realeza patrimonial baseada em

133 ibid.

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trabalho forçado, de caráter oriental, ainda que de dimensões bem menores;”134 a

administração usava um sistema gráfico próprio com fins contábeis de caráter patrimonial

burocrático correspondendo, em pequena escala, às realizações orientais, com trabalho

forçado e uma administração centralizada no palácio.135 Estas observações não contradizem

uma análise mais geral, que agora tem como eixo comparativo não somente o Oriente e o

Ocidente, mas, também, o capitalismo antigo e o moderno, embora não deixem de contradizer

uma das orientações centrais do primeiro trabalho.

Em The agrarian sociology of ancient civilizations, Weber aponta o

desenvolvimento de um particularismo militar urbano da pólis grega como o principal

elemento diferenciador das monarquias burocráticas do Oriente Próximo. Em contraste com o

crescimento de um séqüito real extremamente dependente do rei no Oriente, na Grécia

assistiu-se a uma dominação dos séqüitos reais e, conseqüentemente, ao desenvolvimento de

um exército recrutado entre os pequenos fazendeiros rurais que podiam prover seu próprio

equipamento militar. Esta particularidade levou ao enfraquecimento do poder real e à ausência

de burocracias reais e de grandes Estados, traço marcante do desenvolvimento das monarquias

orientais.136

Outrossim, novas classes sociais estavam começando a existir, como, por exemplo,

soldados mercenários de todas as partes do Mediterrâneo, treinados, e com posses

independentes da monarquia.137 Mesmo aqueles que não eram mercenários, os companheiros

de luta do rei, eram independentes do rei, como os heróis da Ilíada em relação a

Agamemnom. O declínio da realeza micênica está associado: 1) a uma diminuição do

comércio com o Oriente Próximo, principalmente no segundo milênio, quando os Estados

entram em colapso; 2) às características geográficas, responsáveis pelo particularismo militar

urbano; e 3) às mudanças da relação entre rei e exército. O resultado desse processo foi a

intensificação de expedições de pilhagem e a divisão de poderes do rei com seus “senhores

feudais” e com os membros dos grandes clãs – também proprietários de terras e castelos e

habitantes da cidade –, cujos membros aconselhavam-no, compartilhavam o espólio e

dividiam a autoridade política sobre as massas.138 Mais uma vez, Weber mistura informações

134 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2 p. 457.

135 ibid. 136 idem., The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R.I. Londres e New York:

Verso, 1998. p. 157-158. 137 ibid., p. 159. 138 ibid., p. 159-160.

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dos poemas homéricos para falar de períodos históricos diferentes, interpretando-os de acordo

com o seu modelo geral, que repousa na continuidade entre estruturas micênicas e políades.

A insistência em universalizar categorias como capitalismo, burocracia, feudalismo e

mesmo “Ocidente” surge em The agrarian sociology of ancient civilizations pela

comparação entre as póleis greco-romanas e as formações do Oriente Próximo. O capitalismo

se tornou dominante no Ocidente, na medida em que o político assume um papel

preponderante na análise das estruturas econômicas. O rompimento com a realeza no

Ocidente, algo que não acontece no Oriente, abre caminho para o surgimento da pólis e do

capitalismo. É só nas cidades-Estados que se desenvolvem novas formas de regra política,

interação econômica, ou legitimação ideológica em entidades geopolíticas claramente

diferenciadas.

Weber também propõe uma série de estágios de desenvolvimento para o Oriente

Próximo, cujos tipos – da fortaleza real aos Estados autoritários litúrgicos ou reinos

burocráticos – são formas de organização política em que a burocracia estatal, ao tempo em

reprime o capitalismo, acentua e consolida o papel do oikos real, monopólio daquele que

detém o poder político, ideológico e econômico e inclui o exército, a burocracia e o templo.

Weber reemprega o oikos, diferente de Rodbertus e Bücher – que o definem como a principal

instituição da civilização greco-romana – como predominante nas realezas burocráticas

orientais e como um obstáculo ao surgimento da polis e desenvolvimento do capitalismo e

feudalismo. A mudança de foco é o papel institucional do Estado – as realezas burocráticas –

que determina o curso das transações econômicas em detrimento das forças mercantis. Weber

rompe com o cerne da teoria evolucionista e abre um caminho de investigação que,

posteriormente, seria explorado por Polanyi.

A linha de continuidade entre The agrarian sociology of ancient civilizations e

Economia e Sociedade é o estudo dos fundamentos da cidade associados ao desenvolvimento

também peculiar ao Ocidente. Contudo, neste livro, Weber deixa de ver as sociedades antigas

sob uma perspectiva de um historiador da Antiguidade, passando a vê-las, prioritariamente,

como elementos comparativos de referência para uma melhor compreensão de peculiaridades

do capitalismo moderno, da sua emergência e de seu futuro. Por isso, nele encontramos

elementos da sociologia de Weber pouco desenvolvidos no primeiro livro, como dominação

estamental, patriarcalismo, carisma, racionalidade e irracionalidade. É necessário, portanto,

antes de explorarmos o nosso tema específico em Economia e Sociedade, apresentar algumas

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considerações sobre a sociologia política de Weber, desenvolvida também neste livro, para

contextualizarmos melhor o lugar da cidade antiga em nossa pesquisa.

A sociologia política de Weber está amparada em dois pilares: domínio e obediência.

Domínio é a manifestação concreta de poder, definido como a probabilidade de impor a

própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências. É, portanto, “a probabilidade

de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas

indicáveis.”139 Está-se diante de uma associação de dominação quando seus membros “estão

submetidos a relações de dominação, em virtude de uma ordem vigente,”140 e esta associação

se torna política quando sua subsistência e a vigência de suas ordens, em um determinado

território geográfico, são continuamente garantidas mediante ameaça e aplicação de coação

física por parte do quadro administrativo.

No processo de desenvolvimento das relações associativas políticas, a comunidade

política monopoliza a aplicação legítima da força para seu aparato coativo, transformando-se

numa instituição protetora de direitos. Um processo de pacificação crescente ajuda todos

aqueles interessados em taxas a empregar seus meios específicos de poder para dominar as

massas e, paralelamente à pacificação e à ampliação do mercado, ocorre a monopolização do

emprego legítimo da violência, elemento definidor do Estado moderno, além da

“racionalização das regras para sua aplicação, que culmina no conceito da ordem jurídica

legítima.”141 Tais considerações levam Weber a afirmar que todas as formações políticas são

de força.

A ordem jurídica influencia a distribuição de toda forma de poder dentro da

comunidade, quer seja econômico ou não, e os fenômenos dessa distribuição são as “classes”,

os “estamentos” e os “partidos”. Para nossos fins, analisaremos apenas os dois primeiros.

Falamos de “classe” quando uma pluralidade de pessoas tem em comum um

componente causal específico de suas oportunidades de vida representado por interesses

econômicos de posse de bens e aquisitivos em condições determinadas pelo mercado de bens

ou de trabalho (situação de classe).142 Assim, as categorias fundamentais de todas as situações

de classe são a “propriedade” e a “ausência de propriedade”. As classes proprietárias

positivamente privilegiadas são tipicamente os rentistas, que podem ser rentistas de seres 139 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 33. 140 ibid. 141 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 160. 142 ibid., p. 176.

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humanos (proprietário de escravos), de terras, de minas, de navios, credores (gado, cereais e

dinheiro) e de valores. Já as classes de proprietários negativamente privilegiados são os

objetos de propriedade, desclassificados, endividados e pobres. O antagonismo de classes

proprietárias entre rentistas de terras e desclassificados e entre credores e devedores,

característico da Antiguidade, pode levar às lutas revolucionárias, porém não necessariamente

com o fim de mudar a constituição econômica, mas de obter acesso à propriedade ou à sua

distribuição.143

Os “estamentos” são constituídos por uma pluralidade de pessoas, dentro de uma

associação, que gozam de uma consideração estamental especial e de monopólios estamentais

especiais. Toda sociedade estamental tende à apropriação monopolística de poderes de mando

e oportunidades aquisitivas144 e é convencional e regulada por normas, daí a “situação

estamental” estar condicionada a uma “específica avaliação social, positiva ou negativa de

honra, vinculada a uma determinada qualidade comum a muitas pessoas.”145 Esta honra pode

estar ou não ligada a uma situação de classe, pois possuidores e não possuidores podem

pertencer ao mesmo estamento, por mais precária que esta “igualdade” da avaliação social

possa tornar-se a longo prazo.146

A honra estamental costumava encontrar sua expressão na imposição de limite ao livre

ingresso em seu círculo e na exigência de uma condução de vida específica para aqueles que

queriam dele fazer parte. Para Weber, o princípio estamental era hostil à atividade aquisitiva e

à regulação da distribuição do poder puramente orientada pelo mercado. A monopolização de

bens ou oportunidades ideais e materiais, o monopólio legal sobre determinados cargos e a

subtração ao tráfico livre daqueles bens monopolizados pelos estamentos obstruíam o livre

desenvolvimento do mercado. Além do mais, em contraste com a “liberdade” da ordem

puramente econômica, a honra estamental condenava o elemento específico do mercado: o

regateio.147

Apesar de afirmar que a honra estamental pôde estar ligada a uma situação de classe e

que as diferenças de classes se combinavam das formas mais variadas às diferenças

estamentais, Weber relaciona os estamentos com a provisão de necessidades de tipo

143 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 200. 144 ibid., p. 202. 145 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 180. 146 ibid. 147 ibid., p. 180-183.

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monopólico-litúrgico, feudal ou estamental, e as classes, com a economia orientada pelo

mercado. Toda sociedade estamental orientava-se pela situação de consumo de bens

economicamente irracionais, enquanto “as classes” diferenciavam-se segundo as relações de

produção e a aquisição de bens, portanto de caráter racional.148

Todas as áreas da ação social, sem exceção, são influenciadas por complexos de

dominação; contudo, seus detentores não pretendiam, exclusivamente, perseguir “interesses

puramente econômicos, como conseguir para si um farto abastecimento de bens

econômicos.”149 O poder econômico era, muitas vezes, uma conseqüência e um dos meios

mais importantes de dominação, porém nem toda posição de poder econômico manifestava-se

como dominação, e nem toda dominação se servia, para sua fundação e conservação, de meios

coativos econômicos. Assim, não se pode designar como dominação qualquer poder

econômico condicionado por situação monopólica, ou seja, “pela possibilidade de ‘ditar’ aos

parceiros as condições de troca, assim como qualquer outra ‘influência’ condicionada por

superioridade erótica, esportiva, argumentativa, etc..”150 Weber parece aqui responder a um

fantasma que o perseguiu por boa parte de sua obra, Karl Marx.

Nenhuma dominação contenta-se voluntariamente com motivos puramente materiais

ou afetivos. Ao contrário, os dominadores procuram influenciar as ações dos dominados de tal

modo que estas ações, num grau socialmente relevante, “se realizam como se os dominados

tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima das suas ações.”151

Devem-se distinguir as classes de dominação segundo suas pretensões à legitimidade,

pois a subsistência de toda dominação depende de justificação pelos princípios da

legitimação: dominação legítima de caráter racional ou legal; dominação legítima de caráter

tradicional; e dominação legítima de caráter carismático.

A dominação legítima de caráter racional ou legal baseia-se na vigência das seguintes

idéias entrelaçadas entre si: a) todo direito pode ser estatuído de modo racional, constituindo-

se em um cosmos de regras abstratas; b) o senhor ou senhores legais típicos e os membros da

associação se orientam e obedecem a ordens impessoais, isto é, “ao direito”; c) As categorias

148 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 202. 149 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 187. 150 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 140. 151 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 191.

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da dominação racional são um exercício contínuo de funções oficiais dentro de determinadas

competências, denominadas “autoridade institucional”. As categorias fundamentais da

dominação são um exercício contínuo de funções oficiais dentro de determinada competência.

A essas categorias se junta o princípio de hierarquia oficial, a qualificação profissional para a

aplicação das regras técnicas e normas, a ausência de apropriação do cargo pelos funcionários

e a fixação por escrito das decisões, disposições e ordenações.152

O tipo mais puro de dominação racional é a “burocracia”, que se compõe de

funcionários individuais que são pessoalmente livres, nomeados para seus cargos com

competências funcionais fixas e livremente selecionados, ou seja, em virtude de um

contrato.153 A administração puramente burocrática é a mais racional porque alcança

“tecnicamente” o máximo de rendimento em virtude da precisão, continuidade, disciplina,

rigor e calculabilidade. A administração burocrática pressupõe, além de determinadas

condições fiscais, condições técnicas de comunicação e transporte adequadas. O seu caráter

fundamental é o “conhecimento”, e seu espírito é o “formalismo” e o “utilitarismo” de suas

tarefas administrativas.154 O surgimento da burocracia teve por toda parte o efeito

“revolucionário”, pois caracterizou o avanço do racionalismo, isto é, regra, finalidade e

impessoalidade objetiva,155 todos elementos comuns da economia aquisitiva e que constituem

a célula germinativa do moderno Estado Ocidental.

Esse caráter da burocracia no seio da dominação racional parece entrar em contradição

com o papel da burocracia apresentado em The agrarian sociology of ancient civilizations,

embora seja preciso especificar a que burocracia Weber estava se referindo. Em algumas

conferências, proferidas em 1909, ele teceu críticas à burocracia prussiana de forma muito

parecida às críticas feitas em The agrarian sociology of ancient civilizations às sociedades

do Antigo Oriente Próximo e mesmo à Roma imperial. A Grã-Bretanha, os Estados Unidos e

a França forneciam, naquele momento, os pontos comparativos positivos. Apesar de criticar o

ideal burocrático de vida, Weber preferia a burocratização da sociedade capitalista moderna à

paz e segurança da burocracia total prometida pelo socialismo. É à burocracia prussiana e ao

152 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 142-143. 153 ibid., p. 144. 154 ibid., p. 145-147. 155 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 213-233.

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socialismo que Weber se volta na época de The agrarian sociology of ancient civilizations,

e não às sociedades capitalistas modernas, consideradas por ele mais “arejadas”.156

A dominação legítima de caráter tradicional caracteriza-se pela crença de ordens e

poderes senhoriais tradicionais, isto é, obedece-se ao senhor, ou senhores, em virtude da

dignidade pessoal que lhe atribui a tradição. Há diversos tipos de dominação tradicional: a

gerontocracia, em que o poder cabe ao mais velho e a administração regular está ausente; o

patriarcalismo e sultanismo, em que o poder é objeto de herança no seio de uma família

determinada e há um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do “senhor”;157

portadores de honra (honoratiores), baseada na santidade da tradição, que existe onde a honra

social (prestígio) no seio de determinado círculo se torna a base de uma posição dominante

com poder de mando autoritário. Não está amparada em relações de piedade filial, mas na

honra. Entre estes tipos, há inúmeras formas de transição.158

O patrimonialismo é a forma mais coerente de dominação legítima de caráter

tradicional. Ela se exerce em virtude do pleno direito pessoal e pode significar tipos muito

diversos, como, por exemplo: a) o Oikos do senhor com provisão das necessidades mediante

prestações em espécie e serviços pessoais; b) a provisão de necessidades que privilegia

determinados estamentos; c) monopolista, com provisão de necessidades, em parte, mediante

taxas, ou mediante impostos. Nestes três tipos, o desenvolvimento do mercado é dificultado, e

o desenvolvimento do capitalismo é ou diretamente impedido ou desviado para o campo do

capitalismo político, se houver o arrendamento e a compra de cargos e o recrutamento

capitalista de exércitos de funcionários administrativos.159 A apropriação de determinados

poderes e oportunidades econômicas pelo quadro administrativo caracteriza uma outra forma

de patrimonialismo, a dominação estamental. Tal apropriação pode se dar por parte de uma

associação ou de uma categoria de pessoas, ou por um indivíduo com caráter vitalício ou

hereditário. Com efeito, a dominação estamental significa sempre limitação da livre seleção

do quadro administrativo pelo “senhor”, que pode ser uma associação ou uma camada

estamental qualificada, em razão da apropriação dos cargos ou poderes de mando.160 Um caso

limite da estrutura patrimonial caracterizado pela divisão de poderes é o feudalismo. Feudo é

156 NAFISSI, M. op. cit., p. 122. 157 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 148-151. 158 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v.2, p. 234-236 159 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 156-157. 160 ibid, p. 152.

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uma concessão de direitos, especialmente de aproveitamento de terras ou de dominação

territorial política, em troca de serviços militares ou administrativos, que proporciona rendas e

cuja posse pode e deve fundamentar uma existência senhorial. Os direitos e deveres

recíprocos se orientam, em primeiro lugar, por conceitos de “honra estamental”.

Entre os diversos tipos de feudalismo delimitados por Weber, um nos interessa mais

de perto. É o “feudalismo urbano”, presente, sobretudo, nos países mediterrâneos, assentado

em uma associação de guerreiros, com distribuição de lotes pelo senhor territorial a cada um

dos guerreiros. Aqui a honra estamental é um elemento fundamental. Weber cita como

exemplo o sentimento de dignidade estamental dos espartanos, baseado na honra e etiqueta do

guerreiro de cavalaria, mas em que falta a relação de fidelidade pessoal. Este feudalismo

urbano helênico encontra seu fundamento na educação como uma “convicção” específica

amparada na honra estamental. Este caráter específico, presente no sistema militar, é um fator

de obstrução às relações racionais “de negócios”.161

Finalmente dominação legítima de caráter carismático, em que o carisma é uma

“qualidade pessoal em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades

sobrenaturais.”162 Tal dominação opõe-se tanto à dominação burocrática, quanto à tradicional,

pois enquanto ambas são vinculadas a regras, discursivamente analisáveis, no caso da

burocracia, e vinculadas aos precedentes do passado, no caso da tradicional, a dominação

carismática não conhece regras e derruba o passado (dentro do seu âmbito), sendo, neste

sentido, revolucionária.163 Não se constitui em um complexo “institucional”, pois tanto o

senhor quanto os discípulos e sequazes, para alcançar seus objetivos, encontram-se fora dos

vínculos deste mundo, das profissões comuns e dos deveres familiares cotidianos.164

Estes são os “tipos puros” de dominação legítima, “cuja combinação, mistura,

adaptação e transformação resultam as formas que encontramos na realidade histórica.”165 O

fato de nenhum dos três tipos ideais existirem historicamente em forma realmente “pura” não

impede a fixação de conceitos para a análise de uma realidade empírica, como no caso da

Grécia Antiga.

161 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, pp. 319-320. 162 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 159. 163 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 158-160. 164 ibid., p. 325. 165 ibid., p. 198.

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Estes esclarecimentos são fundamentais para compreendermos as ferramentas

analíticas utilizadas em Economia e Sociedade, que se encontram em fase de maturação em

The agrarian sociology of ancient civilizations.

Em Economia e Sociedade, o nascimento das cidades é um fenômeno circunscrito

inicialmente ao Ocidente, uma vez que ele está atrelado à presença de um exército auto-

equipado, originário de um “estamento de guerreiros”, com autonomia militar do indivíduo

perante o “senhor” e fomentador de uma comunidade política de cidadãos. A ausência de um

aparato coativo burocrático, servil e dependente fortaleceu o grupo de guerreiros autônomos a

quem o rei precisava recorrer para recrutar seus próprios órgãos administrativos, os

dignitários e funcionários locais. Em suma, o nascimento de uma confraternização urbana

sem impedimento de caráter mágico dos clãs ou das castas e a diferença da constituição

militar, em particular a de seus fundamentos econômicos religiosos, surgiram inicialmente no

Mediterrâneo e depois na Europa. As “cidades” são, portanto, definidas como: 1) aglomeração

urbana, com um mercado regular; 2) associação reguladora da economia; e 3) espaço dotado

de uma política de caráter institucional, com órgãos específicos. Weber irá aqui definir “tipos”

de cidades: a cidade de linhagens, a cidade plebéia e a cidade democrática, que estão em

direta relação com os tipos de pólis de The agrarian sociology of ancient civilizations: pólis

aristocrática, pólis hoplita e pólis democrática.

Em Economia e Sociedade, Weber afirma que a cidade nasceu, de fato, como uma

associação estamental dirigida por um círculo de honoratiores. A esses “portadores de honra”

que monopolizavam a administração da cidade, Weber chama de “linhagens” e, ao período de

sua influência, período da “dominação das linhagens”. Em The agrarian sociology of

ancient civilizations, o período de dominação das linhagens corresponde à pólis aristocrática.

O declínio do poder real inicialmente em áreas engajadas no comércio marítimo e, em

seguida, em áreas continentais, onde o desenvolvimento de mercadorias reais e séquitos tinha

sido mais baixo,166 possibilitou a acumulação de riquezas de clãs aristocráticos provenientes

do espólio e de lucros comerciais, investidos em terras e em um número maior de clientes.

Estas são as condições apresentadas em The agrarian sociology of ancient civilizations,

desenvolvidas posteriormente em Economia e Sociedade, para o nascimento da típica

“cidade aristocrática ou de linhagens”, em geral litorânea e centro do poder político e

econômico da nobreza. Composta por uma classe dominante guerreira detentora de terras

férteis e servos, a aristocracia urbana era uma liga de grandes clãs, a princípio uma classe de 166 ibid., p. 160.

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credores e, posteriormente, proprietária de terras e vivendo de aluguéis, cujo governo era

exercido pelo primeiro inter pares ou por magistrados eleitos. A posição de poder social

dessas linhagens se “fundamentava em bens de raiz e não em rendas procedentes de um

empreendimento artesanal próprio.”167

As póleis gregas eram “‘primariamente’ comunidades de assentamentos fundadas por

guerreiros” 168 que possuíam castelos rurais, mas, em geral eram astoí, isto é, linhagens

residentes nas cidades. O essencial na constituição da pólis “era a confraternização das

linhagens em uma comunidade de culto: a substituição do pritaneu de cada linhagem pelo

pritaneu comum da cidade, onde os prítanes realizavam seus banquetes comuns.”169 Estas

associações cultuais eram rigorosamente exclusivas em relação aos estranhos. Quem quisesse

ser membro da cidade tinha que pertencer às fatrias e aos phyles.

O contraste entre interior e litoral é o primeiro de uma série de outros que vão aparecer

ao longo de sua análise nos dois textos. É no litoral que as condições para o desenvolvimento

do comércio, particularmente o marítimo, foram mais propícias, fato que é fortemente

acentuado em The agrarian sociology of ancient civilizations. O desenvolvimento do

comércio e as mudanças na tecnologia militar resultaram no crescimento de proprietários

fundiários com recursos suficientes para comprar armas e armadura hoplita. O perigo de

invasões estrangeiras levou o Estado a invocar constantemente esta classe para o serviço

militar e, como o serviço militar era privilégio dos economicamente capazes de se auto-

equiparem, a posse de terras tornou-se uma qualificação econômica para admissão à

comunidade. Para garantir a posição dos guerreiros na comunidade, os Kleros (lote de terras)

não podiam ser vendidos ou divididos em muitos Estados gregos. Tal proibição deve ter

forçado a escolha de um herdeiro principal. Tal fato formava o etos da classe militar, e seu

efeito era visto na condenação da venda de terras herdadas.170

O desenvolvimento do poder militar assumiu, nas poleis, diferentes características. Em

Esparta, os interesses militares alcançaram maior amplitude porque estavam apoiados por

uma economia natural, “alimentada” pela contribuição forçada de servos e escravos. Weber

afirma que, após a guerra do Peloponeso, a política militar de Esparta, inibidora das trocas

167 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p.446.

168 ibid., p. 463. 169 idem, The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução FRANK, R.I. Londres e New York:

Verso, 1998, pp. 157-158. 170 ibid., p. 164-166.

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comerciais, foi enfraquecida em razão da entrada de dinheiro e da criação de fortunas

privadas, que revolucionaram o consumo da casta dominante e minaram a base econômica do

sistema espartano.171 Considera, ainda, o “sistema militar feudal” de Esparta como atípico do

mundo grego, pois não se encontra em outros lugares uma igualdade tão intensa entre a classe

guerreira, obrigando-a, por exemplo, a sobreviver da produção de loteamentos de oito a doze

hectares trabalhados por hilotas. Enquanto Esparta, Creta e outros Estados “feudais” baseados

na conquista mantinham boa parte de sua população escravizada, outros desenvolveram a

servidão por débito, sem eliminar as relações de clientela.172Além dos escravos por débito, a

terra também era trabalhada por locatários. Havia duas classes de latifundiários: a dos

camponeses e a dos grandes proprietários de terras, gado e dinheiro. O endividamento da

primeira pela segunda foi um traço peculiar de toda a Antiguidade, caracterizando os grandes

conflitos sociais do mundo helênico.

A propriedade da nobreza era, sobretudo, de caráter senhorial-territorial, porém os clãs

aristocráticos das cidades gregas, especialmente das cidades costeiras, estavam, em geral,

envolvidos em frotas mercantes. Alguns chegaram a engajar-se diretamente no comércio

marítimo, como Sólon, possuíam grandes bens de produção de grãos e promoviam

empréstimos para os camponeses. Observa-se, portanto, que, apesar do comércio ainda não

predominar em relação à economia de troca, já era possível vislumbrar lucros comerciais

significativos do comércio marítimo.173 O poder senhorial-territorial das linhagens origina-se

em oportunidades lucrativas urbanas, e isto significa que o campo não tinha direito algum.

Quem não pertencia à camada guerreira urbana estava submetido ao senhor urbano em razão

da exclusão do poder político e jurídico.

Em Economia e Sociedade, deixando um pouco de lado a ênfase no papel do

comércio, Weber procura enfatizar os valores das linhagens que constituíam a classe de

rentistas, que, apesar de participarem de empreendimentos comerciais como donos de navios,

comanditários ou prestamistas de comerciantes marítimos, deixavam para outros os riscos, a

realização dos negócios e a viagem pelo mar. Eram, portanto, comerciantes ocasionais,

“financiadores”, que investiam sua propriedade em vários empreendimentos concretos, mais

preocupados com a direção teórica do negócio, proibidos, porém, pela etiqueta estamental, em

alguns casos juridicamente fixada, de assumirem a posição de empresário. Quem ultrapassava

o limite do investimento de bens pelo lucro capitalista era considerado um homem vulgar, já

171 ibid., p. 167-168. 172 ibid., pp. 168-170. 173 ibid., p. 172

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que a avidez do lucro não era condenada, mas, sim, a sua forma racional, organizada em

empresas, e “burguesa” da atividade aquisitiva, isto é, a ocupação aquisitiva sistemática.174

Reside aqui a oposição com o ethos do capitalismo moderno.

No texto mais antigo, Weber afirma que o desenvolvimento do comércio marítimo

levou a uma crise dos Estados dominados pelos clãs aristocráticos nas cidades costeiras, tendo

contribuído para isso principalmente o incremento da economia monetária, que acarretou uma

diferenciação na renda, e o crescente endividamento do campesinato. Outros fatores também

contribuíram para essa crise: a servidão por débito, que se tornou gradualmente uma ameaça

militar ao poder político do Estado; o radicalismo a que se encaminharam os camponeses em

virtude da perda de direitos políticos e da degradação social; e o desenvolvimento, nas cidades

portuárias da costa, de uma nova classe ligada à indústria de exportação e ao comércio, fora

dos círculos tradicionais daqueles que viviam da terra, formando os setores que estavam

dispostos a derrubar os regimes aristocráticos.175 O comércio, portanto, aqui, começa a minar

o sustentáculo de poder das antigas aristocracias: a terra. Nessa análise, Weber se aproxima

muito de Meyer e se afasta dos primitivistas Rodbertus e Bücher.

Assim, a pólis aristocrática deu lugar a um novo “tipo”: a pólis hoplita, que, em

Economia e Sociedade, corresponde a um novo “tipo” de cidade, a plebéia, onde o domínio

dos clãs sobre a cidade e o campo foi derrubado por um movimento democrático dos cidadãos

não nobres. Na pólis hoplita, a cidadania ainda era condicionada pela propriedade de terra, o

exército era composto essencialmente pela “burguesia” rural, e os seus membros tinham que

prover seus equipamentos. O comércio não era totalmente livre, principalmente o terrestre, e a

expansão da propriedade de bens era bloqueada por limites estabelecidos sobre a quantidade

de terras e o número de escravos que um cidadão poderia possuir.176 Os camponeses e a

pequena “burguesia” capazes de se armarem ocupavam uma função militarmente

indispensável, reivindicavam o fim das formas de vendetas legais e da jurisprudência baseada

no costume e privilégio e demandavam a substituição dessas instituições por códigos legais e

uma administração de justiça igualmente útil para todos os cidadãos. Além disso, também

174 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2. p. 466-468.

175 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York: Verso, 1998. p. 173.

176 ibid, p. 174-175.

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pressionavam pela eliminação da servidão por débito, pela limitação das taxas de juros e pela

restrição de hipotecas.177

A vitória desses setores significou a realização progressiva do caráter institucional da

associação política: o demos, que se torna subseção de todo o território e fundamento de todos

os direitos e deveres da pólis. Ao mesmo tempo, o direito tornou-se institucional para os

habitantes urbanos e, progressivamente, transformou-se em um direito estatuído,

fundamentado na aprovação daqueles para os quais valia, algo criado artificialmente, e a lei,

resultado da proposta de um cidadão. Atenas deu passos decisivos para a criação de um

direito racional, ao abolir instâncias de cassação religiosa e aristocrática; esse movimento

democrático não significou, entretanto,

a igualdade de todos os cidadãos em relação à capacidade de ocupar cargos ou participar no conselho ou ter direito de voto, nem sequer o acolhimento na associação dos cidadãos de todas as famílias pessoalmente livres e com direito de residência.178

Os cidadãos diferenciavam-se segundo as categorias eleitorais e a capacidade de

ocupar cargos de acordo com a renda do solo e a capacidade militar, posteriormente segundo

a fortuna.179

O resultado das reivindicações e das transformações a que nos referimos está contido,

em parte, no programa dos grandes reformadores, que procuravam suavizar ou remover os

débitos e deter os processos de diferenciação social. O programa mais ambicioso foi o de

Sólon, que cancelou todos os débitos (seissachteia) para os quais terras e pessoas tinham sido

oferecidas como garantia, além de liberar os servos áticos de débitos que tinham sido

vendidos no estrangeiro. Apesar disso, a política de Sólon para favorecer a exportação de

azeite e cerâmica e suas medidas para promover o comércio e proibir a exportação de grão

mostram que elas não foram tomadas para beneficiar o campesinato nem para impedir o

domínio das fatrias pelas antigas aristocracias.

Em Economia e Sociedade, Weber aponta a transformação da administração como

resultado do desenvolvimento democrático. Em lugar dos notáveis, aparecem os funcionários

do demos eleitos ou sorteados, para quem o exercício curto do cargo e a proibição de reeleição

177 ibid, p. 174. 178 ibid., p. 476. 179 ibid.

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obstruíam a possibilidade de uma carreira profissional. Os cidadãos desempenhavam

atividades ocasionais, em que as receitas constituíam uma fonte de renda acessória: “Os

grandes cargos políticos, sobretudo os militares, estavam reservados aos cidadãos abastados,

pois demandavam tempo integral.”180 Tudo isto impedia a formação de uma burocracia nos

moldes modernos, resultando, diferentemente do que está em The agrarian sociology of

ancient civilizations, na ausência de um elemento positivo ao desenvolvimento do

capitalismo. Em The agrarian sociology of ancient civilizations, em que o Oriente é o

principal eixo comparativo, a ausência de burocracia é positivamente recebida; já em

Economia e Sociedade, esta ausência significa a falta de um elemento para se alcançar um

outro estágio mais complexo.

Também comum às cidades plebéias é o fenômeno da tirania urbana. Em geral, os

tiranos apoiavam-se em setores da classe média e nos atingidos pela usura e tinham como

adversários as linhagens, cujos representantes eram exilados e tinham suas terras confiscadas.

Algumas medidas dos tiranos são comuns àquelas dos legisladores. Ambos representavam a

economia citadina e seus interesses contra o monopólio do poder político dos antigos clãs

aristocráticos e do poder econômico das antigas e novas classes proprietárias de dinheiro e de

homens e, em regra geral, eram apoiados pelos camponeses. Daí a Lei de Periandro contra a

compra de escravos e a de Sólon contra a acumulação de terras.181 Enquanto algumas leis

limitavam a venda de terras para a cidade, isto é, para os aristocratas com interesses

especulativos ou para a revenda, alguns privilégios eram estendidos para metecos na indústria

da Ática, facilitando sua cidadania ou a compra de terra e permitindo a exportação de azeite,

mas não de outros produtos agrícolas. Todas estas medidas representam, para Weber, uma

política de caráter “pequeno-burguesa” muito mais do que de estrito favorecimento aos

camponeses. Um exemplo é a proibição de Periandro aos camponeses de usarem roupas

citadinas ou de emigrarem para a cidade, junto com os esforços de mandar para o estrangeiro

as massas rurais que se dirigiam para a cidade por débitos e desapropriação.182

Apesar do desenvolvimento dessas relações comerciais, Weber afirma em The

agrarian sociology of ancient civilizations que a pólis helênica da época pré-clássica até as

origens da democracia é de caráter feudal, particularmente em Esparta, onde o direito de

180 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 477-478.

181 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York: Verso, 1998. p. 176.

182 ibid., p. 176-178.

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cidadania pressupunha o direito de portar armas e todos os cidadãos eram senhores territoriais

que fundamentavam seu poder nas mais diversas relações de clientela.183 A concessão de um

lote de terras (kleros) inalienável, combinada com o dever de serviço militar, desempenhava

um papel fundamental nesse “feudalismo urbano”, típico do modelo de Esparta. O feudalismo

ocidental contrastava com as burocracias orientais, de caráter político extremamente

centralizado. Não obstante, em Economia e sociedade, Weber iria coadunar os elementos da

dominação tradicional com aspectos da dominação carismática encontrados novamente nos

poemas homéricos. A relação dos heróis homéricos com a divindade e o papel de Aquiles são

aspectos característicos deste tipo de dominação. Esta ancestralidade divina dos heróis é o

aspecto anticotidiano desta forma de dominação, que não rejeitava donativos e outras formas

voluntárias de contribuição. Portanto, todo este período apresenta traços da dominação

tradicional e, de forma mais atenuada, da dominação carismática.

Com as medidas de Clístenes, quando se fez uma nova divisão territorial do Estado,

minando o poder territorial dos grandes clãs aristocráticos – aumento do comércio marítimo,

fim da inalienabilidade da venda e hipotecas de terras e fim das barreiras na posse de

escravos, – ocasionando o aumento do afluxo de escravos comprados, abre-se a possibilidade

para o surgimento de uma

nova classe de cidadãos com “plenos” direitos, descendentes de famílias de cidadãos “plenos”, mas que, economicamente arruinados, endividados, sem propriedade alguma e incapazes de equipar-se para o serviço militar, esperavam de uma revolução ou da tirania a redistribuição dos bens de raiz, a remissão de suas dívidas ou sua sustentação por meios públicos.184

Estas transformações deram origem a um novo “tipo” de pólis: a democrática cidadã

ou a um novo “tipo” de cidade: a democrática. Tanto em The agrarian sociology of ancient

civilizations como em Economia e Sociedade, este novo tipo é caracterizado por uma

transformação fundamental no desenvolvimento dos tipos até então investigados: a irrupção

do capitalismo, ou melhor, de um tipo particular de capitalismo, o político, característico do

mundo antigo.

183 ibid., p.288. 184 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p.495.

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O fenômeno do capitalismo esteve no centro das preocupações da sociologia

econômica de Max Weber. A diversidade das causas e as distintas tendências típicas de

orientação das atividades aquisitivas, que não cessavam de intervir no curso de seu

desenvolvimento histórico, são os argumentos que o levaram a acreditar que não havia um

capitalismo, mas capitalismos, daí não ser possível reduzi-lo a uma fórmula. Weber, em

diversos trabalhos, definiu os elementos constitutivos da estrutura capitalista, fundamentais

para seu entendimento: empresa e gestão econômica. A empresa é uma “categoria técnica que

designa a forma em que estão continuamente coordenados determinados serviços de trabalho

entre si e com os meios de obtenção materiais.”185 Gestão econômica “é o exercício pacífico

do poder de disposição que primariamente é economicamente orientado,”186 isto é, uma ação

que se refere, quanto ao seu sentido, à satisfação do desejo de obter certas utilidades.

Encontramo-nos diante do capitalismo quando em “uma economia de produção a satisfação

das necessidades de um grupo humano se faz por intermédio da empresa, pouco importando a

natureza das necessidades a satisfazer.”187 Tais elementos constitutivos permitiram a Weber

afirmar que houve embriões ou formas de capitalismo: ora aventureiro, ora mercantil,

orientado para a guerra, para a política ou para a administração, na China, na Índia, na

Babilônia, na Antiguidade Clássica e na Idade Média. Se àqueles traços, porém, forem

acrescentados outros elementos constitutivos, por exemplo, a empresa capitalista racional, ou

seja, aquela baseada no cálculo de capitais, associada às previsões de um mercado regular e à

organização capitalista do trabalho (formalmente) livre, bem como uma distribuição de

serviços orientada puramente pelos princípios da economia de troca, então estamos diante de

um tipo particular de capitalismo: o capitalismo moderno ocidental. Em outras palavras, toda

sociedade capitalista apresenta singularidades que não encontramos em outras sociedades do

mesmo tipo.

Em The agrarian sociology of ancient civilizations, Weber levanta as seguintes

questões para explorar e entender o capitalismo do período clássico: 1. Qual o efeito do

comércio livre na Grécia, onde os direitos democráticos não dependiam da propriedade da

terra, que tinha se tornado em grande parte inteiramente transferível e livre de qualquer

vínculo? 2. Qual o caráter e o significado da escravidão no período clássico? A abolição da

escravidão por dívidas, ainda no estágio hoplita, contribuiu para a criação de condições para o

185 WEBER, M. categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica. In: _______. Economia e

sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999. p. 37-138. 186 ibid., p. 37. 187 WEBER, M. Apud FREUND, J. A sociologia de Max Weber. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa,

3a edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980. p. 127.

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desenvolvimento do “capitalismo”, pois propiciou a substituição do escravo por dívidas por

escravo comprado.188 Em Economia e Sociedade, o autor enfatiza o papel da esfera política

sobre o “capitalismo antigo”. Cabe-nos ainda observar que, em sua análise da pólis

democrática cidadã, Weber freqüentemente opera com dois tipos de comparação: a Roma

Antiga e a Idade Média.

A limitação absoluta na venda de loteamento, a proibição de acumular propriedade e a

limitação em dividir e hipotecar propriedades caíram quando a defesa foi confiada a

mercenários. Weber compara, em The agrarian sociology of ancient civilizations, as

condições gerais gregas com a romana e se pergunta se estas transformações promoveram o

tipo romano de concentração de terras e formação de grandes empresas de trabalho escravo.189

Diferentemente do caso romano, não havia na Grécia Antiga grandes edifícios em áreas rurais

em virtude da participação política que levou os camponeses a se transferirem da zona rural

para a cidade. Os capitalistas de cidades costeiras tinham propriedades fundiárias, mas eram

investimentos e estavam em parcelas separadas, não se constituindo, portanto, em domínios

feudais. Dispersas também estavam as propriedades das linhagens, com a divisão territorial

em demoi ou tribus, o que contribuiu para o enfraquecimento de seu poder político, uma vez

que as linhagens não poderiam fazer valer seu poder de forma integral, mas apenas dentro dos

demoi. Mas, se depois do século V, a terra ática podia ser vendida e hipotecada à vontade, era

negado a todos os não-cidadãos o direito de possuir terras e de negociar com hipotecas.190 Eis

aí a permanência de um traço estamental da corporação de guerreiros.

Nos demoi, um quarto dos cidadãos não tinha nenhuma propriedade fundiária, e eram

poucas as posses com mais de cinqüenta hectares de extensão para o cultivo de oliva.

Outrossim, as posses deixadas em arrendamento hereditário eram, geralmente, fazendas de

tamanho médio, e as maiores eram encontradas somente em áreas onde novas terras eram

divididas. Portanto, no século V e IV a.C., não houve tendência à concentração de posse de

terras, e o estilo prevalecente de vida grego foi marcado por grande simplicidade.191

Para compreender as mudanças de abordagem de Weber sobre o tema da escravidão

ao longo do tempo, é necessário retornar ao seu primeiro trabalho sobre a História Antiga, Die

sozialen Gründe des Untergangs der antiken Kultur (As causas sociais do declínio da

188 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York:

Verso, 1998. p. 75. 189 ibid., p. 189-190. 190 ibid., p. 191. 191 ibid., 199-200

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cultura antiga), publicado em 1896. Nesse trabalho, em que Weber afirma que “a cultura

antiga é uma cultura escravista,”192 a escravidão é o elemento fundamental do caráter distinto

da civilização antiga, e o oikos escravista o centro das relações econômicas antigas. Sob a

influência de termos utilizados por Marx, Weber afirma que, sob a superestrutura comercial,

insere-se uma infra-estrutura em constante expansão, dedicada ao consumo não comercial:

“os conjuntos de escravos que absorviam sem cessar os homens, cujas necessidades não se

satisfaziam comprando no mercado, mas no interior do próprio domínio econômico.”193 É um

texto francamente “primitivista”, em que o autor faz questão de afirmar as especificidades da

cultura antiga.

Já em The agrarian sociology of ancient civilizations, a escravidão é vista como um

entre muitos outros traços distintivos de certas épocas da Antiguidade e, cedendo às pressões

modernistas, Weber não subestima a importância do trabalho livre. Na pólis democrática

cidadã, com o aumento da escravidão houve uma depreciação do salário dos trabalhadores

livres, os quais, em geral, recebiam do Estado o mesmo salário dos escravos. Esta visão de

uma concorrência entre o trabalho livre e escravo é uma influência de Meyer. Segundo

Weber, o Estado nunca se preocupou em assegurar exclusividade para os trabalhos públicos,

em primeiro lugar porque os artífices nativos não eram suficientes para a demanda de grandes

projetos de Estado e, depois, porque os proprietários de escravos lucravam com o emprego de

sua mão-de-obra escrava recebendo parte de seus rendimentos. Assim, o aumento de

produtividade do escravo significava aumento dos ganhos dos proprietários. A tendência aos

baixos salários foi resultado do baixo padrão de vida ao qual eram reduzidos os escravos, na

maioria das vezes, ao mínimo essencial para sua subsistência.194 Tal situação também

enfraqueceu a demanda do consumo, pois como o vestuário e a alimentação do escravo eram

comprados no mercado e exigiam pouco grau de satisfação, não havia estímulo ao

desenvolvimento do mercado.

O uso “industrial” do trabalho escravo foi promovido por importadores de matérias-

primas, não havendo, com o desenvolvimento de atividades industriais associadas ao trabalho

escravo, o desenvolvimento da tecnologia e organização da produção. Os escravos

“industriais” representavam uma forma de investimento de capital, passavam de senhor para

senhor por meio de compra, hipoteca e aluguel ou em grandes unidades de produção. O 192 WEBER, M. As causas sociais do declínio da cultura antiga. In: COHN, G. (org). Max Weber. Rio de

Janeiro: editora Ática, 2004. p. 41. 193 ibid., p. 42 194 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução FRANK, R. I. Londres e New York:

Verso, 1998. p. 202-204.

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postulado do atraso e da ineficiência do trabalho escravo em relação ao trabalho assalariado já

está presente em The agrarian sociology of ancient civilizations, pois, segundo Weber, não

houve na Grécia, assim como em toda a Antiguidade, o uso de métodos para organizar a

produção com o fim de conseguir melhores, maiores e mais organizadas unidades de

produção. O trabalho escravo não foi adaptado para tal objetivo porque não havia um mercado

consumidor crescente para mercadorias industrialmente produzidas.195

Segundo Weber, as inovações tecnológicas foram poucas na Antiguidade e estavam

restritas à agricultura no interior e à tecnologia militar e de construção. Junto a isto, os

proprietários de escravos foram afetados pelas extraordinárias variações do mercado,

particularmente as freqüentes guerras, e pelo custo de manutenção dos escravos. Dessa forma,

os proprietários queriam sempre dividir as propriedades, preferencialmente alugando-as, ou

convertendo-as em dinheiro de outros modos. Era, portanto, um locador, não um

empresário.196

Em Economia e Sociedade, na seção sobre as categorias fundamentais da gestão

econômica, Weber contrapõe a grande empresa capitalista escravista, com limites ao

desenvolvimento de uma empresa capitalista com o grau de divisão e organização do trabalho

alcançado na modernidade, à racionalidade produtiva do capitalismo moderno. Assim, a

escravidão aparece como um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo nos moldes

modernos. Em primeiro lugar, porque “significa uma limitação do livre recrutamento da força

de trabalho e, portanto, de seleção segundo o máximo de rendimento técnico dos

trabalhadores e, por conseguinte, uma limitação da racionalização formal da gestão

econômica.”197 Toda tentativa de fomentar um incremento de rendimento técnico esbarrava

no pouco interesse dos escravos mais preocupados em conservar a situação de vida

tradicional. Eis aí os motivos de os escravos, em geral usados na agricultura extensiva, não se

interessarem pelo avanço tecnológico ou pelo aumento quantitativo ou qualitativo da

produção. Weber contrapõe esta situação restritiva à das fábricas modernas, em que o

recrutamento é “livre”, enquanto naquela era politicamente condicionada. Por outro lado,

estava vedada a possibilidade de demissão.

195 ibid., p. 208. 196 ibid., p.104-111. 197 idem. Categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica. In: Economia e sociedade: Fundamentos

da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v 1, p. 83

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Na seção sobre as “tipologias das cidades”, Weber destaca a falta de especialização da

mão-de-obra servil na agricultura extensiva, nas minas e nos quartéis como um obstáculo a

qualquer tipo de coordenação precisa de operações diferenciadas, elemento essencial da

produção industrial moderna. Apesar de falar em empresa capitalista escravista, Weber

destaca o papel dos escravos como fonte de renda para seus senhores, parecendo ser esta

modalidade de exploração muito mais importante no contexto da economia antiga do que

aquela diretamente voltada para o processo produtivo. Tanto assim que Weber destaca a

ascensão da servidão à liberdade, pela atividade aquisitiva no regime de economia monetária,

como um elemento constituinte da cidade ocidental.198

Finalmente, a influência da política no capitalismo antigo. Para entendermos as

características desse “tipo” de capitalismo, é necessário esclarecer a definição de

racionalidade e irracionalidade na sociologia weberiana e sua relação com o capitalismo

moderno. Os escritos sobre esse tema estão espalhados em vários textos produzidos em

épocas diferentes. Em Ética protestante e o espírito do capitalismo, escrito entre 1904 e

1905, e em Economia e sociedade, é possível perceber que Weber define o racionalismo em

direta conexão com o capitalismo moderno. No capítulo II de Ética protestante e o espírito

do capitalismo, intitulado O espírito do capitalismo, Weber afirma que a ausência de um

ethos direcionado para a acumulação indefinida de mais dinheiro, com uma economia estrita

que calcula a possibilidade de altos rendimentos, combinada com o afastamento de todo gozo

espontâneo da vida, no qual o trabalho deve ser executado como um fim absoluto por si

mesmo – como uma vocação –, caracteriza os sentimentos éticos de épocas anteriores ao

surgimento da sociedade capitalista moderna. Para superar esses obstáculos, as forças

motivadoras da expansão do capitalismo moderno tiveram que instituir um novo espírito, que

de forma alguma foi pacífico. Tal espírito, alicerçado em uma economia capitalista

individualista, racionalizada no cálculo rigoroso e direcionada para o sucesso econômico

contrastava com o tradicionalismo do artesão da guilda ou do capitalismo orientado pela

exploração de oportunidades políticas e especulação irracional.199

Segundo Freund, a passagem do tradicionalismo para o racionalismo é o marco divisor

para o surgimento da ética capitalista. Apesar de afirmar que se pode racionalizar a vida de

pontos de vista fundamentalmente diferentes, Weber está interessado em entender a lógica de 198 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 427.

199 WEBER, M. O espírito do capitalismo. In: A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Pioneira, 1999. p. 28-51.

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“um” racionalismo, que está associado ao surgimento da sociedade capitalista moderna,

vendo-o como o “resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à

civilização ocidental”.200 É o predomínio da previsão sobre qualquer poder misterioso e

imprevisível no curso da vida. Uma gestão econômica é “formalmente” racional quando se

exprime em considerações de caráter numérico e calculável, isto é, com referências afins e de

acordo com um plano. A troca nem sempre é determinada por motivos racionais, podendo

também ser determinada pela tradição. Quando serve para fins de abastecimento em produtos

de necessidade cotidiana, em geral, em condições individualmente determinadas, assume um

caráter irracional, porém, quando orientada para o abastecimento de um ou vários

participantes com determinado bem, ou por oportunidade de lucro no mercado, assume caráter

racional.201 Nesse sentido, temos mercado quando

pelo menos por um lado há uma pluralidade de interessados que competem por oportunidades de troca. Quando estes se reúnem em determinado lugar, no mercado local, no do comércio a grande distância (anual, feira) ou no de comerciantes (bolsa), temos apenas a forma mais conseqüente da constituição de um mercado, sendo esta, no entanto, a única que possibilita o pleno desdobramento do fenômeno específico do mercado: o regateio.202

Também própria da gestão aquisitiva (um comportamento orientado pelas

oportunidades de ganhar novos poderes de disposição sobre bens) de caráter racional é o

cálculo de capital, que

significa avaliação e controle de oportunidades e resultados da gestão aquisitiva, comparando-se, por um lado, a importância estimada em dinheiro de todos os bens de aquisição....ao fim da respectiva atividade, ou no caso de um empreendimento aquisitivo contínuo, com referência a um período de cálculo, mediante balanço inicial e final.203

200 FREUND, J. op. cit., p. 19. 201 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 44. Na página 52, Weber também utiliza o conceito de racionalidade material, que ele mesmo admite ser inteiramente vago. Assim ele define tal racionalidade: “seus diversos significados só têm uma coisa em comum: que a consideração não se satisfaz com o fato puramente formal e (relativamente) inequívoco de que se calcula de maneira racional, com vista a um fim, e com os meios tecnicamente mais adequados possíveis, senão que estabelece exigências éticas, políticas, utilitaristas, hedonistas, estamentais, igualitaristas ou outras quaisquer, e as toma como padrão dos resultados da gestão econômica – por mais racional, isto é, de caráter calculável, que esta seja do ponto de vista formal -, procedendo assim de modo racional, referente a valores com racionalidade material referente a fins”.

202 ibid., p. 419. 203 ibid., p. 51

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Mercado e moeda são, portanto, elementos indissociáveis para se alcançar a

racionalidade econômica: a introdução da moeda torna as relações no mercado mais

impessoais, dispensando o conhecimento entre os parceiros. Weber deixa claro que

impessoalidade e lucro constituem uma ética estranha a qualquer tipo de fraternidade e

devoção entre as comunidades humanas, mas são características do mercado, definidas por ele

como objetividade do mercado, que se confunde com racionalidade.

A ampliação da liberdade formal de mercado e a universalização das trocas mercantis

contrapõem-se ao monopólio e a qualquer tipo de limitação. Por outro lado, apesar de Weber

falar em liberdade de mercado, “o grau de autonomia de cada um interessado na troca, dentro

da luta de preços e de concorrência,”204 ele também pressupõe regulamentação do mercado,

isto é, uma garantia jurídica que assegure as condições de regularidade das permutas. Sem a

“quantificação de ordem monetária e sem a regulamentação jurídica, o mercado não seria

possível.”205 Portanto, o mercado pressupõe a existência de condições que viabilizem a troca

como um meio mais racional de orientação econômica. Desta forma, a regulamentação à qual

Weber se refere é aquela orientada para garantir o máximo de lucro possível das empresas

capitalistas. As outras regulamentações são de caráter irracional.

Outro elemento constituinte da racionalidade econômica capitalista é a técnica, que

assume caráter racional pelo princípio do “esforço mínimo”, isto é, “aplicação de meios que,

consciente e planejadamente, está orientada pela experiência e pela reflexão, e em seu

máximo de racionalidade, pelo pensamento científico.”206 Tal princípio deve dar margem

também a uma mecanização considerável tanto na produção, quanto na circulação de bens.

Finalmente, a liberdade do mercado também pressupõe a liberdade do trabalho, “no

sentido em que os indivíduos que vendem suas capacidades não o façam somente por

obrigação jurídica, mas por motivos econômicos.”207 Tal fator está associado à apropriação de

todos os meios materiais de todas as espécies e à especialização interna dos serviços.

Em Economia e sociedade, Weber compara o desenvolvimento econômico e político

do Mundo Antigo com a Idade Média e os Tempos Modernos, demonstrando que um

primeiro elemento diferenciador da política da pólis democrática cidadã grega em relação à

Idade Média é a ausência de corporações. A presença de escravos trabalhando lado a lado

204 ibid., p. 50. 205 FREUND, J. Op. Cit., p. 122. 206 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 38. 207 FREUND, J. op. cit., p. 127.

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com os trabalhadores livres nas construções públicas, nos ergastérios e no abastecimento do

Estado, impedia a formação de uma corporação de artesãos livres com reivindicações políticas

e econômicas capazes de satisfazer as necessidades estatais. Diferentemente da Idade Média,

a cidade democrática estava dividida em demoi. “A fundamentação exclusiva da organização

política sobre comunidades locais e, sobretudo, a extensão destas a toda região rural

integrante do domínio político da cidade”208 era um traço específico da pólis democrática da

Antiguidade.

Se na Idade Média, predominavam os interesses dos grandes empresários burgueses e

dos artesãos capitalistas, essencialmente urbanos, reunidos em corporações, interessados no

comércio e no artesanato, na Antiguidade predominavam os interesses dos camponeses,

constituintes do exército hoplita, empenhados na conquista de terras para o cultivo, e da

pequena burguesia, interessada em rendas diretas ou indiretas procedentes dos territórios

dependentes, isto é, subsídios financiados pelo Estado com impostos dos súditos. Além disso,

a ocupação dos cargos da administração distribuídos pelos diversos demoi, significou, em

tese, uma ascensão política dos camponeses, e não da burguesia urbana. Em tese, porque a

relação do cidadão com seu demos era hereditária, não o obrigando a residir na localidade de

seu demos,209 “independente do lugar de residência, da propriedade de terras e da profissão,

do mesmo modo que se nascia como membro da fatria e do clã.”210

A política de cidade antiga estava a serviço de um demos, ansioso por obter benefícios

com os tributos e com a pilhagem dos territórios conquistados. A corporação dos cidadãos

interferia em todas as esferas da vida dos indivíduos, diminuindo a força combativa dos

cidadãos: na esfera econômica, penhorava aos credores, em caso de dívida, a propriedade

particular, colocando a “mão” em todos os patrimônios do cidadão, gerando instabilidade na

formação dos patrimônios. A uma crise política, poderia haver fuga de escravos, um dos

componentes principais dos patrimônios. As guerras eram elementos desestabilizadores dos

investimentos, que se concentravam na aquisição de terras (internas e no exterior), de pessoas,

de navios e na participação com capital no comércio marítimo. Tudo isso leva Weber a

concluir que “um demos deste tipo jamais poderia estar primariamente orientado no sentido de

atividades econômicas pacíficas e de uma gestão econômica racional.” 211

208 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 498.

209 ibid., p. 496-501. 210 ibid, p.501. 211 ibid, p. 511.

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Dessa forma, o desenvolvimento democrático não persegue uma autêntica política

industrial de produtores, mas, sim, dos consumidores urbanos preocupados com as

necessidades do Estado. Não obstante, as medidas ocasionais do Estado grego para favorecer

produções para exportações não estavam relacionadas com ramos de produção industrial, e,

em nenhum lugar, dominavam os interesses de produtores na política da cidade antiga. Os

rumos da política eram decididos pelos patrícios urbanos senhoriais-territoriais, interessados

no comércio marítimo e na pirataria, capazes de auto-equipamento militar, pelos donos de

dinheiro e de escravos e pelas camadas pequeno-burguesas urbanas interessadas “nas

necessidades do Estado e na pilhagem no papel de grandes ou pequenos empresários,

rentistas, guerreiros e marinheiros.”212

Em relação ao capitalismo, Weber rechaça qualquer possibilidade de encontrar na

Antiguidade, de forma dominante, uma empresa capitalista de larga escala, baseada no

“trabalho livre” assalariado, elemento que, como já vimos, é fundamental na constituição da

economia capitalista moderna. Weber não adota um tipo histórico único para o conceito de

capitalismo, isto é, aquele relacionado com capitalismo moderno, mas o define de modo mais

amplo, cujo raio cronológico se estende para além do mundo moderno, não o limita, portanto,

a uma forma simples de valorização de capital, ou seja, à exploração do trabalho sobre uma

base contratual. Se na definição de capitalismo, fossem levados em conta somente fatores

econômicos – como, por exemplo, a existência da propriedade como objeto de negócios,

utilizada por indivíduos com fins lucrativos em uma economia de mercado –, então, seria

possível afirmar que o mundo antigo, principalmente no período clássico, teria sido moldado

pelo capitalismo,213 embora não o mesmo dos tempos modernos, mas um capitalismo

específico, com características próprias.

Na Ática e em outros Estados gregos, as relações econômicas capitalistas assumiram

as seguintes características: 1) os templos eram as fontes normais de empréstimos do Estado,

em vez das fontes privadas, predominantes no período helenístico; 2) as cidades eram

dominadas por locadores (rentiers). Os ricos tiravam suas receitas de aluguéis de terras,

escravos e juros, todos dependentes do comércio; 3) o comércio marítimo era a fonte mais

importante da nova riqueza privada, apesar de limitado em volume; 4) houve aumento das

trocas de produtos agrícolas e de minério, mas decadência da posição social e econômica do

artífice, que tinha de competir com trabalhadores escravos, que recebiam baixos salários; 5) o

212 ibid, p.503. 213 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York:

Verso, 1998. p. 48-50.

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capitalismo e os mecanismos de troca dependentes do capitalismo estavam circundados por

um passado distante imerso em um “mar de tradicionalismo”; e 6) a orientação “política”

predominava nas atividades econômicas.

Este “capitalismo político” assume um caráter irracional, pois, em razão desta

orientação, as atividades aquisitivas são inibidas, e o cálculo e a acumulação não são objetivos

a serem perseguidos a qualquer custo. A teoria política antiga era hostil ao lucro, pois se

baseava no ideal do “cidadão independente” e nas idéias de igualdade entre os cidadãos e

autarquia da pólis. Daí o baixo status dos homens engajados no comércio – com exceção

daqueles envolvidos no comércio marítimo – traduzido na inelegibilidade para os cargos

públicos.214

Diferentemente da racionalidade da produção capitalista, as possibilidades aquisitivas

no Mundo antigo direcionavam-se para “fornecimentos do Estado, para a expansão política e

conquista de escravos, terras, tributos e privilégios para a aquisição de terras e empréstimos

sobre estas, além do comércio e fornecimento nas cidades submetidas.”215 Ao contrário da

cidade especificamente medieval – continental, burguesa e industrial – orientada por

interesses econômicos, a pólis antiga mantém seu caráter de associação guerreira, gerando um

homo politicus, e não um homo oeconomicus.

A cidade específica da Antiguidade, suas camadas dominantes, seu capitalismo, os interesses de sua democracia, todos estes fatores estão primariamente orientados para aspectos políticos e militares e isto tanto mais quanto mais se destaca o caráter específico da Antiguidade.216

Convivendo com os interesses dominantes, havia uma camada social, os libertos, com

atividades aquisitivas muito mais próximas da burguesia da Idade Média e dos Tempos

Modernos. Pelo fato de estarem impedidos de ocupar cargos e posições reservados aos

cidadãos, concedidos pelo Estado ou de outro modo politicamente condicionados, em

particular pela aquisição de bens de raiz e, com isso, a posse de hipotecas, os libertos estavam

excluídos do capitalismo antigo, politicamente orientado, no qual prevaleciam os interesses

214 ibid, p. 66. 215 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da

sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 500.

216 ibid., p. 504.

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dos cidadãos plenos, que monopolizavam as rendas politicamente condicionadas.217

Concomitantemente, as cidades helênicas procuravam atrair os forasteiros para arrendamento

de seus fornecimentos, construções e impostos.

Assim, Weber procura demonstrar, particularmente em Economia e sociedade, que a

forma de dominação política em que preponderavam os valores (ethos) de um estamento

guerreiro criava obstáculos ao desenvolvimento das atividades econômicas racionais. Esta

idéia não está ausente em The agrarian sociology of ancient civilizations, contudo, aqui,

Weber procura acentuar o papel pioneiro da pólis na formação de um tipo de capitalismo em

contraposição ao do Oriente, como um estágio de desenvolvimento histórico “avançado”,

enquanto, em Economia e sociedade, o capitalismo representa um momento ainda

embrionário em relação ao capitalismo moderno.

Ao investigar mais atentamente os trabalhos de Weber sobre a Grécia Antiga à luz de

seu instrumental teórico, contextualizando-os no interior dos debates nos quais eles foram

produzidos, percebemos que, particularmente em The agrarian sociology of ancient

civilizations, diminui bastante a distância entre o seu ponto de vista e o dos “modernistas”:

Eduard Meyer enxerga um desenvolvimento homólogo entre o Mundo Antigo e os Tempos

Modernos, contrapondo-se às idéias de Bücher de um evolucionismo linear. Weber também

se opõe a este evolucionismo, em ambos os textos analisados, ao apontar características

dominantes de relações “feudais” até o surgimento da pólis e, posteriormente, “capitalistas”,

sob o domínio da pólis, na Grécia Antiga. Em The agrarian sociology of ancient

civilizations, o oikos deixa de ser a característica dominante de toda a Antiguidade. Foi

possível a Weber encontrar na Antiguidade relações econômicas que foram predominantes em

períodos posteriores. Weber cedia às críticas modernistas aos estágios de desenvolvimento

econômico de Bücher e Rodbertus, embora diferentemente de Meyer, procurasse estabelecer

um caráter específico para o feudalismo e o capitalismo antigos, segundo ele, não eram os

mesmos de períodos posteriores. Esta especificidade, contudo, muda de perspectiva nos dois

textos aqui investigados, por não ter o mesmo eixo comparativo: no primeiro, o capitalismo é

analisado como resultado do desenvolvimento histórico inovador em relação às realezas do

Oriente, vistas, em razão da sua burocracia e estatização, como obstáculos ao livre

desenvolvimento do feudalismo e capitalismo. O autor procura acentuar os aspectos positivos

desse desenvolvimento em detrimento das burocracias sufocantes do Antigo Oriente Próximo,

comparadas à Prússia moderna e aos ideais socialistas, aos quais Weber era extremamente

217 ibid., p. 509.

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crítico; no segundo texto, o capitalismo antigo é primordialmente, mas não unicamente,

comparado ao capitalismo moderno, com acentuado caráter irracional. A ausência da

burocracia aqui, diferente do que se viu no primeiro texto, é um traço da ausência de

racionalismo do capitalismo antigo. É um capitalismo permeado por valores tradicionais, no

qual o ethos de um estamento guerreiro é dominante e impede qualquer avanço em direção

aos valores do capitalismo moderno. Portanto a especificidade do caráter do capitalismo deve

ser relativizado, pois está inserido, nos textos analisados, em contextos diferentes.

A grande contribuição de Weber em relação à controvérsia do oikos é o

redirecionamento do caráter “primitivo” do mundo antigo, deslocado do oikos, segundo ele,

agora predominante no Oriente, para a pólis. Este redirecionamento levou-o a explorar os

traços distintivos da organização política da cidade-Estado para caracterizar suas formas de

dominação e seu capitalismo. A sua preocupação obsessiva com a racionalidade burocrática,

em Economia e Sociedade, como característica definidora do mundo moderno, limitou seu

interesse e obscureceu sua visão da Antiguidade, dificultando uma melhor construção das

especificidades históricas daquela realidade. Na verdade, Weber abriu um caminho a ser

explorado por aqueles que queriam trilhar pelas pegadas do primitivismo, sem continuar nas

teias do evolucionismo linear de Bücher e Rodbertus. É por este caminho que Hasebroek irá

seguir. Mantendo, assim como Weber, a pólis no centro de sua argumentação, este autor irá

desferir um feroz ataque aos modernistas, procurando mostrar que a política da cidade-Estado

grega não guardava nenhuma semelhança com o desenvolvimento político dos Estados

nacionais modernos.

3.3 JOHANNES HASEBROEK E O NEOPRIMITIVISMO

Johannes Hasebroek, um dos historiadores alemães mais distintos e criativos da

História social e econômica grega do século passado, nasceu em Hamburgo em 14 de abril de

1893 e morreu em 17 de fevereiro de 1957. Como estudante universitário e sob influência de

Geschichte des Altertums de Eduard Meyer, Hasebroek aprofundou seus estudos em

História Antiga, filologia clássica e arqueologia. De 1916 a 1921, Hasebroek dedicou-se ao

estudo do imperador Sétimo Severo. Na Universidade de Berlim, entrou em contato com

sábios que o iriam influenciar em suas novas investidas. Dentre eles está o economista Werner

Sombart. Já em 1920, Hasebroek publicou um artigo sobre transações bancárias e banqueiros

gregos. Um segundo artigo, em 1921, versava sobre o comércio grego. Apesar de ainda evitar

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grandes generalizações, estes trabalhos já apresentam o interesse pela economia antiga. Em

1926, em uma conferência sobre o imperialismo antigo, revela-se o impacto das tipificações e

conceitualizações histórico-sociológicas de Weber sobre suas reflexões. Esta influência

cristaliza-se nos dois grandes trabalhos posteriores. O primeiro grande livro Staat und

Handel im alten Griechenland, de 1928, já como professor da Universidade de Colônia,

sobre comércio e política na Grécia Antiga, enfatizava a tendência dos anos de Weimar, a

nova ciência social. Este livro reacendeu a polêmica entre “modernistas” e “primitivistas”, e

apesar da sólida base filológica, recebeu críticas pela visão unilateral em relação ao papel do

comércio. O livro foi muito bem recebido na Inglaterra, e recebeu uma tradução em 1933,

com o título de Trade and Politics in Ancient Greece, sendo recomendado como leitura

obrigatória para estudantes de História Antiga grega até os anos 50. Algumas das deficiências

deste estudo foram remediadas em seu livro posterior, Griechische Wirtschafts-und

Gesellschaftsgeschichte bis zur Perserzeit, de 1931, no qual enfatizava a utilidade dos

conceitos weberianos para a estrutura da economia e da sociedade gregas desde épocas

homéricas até o final das guerras persas. O tempo mostrou que apesar de sua morte prematura

e melancólica, afastado da academia por problemas de saúde, seus trabalhos tornaram-se uma

fonte altamente recomendável para todos aqueles que se interessam pela sociedade grega do

período arcaico ao clássico primitivo e pela natureza da economia antiga.218

Os trabalhos de Max Weber sobre a Grécia antiga contribuíram para reorientar as

abordagens acerca da cidade-Estado antiga. Enquanto Weber estava preocupado em

desvendar as diversas formas de dominação das “típicas cidades” antiga, Hasebroek procura

estabelecer a relação do Estado grego com o comércio em todas as suas formas e atividades,

além de descrever sua política comercial. Porém, o papel da cidade-Estado e os meios de

dominação não estão ausentes da análise de Hasebroek, contudo, assumem uma sutil

diferença em relação ao modelo de dominação da cidade-Estado weberiana. Tentaremos aqui

relacionar e perceber os pontos em que Hasebroek aprofunda sua convergência com Weber

acerca do poder da cidade-Estado, e quais são os pontos em que se distancia do modelo

weberiano.

218 BRIGGS, W. W., e WILLIAM, M. C. (eds). Classical Scholarship: A Bibliographical Encyclopedia. New

York: Garland, 1990. p. 142-151.

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3.3.1 Estado, Política e Comércio

Inicialmente, faz-se mister retomar as definições de Weber sobre “Estado” e

“Política”. Como já dito anteriormente, o Estado moderno e toda associação política são

definidos por um meio específico: a coação física. Todo Estado pressupõe um território, no

qual o Estado reclama para si o monopólio da coação física legítima. “Política” é a “tentativa

de participar no poder ou de influenciar a distribuição do poder, seja entre vários Estados, seja

dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este abrange.”219 Tanto o Estado quanto

as associações políticas historicamente precedentes se constituem em uma associação de

dominação de homens sobre homens, amparada por justificativas internas, isto é, por

princípios de legitimidade tradicional, carismática e ou legal. Outrossim, a forma de

manifestação externa da organização de dominação política, o quadro administrativo, não está

ligado ao detentor do poder por estes princípios de legitimidade, mas sim, por interesses

pessoais: recompensa material e honra social. Além disso, para a manutenção de toda

dominação são necessários certos bens materiais externos. As ordens estatais são classificadas

de acordo com dois princípios: o primeiro é aquele no qual os funcionários, ou outro tipo de

pessoas com cuja obediência precisa poder contar o detentor do poder, são proprietários dos

meios administrativos – dinheiro, prédios, material bélico, carros, cavalos ou outras coisas

quaisquer. Já o segundo princípio é aquele no qual o quadro administrativo está separado dos

meios administrativos, pois o detentor do poder tem a administração em suas próprias mãos,

“organizando-a e exercendo-a mediante servidores pessoais, funcionários contratados ou

favoritos e homens de confiança pessoal que não são proprietários dos meios materiais do

empreendimento.”220 O primeiro caso, no qual os meios administrativos encontram-se integral

ou parcialmente sob poder do quadro administrativo dependente, é uma organização

“estamental”. Em tal organização, o senhor divide com uma “aristocracia” autônoma o poder.

Por outro lado, no segundo caso, o senhor apóia-se em camadas sem propriedade e sem honra

social, totalmente dependentes e sem nenhum poder concorrente. Tal situação ocorre nas

formas de dominação patriarcal e patrimonial, de despotismo sultanesco ou na ordem estatal

burocrática, ou seja, em sua variação mais racional, no Estado Moderno. Portanto, o

desenvolvimento do Estado Moderno caracteriza-se, nesta perspectiva, pela tentativa de

desapropriação, por parte dos detentores do poder, dos portadores “particulares” de poder

administrativo. Tal processo é similar ao desenvolvimento da empresa capitalista, que

219 WEBER, M. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 526. 220 ibid., p.528.

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desapropria gradativamente os produtores autônomos. No fim, o Estado Moderno concentra a

disposição de todos os recursos da organização política, configurando a separação entre o

quadro administrativo, os funcionários e trabalhadores administrativos, e os meios materiais

da organização.

Vimos anteriormente, com Weber, como o processo de fortalecimento de uma

aristocracia guerreira desde o final do período micênico vai enfraquecendo o poder real na

Grécia Antiga. O poder das “linhagens”, depois dos “hoplitas” e finalmente dos “cidadãos”

constitui uma associação política próxima do primeiro caso, no qual o quadro administrativo é

proprietário dos meios administrativos. É, portanto, uma organização estamental. Porém,

concomitantemente ao desenvolvimento destes tipos de dominação, Weber associa o

engajamento das aristocracias litorâneas em atividades comerciais, principalmente no

comércio marítimo, como elemento desintegrador do poder real, e elemento propulsor do

capitalismo antigo, junto à escravidão e o fim das barreiras para aquisição de propriedade.

Estes são elementos constituintes do capitalismo de orientação política, no qual o estamento

interessava-se primordialmente pelas rendas advindas do Estado.

Em uma resenha de 1934, Short afirma que Hasebroek segue o “mau caminho” de

Weber ao falar do domínio do mundo antigo por motivos políticos, distintos dos motivos

econômicos221. Hasebroek, porém, apesar de afirmar que havia capitalistas na Grécia, que

eram os “prestamistas”, assegura que o comércio não impulsionava e nem engendrava

qualquer forma de capitalismo, era apenas um meio para o suprimento de necessidades,

particularmente de cereais e matérias-primas para construção de navios, e para o

enriquecimento do tesouro por meio de impostos e taxas. Este autor refutava a hipótese

“modernista” da existência de antagonismos entre Estados nacionais gregos lutando entre si

por interesses eminentemente comerciais. Para ele, o comércio era apenas um meio, e não um

fim.

Ao investigar os tipos de mercadores e a atitude adotada pelo “Estado grego” em

relação ao mercado e ao comércio, Hasebroek afirma que a linguagem grega reconhecia três

tipos distintos de mercador ou intermediário: o kapelos, o naukleros, e o emporos.

O kapelos era o negociante local, que se limitava a vender no mercado interno. Se ele

comprasse diretamente dos produtores, era um kapelos, strictu sensu, mas, se comprasse de

outro intermediário, mercador ou importador, ele era um negociante de segunda categoria, o

221 SHORT, G. Review HASEBROEK , J. Trade and politics in Ancient Greece. Antiquity , v. 8. n. 31, p. 358,

1934.

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palikapelos. Mas em qualquer caso, a produção não era dele. O fazendeiro ou fabricante que

levava o seu produto para o mercado era um autonegociante, autopelos. Quanto aos outros

dois tipos, o naukleros e o emporos, esses estavam envolvidos com o comércio estrangeiro,

isto é, com o comércio ultramarino: o naukleros era proprietário de navios mercantes e

transportava suas mercadorias; o emporos era o mercador que não possuía navios e viajava

transportando suas mercadorias em navios pertencentes a outros.

Esses três tipos de comerciantes limitavam-se a vender as mercadorias de outras

pessoas, não eram produtores, mas intermediários entre um distrito e outro, não entre

produtores e consumidores do mesmo distrito. Constituíam uma classe de comerciantes

profissionais de tempo integral, que navegavam de porto em porto sem destino fixo, vendendo

suas mercadorias sempre e onde quer que uma oportunidade favorável se apresentasse. Estes

três tipos de comerciantes comercializavam com mercadorias manufaturadas e com produtos

agrícolas. No entanto, isto não quer dizer que os produtores não comercializassem seus

produtos. Há evidências abundantes de produtores de oficinas, que vendiam direto para os

consumidores e, também, de produtores que transportavam suas mercadorias para outros

distritos, vendendo-as de casa em casa se fosse o caso.222

Hasebroek alerta que não se podem confundir esses comerciantes estrangeiros com

“capitalistas”, uma vez que eles não tinham capital próprio e precisavam da ajuda de

“prestamistas” para efetuarem seus negócios. A ocupação do comércio marítimo era

essencialmente uma atividade plebéia e não rendia lucros, além de uma mera receita de

subsistência. Apesar de investirem seu “capital” em empreendimentos comerciais, os

“capitalistas” não tomavam parte em atividades comerciais, atuavam apenas como

“prestamistas” e deixavam os riscos do negócio com os comerciantes. Hasebroek não fala de

uma “classe” de “capitalistas”, mas de “capitalistas” individuais.223 A ausência de registros ou

relatos escritos comprova o primitivismo desse tipo de negócios.

Até aqui, fortes semelhanças com Weber. Para este autor, as linhagens que dominaram

as “cidades aristocráticas” constituíam uma classe de rentistas, e não de comerciantes ou

empresários no sentido moderno do termo; participavam de empreendimentos comerciais,

como donos de navios, comanditários ou prestamistas de comerciantes marítimos, deixando

para outros os riscos dos negócios. Eram comerciantes ocasionais. Logo em seguida, Weber

afirma que o desenvolvimento do comércio marítimo levou a uma crise dos Estados

222 HASEBROEK, J. Trade and politics in Ancient Greece. S. l. Biblo and Tannen, 1993. p. 2-6 223 ibid., p.7-11.

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dominados pelos clãs aristocráticos nas cidades costeiras, estando, entre os fatores que

contribuíram para isso, o desenvolvimento de uma nova classe, nas cidades portuárias da

costa, ligada à indústria de exportação e comércio, que ficava fora dos círculos tradicionais

daqueles que viviam da terra. Assim, os aristocratas, representantes da aristocracia fundiária,

que, no início de sua dominação, parecem assumir aquele papel que Hasebroek atribui aos

“capitalistas”, posteriormente viram nascer uma classe urbana costeira voltada para a indústria

e comércio, que lhes fazia oposição. Portanto, os capitalistas prestamistas de Hasebroek são

para Weber, em um primeiro momento, as linhagens aristocráticas envolvidas com o

comércio marítimo, e, em um segundo momento, os setores urbanos ligados ao comércio

marítimo. Neste sentido, Weber não está muito distante de Meyer quanto à hipótese de uma

“aristocracia comercial” nos séculos VIII e VII a.C, que se envolvia diretamente no comércio,

fundando uma cultura comercial. Hasebroek contesta esta tese, afirmando que, se no período

mais tardio, os comerciantes pertenciam à classe plebéia, como, no passado, teriam sido

aristocratas “capitalistas”? O controle das relações comerciais pelos nobres e os lucros

advindos desse controle não significavam necessariamente um poder originário do comércio;

sua riqueza era derivada, em parte, de suas terras agrícolas e de manadas e rebanhos e, em

parte, da pirataria e pilhagem. Sua força era física, e não econômica. Assim, no período mais

tardio, esses “capitalistas” eram muito mais uma classe de rentier do que de entrepeneur.

Quando tomavam partes nos negócios, era apenas em atividade secundária.224

Os argumentos de Hasebroek, embora muito próximos aos de Weber, permitem-nos

perceber, de forma muito sutil, algumas conclusões complementares ou mesmo novas em

relação às de Weber. Para Hasebroek, não havia competição entre os cidadãos e os

estrangeiros (metecos), quanto aos interesses econômicos, já que estes eram encorajados pelo

Estado a conduzir os negócios entre as cidades-Estados. Os metecos, estrangeiros residentes,

sem status cívico completo ou direitos políticos, porém sujeitos a encargos financeiros, como

a liturgia e o serviço militar, eram responsáveis pelo comércio estrangeiro e podiam negociar

no atacado e no varejo. Por outro lado era pequena a proporção de cidadãos envolvidos

diretamente em atividades produtivas; eles estavam mais interessados em receitas da

propriedade da terra e nas rendas do Estado. Similar à opinião de Weber, Hasebroek afirma

que o cidadão ideal da Antiguidade era um rentier, enquanto os estrangeiros constituíam o

esteio do comércio e da indústria, pois buscavam o ganho pecuniário. Estes constituíam, junto

com os escravos, os proletários, porque eram homens sem direito político, assim como

224 HASEBROEK, M. op. cit., p.16-17.

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também o eram o proprietário de terras arruinado e o camponês endividado. Além disso, os

trabalhadores urbanos da Antiguidade não tinham o mesmo papel daqueles do Período

Medieval, pois eram servos, escravos e meio cidadãos, o que inviabilizava qualquer tipo de

associação corporativa que pudesse reivindicar interesses comuns contra a nobreza. Um

cidadão não tinha o menor interesse em se juntar a um escravo ou a um camponês, porque,

apesar de poderem estar na mesma situação econômica, não estavam na mesma situação

política, além de os camponeses estarem mais preocupados em acabar com os débitos e a

divisão dos bens. É a esta pluralidade de pessoas, em oposição aos produtores emergentes da

Idade Média, que Hasebroek denomina proletariado de consumidores.225 Portanto “a

separação fundamental do Estado grego foi entre os rentiers que viviam às custas do Estado

ou sobre as rendas de sua propriedade e investimentos e a massa sem cidade de

estrangeiros.”226 (o grifo é nosso).

Tudo isto está muito próximo de Weber, porém este, em nossa opinião, sem negar a

separação citada acima, enfatiza os conflitos entre credores e devedores como o principal

antagonismo das típicas “cidades aristocráticas e hoplitas”. Se repensarmos a hipótese de

Hasebroek, à luz do instrumental teórico de Weber, poderíamos dizer que os cidadãos rentiers

constituíam um estamento positivamente privilegiado, enquanto os estrangeiros constituíam

estamentos negativamente privilegiados. Os escravos fariam parte deste último estamento.

Isto está mais claro em Weber do que em Hasebroek, exatamente porque, para Hasebroek, o

principal antagonismo reside no pertencimento à cidade-Estado ou na exclusão dela. O fato de

não pertencer a uma cidade-Estado, de não ter um lar fixo, pois os estrangeiros estavam

sempre viajando em busca de novas oportunidades comerciais, é que era desprezado pelos

cidadãos, aqueles que tinham um lar fixo. Por isso, a indústria e o comércio e, em particular, o

comércio ultramarino, estão fora da jurisdição do Estado, pois são áreas de influência de

estrangeiros. Daí a ausência de uma marinha mercantil nacional ou uma indústria nacional. O

comércio era apenas um campo para o investimento do capital e uma fonte de receita do

Estado.227 Tanto Weber quanto Hasebroek enfatizam, em suas análises, os conflitos e

antagonismos na Grécia. Esta ênfase será deixada para um segundo plano nas análises

posteriores dos autores desta tradição.

Weber utiliza modelos “típicos” de cidade, delimitando as diversas formas de

dominação em diferentes momentos de seu desenvolvimento: ora o domínio das linhagens

225 ibid., p. 28-32. 226 ibid., p.35. 227 ibid., p. 43.

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sobre os camponeses; ora o domínio dos hoplitas sobre os antigos clãs aristocráticos, com os

avanços institucionais; ora o domínio da pólis, com a imposição do regime democrático

imposto aos escravos e outros povos. Hasebroek não utiliza esses modelos típicos de cidade,

mas coloca a cidade no centro de sua reflexão, demonstrando seu poder sobre o “estrangeiro”,

que a serve para suprir suas necessidades e explicitando a secundarização do papel do

comércio. Não deixa de ser um modelo. Diferente de Meyer e Weber, o comércio em

Hasebroek não se relaciona com nenhuma forma de “capitalismo”; é apenas um meio para

reforçar o poder do Estado, isto é, da comunidade de cidadãos rentiers sobre os estrangeiros.

Seu trabalho é um ataque aos modernistas, mas não se identifica completamente com as idéias

de Bücher – mesmo citando-o diversas vezes -, que apontava estágios de evolução e não

falava de “capitalistas” no mundo antigo. Podemos dizer, então, que os trabalhos de

Hasebroek representam um recrudescimento do primitivismo, um neoprimitivismo, diferente

dos primeiros primitivistas, porém próximo a Weber, - a pólis, em vez do oikos, é o elemento

central do primitivismo. A pólis e as transações comerciais são colocadas no centro da análise

weberiana. O comércio contribui para desestruturar as relações feudais e fomentar o

capitalismo. Contudo, a pólis e o comércio ainda estão envolvidos em um mar de

tradicionalismo. A pólis não é um obstáculo para o comércio, mas, sim, para as relações

capitalistas modernas, em razão do ethos aristocrático dominante. Hasebroek, procurando

corroborar a tese de Bücher, de que a economia antiga não apresentava os traços da economia

nacional moderna, mas sem colocar o oikos, no centro da análise, vê a pólis como um

obstáculo ao livre desenvolvimento dos interesses comerciais, pois estes estão sob o domínio

dos interesses políticos. A pólis interdita os interesses comerciais e assim assume um caráter

primitivo. Enquanto Weber, em Economia e Sociedade, acentua o caráter primitivo da pólis

em relação às modernas sociedades capitalistas, Hasebroek ressalta o seu caráter primitivo em

relação às economias dos Estados nacionais modernos. O traço primitivo, tanto em Weber

quanto em Hasebroek é a esfera política, não mais a econômica. O econômico está sob o

domínio do político, e os interesses econômicos estão subordinados aos interesses políticos.

Hasebroek contesta os “modernistas”, que defendem a idéia da industrialização e do

florescimento comercial gregos nos séculos VIII e VII a.C. Não acredita que os interesses

comerciais tenham se tornado o fator predominante na política pública e que os Estados

comerciais tenham se tornado líderes no mundo grego com a substituição da velha nobreza

por uma aristocracia comercial.228 Nega que as mercadorias produzidas naquele período

228 ibid., p. 44-49.

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tenham sido originadas de grandes estabelecimentos ou fábricas em quantidades atacadistas,

pois as mercadorias eram, em grande parte, produtos de luxo, de artes – metal trabalhado,

roupas finas e lãs – com pouca demanda popular. O fato de a mercadoria ter um nome de um

lugar não prova que ela tenha sido fabricada naquele lugar: o nome pode ter sido obtido de

sua forma e qualidade, da origem da matéria-prima, ou mesmo da nacionalidade dos

comerciantes que a negociavam.

Em relação aos vasos de cerâmica, Hasebroek afirma que, apesar da existência de um

tráfego de cerâmica em diferentes partes do mundo grego, a cerâmica decorativa também era

um artigo de luxo, geralmente usada em decoração de tumbas, oferendas votivas ou como

prêmios levados para casa pelo vencedor em disputas internacionais. Era provavelmente

produzida em grande quantidade nos locais onde foi encontrada. A respeito do uso desses

vasos de cerâmica em decorações de tumbas, Short faz uma observação dizendo que os

pertences colocados em tumbas incluíam objetos que eram usados no dia-a-dia e que os vasos

foram encontrados também em vestígios de casas e de templos. No entanto, Short afirma que

a observação não invalidava a hipótese de Hasebroek.229

Hasebroek analisa cada um dos Estados que, supostamente, eram centros da indústria

grega: Egina, Corinto, Mileto e Atenas. Egina era uma comunidade comercial, com forte

presença de vendedores ambulantes itinerantes, que praticavam um comércio interdistrital

atacadista A palavra “eginetana” dada a mercadorias, como ungüento, tinta, ruge, colares e

vidros, significava que elas eram vendidas por negociantes eginetanos, primeiros mercadores

a competir com os fenícios.230 Corinto é descrita como uma importante cidade industrial e o

maior centro comercial da Grécia. Suas guerras tinham objetivos comerciais, e seu império

era uma área de exploração comercial. Tal hipótese é sustentada, em grande parte, pela idéia

de que os próprios nobres corintianos tomavam parte nos negócios, a chamada “aristocracia

comercial”, e que todo o espírito de corpo de cidadãos era essencialmente comercial.

Amparado em dados de Tucídides, Hasebroek afirma que as guerras promovidas por Corinto

não eram guerras comerciais, mas guerras que atendiam a interesses eminentemente políticos

e seu império colonial não era uma área de exploração comercial. A informação de Tucídides

de que os coríntios “limpavam” os mares de piratas significa que um maior número de

mercadores estrangeiros visitava os portos de Corinto, aumentando as receitas públicas. Por

outro lado, muitos dos técnicos e produtores que viajavam realizando os mais diversos tipos

229 SHORT, G. op. cit., p. 357. 230 HASEBROEK, J.Trade and politics in Ancient Greece. S. l. Biblo and Tannen, 1993. p. 51-52.

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de trabalho eram corintianos. Portanto, Corinto era a cidade do trabalhador especializado.231

Em relação ao suposto centro industrial têxtil grego, Mileto, também não há provas de que os

famosos fios de lã, mantas, cobertores e roupas, encontrados em diversos lugares da Grécia,

eram produzidos em grande quantidade para “exportação”. Na verdade, tais produtos

produzidos em oficinas milesianas (não em fábricas) eram comprados por mercadores

itinerantes, que, de época em época, iam a Mileto e os vendiam em outras partes do mundo.232

O mesmo fim tinham os produtos produzidos pelos oleiros de Naucrátis. Atenas também

aparece na lista dos Estados que vendiam seus produtos em todas as partes do mundo grego,

porém as principais exportações atenienses não eram de manufaturados, mas de vinho e

azeite, talvez as únicas mercadorias produzidas além de sua própria necessidade e que podiam

ser exportadas em grandes quantidades. Era, na verdade, uma cidade-Estado agrícola.233

Vimos, portanto, que são exageradas as descrições do comércio e da indústria grega

nos séculos VII e VI a.C. quanto ao seu volume e importância. Nos épicos homéricos, o

comércio é praticado pelos fenícios; em Hesíodo, é praticado pelos camponeses que vendiam

o excedente de sua produção no estrangeiro; os eginetanos foram os primeiros comerciantes

profissionais. Apesar disso, as mercadorias negociadas não eram, em sua maioria, artigos de

primeira necessidade, mas, sim, de grande valor, como o ouro, a prata, o marfim, os vasos

valiosos, as roupas tecidas, os ornamentos e, principalmente, os escravos, tanto homens

quanto mulheres.

O comerciante as comprava neste ou naquele mercado e deste ou daquele artífice. Se ele as vendia outra vez e obtivesse lucro, ele retornava e assegurava mais suprimentos; e talvez ele pudesse assegurar para o artífice matérias primas valiosas para o seu trabalho – pois além de negociar com artigos acabados ele deve também ter negociado com aqueles produtos naturais que apesar de indispensáveis são em alguns lugares escassos – ferro, por exemplo...234

Tudo isso mostra que, no começo do período clássico, apesar da superação do

household e do avanço das atividades industriais em alguns Estados, não houve a formação de

uma economia nacional entre os Estados gregos. Não havia divisão do trabalho e

especialização de produção entre as cidades nem um comércio marítimo estrangeiro extenso,

231 ibid., p. 54-57. 232 ibid., p.58. 233 ibid., p. 59. 234 ibid., p. 69.

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com ligações e alianças regulares entre aristocratas comerciais e príncipes mercadores.235 O

modelo evolutivo de Bücher o levou a afirmar que, em nenhuma sociedade anterior à

moderna, seria possível encontrar traços da economia nacional. As críticas modernistas a

Bücher foram desferidas em dois sentidos: pela predominância atribuída ao oikos em todos os

períodos da Antiguidade e pelo desconhecimento do material histórico. Hasebroek retifica a

primeira crítica ao considerar exagerada a proposição de Bücher acerca da importância do

oikos e apresenta um detalhado material empírico para defender sua hipótese de

impossibilidade de se encontrarem nas cidades-Estados gregas as mesmas características da

economia nos Estados modernos.

Hasebroek, em consonância com Oertel, afirma que os métodos capitalistas não

poderiam tornar-se dominantes na manufatura grega por três motivos: impossibilidade de

prever a demanda; dificuldade de acumulação e investimento de capital; e instituição da

escravidão. Para Weber, esses fatores impediriam a formação do capitalismo “moderno”, mas

não de relações capitalistas. A própria escravidão é vista como empresa capitalista escravista,

porém constituiu-se em um entrave para a racionalidade produtiva moderna.

Para Hasebroek, as fontes sugerem que os escravos no final do século V não eram

empregados na produção de mercadorias manufaturadas em larga escala; eles eram utilizados

pelos seus proprietários para gerar renda, nos mais diversos tipos de atividades.236 Mesmo no

século IV a.C., a produção fabril era dirigida para necessidades locais e não havia nenhuma

divisão de trabalho entre os Estados. Tanto as pequenas, quanto as grandes cidades, segundo

Xenofonte, deveriam suprir suas necessidades diárias com o trabalho de seus próprios

habitantes. Contribuía para isso o ideal da cidade-Estado grega de isolamento e auto-

suficiência. Daí as áreas de produção e consumo permanecerem as mesmas durante os séculos

V e IV e não haver uma organização internacional unindo o mundo grego. Segundo Will –

mesmo sendo favorável à hipótese de Hasebroek –, há uma minimização exagerada da

atividade comercial, principalmente em relação à época clássica. Nem todas as cidades gregas

tinham uma estrutura econômica idêntica e nem se pode afirmar que estavam reservadas

exclusivamente aos metecos e escravos todas as atividades de caráter comercial.237

Hasebroek afirma que o proprietário de navios enfrentava enormes dificuldades, entre

as quais, podemos listar: não havia informações sobre os mercados no estrangeiro; os custos

235 ibid., p. 70-71. 236 ibid., p. 77. 237 WILL, E. Trois quarts de siècle de recherches sur L’économie grecque antique. Annales ESC, v. 1, n. 9,

1954. p. 15.

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do comércio eram grandes, pois a taxa de juros sobre empréstimos comerciais era alta; o

período de viagens estava reduzido a seis meses, de novembro a fevereiro; as enormes

dificuldades no transporte inviabilizavam qualquer possibilidade de formação de companhias

de navio e não havia especialização comercial, característica da época moderna; não havia

encomenda de mercadorias; o mercador colocava-se ao mar sem saber em que porto ele seria

capaz de vender suas mercadorias; os comerciantes estavam à mercê dos piratas e navios de

guerra e das demandas casuais dos consumidores. Tudo isso resultava em altos riscos para o

comércio e contribuía para que os credores, que já cobravam altas taxas de juros, também

demandassem como seguro hipotecas de cargas e quantias bem elevadas do empréstimo.238

As finanças também eram rudimentares. As moedas de vários Estados, até o século III,

tinham validade local e estavam constantemente sendo depreciadas. A ausência de uma

moeda “nacional” dificultava a circulação de dinheiro de um Estado para outro. Em um artigo

de 1933, em que as obras de Hasebroek são o alvo principal da análise, Louis Gernet afirma

que durante a passagem para a democracia, apareceu uma moeda de Estado que, permitindo

ou favorecendo a circulação de produtos agrícolas, deve ter modificado o estatuto econômico

da classe camponesa.239 Tal perspectiva enfatiza uma importância maior para a moeda, em

relação à política, do que aquela dada por Hasebroek.

Segundo Hasebroek, em Atenas, os bancos agiam como intermediários para

pagamento de débito, como fiadores, tomavam objetos e documentos de valor em custódia e

faziam empréstimos de todos os tipos. Não havia negócios internacionais de crédito; o

dinheiro era enviado de uma cidade para outra em espécie. O empréstimo bancário estava

limitado, em geral, ao auxílio ocasional de amigos pessoais. Não havia garantias de

pagamento dos empréstimos, pois não havia uma corte internacional na qual as pendências

pudessem ser resolvidas. Nos períodos de guerra, havia grande número de renúncia de

débitos. Em Atenas, era ilegal emprestar dinheiro a mercadores não engajados no transporte

de mercadorias para ou da própria Atenas. A circulação de capital era prejudicada pela prática

regular de ocultar as riquezas. As responsabilidades públicas e a liturgia levavam os homens

com posses a reverter sua riqueza em ouro e prata não utilizáveis para os propósitos da

produção. Quando o capital não ficava ocioso, era utilizado para empréstimo a juros, pois não

238 HASEBROEK, J. op. cit., 82-84. 239 GERNET, L. Comment caracteriser l’economie de la Gréce antique? Annales. ESC, V. 5, p. 565, 1933.

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havia limite para a taxa de juros. Não havia necessidade de recibos escritos, mas apenas da

presença de testemunhas.240

Ainda segundo Hasebroek, Atenas não era um centro da indústria grega e nem sequer

um Estado industrial; era um lugar de troca, e não de produção. O comércio fornecia ao

Estado uma parte apreciável de suas receitas, isto é, rendia uma receita substancial aos

investidores privados e explorava os serviços de classe de mercadores profissionais. Assim,

apesar da intensificação de trocas das mercadorias entre cidades, particularmente de trigo, e

das vultosas receitas que este comércio podia propiciar para os investidores, mas não para os

mercadores, a economia grega do período clássico era agrícola, e não comercial e industrial.

Essas considerações de Hasebroek o aproximam muito mais de Bücher que de Weber, uma

vez que este autor relaciona o aumento do comércio e da escravidão, além da liberdade de

transferência da propriedade, ao “capitalismo político”.

Segundo Weber, o comércio, no Ocidente, na medida em que se desenvolvia, parece

ter tido um papel desagregador e fomentador de estruturas novas. A confluência entre

comércio e capitalismo é muito grande, no seu trabalho mais específico sobre História Antiga.

O Estado, nas sociedades do Antigo Oriente Próximo, era um obstáculo ao pleno

desenvolvimento do comércio e, no Ocidente, não permitia que as relações comerciais

avançassem até o capitalismo racional. No modelo hasebroekiano, o Estado – a comunidade

de cidadãos – conseguia dominar e controlar as relações comerciais em proveito próprio de

forma muito mais contundente que no modelo weberiano. A sutil diferença entre esses dois

modelos está no uso dos termos obstaculizar e coordenar. O Estado grego parece concentrar

poderes e recursos suficientes para utilizar o comércio – estando englobados aí os produtos

comerciais, os indivíduos envolvidos no comércio e as rotas e taxas - de acordo com suas

necessidades. Parece-nos, portanto, que o modelo esboçado por Hasebroek elucida uma

contradição existente no modelo weberiano. A concentração de poderes da pólis grega,

apresentada por Hasebroek, está mais próxima da realidade política do Antigo Oriente

Próximo, apresentada por Weber em The agrarian sociology of ancient civilizations. A

pólis grega neste livro, em oposição aos grandes impérios do Oriente, não inviabilizava as

práticas comerciais e se via transformada pelo avanço do comércio. Por outro lado, a

organização “estamental” da sociedade grega dificultava a centralização do Estado e a

existência de um aparato burocrático. A pólis descrita por Hasebroek está mais próxima dos

impérios orientais de Weber do que da pólis grega, que constituiu um elemento de ruptura na

240 HASEBROEK, J. op. cit., p. 88-89.

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História do Ocidente. Paradoxalmente, a capacidade de organizar e coordenar o comércio da

forma como Hasebroek descreve a pólis grega está, segundo o princípio de organização

estatal de Weber, tanto próxima dos impérios orientais, quanto dos Estados modernos, os

quais apresentam uma concentração de poder ausente nas organizações estamentais.

Em um trabalho recente, Charles M. Reed, analisando o comércio marítimo no mundo

grego, deixando clara sua orientação “substantivista”, afirma que o equívoco de Hasebroek é

pensar que Atenas intervinha no comércio somente para assegurar necessidades vitais para

seus cidadãos sem se preocupar com os interesses dos emporoi e dos naukleroi. Segundo

Reed, Atenas obviamente agia em favor dos comerciantes marítimos, em razão da enorme

sobreposição de seus interesses àqueles do corpo de cidadão ateniense. Este autor, então,

substitui a idéia de desdém dos cidadãos para com os estrangeiros pela idéia de

complementaridade de interesses entre essas categorias. Esta análise, muito próxima da de

Hasebroek e Finley, mas sem descartar os trabalhos dos modernistas atuais, salienta que

Hasebroek percebeu a extensão da pólis sobre as atitudes oficiais, mas falhou na percepção do

impacto da pólis sobre as atitudes da sociedade ateniense em geral. Hasebroek não percebeu

que a dependência cívica de alimentos importados substituía considerações de status social na

mente dos indivíduos atenienses.241

Para explicitarmos melhor estas contradições, é necessário explorarmos mais

profundamente o assunto específico do trabalho de Hasebroek: os meios pelos quais o Estado

deliberadamente promovia ou restringia o comércio, isto é, as diversas manifestações da

política estatal voltadas para o comércio, particularmente o estrangeiro. Aqui, Hasebroek

continua seu combate aos “modernistas”, que acreditavam ter a cidade grega uma política

comercial similar ao do Estado moderno nacional, que objetivava assegurar mercados

estrangeiros e manter seu próprio para beneficiar a produção doméstica. Estas noções de

rivalidade comercial internacional são transferidas para o Mundo antigo, no qual os supostos

Estados nacionais lutam entre si por mercados coloniais e comerciais.242 Esta posição

sustenta-se no princípio de que o Estado estava interessado no comércio e na produção.

Porém, na medida em que boa parte da produção das cidades estava nas mãos dos estrangeiros

residentes, não tendo nem os trabalhadores nem os comerciantes alguma influência de

controle na política doméstica ou estrangeira, não se pode falar de trabalho ou produção

nacional.

241 REED, C.M. Maritime traders in the ancient Greek world. Cambridge: University Press, 2004. 51-77. 242 HASEBROEK, J. op. cit., p. 97-98.

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As tarifas protecionistas só aparecem no período helenístico. As taxas de exportação e

importação eram impostas para propósitos de receita. A grande maioria dos comerciantes

estrangeiros era politicamente desclassificada, e os que não eram estrangeiros, eram

proletários. O comércio estava divorciado da vida nacional; era, portanto, cosmopolitano. Não

há um comércio “ateniense”, “beociano”, nem uma marinha mercantil nacional. Não havia

nenhuma associação de mercadores que assegurasse seus interesses. Quando existia, era de

caráter puramente religioso.243

As guerras não objetivavam apagar um rival comercial ou beneficiar a classe

comercial ou industrial. Suas causas eram genuinamente políticas. Elas surgiam do desejo de

assegurar pela força e pela dominação política as vantagens de prosperidade nacional. Essa é a

idéia do imperialismo antigo, que procurava controlar o comércio cosmopolitano com o

objetivo de enriquecer os Estados por meio de taxas e impostos. Dessa forma, as guerras eram

políticas, e não comerciais, travadas no interesse do consumidor por suprimento de

alimentos.244

Subjacente a esta separação entre a guerra e interesses comerciais, há um exagero de

Hasebroek quanto à hipótese de Weber de separação entre o homo politicus e o homo

economicus. Segundo Humphreys, Weber não queria dizer que o cidadão antigo estava mais

interessado na guerra do que nas atividades de mercado. Weber não sublinha a existência de

dois sistemas de valores conflitantes, no qual um influencia de forma decisiva o

comportamento do outro. O que ele salienta, segundo Humphreys, é que as instituições que

para nós parecem caracteristicamente econômicas - comércio, produção para o mercado,

circulação de dinheiro, atividades bancárias - são analiticamente dependentes e somente

compreensíveis em termos de instituições que nós caracterizamos como políticas. A questão

de fundo não é se a guerra tem efeitos econômicos, - que sempre tem – mas se esses efeitos

são melhores analisados como elementos internos ao sistema econômico ou como o resultado

de forças externas. Para Humphreys, embora a guerra representasse um papel importante na

circulação de mercadorias, suas principais implicações econômicas em sociedades pré-

industriais estão relacionadas à distribuição da força de trabalho. Para compreender o lugar da

guerra na economia grega antiga, é necessário considerar as implicações da escravidão.245 O

comércio da Grécia arcaica, segundo Humphreys, deve ser visto em um contexto muito mais 243 ibid., p. 99-102. 244 ibid., p. 102. 245 HUMPHREYS, S. Homo politicus and homo economicus: war and trade in economy of ancient and arcaic

Greek. In: _____________. Anthropology and the Greeks. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1978. p. 159-170.

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amplo de trocas entre o Egeu e o mundo além, no qual a importação e a exportação de força

de trabalho foram muito superiores à troca de mercadorias, não sendo possível fazer uma

distinção entre comércio e transferência de mercadorias por meio da guerra, pirataria,

hospitalidade e troca de dádiva. Por outro lado, o império ateniense representou um novo

caminho para a integração da força de trabalho livre excedente na economia da cidade-Estado

por meio de lucros derivados da guerra e comércio. Guerra e comércio ainda estão

intimamente ligados, mas em lugar de atividades complementares realizadas pelo mesmo

pessoal, elas são diferenciadas e ligadas pelo dinheiro, pelo mercado e pela extorsão de tributo

por Atenas de seus súditos. Portanto, as guerras médicas foram um divisor de águas na

história grega.246

Hasebroek, muito preocupado com a diferenciação de valores entre o mundo antigo e

o moderno, não conseguiu perceber este aspecto fundamental da guerra. Tomando como eixo

comparativo somente modelos modernos de comércio, deixou escapar de sua análise este

movimento particular de mercadorias que se dava no interior das guerras arcaicas e ignorou

qualquer possibilidade de diferenciação de interesses econômicos dos cidadãos atenienses

pós-guerra do Peloponeso.

Weber, em sua análise acerca dos fundamentos econômicos do imperialismo, afirma

que nem sempre o surgimento e a expansão de formações com caráter de grandes potências

estão condicionados, primeiramente, por fatores econômicos, apesar de, em muitos casos, a

exportação de bens contribuir em grande medida para a formação de grandes Estados. No

caso dos grandes impérios ultramarinos do passado - Atenas, Cartago e Roma -, ele afirma

que:

outros interesses econômicos – sobretudo aquele em lucros provindos de rendas do solo, arrendamento de impostos, emolumentos oficiais e outros semelhantes - tinham importância pelo menos igual e, freqüentemente, muito maior do que os lucros mercantis. Dentro deste último motivo da expansão, por sua vez, era muito insignificante o interesse, predominante na era capitalista moderna, de “venda” para os territórios estrangeiros, em comparação ao interesse em possuir territórios a partir dos quais podiam ser importados certos bens (matérias-primas).247

246 ibid., p. 170. 247 WEBER, M. Economia e Sociedade. : Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. 165

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Nas diversas civilizações que Weber apresenta como exemplo, o tráfico de bens não

costumava indicar o caminho à expansão política, embora, mais à frente, o autor demonstre

que, apesar disso, a estrutura econômica determina em considerável grau tanto a extensão

quanto a forma da expansão política. Além de mulheres, gado e escravos, é a terra o principal

objeto de apropriação violenta, particularmente nas comunidades camponesas conquistadoras.

Assim, na Antiguidade, o interesse na renda do solo é de grande importância, pois “já que os

lucros mercantis eram ‘investidos’ de preferência em bens de raiz e escravos por dívidas, a

obtenção de terras férteis e apropriadas para produzir rendas constituía (...) a finalidade

normal das guerras”.248 Weber cita os privilégios oferecidos pela liga Ática ao demos da

cidade dominadora que, além de tributos de diversas espécies, conseguia a ruptura do

monopólio de solo das cidades sujeitas: “o direito dos atenienses à aquisição de terras por toda

parte e a empréstimos hipotecários.”249

Não há nesta reflexão uma clivagem em relação às ideais de Hasebroek, que parecem

aprofundar esta hipótese. Porém, a idéia de exportação de bens está totalmente ausente do

modelo de Hasebroek, que acredita na proeminência absoluta do interesse de importação

sobre o de exportação. Esta proeminência está presente no processo de colonização.

Para este autor, a colonização grega tinha um ou dois fins: império ou manutenção de

suprimentos. A colônia grega não era comercial; ela era militar (uma colônia de conquista),

ou agrícola. Esta última devia sua origem à iniciativa privada, enquanto a primeira era uma

iniciativa estatal. As colônias gregas freqüentemente se tornavam centros de comércio, pois,

em geral, estavam no caminho de rotas comerciais, levando os colonos agrícolas a assumirem

o controle do comércio como fonte de receita e, posteriormente, deixando este negócio para

estrangeiros que lá chegavam.

A típica colônia grega era agrícola (apoikia) e foi criada para suprir as alimentaraes da

população excedente das cidades-Estados; após duas ou três gerações, tornava-se uma nova e

independente organização política. A fome, não a ambição comercial, era a força motriz da

colonização. O solo escasso e pouco adaptável ao crescimento de grãos (trigo) impossibilitava

alimentar uma população continuamente crescente. O laço entre as colônias e as cidades-mães

era religioso e moral e não político e comercial; os objetos de culto, em particular o fogo

sagrado do pritaneu, chegavam diretamente da cidade-mãe, e os cidadãos da cidade-mãe

recebiam honras especiais quando visitavam a colônia. Sacerdotes poderiam ser convidados

248 idem., p. 165. 249 ibid.

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para servir como árbitros em causas especiais e graves. Os tipos de moeda da colônia eram

influenciados pela história legendária de sua cidade-mãe, porém não havia uma relação de

submissão política e econômica. Todos estes aspectos configuram uma relação distinta da que

existe entre colônia e metrópole dos Tempos Modernos.250

As colônias militares (clerukias) “eram fundadas em pontos estrategicamente

importantes e serviam tanto para manter os pontos subjugados e aliados sob controle como

para fornecer terra para a população excedente”.251 Diferente das colônias agrícolas, a colônia

militar permaneceu politicamente dependente, porém sem motivos comerciais, apenas os

motivos de dominação militar e manutenção de dependência. Portanto, a colonização serviu

como instrumento da Talassocracia: um meio de controlar extensões marítimas e de obter

pela força suprimentos de alimentos e metais preciosos e de assegurar as rotas para outras

regiões serem exploradas para fins similares. O objetivo da colonização não era comercial,

mas sim, imperial.252

Sob o mesmo raciocínio, Hasebroek analisa os chamados “tratados comerciais”, que

tinham como fim último o suprimento de necessidades, em particular, de trigo, materiais de

defesa e de construção de navios. Tanto que em Atenas era proibido exportar trigo e materiais

de construção de navios, tais como madeira, piche, cera e corda. Nenhum destes “tratados”

serve a interesses de comerciantes e produtores cidadãos. O Estado tentava assegurar

suprimentos evitando a disputa de mercadorias no estrangeiro e aumentando a produção

interna. No entanto, o ideal de auto-suficiência era inviável, e a cidade grega foi obrigada a

procurar ajuda no estrangeiro com “tratados de importação”. Porém, o traço mais essencial

dos Estados gregos clássicos foi a busca deliberada de independência, que estava

condicionada pelo fato de que estes Estados eram cidades-Estados. Mesmo na época de maior

desenvolvimento, não há idéia de solidariedade no mundo das cidades-Estados gregas; e até a

evolução política foi determinada por um separatismo exagerado. A existência do cidadão

estava diretamente relacionada com sua cidade-Estado. Fora de sua cidade, seus privilégios de

cidadão estavam aniquilados. A proscrição ao estrangeiro é comum a toda lei grega primitiva.

E em teoria, mostrou-se notavelmente persistente. Assim, a guerra entre os Estados gregos

era uma coisa normal na mentalidade grega. Os tratados de paz para os períodos de cinco ou

250 HASEBROEK, J. op. cit., p. 108-109. 251 ibid., p. 109. 252 ibid., p. 110.

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dez anos eram vistos como meras interrupções de um estado de guerra. A pirataria e o corso

eram praticados com a proteção e a autoridade do Estado.253

O estrangeiro, a menos que estivesse protegido por tratados especiais entre as cidades

ou por privilégio pessoal, estava exposto à apreensão em alto mar ou nas águas costeiras de

outro Estado. Ele também era excluído de entrar no porto e no mercado de outro Estado. Os

motivos pelos quais o cidadão abandona sua política de isolamento e envolve-se no comércio

entre cidades são dois: a manutenção de suprimentos necessários e a exploração fiscal do

tráfego quando se refere às suas praias. Uma cidade “abria suas portas” para o estrangeiro

quando lhe convinha, isto é, quando seus serviços eram indispensáveis: artífices, artistas,

escravos e especialmente mercadores estrangeiros. Eis a razão dos privilégios e isenções

especiais dos metecos. Tal fato não invalida a hipótese de que a vida política dos gregos

caracterizava-se pela ausência de solidariedade, e que tal perspectiva também estava presente

na vida econômica. O fechamento de mercados e portos e a existência da pirataria como meio

de sobrevivência comprovam aquela ausência de solidariedade.254

Mesmo em épocas de guerra e na ausência de direitos para estrangeiros, um tipo de

“paz comercial” era, a princípio, tacitamente reconhecido enquanto as mercadorias

necessárias eram trocadas em épocas fixas. É designado para assegurar a proteção daqueles

engajados na troca de mercadorias necessárias. Estes podem ser homens que estão comprando

para seu próprio household ou para outras pessoas privadas. Outra proteção ao estrangeiro era

a instituição da proxenia, que deriva da amizade entre hóspedes. Para proteger seus interesses

e os interesses privados de seus cidadãos, o Estado grego indicava representantes nas cidades

estrangeiras. Eles recebiam privilégios especiais. Sua obrigação era ajudar e proteger os

cidadãos e a propriedade dos cidadãos da cidade de origem. Mas ele não era oficialmente

reconhecido pela cidade na qual residia. A indicação de um proxenos não implicava em

relação oficial ou algum acordo entre duas cidades.255

Os laços entre as cidades eram fracos e inseguros. Os tratados não predominavam

sobre o espírito das cidades de satisfazer suas necessidades por meio, primordialmente, da

força e exploração. O comércio pacífico e as alianças não eram os objetivos primordiais a

serem perseguidos. A ética política grega em nada se confunde com uma solidariedade entre

Estados. Para os gregos, a justiça política não deveria reprimir a força por si, mas sim o abuso

253 ibid., p. 117-118. 254 ibid., p. 121-124. 255 id. ibid, p. 128.

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da força. A cidade antiga constituía-se em um membro independente de um grupo de cidades

gerais. Esta visão tomou formas nítidas no imperialismo naval – a talassocracia. Desde suas

origens, a existência de uma cidade grega estava ligada ao esforço de assegurar o controle de

mares vizinhos. Os objetivos deste imperialismo não eram econômicos, no sentido de buscar

vantagem para mercadores ou produtores cidadãos, nem nacionais. Eles eram exclusivamente

políticos. A obrigação da cidade grega era fornecer subsistência para seus cidadãos. Era parte

do privilégio dos cidadãos viver às custas do Estado.

A independência econômica foi considerada como uma condição necessária de independência política. A cidade grega desse modo era incapaz de buscar seu ideal econômico por meio econômico e foi levada a resolver seus problemas conquistando e vivendo às custas dos vizinhos256.

O bem-estar da cidade geralmente estava condicionado pelo exercício de poder sobre

seus súditos, não dependendo do desenvolvimento de seus próprios recursos de trabalho,

indústria ou comércio nativo, mas das contribuições de seus súditos. A cidade imperial grega

usou dois métodos de imperialismo: anexava e explorava diretamente o território dominado,

tirando os habitantes originais e assentando o excedente de sua população e compelia os

habitantes do território dominado a pagar tributo em dinheiro ou em espécie. Os cidadãos

constituíam uma casta militar, cujos interesses eram absorvidos por responsabilidades

políticas e obrigações militares, deixando o trabalho para servos, escravos e metecos. As

cidades-Estado procuravam aproximar-se do ideal de independência econômica, daí ser

impensável pensar a cidade-Estado como uma nação257. A cidade grega não estava interessada

em alcançar supremacia comercial e capturar mercados por meio da força: interessava-lhe a

supremacia política.

Na Liga de Delos, os participantes logo se tornaram súditos de Atenas: suas

contribuições tornaram-se um tributo para Atenas e suas receitas, receitas de Atenas. Os

tratados de importação tornaram-se meros arranjos para contribuições forçosas.258 O

crescimento de Atenas não era um crescimento comercial. A talassocracia ateniense era

movida pela busca de suprimentos. Ocuparam-se portos nos quais se podia controlar e

racionalizar os suprimentos dos outros. Os dependentes pagavam tributos e forneciam

256 id. ibid, p. 136. 257 ibid., p. 137-138. 258 ibid., p. 139.

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alimentos. Ao mesmo tempo colocavam-se guarnições em territórios dependentes para

prevenir–se de revoltas.259

Além da necessidade de garantir suprimentos, o Estado preocupava-se em assegurar

riquezas por meio do comércio. O governo intervinha de todas as formas a fim de encher seus

celeiros e seu tesouro, impedindo o desenvolvimento do comércio e criando inseguranças e

incertezas em um Estado que vivia permanentemente em guerra. O Estado não agia em nome

de uma classe de comerciantes; ao contrário, intervinha em seus interesses, tomando empresas

comerciais em suas próprias mãos e confiscando os lucros para o tesouro. Interferia na vida

econômica de toda a cidade, estando a sua mercê a propriedade, o dinheiro, o crédito, todo o

tipo de transação pecuniária. A causa em todo lugar era sempre a mesma: a cidade nunca tinha

um estoque regular para abastecer a população.260 O resultado disso foi o encobrimento da

riqueza, entesouramento. Todas as posses eram um perigo. Daí constituir-se o solo no

investimento mais seguro. Tal afirmativa complementa a hipótese de Weber acerca da

importância do investimento no solo, com o intuito de obter rendas.

Quanto aos monopólios, não há indicação de monopólios fixos, exceto aquele de troca

de dinheiro, que era o mais importante. O Estado ocasionalmente decretava que toda compra e

venda dentro de suas fronteiras deveria ser feita em moeda corrente local.261

As obrigações de direitos alfandegários estavam de acordo com a visão geral do

Estado para com o comércio: obter uma fonte de receita para o tesouro público. O Estado

explorou o comércio por meio de taxações indiretas, coletadas em dinheiro, não em espécie,

que variavam de acordo com a natureza das mercadorias: as taxas arrecadadas por tráfego por

terra eram pequenas, já aquelas arrecadadas sobre mercadorias trazidas por mar eram bem

mais significativas. Um método lucrativo dos Estados marítimos de aumentar suas receitas,

além dos impostos sobre importação e exportação, eram as taxas de transporte. Finalmente,

havia as taxas especiais do porto do Pireu: a massa de mercadorias que passava através desse

porto deve ter excedido as exportações e importações atenienses.

Os trabalhos de Weber e Hasebroek, ao deslocarem o eixo do argumento primitivista,

do oikos para a pólis, e apresentarem uma preocupação maior com o material empírico,

respondiam, em parte, às críticas dos historiadores aos economistas históricos. Contudo, tal

deslocamento da esfera econômica para a esfera política não significava um retrocesso a uma

259 ibid., p. 144. 260 ibid., p. 151-152. 261 ibid., p. 153-156.

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historiografia rankeana, mais preocupada com os grandes personagens políticos, mas uma

resposta à teoria evolucionista de Bücher, com estágios de desenvolvimento incompatíveis

com o material empírico disponível. Conseqüentemente, os trabalhos desses autores, Weber e

Hasebroek e, também, do próprio Meyer, ainda sob um “ambiente” historista, já demonstram

traços da História Social, na qual os diversos grupos sociais e sua relação com a estrutura

econômica e política já ocupavam o centro de suas preocupações. A Arqueologia,

particularmente com Hasebroek, começa também a ter um papel importante, sendo já

utilizada para corroborar o modelo geral apresentado pelo autor.

A pólis era primitiva em relação ao racionalismo do capitalismo moderno e às

economias nacionais, mas não em relação às monarquias do Antigo Oriente. Portanto, o

primitivismo da pólis era sublinhado somente em relação a períodos posteriores, mas não

quando comparado a sociedades contemporâneas. Weber, com sua elaboração de

racionalidade e irracionalidade, não conseguiu superar os resquícios neoclássicos de seu

arcabouço teórico. Hasebroek, mesmo seguindo de perto os trabalhos de Weber, ao acentuar

as diferenças da pólis com as economias nacionais modernas, retoma Bücher para demonstrar

que os princípios da economia política clássica eram incompatíveis com a realidade do mundo

antigo. Contudo, a excessiva preocupação em demonstrar as diferenças entre a política das

cidades-Estados e interesses comerciais modernos não lhe permitiu perceber qualquer tipo de

interesse do cidadão que não seja dominado pela esfera política. De acordo com a definição

de Weber de política, podemos dizer, conforme Hasebroek, que a exclusão dos estrangeiros

(metecos, escravos) da política citadina era o elemento fundamental do poder das cidades-

Estados. O comércio era útil apenas como elemento constituinte do objetivo maior da cidade,

o suprimento de necessidades, e não afetava o ideal de independência das cidades-Estados.

Mas não seria este objetivo, o suprimento de necessidades, já um interesse eminentemente

econômico?

Não há uma autonomia do econômico em relação ao político. A reflexão teórica acerca

do engastamento da esfera econômica, no mundo antigo, na esfera política, e a supressão dos

resquícios neoclássicos do seio da tradição que estamos investigando constituiriam o centro

das análises do húngaro Karl Polanyi, inserido em um outro contexto intelectual e amparado

em uma outra ciência social, a Antropologia. Esta mudança de perspectiva é o que iremos

investigar no próximo capítulo.

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PARTE II

A GUINADA ANTROPOLÓGICA E O SUBSTANTIVISMO

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4 O ATAQUE AO MERCADO “FORMALISTA”. KARL POLANYI E O

NASCIMENTO DO MERCADO NA GRÉCIA ANTIGA

4.1 INFLUÊNCIAS INTELECTUAIS E CONTEXTO POLÍTICO

Apesar da mudança de referencial científico, não há uma ruptura violenta entre

Polanyi e muitos dos autores paradigmáticos da tradição histórica alemã, dentre eles: K.

Bücher e Sombart, na esfera econômica; Toonies e Max Weber, na sociologia; e de forma

mais direta, Thurnwald, na antropologia, aluno de Weber. Fora da tradição histórica alemã, as

maiores influências de Polanyi são: Aristóteles, Robert Owen, Malinowski – de quem Polanyi

é apenas dois anos mais jovem – Radcliffe-Brown, Durkheim e Marcel Mauss.

Polanyi nasceu em 1886, um ano antes de Lukács, no mesmo ano de Karl Korsh e

cinco anos depois de Gramsci. Seus anos de formação intelectual na Hungria foram moldados

por correntes intelectuais conflitantes e vibrantes. Durante o curso de Direito, na Hungria, o

marxismo e a sociologia do conhecimento despertaram o interesse de Polanyi. Seu

pensamento se distinguiu do marxismo ortodoxo por sua ênfase na subjetividade,

característica comum entre os fundadores do marxismo ocidental. A ruptura com o marxismo

ortodoxo foi facilitada por seus mentores húngaros, Gyula Pikler e o sociólogo Oszkár Jászi.

Polanyi foi um dos fundadores, em 1908, em Budapeste, do Círculo Galilei, um clube

político e intelectual, no qual muitas figuras socialistas e liberais da Hungria marcaram

presença proferindo palestras, como seu irmão Adolph Polanyi e Georg Lukács. O objetivo do

clube era defender a liberdade acadêmica e científica na luta contra preconceitos religiosos,

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raciais e de classe.262 Os galilelistas, intelectuais modernistas jovens, procuraram sobrepujar

o atraso de seu país com a introdução e disseminação do pensamento e dos valores científicos

ocidentais. Apesar de seus esforços de promover uma ‘cosmo visão científica’, os galilelistas

estavam engajados em uma cruzada moral, com Polanyi aparentemente sobressaindo-se mais

como profeta do que como um presidente fundador.

Segundo Nafissi, Polanyi no período da primeira guerra, aproximou-se do

cristianismo. Durante a guerra, o misticismo cristão dos escritores russos, particularmente

Tolstoi, substituiu o empirismo científico. O cristianismo tolstoyiano contribuiu para o

rompimento, em um momento posterior, com o liberalismo e o capitalismo mercantil, e

acentuou seu individualismo cristão/comunal e socialista, além de potencializar o seu

‘idealismo’ voluntarista.263

Após o final da guerra, Polanyi deixou a Hungria e foi para a Áustria. Depois de um

período de profunda depressão causada pela derrota das forças democráticas na Hungria e do

isolamento espiritual de seus companheiros em virtude de sua conversão ao cristianismo, além

dos ferimentos físicos oriundos da guerra, Polanyi retomou os debates públicos em Viena.

Seu casamento com Ilona Ducyznska, uma jovem ativista comunista também contribuiu para

este retorno. É nesse período que Polanyi voltou-se de fato para o estudo das ciências sociais,

em particular a economia. A preocupação de Polanyi com os problemas do socialismo, pelo

menos em parte, pode ser explicado pelo contexto do mundo pós-guerra, onde, além da

Rússia, partidos socialistas ocupavam posições influentes na Europa Oriental e Central. A

Áustria estava na vanguarda do avanço socialista, dominada por um partido socialista radical

com propostas independentes tanto do bolchevismo russo quanto da democracia social alemã.

A teoria marxista levou muitos sociólogos a se interessarem pelos estudos empíricos

das classes sociais e pelas alternativas para o sistema capitalista, em virtude do

desenvolvimento da crise do pós-guerra e da experiência socialista na Rússia. Polanyi, em

1922, colaborou com um artigo sobre princípios teóricos socialistas para o Achiv für

Sozialwissenchaft, que segundo Humphreys, “expressava sua crença na superioridade social e

moral da economia socialista centralmente planejada, guiada pela ‘demanda social’ ao invés

262 STANFIELD, J.R. The economic thought of Karl Polanyi: lives and livelihood. London: The Macmillan

Press, 1986, p. 3-4 263 NAFISSI, M. Ancient Athens& modern Ideology. Value, theory &evidence in historical sciences. Max

Weber, Karl Polanyi & Moses Finley. London: Institute of classical studies, 20005, p. 137-140.

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das demandas consumistas individuais.”264 De 1924 a 1933 ele escreveu para o jornal

vienense österreichische volkswit como analista de finanças e política internacional

(especialmente inglesa). Nestes artigos, segundo Nafissi, diferente de Humphreys, Polanyi

critica o planejamento centralizado. Os marxistas ortodoxos acreditavam em oposição entre o

sindicalismo e o coletivismo, pois acreditavam que o sindicalismo era um tipo de “capitalismo

de trabalhadores”. Concomitantemente, a ortodoxia marxista rejeitava a identificação do

sindicalismo com o socialismo.Polanyi se opôs a esta visão, pois acreditava que a oposição

coletivismo versus sindicalismo não representava alternativas significativas para uma teoria

de organização de uma economia socialista. Polanyi, neste período, acreditava que por meio

do socialismo era possível estabelecer um diálogo potencialmente conflitual entre e dentro de

organizações de produtores e cidadãos consumidores, concebendo o socialismo em termos

evolucionários e como uma extensão e consolidação de instituições e processos

democráticos.265

Em 1933, em virtude do crescimento do fascismo austríaco, Polanyi emigrou para a

Inglaterra e dedicou a maior parte de seu tempo proferindo conferências na Associação

Educacional dos Trabalhadores sobre a história do socialismo inglês e as causas do Fascismo,

já em franca ascensão na Alemanha. Neste período, também, proferiu uma série de palestras

nos Estados Unidos, e de 1940 a 1943, não podendo retornar para a Inglaterra, devido à

guerra, escreveu nos Estados Unidos The great transfomation. Estão presentes aqui as

questões e as preocupações da época: a crise do liberalismo, com a ascensão e queda do

capitalismo laissez-faire, a defesa de uma economia socialista planejada e a explicação das

causas do fascismo.266

Segundo Stanfield, o socialismo de Polanyi não era tanto uma matéria de ação política,

mas sim, a crença em uma superioridade moral e a qualidade de vida social do socialismo em

relação ao capitalismo. Acreditava que somente o socialismo poderia superar a atmosfera

desmoralizadora da sociedade capitalista mercantil com sua economia disembedded e permitir

a subordinação da economia para os fins da comunidade humana.267 Esta perspectiva é

compartilhada por Nafissi, que acredita que o socialismo e o primitivismo de Polanyi eram os

dois lados do mesmo argumento. O socialismo era, porém, uma forma moderna de formações

264 HUMPHREYS, S.C. History, economy and anthropology: the work of Karl Polanyi. In: Anthropology and

the Greeks. London, Henley , Boston: Routledge & Kegan Paul, 1978, p.34 265 NAFISSI, M. op. cit., p. 147-148. 266 ibid., p. 37. 267 SATANFIELD, J.R. op. cit., p. 6

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redistribuitivas (e recíprocas) que em sua visão eram ubíquas em toda a história.268 Contra o

determinismo daqueles que pregavam que a realidade social e as circunstâncias determinavam

o curso da história, Polanyi afirmava que a economia humana era um conjunto de relações

morais que deviam ser estudadas por pessoas que se moviam dentro destas relações. Sua

experiência com as guerras e o contato com os operários ingleses reforçaram sua convicção de

que uma existência humana em uma sociedade industrial só podia ser assegurada por uma

revolução cultural que viabilizasse a subordinação da economia à comunidade humana.

Concomitantemente, ao tentar fornecer uma explicação para o fascismo, ele se debateu com o

problema da liberdade versos ordem em uma sociedade complexa em uma fase historicamente

dramática.269

Tal perspectiva alimentou seu compromisso democrático e sua aproximação com a

Antropologia, na qual ele encontrou uma tradição não essencialista em que a experiência

humana podia ser expressa por meio de um método baseado no conhecimento empírico

concreto. O conceito de cultura possibilitou-lhe trabalhar com os símbolos interpessoais que

controlam o pensamento e a ação dos homens em qualquer grupo dado. Para Stanfield, este

interesse pelas sociedades pré-capitalistas não estava em conflito com o socialismo de

Polanyi, pois se o socialismo era a subordinação da economia à comunidade humana, as

sociedades pré-capitalistas, com sua economia embedded no contexto total do grupo humano,

eram o campo mais fértil para entender aquela subordinação.270

Já em A grande transformação, Polanyi dedicou três capítulos para as sociedades

pré-capitalistas. Após a publicação deste livro, de 1944-1948 parece ter havido uma mudança

nos focos de sua pesquisa. Em 1947, Polanyi se tornou professor visitante da Universidade de

Columbia, e trabalhou em um programa de pesquisa interdisciplinar acerca da origem das

instituições econômicas intitulado “os aspectos econômicos de crescimento institucional” com

um grupo de colaboradores que desembocou na publicação de Trade and market, em 1957.

Neste livro, Polanyi escreveu um capítulo sobre Mesopotâmia e a Grécia, além de capítulos

teóricos sobre o processo de institucionalização da economia. Ele viria, posteriormente, a

escrever artigos sobre porto de comércio em sociedades antigas e sobre a História do Daomé.

Em 1977, Harry Pearson editou uma série de escritos dispersos de Polanyi, nos quais este

268 NAFISSI, M. op. cit., p. 130. 269 SATANFIELD, J.R. op. cit , p. 15-16. 270 ibid, p. 15-17. Esta posição não é compartilhada por Humphreys, que acredita que o interesse de Polanyi pela

Antropologia é acentuado pelas correntes utópicas do período entre guerras, que não mais acreditavam na teoria econômica, e procuravam soluções irracionais para a crise econômica no passado. (Ver Humpreys, op. cit., p. 38)

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aprofundava muitas das questões teóricas de Trade and market, e teceu uma série de

reflexões sobre a Grécia antiga. Este livro foi intitulado The livelihood of man, e sem dúvida,

é o dos trabalhos que está mais próximo do objetivo de nossa pesquisa.

Até o final de sua vida, em 1964, no Canadá, Polanyi continuou trabalhando no

projeto de uma história e sociologia econômicas que se opunha à tentativa de impingir às

sociedades primitivas e arcaicas os conceitos de uma teoria válida somente para um sistema

de mercado. Polanyi acreditava que tal perspectiva dificultava o desenvolvimento autóctone

daquelas sociedades e era um instrumento do neo-colonialismo.271

4.2 A DEFINIÇÃO DO ECONÔMICO

O estudo de Polanyi leva-nos a uma investigação do debate travado por três correntes

de pensamento da definição de econômico. De um lado os formalistas, que atribuem à

antropologia econômica o estudo de uma variedade de comportamentos humanos que consiste

em combinar os meios determinados e escassos para atingir fins específicos. De outro, os

substantivistas, que entendem ser a economia de uma sociedade as formas e as estruturas

sociais da produção, da distribuição e da circulação dos bens materiais que caracterizam esta

sociedade em um dado momento de sua existência. A terceira corrente é representada pelos

marxistas, que analisam e explicam as formas e estruturas dos processos de vida material das

sociedades com a ajuda dos conceitos elaborados por Marx de “modo de produção” e de

“formação econômica e social.”272 Segundo Godelier, partidário desta última vertente, tanto

os substantivistas quanto os formalistas descendem do empirismo funcionalista, predominante

na economia e na antropologia anglo-saxônica, pois ambos convergem, como empiristas, em

afirmar

que as coisas são o que bem parecem, que o salário é o preço do trabalho, que o trabalho é um fator de produção entre outros, que a fonte do valor das mercadorias não está, portanto, apenas no dispêndio de trabalho social, etc. (...) A diferença, entretanto, está em que os substantivistas se recusam a aplicar à análise de todos os sistemas econômicos estas categorias teóricas empíricas, cuja utilização restringe à análise das economias de mercado273.

271 POLANYI, I. D. Karl Polanyi: notes on his life. In: POLANYI, K _______. The livelihood of man. New

York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. XVIII. 272 GODELIER, M. Horizontes da antropologia. Lisboa: Edições 70, s/d, p. 40-42. 273 ibid., p. 45.

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Na apresentação de Trade and market (utilizarei aqui a tradução espanhola deste

livro intitulada Comercio y mercado en los imperios antiguos),274 Godelier retoma esta

comparação, ao afirmar que a crítica mais aguda do livro é dirigida a Talcott Parsons e a seu

mestre Max Weber.275 Esta comparação conduz-nos novamente a Weber, e à sua definição de

economia, para entendermos, até que ponto, Polanyi e seus colaboradores distanciam-se e

aproximam-se de Weber, e qual a ressonância disto para o debate que estamos investigando

mais de perto.

Polanyi nunca se encontrou com Weber e referências diretas sobre o trabalho de

Weber nos escritos publicados de Polanyi são raros. Mencionado como um de seus

precursores nos estudos de história econômica, por sua abordagem institucional e histórica,

Polanyi opunha-se à defesa do mercado feita por Weber, pois acreditava ser esta uma ilusão

do século XIX. Para Polanyi não havia nada de inevitável, racional, progressivo ou natural

sobre a ascensão do capitalismo mercantil. A reflexão de Adam Smith sobre o mercado foi

uma ficção produtiva. O capitalismo mercantil foi um projeto utópico e artificial, colocado em

prática, durante todo o século XIX, pelo Estado e por forças interessadas em destruir a

inclinação do homem à comunidade.

Para Max Weber, a economia é, em termos específicos, uma relação humana que tem

por base uma necessidade ou um complexo de necessidades que exigem satisfação. Tal

satisfação exige uma reserva de meios e ações considerados escassos pelos agentes. Além

disso, para que tenhamos um comportamento racional referente a fins, esta escassez deve ser

subjetivamente suposta e as ações orientadas por este pressuposto276. Outrossim, para Weber,

a economia exprime, também, uma relação social, pois implica em uma relatividade

significativa a outrem, na qual a aquisição ou o uso de objetos desejados para satisfazer as

necessidades

dão margem a uma atividade compreendendo de um lado uma exploração sob a forma de produção ou do trabalho organizado e do outro uma previsão com vistas a garantir o atendimento das necessidades sob as formas da

274 POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos.

Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976. 275 Em 1953, Talcott Parsons apresentou em uma série de conferências as grandes linhas do que ele pretendia ser

uma sociologia econômica geral. Em 1956, Talcott Parsons e Neil Smelser publicaram o texto destas conferências sob o nome de “Economy and Society”, tomado diretamente de Weber. Este texto foi enviado a Polanyi e comentado em um capítulo do livro Trade and Market por Harry Pearson. Ver POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 353-365.

276 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 229.

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provisão, do ganho ou, mais geralmente, de um poder capaz de dispor de bens.277

Desta forma, a gestão econômica pode realizar-se sob dois aspectos. Em primeiro

lugar, a “satisfação de uma dada necessidade própria, que pode referir-se a todos os fins

concebíveis, da comida até a edificação religiosa, desde que sejam escassos os bens ou as

possibilidades de ação exigida.”278 Aqui, é comum acentuar-se a satisfação das necessidades

cotidianas, às chamadas necessidades materiais.

Orações e atos pios podem, de fato, também tornar-se objetos da economia, desde que as pessoas qualificadas a realizá-los e suas ações sejam escassas e, por isso, só possam estar disponíveis em troca de pagamento, assim como o pão de cada dia. Os desenhos dos bosquímanos, aos quais se atribui muitas vezes alto valor artístico, não são objetos da economia, nem sequer produtos de trabalho, em sentido econômico. Ao contrário, outros produtos da criação artística com valor muito menor podem tornar-se objetos de ações econômicas quando se apresenta a situação especificamente econômica de escassez em relação à demanda.279

O outro tipo de gestão econômica está voltado para a aquisição. Aqui aproveita-se da

situação especificamente econômica de escassez de bens desejados para se obter lucro pela

disposição sobre estes bens.280

Segundo Pearson, Weber faz parte de uma tradição de pensamento que acentua a

preocupação pela forma racional de fazer as coisas, sejam quais forem os fins últimos281. Já

demonstramos, na primeira parte de nosso trabalho, a importância atribuída por Weber à

racionalidade capitalista, que, em nossa opinião, assume um caráter teleológico. A leitura de

alguns autores que participaram de Trade and market evidencia e aprofunda com mais

nitidez o que já concluímos anteriormente sobre Weber; todavia, estes trabalhos explicitam-

nos o debate no qual as idéias de Weber estavam inseridas. Terrence Hopkins, por exemplo,

afirma que o enfoque de Weber esboçava versões “ideais” dos diversos tipos de ação social

que se davam nas esferas religiosa, política e econômica. Assim, a sociedade é concebida por

diversas estruturas de relações sociais em que se produzem vários tipos de ações, sendo a

277 FREUND, J. Sociologia de Max Weber. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 1980, p. 112. 278 WEBER, M. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª

edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 229. 279 ibid. 280 ibid., p.230. 281 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W.

Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 353-365.

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economia a parte da sociedade constituída por ações racionais no contexto das relações

impessoais.282 Esta concepção acentua, segundo Hopkins, a ação racional. As conseqüências

desta formulação resultaram na idéia de que as economias que não se baseavam no mercado

se apresentavam como meros apêndices compostos por formas aberrantes de partes

correspondentes, em sua essência, à economia de mercado.

Esta corrente de pensamento, cujos mais destacados representantes além de Weber são

Pareto, Marshal e Parsons, tem se dedicado, em primeiro lugar a um “aspecto” determinado

da conduta social, a seu desenvolvimento e às suas conseqüências organizativas. O vínculo

entre este campo de interesse e o problema do lugar das economias nas sociedades constituiu

o surgimento do sistema de mercado, que institucionalizou a ação economizadora de forma

que os movimentos de bens e de pessoas das economias empíricas tendiam a reger-se pela

escolha racional dos indivíduos entre utilizações alternativas de meios escassos. Tudo isto

levou esta tradição e os seus intelectuais a se centrar na economia concebida em sua forma de

mercado.283

Segundo Pearson, tanto a análise de Parsons quanto a de Polanyi e seus colaboradores

(no qual ele se inclui) procuram resolver o problema do lugar mutante que ocupa a economia

na sociedade humana. Convergem com a idéia de que o estudo da economia deve ser feito

dentro do contexto estrutural da sociedade e sua função universal é proporcionar à sociedade

os meios de conseguir seus objetivos, adaptando-se por sua vez ao contexto de um meio

ambiente exterior. Como são muitos os níveis de organização da sociedade que podem

“participar” na realização desta função, nenhuma instituição, nenhuma unidade social

concreta podem ser inteiras e unicamente econômicas: são realidades “multifuncionais”.284

Contudo, para Parsons e Smelser, há uma tendência em todas as sociedades globais de

“diferenciar-se em subsistemas com funções especializadas”. Porém, para Polanyi e seus

partidários, a existência da economia como uma instituição separada, especializada nesta

função, é uma exceção histórica e não o resultado da tendência de toda sociedade global. Essa

282 HOPKINS, T.La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 327.

283 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 355-356.

284 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 353-364.

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idéia, para Godelier, deriva de uma visão romântica das sociedades pré-capitalistas e que não

vem confirmada pela experiência.285

Hopkins também destaca o chamado “postulado da escassez”, como uma série de

premissas cuidadosamente construída, para definir uma situação na qual se deduz logicamente

o ato de escolha.

Uma situação de escassez pode definir-se como uma situação em que os meios têm usos alternativos e são insuficientes para alcançar todos os fins; como os fins têm de estar classificados segundo uma ordem de prioridades e se supõe que tem de realizar-se alguma ação, a escolha entre os usos dos meios está implicada logicamente.286

Segundo Hopkins, quando este postulado é introduzido na sociologia abandonam-se as

premissas especificadoras, e o termo “escassez” acaba significando simplesmente

insuficiência. O resultado disso pode resultar em um argumento naturalista no qual subjaz a

idéia de que se não há bastante, haverá guerra. Daí a conclusão de que os homens lutam pelo

que está dado na natureza, vivendo ou não em sociedade. Desta forma, o autor nega a

importância universal da “escassez” no funcionamento da economia, sem deixar de negar a

importância de situações de escassez sob condições sociais específicas. Portanto, a presença

de situações de escassez parece ser uma questão de grau.287

Para Pearson, o trabalho de Parsons revela a seguinte posição:

a racionalidade economizadora identifica-se como um dos aspectos universais da conduta humana. Porém, o aparecimento real de dita conduta depende da existência anterior de estruturas sociais que favoreçam esse tipo de ação.288

Tal hipótese é pertinente quando se busca localizar os tipos de estrutura social em que

se possa encontrar ação economizadora. Contudo, caso se pretenda conhecer o sistema pelo

285 GODELIER, M. Presentacion. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y

mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p.13

286 HOPKINS, T. La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 334. p.13

287 ibid, p. 335-337. 288 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W.

Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 358-359.

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qual os homens garantem seu sustento, é necessário avançar nesta proposição, buscando algo

que sirva de ponte entre a ação economizadora e a economia. Parsons e Smelser tentaram

solucionar o problema afirmando que a “economia humana mostra uma tendência a

diferenciar-se de acordo com a necessidade “de adaptação” da sociedade, definida em termos

de economização com meios escassos.”289 Pearson critica a união de uma categoria formal da

ação, a economização, com uma entidade empírica, a economia, identificando assim a

economia com sua forma de mercado. Segundo Pearson, Parsons e Smelser confundem a

“necessidade funcional de adaptação ao entorno no processo de consecução dos fins do

sistema com uma das formas de adaptação, isto é, a economização.”290

Enquanto Weber e Pareto se ocuparam com o grau em que a racionalidade da

economização com meios escassos pode estar presente na sociedade, Polanyi e seu grupo

preocuparam-se com a forma de institucionalização das atividades econômicas reais. Cada

objetivo, segundo Pearson, demanda um método diferente291. Portanto, diante do exposto, o

termo economia designa dois conceitos muito diferentes, um dos quais tem o significado

formal de “economização” e o outro o empírico de “sustento”.292

Passemos às considerações de Polanyi, que, em consonância com Hopkins, afirma que

a economia é uma mescla de dois significados com raízes diferentes, que ele denomina de

“real” e “formal”.293 Esta diferenciação nasceu por volta de 1870 com a teoria econômica neo-

clássica que partiu da premissa estabelecida por Karl Menger, em 1871, de que o econômico

era a distribuição de meios insuficientes para a sobrevivência do homem. Como uma

formulação sucinta da lógica de ação racional com referência à economia, sua importância foi

realçada pelas instituições de mercado. Mais tarde, Menger tentou restringir seus princípios à

economia moderna. Em 1923, ele ressaltou a distinção entre a economia de mercado ou de

troca e as economias de não mercado ou “atrasadas”. Menger apontou duas direções

elementares para a economia: uma derivada da insuficiência de meios, a outra derivada dos

requisitos físicos de produção independente da suficiência ou insuficiência de meios. Devido

às realizações bem aceitas da teoria de preço revelada por Menger, o novo significado formal

289 ibid., p. 359. 290 ibid. 291 ibid., p. 363. 292 HOPKINS, T. La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 318.

293 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 289.

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tornou-se o significado de econômico, e o significado mais tradicional de materialidade, que

não necessariamente estava ligado à escassez, perdeu o status acadêmico e foi eventualmente

esquecido.294 Assim, a fusão dos dois significados de econômico, o de “subsistência” e o de

“escassez” passou a ser feita sem consciência dos perigos para a clareza do pensamento

econômico. Tanto Weber, quanto Talcot Parsons foram vítimas desta confusão.

O significado “formal” origina-se do caráter lógico da relação meios-fins, evidente em

termos como economizante ou economização. Se refere à escolha entre os diferentes usos dos

meios, isto é, implica em uma série de normas que regem a escolha entre os usos alternativos

de meios escassos. Um tal significado fundamenta o verbo maximizar (aumentar).295

A ação racional é definida pela escolha de meios em relação a fins. Os meios são

qualquer coisa que sirva para alcançar um fim, seja em razão das leis da natureza ou das

regras de um jogo. Racional é, portanto, a relação entre fins e meios. “Com respeito aos fins, a

escala utilitária de valor foi postulada como racional; e com respeito aos meios, a escala de

teste para a eficiência foi aplicada pela ciência.”296 Portanto, duas escalas diferentes de valor

que ocorrem para adaptarem-se ao mercado. Segundo Polanyi, a variante econômica do

racionalismo é falaciosa, pois defende a idéia de que a escolha é conseqüência da escassez de

meios. Tal falácia postula, em primeiro lugar, que os meios são escassos; e em segundo, que

esta escassez torna necessária a escolha. Contudo, há escolhas de meios sem escassez e

escassez de meios sem escolha. A escolha pode estar determinada por uma preferência entre o

bem e o mal, matéria da ética; ou por uma possibilidade de diversos caminhos (meios) que

conduzam a um fim perseguido, que tenham as mesmas vantagens ou desvantagens. É,

portanto, puramente operacional. Não há insuficiência de meios.297 A escolha moral é

indicada pela intenção do agente de fazer o que é correto. “O costume e a tradição,

geralmente, eliminam a escolha, e se a escolha existir, não necessita ser induzida pelos efeitos

limitantes de alguma “escassez” de meios”.298 A disponibilidade de ar e água ou a devoção de

uma mãe a seu filho pequeno, não são, geralmente limitadas pela escassez. Em algumas

294idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 21-24. 295idem. La economia como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,

H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 289 e POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 19-20.

296 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 13. 297 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,

H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 291 e POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 25.

298 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 27.

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civilizações, as situações de escassez são quase excepcionais, enquanto que, em outras, é a

regra geral. “Em ambos os casos a presença ou ausência de escassez é um dado, tanto se tem

suas causas na natureza ou no direito.”299

Assim, os termos escolha, insuficiência e escassez deveriam, segundo Polanyi, ser

cuidadosamente vistos em sua relação mútua, pois as reivindicações dos analistas adquirem

formas variadas. O corrente conceito composto de economia, ao fundir a satisfação de

necessidades materiais à escassez, reduzia os termos carência e necessidade somente a escalas

utilitárias de valor dos indivíduos isolados que operavam em mercados. Portanto, a economia

formal aplica-se a uma atividade econômica de um tipo definido, isto é, o sistema de mercado,

mais especificamente os mercados criadores de preço, pois a introdução geral do poder de

compra como meio de aquisição converte o processo de satisfação de necessidades em uma

assignação de recursos escassos com usos alternativos. Disto se depreende que tanto as

condições da escolha como suas conseqüências são quantificáveis em forma de preços.300

A economia “real” deriva da dependência do homem com a natureza e com seus

semelhantes para conseguir seu sustento. Refere-se ao intercâmbio com o meio natural e

social, “na medida em que é esta atividade a que proporciona os meios para satisfazer as

necessidades materiais.”301 O significado “real” ou “substantivo” nasce da dependência

patente do homem pela sua sobrevivência, que se dá por uma interação institucionalizada

entre os homens e seu meio natural. Assim, estudar a subsistência do homem (The livelihood

of man) é estudar o processo que o supre com os meios de satisfazer suas carências (ou

necessidades) materiais. Este é o sentido de econômico para Polanyi.302 A concepção “real”

ou “substantiva” é uma concepção empírica da economia. A economia é portanto uma

atividade institucionalizada de interação entre o homem e seu entorno que dá lugar a um

fornecimento continuo de meios materiais de satisfação das necessidades.303 Não é o

processo econômico como um todo que se institucionaliza, mas sim, a parte composta por

ações humanas. As partes naturais ou não sociais podem ser controladas em diversos graus

pelos homens, porém não institucionalizadas no sentido estrito deste termo. “Assim uma

299 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,

H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 292.

300 ibid., p. 27-28. 301 ibid., p. 289. 302 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 20. 303 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,

H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 293.

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tentativa de considerar a economia funcionalmente é interpretá-la como um processo que

opera dentro da ‘esfera fronteiriça’ entre o puramente social e o puramente natural.”304

A despeito das fortes críticas do grupo de Polanyi a Parsons, é possível afirmar que a

distinção de Polanyi entre economia formal e real tem uma certa verossimilhança com a

distinção de Weber de racionalidade formal e racionalidade material. Apesar de não ter feito a

mesma distinção de Polanyi quanto ao termo economia, Weber definia a racionalidade formal

de uma gestão econômica como o grau de cálculo tecnicamente possível, na medida em que a

“previdência” podia exprimir-se e de fato se exprimia em considerações de caráter numérico e

calculável. Já o conceito de racionalidade material relacionava-se com o grau em que o

abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas, mediante uma ação social

economicamente orientada, ocorresse conforme determinados postulados valorativos. Este

conceito estabelece exigências éticas, políticas, utilitaristas, hedonistas, estamentais,

igualitárias ou outras quaisquer, e as toma como padrão dos resultados de gestão econômica.

Weber afirmava que o conceito de racionalidade formal é inequívoco, enquanto o de

racionalidade material é vago.305 Como vimos anteriormente, Weber deu preferência em seus

trabalhos ao conceito de racionalidade formal. Tal preferência se reflete em sua definição de

economia, que está mais próxima da definição “formal” de economia. Uma forte influência da

escola austríaca, representada por Karl Menger.

A economia “real” ou “substantiva” constitui-se em dois níveis: a interação entre os

homens e seus vizinhos, originando o conceito de “atividade”; e a institucionalização deste

processo, originando o conceito de “institucionalização”. Estes níveis não são inseparáveis.

A interação é responsável pelo resultado material em termos de sobrevivência. O

conceito de “atividade” sugere uma análise em termos de movimento. Os movimentos podem

obedecer a mudanças de situação (locacional) ou de apropriação, que podem caminhar juntas

ou não. O primeiro tipo de movimento consiste em uma mudança de lugar; o segundo, em

uma mudança de “mãos”. Juntos os dois tipos de movimento completam a economia como

um processo.306

304 HOPKINS, T. La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 342.

305 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 52

306 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 294. POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 31.

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Os movimentos locacionais são a produção e o transporte, que implicam em

deslocamentos espaciais de objetos. Os produtos são de uma ordem superior ou inferior,

segundo a utilidade que tenha para o consumidor. Aqui, produção é sinônimo de “combinação

de mercadorias”. É um fato básico da economia substantiva que as coisas são úteis porque

servem a uma necessidade ou diretamente, ou indiretamente através de suas combinações.

Nesta perspectiva, a preeminência do trabalho como um fator de produção é devido ao fato de

que o trabalho é o agente mais geral entre todas as mercadorias de ordem inferior. Os

movimentos locacionais abrangem caças, expedições e ataques, derrubadas de madeira e

retirada de água; além do sistema internacional de embarque, estrada de ferro e transporte

aéreo. O carregamento podia, em épocas antigas, agigantar-se mais do que a produção; e

mesmo posteriormente, representa uma parte preponderante da produção.307

O movimento de apropriação compreende a circulação dos produtos, determinada por

transações, e sua administração, determinada por disposições. A mudança apropriacional pode

acontecer entre “mãos”, onde “mãos” denotam alguma pessoa ou grupo de pessoas capazes de

possuir. O manejo e a administração, a circulação de mercadorias, distribuição de renda,

tributo e taxação, todos igualmente são campos de apropriação. Uma transação é um

movimento de apropriação entre sujeitos, enquanto que uma disposição é um ato unilateral de

um sujeito, onde a força do costume ou da lei une os efeitos legais definidos. No passado, a

distinção podia estar, na maior parte, relacionada ao tipo de “mão” em questão: pessoas ou

firmas privadas faziam as mudanças apropriacionais por meio de transações, enquanto que a

“mão” pública estava encarregada de fazer as disposições.

As atividades sociais e as instituições são econômicas quando fazem parte das

atividades econômicas. Os elementos econômicos podem agrupar-se como ecológicos,

tecnológicos ou sociais segundo pertençam ao entorno natural, ao equipamento mecânico ou à

sociedade humana. Porém, sem as motivações sociais que determinam as motivações dos

indivíduos, não haveria nada que sustentasse a interdependência dos movimentos e sua

recorrência, necessárias para a unidade e para a estabilidade da atividade econômica.308 Para

adquirir a coerência de uma economia real, o processo de interação deve ser

institucionalizado. É a combinação de elementos humanos e naturais, a interdependência da 307 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 31-33 e

POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 294.

308 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 294-295.

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tecnologia e as instituições, assim como sua independência relativa, que são compreendidas

pela atividade econômica institucionalizada.

A institucionalização da atividade econômica confere a esta unidade e estabilidade; dá lugar a uma estrutura com uma função determinada na sociedade e modifica o lugar da atividade econômica na sociedade, agregando assim significação a sua história; centra o interesse sobre os valores, as motivações e a atuação prática.309

Portanto, a economia humana encontra-se integrada e submergida em instituições

econômicas e não econômicas. Weber já havia percebido isto. Eis o grande traço que liga o

primitivismo ao substantivismo. Com efeito, a religião ou o governo podem ser tão

importantes quanto às instituições monetárias para a estrutura econômica. O estudo do lugar

cambiante que ocupa a economia na sociedade é a análise de como está institucionalizada a

atividade econômica em diferentes épocas e lugares. O estudo de como estão

institucionalizadas as economias deve começar pela forma como a economia adquire unidade

e estabilidade, isto é, pela interdependência e a regularidade de suas partes. Tal unidade é

resultado de formas de integração, que se manifestam juntas em diferentes níveis e em

distintos setores, impossibilitando-nos selecionar uma delas como dominante para classificar

os diferentes tipos de economias. Contudo, tais formas de integração constituem um

instrumento para descrever a atividade econômica em termos comparativamente simples,

permitindo-nos ordenar as infindáveis variações desta.310

Se a idéia de economia como um complexo de necessidades que exige satisfação é um

traço comum na definição de economia entre Polanyi e Weber, por outro lado, a definição de

Weber se aproxima muito mais dos formalistas ao acentuar a importância dos princípios da

escolha e da escassez, enquanto, Polanyi preocupa-se com a sustentação material do homem.

George Dalton, ao fazer um balanço das críticas à teoria de Polanyi, apresenta as

similaridades entre os postulados dos formalistas e marxistas em contraposição ao

substantivismo. Alfred Marshall, Carl Menger e outros inventaram os conceitos da teoria neo-

clássica para analisar a rede nacionalmente interdependente de mercados de entrada e saída do

capitalismo industrial do século XIX. Marx designou sua terminologia conceitual para

especificar o que ele observou como os atributos centrais do capitalismo industrial do século

309 ibid, p. 295. 310 ibid. p. 296.

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XIX. Antropólogos e historiadores formalistas e marxistas, ao usar esses sistemas de

conceitos para analisar as ilhas Trobriand de Malinovski, ou o reino de Daomé no século

XVIII, ou o Peru dos Incas, dizem que as similaridades entre essas economias tribais e o

capitalismo industrial são mais importante que as diferenças. Segundo Dalton, a proposta

teórica tanto de formalistas e marxistas é universal ou geral, pois se propõe a explicar todas as

economias mundiais reais, todos os períodos históricos de tempo e todos os tópicos estudados,

enquanto a teoria polanyiana não tem esta ambição. Na antropologia econômica, Dalton acha

que a teoria polanyiana é apropriada para três tipos de economia e períodos históricos:

economias aborígenes (pré-coloniais) em sociedades sem Estado, também pré-colonais, e

reinos tribais. Bandos e tribos que deixam de estar sob o domínio colonial e já em

desenvolvimento pós-colonial estão fora destes estudos. A maioria dos casos, mas não todos

de mudança colonial, exigem a compreensão de mercados modernos, e, portanto, a

necessidade da economia formal.311 Esta reflexão esconde a dificuldade da análise polanyiana

de perceber as mudanças históricas no interior das sociedades.

Em oposição a Dalton, Godelier acredita que o enfoque empírico de Polanyi chega a

conceitos abstratos, formais, que privilegiam as aparentes semelhanças, mas não as

diferenças. Godelier critica Polanyi por não procurar o que está por trás das instituições,

aproximando sua visão dos formalistas. O fundamento das relações de compatibilidade

recíproca entre certas formas de economia e certos tipos de relações sociais só é encontrado

nas propriedades dessas relações sociais. Não basta fazer o inventário das sociedades e

descobrir em cada uma delas a instituição que a domina para poder assim saber que lugar

ocupa e que papel desempenha a economia. É necessário perceber o “papel” desempenhado

pelas relações econômicas e seus “efeitos” sobre o funcionamento e a evolução das

sociedades. Para isto, é necessário analisar a causalidade específica de todos os tipos de

relações sociais sobre a reprodução dos sistemas aos quais pertencem, ou seja, sobre a

reprodução de diferentes modos de vida. O estudo da manutenção da unidade e da

estabilidade dos sistemas sociais só pode ser compreendido por meio de sua História, pois

nem todos os níveis e formas de prática social têm a mesma importância para a reprodução de

um sistema social, para sua manutenção, sua transformação e seu desaparecimento. Esta

hierarquia dos efeitos das formas de prática social revela a existência de uma causalidade

311 DALTON, G. Writings that clarify theoretical disputes over Karl Polanyi’s work. In: POLANYI-LEVITT, K.

The life and work of Karl Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 164-166.

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diferencial desses níveis e dessas formas da prática social. Uma hierarquia dos níveis da

organização social. Por isso, se deve descobrir quais são as causas primeiras desta hierarquia e

as relações que determinam a reprodução (funcionamento e evolução) dos sistemas sociais.312

4.3 RECIPROCIDADE, REDISTRIBUIÇÃO, HOUSEHOLD E INTERCÂMBIO

No final dos anos cinqüenta, enquanto a História seguia em sua progressão para a

captação da “totalidade” auxiliada pelas outras ciências sociais, a Antropologia era dominada

por três paradigmas hostis à investigação histórica: o funcionalismo estrutural britânico

(descendente de Radicliffe Brown e Bronislaw Malinowski); a Antropologia cultural e psico-

cultural norte-americana (herdeira de Margaret Mead e Ruth Benedict) e a Antropologia

evolucionista norte-americana (de forte afiliação arqueológica, formada em torno de Leslie

White e Julian Steward). Para estes antropólogos, a Antropologia social era uma ciência

próxima das ciências naturais pela sua tendência a generalização, enquanto a História era

incluída entre as ciências “particulares”. A ruptura do diálogo entre as duas disciplinas levou a

Antropologia a um “empirismo abstrato” e “grandes teorias” que caracterizavam a Sociologia

nesta época. Predominou entre os antropólogos a concepção de que antes da dominação

européia, todas as sociedades “primitivas” eram estáticas. Conseqüentemente, estes

antropólogos acabaram reduzindo o problema da História à dualidade primitivo-moderno.

Mesmo o estruturalismo de Claude Levi-Strauss também subestimava a História ao negar

qualquer impacto significativo do acontecimento na estrutura. Esta tendência, entretanto, não

foi geral. No final dos anos setenta, a chamada escola antropológica de “economia política”,

centrava seus interesses nos sistemas econômico-políticos de “grande escala” e a análise dos

efeitos da penetração do capitalismo nas sociedades agrárias. Para estes autores, os fatores

fundamentais da mudança são o Estado e o sistema capitalista mundial. Não obstante, todos

os antropólogos destas correntes antropológicas, além dos marxistas estruturais, acreditam

que a ação humana e o processo histórico são determinados pela mão oculta da estrutura ou

por forças do capitalismo. Neste sentido, a sociedade (ou a cultura) é uma realidade objetiva

com dinâmica própria, separada da ação humana.313

312 GODELIER, M. Karl Polanyi et la “place changeante” de l’économie dans les sociétés”. In: _________.

L’idéel et le matériel. Pensée, économies, sociétés. Paris: Fayard, 1984. 313 CASANOVA, J. La Historia social y los historiadores. Barcelona: Editorial Crítica, 1991, p. 64-67.

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Na segunda metade dos anos quarenta, a Antropologia Econômica já era um ramo

vigorosamente desenvolvido da Antropologia Cultural. Esse desenvolvimento foi motivado

tanto pelas tendências culturais inerentes da disciplina quanto por fatores externos. A difusão

de visões estrutural-funcionalistas contribui para o desenvolvimento dos estudos das relações

econômicas, particularmente depois das monografias das ilhas Trobriand de Malinowski. As

exigências de uma exploração mais eficiente das colônias chamaram a atenção dos

antropólogos desejosos de empreender pesquisa sobre os fenômenos econômicos.314

Os estudos de Thurnwald, Malinowski e outros antropólogos levaram Polanyi a

concluir que a economia do homem, em geral, está submergida em suas relações sociais.

Thurnwald e Malinowsky procuraram demonstrar que as relações econômicas confundiam-se

com as relações de parentesco ou políticas nas sociedades primitivas. A partir destes trabalhos

antropológicos Polanyi tomou as sociedades primitivas para formular sua alternativa anti-

mercado evolucionista. Contudo, além de utilizar estes conceitos para as sociedades

primitivas, os ampliou para além das formações primitivas, utilizando-os como uma

alternativa para a teoria geral de desenvolvimento econômico de Bücher ou a teoria de modos

de produção de Marx.

A observação empírica demonstra que as principais formas de integração são a

reciprocidade, a redistribuição e o intercâmbio. Além destas três formas de integração,

Polanyi também analisou o household no livro A grande transformação, porém o excluiu de

Trade and market, pois o household abrangia um grupo menor, caracterizado pela ausência

das relações intergrupais. Polanyi ampliou estes conceitos para além das formações

primitivas.

Thurnwald foi o primeiro autor que falou da relação que existe entre a conduta de

reciprocidade ao nível interpessoal e as agrupações simétricas em um estudo empírico sobre o

sistema matrimonial dos bánaros da Nova Guiné, em 1915.315 Malinowski, em suas pesquisas

nas ilhas Trobriand confirmou a hipótese de Thurwald. Este foi o primeiro passo para

generalizar a reciprocidade como uma das formas de integração e a simetria como uma das

várias estruturas de apoio. Os habitantes das ilhas Trobriand traduziam o autêntico sistema de

reciprocidade quando Malinowski relatou a responsabilidade do homem trobriandês voltada

314 SÁRKÁNY, M. Karl Polanyi’s contribution to Economic Anthropology. In: POLANYI-LEVITT, K. The life

and work of Karl Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 183. 315 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 297.

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para a família de sua irmã, sem ser ajudado pelo marido da irmã, mas sim, pelo irmão da

esposa. A provisão de alimentos entre uma vila e outra também está subordinada à

reciprocidade. Os movimentos recíprocos de mercadorias requerem adequações em termos de

dádiva e contra-dádiva. Adequação aqui significa que a pessoa certa, na ocasião certa, deverá

reenviar um tipo certo de objeto. A pessoa certa é a pessoa simetricamente posicionada. O

comportamento adequado é aquele de equidade e consideração, ou uma amostra disto.316

Um intricado sistema de tempo-espaço-pessoa, que cobre centenas de milhas e diversas décadas, e que liga muitas centenas de pessoas em relação a milhares de objetos estritamente individuais, é aqui manipulado sem que existam registros ou administração, e também sem qualquer motivação de lucro e permuta.317

A reciprocidade supõe movimentos entre pontos correlativos de agrupações

simétricas; a redistribuição consiste em movimentos de apropriação em direção a um centro

primeiro e, posteriormente, deste centro para fora outra vez; por intercâmbio entendemos

movimentos recíprocos como os que realizam os “sujeitos” em um sistema de mercado.

Polanyi ressalta que os meros agregados das condutas individuais não bastam para produzir as

estruturas. A conduta de reciprocidade entre os indivíduos só integra a economia se já há

estruturas organizadas simetricamente, como os sistemas simétricos de grupos unidos pelo

parentesco. Do mesmo modo, a redistribuição pressupõe um centro para onde se dirigem os

recursos da comunidade. Finalmente, os atos de troca no plano individual só produzem preços

se estiverem enquadrados em um sistema de mercados criadores de preços; uma estrutura que

não sugere, de forma alguma atos de troca efetuados ao acaso.318

As formas de integração são empregadas pelo autor de forma descritiva, sem nenhuma

associação de caráter motivacional. As formas de integração são relativamente independentes

dos objetivos e do caráter dos governos, bem como dos ideais e modos das culturas em

questão. Uma atitude neutra quanto às implicações morais e filosóficas das políticas

governamentais e valores culturais é um requisito das pesquisas objetivas acerca das relações

316 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 39 317 idem. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000. 318 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 296-297.

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mutantes do processo econômico para as esferas políticas e culturais da sociedade como um

todo.319 Posição muita próxima à de Weber acerca do papel do estudioso das humanidades.

Aristóteles afirmava que para cada tipo de comunidade (koinonia), correspondia um

tipo de boa vontade (filia ) entre seus membros que se expressava em reciprocidade

(antipeponthos). Isto era válido, tanto para as comunidades mais permanentes (famílias, tribos

ou cidades-Estados), quanto para as menos permanentes que podem estar compreendidas ou

subordinadas às primeiras. Isto implica uma tendência das comunidades maiores a

desenvolver em uma simetria múltipla que pode ser uma referência para as comunidades

subordinadas.

Quanto mais próximo se sentem entre si os membros da comunidade maior, mais geral será a tendência a desenvolver atitudes de reciprocidade nas relações específicas limitadas pelo espaço, o tempo ou outros fatores. O parentesco, a vizinhança ou o tótem são as agrupações mais permanentes e amplas, dentro delas, associações voluntárias ou semivoluntárias de caráter militar, profissional, religioso ou social criam situações nas que, pelo menos transitoriamente ou de forma limitada a uma determinada localidade ou situação típica, se podem formar agrupações simétricas cujos, membros praticam alguma forma de reciprocidade.320

A redistribuição surge dentro de um grupo, quando a distribuição das mercadorias

(incluindo terras e recursos naturais) está centralizada e se realiza seguindo costumes, leis ou

decisões. Em algumas ocasiões, consiste na arrecadação física do produto, acompanhada de

armazenamento e redistribuição; em outras, a arrecadação não é física, mas sim, jurídica,

como no caso dos direitos sobre a localização física dos bens. A redistribuição pode estar

presente tanto em tribos primitivas como em civilizações de extensos sistemas de

armazenamento, como no Egito, Suméria, Babilônia e Peru.321 “Quanto maior o território e

mais variado o produto, mais a redistribuição resultará numa efetiva divisão do trabalho, uma

vez que ajudará a unir grupos de produtores geograficamente diferenciados.”322

Entre algumas tribos, há um intermediário na pessoa do chefe ou outro membro

proeminente do grupo. É ele quem recebe e distribui os suprimentos, principalmente se

houver necessidade de armazenamento. Esta redistribuição pode ser feita por uma família

319 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 36. 320 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,

H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 298-299.

321 ibid. p. 299. 322 POLANYI, K. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 68.

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influente ou por um indivíduo importante, uma aristocracia dominante ou um grupo de

burocratas. Em todas estas situações, estes setores sociais tentarão aumentar seu poder

político pela forma de redistribuição dos bens. O chefe trobriandês tinha o privilégio da

poliginia. Ele podia ter quarenta esposas, tomadas de quarenta subclãs da ilha, que garantiam

o abastecimento de uma grande quantidade de batatas doces por meio de seus irmãos. Desse

modo, a função da liderança política era reforçada pelos costumes do casamento, que lhe

garantiam privilégios como o da poliginia. Uma função importante do chefe era arrecadar e

distribuir riquezas em festivais, solenidades religiosas, festas mortuárias, visitas de estado,

colheitas e outras celebrações. A redistribuição física ou disposicional só se dá na presença de

canais por meios dos quais o movimento em direção ao centro e o movimento subsequente

em direção oposta aconteçam com uma organização central, não somente política, mas

também econômica. Na verdade, o sistema econômico é mera função da organização social.

O household (domesticidade) consiste na produção para uso próprio. O seu padrão é o

grupo fechado. Diferente do que muitos pensam, inclusive Karl Bücher, que foi o primeiro a

observar o caráter inteiramente diferente da sociedade primitiva, não se deve presumir que a

produção para a própria pessoa, ou para um grupo, seja mais antiga que a reciprocidade ou a

redistribuição. “A prática de prover as necessidades domésticas próprias tornou-se um aspecto

da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura.”323 A natureza do

núcleo institucional é indiferente: pode ser sexo, como na família patriarcal; localidade, como

nas aldeias; ou poder político, como no castelo senhorial. Em todos estes casos, o princípio é

sempre o mesmo: produzir e armazenar para a satisfação das necessidades dos membros do

grupo.

O intercâmbio como forma de integração requer um sistema de mercados criadores de

preços. Há três tipos de troca: o movimento puramente físico de uma “troca de lugares” entre

os sujeitos (intercâmbio operacional); os movimentos apropriativos de intercâmbio, a uma

equivalência fixa (intercâmbio acordado); ou a uma equivalência negociada (intercâmbio

integrador). Quando a troca se produz a uma equivalência fixa, a economia não está integrada

pelo mercado, mas sim, pelos fatores que fixam dita equivalência. A troca a preços fixos não

supõe mais que um ganho para as duas partes implicadas na decisão de intercambiar. Já a

equivalência negociada é assinalada pela presença do regateio. Aqui para que o intercâmbio

seja integrador, a conduta das partes deve estar orientada a produzir um preço que favoreça o

máximo a cada uma das partes. A barganha não é o resultado da fragilidade humana, mas um

323 ibid., p. 73.

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padrão de comportamento logicamente exigido pelo mecanismo do mercado. A troca a preços

flutuantes, diferente da troca de preço fixo, tem como objetivo um ganho que só se pode

conseguir por uma atitude de claro antagonismo entre as partes interessadas. Daí a proibição

das transações motivadas pelo ganho, particularmente, no que se refere aos artigos de primeira

necessidade, nas sociedades arcaicas.324 Assim como a reciprocidade, a redistribuição ou

mesmo a domesticidade (household), o princípio da troca pode ocorrer em uma sociedade sem

ocupar o lugar primordial, ocupando um lugar subordinado numa sociedade na qual outros

princípios estão em ascendência.325

Polanyi enfatiza que as formas de integração não representam etapas de

desenvolvimento, pois não implicam nenhuma ordem de sucessão no tempo. Junto com a

forma dominante, podem aparecer várias formas subordinadas; podendo a forma dominante

sofrer eclipses e reaparições.326 Polanyi atacava a teoria das etapas - escravidão, servidão, e

trabalho assalariado - do marxismo vulgar.

Segundo Nafissi, a despeito de muitos insights históricos encontrados no trabalho de

Polanyi, a reciprocidade e a redistribuição foram concebidas como entidades (ou eternidades)

harmoniosas imunes às mudanças históricas. Esses conceitos e as sociedades que eles

designavam eram assim constituídos porque eram ao mesmo tempo concebidos como

manifestações (teóricas e sociais) da essência imutável do homem como um ser social. Neste

sentido, o paradigma de Polanyi, apesar dele mesmo ter afirmado ser uma contribuição

institucionalista para a História econômica, um desenvolvimento do legado de Weber,

permanece não somente pré-weberiano, mas, também, pré-sociológico e transhistórico.327

Acreditamos, que esta postura está intrinsecamente relacionada com a tendência, na primeira

metade do século XX, de proximidade da Antropologia com as ciências naturais e seu pouco

contato com a História. Esta tendência a-histórica de Polanyi se confirma pela sua crença da

imutabilidade da natureza humana, quando ele afirma que

seus dotes naturais [dos homens] reaparecem com uma constância marcante nas sociedades de todos os tempos e lugares e as precondições necessárias

324 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 300-301.

325 idem. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 76. 326 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,

H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 301.

327 NAFISSI, M. op. cit., p. 166-167.

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para a sobrevivência da sociedade humana parecem ser as mesmas, sem mutações.328

Tal passagem reforça o postulado da unidade da humanidade, um dos axiomas da

Antropologia Cultural moderna, cujo crédito particular é atribuído a Franz Boas, e um dos

pontos de partida da Antropologia estrutural-funcionalista. Polanyi tratou as ações de

comportamento de acordo com os princípios de reciprocidade e redistribuição e reconheceu

que essas formas de comportamento estavam ligadas à existência de estruturas sociais

determinadas – um exemplo característico de explicação funcional.329

Segundo Sárkány, a estratégia de pesquisa de Polanyi partiu do princípio de

embeddedness, baseada no caráter poli-funcional de instituições. O conceito de economia

como um processo institucionalizado está ligado às tendências da escola institucionalista

americana e as abordagens da Escola Histórica de teoria econômica. Seus paralelos também

podem ser achados na análise institucional da Antropologia social britânica, na qual o aspecto

de integração social teve um papel central.330

Godelier, na apresentação de Comercio y mercado en los imperios antiguos, afirma

que as formas de integração são conceitos descritivos de aspectos comuns e formais de certas

relações sociais. Polanyi, segundo Godelier, não tentou explicar as razões da presença no seio

de determinada sociedade dessa ou daquela estrutura social, nem tratou de descobrir que

razões fazem com que o processo de produção de meios materiais se encontre “imbricado” em

determinada sociedade. Polanyi se limitou, somente a investigar o efeito concreto dessa

“imbricação” sobre o mecanismo econômico. Quanto à crítica ao evolucionismo, Godelier

concorda em parte com Polanyi, mas argumenta que a questão premente é interpretar a

dominação ou a subordinação das formas de integração, e, portanto, “a presença de uma

hierarquia específica dessas formas como a conseqüência de uma etapa alcançada pela

evolução das formas de organização econômica e social da humanidade.”331 A análise

rigorosa das formas de integração não levou Polanyi a distinguir duas realidades que se

confundem sob o mesmo conceito, as relações sociais de produção e as formas sociais de

circulação dos produtos. Estes aspectos não têm a mesma importância.

328 POLANYI, K. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 65. 329 SÁRKÁNY, M. Karl Polanyi’s contribution to Economic Anthropology. In: POLANYI-LEVITT, K. The life

and work of Karl Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 184. 330 ibid., p. 186. 331 GODELIER, M. Presentación. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y

mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 29.

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144

As relações de produção constituem o caráter principal e o traço específico dos modos de produção, e determinam o número, a forma e a importância respectiva das formas de circulação do produto social que existem em cada sistema. Há então uma ordem hierárquica em toda sociedade, uma relação de compatibilidade e de subordinação estruturais entre o conteúdo das relações de produção e as formas de circulação dos produtos materiais.332

Esta crítica a Polanyi foi feita na apresentação de Comercio y mercado en los

imperios antiguos. Em Livelihood of man, há uma seção intitulada “a emergência das

transações econômicas: da sociedade tribal a arcaica”, na qual o autor, se não responde as

questões de Godelier, explicita melhor suas hipóteses de trabalho esboçadas em Comercio y

mercado en los imperios antiguos. Sua questão fundamental é explicitar uma série de

questões do imbricamento (embeddedness). Para isto, o autor faz um estudo da emergência

das transações econômicas das sociedades tribais às sociedades arcaicas.333

4.4 O SURGIMENTO DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS E AS DIFERENÇAS ENTRE

OCIDENTE E ORIENTE

Nas sociedades primitivas, as transações econômicas não estão salvaguardadas em

instituições especificamente econômicas. As transações econômicas estão imbricadas na

esfera do parentesco, do Estado, do mágico e da religião. Estas esferas são originadoras dos

sistemas de status, dos quais as transações econômicas eventualmente tendem a desgarrar-

se.334

A idéia de status é oriunda das análises de Henry Maine e Ferdinand Toennies. Maine,

em 1861, publicou um livro intitulado Ancient Law no qual revela que muitas instituições

modernas estavam baseadas no contrato, enquanto a sociedade antiga estava baseada no

status, estabelecido por nascimento – por posição de família e na família – e determinanador

dos direitos e deveres da pessoa, derivados de parentesco, totem e outras fontes. O sistema de

status persistiu até o século XIX, e foi gradualmente substituído pelo contrato, isto é, por

direitos e deveres fixados por transações consensuais ou contratos. Os trabalhos de Maine

influenciaram o sociólogo alemão Ferdinand Toennies - cujos trabalhos estão ligados à

tradição histórica alemã - que publicou um trabalho intitulado Gemeinschaft und

332 ibid, p. 30. 333 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 47-74. 334 ibid., p. 57.

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Gesselschaft (Comunidade e sociedade), em 1888. Comunidade era a “sociedade de status”,

sociedade a “sociedade de contrato”. Contudo, entre Maine e Toenies, a conotação emocional

de status e comunidade, por um lado, e contrato ou sociedade, por outro, era muito diferente.

Enquanto para Maine, a condição do pré-contrato era a idade obscura do tribalismo, para

Toennies, a comunidade representava a condição na qual os seres humanos estavam ligados

pelo tecido da experiência comum. Por outro lado, a introdução do contrato, para Maine,

emancipou o indivíduo da servidão da tribo; e a sociedade, para Toennies, representava os

laços comerciais impessoais da sociedade. O ideal de Toennies era a restauração da

comunidade. Weber usou comumente os termos comunidade e sociedade no sentido de

Toennies.335

A emergência do Estado é um marco divisor da sociedade tribal à arcaica. A guerra e o

comércio, elementos que contribuem para a formação do Estado, requerem meios, em termos

de homens, gado, e materiais, cujas coleta e manipulação resultam em instituições novas. A

gradual emergência do econômico de seu engastamento no tecido da sociedade descrita, em

termos de “modo de vida” e “status”, só é possível se as atividades econômicas

diferenciarem-se dos processos gerais da vida; se a terra mudar de mãos, independente da

posição das pessoas envolvidas na negociação; e se a honra não mais for identificada com

riqueza e riqueza com honra. A emergência das transações econômicas permitiu aos

indivíduos usar mais livremente os meios econômicos úteis na sociedade e a possibilidade de

um avanço material quase ilimitado por toda a comunidade. Assim, métodos transacionais e

disposicionais de grande significado econômico foram introduzidos em várias civilizações.

Tanto na Babilônia, sem mercado, quanto na ágora de Atenas, embora de modos diferentes,

as transações de status foram suplementadas por transações econômicas. Como este

desenvolvimento se manifestou e a diferente direção tomada pelo Ocidente e o Oriente são

questões levantadas por Polanyi.336 Tais questões se aproximam com outra comparação de

Weber.

Weber, em sua análise acerca das tipologias das cidades, perguntou-se porque a cidade

nasceu e desenvolveu-se no mediterrâneo e depois na Europa e não na Ásia. Como já

ressaltado anteriormente, o acento de Weber recai sobre a diferente constituição militar e seus

fundamentos econômico-sociológicos entre Ocidente e Oriente. No Oriente, a necessidade de

uma burocracia real levou o rei a submeter à sua própria gestão burocrática a administração

335 ibid., p. 48-49. 336 ibid., p. 58-59.

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do exército, enquanto no Ocidente, o princípio de auto-equipamento do exército resultou em

uma autonomia militar do indivíduo obrigado ao serviço militar e uma dependência do

soberano à boa vontade dos membros de seu exército. Falta aqui o aparato coativo

burocrático, que lhe obedece cegamente porque depende dele. Diante de cada um, ele é o mais

poderoso, porém diante de todos, ele é impotente. O poder financeiro dos moradores urbanos

obrigava o senhor a pactuar com eles em caso de necessidade. Por outro lado, os mais ricos

das cidades do oriente não eram capazes de reunir-se e enfrentar militarmente os reis,

enquanto, no ocidente, as conjurationes e uniões constituem um traço particular; isto é,

alianças das camadas militarmente capacitadas das cidades.337 Weber, portanto, ressalta o

poder militar e político das camadas sociais do ocidente e oriente. Já Polanyi segue um outro

caminho para responder tais questões.

A emergência das transações econômicas, segundo Polanyi, deve ser procurada a

partir das formas integrativas das sociedades tribais e arcaicas, e não através da dissolução dos

tabus e do nascimento dos instintos aquisitivos naturais dos homens. Diferente do que sugeria

o racionalismo econômico do século XIX, a troca expandiu-se na economia quando podia

servir a validação da comunidade; isto é, quando podia ser feita sem lucro. Isto foi conseguido

por meio de equivalências. A troca era legitimada, na medida em que se estabelecia a

equivalência daquilo que era trocado. Tal processo foi reconhecido pelo Estado

mesopotâmico, no qual as equivalências eram legitimadas inclusive pelos representantes da

divindade. No caso das pequenas cidades-Estados - como Atenas (parcialmente) e Israel, de

tipo camponês, já são permitidas transações lucrativas, como meio de sobrevivência, feitas

abertamente no mercado, sem a exclusão das equivalências. Contudo, a ágora ateniense,

apesar de ter admitido a troca lucrativa entre seus membros, não conheceu a liberdade de

comércio no sentido moderno, e a cidade-Estado continuou a praticar todas as prerrogativas

do corpo tribal sobre seus membros. Tais desenvolvimentos desiguais das transações

econômicas no tecido social resultam em desenvolvimentos políticos e econômicos

diferenciados.338

Equivalências são planos pelos quais as relações quantitativas são feitas entre

mercadorias de diferentes tipos. O termo indica o número de unidades de um tipo de objeto

que, “quando substituído por um número de unidades de outro tipo, resulta em operações

337 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 33. p. 444-445. 338 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 61-62.

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como reciprocar, redistribuir, ou trocar.339 Quando um presente é reciprocado, o contradom

adequado é, de maneira geral, indicado em termos convencionais. No processo redistribuitivo,

as equivalências também são fundamentais, em geral, definidas como equivalências

substitutivas. As mercadorias arrecadadas pelo centro e redistribuídas, classificadas como

taxas, obrigações feudais ou dádivas voluntárias, são freqüentemente ajustadas à mercadorias

de diferentes tipos. Provisões estabelecidas são o único plano possível para estas operações. A

importância da racionalização em economia de espécie é confirmada nos tabletes sumerianos

e babilônicos que estabeleciam as quantias de cevada para as pessoas, de acordo com a idade,

e rações de animais domésticos. “A operação de racionalizar apresenta uma combinação de

qualidade e quantidade de provisões espelhadas no duplo aspecto da palavra necessidade”.340

As equivalências nos sistemas redistribuitivos, em geral, servem muito mais como um meio

de contabilidade, do que como um padrão de valor.

O aumento das trocas, não necessariamente, exclui as equivalências, podendo produzir

trocas equivalentes. As equivalências no mundo mesopotâmico envolviam quase todas as

transações com mercadorias (preços), serviços (salários), uso de dinheiro ou outros fundíveis

sobre tempo (juros), uso de um bote, da terra ou casa (aluguel), e outros. Não havia, em

nenhuma transação ou disposição, exploração de qualquer lado do tratante em detrimento da

equivalência. O comércio natural, que, segundo Aristóteles repousa na premissa das

exigências de auto-suficiência, equivale às trocas equivalentes.

A equivalência está também diretamente relacionada ao preço justo. As equivalências

entre as unidades de mercadorias diferentes eram pensadas para expressar proporções que

refletissem as condições existentes da sociedade arcaica. Conseqüentemente, o que se pensa

como ganho, lucro, salário, aluguel, ou outras receitas, deve ser compreendido na

equivalência, na medida em que tais receitas servem para manter as relações e valores sociais

existentes. Esta é a racionalidade do preço justo, determinada, ou pela autoridade municipal,

ou pelas ações dos membros do mercado, mas sempre de acordo com os determinantes da

situação social. O uso do padrão dinheiro, não necessariamente exclui as equivalências, pois

ofertas mútuas podem ser combinadas e igualadas.341

A quebra dos tabus nas sociedades tribais quanto às transações econômicas abre

caminho para o aumento da produção e consumo. Tal dissolução na sociedade tribal assume

339 ibid, p. 64. 340 ibid, p. 66. 341 ibid. p. 71-72.

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dois caminhos: ou a aceitação limitada e controlada de certos tipos de transações; ou a

eliminação dos princípios de ganho de tais transações. O primeiro caminho é típico das

sociedades camponesas pequenas, com a formação de mercados; e o outro, dos impérios

arcaicos de irrigação. Há aqui uma aproximação, ainda que limitada, com Weber, em relação

ao desenvolvimento do comércio. Weber, coerente com sua hipótese de “tipos” de

capitalismo, indica uma atrofia das liberdades comerciais e do próprio capitalismo no Oriente,

em virtude do fortalecimento do papel do Estado, e, por outro lado, enxerga a formação de um

tipo de capitalismo no Ocidente - o político, no qual havia espaço para transações comerciais

com fins lucrativos. Polanyi não trabalha com a idéia de “tipos” de capitalismo, mas sim, com

a hipótese de que o papel econômico da justiça nos impérios arcaicos era sancionar as

transações sem ganho, especialmente na agricultura, o que evitava o desenvolvimento de

mercados. Esta sanção abriu caminho para linhas majoritariamente disposicionais, estando as

formas transacionais senão excluídas, bem diminuídas. Entretanto, tanto as disposições

quanto às transações foram resultados das formas redistribuitivas de integração, e não da ação

das burocracias administrativas estatais. Enquanto Weber acredita que o poder da burocracia

estatal, no Oriente, inviabilizava a formação de cidadãos que pudessem fazer frente ao poder

do soberano, tornado-os muito mais dependentes do poder real que no Ocidente, Polanyi

acredita que, a ausência de mercados era resultado de métodos administrativos poderosos

fortemente mantidos nas mãos da burocracia central, pois, as transações sem ganho e as

disposições reguladas pela lei revelavam uma esfera de liberdade pessoal nunca anteriormente

vista na vida econômica do homem. Parece-nos aqui, que as formas de integração assumem

uma importância superior àquela que Weber dedica à intervenção estatal nas formas de

organização econômica. Por outro lado, tanto Weber quanto Polanyi vêem um incremento das

transações econômicas no Ocidente. Enquanto Weber ver tais transações marcadas pela

ausência de racionalidade econômica voltada para o lucro, principalmente pela ausência de

um mercado livre, não estamental, Polanyi não acentua a questão da racionalidade econômica

para diferenciar o mundo antigo do moderno, mas sim o predomínio de certos tipos de

integração e a presença do caráter transacional no Ocidente e disposiocional no Oriente.

A idéia da ausência de mercados no Oriente tem sido muito criticada por assiriólogos.

Komoróczy acredita que Polanyi estabeleceu um sistema tipológico, pois transformou os

fenômenos substantivos em categorias tipológicas: isto é, ele as formalizou.Traçando um

paralelo ao conceito de Marx de História Antiga, Komoróczy afirma que Marx reconheceu

que as tensões do século dezenove poderiam ser traçadas a partir da estrutura dicotômica da

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sociedade capitalista. Ele queria eliminar essa dicotomia, mas também explicar a sua

evolução. Se essa dicotomia é histórica, então, ele acreditava que em algum momento ela não

existiu. Marx localizou essa não existência no começo do desenvolvimento histórico,

denominado de comunismo primitivo. Polanyi, segundo Komoróczy, inconscientemente

seguiu essa lógica quando postulou a economia sem mercado na Antiguidade. Em ambos os

casos, a lógica precisava da era histórica mais antiga conhecida. Komoróczy procura

demonstrar que a idéia da ausência de mercado no Oriente é a utopia histórica de Polanyi.342

4.5 KARL POLANYI E A GRÉCIA ANTIGA

Ao longo de sua extensa obra, Polanyi desenvolveu suas hipóteses de trabalho com

estudos empíricos. Ele e seu grupo não mediram esforços para demonstrar, em oposição às

formações capitalistas, que as instituições do comércio, do mercado e do dinheiro se

constituem em unidades separáveis nas sociedades de status. Procuraram evidências empíricas

em diversas sociedades para demonstrar que a presença de comércio e dinheiro não

necessariamente está atrelada à existência de mercado. E mesmo quando este existe não

necessariamente se constitui em um mercado estruturado sobre o preço, a oferta e a demanda,

elementos constituintes do mercado capitalista. Os seus trabalhos sobre a Grécia antiga são

extremamente profícuos no desenvolvimento destas hipóteses. Ao apresentar suas reflexões

sobre a Grécia antiga, continuaremos comparando a abordagem polanyiana com as conclusões

dos autores já investigados aqui, a fim de perceber o que foi conservado, acrescentado e ou

transformado à tradição “primitivista”. Com isto, procuraremos demonstrar como a

incorporação de novos elementos teóricos, em um estudo de caso, engendra uma nova

nomenclatura à tradição que vimos investigando até agora.

Em relação ao debate do oikos, Polanyi posicionou-se favorável aos primitivistas e,

mesmo questionando a teoria evolucionista de Bücher e Rodbertus, foi simpático à idéia da

limitação do papel dos mercados (como o principal mecanismo de alocação) ao período

moderno. Polanyi voltou-se para Weber, apesar de considerá-lo um defensor dos mercadistas

em relação à teoria econômica. A historiografia institucional comparativa de Weber

incorporava os insights dos primeiros primitivistas, deixando de lado, o evolucionismo e o

342 KOMORÓCZY, G. Karl Polany’s Historical Utopia. In: POLANYI-LEVITT, K. The life and work of Karl

Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 191.

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reducionismo econômico do oikos como característica definidora da Antigüidade. Estes

fatores aproximaram muito mais do que os motivos que podiam afastá-los, Polanyi de Weber.

A principal fonte para demonstrar que o conceito moderno de economia não se aplica

à Antigüidade é Aristóteles. Polanyi escreveu em Economía y mercado en los imperios

antiguos um artigo intitulado “Aristoteles descubre la economía”, no qual argumenta, por

meio dos escritos de Aristóteles, que o postulado de escassez e a idéia de não limitação das

necessidades humanas são totalmente distintos daqueles formulados pelos “formalistas”. O

conceito de economia para Aristóteles – assunto da casa (do oikos) - concerne diretamente às

relações entre as pessoas que compõem a instituição natural da família. Tal idéia aspirava

enfatizar sua ligação com o conjunto da sociedade, pois o marco de referência era a

comunidade - tal como existia em seus diferentes níveis dentro de todos os grupos -, a auto-

suficiência e a justiça. Os membros da comunidade (koinonia) estão ligados pelo vínculo da

boa vontade (philia), que se expressa em uma conduta de reciprocidade (antipeponthos), isto

é, na divisão das obrigações sociais. A auto-suficiência, (autarkeia), capacidade de sobreviver

sem depender de recursos externos, é natural e intrinsicamente boa, pois contribui para a

continuidade e manutenção da comunidade. Também necessária para a continuidade do grupo

é a justiça, que garante a desigualdade entre os membros da comunidade, no que diz respeito à

distribuição de privilégios e à regulação de serviços mútuos.343

Para Aristóteles, as altas honras e as raras distinções (aghata), principal fonte da

riqueza, são escassas, porque no topo da pirâmide social não há lugar para todos aqueles

desejam alcança-las. A imunidade e a riqueza não se constituiriam em aghata se estivessem

ao alcance de todos. Daí a ausência, na sociedade antiga, da “conotação econômica” da

escassez, independentemente do fato dos bens de consumo escassearem realmente ou não,

pois os prêmios mais seletos não pertencem a esta ordem de coisas. A escassez deriva da

esfera extra-econômica. Já a auto-suficiência está assegurada pelo abastecimento do

necessário, ou seja, pelos bens que servem de sustento e que se podem armazenar, por

exemplo, o trigo, o vinho, o azeite, a lã e determinados metais. A quantidade destes bens

necessária para a família e para a pólis é determinada pelas pautas da comunidade. Como a

idéia de equivalência, estabelecida pelo costume e pelas leis, era predominante para os bens

de subsistência, a noção de quantidade necessária estava ligada às reservas armazenadas

343 POLANYI, K. Aristóteles descubre la economía. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M; PEARSON, W.

Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976. p. 111-140.

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normalmente. O caráter ilimitado dos desejos e necessidades humanas era um conceito alheio

a este enfoque.344

Escasso aqui é a possibilidade de se alcançar uma boa vida, como um desejo de se

alcançar maior abundância de bens físicos e prazeres. O elixir da vida prazerosa - o teatro, os

cargos públicos, as festas e os combates – não pode ser armazenado ou possuído fisicamente.

Para se alcançar esta vida é necessário tempo livre para os trabalhos da pólis. Estes trabalhos

são viabilizados pela escravidão e no pagamento de todos os cidadãos pelo desempenho nos

cargos públicos, além da exclusão de artesãos da prerrogativa da cidadania.345

4.5.1 O Comércio

Segundo Polanyi, o comércio é um método relativamente pacífico de conseguir

produtos, não aproveitáveis imediatamente, que não se encontram em um determinado lugar.

É uma atividade externa ao grupo, similar a atividades que nós tendemos a associar com

esferas completamente diferentes da vida, como caçadas, expedições e ataques piratas. O

objetivo fundamental da ação do comércio é a aquisição e o transporte de produtos de certa

distância. Porém, diferente da busca de presas e do butim é o caráter bilateral do movimento,

que assegura seu desenvolvimento pacífico e regular. Outrossim, o comércio é uma atividade

de grupo mais que individual e centraliza-se no encontro de grupos pertencentes a

comunidades diferentes, com a finalidade, entre outras, de trocar mercadorias. Estes encontros

não produzem taxas de trocas, mas as pressupõem.346

Diferente do ponto de vista cataláctico, Polanyi não vê o comércio como um

movimento de produtos através do mercado, controlado por preços. Comércio e mercado não

estão indissoluvelmente ligados entre si. Weber afirma que em toda a economia de troca, há

mediação na troca de poderes de disposição, próprios ou alheios. Em seguida, o autor

demonstra cinco formas desta mediação realizar-se:

1.pelos membros do quadro administrativo de associações econômicas, por remuneração fixa ou graduada, em espécie ou dinheiro; 2. por uma associação criada propriamente para atender às necessidades de troca dos

344 ibid. p. 124-125. 345 ibid. p. 127. 346 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M;

PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976.p. 303. POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 81.

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membros de uma cooperativa...; 3. como aquisitiva profissional, por remuneração, sem aquisição própria do poder de disposição...; 4. como atividade aquisitiva profissional de natureza capitalista (comércio próprio) por compra atual na espera de uma venda lucrativa no futuro ou venda a prazo futura na espera de compra lucrativa anterior; e isto a. livremente no mercado ou b.materialmente regulado; 5. por expropriação indenizada e continuamente regulada de determinados bens, e venda –livre ou forçadamente imposta – destes, por parte de uma associação política...; 6. por oferecimento profissional de dinheiro ou obtenção de crédito para pagamento de obrigações surgidas em empreendimentos aquisitivos ou aquisição de prêmios de obtenção, por meio de concessão de crédito......347

Destes casos, Weber chama de comércio apenas os casos 4, “comércio livre” e 5,

“comércio monopólico forçado”. O comércio livre é sempre empreendimento aquisitivo

nunca gestão patrimonial, e em condições normais, uma atividade aquisitiva, mediante a

troca, efetuada por dinheiro. O autor ressalva, entretanto, que este tipo pode ser

empreendimento acessório da gestão patrimonial. O comércio realiza-se no mercado e sem

ele, porém neste caso último caso, está relacionado com a gestão patrimonial. Portanto, a

visão de Weber é muito próxima do ponto de vista cataláctico, pois atrela os diversos tipos de

mediações de troca às gestões patrimonial e aquisitiva; portanto, ao uso de dinheiro e à

presença de mercado. Junto à existência do capitalismo, não está ausente no tipo 4, o que ele

considera como mercado livre. Mesmo assim, os diversos tipos apontados por Weber de

comércio contribuíram para a classificação de Polanyi sobre o comércio.

Como implica no transporte de produtos entre lugares distantes e em duas direções

opostas, o comércio tem quatro fatores: pessoal, mercadorias, transporte e bilateralidade, que

nos ajudam a analisar suas enormes variedades de formas e organizações ao longo da história.

A aquisição de produtos longínquos pode ser feita por motivos diferentes quanto à

posição do mercador na sociedade: por status ou por lucro. No primeiro caso, os benefícios

materiais, amparados pelo caráter honorífico e de obrigação, são reforçados pelos presentes e

pelas concessões fundiárias efetuadas pelos reis, templos ou mesmo pelos senhores como

forma de recompensa; enquanto, no segundo caso, os ganhos transacionais geralmente

indicam somas insignificantes que não admitem nenhuma comparação com a riqueza que o

senhor concede ao mercador audaz e afortunado. Assim, quem comercializa por dever e honra

torna-se rico, enquanto aquele que troca com ânimo de lucro não sai da pobreza. A motivação

de lucro não está ausente da sociedade de status, pois, enquanto se espera dos grupos de status

347 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 103

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mais altos atitudes guiadas por motivos de dever, obrigação, e amor próprio; por outro lado,

os grupos de status mais baixo, são encorajados a entregarem-se às atividades lucrativas que

são desprezadas e de pouco retorno. Neste sentido, a sociedade antiga conhece apenas dois

tipos de mercadores: um situado na esfera superior da pirâmide social e outro na esfera

inferior. O primeiro está ligado com os governantes e o outro depende do trabalho manual

para sua sobrevivência. Não há, portanto, uma classe de mercadores, no sentido moderno,

entre os cidadãos.348

Os tipos de mercadores da Antiguidade eram o tankarum, o meteco ou residente

forasteiro e o “estrangeiro”. O tankarum dominava a região mesopotâmica e o vale do Nilo.

Este é o tipo de comerciante que comercializa por obrigação e honra. Tornava-se um

mercador por meio hereditário ou por indicação do rei, do templo, ou “por uma grande

pessoa”. Sua sobrevivência era assegurada por receitas de status, na maior parte através da

propriedade fundiária, ou da provisão real ou do templo. Já o meteco e o “estrangeiro”

objetivam o lucro, e se encontram na esfera inferior da sociedade. Estes tipos originam-se na

Grécia clássica, e advém, em geral, de uma população flutuante de pessoas deslocadas –

refugiados políticos, exilados, criminosos fugitivos, escravos fugidos. A ocupação do meteco,

em geral, é a de pequeno comerciante, capitão de um navio ou de cambista com uma banca no

mercado. Tanto como cambista, como comerciante de grão ou como capitão mercantil, o

meteco estava sempre sob estritas restrições da autoridade pública. Mesmo quando

acumulavam muito dinheiro, estavam proibidos de possuir terras e casas.349

Desde os primórdios do período arcaico grego, o comércio era conduzido por reis e

chefes em busca de metais preciosos e produtos para o household. Estes comerciantes

parecem estar mais próximos dos nobres, apresentados por Meyer e Weber, que viajavam à

procura de produtos de luxo. Tinham um alto status dentro da sociedade. Até aqui, o comércio

nada tinha a ver com o mercado. Contudo, com a introdução do mercado (ágora), tipos

diferentes de comerciantes engajam-se no comércio local e estrangeiro.350 O comerciante

local era o kapelos, e o comerciante marítimo era o emporos. Polanyi apóia-se em Platão e

Xenofonte para afirmar que os kapeloi são aqueles comerciantes que se instalam na ágora,

provavelmente cidadãos, pois, de acordo com uma lei de Sólon, não eram permitidos a

348 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M;

PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976.p. 304-305. e POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 84-86.

349 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 88. 350 Weber já havia feito esta distinção entre comércio local e estrangeiro.

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estrangeiros comerciar no mercado local, a menos que pagassem uma taxa. Porém, apesar de

terem um status político superior aos não cidadãos, tinham status econômico inferior aos

cidadãos envolvidos em outras atividades. Já os comerciantes de longa distância, diferente dos

períodos pré-clássicos, eram agora majoritariamente não cidadãos, estrangeiros ou metecos.

Praticavam o comércio também por motivo de ganho e não de status. Seus lucros eram

baixos, e objetivavam juntar dinheiro para tornarem-se financiadores de comerciantes. Os

emporoi estavam envolvidos neste comércio, em grande parte, devido as guerras entre

cidades-Estados e intra cidades-Estados que “liberavam” grande número de viajantes pelo

mundo grego. Segundo o autor, não havia concorrência entre estrangeiros e cidadãos (estes

em número reduzido) envolvidos no comércio marítimo, pois, o grande número de

estrangeiros no ramo era uma fonte de receita para o Estado.

Até aqui, entre Polanyi e Hasebroek há muita convergência. Os dois autores parecem

concordar quanto ao baixo status do comerciante em geral, enquanto Weber acredita que os

homens engajados no comércio marítimo tinham um status superior. Porém, Polanyi

aprofunda as hipóteses de Hasebroek ao mostrar uma diferença entre o comerciante local e o

marítimo. O papel do comerciante no mercado local parece ter sido alijado da análise de

Hasebroek, mais preocupado com o comércio marítimo. Não obstante, Polanyi exagera em

relação a Weber e Hasebroek, sobre a presença de metecos como financistas do comércio

marítimo, enquanto Weber afirma que este papel estava sendo ocupado por cidadãos com

“espírito” capitalista.

As mercadorias e o transporte são fatores importantes para determinar a especificidade

do comércio sem mercado, pois a presença deste homogeneíza as diferenças entre aqueles

dois elementos. Contudo, sem mercado, estes elementos são distintos. A decisão de adquirir

um tipo de mercadoria em uma região é feita sob circunstâncias diferentes daquelas sob as

quais outro tipo de mercadorias é adquirido em outro lugar. Transportar escravos e gado é

diferente de carregar enormes rochas e ou troncos por centenas de milhas. Às vezes, a

aquisição e o transporte de mulas, cavalos, ou carneiros, exigem também, a presença de seus

cavaleiros ou pastores, criando um problema social complexo. Quando a economia não está

regida pelo mercado, as importações e as exportações tendem a ser submetidas a regimes

distintos. A arrecadação de mercadorias a serem exportadas é distinta do processo de

“distribuição” de mercadorias importadas. No primeiro caso, é uma questão de tributo,

taxação, presentes feudais ou qualquer outro mecanismo pelo qual as mercadorias fluem para

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o centro, enquanto a “distribuição” pode ocorrer por canais hierárquicos completamente

diferentes.

As mercadorias comercializadas podem ser necessárias para pessoas de diferentes status, cujos interesses são expressos através de diferentes canais, que têm meios diferentes a sua disposição para alcançar seus fins, e que, portanto, originam tipos de comércio para desenvolver-se cuja organização tem muito pouco em comum.351

Concomitantemente, as rotas comerciais e os meios de transporte podem ter tanta

importância para as formas institucionais do comércio como os tipos de produtos

transportados. Nos dois casos, as condições geográficas e tecnológicas estão entrelaçadas com

a estrutura social. A embarcação utilizada para o comércio marítimo deve, em muitos casos,

estar preparada para enfrentar tanto os problemas naturais como os de guerra. Neste sentido, a

tripulação de uma embarcação marítima também deve ser recrutada para propósitos bélicos.352

O comércio é uma forma pacífica de envolvimento da comunidade em relações

externas por um lado, e de transporte das mercadorias, por outro lado. Estes são os dois lados

do comércio. Em relação à bilateralidade de comércio, são encontrados três tipos principais: o

comércio de presentes, comércio administrativo e comércio mercantil.

No comércio de dádivas, as partes estão unidas por relações de reciprocidade. A

organização do comércio é geralmente cerimonial envolvendo presentes mútuos, embaixadas

e negócios políticos entre reis e chefes. As mercadorias são, na maioria das vezes, objetos de

circulação restrita à elite: escravos, metais preciosos, vestuário. Este tipo de comércio é muito

difundido em sociedades tribais e entre impérios.353

O comércio administrado pressupõe corpos comerciais relativamente estáveis e

ampara-se em tratados mais ou menos formais, isto é, em relações tradicionais ou

costumeiras, ou por meio de tratados explícitos. Tanto a importação, como a exportação são

organizadas por canais governamentais, que arrecadam as mercadorias para exportação e

distribuem as mercadorias importadas. Em geral, há predomínio dos interesses importadores.

Os métodos administrativos se estendem à toda a atividade comercial, como os

acordos sobre as “taxas” ou proporções em que se intercambiam as unidades, as facilidades

351 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 91. 352 idem. 353 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 94.

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portuárias, o intercâmbio físico das mercadorias, a vigilância, o controle do pessoal comercial,

a regulação dos “pagamentos”, os créditos e as diferenças de preços. O regateio não é parte

dos procedimentos, pois as equivalências predominam. Contudo, em virtude das

circunstâncias mutantes, pode haver regateio, porém, só sobre os elementos alheios ao preço,

como as medidas, a qualidade do produto e os meios de pagamento.354

A instituição específica, local de todo o comércio estrangeiro administrado, é o “porto

de comércio”, geralmente situado na costa, nas fronteiras do deserto, na nascente do rio, ou no

encontro de planícies e montanhas. A função do “porto de comércio” é oferecer segurança

militar para o anfitrião; proteção civil para os comerciantes estrangeiros; facilidades de

ancoramento, desembarque, estocagem e armazenamento; servir como autoridade judicial.

Polanyi e seus colaboradores preocuparam-se em procurar em diversas sociedades,

primitivas e arcaicas, a presença desta instituição. Este é o tema de alguns dos artigos de

Trade and Market. Em 1963, Polanyi escreveu um artigo intitulado Ports of Trade in Early

Societies (portos de comércio em sociedades antigas), publicado posteriormente por George

Dalton, no livro Primitive, Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Neste

artigo, ele afirma que um esboço mais simples das origens e desenvolvimento do porto de

comércio resulta em um número de formas tão variadas quanto às instituições de mercado, às

quais, o porto de comércio parece ser uma alternativa funcional. Os portos de comércio

freqüentemente são encontrados no norte da costa da Síria desde o segundo milênio a.C.- Al

Mina e Ugarit -; em algumas cidades–estados da Ásia Menor e do Mar Negro, no primeiro

milênio; nos reinos de Widah e Dahomey; na região asteca maia do Golfo do México; no

Oceano Índico, na Costa de Malabar, em Madras, Calcutá, Rangoon, Burma, Colombo,

Batavia, e na China.355

No caso da Grécia antiga, desde o período pré-clássico, já se têm informações da

instituição do porto de comércio, o emporium, que significa um lugar de encontro de

comerciantes, localizado fora dos portões de uma cidade, ou mesmo em uma costa desabitada.

No período clássico, o emporium era destinado ao comércio estrangeiro e tinha seu próprio

354 ibid., p. 95 e POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K;

ARENSBERG, M; PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976.p. 307.

355 POLANYI, K. Ports of Trade in Early Societies. In: DALTON, G. Primitive, Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Boston: Beacon Press, 1968.

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porto, cais, armazéns, hospedarias de marinheiros e edifícios administrativos. O emporium

clássico, em geral, tinha seu próprio mercado de alimento.356

Para Polanyi, a configuração geográfica e política das regiões da Grécia, nas quais os

suprimentos de grãos e as rotas de comunicação estavam situados foi fundamental para o

desenvolvimento do uso de métodos administrativos de comércio, em vez do comércio de

mercado. Apesar de trabalhar com autores diversos, inclusive alguns modernistas, como

Rostovtezef, Polanyi aprofunda a tese já apresentada aqui de Hasebroek, de que o comércio

de grão foi resultado de uma política de Estado e não de uma política comercial. De acordo

com tal idéia, Polanyi afirma que a provisão de suprimentos e suas rotas comerciais, foram

garantidas pelos meios militares e políticos. A política estrangeira ateniense nunca foi

inspirada por interesses comerciais, mas sim, para garantir o suprimento de grãos para seus

cidadãos, posto que a Ática não tinha um solo propício para a produção de grãos, mas sim, de

azeite e oliva. A dependência da importação de grão refletiu-se no pensamento social e

político grego. A necessidade sempre insatisfeita por um suprimento alimentar adequado fez

do princípio da auto-suficiência – autarquia – o postulado de sua existência e de sua teoria do

Estado. Tal princípio está presente em algumas legislações, como a de Sólon, preocupadas

em extrair as maiores quantias possíveis de grão para Atenas e evitar o movimento de grão

para fora de Atenas. Não era permitido a nenhum residente ateniense transportar grão para

qualquer lugar, exceto para Atenas. Portanto, o controle militar ateniense sobre o comércio de

grão era completo. Para garantir sua supremacia, Atenas proibiu todos os navios, a não ser

aqueles que levavam grãos para Atenas, de entrar no Mar Negro.357

No entanto, o comércio administrado do século IV distinguiu-se do século V, quanto

ao grau de controle ateniense. No século V, Atenas administrou o comércio quase sem ajuda,

posto que as cidades bosforianas estavam sob seu domínio. No século IV, o comércio pôntico

era administrado como comércio de tratado entre grandes forças, pois Atenas dominava os

mares somente a oeste do Bósforo tracio. Os tratados que regulamentavam o suprimento de

grãos, em sua maioria, traduziam o direito de comprar mercadorias em um certo porto ou

portos e objetivavam obter vantagens no transporte, isenção de taxas, e prioridade de

carregamento.

356 ibid., p. 244. 357 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 199-

216.

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A ameaça da perda do suprimento de grão do Peloponeso foi o motivo principal da

entrada de Atenas na Guerra do Peloponeso, resultado do objetivo ateniense de controlar o

suprimento ocidental de grão.

Portanto, o comércio de grãos dominava a política estrangeira ateniense, como

comércio administrado, e não como comércio de mercado. O comércio administrado estava

perfeitamente ajustado à política naval ateniense, interessado no controle de rotas e nos

suprimentos vitais de importação, e aos objetivos redistributivos do Estado. Neste sentido,

não somente o comércio de grãos, mas o comércio, em geral, era comércio administrado.

O comércio de madeira, do qual Atenas era extremamente dependente, e o de ferro,

bronze, cera, estavam regulamentados por monopólios e tratados que beneficiavam Atenas. O

comércio de escravos, – gênero de primeira necessidade no período clássico - principalmente

em seu primeiro estágio, era comércio administrado. Como era, em sua grande maioria,

oriundo de fornecimento externo, gerava diversos problemas físicos, tal como,

armazenamento e deslocamento, como também, problemas de avaliação financeira. Já o

comércio de artigos de luxo era um subproduto derivado do comércio administrado de

mercadorias de primeira necessidade. Existia em função da talassocracia ateniense.

Podemos afirmar que o modelo polanyiano de comércio administrado completa as

impressões de Hasebroek, em relação a duas questões: 1. comércio apenas como um campo

para o investimento do capital e uma fonte de receita do Estado; 2. intervenção do Estado no

comércio para encher seus celeiros e seu tesouro. Estes são elementos do modelo polanyiano

de comércio administrado, com todas as suas variantes no tempo e no espaço. Os traços deste

tipo de comércio, apresentados por Hasebroek e Polanyi, não carecem de racionalidade, como

pensava Weber, pois têm uma dinâmica peculiar e estão presentes em outras sociedades,

mesmo que com variações de grau e forma em várias dessas sociedades. Dessa forma, o

modelo apresentado por Polanyi de comércio administrado resulta em um avanço e em uma

mudança de perspectiva em relação ao modelo weberiano, e em uma primeira grande

transformação da tradição que estamos investigando. Além disso, Polanyi ao conceitualizar

outros tipos de comércio, a luz de modelos antropológicos, consegue ampliar os argumentos

dos primitivistas, não ficando restrito a comparação do comércio antigo com as economias

nacionais modernas.

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4.5.2 O Mercado

O mercado tem dois significados correntes: 1. um lugar tipicamente aberto, no qual os

gêneros alimentícios ou alimentos preparados podem ser comprados em pequenas

quantidades, em geral, por taxas fixas; 2. um mecanismo de oferta-demanda-preço, por meio

do qual o comércio é conduzido, porém não necessariamente ligado a um local definido ou

restrito ao varejo de alimentos. Na verdade, estes significados são distintos. No primeiro, o

fenômeno empírico tangível é um lugar físico, onde multidões encontram-se para o propósito

da troca. O segundo, é um mecanismo específico, uma variante do comércio. Obviamente o

mercado como um lugar precedeu a qualquer mecanismo competitivo do tipo oferta–

demanda. Este mecanismo apareceu provavelmente dois mil anos depois da aparição do

mercado como um mecanismo de distribuição de grãos no mediterrâneo oriental.358

Do ponto de vista formalista, o segundo significado tornou-se a definição institucional

de mercado. Tal definição é oriunda da idéia de que o mercado é o lugar do intercâmbio. Estes

elementos nunca estão dissociados. A vida econômica se reduz a atos de intercâmbio

realizados através do regateio que se cristaliza no mercado. Assim, o intercâmbio é a relação

econômica e o mercado é a instituição econômica.

Weber em suas considerações sobre o mercado, escritas em um capítulo inacabado de

Economia e sociedade, se aproxima muito da visão exposta acima. Segundo Weber, os

membros do mercado “competem por oportunidades de troca”. Em seguida, afirma que o

fenômeno específico do mercado é o regateio.359 Weber chegou a ver diferentes tipos de

mercado (local e externo), mas a idéia de racionalidade e impessoalidade, atrelada à troca, ao

regateio e ao dinheiro são os elementos fundamentais na sua definição de mercado.

Polanyi, como já esboçado no capítulo anterior, nega peremptoriamente que o

mercado e o intercâmbio (troca) estejam inextricavelmente ligados. O intercambio é um

movimento mútuo de apropriação de produtos entre sujeitos, feito por equivalências fixas ou

negociadas. Só neste último caso há regateio entre as partes. Portanto, se há intercâmbios, há

358 ibid., p. 124. 359 WEBER, M. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 419.

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equivalências. Porém, somente o intercâmbio a preços negociados está limitado

especificamente a uma determinada instituição, aos mercados criadores de preço.360

Neste sentido, o termo mercado não é definido necessariamente pelo mecanismo de

oferta-demanda-preço, mas sim, por uma conjunção de características institucionais,

chamadas de elementos de mercado. Em primeiro lugar, o mercado é constituído por um

lugar, fisicamente presente; em segundo, por uma multidão de ofertantes e ou de

demandantes. Essas multidões se definem como uma multidão de sujeitos desejosos de

adquirir ou de desfazer-se de produtos no intercâmbio. A separação das multidões de

ofertantes e demandantes configurou a organização de todos os mercados pré-modernos. Os

intercâmbios podem se dar por equivalências fixas sob formas de integração caracterizada

pela reciprocidade ou redistribuição, ou por equivalências negociadas, gerando uma forma

específica de integração, o intercâmbio, com mercados criadores de preços. Só com estes

elementos é que se pode falar de mercado. Finalmente, há os elementos funcionais, como a

situação geográfica, os produtos que se trocam, os costumes e as leis.

A instituição de mercado tem dois desenvolvimentos diferentes: um externo à

comunidade e o outro interno. O primeiro está intimamente ligado à aquisição de mercadorias

de fora, enquanto o segundo, à distribuição local de alimentos.

4.5.3 A Ágora e a Pólis

O desenvolvimento do tipo de mercado local, a ágora, na Grécia clássica, é, em

primeiro lugar, uma reação às formas de distribuição feitas pelos households senhoriais, que

contribuíram para enfraquecer as relações de reciprocidade tribais; e, em segundo, um meio

pelo qual a democracia mantinha a subsistência de seus cidadãos.

O enfraquecimento dos laços tribais já aparece nos poemas de Hesíodo, que retrata a

transição de dois eventos díspares: o primeiro é uma catástrofe política, a invasão dos Dórios;

e o segundo, é uma revolução tecnológica, a chegada do ferro. É neste contexto que Hesíodo

descreve o enfraquecimento dos laços de parentesco e o lento fortalecimento dos laços de

vizinhança. Contudo, Hesíodo procura reforçar em seus poemas a necessidade de manutenção

360 POLANYI, K; ARENSBERG, M; PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos.

Barcelona: labor universitaria, 1976. p. 311.

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dos laços de reciprocidade existentes anteriormente. Na Grécia homérica, já há evidência da

existência de households senhoriais, organizados em torno da propriedade familiar, fora da

esfera tribal, constituindo uma força dilaceradora das relações tribais. Segundo Polanyi, a

pólis herdou as tradições tribais, tanto aristocráticas quanto democráticas, e estabeleceu as

condições para um tipo de redistribuição que se contrapôs aos efeitos demolidores dos

households senhoriais auto-suficientes.

Estas condições foram criadas, em primeiro lugar, pela convicção dos gregos de que

pólis era sinônimo de civilização. Conseqüentemente, a subordinação do indivíduo à pólis, ao

Estado, era completa tanto na esfera política quanto militar, impedindo qualquer idéia de

direitos individuais. Tal idéia, de uma responsabilidade total da polis sobre os cidadãos,

estendeu-se ao plano econômico. Era vital para a pólis o controle da subsistência de seus

cidadãos. O Estado coletava mercadorias, serviços, dinheiro, tesouro e grãos e os armazenava

nos armazéns do Estado ou, em casos emergências, nos households. Mas, como redistribuir

estas mercadorias em um sistema democrático? Como manter a igualdade e a participação dos

cidadãos na política, sem deixá-los ficar a mercê de homens ricos sedentos de uma clientela

própria por meio de distribuição de alimentos em seus próprios households? Finalmente,

como evitar a instalação de uma burocracia, considerada como antítese da participação direta

de todos os cidadãos na vida política?

A resposta foi o pagamento em dinheiro a todos os cidadãos que participavam nos

cargos do Estado – tribunais, boulé e forças armadas - ou mesmo apenas nas assembléias, e a

utilização deste dinheiro em um mercado local que vendesse alimentos a varejo. Porém, a

distribuição de alimento por meio de um mercado não foi facilmente aceita pelas facções

políticas mais conservadoras, que viam no mercado local uma forma de fortalecimento da

facção política democrática e um enfraquecimento de seu poder político, pois criava uma

alternativa à distribuição de alimento além dos households senhoriais. O contraste entre os

dois centros de redistribuição: o oikos senhorial e a pólis democrática é mais claramente

expresso no conflito entre Címon e Péricles. O primeiro, um rico líder conservador, convidava

seus vizinhos e dependentes para refeições livres em seus domínios, além de um generoso

desempenho de liturgias, enfraquecendo o poder político de Péricles, também um rico

membro da aristocracia, que via nestas práticas um obstáculo para o desenvolvimento do

sistema democrático. Daí o incentivo de Péricles às práticas do mercado local, a ágora.361 Eis

361 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 178.

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aqui, a junção do caráter político da pólis, - manter a subsistência de seus cidadãos -, com o

papel redistributivo da agora.

A ágora, apesar de ser considerada como o “mercado de cidade” mais antigo do

Ocidente, não foi historicamente um local de mercado, mas um lugar de encontros.362 Desde o

século VI a.C., Atenas possuía um tipo de mercado onde o alimento era vendido a varejo.

Leite fresco e ovos, legumes frescos, peixe, e carne eram oferecidos para a venda. Em geral,

os artigos eram produtos da vizinhança, vendidos por homens e mulheres camponeses, ou por

dinheiro ou por barganha. O freguês, que procurava por sua comida no mercado, era o

trabalhador pobre ou transeunte que não tinha household próprio. Nem o comerciante recém-

chegado, nem o residente próspero freqüentavam o mercado local primitivo, uma prova de

que ele servia às necessidades das pessoas comuns. Também figuravam como características

da ágora: as fronteiras rígidas, especificações de quem pode e quem não pode comercializar e

com quem; os inspetores oficiais de mercado e os tipos de mercadorias a serem vendidas.

Tudo isto nos mostra a preocupação da pólis com o tipo de mercado que funcionava em seu

interior. Portanto, diferente do planejamento burocrático em larga escala do Egito, o mercado

local representava em Atenas um planejamento em pequena escala, contudo ocupava um lugar

crucial para a constituição política da democracia da pólis.363

O mercado de alimentos era a resposta para a distribuição de alimentos sem uma

burocracia. Tal distribuição era realizada com o pagamento em dinheiro aos cidadãos por

serviços militares, políticos ou mesmo um pagamento cotidiano. Este pagamento era

viabilizado pelo Império, que significava, em primeiro lugar, o controle da importação de

grão; e em segundo, receitas adicionais para sustentar seus cidadãos. Tais garantias

possibilitaram o incentivo da mudança de habitantes rurais para Atenas. A conexão de poder

naval (talassocracia) ateniense e democracia alcançou seu ápice com as políticas de

Péricles.364

Polanyi, semelhante a Weber, também acredita que o mercado local nada tem haver

com o comércio estrangeiro. Têm suas origens separadas e independentes. Havia uma

separação institucional, não somente de comércio e comerciantes internos e externos, mas de

seus lugares e preços. O empório estava localizado no porto de Atenas, no Pireu. A separação

362 POLANYI, K.On the comparative treatment of Economic Institutions in Antiquity with Illustrations from

Athens, Mycenae, and Alalakh. In: DALTON, G. Primitive, Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Boston: Beacon Press, 1968, p. 312.

363 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 167. 364 ibid., p. 178.

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do empório do resto da cidade era simbolizada pelas pedras fronteiriças que a circundavam e a

separavam do próprio Pireu que legalmente e institucionalmente era uma parte de Atenas.

Apesar de não haver dados concretos sobre o movimento de preços de grãos, é possível inferir

que os preços dos grãos vendidos na ágora não variavam de acordo com as flutuações de

preços no empório. Na medida em que o movimento de preços de grãos estava diretamente

relacionado com eventos políticos, sua variação era proporcional ao poder naval de Atenas em

relação ao resto do mundo grego. Desta forma, quanto maior o controle de Atenas, maior a

possibilidade de monopólio sobre a compra de grãos, e conseqüentemente, maior a

possibilidade de preços baixos.

Atenas sempre se preocupou em manter o preço do grão na ágora abaixo do preço do

empório, inclusive com mecanismos rígidos de controle, como por exemplo, a proibição de

intermediários e a imposição de um limite quantitativo de compra de grãos no empório.

Porém, um dos artifícios mais utilizado foi o apelo feito pela cidade ao desejo de status e

orgulho dos comerciantes e metecos. Os magistrados persuadiram, ou tentaram persuadir, os

comerciantes a venderem seu grão a um “preço justo”, cinco dracmas, independente de

quanto estivesse o preço no empório, em troca de honras especiais oriundas de decretos da

cidade. Na verdade, tais procedimentos eram uma extensão do sistema litúrgico para o

estrangeiro e meteco. Além de vender a preços mais baixos, o comerciante era induzido a

contribuir com dinheiro, para a cidade comprar grãos, para serem revendidos a cinco dracmas

para a população. O resultado dessas políticas era “unir” o preço da ágora ao do empório, o

que para Polanyi, constituía um traço de continuidade do passado redistributivo de Atenas.365

Os escritos de Aristóteles, mais uma vez, constituem a principal fonte para corroborar

as idéias que estão por trás de tais práticas. Segundo o filósofo, todo o intercâmbio que fosse

feito para manter a autarquia, era natural e, conseqüentemente, justo. Este intercâmbio deve

manter a coesão da comunidade, atendendo aos interesses da comunidade, e não dos

indivíduos. O “preço justo” ou fixo identifica-se com o comércio natural, e é fruto dos

costumes e de fatores extra-econômicos. Já o intercâmbio com ganho é antinatural, e a

flutuação de preços, indesejável. Assim, a troca derivava da instituição da distribuição dos

bens necessários com o propósito de abastecer aos membros da família para que chegassem

ao nível de auto-suficiência. Na medida em que se podiam aplicar termos legais a condições

tão primitivas, a transição se referia a uma transação em espécie, limitada em quantidade às

necessidades reais do solicitante, realizada em termos de equivalência e com exclusão do

365 ibid., p. 236-238.

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crédito. O intercâmbio é, neste contexto, parte de um comportamento de reciprocidade, em

contraste com os critérios comercias de ganho.366

As considerações de Polanyi sobre os mercados gregos acentuam sua recusa em

associar “liberdade econômica” do capitalismo mercantil com liberdades pessoais e políticas.

Apesar dos gregos terem inventado os mercados criadores de preço, com alguma expressão no

final da Atenas Clássica, eles sempre tiveram um papel subordinado, pois foi somente no

século XIX, que eles adquiririam autonomia. Dessa forma, não houve nenhuma ligação entre

mercados e liberdades pessoais e políticas e outras realizações da Grécia clássica.

Vimos aqui, que Polanyi se diferencia de Weber, por entender que no mundo grego há

mercados, contudo não com as mesmas características do mercado definido por Weber, que

estava atado a uma visão formalista de mercado. Neste sentido, Polanyi avança, pois

consegue encontrar uma “racionalidade” própria no mercado local grego, algo inconcebível

na visão weberiana. Os elementos políticos não são, na concepção polanyiana, fatores de

entrave para alcançar a “racionalidade” de mercado. Em comum, com Weber, Polanyi

acredita na integração da esfera política e econômica, ou “material”, porém, este modelo não

carece de racionalidade. Por outro lado, em ralação a Hasebroek, Polanyi avança, porque

consegue integrar a ágora; o comércio local, ao comércio externo, elemento que foi

privilegiado por Hasebroek. Neste sentido, ele complementa o modelo de Hasebroek, muito

preso ao comércio externo.

4.5.4 Dinheiro

Finalmente, o último elemento da tríade cataláctica, que Polanyi analisou, o dinheiro.

Segundo os formalistas, o dinheiro é o meio de intercâmbio indireto, utilizado como

pagamento e como “padrão”. Desta forma, o dinheiro é dinheiro para todos os usos. Não

obstante, todos os usos de dinheiro dependem da existência do mercado.367 Tal perspectiva é

semelhante a de Weber, que denomina dinheiro como um “meio de pagamento cartal que

serve de meio de troca.”368 Em seguida, Weber afirma que, do ponto de vista técnico, o

366 POLANYI, K. Aristóteles descubre la economía. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M; PEARSON, W.

Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976. p. 135-137. 367 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 309. 368 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 46.

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“dinheiro é o meio de cálculo econômico mais perfeito que existe, isto é, o meio formalmente

mais racional de orientação da ação econômica.”369

Porém, para Polanyi, a definição real de dinheiro é independente do mercado. Deriva

de usos definidos que se dá a alguns objetos. Ele serve a vários fins, que são tradicionalmente

descritos como meios de pagamento, padrão de valor, reserva de riqueza e meio de troca.

Apesar destes usos serem oriundos da teoria monetária da economia de mercado, eles

representam um papel muito distinto nas sociedades primitivas.

A sociedade primitiva não conhece todo o propósito do dinheiro. Nenhum tipo de

objeto merece o nome de dinheiro. Na verdade, o termo aplica-se a uma multiplicidade de

objetos: escravos usados como padrão de valor; conchas podem ser empregadas para medir

pequenas somas em situações diferentes; metais preciosos como reserva de riqueza.

Outrossim, o dinheiro primitivo pode, em casos extremos, empregar um tipo de objeto como

meio de pagamento; outro como padrão de valor; um terceiro para armazenar riqueza; e um

quarto para propósitos de troca. Os diferentes usos de dinheiro são institucionalizados

separadamente e independentes um do outro.

Na sociedade primitiva, um uso de dinheiro pode predominar em relação a outro uso.

Enquanto, nas sociedades modernas, a unificação dos vários usos de dinheiro é regularmente

feita tendo como base seu uso de troca, nas sociedades primitivas, os diferentes usos podem

preceder a troca. É por este motivo que não se pode descartar as funções primitivas do

dinheiro, tais como a mágica e a ornamental. Desta forma, “a definição funcional de dinheiro

começa dos objetos quantificáveis comumente designados como dinheiro e as operações

observáveis que são realizadas com estes objetos.”370

O pagamento no sentido moderno é a desobrigação de uma obrigação pela cessão de

unidades quantificadas. Aqui, a idéia de pagamento associa-se a dinheiro e a de obrigação

com transações econômicas. Contudo, as origens do pagamento estão relacionadas com uma

época em que os objetos quantificados não eram empregados na desobrigação de uma

obrigação relacionada às transações econômicas. O pagamento de multas, taxas, tributos, dons

e contra-dons para honrar os deuses ou os mortos são obrigações não econômicas. Não

obstante, a principal prática de pagamento era a diminuição de poder e status do pagador. Na

sociedade arcaica, uma multa exorbitante desgraçava uma pessoa, enquanto um homem rico

poderia efetuar pagamentos sem debilitar seus status e poder, devido à importância política e

369 ibid., p. 53. 370 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 100.

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social da riqueza acumulada.371 Daí a importância política do tesouro, transformado-se em

fonte de poder.

O uso do dinheiro como padrão, com fins contáveis, é a equiparação de quantidades de

diferentes tipos de produtos, com propósitos determinados. Comumente usado em situações

de troca ou armazenamento e na administração de alimentos, sua operação consiste em

atribuir valores numéricos aos diversos objetos para facilitar a manipulação.372

A utilização do dinheiro como padrão é essencial em um sistema redristibuitivo de

larga escala. A equiparação de produtos de gêneros alimentícios – cevada, azeite, etc – com os

que se tem de pagar impostos ou rendas, rações ou salários permite ao pagador e ao credor

escolher entre os diferentes bens. Nenhuma taxação e arrecadação de taxas, nenhuma provisão

e balanço de households de propriedades rurais, e nenhuma contabilidade racional abrangendo

uma variedade de mercadorias são possíveis sem um padrão. Os valores das coisas

submetidos à aritmética exigem a fixação de taxas relacionadas a vários gêneros alimentícios

de primeira necessidade com outras taxas equivalentes fixadas pelo costume ou estatuto.373

O armazenamento de riqueza é a acumulação de objetos quantificáveis, seja para

disposição futura, por exemplo, gêneros alimentícios; ou não, como por exemplo, o tesouro.

Tais riquezas, no primeiro caso, ou não são consumidas, ou são destruídas no presente. No

segundo, se prefere as vantagens da pura posse, especialmente o poder, prestígio, e influência

proveniente desta posse. Operacionalmente, a exibição ostentosa pode resultar em crédito ao

possuidor e daqueles que ele pode representar.374

O armazenamento de riqueza tem sua origem parcial na necessidade de pagamento,

contudo tanto aquele que possui a reserva de riqueza, e que está capacitado a pagar multas,

taxas e etc, por razões sacras, políticas e sociais, quanto os súditos que alimentam esta reserva

com taxas, aluguéis, dádivas, por motivos de gratidão e admiração, estão envolvidos em

pagamentos por razões não econômicas.

O tesouro é uma forma distinta de outras formas de riqueza armazenada. A diferença

consiste basicamente em sua forma de subsistência. O tesouro é formado por mercadorias de

prestígio, incluindo objetos “valiosos” cerimoniais cuja mera posse dota o possuidor de poder

371 ibid., p. 106. 372 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. P 310 373 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 119. 374 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. P 310

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e influências sociais. Tanto dar como receber os tesouros realçam o prestígio. O alimento

raramente funciona como tesouro enquanto os metais preciosos são quase universalmente

avaliados como tesouro, e não podem ser trocados por objetos de subsistência, visto que a

exibição de ouro por pessoas comuns é oprobiosa. Doravante, o tesouro, como outras fontes

de poder, pode ser de grande importância econômica, na medida em que chefes e reis podem

colocar à disposição do doador os serviços de seus dependentes, garantindo-lhe alimento,

matérias e serviços de trabalho em larga escala.375

Portanto, os gêneros de primeira necessidade e o tesouro explicam o funcionamento de

vários usos de dinheiro na ausência de um sistema mercantil. O tesouro como pagamento

serve para inchar as reservas do tesouro, e não entram necessariamente na cadeia de troca

econômica. Já os alimentos de primeira necessidade, - mercadorias de subsistência - quando

usados para quitação de obrigações são produtos de pagamentos do centro implicados na

redistribuição.

O uso do dinheiro como meio de troca é o emprego de objetos quantificáveis em

situações de troca indireta. A operação deste uso de dinheiro consiste em adquirir unidades de

objetos através de transações diretas, a fim de adquirir produtos desejados por meio de um

ulterior ato de intercâmbio. Na ausência de mercados, a utilização do dinheiro como meio de

troca não é mais que um traço secundário.376

Para os formalistas, o uso de dinheiro como meio de troca é seu critério essencial tanto

nas sociedades modernas, quanto primitivas. Somente objetos quantificáveis servindo como

meio de troca podem, nesta visão, ser observados como dinheiro, enquanto os outros usos não

são decisivos, pois somente aquele uso unifica o sistema, visto que permite uma ligação

consistente das várias funções do dinheiro. Sem isto, não pode haver dinheiro verdadeiro. Tal

abordagem, segundo Polanyi, não encontra apoio na história primitiva dos usos de dinheiro,

em virtude da institucionalização separada e independente dos vários usos do dinheiro.377

Enquanto, nas sociedades modernas o dinheiro serve para todos os propósitos, isto é, o

meio de troca é empregado para os outros usos de dinheiro, o dinheiro nas sociedades

primitivas tende a ser dinheiro para “propósito limitado”, pois objetos diferentes são

utilizados nos diferentes usos de dinheiro. Daí o papel diverso das instituições monetárias das

sociedades ocidentais modernas, por um lado, e das primitivas, por outro. O dinheiro para 375 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 109. 376 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;

PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. p 310. 377 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 109.

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todo propósito favorece formas mais homogêneas de organização social, enquanto o dinheiro

para propósito limitado tende à diferenciação de sua estrutura de classe e de parentesco.378

As estruturas sociais primitivas eram mutuamente reforçadas pelas situações de status

e padrões de integração. O dinheiro arcaico criou e manteve o prestígio, separando a riqueza e

a pobreza por meio da circulação restrita de um tipo de dinheiro à elite, e outro tipo de

dinheiro ao homem pobre. Na Grécia homérica, a circulação de certas mercadorias como

cavalos rápidos, metais preciosos, jóias, objetos de tesouro, escravos habilidosos ou heranças

em usufruto era restrita à elite. Na Mesopotâmia, os empréstimos dos templos destinados aos

camponeses eram feitos em cevada, enquanto para os cidadãos livres era com prata, com taxas

de juros diferentes.

Na Grécia antiga, o tesouro era uma forma de riqueza que circulava entre poucos.

Trípodes e tigelas, feitas de ouro e prata, eram alguns dos tipos de tesouro. A disposição era

ou em troca de outro tesouro, ou por itens de prestígio tal como acesso a deuses e seus

oráculos, a reis, chefes, e potentados. Mercadorias como cavalos, marfim, escravos

habilidosos, trabalhos de arte ou roupas finas eram trocadas por outras mercadorias de

prestígio. O tesouro era também uma forma portátil de poder. Quem possuísse o tesouro, era

poderoso, honrado e temido. O poder conferido pelo prestígio era uma antecipação de

vantagens econômicas de longo alcance. Porém, é muito pouco nítida a diferença entre poder

político e econômico, em um mundo em que os serviços pessoais de vários graus formavam o

recurso econômico, e a disposição sobre este recurso particular era organizada através de

relações de um caráter não econômico, tal como parentesco, clientela, ou dependência semi-

feudal. Todavia, algumas formas de riqueza, tal como terra ou gado, eram mais imediatamente

econômicas do que outras, porém, mesmo nestes casos, os benefícios econômicos e políticos

ainda estavam tão estritamente entrelaçados que não se podia admitir uma simples

separação.379

Apesar de familiarizados com o comércio, com multidões específicas de mercado, e

com os usos primitivos de dinheiro de pagamento e padrão, estes elementos não parecem

pertencer a um conjunto institucional na Grécia antiga, posto que, a reciprocidade e a

redistribuição predominavam. Quanto aos assuntos econômicos, a ética grega procura a

maneira mais inteligente de discutir as atitudes recíprocas e redistribuitivas ligadas ao

378 ibid., p. 120. 379 ibid., p. 111.

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costume e à moralidade, por meio de uma técnica para efetivá-las. Assim, o pensamento grego

segue uma visão racional de costumes, suplementado por uma descrição de dispositivos.380

O pó de ouro era o meio comum de troca no mercado de alimentos, e não levou à

introdução de moedas de ouro. A distinção fundamental sobre os usos gregos de dinheiro era

a distinção entre dinheiro local e dinheiro externo. As moedas de prata de pequena

denominação e, particularmente depois do século IV, as moedas de bronze, eram usadas para

o comércio local; enquanto as moedas de prata de maior denominação tal como as estáter

eram usadas no comércio externo. Mas a distinção não é simplesmente do tamanho da moeda.

O que dava à moeda seu valor, era a autoridade da cidade emitente. Se um pedaço de metal

recebesse o selo que foi emitido como um dracma pelo corpo governante de uma cidade,

pouco valia para o comércio desta cidade o valor do metal. Em alguns lugares, as moedas

chapeadas circulavam juntas com as moedas de bom metal, e com o mesmo valor. Isto é uma

prova de que seu valor era fixado pela autoridade do Estado. Há completa ausência de

qualquer indicação de depreciação de moeda corrente ou inflação de preço, de moedas “boas”

sendo retiradas de circulação por outras “más”.381

A distinção entre moedas locais e estrangeiras não deve ser exagerada. Apesar de

institucionalmente separadas as moedas, eram intercambiáveis. Tal intercambialidade não era

limitada ao relacionamento entre cunhagem interna e externa de uma cidade, mas entre

cunhagens externas de duas cidades. O operador desta intercambialidade foi o banqueiro

trapezista, que não apareceu antes de 400 a.C. em Atenas. Seja sentado em sua mesa na ágora,

o banqueiro trocava largas estater de prata ou tetradracmas por pequenos óbolos de cobre ou

meio óbolos; ou em sua mesa no deigma, trocava moedas estrangeiras por moedas atenienses

e atenienses por estrangeiras. Uma outra função do banqueiro era a de ser depositário de

dinheiro, artigos valiosos e erário, bem como documentos legais. Provavelmente, os depósitos

não eram usados pelo banqueiro, a menos que ele fosse autorizado pelo depositante. Quanto

aos empréstimos, ou era dos seus fundos ou a pedido do depositante. Os banqueiros, em sua

maioria libertos, ou estrangeiros, não tinham segurança quanto as garantias de seus credores,

pois não podiam ter propriedade fundiária, e não podiam fazer hipotecas. Sua função principal

era mesmo de facilitar pagamentos.

A análise dos trabalhos de Polanyi indica um novo redirecionamento da tradição que

estamos analisando. Podemos conceituar esta tradição, a partir de agora, como primitivista-

380 ibid., p. 253-254. 381 ibid., p. 258-264.

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substantivista. Sem dúvida, a principal inovação da introdução do substantivismo foi a crítica

ao formalismo (mesmo com todos os limites apontados por Godelier) e, particularmente, na

esfera do debate que estamos investigando, aos elementos formalistas do trabalho de Max

Weber. Em um primeiro momento, poderíamos associar os elementos formalistas à corrente

modernista, contudo, a presença destes traços nos trabalhos de Weber, principalmente em

relação ao comércio, dinheiro e mercado, demonstra a complexidade de influências teóricas e

ideológicas presentes em uma mesma tradição.

A incorporação destes novos elementos à tradição investigada foi fomentada, em

primeiro lugar, pela entrada em cena da Antropologia econômica. Graças às formas de

integração social - reciprocidade, redistribuição e intercâmbio -, tributárias do funcionalismo;

e das análises comparativas, Polanyi conseguiu ultrapassar a dicotomia entre racionalismo e

irracionalismo das sociedades antigas, hipótese cara às reflexões weberianas. Além disso,

mesmo ainda falando de feudalismo no mundo antigo, ele rejeitou a hipótese de qualquer tipo

de capitalismo no mundo antigo, tal como imaginou Weber, por entender, que o mercado

auto-regulável, principal elemento característico do capitalismo, estava ausente do mundo

antigo. De acordo com Weber, o capitalismo moldou o período clássico da Antiguidade e foi

sufocado pela burocracia. A ligação causal entre economia de mercado e as realizações da

Grécia clássica não podia também ser aceita por Polanyi, pois este não associava em seu

projeto geral a liberdade com a economia de mercado disembedded.

Segundo Nafissi, Weber sublinhava a dicotomia entre a pólis capitalista mercantil

versus economias estatais burocráticas do Oriente Próximo. Polanyi não seguiu Weber nesta

lógica, porque não via capitalismo na Atenas clássica. Também não utilizou o conceito de

modo de produção, mas as formas de integração conservavam a mesma função do projeto

totalizante e holístico do marxismo, diferente dos argumentos de Dalton apresentados no final

da última seção. Para Nafissi, Polanyi permaneceu um holista e reducionista, pois cada

mecanismo de integração social era identificado com um tipo particular de “homem”.

Reciprocidade e redistribuição, embora predominantemente dominantes em formações

primitivas e de Estados imperiais, foram identificadas com ‘planejamento’. Tais expressões se

confundiam, na visão de Polanyi, com a natureza essencialmente comunal do homem. A

economia de mercado, a diferenciação da economia da política representaram, por outro lado,

a perversão deliberada, individualista , da verdadeira natureza do homem. O mercado foi

favorecido com a mesma qualidade sistemática homogeneizante como as sociedades

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redistributivas do passado e do futuro. Neste sentido, uma economia de mercado não podia ser

associada com valores não individualistas.

Podemos dizer, também, que as formas de integração desenvolvidas por Polanyi

constituem um modelo muito próximo da idéia de tipo ideal. Outrossim, sua idéia de

embeddedness e disembeddedness também é passível das mesmas críticas feitas a Weber

anteriormente sobre a intervenção do político no econômico. Polanyi associa embeddedness

com as sociedades pré-capitalistas, e disembeddedness com as sociedades capitalistas. O

caráter utópico da análise de Weber também está presente no modelo polanyiano. Por que não

se pode inferir que o embeddedness também não é intrínseco a todas as ordens sociais,

incluindo todas as variedades de capitalismo moderno? Será que de fato houve uma sociedade

totalmente disembedded? Quanto à Grécia antiga, Mohamed Nafissi faz uma observação

relevante:

A descoberta ou invenção dos gregos da política é um resultado do mesmo processo complexo que para sua invenção da economia, qualquer que seja o resultado da disputa sobre o valor e o significado do pensamento econômico de Aristóteles. A economia não pode se embedded na política sem que o regime caia na armadilha da economia. Reciprocamente, a política não pode dominar a economia sem uma prévia diferenciação das duas.382

Nafissi compartilha com Christian Méier a idéia de que à medida que os cidadãos

buscavam interesses econômicos na política, estes surgiram de seu desejo, como parceiros da

cidade, de se assegurar das necessidades de subsistência, de remuneração para sua atividade

política, e de uma parte nas receitas da cidade. Concomitantemente, Nafissi observa que as

lutas empreendidas no período arcaico pelos camponeses pressupuseram um processo de

disembedding de atenienses como agentes autônomos com a capacidade de construir e buscar

coletivamente interesses materiais e ideais.383

Estas observações apenas realçam a pouca atenção dada por Polanyi aos conflitos

sociais na sociedade grega. Na verdade, há grande silêncio em suas análises envolvendo os

grupos sociais no mundo grego. De fato, como já dito anteriormente, as teorias antropológicas

tributárias do funcionalismo, com ênfase nos processos de integração social, não privilegiam

as contradições sociais. Isto é um elemento diferenciador da análise de Weber, que

382 NAFISI, M. Class, Embeddedness, and the modernity of Ancient Athens. Comparative Studies in Society

and History, Volume 46, n. 02, 2004, p.402. 383 ibid. p. 404.

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apresentou a luta entre pobres e ricos como o principal elemento das lutas de classes do

mundo greco-romano.

No paradigma polanyiano, a liberdade tornou-se um interesse residual,

normativamente bem como historicamente e conceitualmente. Polanyi virou-se para a História

econômica para provar que não havia nada de natural sobre os mercados livres, que o laissez

faire foi planejado, e o planejamento distributivo não era. Este objeto tornar-se-ia o foco

principal da análise de Moses Finley, já sob a influência mais sólida da História Social.

Aproveitando muito das reflexões dos autores já investigados, Finley iria reinterpretar os

modelos até então existentes, dando contornos finais a esta longa tradição, porém, sob um

novo contexto historiográfico.

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PARTE III

A CONSOLIDAÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL NO SEIO DA

TRADIÇÃO PRIMITIVISTA-SUBSTANTIVISTA

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5 O DOMÍNIO DO SOCIAL. MOSES FINLEY E A ECONOMIA AN TIGA

Um historiador que pensa que seu ofício consiste em descobrir fatos poderia da mesma maneira colecionar borboletas, selos ou caixas de fósforos. Trata-se de atividades privadas que contribuem para uma satisfação pessoal (coisa que não critico em absoluto), mas que não desempenham nenhuma função social.

Na verdade, todo historiador estabelece uma relação entre os fatos. Até os mais positivistas, aqueles que negam se interessar por algo mais do que a simples descoberta de fatos, não se contentam nem podem se contentar só com isso. É preciso parar com a ilusão de que um historiador parte dos fatos (ou, num erro conexo, das fontes). Milito por uma tomada de consciência e por um melhor controle por parte do historiador das generalizações, relações e conexões que ele emprega constantemente. Em suma, por uma atividade autocrítica.384

Moses I. Finley.

O texto acima demonstra o espírito de um dos historiadores mais brilhantes e

polêmicos do século XX, que, durante boa parte de sua vida, no bojo da consolidação da

História Social, não poupou energias para combater os resquícios, considerados por ele

retrógrados, do Historismo, sem, contudo, abdicar de alguns de seus princípios; e, por outro

lado, polemizar com aqueles que utilizavam a Antigüidade de forma deturpada e a-histórica.

Nosso objetivo neste capítulo é demonstrar que os trabalhos de Finley constituem uma defesa

dos princípios da História Social no campo da História Antiga, particularmente pela

exploração de três temas de sua historiografia: a discussão sobre os fatos e as fontes,

utilização de modelos e a defesa da História total.

384 PAIXÃO, F. Moses I. Finley. In: Idéias contemporâneas. Tradução de Maria Lúcia Blumer.Entrevistas do

Le Monde. São Paulo: Editora Ática. 1989. p.120.

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5.1 A CRISE DO HISTORISMO CLÁSSICO E O CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO

DA HISTÓRIA SOCIAL

As transformações do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos, no início do

século XX, expressas na Europa pela insatisfação de várias classes sociais e nos EUA pela

maior independência da sociedade burguesa em relação ao Estado, se comparada à Europa,

contribuíram para uma viva discussão acerca dos fundamentos dominantes da historiografia.

A ampliação do objeto da História e uma reflexão mais profunda sobre um novo conceito de

ciência se apresentavam como questões prementes diante da nova realidade social.

Como já dito anteriormente, o Historismo é um paradigma de pensamento e prática

históricos que enfatiza a singularidade e a individualidade dos fenômenos históricos. Neste

sentido, os fenômenos históricos deveriam ser compreendidos em seu próprio tempo, em

detrimento de uma análise amparada em leis gerais ou de princípios morais presentes. Tal

concepção sublinhava a impossibilidade de comparação significativa entre épocas históricas.

Apesar de ter conhecido cenários muito distintos, o resultado de tal concepção, em geral, foi

uma História centrada no relato dos acontecimentos políticos e militares, com especial

atenção nas relações internacionais entre os Estados, em oposição à intromissão a qualquer

dimensão do social ou econômica para a compreensão dos fatos históricos e as generalizações

e abstrações das ciências sociais. Em suma, uma História política, a serviço dos poderes

legitimados, que rechaçava a teoria e que tinha a narrativa como fio condutor.385

Os desdobramentos da evolução do Historismo resultaram em uma versão mutilada de

Ranke e Droyssen de que a História era uma mera reconstrução dos acontecimentos. Esta

versão se estendeu aos outros países europeus e foi responsável pela confusão entre

Historismo e História positivista. Os sociólogos positivistas buscavam a explicação histórica

em termos de generalizações e leis de desenvolvimento, acreditavam que a cientificidade da

sociologia era homóloga às disciplinas das ciências naturais, com uma preferência pela

quantificação e pelas explicações sociais estruturais. Esta versão perde totalmente o sentido

quando percebemos que os herdeiros de Ranke, aqueles que o compreenderam melhor,

tomaram a nascente sociologia, que então sofria forte influência da doutrina positivista de

Augusto Comte, como o grande adversário da História, pois, insistiam que as intenções e

objetivos humanos não podiam ser reduzidos a fórmulas abstratas. Assim, dado que a História

385 CASANOVA, J. La Historia social y los historiadores. Barcelona: Editorial Crítica, 1991. p. 10-15.

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só podia ser compreendida por meio do comportamento humano guiado por idéias

conscientes, havia certos setores da existência humana que estavam fora do raio de

investigação do historiador, como: as massas, as classes sociais e a cultura popular. Somente

aqueles que tomavam as decisões constituíam um assunto legítimo da História.386

Estes pressupostos dominaram o cenário acadêmico até o final da segunda guerra

mundial. Nesta época, contudo, as inovações historiográficas, mesmo que ainda não

dominantes, minavam este predomínio, pois, refletiam o impacto retardado de mudanças

fundamentais nas estruturas políticas, sociais e econômicas do século XX. O monopólio

político e social das elites tradicionais havia sido destruído por duas guerras e uma revolução,

que se estendeu por outros países. O domínio europeu no mundo se exauriu e as extensas

áreas antes consideradas fora da História alcançaram sua independência, subvertendo os

valores racistas dominantes. Outras disciplinas, além da História, começavam a reivindicar

espaço na investigação das forças que determinavam a estrutura do mundo social e seu

desenvolvimento, em especial, a economia, a sociologia e a psicologia. Mesmo no ambiente

acadêmico, um ambiente democrático começava a ser sentido com a ascensão de uma nova

geração de professores a cargos que antes eram ocupados por historiadores conservadores.

Assim, a vitalidade inicial da História social derivou de seu caráter opositor. Esta nova

História se erguia como uma tripla rebelião, ou melhor, uma rebelião dirigida contra a

História das elites, outra contra a história política e uma terceira contra a especialização da

História em uma disciplina distinta. A primeira rebelião, com o intuito de estender a História à

todas as esferas da atividade humana, era resultado da demanda pela sua democratização. A

segunda rebelião impregnou a História de um caráter negativo: a História que omite a política.

E a terceira rebelião, dirigida fundamentalmente contra a prática Historista, convidava os

historiadores a manter uma amizade com as outras ciências sociais.387 Com estes pressupostos

e com as transformações que o capitalismo e a industrialização haviam produzido, em

particular, as fortes distorções sociais, é compreensível que se produzisse uma reação em

favor de uma nova História.

A oposição à História política tradicional apresentava uma homogeneidade de

temática e do método da História por parte de seus defensores, mas, em comum com o

Historismo, permanecia a idéia de que a História era uma ciência orientada para uma

386 ibid. 387 ibid., p. 31-40.

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realidade objetiva que procedia de um modo metódico, além, da crença de que era possível

realizar seu estudo de forma científica.

Abordaremos as temáticas e tendências da História Social por dois caminhos: o

primeiro é buscando uma definição para o termo; o segundo é explorando seu

desenvolvimento em alguns países: Alemanha, França, Estados Unidos e Inglaterra. Mas

antes de seguirmos estes caminhos, é necessário fazer uma breve menção a uma forma

alternativa de escrever a História, que, fora da área de erudição especializada, no final do

século XIX, apresentava grande afinidade com estas novas tendências historiográficas: o

marxismo.

O desenvolvimento da industrialização e as profundas transformações do capitalismo

geraram intensos conflitos de classes. A teoria propagada por Marx, em meados do século

XIX, pretendia ser uma teoria geral da sociedade direcionada para a compreensão das

mudanças sociais resultantes do desenvolvimento capitalista e das revoluções políticas do

século XVIII. A esfera de análise de Marx e suas ambições continham fontes intelectuais

similares aos sistemas sociológicos de Comte e Spencer: as histórias da civilização, as teorias

do progresso e a nova política econômica. Por outro lado, Marx defendia uma concepção da

sociedade mais estrutural que orgânica, com um espaço mais amplo para a ação humana; uma

concepção menos determinista das fases de evolução social; e mecanismos dialéticos e

internos de mudança. Tratava-se de situar o modo de produção e a sociedade capitalistas em

um esquema teórico de desenvolvimento social. A História era concebida como um

movimento social, como história da sociedade que incluía todos os setores da atividade

humana. Esta perspectiva se constituiu na teoria social dominante da classe trabalhadora

organizada, e foi difundida principalmente nos sindicatos e partidos socialistas. Já no campo

acadêmico, sua difusão encontrou maior resistência, apesar do forte impacto sob as ciências

sociais, especialmente na Economia e Sociologia. Antes da primeira guerra mundial, o

marxismo já estava consolidado como uma teoria social no movimento socialista e em alguns

círculos acadêmicos.388

A partir dos anos sessenta e setenta, a História Social consolidou-se nas universidades

como uma tendência dominante. A definição de História Social, contudo, é ampla e ambígua.

Todos os esforços de definição de seu objeto e vocabulário oscilam entre definições mais

amplas – “a história dos homens que vivem em sociedade” – e definições mais restritas que a

reduzem as descrições de grupos sociais. No primeiro caso, toda História é História Social, 388 ibid., p. 18-20.

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uma idéia que remete a idéia de totalidade. No segundo, a História Social é vista como um

campo de estudo parcial, comparável a outros âmbitos da História como o econômico,

demográfico, político ou militar. Uma primeira dificuldade, nos dois casos, é a própria

definição de sociedade e como ela pode ser abordada historicamente. Uma abordagem

concebe a sociedade como uma coleção de indivíduos distintos e fragmentados, com uma

relação mais ou menos casual entre estes indivíduos. A “sociedade”, aqui, é um termo

instrumental e não se refere a um termo real que exista independentemente das pessoas que a

constituem. Há uma forte preocupação com as ações individuais. No extremo oposto, uma

outra abordagem apreende a sociedade por meio de estruturas, conceito utilizado pelas

ciências sociais para referir-se a toda sociedade ou parte dela e que existe independentemente

dos indivíduos. As teorias estruturalistas se dividem em dois grandes grupos: a holista, que

concebe a sociedade como uma entidade histórica estreitamente integrada, com existência,

caráter, necessidades, princípios e poderes de ação próprios. Suas análises partem de

instituições de grande escala e de suas relações, e não do comportamento de indivíduos. Esta

visão contrasta com historiadores preocupados com a inter-relação no tempo entre estruturas

da sociedade e a ação coletiva e individual. A sociedade não está simplesmente constituída de

indivíduos, mas sim de uma organização, propriedades e poderes próprios, que surgem das

ações coletivas, e das motivações e características de muitos indivíduos através do tempo.

Aqui, o objetivo é atingir um meio termo entre as versões extremas do estruturalismo e do

individualismo, com o fito de evitar tanto a idéia de que a estrutura determina as

características e ações dos indivíduos como a de que são os indivíduos os que criam

independentemente seu mundo.389

Esta última perspectiva remete a um outro problema: como explicar as causas e os

processos particulares das estruturas sociais. Como buscar as causas dos fenômenos. Segundo

Casanova, se a sociedade pode ser conceitualizada de diversas formas, a explicação causal

também dependerá da teoria que guie a prática investigativa do historiador. A solução gera,

também, controvérsias, pois, enquanto alguns historiadores recorrem às diversas sugestões

teóricas das ciências sociais, outros, de forma reativa, preconizam a busca de uma teoria

própria da História. Tudo isso depõe a favor de uma História Social plural e diversa. A

ausência de uma única teoria, de um único paradigma, ou de um único aparato conceitual para

tratar cientificamente os fenômenos sociais, ampliam o conhecimento histórico e legitimam

novas áreas de investigação. A tendência a um retorno do empirismo e a um ecletismo teórico

389 ibid., p. 36-46.

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deve ser substituída por um entendimento mínimo do vocabulário e conceitualização teórica

indicados para explicar o real significado dos fatos selecionados. Dessa forma, diferente de

uma História total, a História Social constitui-se em uma dimensão presente em qualquer

forma de abordar o passado.390

A relação com as outras ciências sociais é outro elemento constitutivo da História

Social. Em oposição ao Historismo, alérgico a teorizações, os historiadores sociais

estabeleceram desde o início de sua trajetória um intenso diálogo com as outras ciências

sociais. O problema é que a trajetória e a disposição dos cientistas sociais nem sempre

estiveram afinados com a dos historiadores.

O objeto das nascentes ciências sociais modernas, e em especial da sociologia, foi a

compreensão das origens, natureza e conseqüência do capitalismo e da industrialização na

Europa. Este foi o tema dos fundadores da sociologia moderna: K. Marx, Aléxis de

Tocqueville, E. Durkheim e M. Weber. Todos estes autores combinaram um interesse pela

construção histórica acerca da estrutura social com uma compreensão da história da

sociedade. Apesar de não operarem da mesma forma esta combinação, nenhum deles elaborou

abstrações teóricas, conceitualizações e uma filosofia da evolução universal a margem da

História. Desde o século XIX, contudo, o conteúdo histórico da Sociologia foi perdendo

espaço para uma “ciência natural da sociedade”, como pregava Augusto Comte, preocupada

com o estudo do presente e com a pouca importância atribuída à História. A

institucionalização acadêmica da Sociologia, principalmente nos EUA, veio acompanhada de

um rompimento com a tradição histórica; da perspectiva evolucionista da história; um

fortalecimento do anti-historicista do “empirismo abstrato” e da “grande teoria” representada

por Talcott Parsons; e do funcionalismo estrutural.

Foram os historiadores dos Annales que iniciaram o diálogo com as modernas ciências

sociais, reagindo contra a história política do Historismo. Nos anos cinqüenta e sessenta,

com a segunda geração dos Annales, esta tendência foi consolidada, paradoxalmente em um

momento em que imperava na Sociologia, e em alguns setores do marxismo, as tendências

estruturalistas e antihistoricistas. Apesar deste predomínio, alguns sociólogos procuraram

análises histórico-comparadas da industrialização e das revoluções, desiludidos com os

modelos de modernização e desenvolvimento que não explicavam as mudanças sociais.391

390 ibid., p. 46-48. 391 ibid., p. 51-53.

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A História científico-social, em seu apogeu, caracterizava-se pela formulação de

problemas, por sua precisão empírica, pelo uso de teorias, modelos e tipos ideais, por seu

interesse em estudos interdisciplinares e comparativos e pela orientação de seus pesquisadores

para a compreensão de sociedades inteiras. O que subjazia essa “fome” por conceitos e

hipóteses era a idéia de que a História carecia de um corpo teórico próprio e de que na

Sociologia poderia se buscar seu status científico. Tal perspectiva apresentava de imediato

dois questionamentos: a simples incorporação destes conceitos e teorias parecia ser a resposta

à herança hermenêutica, voltada para os grandes personagens e anti-teórica, porém, não se

questionava a neutralidade de tais conceitos, modelos e teorias. Por outro lado, como resolver

o problema da mudança social em um enfoque sociológico-estrutural? Como passar de uma

estrutura a outra? Como descobrir a gênese de uma estrutura? E como explicar a evolução da

humanidade desde as comunidades pré-históricas até às industrializadas?

Tal preocupação nasce nas ciências sociais a partir das conseqüências sociais da

industrialização sobre as sociedades européias e da ausência da aparente evolução social nas

denominadas sociedades “primitivas”. Para dar conta de tal tarefa surgiram dois grandes

modelos para explicar a mudança social: as teorias do conflito e as teorias evolucionistas. A

primeira, cujo expoente mais representativo é Karl Marx, tem como dado básico a localização

da mudança social na estrutura da sociedade e a convicção de que esta tensão estrutural

resulta em um conflito de classes que é a força motora da mudança social. Os historiadores

que seguiram esta linha, principalmente, Luckás, Korsh e Gramsci, nos anos vinte,

rechaçaram a escrita de uma história puramente teórica, e mantiveram um lugar para a relativa

autonomia da evidência empírica, a variabilidade da experiência histórica e o poder

transformador da ação coletiva e individual que conduz a conseqüências não deliberadas.

Historiadores sociais marxistas britânicos, franceses e norte-americanos, no início dos anos

cinqüenta, discutiram temas - transação do feudalismo ao capitalismo, revoluções e formação

histórica da classe trabalhadora – a partir de investigações históricas concretas e não de

especulações filosóficas.392

As teorias evolucionistas alcançaram maior eco sobre os trabalhos dos historiadores

sociais – principalmente dos franceses – que buscavam na sociologia um refúgio teórico. Os

evolucionistas clássicos, representados por Comte, Spencer e Durkheim, defendiam a

concepção de que o “desenvolvimento histórico” das sociedades humanas era constituído por

etapas básicas que progrediam de uma organização simples e primitiva a um modelo de

392 ibid., p. 58-60.

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crescente complexidade e perfeição. As mudanças da estrutura social, então, eram inevitáveis,

resultados de forças internas e inerentes de toda sociedade, no entanto, descritas de forma

demasiadamente unilateral, com poucas evidências empíricas, funcionando mais como uma

“lei geral da história”. Uma versão mais recente destas teorias é o funcionalismo, muito

presente nos EUA, em grande parte devido ao macarthismo e a perseguição aos comunistas. O

funcionalismo sustenta a hipótese de que toda a mudança se deve a forças exógenas. A

mudança social é uma adaptação de um “sistema social” a seu entorno por meio de um

processo de diferenciação mental e de crescente complexidade estrutural. É, na verdade, uma

teoria do equilíbrio, na qual a mudança social é um movimento de um estado de equilíbrio a

outro. Desta forma, os distintos componentes de um “sistema social” são, em princípio,

compatíveis, e sem a interferência externas, não há mudança de posição de nenhum

componente. As possíveis tensões e conflitos são desajustes que formam parte do processo,

que a sociedade elimina por meio de mecanismos reintegrativos.393

Muitas das observações traçadas até aqui são também pertinentes para a ralação entre

Antropologia e História, pois, a Antropologia, em seu nascedouro, também se apresentou

como uma ciência social hostil à análise histórica. No final dos anos cinqüenta, enquanto a

História seguia em sua progressão para a captação da “totalidade” auxiliada pelas outras

ciências sociais, a Antropologia era dominada por três paradigmas hostis à investigação

histórica: o funcionalismo estrutural britânico (descendente de Radicliffe Brown e Bronislaw

Malinowski); a antropologia cultural e psico-cultural norte-americana (herdeira de Margaret

Mead e Ruth Benedict) e a antropologia evolucionista norte-americana (de forte afiliação

arqueológica, formada em torno de Leslie White e Julian Steward). Para estes antropólogos, a

Antropologia social era uma ciência próxima das ciências naturais pela sua tendência a

generalização, enquanto a História era incluída entre as ciências “particulares”. A ruptura do

diálogo entre as duas disciplinas levou a Antropologia a um “empirismo abstrato” e “grandes

teorias” que caracterizavam a Sociologia nesta época. Predominou entre os antropólogos a

concepção de que antes da dominação européia, todas as sociedades “primitivas” eram

estáticas. Conseqüentemente, estes antropólogos acabaram reduzindo o problema da História

à dualidade primitivo-moderno. Mesmo o estruturalismo de Claude Levi-Strauss também

subestimava a História ao negar qualquer impacto significativo do acontecimento na estrutura.

Esta tendência, entretanto, não foi geral. No final dos anos setenta, a chamada escola

antropológica de “economia política”, centrava seus interesses nos sistemas econômico-

393 ibid., p. 61-62.

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políticos de “grande escala” e a análise dos efeitos da penetração do capitalismo nas

sociedades agrárias. Para estes autores, os fatores fundamentais da mudança são o Estado e o

sistema capitalista mundial. Não obstante, todos os antropólogos destas correntes

antropológicas, além dos marxistas estruturais, acreditam que a ação humana e o processo

histórico são determinados pela mão oculta da estrutura ou por forças do capitalismo. Neste

sentido, a sociedade (ou a cultura) é uma realidade objetiva com dinâmica própria, separada

da ação humana.394

Nos finais dos anos setenta, uma intensa fragmentação teórica tomou conta da

Antropologia. Não havia um conjunto de termos no qual todos os profissionais podiam

dirigir-se, tanto quanto uma linguagem comum. Muitos dos métodos e teorias questionados no

seio da disciplina foram adotados por historiadores sociais, que as utilizavam sem um real

conhecimento da teoria utilizada. O resultado disso foi a adoção acrítica e indiscriminada de

métodos e teorias que não serviam para explicar a evolução, funcionamento e transformação

das sociedades humanas, ocasionando falhas na elaboração de premissas próprias e na

reflexão sobre os problemas históricos. Esta atitude fortaleceu o discurso de que a História

tinha que viver de empréstimos teóricos, atribuindo um caráter passivo a História, em vez, de

uma perspectiva em que estas teorias pudessem servir para localizar novas questões e iluminar

os problemas históricos.

Esta evolução da História Social não foi igual em alguns países onde ela fincou raízes.

Na Alemanha, berço do Historismo, Karl Lamprecht foi o primeiro a questionar dois

princípios da ciência histórica estabelecida pelo Historismo: o papel central do Estado na

exposição histórica e a narração direcionada para grandes personagens. Em vez do estudo dos

fatos, sem nenhum método científico para a apreensão de inter-relações mais amplas,

Lamprecht pregava que a História, como qualquer ciência, deveria promover a aproximação

ao objeto de sua investigação com questionamentos teóricos e princípios metodológicos. A

“nova ciência histórica” deveria equiparar a História às ciências empíricas sistemáticas.

Também na Alemanha, o primeiro impulso para uma História que se ocupasse dos problemas

desencadeados pela industrialização foi, como já vimos, a Nova Escola de Economia, que

ampliou o objeto da História para além da política e da cultura espiritual, a fim de englobar a

sociedade e a economia, mesmo adotando dos Historistas elementos substanciais do conceito

de ciência. Para M. Weber e Otto Hintze, a distância entre a História e a Sociologia não era

tão grande como defendiam os historistas. Estes autores, em oposição a Ranke, Droysen,

394 ibid., p. 64-67.

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Hegel e Dilthey, romperam com o núcleo idealista do Historismo ao não contemplar as

instituições históricas, sobretudo o Estado, como “poderes éticos”, como objetivações da

vida.395 Contudo, mesmo nos anos dourados da História Scocial, o Historismo nunca foi

totalmente abandonado pelos historiadores alemães.

A França é o locus privilegiado das origens da História Social. Desde o início do

século, Henri Berr, com a Revue de synthèse historique, incentivou os laços com outras

ciências sociais e o ataque à História política. Os dois fundadores dos Annales, Lucien Febvre

e Marc Bloch, seguiram atentamente a historiografia social alemã no final do século XIX,

tendo Bloch inclusive estudado em Leipzig e Berlim nos anos de 1908 e 1909. A revista

Annales d’histoire economique et sociale, fundada em 1929, tinha como finalidade inicial

oferecer um foro às diversas correntes e aos novos enfoques historiográficos. Uma reação

frente a historiografia existente e uma reconstrução da História sobre bases científicas a partir

de conceitos tomados de empréstimo a outras ciências sociais são as características iniciais

dos primeiros números. Em suas origens, esse protesto dirigia-se contra o trio formado pela

História política, a História narrativa e a História episódica (evenementielle). Bloch e Febvre

queriam substituir este trio por uma “História profunda”, uma História econômica, social e

mental que estudasse a inter-relação do indivíduo com a sociedade.396

O conceito de ciência e a prática dos historiadores dos Annales são complexos. Por um

lado, compartilham com o Historismo, as possibilidades do método e do conhecimento

científicos, por outro relativizam estas idéias. Bloch criticou os historiadores “positivistas”,

cujo principal representante era Charles Seignobos, que influenciados pela filosofia de

Augusto Comte, elaboraram um pensamento específico no domínio da História marcado pela

procura de fundamentos científicos à démarche histórica, contudo, empobrecido em relação

ao historismo alemão, por limitar a História à estrita observação dos fatos.

As gerações que vieram logo antes da nossa, nas últimas décadas do século XIX e até os primeiros anos do XX, viveram como alucinadas por uma imagem muito rígida, uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências do mundo físico. Ao estender ao conjunto das aquisições do espírito esse prestigioso esquema, parecia-lhes então não existir conhecimento autêntico que não devesse desembocar em demonstrações incontinenti irrefutáveis, em certezas formuladas sob o aspecto de leis imperiosamente universais. Esta era uma opinião praticamente unânime.397

395 IGGERS,G. La ciencia historica en el siglo XX. Una vision panorámica y crítica del debate

internacional. Barcelona: editorial Labor, 1995. p. 33-34. 396 CASANOVA. J. op. cit., p. 24-25. 397 BLOCH, M. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2002. p. 47.

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Esta crítica, contudo, não impediu Bloch de acreditar que a História era uma ciência,

diferente das ciências naturais, mas capaz de suprir as condições de uma verdadeira ciência:

estabelecer as ligações explicativas entre os fenômenos por meio de uma classificação

racional e uma progressiva inteligibilidade dos fatos. A História pode não definir leis, devido

ao acaso, mas só é válida se for penetrada de razão e inteligibilidade, “o que situa sua

cientificidade não do lado da natureza, de seu objeto, mas da démarche e do método do

historiador.”398 Febvre, mesmo não definindo a História como uma ciência, a definia como

um estudo cientificamente conduzido, das diversas atividades e das diversas criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades extremamente variadas e contudo comparáveis umas as outras (é o postulado da sociologia), com as quais encheram a superfície da terra e a sucessão das épocas.399

O termo “estudo cientificamente conduzido” implica duas operações, as mesmas que

se encontram na base de qualquer trabalho científico moderno: “pôr problemas e formular

hipóteses”. Isto tudo significa rejeitar a idéia de que a História é um simples registro dos

fatos, ou de que estes fatos são dotados de uma existência perfeitamente definida, irredutível.

Os fatos históricos, mesmo os mais humildes, é o historiador que os chama à vida. Sabemos que os fatos, esses fatos diante dos quais nos intimam tantas vezes a inclinar-nos devotadamente, são outras tantas abstrações – e que, para os determinar, é preciso recorrer ao testemunho mais diversos, e por vezes mais contraditórios – entre os quais necessariamente escolhemos.400

Para Bloch, o historiador não consegue constatar os fatos que ele estuda, pois o

conhecimento do passado é indireto e feito por meio de vestígios. Este passado é um dado que

não se modifica, mas seu conhecimento está incessantemente se modificando. “Sabemos

melhor interrogar as línguas acerca dos costumes, as ferramentas acerca do artesão.

Aprendemos, sobretudo a mergulhar mais profundamente na análise dos fatos sociais”401, pois

os textos não falam senão quando sabemos interrogá-los. Naturalmente, “é necessário que

essa escolha ponderada de perguntas seja extremamente flexível, suscetível de agregar, no

caminho, uma multiplicidade de novos tópicos, e aberta a todas as surpresas.”402 Contra o

398 LE GOFF, J. Prefácio. In: BLOCH, M. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2002. p.

20. 399 FEBVRE, L. Combates pela História. Lisboa: Editorial presença. 1985. 400 ibid., p. 32. 401 BLOCH, M. op. cit., p. 75. 402 ibid., p. 79.

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domínio do documento escrito, Bloch afirmava a infinidade e a diversidade do testemunho

histórico, que para ele era a expressão de lembranças.

À medida que a história foi levada a fazer dos testemunhos involuntários um uso cada vez mais freqüente, ela deixou de se limitar a ponderar as afirmações [explícitas] dos documentos. Foi-lhe necessário também extorquir as informações que eles não tencionavam fornecer.403

Além disso, reafirmou a procura da veracidade dos documentos como fundamental

na pesquisa, sendo a crítica, uma arte racional e uma prática metódica do espírito, a maior

prova de veracidade.

Ora, se nossa imagem do universo pôde hoje, ser limpa de tantos fictícios prodígios – porém confirmados, parece, pela concordância das gerações -, certamente devemos isso antes de tudo à noção, lentamente deduzida, de uma ordem natural comandada por leis imutáveis. Mas essa própria noção não conseguiu se estabelecer tão solidamente, as observações que pareciam contradize-la só puderam ser eliminadas graças ao paciente trabalho de uma experiência crítica empreendida pelo próprio homem enquanto testemunha. Somos agora capazes ao mesmo tempo de desvendar e de explicar as imperfeições do testemunho. Adquirimos o direito de não acreditar sempre, porque sabemos, melhor do que pelo passado, quando e por que aquilo não deve ser digno de crédito. E foi assim que as ciências conseguiram rejeitar o peso morto de muitos problemas.404

Em relação a Ranke, Bloch observava que compreender não pode significar

neutralidade, nada tem a ver com passividade, mas sim com análise e abstração. Nenhuma

ciência seria capaz de prescindir da abstração, tampouco da imaginação. A História não é

exceção. Seu objeto, o homem no tempo, contudo, dificulta a compartimentalização das

ciências naturais. Em História o conhecimento dos fragmentos, sucessivamente estudados,

cada um por si, jamais propiciará o conhecimento do todo; não propiciará sequer o dos

próprios fragmentos. A idéia de totalidade está presente na forma de abordagem da sociedade

e do tempo, que não podem se seccionados.

Reconhecemos que em uma sociedade, seja qual for, tudo se liga e controla mutuamente: a estrutura política e social, a economia, as crenças, tanto as formas mais elementares como as mais sutis da mentalidade. O tempo humano, em resumo, permanecerá sempre rebelde tanto à implacável uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do

403 ibid. , p. 95. 404 ibid., p. 109.

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relógio. Faltam-lhe medidas adequadas à variabilidade de seu ritmo e que, como limites, aceitem freqüentemente, porque a realidade assim o quer, conhecer apenas zonas marginais.405

Em conformidade com o Historismo, o estatuto científico próprio para a História

parece ser uma preocupação dos fundadores dos Annales. Voltando-se contra os

“positivistas”, que só acreditavam na cientificidade da História a partir das ciências naturais,

ou contra aqueles que não acreditavam que a História poderia ser uma ciência, estes autores

procuraram uma especificidade para a ciência histórica, por meio de princípios racionais. A

defesa de modelos e hipóteses é, contudo, uma defesa de princípios da ciência moderna,

tributária das ciências naturais. O alinhamento com as outras ciências sociais, contribuição

essencial dos Annales, os distanciava do Historismo, que defendia de uma distinção da

História em relação às outras ciências humanas. Nos Annales há, portanto, elementos da

ciência moderna – hipótese e modelos - e a ambição de Dilthey e Droysen, que procuraram

dar a História um estatuto científico próprio. Mas, enquanto Dilthey defendia a interpretação

em detrimento da explicação, Bloch afirma que interpretar é analisar. Estamos diante de uma

fusão de elementos legitimadores das ciências naturais - explicação e hipóteses - com a

afirmação de métodos próprios das ciências do espírito.

Todas estas questões que envolviam a natureza do conhecimento histórico adquiriram

relevância na França e nos Estados Unidos. Neste último, floresceu a idéia de que a História

era uma ciência social e devia contribuir para o descobrimento de leis do desenvolvimento

humano. O conceito de História científica refletia essa tendência de unir a História às ciências

sociais. Contudo, muitos estudantes americanos foram para Alemanha a fim de prosseguir o

doutorado, porque antes de 1880 eles não tinham muita escolha. O resultado disso foi a fusão

do conceito de individualidade de cada período histórico de Ranke com as leis de causalidade

de Lamprecht, algo totalmente inimaginável na Europa. Um destes estudantes James Harvey

Robinson que em 1912 proclamou em um manifesto os princípios da Nova História (New

History). Suas principais idéias conclamavam os historiadores a 1. ampliar os termos de sua

indagação e afastar-se de uma história política limitada; 2. buscar uma abordagem genética

para seus problemas; 3. aplicar os instrumentos desenvolvidos dentro das várias ciências

sociais na indagação histórica e ampliar as fronteiras com a Sociologia, Psicologia, Economia

405 ibid., p. 152-153.

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e assim por diante; finalmente, 4. fazer de seu assunto um instrumento para o progresso

social.406

A discussão metodológica iniciada nos Estados Unidos, no final do século, resultava

da convicção de que a ciência histórica tradicional nas universidades já não correspondia às

exigências científicas e sociais de uma moderna sociedade industrial democrática. Os “novos

historiadores” insistiam na ruptura com o passado europeu pré-moderno. Para os “novos

historiadores”, Charles Beard, James Robinson, Vernon Parrington e Carl Becker, a

associação entre História e ciências sociais é distendida e eclética. Estas últimas devem

oferecer conhecimentos e possíveis modelos de explicação; porém, não se pretende converter

a ciência histórica em uma ciência social sistemática.407

Após a segunda guerra mundial estabelece-se um novo consenso nacional nos Estados

Unidos. Diferente da Europa, a América é exaltada como uma sociedade sem conflitos de

classe e os conflitos ideológicos tornam-se insignificantes no desenvolvimento social

alcançado. Boa parte dos historiadores está afinada com este consenso. O caráter altamente

racionalizado da moderna sociedade industrial capitalista é acompanhado por uma concepção

racionalizada da ciência. Na História estes métodos traduzem-se na introdução de métodos

quantitativos, que se espalham também na Inglaterra, França e outros países. Desde a década

de cinqüenta, nos Estados Unidos e em outros países se trabalha cada vez mais com a recém

desenvolvida tecnologia de ordenadores e com métodos quantitativos para analisar processos

econômicos. Nos anos setenta, a investigação histórica baseada na estrita quantificação

desempenhou importante papel, partindo da concepção de que a ciência histórica, como todas

as ciências, só poderia obter sua cientificidade, se suas afirmações pudessem adotar uma

forma matemática. Era “naturalização” das ciências históricas no seu grau mais agudo.

Na Grã-Bretanha, com um sistema de pactos coletivos que desmontaram a

possibilidade de uma revolução social, predominou a interpretação Whig (liberal) da História,

“uma ciência que devia averiguar os fatos, proporcionar lições morais e ratificar a idéia de

progresso, entendido como a manifestação da razão, do conhecimento e do avanço

tecnológico da industrialização.”408 Os fatos, em tal interpretação, resultavam das ações dos

indivíduos que os “produziam” através dos sistemas institucionais. Estas realidades empíricas

verificáveis deveriam ser julgadas pelo historiador. Por outro lado, havia realidades

406 BENTLEY, M. Modern Historiography . An Introduction. Londres e Nova York. Routledge, 2003. passim. 407 IGGERS, G. op. cit., p. 44. 408 CASANOVA, J. op. cit., p. 82.

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imperceptíveis para o historiador como as classes sociais, os modos de produção ou algumas

atitudes culturais, não prováveis empiricamente, por meio de documentos, nem passíveis de

proporcionar critérios retos de declarações morais. Em suma, a História era a interação entre

os grandes personagens e as instituições que eles criavam, modificavam ou combatiam. Esta

concepção da História, com uma forte tradição empírica, foi um dos fatores que retardaram o

desenvolvimento da História Social no mundo acadêmico da Grã-Bretanha.

A disciplina histórica ocupou um lugar proeminente na cultura do imperialismo

britânico, proporcionando uma exposição racional do capitalismo britânico e uma justificativa

triunfante do imperialismo antes de 1914. O fim da era vitoriana, contudo, deixou a disciplina

histórica sem um núcleo aglutinante. À História política e constitucional, se juntaram diversas

Histórias com diferentes qualificativos (administrativa, econômica, eclesiástica, militar, local

etc). Nos anos trinta aparecem as primeiras formulações embrionárias da História Social: a

História econômica e do movimento trabalhista. Seus logros, no entanto, não abalaram os

princípios da historiografia dominante. A História econômica consagrou o “econômico” como

um objeto autônomo de estudo e estabeleceu como método preferido de análise o “empirismo

acrítico”. Os métodos de trabalho dos historiadores do movimento trabalhista constituíram-se

em uma espécie de variante da teoria Whig da História, relatando as ações do sindicalismo e

das classes trabalhadoras da mesma forma que seus antecessores enfocavam a história dos

reis, batalhas e tratados.409

Frente a essas tradições de empirismo e individualismo metodológico se consolidou

nos anos sessenta uma História Social de diferentes direções. Uma direção, a marxista, tem

sua origem na versão liberal radical da “História popular” decimônica e na obra de

democratas radicais do primeiro terço do século. Os mais famosos historiadores marxistas

começaram seus estudos universitários nos anos trinta, mas suas grandes obras só foram

publicadas nos anos sessenta – com exceção do trabalho de Maurice Dobb, Studies in the

Development of Capitalism (1946) - no momento em que o rápido desenvolvimento do ensino

superior possibilitou a investigação de novos temas. Outra direção foi seguida pelos

historiadores que seguiram os Annales e um outro grupo, também sob influência dos Annales,

recorreu à Sociologia e depois à Antropologia.

A relação entre História e a Sociologia na Grã-Bretanha não foge aos padrões gerais

estabelecidos nas linhas anteriores. No momento em que os historiadores, a partir dos anos

sessenta, iniciaram um processo de aproximação com a Sociologia, particularmente por seus 409 ibid., p. 85-88.

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métodos e interesses, esta estava ainda sob a influência de três tradições científicas

profundamente anti-históricas: a Antropologia Social britânica, a teoria social européia e a

Sociologia empírica norte-americana. Mesmo a Sociologia marxista, sob a influência do

estruturalismo althusseriano, mostrou pouco interesse pela investigação histórica. Só em

meados dos anos setenta, há uma renovação na sociologia britânica, com uma maior

preocupação com os métodos da investigação histórica, aferidos nas publicações do periódico

British Journal of Sociology, com artigos de claro conteúdo histórico de P. Lasllet, E.P.

Thompson, G. Roth, entre outros. Paradoxalmente, neste período, muitos historiadores que

iniciaram este diálogo, começaram a se afastar desta perspectiva e retomaram velhas tradições

narrativas e políticas, buscando novas vias de antecipação frente à sociologia.410

Quanto a Antropologia, a história não muda muito. A Antropologia, na primeira

metade do século XX, tendo como expoente máximo Radicliffe-Brown, esteve mais próxima

dos parÂmetros teóricos das ciências naturais. Foi só no final dos anos cinqüenta que

assistimos uma aproximação entre a História e a Antropologia, com Evans-Pritchard, sucessor

de Radicliffe-Brown, em Oxford, pelo lado da Antropologia, e por outro lado, vários

historiadores começam a se aventurar nos “mares” da Antropologia, com mais ou menos

rigor.411

A fronteira entre a História e as ciências sociais ficaram fechadas em grande parte

devido à resistência da tradição liberal individualista e empírica, da insensibilidade dos

sociólogos em relação à investigação histórica e a inclinação anti-historicista da Antropologia.

Não obstante, a ausência de uma ruptura teórica com os supostos métodos da interpretação

Whig da História: gosto pelo empirismo, averiguação documental dos fatos, desprezo pela

teoria e pela construção de totalidades históricas subsistiram durante a transição da História

liberal-individual à História Social.412

5.2 MOSES FINLEY E A HISTÓRIA SOCIAL.

O norte-americano Moses I. Finley (1912-1986) escreveu boa parte de sua obra

durante o desenvolvimento e consolidação da História Social. Finley nasceu e viveu nos

Estados Unidos até 1954, país onde, como já vimos, a História Social encontrou campo fértil

410 ibid., p. 88-91. 411 ibid., p. 92-93. 412 ibid., p. 94-95.

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para o seu desenvolvimento, indo depois morar e lecionar na Inglaterra, após sua demissão da

Universidade de Rutgers. Finley foi um militante ardoroso de muitos dos princípios da

História Social, combatendo a História “tradicional” nas resenhas, artigos, livros, entrevistas e

uma série de palestras na Europa e Estados Unidos, tanto no campo mais geral dos estudos

históricos, quanto no campo especifico da Antigüidade.

5.2.1 A Crítica ao Historismo e a Discussão das Fontes.

Em 1985, em um livro intitulado Ancient History, traduzido para o português em

1994, intitulado História Antiga, Finley escreveu um capítulo sobre Ranke e Tucídides,

“Como realmente aconteceu”, no qual discute a importância do trabalho de Ranke e Tucídides

para a “História científica”. O autor passa, então, a elencar algumas das características da

historiografia rankeana: não julgar, mas apenas contar “como realmente aconteceu”; esforço

pela auto-anulação ao apresentar os fatos; e o estudo crítico das fontes autênticas. A primeira

contestação que Finley levanta é a crença na auto-anulação de Ranke e Tucídides como fator

primordial para uma história “objetiva” ou “científica”. Esta objetividade de Ranke em nada

se confunde com os cânones das ciências naturais, fato que Finley tratou logo de chamar

atenção, criticando a interpretação deturpada de muitos historiadores que confundem a

“objetividade” de Ranke com um positivismo vulgar. Em consonância com a crítica dos

historiadores sociais à História “tradicional”, Finley afirma que os fatos não são coisas brutas

que jazem “ali” para serem descobertos pelo historiador. Nem o próprio Ranke acreditava

nisso, pois o termo Wie es eigentlich gewesen (o que realmente aconteceu) significava o

retrato preciso das relações. É a Humboldt, que Finley atribui o pioneirismo deste papel de

passividade do historiador, fundado no pressuposto da descrição pura e completa. Humboldt é

classificado como intuicionista, por defender a intuição, a inferência e a conjectura para tornar

visível um acontecimento. A todo acontecimento deveria ser adicionado uma parte invisível

de todo fato. Eduard Meyer foi também incluído neste grupo. Meyer defendia a intuição do

historiador, não o diferenciando do artista, e afirmava que a objetividade residia naquilo que o

historiador considerava verdadeiro. Diferente desta postura, Droysen, apesar de ter dito que

aprendera com Humboldt o caminho da compreensão da prática histórica, defendia a

interrogação dos fatos para que eles nos dessem uma resposta e métodos próprios para

controlar a intuição e outras espécies de subjetivismo. Finley não acreditava na objetividade

rankeana da História amparada na auto-anulação do historiador e na fé dos documentos

oficiais - mesmo acreditando, da mesma forma que Ranke, que a crítica das fontes é um

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elemento essencial da pesquisa histórica - pois qualquer narrativa histórica traz consigo um

juízo de valor. “A objetividade na História é pura ilusão”, disse ele, sem cair no intuicionismo

idealista-romântico, que ele combateu por meio da defesa de modelos não matemáticos.413

Finley corroborava estas idéias no mesmo livro, nos capítulos mais específicos sobre a

Antiguidade, mostrando-nos o quanto a prática historiográfica moderna acerca da Antiguidade

continuava retrógrada. Não aceitava o fato de historiadores modernos dedicarem pouca

atenção à distinção entre fontes primárias e secundárias e aceitarem tudo o que era escrito em

latim ou grego como verdadeiro e contemporâneo aos fatos narrados. É subestimada, pelos

historiadores modernos, a capacidade dos antigos em inventar, pois aqueles não toleravam

lacunas em suas narrativas. O próprio Tucídides, um dos ícones da História “objetiva”,

bastião de honestidade e veracidade, afirmava que seu método se apegava ao sentido geral das

palavras que eram realmente pronunciadas, mas, também, em fazer com que os oradores

dissessem aquilo que, em sua opinião, era pedido por cada situação. Tudo isso, porque o

estudo e a escrita da História feitos pelos gregos e romanos eram bem diferentes dos padrões

da História atual. Daí a dificuldade de comparar Ranke à Tucídides, tomando como

parâmetros princípios da historiografia moderna.

Finley promove uma discussão dos documentos escritos, lembrando que, no mundo

greco-romano, os documentos estão dispostos de forma aleatória tanto em termos de tempo

quanto de espaço, por mais numerosos que pareçam ser. Além de escassos, falta-lhes um

contexto significativo. A falta de fontes primárias bloqueia a análise das instituições, devido à

natureza aleatória do material de certos períodos, resultando em períodos bem documentados

e outros não. A primeira pergunta a ser formulada, o que comumente não é feito, em relação a

qualquer documento refere-se aos motivos e propósitos de sua produção, posto que, estes não

são evidentes por si mesmos. Na Antiguidade o objetivo de todos os documentos “era

comunicar algum tipo de informação (ou desinformação) ou registrar alguma coisa, mas não

fornecer dados para a definição de políticas ou para uma análise passada, presente ou

futura.”414 Contudo, no caso das fontes ditas “literárias”, o que se conservou não tem nada de

aleatório, mas, sim, de deliberado: as escolhas dos monges da alta Idade Média sobre o que

deveriam copiar (e portanto) preservar o que não achavam que deviam copiar (e, portanto, se

perdeu).

413 FINLEY, M. Como realmente aconteceu. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São

Paulo: Martins Fontes, 1994. passim. 414 FINLEY, M. Os documentos. In: ______________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo:

Martins Fontes, 1994. p. 44.

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Quando se começou a escrever a História do mundo greco-romano, os homens viram-

se as voltas com grandes lacunas na informação sobre o passado, ou com grande quantidade

de “dados” que incluíam ficção ou semificção misturados aos fatos. Modernos historiadores

procuraram resgatar, para preencher tais lacunas, a tradição oral, atribuindo-lhe um rótulo

positivo. Entretanto, a tradição oral implica em perdas irrecuperáveis de dados ao longo do

tempo, que tornam absolutamente impossível o controle de qualquer coisa que tenha sido

transmitida quando não se dispõe de nada escrito que possa confirmar estes dados. Não

obstante, os objetivos da tradição oral não eram históricos.

A tradição oral, portanto, não é um instrumento com que o historiador possa contar ‘na natureza das coisas’. Ele sempre deve perguntar Cui bono? Em minha opinião, com respeito ao período pós-heróico próprio do século V, a sobrevivência do tipo de tradição que venho discutindo deve ser amplamente creditada às famílias nobres das várias comunidades, inclusive às famílias reais, onde elas existiam, e, o que equivale à mesma coisa numa variação especial, aos sacerdotes de santuários como Delfos, Eleusis e Delos. Somente eles, pelo menos na maioria das circunstâncias, tinham tanto o interesse de “lembrar” os eventos e incidentes que lhes convinham (por alguma razão) quanto a posição social para sugerir essa lembrança, quer verdadeira quer falsa, de modo a convertê-la numa tradição pública. É desnecessário dizer que nem o interesse nem o processo eram históricos – talvez eu devesse dizer historiográfico – em qualquer sentido significativo. O objetivo era imediato e prático, fosse ele completamente consciente ou não, e visava ao aumento de prestígio, à garantia do poder, ou a justificação de uma instituição.415

Esta citação demonstra as dificuldades de se trabalhar com a perspectiva

historiográfica rankeana para o mundo antigo, ou melhor, aplicar o pensamento histórico

moderno a um relato mítico, a-histórico. Finley acreditava ser impossível escrever uma

história da Grécia primitiva devido à ausência de documentos que registre eventos ou relate

quem fez as coisas, quais coisas e por que.

A ausência de documentos escritos levou Finley a discutir a importância do artefato

arqueológico no mundo antigo. Finley escreveu um artigo específico sobre a relação de

“Arqueologia e História”, em 1971, publicado posteriormente no livro Uso e abuso da

História, e em alguns capítulos do livro História Antiga. No artigo mais antigo, apesar de

ressaltar que os historiadores não deveriam negligenciar os materiais arqueológicos, afirmava

que é “impossível deduzir organizações ou instituições sociais, atitudes ou crenças tomando-

415 FINLEY, M. Mito, memória e história. In: __________. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins

Fontes, 1989. p. 21.

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se por base unicamente objetos materiais.”416 Em seguida, afirma que a contribuição da

Arqueologia é inversamente proporcional à quantidade e qualidade das fontes escritas

disponíveis. A importância dada ao registro escrito é maior que o artefato arqueológico, tendo

a Arqueologia o papel de avaliar se, e até que ponto, a literatura tem algum valor. Aqui o

autor parecia se referir à tradição oral e as lendas, extremamente numerosas nos períodos mais

primitivos da Antiguidade. No livro História Antiga, a perspectiva muda, mas não muito.

Finley acredita ser falsa a relação entre História e Arqueologia, pois entende que não são duas

disciplinas qualitativamente distintas, mas dois tipos de testemunhos históricos. Os dois tipos

de testemunhos se complementam, porém podem estar em conflito, tendo o testemunho

escrito (mas nem sempre) que ceder ao arqueológico. Contudo, os testemunhos arqueológicos

por si mesmos continuam não preenchendo todas as lacunas do nosso conhecimento.417

Esta reflexão sobre as fontes é uma crítica à idéia de que os testemunhos “falam” por

si só, e revelam um dado absolutamente novo no desenrolar da tradição que estamos

investigando, pois nenhum dos autores, até agora analisados, fez qualquer análise crítica das

fontes antigas e dos seus limites. Em nenhum momento se contestou a autoridade das fontes

literárias, algo que Finley alertava com muita contundência, clamando pela elaboração de um

quadro conceitual para a análise destas fontes, elemento que, segundo ele, faltava ao

historiador antigo, e que era fundamental para estreitar as relações dos diversos tipos de

testemunhos.

Os historiadores historistas acreditavam que a História era uma matéria científica,

contudo, criticavam a perspectiva de historiadores que tentavam aplicar à História modelos

gerais. Acreditavam em uma ciência do particular e não do geral, e na preeminência da

compreensão sobre a explicação. Finley, influenciado pela História Social, acreditava que sem

teoria, não há desenvolvimento, não há mudança fundamental.418 “O corolário da acumulação

da experiência histórica é uma mudança, ou pelo menos, uma possível mudança, na ênfase e

nos modelos explanativos.”419 A função do historiador não era recapturar os acontecimentos

isolados e concretos de uma época passada, mas compreender, generalizar, pois toda

explicação implica uma ou mais generalizações.

416 FINLEY, M. Arqueologia e História. In: ________________. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins

Fontes, 1989. p. 95. 417 FINLEY, M. O estudioso da História Antiga e suas fontes. In: ____________. História Antiga. Testemunhos

e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 26-35. 418 FINLEY, M. O “progresso” na Historiografia. In: ____________. História Antiga. Testemunhos e modelos.

São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 9. 419 ibid., p. 6.

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Toda tentativa de ordenar os eventos únicos da História envolve generalizações do mesmo jeito que tentar estabelecer propostas gerais sobre opinião pública e guerra, ou sobre as conseqüências da escravidão ou o declínio do Império Romano. Afora considerações epistemológicas e metafísicas, todo historiador lança-se em explicações, em generalizações, tão logo deixe de se limitar a denominar, inventariar ou datar.420

Desta forma, os classicistas que se prestam a seguir o que os historiadores antigos

afirmam, não conseguem generalizar. Sem um esquema conceitual o testemunho escasso e

duvidoso se presta a todo tipo de manipulação. Finley afastava-se, assim, do historismo ao

defender a utilização de conceitos e hipóteses em História, mas também, das ciências naturais,

preocupada com o estabelecimento de leis gerais e das regularidades, enquanto a História

preocupava-se com o estudo das particularidades.

...reconheço que o conceito de história científica é aplicável somente em sentido restrito, de tal forma que é duvidoso que cumpra um propósito mais útil do que o de dar ao historiador a satisfação estética ou moral que ele puder extrair do rótulo “científica”.421

A crítica a uma História científica de acordo com os cânones das ciências naturais foi

revelada na discussão sobre a História quantitativa ou “cliométrica”, muito presente nos EUA

e Grã-Bretanha. Finley não censurou o uso da quantificação de dados em História, contudo, a

História Cliométrica nada informava sobre os casos individuais e não explicava o

comportamento humano e as instituições do passado. Assim, ao reduzir a números as varáveis

a serem examinadas, a Cliometria omitiu a maior parte do que se conhece sobre as vidas

passadas. Apesar dos números darem a aparência de “objetividade”, de “ciência”, a análise

quantitativa não era muito útil na Antiguidade devido à dispersão dos documentos, de

registros contínuos. Por isso o historiador da Antiguidade não pode ser um cliométrico, mas

também não precisa cair na subjetividade total, pois pode fazer uso de modelos não

quantitativos.422 O controle das variáveis selecionadas se não podia ser feito por estatísticas

em História Antiga, podia ser feito por modelos. Finley abstrai sua idéia de modelo de

Chorley e Hagget, definido por eles como:

420 FINLEY, M. Generalizações em História Antiga. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:

Martins Fontes, 1989. p. 95. 421 FINLEY, M. Como realmente aconteceu. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São

Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 75-76. 422 FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. passim.

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aproximações altamente subjetivas nas quais não se incluem todas as observações ou medições associadas, mas enquanto tais são úteis para ocultar pormenores incidentais e permitir o afloramento de aspectos fundamentais da realidade. Essa seletividade significa que os modelos têm graus variáveis de probabilidade e se aplicam sobre uma gama limitada de condições.423

5.2.2 A Utilização de Modelos e o Diálogo com a Sociologia e a Antropologia.

Ao longo de sua produção historiográfica, Finley não se furtou de aplicar modelos

explicativos elaborados em outras ciências sociais. Os tipos ideais de Weber eram os mais

familiares aos historiadores. Diferente dos modelos matemáticos, os modelos utilizados nas

ciências sociais teriam poucos limites, estavam sujeitos a constantes ajustes, correções,

modificações ou substituições.424

...qualquer hipótese pode ser modificada, adaptada ou descartada quando

necessário. Sem uma hipótese, entretanto, não pode haver interpretação

alguma, só pode haver reportagem e taxionomia bruta, estudo de

antiguidades no sentido mais estreito.425

O historiador não deveria se preocupar em acumular massas de fatos dispersos, mas

sim, em se concentrar na experiência típica dos fatos concretos que trouxessem à tona um

conjunto geral mais amplo. A experiência, junto com suas massas e interconexões, faria

aflorar idéias gerais.426 Um exemplo disso são as possibilidades de construção de modelos

explicativos e hipóteses simplificadoras para as guerras no mundo antigo. Para Finley, o lugar

da guerra e conflitos particulares só podiam ser compreendidos pelas suas conseqüências.

Finley parte dos lucros da guerra e de sua distribuição para construir os rudimentos de dois

modelos diferentes de império antigo:

423 CHORLEY, R.J. e HAGGET, P. Apud FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo:

Martins Fontes, 1994. p. 80. 424 ibid., p. 87. 425 ibid., p. 88. 426 SHAW, B. D. e SALLER, R. P. Introdução à introdução inglesa. In: FINLEY, M.I. Economia e sociedade

na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. XX.

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O império marítimo, com limitadas oportunidades de expansão territorial, dependente da marinha e, por isso, forçado a dar às pessoas comuns, o demos, um papel dominante na elaboração de decisões políticas; e o império baseado na terra, quase sem limites em sua capacidade de expansão, no qual a oligarquia dominante conservou os maiores benefícios materiais da conquista e ainda o vigoroso controle político. Ambos os modelos, quando devidamente planejados, também conteriam um elemento dinâmico essencial. Por outro lado, seriam incuravelmente defeituosos, pois não conseguiriam sugerir como e por que o Império Ateniense ultrapassou a si mesmo, enquanto o Império Romano provocou, no final, uma mudança tão grande no equilíbrio interno de forças que foi capaz de destruir a República.427

Este é um exemplo de como Finley utilizava um modelo para o mundo antigo.

Segundo o autor, é inerente à construção de modelos a concentração unilateral e o isolamento

de certos fatores em detrimento relativo ou total de outros. Um modelo falho, porém, era

melhor do que nenhum, pois os historiadores – citando Droysen – “devem conhecer o que

procuram, e só encontrarão respostas, interrogando as coisas corretamente.”428 As respostas

não estão dadas nos documentos, é necessário levantar questões. É no seio deste complexo de

perguntas e respostas, que Finley define a História como um “relato sistemático de um

período de tempo suficientemente longo para se estabelecer relações, ligações, causas e

conseqüências, mas também para se mostrar como a mudança ocorre e sugerir por que isso

acontece.”429 Apesar de não excluir da sua definição de História elementos constitutivos da

ciência moderna, ele não a incluía como uma matéria capaz de estabelecer leis gerais,

conforme as ciências naturais, pois acreditava que tanto a História, quanto a Sociologia e a

Antropologia eram consumidoras de leis. Muito mais preocupado com este complexo de

perguntas e respostas, ele também não excluía da pesquisa histórica a avaliação crítica

sistemática dos elementos do passado, que fomentasse “um exame racional e consciencioso de

determinado assunto, suas dimensões e implicações” para que não aceitássemos

automaticamente hábitos e opiniões herdados430. Se por um lado, Finley afastava-se das

ciências naturais, aproximando-se do historismo, por outro, definitivamente afastava-se da

idéia de uma história historizante, preocupada somente com a estética e com a reconstrução

dos fatos. 427 FINLEY, M. Guerra e Império. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo:

Martins Fontes, 1994. p. 111. 428 DROYSEN. Historik. Apud FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo: Martins

Fontes, 1994. p. 111. 429 FINLEY, M. O progresso na historiografia. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São

Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 9. 430 FINLEY, M. A constituição ancestral. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins

Fontes, 1989. p. 51.

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Finley combateu o individualismo metodológico historista defendendo o diálogo dos

historiadores com os cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e psicólogos sociais.

Afirmava que os historiadores voltados para os estudos clássicos eram desestimulados desde a

época da graduação, pelo mundo formal de ensino, a manter um diálogo com outros

especialistas de outras ciências humanas e mesmo de outras áreas da História. Relatava sua

própria experiência pessoal, quando ultrapassou os muros do formalismo acadêmico e se

reunia com colegas para ler Weber, Pareto, Marx, Bloch e Pirenne. O historiador deveria se

apoiar nas outras ciências humanas, pois acreditava que a História não tinha um objeto

próprio. Diante do já exposto sobre a História Social, cabe-nos interrogar como Finley se

posicionou em relação às tendências a-históricas da Sociologia e Antropologia? Ele defendeu

a absorção incondicional dos modelos teóricos destas disciplinas ou fez algumas restrições?

Em um ensaio de 1966, para o Times Literary Suplement, intitulado Unfreezing the

classics, se referindo a formação em demografia e sociologia de Keith Hopkins, Finley

afirmou que a análise sociológica tanto complementava e ampliava meras abordagens

tradicionais, quanto introduzia correções radicais à investigação da estrutura social imperial

romana. Em relação aos períodos sem testemunhos literários de qualquer tipo ou

contemporânea à época, que tornavam impossível a escrita de sua história, devido à

predominância do mito, o autor considerava importante o trabalho de Maurice Halbwachs,

para outras sociedades, que ele mesmo utilizara para tirar conclusões para a pré-história e a

história arcaica grega. Acreditava serem os dados arqueológicos, tomados em si mesmos,

insuficientes para uma contextuação histórica dos poemas homéricos. As falsificações

mitológicas podiam ser substituídas pelas evidências antropológicas. Neste sentido, se a visão

dos antropólogos não era obrigatória para entender os gregos antigos, também não podia ser

rejeitada. Citava os trabalhos de E. R. Doods, The Greeks and the irrational; de Artur

Adkins, Merit and responsability e de Geoffrey Lloyd, Polarity and analogy; como

exemplos de que o “estudo comparativo” era perfeitamente compatível com os estudos

clássicos e com a erudição mais rigorosa.431 Uma visão francamente favorável, portanto, ao

diálogo da História Antiga e a Sociologia e Antropologia.

Posteriormente sua visão mudou um pouco. Em 1972, em uma conferência

comemorativa de Jane Harrison, publicada posteriormente no livro Uso e abuso da História,

sob o título de A antropologia e os clássicos, Finley mostrou maior simpatia pela

Antropologia, em virtude de seu foco - as pequenas sociedades que não dominam a escrita -

431 FINLEY, M. Unfreezing the classics. Times Literary Suplement. 65, p. 289-290, 1966.

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em detrimento da Sociologia, cuja prioridade, as sociedades modernas, pouca utilidade

oferecia aos classicistas em termos comparativos.432 Apesar disso, Finley gostava de afirmar

sua simpatia por uma História direcionada por caminhos mais teóricos, mais sociológicos.

Não há dúvida que Finley acreditava serem os “tipos ideais” os melhores modelos a

serem utilizados na investigação histórica. Em um artigo dedicado a Max Weber no livro

História Antiga, ressaltou que seu próprio trabalho vinha provocando vivas discussões sobre

Weber entre os estudiosos da História Antiga, contudo, este artigo apresenta críticas aos

modelos weberianos acerca da cidade-Estado e sua política. A crítica mais contundente é ao

modelo de dominação da cidade-Estado grega. Segundo Finley, Weber classificou a pólis

grega, por eliminação, com a dominação carismática, pois não foi nem tradicional, nem

racional. Em seguida, afirma que os tipos ideais de Weber nos seus últimos anos, nos quais

estava preocupado com as formas legítimas de dominação, tornaram-se extremamente formais

e a-históricos (marcados por alterações de linguagem). Dessa forma, a avaliação weberiana da

polis como organismo político era inaceitável devido a sua distância da realidade.433

Esta crítica, apesar de corroborar uma preocupação dos historiadores sociais com

modelos teóricos a-históricos das outras ciências humanas, particularmente, o tipo ideal -

modelo que, paradoxalmente, Finley passou boa parte de sua vida afirmando ser o mais

conveniente para os historiadores - apresenta um grande equívoco ao demonstrar este caráter

a-histórico e irreal. Vimos anteriormente que a análise de Weber sobre as formas legítimas de

dominação não nos leva em nenhum momento a acreditar que a dominação carismática tenha

sido a forma dominante na pólis grega. Weber acreditava que era possível encontrar diferentes

formas de dominação na cidade-Estado grega, – Finley não discordou disso – e que o carisma

era um dos elementos presentes, mas não majoritário. Para Weber a democracia de Péricles

apresentava características de dominação carismática, seja pelo domínio do demagogo,

amparado no seu carisma de espírito e discurso, seja na eleição de um único estratego.

Diferentemente do que afirmou Finley, Weber ressaltou o caráter estamental daquela

sociedade, tendo a aristocracia guerreira como estamento dominante. O caráter honorífico e

exclusivo do estamento dominante e a apropriação de determinados poderes e oportunidades

econômicas estão nas mãos de uma associação amparadas na tradição que não foge ao caráter

cotidiano. Todos os “tipos” de dominação da cidade-Estado: aristocrática, hoplita e 432 FINLEY, M. A Antropologia e os clássicos. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:

Martins Fontes, 1989. p. 51. 433 FINLEY, M. Max Weber e a cidade-Estado grega. In: __________. História Antiga. Testemunhos e

modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 122-123.

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democrática cidadã são dominadas por uma associação estamental de portadores de honra e

monopolizadores de privilégios. Portanto, a forma de dominação que parece estar mais em

consonância com os tipos de dominação analisados por Weber em relação à polis é a

dominação tradicional.

Mais estranho ainda é quando Finley afirma que The City não constitui um terreno

seguro para conclusões sobre as formas de dominação legítima. Amparado em Wolfgang

Mommsen, Finley afirma que Weber nunca considerou possíveis tipos de dominação

ilegítima e que em sua análise não havia espaço para formas ilegítimas de dominação. De

fato, o texto sobre as tipologias das cidades, que é um subtítulo, pois o título é A dominação

não legítima, investiga os diversos “tipos” de cidade, mas também as formas de dominação da

cidade antiga sobre o campo. Este tipo de dominação foge aos tipos de dominação legítima,

mas se Weber dedicou uma parte tão extensa de sua investigação sobre dominação, a esta

tipologia, é porque esta forma de dominação também constitui um elemento importante em

sua análise geral. Concomitantemente, nos diversos “tipos de cidade” estão presentes as mais

variadas formas de dominação legítima.

As críticas de Finley ao modelo weberiano de luta pelo poder na cidade-Estado sob o

jugo da liderança carismática, levam-no a inferir sobre a contribuição de Weber à teoria

elitista. Finley discordava da hipótese de que a competição entre os demagogos pela liderança

era conduzida exclusivamente em termos de apelos “emocionais”, e defendeu a hipótese desta

disputa se dar em torno de programas e políticas. Segundo Finley, o povo esperava resultados

das promessas feitas pelos demagogos, e caso estas não se concretizassem, a liderança caía.

Para Weber, segundo Finley, esta perda de liderança se dava pela perda do carisma, para

Finley pelos programas e pelas políticas, e não na fé essencialmente “mística”. Nos parece

incontestável que Weber tenha inspirado intelectuais da teoria elitista, até mesmo pela sua

trajetória de vida política. Contudo, acreditamos que Finley procurou reafirmar sua hipótese

de trabalho, contrária a apatia política dos gregos, muito mais pelas conseqüências da teoria

weberiana do que pela teoria em si mesma. E partiu das conseqüências para “enxergar” o

carisma como majoritário na polis grega. E aí se encontra o seu maior equívoco.

Em relação à Antropologia, Finley esboçou no artigo já citado, Antropologia e os

clássicos, posterior ao ensaio Unfreezing the classics, grande preocupação em relação ao

diálogo entre os classicistas e a Antropologia. O primeiro questionamento é direcionado a

afirmação de Radicliffe-Brown, que como já dissemos, era o grande mentor da Antropologia

na Grã-Bretanha, de que a “‘tarefa da antropologia social enquanto ciência natural da

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sociedade humana’ é ‘descobrir as uniformidades subjacentes às diversidades, através de um

cuidadoso exame’”. Em seguida, critica os editores do livro, Fortes e Evans-Pritchard, por

pretenderem falar por todos os antropólogos sociais quando dizem que um estudo científico

das instituições políticas deve visar unicamente o estabelecimento e à explicação das

uniformidades existentes entre elas. Finley não consegue entender como se pode achar

uniformidades entre formações tão díspares como os pigmeus e os norte-americanos. Acredita

que tal perspectiva é extremamente reducionista, pois compara sociedades sem Estado com

sociedades estatais. Procurar uniformidades nas diferenças é procurar leis gerais para

diferentes instituições políticas. Comparar sociedades sem cidadãos, sem Estado, que não vão

além da chefia, com as sociedades gregas e romanas pós-primitivas era inútil. Tal comparação

só tem algum sentido com as sociedades gregas e romanas primitivas, e mesmo assim com

muitos cuidados.

Só porque a antropologia esclarece um período (ou aspecto) do mundo clássico não significa automaticamente que ela também esclareça todos os outros períodos (ou aspectos). As sociedades e suas culturas são complexas, e a simples presença de algumas similaridades não é em si mesma base suficiente para nos apressarmos a conclusões sem uma investigação completa no local dessas similaridades em relação à totalidade, a estrutura das sociedades que estão sendo examinadas.434

No caso específico da Grécia antiga, o autor, diferente do artigo de 1966, não via

muita utilidade no trabalho dos antropólogos, preocupados com sociedades pré-estatais, para o

período clássico, ou mesmo para o nascimento da cidade-Estado. A importância do diálogo

residia muito mais no cultivo de uma abordagem, um hábito de pensamento:

a cuidadosa formulação de conceitos e modelos, da qual resulta uma precisão na escolha das questões importantes a serem estudadas e, se possível, respondidas, questões que em geral não são diretamente provocadas pelas fontes (em nosso caso, escritores gregos e romanos); uma clareza e consciência sobre as generalizações que empregamos constante e inevitavelmente, mesmo na mais prosaica narrativa ou análise literária,....o fato histórico é que a antropologia moderna desenvolveu métodos sofisticados e satisfatórios, ao passo que os clássicos não o fizeram.435

434 FINLEY, M. A Antropologia e os clássicos. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:

Martins Fontes, 1989. p. 119-121. 435 ibid., p. 124.

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A procura de leis gerais em sociedades de natureza diferentes (sociedades estatais e

não estatais) e a comparação de sociedades pré-estatais com a Grécia clássica constituíam a

dificuldade do diálogo entre as duas disciplinas. Apesar da crítica ao comparativismo a

qualquer custo, Finley acreditava que os antropólogos estavam a frente dos estudiosos da

Antiguidade por formularem conceitos e modelos que viabilizavam as generalizações. Mais

uma vez, nosso autor enaltecia a utilização de modelos e conceitos nas outras ciências sociais

como um fator a ser seguido pelos classicistas. A ausência de um objeto próprio, como ele

afirmara, o fazia ver a História como um campo de experimentação crítica dos modelos

sociológicos, econômicos ou antropológicos. Diferentemente de muitos historiadores sociais,

Finley deu um passo a frente, ao procurar evidenciar os limites dos modelos antropológicos,

econômicos e sociológicos em outros campos. Criticava os classicistas por não utilizarem

nenhum modelo, mas, ao mesmo tempo, não aceitava sua utilização de forma acrítica.

É nesta perspectiva que devemos entender a utilização dos modelos polanyianos por

Finley. A influência dos trabalhos de Polanyi sobre Finley tem sua origem no início da década

de 50, em Columbia quando Finley, no final de sua tese de doutorado, travou um estreito

contato com o grupo organizado por Polanyi que desenvolvia um projeto interdisciplinar

intitulado “aspectos econômicos do crescimento institucional”. Não somente a afinidade

ideológica com Polanyi contribuiu para o diálogo, mas também, o foco de pesquisa deste

atendiam as necessidades de Finley. Antes de encontrar Polanyi, Finley já tinha ‘lido’ muitas

das fontes de pensamento de Polanyi. O contato com Polanyi fez Finley ver o potencial destas

leituras para o seu trabalho, dentre estas, Mauss e Homero. Dessa forma, antes de sua

inclinação polanyiana, ele já tinha lido Weber e publicado trabalhos interessantes. Em vez de

um simples seguidor de Polanyi, Finley, na verdade, manteve um diálogo crítico com

aquele.436 Apesar da recepção crítica das idéias polanyianas, e da natureza sugestiva, segundo

Finley, de tais trabalhos, eles são nitidamente visíveis e mesmo aprofundados nas análises da

sociedade descrita por Homero e do mundo greco-romano clássico.437

Na década de 50, Finley publicou The World of Odysseus (O mundo de Ulisses),

livro que revolucionou os estudos acerca dos poemas homéricos e que apresenta influências

dos trabalhos de Mauss, Malinovsky e de Polanyi. Finley combate a idéia de que o mundo

descrito por Homero corresponderia ao micênico. Não há dúvida de que houve um núcleo

micênico nos poemas, mas era mínimo, e o pouco que existia teria sido distorcido até tornar-

436 NAFISSI, M. op. cit. P. 209-213. 437 FINLEY. M. Economia e sociedade na Grécia Antiga. Martins Fontes; São Paulo, 1989. p. XXI-XXII.

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se irreconhecível.438 Toda a investigação procura demonstrar, além da diferença, a ausência

de uma linha de progresso uniforme entre a sociedade micênica e a sociedade homérica. Sob

muitos aspectos a sociedade homérica representa um regresso em relação à micênica. Era uma

contundente crítica ao evolucionismo. O autor advogava a idéia de que todas as operações

econômicas fundamentavam-se num sistema de trocas de presentes. O ato de dar era sempre a

primeira metade de uma operação recíproca, cuja outra metade era uma contra-dádiva,

imediata ou não. O termo “dádiva” cobria toda uma gama de ações e transações que mais

tarde viriam a diferenciar-se e a adquirir uma designação própria. Compreendia o pagamento

por serviços prestados, desejados ou gozados antecipadamente; é o que designaríamos pelo

nome de honorários, remunerações, prêmios e, por vezes, suborno.439 Este modelo baseado no

modelo de Maus e Malinovsky levou Finley a afirmar que Homero, apesar das incongruências

e dos arcaísmos, descrevia uma sociedade real, que não foi nem a micênica, nem a arcaica,

mas sim intermediária, entre os séculos IX e X. Portanto, Finley conseguiu transferir para o

mundo antigo um modelo antropológico, utilizado em outra sociedades, mas que ele

acreditava ser comparável com o mundo antigo. E mesmo sem documentos escritos, extraiu

de uma fonte proveniente em última análise da tradição oral os elementos para a “construção”

de um mundo real, amparado na Antropologia.

Finley limitou o comparativismo a qualquer custo com um maior empirismo em

relação ao mundo antigo. Este empirismo levou Finley a afirmar que os estudos de Polanyi e

seus seguidores, apesar de sofisticados e numerosos, “geravam mais confusão do que

esclarecimento” para seus propósitos.440 Tal afirmativa, se refere aos conceitos polanyianos de

“comércio administrado”, portos de comércio”, que pareciam demasiado abstratos, ou melhor,

de difícil utilização no mundo antigo. Era uma resposta empirista a conceitos gerais muito

utilizados em outras sociedades pré-industriais, que Finley considerava importante, mas que

não se “aplicavam” ao mundo greco-romano. Além disso, revela-se uma crítica ao

“funcionalismo”, por sua proximidade com as ciências naturais. Finley, aqui, nos mostrava

um lado “naturalista, na tradição que estamos estudando, apesar de Polanyi ter sido um crítico

feroz do “formalismo”, acabou, também, segundo Finley, apresentando um lado próximo das

ciências naturais, a abstração excessiva, pouco preocupada com aspectos empíricos.

438 FINLEY, M. O mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1982. p. 43. 439 ibid., p. 60-66. 440 FINLEY, M. A Antropologia e os clássicos. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:

Martins Fontes, 1989. p. 123.

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Vimos, então, que Finley, ao longo de seus trabalhos mais teóricos promoveu uma

discussão em relação à Antropologia criticando nesta disciplina os princípios das ciências

naturais, a procura de leis gerais em formações sociais heterogêneas, utilizando como

principal argumento, o “comparativismo” inadequado. É com esta perspectiva que podemos

avaliar o diálogo com Polanyi, apesar de, como veremos mais a frente, as idéias gerias sobre

economia como um processo institucionalizado estarem muito presentes nos trabalhos de

Finley, uma influência derivada de Weber, que foi sistematizada por Polanyi.

5.2.3 O Marxismo. A Influência do Instituto de Pesquisa Social e a História Total

Em um artigo intitulado Class Struggles, publicado em 1967, ele afirmou que na

Universidade de Columbia, onde estudou História antiga, os seminários e as palestras dadas

pelos professores de História estavam totalmente desconectados da realidade em que se vivia

na época.

As mesmas palestras e seminários podiam ser dados – e sem dúvida foram – em uma geração anterior, antes da Primeira Guerra Mundial. Havia certas mudanças de ênfase, tal como o maior interesse em História econômica, mas havia a mesma impressão penetrante que o estudo de História era um fim em si mesmo.441

Em seguida, Finley afirma que ele e seus colegas procuravam na História explicações

para o presente, pois viviam em um mundo muito difícil com problemas que demandavam

soluções urgentes. É nesta perspectiva que as leituras de Marx e dos historiadores marxistas

contribuíram para a crença de que o estudo da História não era uma atividade autônoma e

isolada dos vários aspectos do comportamento humano – econômico, político, intelectual,

religioso. Finley relembrou que no primeiro dia de aula da disciplina História intelectual da

Europa renascentista, o professor desenhou um círculo no quadro e dividiu em setores a

história econômica, intelectual e assim por diante. Quando ficou claro que o curso seria

restrito rigorosamente aos “fatos” da história intelectual, Finley imediatamente abandonou a

disciplina.442

441 FINLEY, M. Class Struggles. The Listener, n. 78, p. 201,17 de ago. 1967, p. 201. 442 ibid., p. 201.

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Apesar do grande desenvolvimento econômico e da acumulação de recursos

financeiros na década de 1919-1929, a crise de 1929 abriu espaço para grandes perturbações

sociais na Europa e no resto do mundo.Nos Estados Unidos cresceu o anti-semitismo e

racismo contra os negros, principalmente com o fortalecimento da Ku-Klux-Klan, e um pavor

contra as organizações comunistas. Por outro lado, no final dos anos trinta, para se salvarem

da crise econômica e constitucional, os americanos concedem plenos poderes ao presidente

Roosevelt, resultando em uma maior ingerência do Estado na vida política e econômica do

cidadão e na formulação do New Deal.443 Nos anos cinqüenta, os EUA foram invadidos por

uma onda de fanatismo e chauvinismo, mas já com sinais nos anos anteriores com a

campanha do senador Joseph McCarthy, que acusava e denunciava indiscriminadamente

como comunistas membros do governo e da intelectualidade.444

Foi neste ambiente que Finley iniciou sua carreira acadêmica nos Estados Unidos. A

mudança de seu nome em 1941 de Finkelstein para Finley, rompendo com a tradição judaica,

deu-se numa conjuntura anti-semita nos EUA. Em 1952, nos anos áureos do macartismo,

Finley foi acusado de comunista por seu colega de trabalho, Karl Wittfogel, e convocado a

depor na Comissão de Segurança Interna do Senado americano.Evocando a quinta emenda

constitucional para não responder se fora ou não filiado ao partido comunista, foi licenciado

de seu cargo da Universidade de Rutgers, mudando-se, dois anos depois, para a Inglaterra,

para lecionar na Universidade de Cambridge.445

Finley, portanto, como ele mesmo afirmava, é um produto dos anos trinta, das

conseqüências da Grande Depressão, da Guerra Civil espanhola, do Fascismo e das frentes

populares. Talvez isto tudo tenha influenciado para que ele adquirisse uma “atitude popular

frontista não dogmática” em sua carreira. E o marxismo teve um lugar privilegiado nesta

conduta. Principalmente quando Finley entrou em contato, no final de 1934, com intelectuais

judeus exilados, em virtude do nazismo, que se instalam na Universidade de Columbia, e

retomaram os trabalhos do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisas Sociais), lócus,

institucional da chamada Escola de Frankfurt.

Em 1934, o Institut für Sozialforschung, se transferiu para Nova York em virtude da

perseguição dos nazistas. As origens do Instituto datam de 1922, quando Felix Weil, doutor

443 DE SANCTIS, M. Moses I. Finley. Note per uma biografia intellectuale. Quaderni di Storia. 10, 1979,

passim. 444 SILVA, R. F. V. Categoriais de análise na constituição do conceito de “pólis”: uma leitura de Moses

Finley. Assis, 1999. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de São Paulo, p. 13-15. 445 ibid., p. 18.

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em ciência política, negociante e milionário que havia feito fortuna na Argentina, organizou a

“Primeira Semana de Trabalho Marxista”, na qual participaram, dentre outros, Lukcás,

Korsch, Pollock, Wittfogel, e que devia lançar a noção de um marxismo “verdadeiro” ou

“puro”. Daí nasceu a idéia de uma instituição permanente, sob a forma de um Instituto de

investigação independente. O Institut für Sozialforschung foi criado por um decreto do

ministério da Educação de três de fevereiro de 1923. Seu primeiro diretor foi Carl Grumberg,

que levou adiante um projeto sociológico e econômico, mas, paradoxalmente levado a cabo

por filósofos. Contudo, tal ambigüidade dissipa-se com a assunção de Max Horkheimer à

direção do Instituto, em 1931, no qual nasce uma nova exigência metodológica, designada

como “filosofia social”. Tal expressão remete à história das idéias na Alemanha, que desde o

final do século XIX é palco do surgimento de uma nova disciplina que nem a sociologia e

nem a filosofia esgotam suficientemente. Trata-se de uma aproximação da filosofia

especulativa com a observação sociológica, dando lugar a uma imensa literatura em que se

mistura sociologia, história e uma reflexão sobre a civilização. São correntes muito diversas

em que estão contidas as idéias sociais, a ética neo-kantiana e a filosofia dos valores,

incluindo-se aí Max Weber, Max Scheler , Wilhelm Sombart, Georg Simmel, Karl Jasper. A

filiação da Escola de Frankfurt se situa neste amálgama de ciência social, ética e filosofia da

história que são os Moral-Sozial-Wissenschaften, e da cultura, psicologia coletiva e economia

política. No período dirigido por Max Horkheimer, o programa do Instituto, jazia em uma

combinação de filosofia e de ciências sociais especializadas, de teoria e empirismo,

simultaneamente abstract and concrete sciences. Horkheimer ambicionava a reunião em uma

comunidade duradoura de filósofos, sociólogos, especialistas em economia política,

historiadores, psicólogos que visassem incitar a interpenetração dialética da teoria filosófica e

da prática da pesquisa especializada no domínio da teoria da sociedade, que segundo ele, não

era mais possível para um homem só.446

Horkheimer e seus colaboradores, dentre eles, Adorno, Pollock, Marcuse, Walter

Benjamim, para ficar nos mais conhecidos, sentiam a necessidade de reatualizar o pensamento

de Marx sem erigi-lo em doutrina definitiva. Há um desinteresse pelos debates sobre a mais-

valia ou sobre a passagem do socialismo ao comunismo, todavia, em torno da herança de

446 WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt: História, desenvolvimento teórico, significação política. Rio

de Janeiro: Difel, 2002. p. 194-207.

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Marx, repensam a ideologia, a alienação, a reificação, a dominação, em outras palavras, o

jovem Marx e o ângulo mais existencial de sua teoria.447

Nos Estados Unidos, o Instituto associou-se à Universidade de Columbia e passou a

intitular-se International Institute of Social Research. Finley, então pesquisador no

Departamento de História desta Universidade, envolveu-se em várias atividades do Instituto,

participando inicialmente dos seminários deste, e posteriormente sendo utilizado como

tradutor para inglês das obras escritas em alemão. Os temas cobertos pelo Instituto na época

são extensos e envolvem discussões de teorias do capitalismo, da estrutura do Estado, da

ascensão da razão instrumental, análises de desenvolvimento em ciência, tecnologia e técnica,

da indústria da cultura e da cultura de massas, da estrutura da família e do desenvolvimento

individual, da suscetibilidade das pessoas à ideologia, assim como considerações da dialética

de esclarecimento e de positivismo como modo dominante de cognição. A esperança dos

membros do Instituto era que seu trabalho ajudasse a estabelecer uma consciência social

capaz de penetrar na ideologia existente. As questões que se tornaram centrais para o Instituto

foram: (i) Como se poderiam entender melhor as crises do capitalismo e qual era a relação

entre política e economia; (ii) Como poderiam ser compreendidos os crescimentos do

autoritarismo e da burocracia; (iii) Como a manipulação da cultura afetava a vida diária.

Todas essas questões giravam em torno da necessidade de uma teoria social que explicasse as

mediações que possibilitavam a reprodução e a transformação da sociedade, da economia, da

cultura e da consciência.448 Não há dúvida que muitas destas questões estiveram no centro das

preocupações de Finley nos seus primeiros trabalhos, constituídos basicamente de resenhas.

Estas resenhas iniciais (1935-1941) foram publicadas em periódicos não clássicos e lhe deram

a oportunidade de expressar uma abordagem holística e interdisciplinar. Contudo, além das

influências dos componentes da Escola de Frankfurt, classicistas, como Meyer e Beloch,

surpreendentemente também são citados nos seus exemplos de uma História total.

Na primeira resenha de Finley, escrita em 1935, para a revista do Instituto, Zeitschrift

fur Sozialforschung, os autores do primeiro volume da Cambridge Ancient History são

criticados por não conseguirem articular a arte, a literatura, a filosofia, e, sobretudo, a história

social e econômica.

447 ibid., p. 15-16 448 HELD, D. Introduction to critical theory. Berkley and Los Angeles: University of California Press, 1980. p.

35-38.

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Embora o propósito declarado seja o de fazer uma síntese completa da História Antiga em suas diversas fases, grande parte da obra é dedicada a pormenores políticos e militares. A arte, a literatura, a filosofia e, sobretudo, a história social e econômica são tratadas como detalhes isolados, nunca como partes coordenadas da história global do mundo antigo.449

O autor já esboça uma crítica que estará presente em muitos momentos de sua obra,

isto é, aquela contra o tratamento isolado das diversas facetas da vida, sem integrá-los ou

relacioná-los. E já aqui, o autor cita Meyer e Beloch como exemplos de integração de

materiais históricos:

Em suma, apesar da Cambridge Ancient History ser em muitos aspectos um grande trabalho bem elaborado, não se vê a integração de materiais históricos como encontrados em Beloch e Meyer.450

Na sua terceira resenha, sobre o livro de Ciccoti, La cività del mundo antico, escrita

em 1937, na American Historical Review, a influência do marxismo, que o autor afirmara

fazer parte de sua Paidéia, já está muito presente. Finley informa-nos que desde Eduard

Meyer ninguém havia tentado examinar a estrutura completa da sociedade antiga ou, mais

corretamente, a concepção corrente daquela estrutura. Ciccoti, devido a sua educação em

economia estaria em condições de corrigir Meyer, acentuando as premissas de trabalho

daquele, ou seja, de que o homem é e sempre será uma criatura social e que a história do

homem é a história da “associação”, “cooperação” e “luta de classes”. Finley elogia Ciccoti

por apresentar uma análise bem integrada da inter-relação das forças materiais e morais, um

trabalho de síntese de extremas coragem e imaginação, com um conhecimento detalhado da

experiência humana. A falta de tais atributos era o que Finley muito criticava em suas outras

resenhas do período. Ciccoti era qualificado para desenvolver tal trabalho pela sua experiência

pessoal, assim descrita por Finley:

ele também foi um militante ativo do partido socialista italiano e por um tempo deputado... ele foi jornalista prolífico, editor das traduções italianas

449 FINKELSTEIN, M. Review: The Cambridge Ancient History. Vol I-X. In: Zeitschrift für Sozialforschung.

IV, p. 289, 1935. 450 ibid., p. 290.

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padronizadas de Marx, Engels e Lassalle, e, com Pareto, editor da biblioteca di storia econômica.451

Finley ainda realçava, no trabalho de Ciccoti, a firme compreensão da natureza da

escravidão, o seu entendimento do papel e sua discussão do caráter preciso do “capitalismo”.

Tudo isso credenciava Ciccoti a estabelecer as bases para uma história econômica real da

Antigüidade. No mesmo tom elogia o capítulo sobre política, por atacar os problemas

fundamentais, isto é, o crescimento do Estado, suas várias formas e base de controle.452

Na resenha sobre o décimo primeiro volume da Cambridge Ancient History, voltam

as duras críticas feitas aos autores do primeiro volume, agora acrescidas de novas questões.

Eis as opiniões, presentes no volume resenhado, que Finley critica:

1) Fenômenos como o império romano são tão transcendentais que o homem não pode realmente entende-los ou explicá-los.

2) De alguma maneira tudo é tocado pelo império romano torna-se direito. Há lei e ordem, estabilidade, liberdade… Os oponentes do sistema imperial são canalhas a quem os governantes nobres romanos tratam com paciência

3) A ideologia oficial do império deve ser aceita como uma descrição completa e acurada das realidades da sociedade.

4) Instituições como o senado ou o exército são entidades autônomas, agindo independentemente de outras forças sociais. (…) A religião é similarmente autônoma. O capítulo da crise do cristianismo, por exemplo, não contém uma sentença das implicações sociais da ética cristã ou de sua história.

5) Grandes indivíduos são responsáveis por todo o verdadeiro progresso.453

Ao final do artigo, Finley afirma que o leitor que tenha familiaridade com a literatura

do imperialismo moderno não terá dificuldade em reconhecer o pensamento britânico no

volume analisado:

O leitor que esteja familiarizado com a literatura do imperialismo moderno não terá dificuldades em identificar esta abordagem. Em uma breve nota

451 FINKELSTEIN. Review: CICCOTI, E. La civiltà del mondo antico, 2 vols. (1935), American Historical

Review, XLII, p. 277, 1937. 452 ibid., p. 278-279. 453 FINKELSTEIN, M. Review: The Cambridge Ancient History, vols. XI, (1936), Political Science Quartely,

LIV, p. 610-611, 1939.

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conclusiva os editores dizem: ‘ a tônica do período coberto por este volume foi a lealdade a Roma, não meramente porque esta lealdade não tinha rival, mas porque Roma desejou recebê-la’.454

Em todas estas resenhas, além da crítica do caráter ahistórico e da desarticulação das

instituições sociais, há uma preocupação em relacionar a posição política dos autores com o

conteúdo de seus trabalhos. Na resenha do livro de Will Durant, The life of Greece, escrita em

1941, Finley critica o autor por este afirmar que “um dos fatores imutáveis da História é a

raça”. ‘Isto é quase uma lei da História’”.455 O racismo do autor era acompanhado pela noção

do herói líder que moldava a História. A conexão entre as premissas fundamentais de tal obra

e a corrente política em que ela estava envolvida geraram uma escola de “salpicadores” da

História que lutavam contra a democracia política no ocidente.

A Revolução Francesa, a Revolução Americana e a Guerra Civil são os alvos principais desta história intensivamente ‘política’. Ao estender este ataque à Grécia e reter o tempo presente por toda parte, Mr. Durant faz seu ataque mais radical... ‘Liberdade e igualdade não estão associadas, mas sim inimigas.’ 456

Nestas resenhas, Finley esboça com clareza sua proximidade com o marxismo e

mostra-se um crítico feroz das transposições anacrônicas de instituições do mundo

contemporâneo ao mundo antigo. Estes traços de sua escrita, contudo, parecem-nos ainda

superficiais para estabelecermos uma relação com o “ambiente intelectual” em que os

pensadores da Escola de Frankfurt estavam envolvidos. Como já salientamos, tais pensadores

eram filósofos, e, naquele momento, travavam acirrados combates contra os representantes da

filosofia idealista. Durante os anos 1930, Horkheimer e Marcuse publicaram artigos cujas

temáticas giravam em torno de questões sobre metafísica, idealismo, racionalismo,

irracionalismo, materialismo e dialética. Tais discussões, no campo filosófico, contribuíram

para que Finley pudesse, de um lado, filtrar as informações que provinham do mundo antigo

e, por outro lado, se posicionar em relação ao mundo contemporâneo.

Horkheimer, por exemplo, discutindo o racionalismo na filosofia contemporânea,

afirma que esta tendência, iniciada com Descartes, tem como um de seus pressupostos a idéia

454 ibid. p. 611. 455 FINKELSTEIN, M. Review: DURANT, W. The life of Greece, Political Science Quarterly. LVI, 1939, p.

127. 456 ibid., p. 129.

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da divisão do universo em dois domínios independentes entre si, a substância espiritual (res

cogitans) e a espacial (res extensa). A conseqüência deste axioma teria sido a independência

da substância espiritual da realidade física. Sob tal perspectiva, o espírito desligado da matéria

seria capaz de criar por si só conhecimentos válidos. Reconhecia-se, assim, a fé em uma

estrutura estática do mundo, pois seus contornos deveriam ser absorvidos por estruturas

conceituais fixas. Juntamente com toda a filosofia idealista, este racionalismo pressupunha

uma relação entre conceito e realidade constante e independente da práxis humana. O caráter

idealista de tal doutrina repousava na crença de que o homem podia proporcionar a si mesmo,

através de qualidades interiores, um acesso à essência original do universo e, com isso,

adquirir a norma de suas ações. Tais determinações definitivas do pensamento e do seu

objeto, que deixam de lado a situação histórica e as tarefas nelas expostas, formavam a base

de toda a filosofia idealista.457 Horkheimer, em um artigo de 1933, Materialismo e metafísica,

recorreu a Kant para explicar o caráter atemporal da filosofia idealista. Segundo Kant, a

necessidade temporal não está fundamentada nas coisas em si, mas em uma vulnerabilidade

do sujeito finito.

O tempo é...meramente uma condição subjetiva das nossas percepções humanas(...), e como tal fora do sujeito nada é...o tempo não é algo em si mesmo, tampouco uma determinação objetivamente inerente às coisas.458

Sob a égide do idealismo, Horkheimer incluía, além do racionalismo cartesiano, o

empirismo inglês e a filosofia da vida. Desta forma, identificava traços idealistas tanto em

correntes racionalistas quanto em correntes irracionalistas, além de contrapor à tais correntes a

filosofia materialista, que de acordo com Horkheimer, era incompatível com a idéia de uma

postulação absoluta, pois,

embora o conhecimento adquirido mediante práticas e fins definidos esteja em reciprocidade com o atuar dos homens, ele participa da estruturação da realidade exterior e interior, mas não fornece exemplos, normas ou diretrizes para uma vida verdadeira, mas apenas os meios para isso.459

457 HORKHEIMER, MAX. Da discussão do racionalismo na filosofia contemporânea. In: Teoria crítica: uma

documentação. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p. 95-101. 458 KANT, Kritik der reinen Vernunft, A 35. Apud HORKHEIMER, M. Materialismo e metafísica. In: Teoria

crítica:uma documentação. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1990. cap 3, p. 46. 459 ibid., p. 38.

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Portanto, segundo Horkheimer, no materialismo dialético o sujeito do pensamento não

é um ser abstrato como a essência do homem, mas homens de uma determinada época

histórica, que não são hipostasiados como unidades isoladas umas das outras e do mundo,

como mônadas. Todas as unidades isoladas em relação às quais for esquecido o processo pelo

qual foram adquiridas assumem um caráter metafísico. Contrapondo-se a idéia da identidade

entre sujeito e objeto, cara ao pensamento hegeliano, aqui há uma tensão que varia de acordo

com o papel que a teoria representa na sociedade, com o grau de domínio dos homens sobre si

mesmos e sobre a natureza extra-humana.460 Portanto, esboçava-se aqui a tese filosófica

fundamental da “teoria crítica”, ou seja, a de que no pensamento sobre o homem, sujeito e

objeto divergiam um do outro. “A suposição da invariabilidade social da relação entre sujeito,

teoria e objeto distingue a concepção cartesiana de qualquer tipo de lógica dialética.”461

Esta questão foi exaustivamente desenvolvida no artigo de Horkheimer e Marcuse,

Teoria tradicional e teoria crítica, o manifesto que esclarece o projeto histórico–crítico da

Escola de Frankfurt, publicado, em 1937, no periódico do Instituto. Neste texto os autores

afirmam que o cientista e sua ciência estão atrelados ao aparelho social. A ciência, como

função social, reflete as contradições da sociedade contemporânea. Na medida em que a vida

da sociedade é resultado da totalidade do trabalho nos diferentes ramos da profissão, a

ciência, como um dos ramos, não pode ser vista como autônoma e independente. É um

momento do processo produtivo. Sendo a sociedade dividida em classes e grupos, as

construções teóricas mantêm relações diferentes com a práxis social geral, conforme a sua

filiação a um desses grupos ou classes.462 A ciência formal ao elaborar um conhecimento

pragmático, se afasta da compreensão da sociedade como totalidade e desempenha uma

função conservadora da ordem existente, convertendo-se em ideologia, pois, em sua relação

com a totalidade social, oculta a dinâmica econômica e classista. A teoria crítica, distinta da

teoria tradicional, considera

como sujeito a um indivíduo determinado em seus relacionamentos efetivos com outros indivíduos e grupos, em seu confronto com sua classe determinada, e, por último, mediado por este entrelaçamento, em vinculação com o todo social e a natureza.463

460 HORKHEIMER, MAX. Da discussão do racionalismo na filosofia contemporânea. In: _______. Teoria

crítica: uma documentação. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, p. 119. 461 HORKHEIMER, M; MARCUSE, H. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Textos escolhidos. Max

Horkheimer, Theodor W. Adorno. São Paulo: Nova Cultural. Coleção: Os pensadores, 1991. p. 46. 462 ibid. p. 36-39. 463 ibid., p. 46.

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Na resenha seguinte, sobre o livro de Benjamin Farrington, Science and Politics in

the Ancient World, de 1941, percebe-se com mais clareza o quanto o autor estava imerso

neste ambiente intelectual. As principais questões abordadas no livro de Farrington como, por

exemplo: ciência e sociedade, iluminismo e obscurantismo, religião e ideolologia, constituem

um ótimo pretexto para Finley integrá-las, a partir dos debates travados pelos filósofos da

Escola de Frankfurt na primeira metade do século XX, com a realidade social do mundo

antigo. Nesta resenha Finley analisa, além de Farrington, o livro de Martin Nilsson, Greek

Popular Religion e o de H. W. Parke, A History of the Delphic Oracle. Ao longo do artigo-

resenha, Finley, a todo momento, reafirma a indissociabilidade entre teoria e prática,

relacionando a ciência do mundo grego com o tecido social que o envolve. O fracasso da

ciência grega ante o obscurantismo do Império romano, questão inicial do livro de Farrington,

encontrava sua resposta não na ciência ou na religião, mas na sociedade. Tal luta era

basicamente política.464 O obscurantismo, segundo Farrington era associado às classes

oligárquicas gregas. A relação entre ciência e política começa a ser exemplificada a partir do

advento da democracia política em Atenas no século V a.C., com a antinomia de interesses

dos filósofos jônicos, que estavam minando os mitos oficiais e os aristocratas que resistiam a

estes ataques legitimando o culto do estado, oráculos, profetas e suas cosmologias.465 Nesta

perspectiva, Finley vai além da análise de Farrington e classifica a filosofia de Platão como

um bastião dos interesses aristocráticos. Compara-o a Hegel, afirmando

Platão, assim como Hegel, desenvolveu uma filosofia social reacionária através de uma série de conceitos que eram devastadoramente críticos da sociedade de sua época e que transcederam os limites daquela sociedade em vários pontos cruciais.466

Ao final destas palavras, Finley insere uma nota de pé de página, comenta o livro de

Marcuse, Reason and revolution, como “um livro que oferece valiosos insights para nosso

problema apesar de somente tratar do pensamento do século dezenove e vinte.”467 Ao

qualificar de reacionária a crítica feita por Platão à cidade-Estado grega, comparando-a com a

crítica de Hegel à sociedade em que vivia, Finley possibilita-nos inferir para além do texto,

464 FINKELSTEIN, M. Review: FARRINGTON, B. Science and Politics in the Ancient World; NILSSON, M.

Greek Popular Religion; PARKE, H.W. History of the Delphic Oracle. Zeitschrift für Sozialforschung, IX, 1941, p. 502.

465 ibid., 503. 466 ibid., p. 509. 467 ibid.

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hors-texte, alguns argumentos da crítica de Marx à filosofia idealista alemã. Parece aqui bem

presente a contundência das palavras de Marx, em oposição aos neo-hegelianos, de que é

partindo das atividades reais que se apreende o que os homens dizem, imaginam e pensam.

É a partir de seu processo de vida real que se representa o desenvolvimento

dos reflexos e das repercussões ideológicas deste processo vital.(...) Assim,

qualquer ideologia perdia imediatamente toda a sua autonomia.468

Em oposição à filosofia hegeliana, o materialismo dialético de Marx; em oposição a

Platão, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo. Mas, até que ponto tais correntes filosóficas

foram revolucionárias? O estoicismo, segundo Farrington, apesar de constituir-se em uma

doutrina potencialmente revolucionária, cujos princípios, repousavam, segundo Zenão, em

uma república ideal abarcando toda a humanidade, com leis prescritas pela natureza e não por

convenção, sem divisões de classe, sem imagens ou templos, não oferecia, contudo,

resistência efetiva às filosofias aristocráticas. Sua teologia astral teria aberto caminho para a

superstição. O homem fora afastado da luta com a natureza para um espírito de negativismo e

resignação.469 Já no epicurismo, o atomismo é o ponto de partida para o conhecimento da

natureza, remédio para os males da sociedade. Apesar de constituir-se em uma ameaça

reconhecida ao obscurantismo oligárquico, e com um público amplo e crescente, Finley

afirma, de acordo com Farrington, que seus conceitos não revelam uma filosofia social

revolucionária, pois

Epicuro parece menos preocupado com as questões sociais imediatas do que Platão. Sua ênfase recai na realização de um conhecimento próprio do mundo natural, com sua conseqüência, a eliminação da rede do obscurantismo e do irracionalismo com os quais as pessoas estavam atadas aos cultos e às crenças tradicionais.470

Finley associa também o fracasso revolucionário daquelas correntes filosóficas devido

à onipresença da religião. Para isto investiga a história do oráculo de Delfos. Segundo o autor,

468 MARX, K. A ideologia alemã. Lisboa, São Paulo: Editorial Presença; Martins Fontes, 1965. p. 25-26. 469 FINKELSTEIN, M. Review: FARRINGTON, B. Science and Politics in the Ancient World; NILSSON, M.

Greek Popular Religion; PARKE, H.W. History of the Delphic Oracle. Zeitschrift für Sozialforschung, IX, 1941. p. 503.

470 ibid., p. 509.

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em consonância com Parke, os segredos do sucesso do oráculo foram às declarações

desonestas e o oportunismo. “Delfos apoiou os tiranos quando eles estavam no poder, os

condenou depois que eles foram derrubados.”471 A força e o prestígio do oráculo teriam sido,

na verdade, produto do trabalho dos governantes de toda a Grécia.

Muitas cidades gregas, especialmente as mais importantes como Esparta e Atenas, mantinham “embaixadores sagrados” ou funcionários de ligação com Delfos.Seus reis, tiranos, e aristocratas faziam questão de freqüentar o conselho. Seus ideólogos espalharam sua fama em drama e estória, inventando oráculos onde não havia, explicando satisfatoriamente as adivinhações equivocadas dos sacerdotes ou seu silêncio prejudicial.472

Em seguida, Finley apresenta uma preocupação tipicamente marcusiana: o monopólio

da literatura por setores dominantes. A literatura antiga era monopolizada e manipulada pelos

escritores antigos e restrita ao círculo estreito da aristocracia, pois grande parte da população

era anlfabeta.

Desta forma tornou-se fácil entender o cinismo ostensivo e quase ingênuo com o qual os escritores antigos …revelaram os motivos e os mecanismos da manipulação de símbolos e superstição.473

Em sua última resenha do período que estamos analisando, sobre o livro de Henri

Frankfort, Kingship and the gods, escrita em 1948, continuam as preocupações com a

ideologia, com uma violenta crítica à filosofia positivista, e mais explicitamente à

fenomenologia. Finley logo no início da resenha assim define o livro como:

O livro é uma tentativa de aplicar o método de fenomenologia ao estudo de um modelo histórico em uma cultura ampla: a ideologia (mais propriamente, a teologia) da realeza no Egito e Mesopotâmia antigos.474

471 ibid., p. 505. 472 ibid. 473 ibid., p. 506. 474 FINKELSTEIN, M. Review: FRANKFORT, H. Kingship and Gods: A study of Ancient Near Eastern.

(1948), Political Science Quartely, LXIII, 1948, p. 275.

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Tal abordagem, segundo o próprio Frankfort, preocupada somente com o que aparece,

desconsidera verdades históricas e cronologia, a fim de evitar a armadilha de atribuir

importância exagerada a modificações insignificantes de uma idéia básica. Na verdade,

segundo Finley, não havia no livro uma discussão da realeza como uma instituição política, de

administração, poderes e prerrogativas reais, leis, disputas por poder e coisas parecidas. O que

Frankfort analisava era a teologia da realeza. Daí a crítica à abordagem estática e ahistórica

proposta por Frankfort, assentada na aceitação da ideologia divulgada por sacerdotes e

escribas como um retrato verdadeiro da teologia egípcia e da teoria política. Rejeitava-se a

idéia de que a crença religiosa podia ser produto de desenvolvimentos seculares, negando-se

as contradições existentes nesta teologia e deixando de explicá-las como o produto de

desenvolvimentos sociais e políticos.475 Segundo Finley, Frankfort induz-nos a crer que a

autoria dos textos religiosos é produto de toda a comunidade:

Nós somos levados a acreditar que todos os egípcios, todos os mesopotâmios, ou a comunidade toda defendiam uma crença particular, pois qualquer diferenciação introduzida de imediato, possivelmente o conflito, inexistentes segundo a pressuposição adotada. Decerto, é evidente por si mesmo que algum texto particular era registrado por alguém, uma pessoa concreta, real, presente. Presumivelmente quem aquela pessoa foi, o que ela representou, e quão representativa ela tenha sido é irrelevante, pois tais problemas são geralmente ignorados no livro.476

Por procurar somente o que aparece, Frankfort incorria em uma série de

inconsistências, convertendo-as em uma simples doutrina unificada. Por enfatizar a idéia que

tais verdades deveriam ser sentidas ao invés de conhecidas, ele bloqueava a possibilidade de

uma análise crítica. Seu erro fundamental na análise destas duas sociedades era o conceito de

“conjunto integrado”, insistindo na idéia de que o conjunto determinava as partes, e aceitando

como axiomática a unidade cultural e espiritual destas duas civilizações. Daí o postulado de

que a realeza constituía o coração da cultura.477

Aqui Finley compartilhava com os ideólogos da Escola de Frankfurt a crítica à

filosofia positivista. Em Razão e Revolução, Marcuse aponta a manutenção da autoridade

dominante contra qualquer investida revolucionária como um aspecto essencial da filosofia

475 ibid., p. 276-313. 476 ibid., p. 277. 477 ibid., p. 276-280.

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difundida por Comte. “A meta última é justificar e fortificar a ordem social.”478 O princípio da

filosofia positiva, que fazia dela a defensora da ordem estabelecida, era a subordinação da

imaginação à observação, ou seja, uma tendência à subordinação aos fatos. “Os fatos e suas

conexões representavam uma ordem inexorável que compreendia os fenômenos sociais e

naturais.”479 Observação no lugar de especulação, eis a receita de Comte para afirmar a ordem

em lugar de qualquer ruptura. O progresso era uma evolução harmoniosa da ordem social sob

leis naturais perenes. Na ciência, os juízos de valor deveriam ser excluídos. A “estática social”

era o elemento central da correlação do texto de Frankfort com a crítica à filosofia positivista

feita por Marcuse. Outro artigo, The concept of essence, de 1936, complementavam estas

críticas. Aqui Marcuse associava o destino da sociedade burguesa com sua filosofia. O

conceito de essência assumiu, na teoria burguesa, inicialmente com Descartes, uma forma

transcendental subjetiva. Diferentemente das fenomenologias posteriores, no cartesianismo, a

autonomia crítica da subjetividade baseava sua verdade última na essência. Já nas diversas

fenomenologias, o conhecimento das essências tem a função de vincular a livre crítica do

indivíduo às necessidades de fato. A fenomenologia husserliana, alvo das principais críticas

de Marcuse, cujo conceito de essência assenta em uma invariância das infinitas e múltiplas

variações. A fenomenologia, além da descrição, é uma aceitação do que existe carente de

qualquer significado crítico.

O conceito de essência na fenomenologia é até aqui removido de qualquer significado crítico que encara tanto o essencial e o não essencial, o objeto de fantasia, bem como aquele de percepção, como “fatos”. O anti-positivismo epistemológico dessa doutrina dificilmente esconde sua orientação positivista.480

Diferentemente de tal perspectiva, o conceito concreto de essência, para Marcuse, é

visto como processo, como história. A essência é a totalidade do processo histórico, tal como

se apresenta em uma determinada época histórica. Cada um dos momentos particulares é, em

si, parcial, isolado, não essencial; sua essência assenta na demonstração de suas relações com

o processo em sua totalidade. Dentro da totalidade deste processo se perfila uma ordem

estrutural de fundo, que determina as características dos distintos momentos ou partes do

478 MARCUSE, H. Razão e Revolução. Hegel e o advento da Teoria Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 479 ibid., p. 315. 480 MARCUSE, H. The concept of essence. In: __________. Negations. Essays in critical theory. Boston:

Beacon Press. 1969. p. 60.

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social.481 Em lugar da relação gnosiológica histórica entre essência e fato, se coloca a relação

crítico dinâmica de essência e fenômeno, como momento de um processo histórico. A

essência do homem se estuda à luz de uma futura comunidade humana, realisticamente ligada

a concretos meios materiais de liberação de que a sociedade realmente dispõe. Desta forma, a

essência é sempre essência de um fenômeno que aparece tal como ele é, mas poderia ser

diferente. Certamente um a priori está presente e ativo, porém não exclui a historicidade do

conceito de essência.482

Parece-nos que estes princípios da “teoria crítica” municiavam Finley a dirigir sua

crítica à idéia de que a sociedade não se constituía em uma totalidade contraditória. Finley

procura demonstrar, nesta resenha, a partir do próprio texto, que o autor, ao tentar estabelecer

um padrão comum e “estático” entre as realezas egípcias e mesopotâmicas, acaba envolvido

em contradições. Finley aborda uma passagem do texto em que o autor não consegue explicar

porque, durante o Reino Médio, todos os homens depois da morte tornavam-se o deus Osíris

em contraposição ao Reino Antigo, quando somente o faraó desfrutava deste privilégio. Para

uma tal mudança ter ocorrido, Frankfort admitia que a barreira que separava plebeus e reis

estava enfraquecida, daí as usurpações de prerrogativas reais de hábitos funerários pelo

homem comum. O problema é que Frankfort escreveu mais de 200 páginas tentando provar

que isto era impossível, pois:

Não somente não podia haver mudança na essência, mas o rei era uma divindade transcendental, inacessível para meros humanos. Agora nós aprendemos que o homem comum até usurpou as prerrogativas reais deste deus transcendental.483

Contrapondo-se à filosofia idealista, na qual o eterno passado domina o conceito de

essência, Finley, nesta resenha, “refazia” a crítica da filosofia materialista dialética ao

positivismo e ao idealismo, associando-os, naquele momento, implicitamente, à ideologias

autoritárias.

O exame dos textos dos autores frankfurtianos incita-nos a uma reflexão sobre a

relação entre marxismo e historismo, filtrada pelos escritos de Finley. A abordagem historista

da Escola de Frankfurt rejeitava o determinismo implícito da II e III Internacionais. Desde 481 ibid., p. 70-71. 482 ibid., p. 72-74. 483 FINKELSTEIN, M. Review: Frankfort, H. Kingship and Gods: A study of Ancient Near Eastern. (1948),

Political Science Quartely, LXIII, 1948, p. 278.

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Lukcás, estes intelectuais acentuaramo caráter relativista do marxismo, em oposição ao

mecanicismo reducionista das ciências naturais. Como já dissemos anteriormente, o marxismo

também esteve próximo, nesta época, de uma perspectiva a-histórica. O historismo será

renovado nos escritos de Lukcás e Korsch, e com a contribuição da Sociologia. Além disso,

os frankfurtianos compartilhavam com a idéia de que a História deveria ser ao mesmo tempo

uma ciência interpretativa e filosófica, impregnada de valores, além de engajada e ativa. O

homem é resultado do processo social ao longo da História e os fatos históricos são

possuidores de historicidade pelo objeto percebido e pelo sujeito cognoscente. Finley, já nesta

época, se distancia do historismo idealista do tipo meineckiano, que interpreta a História de

forma teleológica e providencialista, e aproxima-se de um marxismo anti-reducionista e

mesmo anti-evolucionista, muito forte nos anos vinte.

Finley mostrou, em resenhas da época, dois elementos fundamentais das preocupações

frankfurtianas: a crítica contra o idealismo e contra o positivismo. A própria idéia de crítica é

fundamental no desdobramento de sua obra. A crítica como um esforço intelectual e prático,

que leve a não aceitar sem reflexão nem por hábito as idéias, os modos de atuar e as relações

sociais dominantes.484 Estas idéias horkheimianas estarão permanentemente presente em seus

trabalhos. A crítica contra o idealismo o afastará do mais poderoso princípio filosófico do

Historismo, e a crítica contra o positivismo rechaça a possibilidade de preponderância dos

axiomas das ciências naturais na esfera das ciências humanas. Contudo, apesar das violentas

críticas ao racionalismo cartesiano, associada ao idealismo, a linguagem “frankfurtiana” e o

discurso de Finley não passam ao largo do paradigma moderno da História, caracterizado por

uma concepção de racionalidade e método. A utilização de construções teóricas, advindas

tanto da Sociologia como da Antropologia, como meios de interpretação da História,

característicos não só da historiografia marxista, como da Escola dos Annales, rompe com o

Historismo, mas também com tendências ahistóricas da própria História Social. Finley dava

um passo a frente neste diálogo.

O embate contra a história compartimentalizada é uma influência dos filósofos

frankfurtianos e de suas leituras dos escritores dos Annales. A crítica feita ao positivismo é

direcionada contra esta compartimentalização da História, contra uma ciência que isola os

fatos em sua pureza. A utopia marcusiana, de caráter transformador, em contraposição a uma

utopia estática e sustentadora da ordem social aproximam Finley da tradição contestadora do

484 HORKHEIMER, MAX. La funcion social de la filosofia. In: Teoría crítica. Buenos Aires: Amorrortu

editores, 1974. p. 287-289.

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marxismo dos anos vinte. Apesar disso, Finley recorreu a Meyer e Beloch, já nesta época para

exemplificar trabalhos de História Antiga não voltados somente para um aspecto da

sociedade. Este é apenas um exemplo de que alguns elementos da História Social já estão

presentes nos trabalhos de historiadores envolvidos no ambiente cultural do historismo,

mesmo na obra de Meyer, autor que combateu ferozmente os trabalhos de Karl Lamprecht.

Apesar de sua ênfase na explicação das contradições e mudanças, a idéia de que os

fenômenos históricos devem ser explicados a partir do momento em que ocorriam, muito

presente nos textos de Finley, mais próxima de uma abordagem historista, demonstram uma

oposição à idéia evolucionista de que o passado se move necessariamente em direção ao

presente. Tal traço parece ser acentuado principalmente porque Finley estava combatendo

uma historiografia acerca da antigüidade de características muito conservadoras e de caráter

extremamente ahistórico. Por outro lado, porém, Finley parecia “usar” o mundo antigo como

um meio de combater correntes próximas de ideologias autoritárias, já que tais escritos foram

produzidos no entre guerras e sobre influência de intelectuais que haviam fugido da

perseguição nazista. É bom lembrar que Finley também sentiu nos EUA a perseguição aos

judeus.

O marxismo parece ter sido uma forte referência intelectual e política para Finley, mas

não engendrou um programa de pesquisa reconhecidamente marxista. Seus trabalhos

posteriores não refletiram as reflexões programáticas destas resenhas. O confronto com o

material empírico, tal como foi entendido e empreendido por Finley, acabou o afastando da

análise marxista da História, mas não de temas caros à historiografia marxista: a dominação

ideológica de setores dominantes – Marcuse -, escravidão; e o estudo de grandes estruturas

históricas como a economia antiga.

5.3 MOSES FINLEY E A ECONOMIA ANTIGA

Abordaremos agora os trabalhos de Finley relacionados com a economia antiga. Em

virtude de sua extensa produção sobre o tema, escrita ao longo de toda a sua carreira,

cobrindo as mais diversas questões e com nuances de opinião ao longo do tempo, decidimos

tomar o livro The Ancient Economy (utilizaremos a tradução portuguesa, intitulada A

Economia Antiga, editada em 1980) como referência de análise. As grandes questões

investigadas por Finley sobre a economia e sociedade grega, desde os anos 30, estão presentes

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nos capítulos de A Economia Antiga, daí a importância deste livro, escrito na fase mais

madura de Finley, sua maior contribuição ao debate do oikos.

Dando continuidade à metodologia seguida até aqui, iremos apresentar as reflexões

de Finley sobre a economia da Grécia Antiga procurando, em primeiro lugar, perceber como o

autor insere as grandes questões da tradição primitivista-substantivista no seio da História

Social; e, em segundo lugar, comparando-as com as idéias dos outros autores paradigmáticos

daquela tradição: Bücher, Hasebroek, Weber, Polanyi. Procuraremos, então, demonstrar que a

análise de Finley se encontra no ponto culminante da inserção e crítica dos temas

desenvolvidos nesta tradição no campo da História Social, em razão do contexto social e

teórico em que nosso autor desenvolveu seus trabalhos. Na verdade, desde Bücher, ainda no

contexto do Historismo, esboçam-se temas e análises de uma História preocupada com setores

da sociedade que ultrapassam os muros de uma estrita história política.

Escrito em 1971 para as conferências de Sather, em 1972, o livro A Economia

Antiga foi publicado pela primeira vez em 1973, reeditado em 1985 e 2005. Aclamado por

muitos como o livro de maior impacto sobre o estudo da história econômica romana e grega

no século XX, o livro foi traduzido para o italiano, francês, espanhol, alemão, português e

grego moderno, além de discutido e criticado em diversas resenhas e artigos.

Segundo Descat, o livro A Economia Antiga funda uma nova ortodoxia e seu

conceito de “economia antiga” prevaleceu, mesmo com oposições aqui e ali485. Em nossa

opinião esta “nova ortodoxia” é, na verdade, resultado de uma maturação de suas leituras dos

autores paradigmáticos da tradição primitivista-substantivista. Desde os anos 30, Finley

escreveu sobre os trabalhos de Hasebroek, Weber, Bücher e Polanyi. Com este último,

inclusive, manteve um contato intenso na universidade de Columbia. Apesar de em alguns

momentos anteriores, até a publicação do livro, Finley ter se afastado destes autores,

apontando equívocos e falhas empíricas, pois dispunha de maiores informações empíricas que

seus antecessores, em A Economia Antiga, ele explorou e aprofundou, com uma

contundência impressionante, os argumentos teóricos de autores como Weber e Polanyi. Estes

dois, sem sombra de dúvida, são as grandes referências intelectuais do livro, além de uma

defesa crítica aos postulados gerais de Hasebroek.

No primeiro capítulo do livro A Economia Antiga, intitulado “os antigos e sua

economia”, Finley afirma que os livros dos escritores antigos sobre economia eram obras

485 DESCAT, R. L’économie antique et la cite Grecque: um modèle em question. Annales ESC, n. 5, 1995, p.

961.

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práticas, não havia nenhum princípio econômico ou mesmo uma análise econômica, sobre

eficiência de produção, escolha racional, ou comercialização das colheitas. Apesar de

trabalharem a terra, negociarem, fabricarem objetos, escavarem minas, decretarem impostos,

cunharem moedas, fazerem empréstimos, os antigos não combinavam estas atividades

particulares conceitualmente em uma unidade, isto é, em “subsistema diferenciado de

sociedade”. Esta ausência não é uma falha intelectual, mas sim um comportamento

institucional.486

Eis aqui um primeiro ataque aos modernistas, aos defensores de uma transposição da

teoria econômica neoclássica ao mundo antigo. Finley tomava partido da cruzada polanyiana

contra os formalistas e reafirmava o caráter distinto do mundo antigo, eliminando qualquer

possibilidade de análise que partisse de princípios da ciência econômica moderna. A citação

de Parsons, “um sistema diferenciado de sociedade”, demonstrava a impossibilidade de

autonomia da esfera econômica e seu caráter dependente de outras esferas institucionais.

Finley irá procurar provar, por meio de autores como Xenofonte e Aristóteles, que sem um

conceito de economia, as ações e atitudes dos antigos não poderiam ser guiadas por motivos

econômicos. A utilização de Aristóteles como fonte privilegiada para tal discussão foi tema de

um artigo escrito por Finley publicado em 1970, Aristotle and economic analysis

(utilizaremos a tradução espanhola Aristóteles y el analisis econômica), motivo de

controvérsia entre analistas que estudam a obra de Finley. Enquanto Hindess usa o artigo para

demonstrar as fortes afinidades de Polanyi.487 Nafissi, por outro lado, utiliza o artigo para

mostrar o início de um passageiro rompimento de Finley com o programa de pesquisa de

Polanyi. A comparação é estabelecida com o texto de Polanyi sobre Aristóteles, já investigado

aqui, Aristóteles descubre la economia. Apesar de aceitar a visão polanyiana do papel

fundador de Aristóteles de uma sociologia do estabelecimento de equivalências, Nafissi

afirma que Finley discorda de Polanyi no ponto crucial da análise deste: qual o tema que

verdadeiramente Aristóteles está tratando. Enquanto Polanyi acredita que a ausência de uma

análise sobre o mecanismo de mercado de oferta e demanda por Aristóteles corrobora a

inexistência de troca de mercado disembedded em Atenas no século IV, Finley acredita que

Aristóteles estava tratando sobre um primeiro estágio na evolução da sociedade grega e sobre

os problemas éticos de justiça, virtude e amizade. Além disso, Nafissi ressalta a passagem do

486 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 20-23. 487 HINDESS, B. Extend review: FINLEY, M. Democracy ancient and modern; politics in ancient world.

Sociological Review , n. 23, 1975, p. 15-17.

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texto em que Finley afirma a existência de variações de preço de acordo com um mecanismo

de oferta e demanda, lugar comum na vida grega no século IV a.C.488

Segundo Polanyi, Aristóteles abordou a questão do lugar ocupado pela economia na

sociedade. E mais, que é possível buscar em suas obras formulações sobre questões

econômicas mais consistentes e significativas que as que no passado se tem atribuído a elas.

Polanyi foi ao extremo, e viu Aristóteles como o filósofo da Gemeinschaft (comunidade). Ele

comparou os pensamentos de Aristóteles sobre koinonia, philia, e autarkeia com as

instituições de reciprocidade dos ilhéus trobrianos e o povo Arapesh de Papua-Nova Guiné.

“Estes são exageros lamentáveis”, segundo Meikle, que vê o interesse de Aristóteles em

assegurar os laços da pólis não por meio de reciprocidade arcaica, mas, como uma tentativa de

especificar reciprocidade como uma relação de igualdade entre proporções de produtos

trocados, isto é, encontrar alguma forma de philia para compra e venda.489 Cartledge acredita

que Aristóteles escreveu sobre uma gama enorme de temas, mas não sobre Economia. Quase

tudo que escreveu sobre transações sociais interpessoais pode ser substituído pela rubrica

geral de ‘política’. Contudo, Cartledge crê que os gregos antigos tanto tiveram uma economia,

quanto estabeleceram uma análise econômica, de uma natureza incomensuravelmente

diferente de qualquer coisa familiar ou reconhecível por nós como tal.490 Mesmo que Finley

tenha negado o caráter originário de Aristóteles às teses substantivistas de Polanyi, e admitido

a presença de mercados caracterizados pela oferta e demanda em Atenas, o fato é que, em A

Economia Antiga, ele não só não retoma estes questionamentos, como reafirma a

inexistência de mercados interdependentes no mundo antigo.

Mas que aconteceria se uma sociedade não estivesse organizada para a satisfação das suas necessidades materiais através de uma ‘enorme conglomeração de mercados interdependentes’? Seria, neste caso, impossível descobrir ou formular leis (‘uniformidades estatísticas’ se preferirem) do comportamento econômico, sem as quais o desenvolvimento dum conceito de ‘economia é improvável e a análise econômica impossível.491 (Grifo nosso)

488 NAFISSI, M. op. cit, p. 230-232. No texto de Finley, Aristóteles y el análisis economica. In: FINLEY, M.

(org) Estudios sobre historia Antigua. Madri: Akal Editor, 1981. p. 50. Ao final desta passagem, Finley insere uma nota de pé de página na qual afirma que este tópico foi levantado em virtude da estranha passagem de Polanyi de que o “mecanismo de oferta-demanda-preço escapou à Aristóteles”.

489 MEIKLE, S. Modernism, economics and the Ancient Economy. In: SCHEIDEL,W., VON REDEN,S. (org) The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002. p. 238

490 CARTLEDGE, P. The economy (Economies) of Ancient Greece. In: SCHEIDEL,W., VON REDEN, S. (org) The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002. p. 15-18.

491 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 24.

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223

Esta passagem deixa bem claro que a ausência de mercados interdependentes

impossibilita a formulação de leis e de um conceito de economia. Finley aqui estava

convencido de que não havia meio termo entre um mercado nos moldes modernos ou uma

outra forma de mercado. Parece, portanto, não aprofundar o modelo polanyiano de mercados

locais, no qual a ágora ateniense exerce um papel fundamental. Tal generalização bloqueou a

possibilidade de investigar com mais cuidado o funcionamento de mercados parciais. É sobre

estes mercados que os modernistas começaram a se deparar com mais atenção, e a crítica a

Finley tem sido mais contundente em relação ao império romano do que à Grécia antiga. Por

outro lado, a afirmação de Finley parecia refletir uma posição ideológica na época, isto é, um

combate contra os dogmas capitalistas, isto é, mercadistas.

A passagem que grifamos da citação de Finley: descobrir ou formular leis

(‘uniformidades estatísticas’..), demonstra que Finley rejeitava a possibilidade de utilização

de qualquer modelo da economia neoclássica, particularmente aqueles relacionados com a

cliometria, pois, qualquer tentativa de organizar dados antigos seria infrutífera diante dos

poucos registros conservados relacionados à séries temporais tanto no setor público quanto no

privado. Esta ausência de números dificultava informações sobre produtividade ou estatísticas

sobre a população. Não se trata apenas de fazer perguntas que os antigos não fizeram, ou de

imaginar novos métodos, mas de fazer as perguntas adequadas.492 Eis aqui uma forte

proximidade com Bloch.

Necessário agora era procurar conceitos e modelos diferentes, apropriados ao mundo

antigo. A caracterização deste modelo começa pela definição de “antigo”. Finley procura esta

definição partindo de uma comparação com o Antigo Oriente Próximo, apontando as

diferenças culturais, sociais e políticas entre o mediterrâneo e as civilizações do antigo

Oriente Próximo. Sua delimitação parece ser coerente com os modelos weberiano e

polanyiano na utilização do Antigo Oriente Próximo como parâmetros diferenciadores ao

mundo greco-romano.

Englobar os dois mundos sobre a mesma etiqueta de “antigo” em um mesmo modelo,

seria ocultar profundas divergências quanto à propriedade, comércio e indústrias privadas.

Delimitando o mundo greco-romano como seu objeto, e tomando as condições climáticas e os

tipos sociais e políticos dominantes, o mundo greco-romano a ser explorado concentra-se no

período entre 1000 a.C. e 500 d.C., se configurando, contudo, em uma abstração bastante

492 ibid., p. 25-29.

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fluida.493 Finley reconheceu a diversidade de arranjos econômicos dentro desta enorme

extensão de tempo e espaço, mas coerente com uma proposta weberiana, insistiu na idéia de

que era necessário se concentrar nos tipos dominantes, nos modos característicos de

comportamento.494

As justificativas para falar de economia antiga não são os elementos que caracterizam

as economias modernas, mas sim a unidade política e o quadro cultural-psicológico comum

nos séculos finais do mundo antigo.495 Em escritos posteriores sobre o livro A Economia

Antiga, Finley continuou defendendo esta categoria e insistindo nas razões não econômicas

para falar de economia antiga. As exceções não invalidavam seu modelo, pois a existência de

exceções era inerente ao conceito de tipo ideal. Os erros de sua análise não deveriam ser

atribuídos aos exageros ou exceções esporádicos, mas aos exageros que pudessem invalidar

seu modelo como um todo. Finley continuava defendendo o uso de modelos, tipos ideais e

teorias de forma explícita, em detrimento do acúmulo de evidência.496 Paradoxalmente, nos

anos noventa, as críticas ao livro A Economia Antiga, provenientes de autores da Nova

História Cultural, retomou uma crítica filológica pré-finleyniana, apontando erros factuais,

chamando atenção para a variedade e singularidade dos indivíduos, instituições e estados do

mundo antigo. O econômico passou a ser tratado como uma categoria de representação, um

campo de negociações para atores instruídos na busca de seus próprios objetivos.497 Finley

acabou recebendo as mesmas críticas de Hasebroek, sendo acusado de omissões sistemáticas e

de ter subestimado a escala do comércio, indústria, negócios bancários e outras atividades

econômicas não agrícolas.498 Finley era extremamente áspero contra os militantes de uma

história local, mas, se vivo provavelmente justificaria estas críticas, como ele mesmo afirmara

em História Antiga. Testemunhos e modelos, em virtude das mudanças das ideologias, que

acarreta consigo transformações na escrita da História. O que nos parece contraditório nesta

discussão, de acordo com Nafissi, é que Finley não parece querer unir a teoria com a pesquisa

‘antiquária’, ou evidências, realçando muito mais uma antinomia entre estes.499

493 ibid., p. 15-20. 494 ibid., p. 34. 495 ibid., p. 23. 496 FINLEY, M. The study of the ancient economy. Further thoughts. Opus, III, 1984, 5-11 e FINLEY, M. The

ancient economy and its critics. Mimeografo. S/d. 1-7. 497 CARTLEDGE, P. The economy (Economies) of Ancient Greece. In: SCHEIDEL,W., VON REDEN, S. (org)

The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002, p. 30. 498 MORRIS, I. Foreword, In: The Ancient Economy. Update edition. Berkley, 1999, p. xxv-xxvi 499 NAFISSI, op. cit., p. 239.

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Este capítulo introdutório do livro A Economia Antiga nos parece mais próximo de

Polanyi, apesar de em nenhum momento Finley utilizar os termos embedded ou disembedded.

A defesa do substantivismo aparece pela negação aos cânones formalistas. É menos

weberiano porque, como já afirmamos, Weber manteve posições dúbias em relação ao

formalismo, ao opor-se ao “modernismo” do mundo antigo com argumentos formalistas,

desprovendo este mundo da racionalidade moderna. Contudo, a idéia da economia antiga

como um modelo guarda maiores afinidades com o tipo ideal weberiano.

Ian Morris afirma que “o coração analítico do modelo de Finley é o status.”500 Grande

parte dos sábios considera que neste capítulo a influência weberiana é mais presente, com um

ruidoso debate com os marxistas em torno do conceito de classe social. Entretanto, neste

mesmo capítulo, o autor faz a mais forte menção à idéia de embedded citando Luckás:

‘A consciência de status..oculta a consciência de classe’. Queria assim dizer, como ele próprio explicou que ‘a estruturação da sociedade em castas e estados significa que os elementos econômicos se encontram inextricavelmente ligados a fatos políticos e religiosos’, que ‘as categorias econômicas e legais estão objetivamente e substancialmente tão interligadas que chegam a ser inseparáveis.501

Em nossa opinião, este capítulo reúne influências weberianas, polanyianas e

frankfurtianas ao negar um conceito de classe para o mundo antigo mais próximo do, na

época, denominado marxismo ortodoxo. Na verdade, Finley, ao utilizar o status, “uma palavra

admiravelmente vaga com um elemento psicológico considerável,”502 como forma dominante

em todas as sociedades pré-capitalistas, estava combatendo fundamentalmente uma percepção

modernista do uso de classe social, que ele associou ao marxismo. Este combate alinhava-se a

um elemento fundamental da teoria weberiana de classe: a relação de classe com o mercado.

“Mas sempre vale para o conceito de classe que a oportunidade no mercado é o condicionador

comum do destino dos indivíduos.”503 Concomitantemente, cerrava fileiras contra o conceito

marxista de classe ao afirmar que

500 MORRIS, I. Foreword. In: FINLEY, M. The Ancient Economy. Update edition. Berkley, 1999. p. xx. 501 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 64. 502 ibid., p. 65 503 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 177.

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qualquer que seja a aplicabilidade desta classificação na sociedade contemporânea, para o historiador da antiguidade há uma dificuldade óbvia : o escravo e o trabalhador assalariado livre seriam, neste caso e numa interpretação mecânica, membros da mesma classe, da mesma forma que o mais rico dos senadores e o proprietário de uma pequena oficina de cerâmica (desde que este não trabalhasse). Não parece uma maneira muito inteligente de examinar a sociedade antiga.504

Logo em seguida, Finley afirma que a “pressão da economia capitalista de mercado

sobre o historiador revela-se muito grande neste ponto.”505

Esta defesa do status – na terminologia weberiana, estamento – começa pela separação

entre cidadãos e não cidadãos e o acesso à terra restrito a cidadãos. Este era um elemento

importante para travar o desenvolvimento da economia, no sentido moderno, pois resultou na

concentração de não-cidadãos em atividades comerciais, manufatureiras e financeiras.

Seguindo Cícero, o autor afirma que as fontes antigas ressaltam o baixo status moral e social

dos comerciantes e industriais profissionais ao longo de toda a história romana506 e,

concomitantemente, o papel politicamente marginal, mesmo que socialmente respeitável, dos

metecos ricos de Atenas, em virtude da inibição por valores fundamentais da elite política. Os

metecos eram condenados pelos seus vícios e maus costumes e nunca como rivais de

oportunidades econômicas. Qualquer modelo de “investimento” econômico daria considerável

peso ao fator status. Ao ressaltar o papel positivo da agricultura, do grande comércio e de

algumas profissões: medicina, ensino, e negativamente dos peixeiros, cozinheiros,

negociantes de galinhas, pequenos comerciantes, os assalariados, cobradores e prestamistas,

Cícero afirmava os aspectos honoríficos de algumas ocupações sociais, que resultavam na

ausência ou monopólio de privilégios sociais e políticos.Tudo isto lembra o ethos aristocrático

salientado por Weber, que condenava a avidez pelo lucro de forma racional e qualquer

ocupação aquisitiva sistemática. A honra estamental relacionada com uma condução de vida

específica. Eis aqui como Finley interligava a citação de Lukcás com a teoria weberiana de

estamento. Valores não econômicos obscureciam interesses econômicos. Retomemos,

contudo, de forma mais detalhada a análise de classe de Weber.

Weber em sua conceituação de classe, no volume I de Economia e sociedade, chamou

de situação de classe

504 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 62-63. 505 ibid., p. 63. 506 ibid., p. 77.

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a oportunidade típica de 1. abastecimento de bens, 2. posição de vida externa, 3. destino pessoal, que resulta, dentro de determinada ordem econômica, da extensão e natureza do poder de disposição (ou da falta deste) sobre bens ou qualificação de serviço e da natureza de sua aplicabilidade para a obtenção de rendas ou outras receitas.507

Classe, portanto, é todo grupo de pessoas que se encontra em igual situação de classe.

Junto a isto, dividiu o termo em três categorias: 1. classe proprietária: aquela em que as

diferenças de propriedade determinam a situação de classe; 2. classe aquisitiva: determinada

primariamente pelas oportunidades de valorização de bens; 3. classe social: a totalidade

daquelas situações de classe entre as quais uma mudança pessoal ou na sucessão das gerações

é facilmente possível e costuma ocorrer tipicamente.508 Os rentistas são típicos representantes

das classes proprietárias positivamente privilegiadas, enquanto os pobres, endividados,

desclassificados e os dependentes são negativamente privilegiados; os empresários são

representantes típicos das classes aquisitivas e os trabalhadores, em suas diversas categorias,

são os representantes típicos das classes aquisitivas negativamente privilegiadas; os

trabalhadores em seu conjunto, a pequena burguesia, os intelectuais sem propriedade e os

especialistas profissionais, as classes dos proprietários e privilegiados por educação

constituem as classes sociais. A partir desta classificação, Weber afirma que as classes

aquisitivas crescem com base na economia orientada pelo mercado, e, entre as classes, a

“classe aquisitiva” é a que mais se afasta do “estamento”, enquanto a “classe social” é a mais

próxima. Os “estamentos” são constituídos basicamente por classes proprietárias. No livro II

de Economia e sociedade, Weber não se furtou de historicizar suas categorias de classe. Em

primeiro lugar, Weber relativizou a idéia de “situação de classe” e “interesse de classe”. O

conceito de “interesse de classe” não é unívoco e nem mesmo inequivocamente empírico,

quando se compreende por ele outra coisa que a tendência efetiva, resultante, com certa

probabilidade da situação de classe, dos interesses de certa “média” dos que a ela estão

submetidos. Concomitantemente, também varia conforme se tenha desenvolvido ou não, a

partir da “situação de classe”, uma ação social de uma parte maior ou menor dos

coletivamente atingidos. Não é um fenômeno universal o desenvolvimento de uma ação social

a partir da “situação de classe” comum.509

507 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. vol 1, p. 199. 508 idem. 509 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e

Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 177-178.

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Toda classe, portanto, “pode” ser portadora de uma “ação de classe”, possível em

inúmeras formas diferentes, mas não o é necessariamente. É aqui que Finley, tece sua crítica

mais violenta ao conceito de classe, pois combate o entendimento de “classe” como

necessariamente portadora de uma “ação de classe” para o mundo antigo. Weber ressalta que

devem ser claramente reconhecíveis a condicionalidade e o efeito da “situação de classe”,

pois somente nesse caso pode o contraste das oportunidades de vida ser sentido não como

algo simplesmente dado, mas sim como algo resultante ou da distribuição existente da

propriedade, ou da estrutura da ordem econômica concreta. Historicizando a evolução dos

antagonismos de classe, até a cristalização do mercado, Weber acredita que do passado até a

atualidade, a luta que atua sobre a situação de classe, resultado da ação social entre membros

de classes diferentes, deslocou-se progressivamente, a partir da esfera do crédito, primeiro

para a da luta de preços no mercado de trabalho, em seguida, para as lutas pelo acesso ao

mercado e fixação dos preços dos produtos até aos antagonismos de classe, condicionados

pela situação do mercado. Dessa forma, as lutas de classe da Antiguidade - ligados à primeira

categoria, formas de protestos irracionais e intermitentes - eram lutas de devedores

camponeses (e, provavelmente, artesãos) ameaçados pela servidão por dívidas, contra

credores residentes nas cidades. Este foi o início das “lutas de classes”, com um mercado de

crédito - muito primitivo – com taxas de juros, que aumentavam de acordo com a necessidade,

e com uma monopolização efetiva dos empréstimos por parte de uma plutocracia.510

Finley conhecia muito bem os conflitos entre devedores e credores da Grécia primitiva

e Roma arcaica. As stásis foram temas constantes de seus estudos. Ao abandonar o conceito

de “classe” marxista, e “classe aquisitiva” de Weber - no livro economia Antiga, mas não em

artigos anteriores - em pró somente do termo status (ou estamento), ancorado em Weber,

Finley estabeleceu uma divisão entre sociedades capitalistas e pré-capitalistas, de

embeddedness e disembeddedness, por meio da diferenciação entre classe e status. Não

conseguiu, ou não quis, perceber as nuances das relações entre classe e estamento, mesmo

com a ausência do mercado formador de preços. Neste ponto ele reforçou a hipótese de

trabalho de Polanyi, de relacionar embeddedness com status e disembeddedness com classe.

Além disso, interpretou os conflitos de classe por uma ótica ora funcionalista, ora com ecos

do marxismo frankfurtiano, passando a conviver com contradições sérias entre uma visão

estruturalista e pouca histórica e outra mais histórica. Isto fica patente em sua análise da

escravidão antiga.

510 ibid., p. 177-180.

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O tema da escravidão antiga ocupou no livro A Economia Antiga, o maior espaço,

resultado de uma série de estudos, publicados desde 1959 e, que, mesmo depois da publicação

de A Economia Antiga, ainda continuou sendo uns temas centrais de Finley, desembocando

no famoso livro, Ancient Slavery and Modern Ideology (Escravidão antiga e ideologia

moderna), um dos seus últimos livros, publicado pela primeira vez em 1980. Segundo Morris,

a escravidão foi para Finley o fundamento da passagem da reciprocidade hierárquica,

dominante na sociedade homérica, para uma reciprocidade igualitária, dominante na pólis

clássica.511

Seus estudos sobre escravidão ao longo deste período acirraram seus debates com os

marxistas e com os modernistas, particularmente com Eduard Meyer. Ao historicizar os

estudos sobre escravidão, Finley condena, em primeiro lugar, os juízos morais, que nos levam

a subestimar ou ignorar o papel da escravidão. Em segundo lugar, não aprova o uso da

escravidão como um campo de batalha político entre marxistas e não-marxistas desde a

publicação do Manifesto comunista. No seu primeiro artigo sobre escravidão, Was the Greek

civilization based on slave labour? (A civilização grega era baseada no trabalho escravo?),

escrito em 1959, Finley rompe com as propostas programáticas de suas resenhas, e

conseqüentemente com uma orientação marxista. Ressalta as discussões consideradas por eles

improdutivas pelo marxismo, como por exemplo, aquelas sobre as causas da escravidão, que

naquele momento pareciam estar conduzindo a questões falsas, impostas por um tipo ingênuo

de pensamento pseudocientífico.512

Em seu artigo de 1984, The study of the ancient economy. Further thoughts,

Finley reafirma sua oposição à utilização do conceito de modo de produção escravista para o

mundo antigo. Elencou alguns fatores para esta rejeição: 1. a ausência do emprego, no tempo

e no espaço, no mundo greco-romano do trabalho escravo produtivo em grande escala; 2.

impossibilidade de coadunar modos de produção diferentes no mundo antigo. Finley rejeita a

hipótese de que o modo de produção escravista da sociedade americana tenha sido dominado

pelo modo de produção capitalista, mas sim incorporado. O modo de produção perde assim

seu significado para uma mera categoria particular de trabalho.513

Em vez de avaliar a evolução das formas de produção, Finley mostrou-se muito mais

preocupado em explicar a situação dos escravos dentro das diferentes sociedades do mundo

511 MORRIS, I. op. cit., p. xviii. 512 FINLEY, M. A civilização grega era baseada no trabalho escravo? In: ________. Economia e sociedade na

Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 119. 513 FINLEY, M. The study of the ancient economy. Further thoughts. Opus, III, 1984, p. 6.

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clássico e entender como foi possível separar os escravos dos homens livres. Isto indica

entender graus e variedades da liberdade, não somente graus e variedades da escravidão.514 O

seu argumento principal contra os marxistas na época estava baseado nas diferenças sociais e

econômicas que o estatuto legal do escravo ocultava entre eles. No seio de tal categoria

encontramos escravos por dívidas, hilotas, escravos propriedade, a instituição do peculium e

as diferenças de natureza de trabalho dos escravos (escravos domésticos e escravos que

trabalhavam nas minas). Os hilotas, diferente dos escravos–propriedade (chattel slaves) de

Atenas, não eram propriedade de espartanos individuais. Não eram comprados nem vendidos,

só podiam ser libertados pelo Estado e auto perpetuavam-se. O escravo possuidor de um

peculium podia comprar sua liberdade com os lucros obtidos. Eram, sobretudo, artífices

autônomos, penhoristas, prestamistas e comerciantes. “Faziam o mesmo tipo de trabalho que

os seus contemporâneos livres, da mesma forma e nas mesmas condições, apesar da diferença

formal no estatuto legal.”515

Finley contesta a possibilidade de se pensar a sociedade antiga em dois extremos

polares de liberdade jurídica. Em um extremo o escravo como propriedade e no outro o

homem livre, cujos atos são todos executados livre e voluntariamente.516 No seu primeiro

artigo sobre escravidão, Finley se contrapõe a esta asserção afirmando que a “sociedade

antiga deve ser pensada como um espectro de classes sociais, com o cidadão livre em um

extremo e o escravo no outro, e com um considerável número de graus de dependência no

meio.”517 Classe social nesta perspectiva foi definida em um artigo posterior, escrito em 1960,

como

um acúmulo de privilégios e poderes, etc., e portanto a definição de qualquer classe social em particular, ou da classe social de qualquer indivíduo, a partir da posse e localização dos elementos do acúmulo de direitos.518

Todos os homens são, portanto, um aglomerado de reivindicações, privilégios,

imunidades, responsabilidades e obrigações em relação aos outros. A categoria social de um

514 MOMIGLIANO, A. Moses Finley and slavery: a personal note. In: FINLEY, M. I. Classical slavery.

London: Frank Cass, 1987, p.5 515 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980, p. 70. 516 idem., p. 88. 517 FINLEY, M. A civilização grega era baseada no trabalho escravo? In: Economia e sociedade na Grécia

Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 105. 518 id. As classes sociais servis da Grécia Antiga. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:

Martins Fontes, 1989, p. 159.

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homem define-se pela posse ou ausência deste aglomerado. Tal aglomerado não pode ser

expresso em termos numéricos: “Não é uma questão de um homem ter um privilégio ou uma

responsabilidade a mais que outro. É mais uma questão de localização em um espectro ou

numa série contínua de categorias sociais.”519 É a combinação destes direitos, ou sua

ausência, que determina o lugar do homem no espectro.

As reflexões destes artigos sobre escravidão pavimentaram o caminho para Finley

definir a “luta de classes” na antiguidade como “conflitos entre grupos em pontos diferentes

do espectro disputando a distribuição de direitos e privilégios específicos.”520 Finley

encontrava uma forma de explicar os conflitos sociais da antiguidade no seio de seu modelo

de status. Opondo-se à idéia de uma “ação de classe”, no sentido weberiano, ou “consciência

de classe”, no sentido marxista, Finley no artigo Entre a escravidão e a liberdade, afirma que

os escravos (propriedade), enquanto escravos, não demonstravam nenhum interesse na

escravidão como instituição. A liberdade para eles, como indivíduos, incluía o direito de

possuir outros indivíduos como escravos. Portanto, estar do lado livre do espectro não

significa necessariamente estar em melhores condições que um escravo.521 Um homem livre

não cidadão (meteco) poderia perder sua liberdade, por algum tipo de delito. Somente os

cidadãos (estamos aqui nos referindo mais especificamente aos atenienses) com todos os seus

direitos cívicos e políticos, não podiam ser escravizados. Na Atenas clássica, é a cidadania

que se encontra na ponta do espectro da liberdade, e não o simples fato de ser livre.

Foi com este modelo, que Finley ao longo de sua carreira procurou entender as

categorias sociais da Grécia antiga. Procurou estabelecer generalizações por meio das

variáveis encontradas no espectro: 1. o escravo por dívidas e o hilota podiam ser encontrados

em sociedades arcaicas, em termos de desenvolvimento da democracia: Creta, Esparta e

Tessália no mesmo período da Atenas clássica ou na Atenas arcaica; 2. os escravos

propriamente ditos estavam espalhados por todas as atividades, enquanto os hilotas e as

demais formas de servidão adaptavam-se melhor à agricultura, pastoreio e serviços

domésticos. Esta tipologia, estabelecida em seu primeiro artigo sobre escravidão, A

civilização grega era baseada no trabalho escravo, de caráter mais sincrônico, seria

aperfeiçoada no artigo As classes sociais servis da Grécia antiga, de caráter mais diacrônico,

com a assertiva de que este modelo ajudaria a ver o desenvolvimento histórico e as tendências 519 FINLEY, M. Entre a escravidão e a liberdade. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:

Martins Fontes, 1989, p. 159. 520 id. A Economia Antiga. p. 89. 521 FINLEY, M. Entre a escravidão e a liberdade. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:

Martins Fontes, 1989, p. 126

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das estruturas e dos conceitos sociais gregos em sua adequada relação com a história da pólis

como estrutura política. Finley começava a encontrar um lugar de proeminência da escravidão

no surgimento da pólis, ao lembrar que a consolidação desta se deu com o triunfo da

escravidão, como bem pessoal, sobre outras categorias de trabalho servil, apesar de ressaltar

que boa parte do mundo grego não adotou a escravidão (ou não o fez totalmente), afirmando

que as primeiras sociedades genuínas de escravos na história estavam “circundadas por (ou

inseridas em) sociedades que continuavam a basear-se em outras formas de trabalho

dependente.”522 Mesmo observando estes casos de ausência ou de formas alternativas de

servidão, Finley encontrava o elemento central para o estabelecimento da unidade e

singularidade do mundo antigo clássico, a escravidão como bem móvel ou melhor o escravo-

propriedade, predominante no mundo greco-romano clássico. Enquadrava-se, assim, a

escravidão, como forma econômica dominante, com a organização política típica do mundo

antigo clássico.

Este modelo, contudo, leva-nos a alguns questionamentos quanto ao acento dado ao

papel das lutas camponesas arcaicas. Finley lembra-nos, no artigo Entre a escravidão e a

liberdade, que os escravos por dívidas e os hilotas lutavam, quando o faziam, para mudar de

uma categoria para outra e também para abolir este tipo particular de servidão, mas não todas

as formas de escravidão523 (o grifo é nosso). Finley avança na análise destes conflitos em

relação a Weber, que também os considera como conflito de classes, mas de caráter irracional

e intermitente, enquanto para Finley, tais conflitos traziam consigo um programa

“revolucionário permanente”. A análise feita aqui por Finley será posteriormente abandonada

em favor de uma postura que associa o disembeddedness com o mundo moderno, traduzido

por uma ação de classe atrelado à classe operária e a uma ideologia de uma classe

trabalhadora moderna. Em todos os seus escritos sobre escravidão, Finley ressalta a ausência

de qualquer ideologia positiva do trabalho, de um conceito de trabalho como uma “função

social geral”. Mesmo que a habilidade profissional fosse honrada, como os escritores antigos

o fizeram, nunca o trabalho foi avaliado positivamente enquanto tal. Não há um programa

trabalhista dos homens livres ou de escravos. E estes nunca se uniram em torno de uma causa

comum. Estes são elementos fundamentais para inviabilizar qualquer possibilidade de

disembeddedness na Grécia antiga. Entretanto, a partir da análise de Finley parece-nos que

estes camponeses, se, por um lado, não empunharam bandeiras da classe trabalhadora, por

522 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 93. 523 FINLEY, M. Entre a escravidão e a liberdade. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:

Martins Fontes, 1989, p. 126.

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outro, vislumbraram vantagens sociais e econômicas, ao reivindicar o fim da escravidão por

dívidas, um lote de terra e privilégios advindos da condição de cidadania. Eis um elemento

contraditório em programa geral de associação de embeddedness com classe e

disembeddedness com status.

Abandonando posteriormente qualquer reflexão sobre a natureza de uma “luta de

classes” em algum período da antiguidade, mas partindo dela – uma influência marxista-

Finley preferiu realçar o papel destes camponeses na consolidação de uma sociedade

democrática e na viabilização da escravidão.

...a escravidão como a forma de trabalho para outrem é uma idéia radicalmente nova. Creio que essa decisão foi imposta, não pelos que precisavam de mão-de-obra, mas por aqueles atenienses que poderiam tê-la fornecido.524

Esta luta do campesinato, resultando em uma liberdade pessoal que lhe rendeu a

cidadania, o direito de pertencer à comunidade, à polis, foi algo historicamente novo,

conduzindo a outra inovação: a escravidão. Por isso, a utilização maciça da mão-de-obra

escrava, como bem móvel, não gerou nenhum conflito na sociedade grega. Não criou, por

exemplo, o conflito ou a concorrência entre o homem livre e o escravo, que Meyer tanto

propalava. Os trabalhadores livres não tinham nenhuma especialização nos ramos do trabalho.

Faziam as mesmas atividades que os escravos. Finley chegou a admitir posteriormente que

havia uma simbiose entre o trabalho livre e o escravo em todos os ramos.525 Liberdade

significava não trabalhar para outrem e ter acesso a um lote de terra. O avanço, lado a lado, da

liberdade e da escravidão é uma característica da história grega.526 Esta percepção das

conseqüências dos conflitos sociais arcaicos, Weber não explorou. Weber esteve mais atento

para um avanço político, no Ocidente, dos homens capazes de se armar, restringindo o poder

real, e possibilitando uma distribuição mais eqüitativa do poder. Este desenvolvimento

histórico é fundamental para o nascimento da pólis democrática. Finley, por outro lado,

afirma que, no Oriente, em nenhum momento uma classe inteira foi escravizada por dívida,

realçando sua pouca importância, e aponta a inexistência da luta das várias categorias de

escravos “nacionais” pela liberdade, obstaculizando qualquer desenvolvimento da escravidão,

524 FINLEY, M. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, p. 91. 525 FINLEY, M. The study of the ancient economy. Further thoughts. Opus, III, 1984. p. 7. 526 FINLEY, M. A civilização grega era baseada no trabalho escravo? In: Economia e sociedade na Grécia

Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 122.

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como bem pessoal, como uma instituição essencial. A conseqüência disto: a definição de

propriedade no Oriente não assume o mesmo papel que no Ocidente. Concomitantemente, a

liberdade não se constitui em uma categoria útil, “tornando sem sentido perguntar onde se

traça a linha divisória entre o livre e o não livre.”527 Finley, assim como Weber, comparava o

Ocidente e o Oriente, para reafirmar seus modelos de constituição da pólis. Nos dois modelos

há uma procura de reafirmação da “liberdade” ocidental em relação ao Oriente, mas, enquanto

para Weber, esta liberdade fundamenta-se em um desenvolvimento histórico, no qual já se

observa os germes de uma racionalidade própria do Ocidente, em Finley, a luta de toda uma

“classe”, e sua vitória, com a posterior introdução da escravidão estrangeira, abrirá o caminho

para uma sociedade no qual o sentido de liberdade será fundamental enquanto alicerce

cultural e ideológico, tendo a escravidão como sua característica primordial.

Outro tema controverso entre Weber e Finley é o rendimento qualitativo da produção

escravista. Para Weber, a escravidão é um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo

porque limita o livre recrutamento dos trabalhadores, não selecionando os trabalhadores de

acordo com o seu máximo rendimento técnico e impedindo a racionalização formal da gestão

econômica. Isto tudo resulta em um pouco interesse do escravo no processo produtivo e em

suas inovações. Finley contra argumenta que apesar da ausência de dados quantitativos, os

senhores de escravos estavam extremamente satisfeitos com o trabalho de seus escravos e

com as riquezas que eles geravam. Finley adota uma postura anti-modernista ao não aceitar o

julgamento do progresso técnico no mundo antigo a partir de uma mentalidade moderna. Se a

mentalidade moderna for tomada como referencial, pode-se afirmar que o mundo antigo

jamais atingiu uma produtividade crescente e um racionalismo econômico. Contudo, Finley

não aceita estes valores – eficácia, produtividade crescente, racionalismo econômico e

crescimento - como fundamentais para o mundo antigo. Esta produtividade não foi atingida e

nem procurada em virtude de um divórcio entre ciência e prática no mundo antigo. “O

objetivo da ciência antiga era saber, não fazer. Entender a natureza, não domesticá-la.”528 O

problema não era de caráter técnico, mas de estilo cognitivo e de organização social,

corrobora Schiavone. Havia um bloqueio entre conhecimento e transformação da natureza. O

pensamento antigo não conseguia reconhecer o “mundo sensível como território da razão, a

ser dominado e controlado por meio da verificação experimental, sem deixar que se perdesse

527 id. Entre a escravidão e a liberdade. In: ____________. Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:

Martins Fontes, 1989. p. 140. 528 id. Inovação técnica e progresso econômico no mundo antigo. In: ____________. Economia e sociedade na

Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 195.

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na transcendência da metafísica.”529 É, portanto, a ausência do vínculo entre inteligência e

produção transformadora que explica a ausência do maquinismo no mundo antigo e não o

desinteresse do escravo na produção. Se os argumentos que Finley apresenta para contrapor-

se a Weber e aos modernistas são convincentes quanto à utilização de uma racionalidade

moderna, são por outro lado insuficientes na explicação da racionalidade específica dos

antigos. Cartlegde, também se contrapondo à utilização de uma racionalidade econômica para

o mundo antigo, destaca que a racionalidade econômica antiga significa o oposto da moderna,

pois a maioria dos fazendeiros camponeses buscava estratégias de risco mínimo em um

processo conhecido como “amortização de risco”. Ao contrário da maximização de ganho, o

objetivo da maioria dos camponeses era satisfação: o suficiente era tão bom quanto um

banquete, e muito mais seguro nas circunstâncias do que ir (literalmente) a fundo nos

investimentos. Cartledge, contudo, contrapõe os objetivos da elite rica aos do campesinato. Os

objetivos desta elite seguem um ideal rentista, dependente dos rendimentos dos trabalhos de

outros para sua realização.530 Aqui ele está muito próximo de Weber.

Escapou também à investigação finleyniana o paradoxo do trabalho escravo em

relação aos resultados de seu trabalho. Se por um lado, sua existência assegurava a

manutenção de uma economia orientada para as trocas, para a circulação mercantil, para uma

certa regularidade do consumo - em menor escala na Grécia do que em Roma – por outro

lado, a duração e o funcionamento da escravidão levaram o sistema à estagnação – mais em

Roma que na Grécia -, impedindo que seguisse caminhos diferentes. Finley não acentuou o

primeiro aspecto, e abordou o segundo por outro ângulo. Seu olhar funcionalista sobre a

escravidão, procurou essencialmente, como já afirmamos, localizar a posição do escravo

dentro da estrutura social.

A exploração da terra e a mentalidade “econômica” dos proprietários de terras

estiveram também, desde cedo, no centro das preocupações de Finley, que, além de

investigados em A Economia Antiga, foram analisados no seu primeiro livro Studies in

Land and Credit in ancient Athens, 500-200 BC e no artigo Land, debt and the man of

property in classical Athens (Terra, débito e o homem de posses na Atenas Clássica). Mais

uma vez, Finley voltava sua atenção para o monopólio da propriedade da terra pelos cidadãos.

A defesa de uma mentalidade econômica “primitiva” é feita pela forma como a terra, principal

forma de riqueza da Antiguidade, é explorada. Em seu artigo Land, debt and the man of

529 SHIAVONE, A. op. cit., p. 219. 530 CARTLEDGE, P. The political economy of Geek slavery. In: CARTLEDGE, P; COHEN, E; FOXHALL, L.

Money, Labour and land. London and New York, Routledge, 2002. p. 160-161.

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property in classical Athens, de caráter fortemente polanyiano, Finley afirma que não havia

um mercado de bens de raiz em Atenas e a terra não era uma mercadoria em nenhum sentido

significativo. Este mercado era dificultado pelo fato dos não cidadãos não poderem comprar

terras, exceto por um decreto especial. Isto levou a uma separação entre a terra e o dinheiro,

pois a primeira não podia servir como garantia de débito para alguém que não pudesse possuir

terras. Assim, os não cidadãos, mesmo com papel proeminente nas diversas atividades

econômicas, tinham suas atividades financeiras separadas da base econômica da sociedade

grega.531

A maioria dos empréstimos, tendo como garantia os bens de raiz, não tinha fins

produtivos, mas sim consumistas (eranos), era feito para cobrir gastos das classes sociais

abastadas – dote de uma filha ou políticos – com juros baixos e com prazo curto. As

transações com juros mais altos estavam destinadas aos empréstimos marítimos, e não

envolviam os bens de raiz.

Próximo a Weber, Finley acreditava que o investimento na terra não era resultado de

uma decisão sistemática e calculada, isto é, de uma racionalidade econômica. Não se fazia

empréstimos para os melhoramentos técnicos com o objetivo de se aumentar a

produtividade.532 Os estudos dos horoi, feitos em Studies in Land and Credit in ancient

Athens, 500-200 BC e no artigo Land, debt and the man of property in classical Athens

sugeriram que a economia ateniense não podia ser chamada de economia de mercado. Não

havia um mercado de propriedade imobiliária e nem uma profissão de agente imobiliário. A

escolha da terra como principal forma de riqueza era de cunho psicológico, social e político.

Em A Economia Antiga, Finley afirmou que a compra de terras na Antiguidade fazia-se ao

acaso: terras abandonadas, vendida a baixo preço por causa de negligência, devastação de

guerra, ou má sorte eram alguns motivos. O confisco de guerras são motivos mais comuns,

particularmente o aguer publicus romano. Tais transações tinham interesses aquisitivos, mas

o que se entende modernamente por investimento, como uma maximização de rendimentos,

estava ausente no pensamento “econômico” dos antigos. Era lucrativo, mas estavam situados

numa base de natureza e moralidade. Portanto, a mentalidade dos antigos era aquisitiva, mas

não produtiva.533

531 FINLEY, M. Terra, débito e o homem de posses na Atenas clássica. In: ___________. Economia e

sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 77. 532 Cartledge, por outro lado, acredita que a racionalidade econômica dos gregos na agricultura realizava-se por

meio das práticas utilizadas, que estavam bem adaptadas ao clima, ao solo, à oferta de trabalho e a outras variáveis ambientais e sociais.

533 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 166-168.

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Em Land, debt and the man of property in classical Athens, Finley lembra que não

havia em Atenas nenhuma relação financeira contínua ou racional: o crédito era concedido

pela reputação e não por uma análise econômica; não havia nenhuma mecânica para se

concentrar grandes quantidades de dinheiro em mãos privadas. A escrita contábil era estranha

à economia grega. As transações verbais eram comuns. O banqueiro era um pouco mais que

um cambista. Boa parte da moeda nunca passou pelos bancos, estando a maioria guardado em

casa ou entesourada. O Estado guardava seu dinheiro em caixas-fortes. Finalmente, a garantia

era substitutiva e não colateral. A garantia substitutiva é uma indenização, uma substituição.

“X deve alguma coisa a Y, um objeto, dinheiro, um compromisso, que não paga, e Y aceita

um substituto – terra por dinheiro – com plena satisfação da obrigação de X para com ele.”534

O prestamista ateniense, comum, ocasional, não profissional, visava os benefícios da amizade

ou juros no final de um ano. Preferia não aceitar a garantia como um substituto por causa dos

transtornos inerentes à execução da hipoteca ou mesmo ter que assumir os transtornos de uma

propriedade que não lhe fosse útil ou que não desejasse. Por outro lado, a garantia colateral

envolve um pensamento econômico de uma ordem completamente diferente. A garantia é de

pagamento e não um substituto. Entre a substituição e a colateralidade existe uma profunda

transformação econômica: a terra é vista como dinheiro. A garantia da terra é a garantia de ter

o dinheiro emprestado de volta. O credor ateniense não via nada além da terra.

Studies in Land and Credit in ancient Athens, 500-200 BC e Land, debt and the

man of property in classical Athens são trabalhos da juventude finleyniana que demonstram a

proximidade com os primitivistas. Marcam o começo de sua fase polanyiana e reafirmam o

caráter não desenvolvido dos instrumentos atenienses comerciais de mercado em relação ao

capitalismo moderno. Por outro lado, são enfatizados os traços atenienses comuns aos

sistemas sócio-econômicos primitivos: a persistência da mentalidade, valores e associações

aristocráticos. Finley mostrava que Atenas não era moderna em relação ao homem econômico

racional moderno. Em relação a estes temas, destes trabalhos até A Economia Antiga, não

houve grandes transformações. Naqueles trabalhos iniciais, contudo, não se vê ainda o mundo

greco-romano como um objeto unitário de análise. Isto só começaria a acontecer no artigo

Technical innovation and economic progress in the ancient world, publicado em 1968, no

qual Finley seguiu os passos de Land, debt and the man of property in classical Athens ao

reafirmar as instituições primitivas comerciais de crédito e industriais, além da mentalidade

534 FINLEY, M. Terra, débito e o homem de posses na Atenas clássica. In: ___________. Economia e

sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 78.

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não produtiva do homem de propriedade. Já nesta época, diferente dos primitivistas alemães,

percebe-se que a unidade do mundo antigo não tinha o oikos como a instituição básica do

mundo greco-romano. Segundo Nafissi, Finley, neste texto, procura demonstrar que a unidade

do mundo antigo era assegurada com referência a uma multiplicidade de fatores, estendendo-

se desde o primitivismo tecnológico até a persistência de valores aristocráticos.”535 Essa

observação demonstra que desde o início de seus trabalhos, Finley já conseguira ampliar os

temas centrais dos autores da tradição que estamos investigando.

Se os trabalhos sobre a mentalidade dos proprietários de terras e a exploração da terra

demonstraram fortes afinidades com Polanyi, a reflexão finleyniana sobre a cidade e o campo,

por outro lado, apresenta as mais fortes influências weberianas. Este foi o tema que levou

Finley a defender a idéia de “cidade antiga” como um tipo, amparado no modelo de cidade de

consumo de Weber. O tema foi inicialmente desenvolvido em A Economia Antiga e

posteriormente em um artigo, intitulado The ancient city: from Fustel de Coulanges to Max

Weber and beyond (A cidade antiga: de Fustel de Coulanges a Max Weber e além), de 1977.

Em A Economia Antiga, Finley afirmou que a cidade, na antiguidade clássica, incluía o

interior rural e um centro urbano. A sua defesa da cidade antiga como centro de consumo está

amparada na idéia de que a cidade antiga não produz quase nada para o campo, pois vive as

custas do campo. Sua preocupação é saber como as cidades pagavam aquilo que iam buscar

no campo. São apresentados alguns modelos: a cidade parasita pagava pela mera restituição

de parte ou de todas as rendas e impostos anteriormente extraídos do campo. A relação

simbiótica seria representada por igual pagamento em produção urbana e serviços.536 Muito

próximo de Hasebroek, Finley reafirma o caráter autárquico da cidade antiga como um valor

dominante. Conseqüentemente, defende a idéia de que as exportações, apesar de existirem,

não superavam as importações, absolutamente essenciais para uma cidade como Atenas, que

não as pagava por meio de sua produção interna, mais especificamente, por meio de suas

manufaturas. Partindo destes pressupostos, Finley desfere um ataque violento aos modernistas

com os seguintes argumentos: a) a cidade antiga não deixava o abastecimento de alimentos ao

acaso ou ao livre jogo dos mercados; b) a maioria das cidades antigas era composta por

agricultores e o excedente agrícola pagava os metais importados, os escravos e os luxos. As

cidades comerciais eram as exceções (Finley não explica como estas cidades pagavam as

importações) e Atenas é considerada uma cidade mista; c) combate violento às idéias

modernistas de equilíbrio entre exportações e importações em Atenas, defendidas por 535 NAFISSI, M. op. cit., p. 217. 536 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 171.

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Gomme. As exportações de produtos agrícolas e de produtos manufaturados são vistas como

insignificantes, contudo, Finley admite a existência de exportações de prata e “exportações

invisíveis” - isto é, o intenso movimento de “estrangeiros” e gregos no Pireus, uma das mais

importantes contribuições para a balança de pagamentos de Atenas. Portanto, a capacidade

das antigas cidades pagarem a sua alimentação, metais e outros artigos derivava da produção

agrícola, da presença ou ausência de recursos naturais, das exportações invisíveis e do

rendimento das propriedades, impostos e doações de clientes. A contribuição das manufaturas

é desprezível. Assim, o obstáculo para a produção extensiva para a exportação era a

prevalência geral da auto-suficiência doméstica para os produtos de primeira necessidade. Eis

aí o contraste entre o antigo e o medieval e o que, segundo Finley, Weber queria dizer quando

caracterizava a cidade antiga como centro de consumo.

Posteriormente, Finley respondeu a seus críticos e reafirmou seus argumentos

expostos em A Economia Antiga. As críticas que lhe foram dirigidas foram respondidas da

seguinte forma: a) a tentativa de imposição de um modelo ateniense para todo o mundo grego,

foi respondida com o argumento de que não havia exemplos significativos de cidades que

pagaram por importações por meio de produção; b) a ênfase na análise da troca em detrimento

da produção, encontrou sua resposta nos seguintes argumentos: a manufatura no mundo

antigo, mesmo em seu momento culminante, foi incapaz de gerar a riqueza necessária, capital,

e as fontes políticas de enriquecimento, saque e conquista, foram os fatores indispensáveis

para fomentar o crescimento.537

Por detrás desta preocupação está o interesse em demonstrar que não há uma divisão

econômica entre a cidade e o campo. Finley afirmou posteriormente que as preocupações de

Adam Smith e de Marx e Engels em relação a esta divisão de interesses econômicos nunca foi

motivo de qualquer formulação teórica pelos antigos, mesmo que eles tivessem ciência de um

conflito de interesses.538 Este argumento anti-modernista também é apresentado no seu

principal artigo sobre a cidade antiga, A cidade antiga: de Fustel de Coulanges a Max Weber

e além, considerado por ele mesmo, como o seu artigo mais “abertamente weberiano.” 539

Neste texto, Finley retoma as influências precursoras de Bücher e Sombart sobre Weber nos

seus estudos sobre a cidade. Finley afirma que as preocupações de Sombart eram com o

nascimento do capitalismo moderno, e, portanto, com o nascimento da cidade na Idade Média,

enquanto, Bücher é apresentado como o formulador de uma teoria em que os habitantes da

537 FINLEY, M. The ancient economy and its critics. Mimeógrafo. S/d. p. 6. 538 FINLEY, M.The study of ancient economy. Further thoughts Opus. III, 1984, p. 9. 539 FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 116.

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cidade greco-romana eram os exploradores da terra, mesmo que deixassem o trabalho ser

explorado por escravos. Este fenômeno era totalmente diferente das cidades medievais, no

qual cidade e campo tinham se separado em ralação à atividade econômica. Daí a primeira

formulação sobre a cidade antiga como um mero centro de consumo. A noção foi apurada por

Sombart, que definiu a cidade de consumo como aquela que paga pela sua manutenção não

com seus próprios produtos, mas por meio de impostos e rendas, sem ter que resgatar valores

de restituição.540

Estes autores são utilizados para ajudar a entender a análise de Weber sobre a cidade

antiga, já que segundo Finley, Weber nunca publicou um estudo da cidade antiga, e suas

reflexões sobre o tema devem ser cotejadas de sua obra total. As obras citadas por Finley são

as obras que investigamos no capítulo sobre Weber: The Agrarian Sociology of Ancient

Civilizations e o capítulo intitulado tipologia das cidades, da obra Economia e sociedade.

Finley sublinha a definição econômica de Weber sobre cidade: o mercado é o local das

satisfações econômicas da população e quando as receitas dos habitantes originam-se de

algum tipo de renda, a cidade é uma cidade consumidora, como na Antiguidade.541 Em

seguida, Finley afirma que a definição de cidade em Economia e sociedade é complementada

pela idéia de que a cidade é também uma associação reguladora da política econômica no

interesse da associação e uma matriz de medidas características. Finley ressalta que a política

está agora no centro das reflexões de Weber, diferente de The Agrarian Sociology of

Ancient Civilizations, pois é parte de uma seção sobre dominação, burocracia e carisma.

Finley acredita que esta análise sobre a cidade, em um trabalho inacabado, tinha como tema

fundamental a racionalidade e a dominação, no qual ele selava a conexão entre capitalismo,

industrialização e autopreservação.542

Em nossa opinião, Finley captou bem a idéia geral de que a análise de Weber sobre

a cidade deveria ser vista em uma esfera comparativa com a realidade medieval e moderna,

além de sublinhar o aspecto político de tal análise, demonstrando que ela estava contida em

uma análise mais geral sobre dominação. Apesar disso, entendemos que esta mudança para o

político não foi tão abrupta, e como já afirmamos, no seu primeiro trabalho, Weber mesmo

trabalhando com eixos comparativos diferentes, coloca a esfera política como fundamental

para caracterizar o desenvolvimento da pólis e seus diversos tipos de dominação. Por outro

540 FINLEY, M. A cidade antiga: de Fustel de Coulanges a Max Weber e além. In: ___________. Economia e

sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 14. 541 ibid., p. 15-16. 542 ibid., p. 16-17

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lado, nos parece que Finley em sua defesa da cidade consumidora procura ressaltar os

aspectos primitivistas de Weber. Caminhando para sua conclusão em A cidade antiga: de

Fustel de Coulanges a Max Weber e além, Finley tece algumas críticas gerais à Weber: pouco

conhecimento sobre o mundo grego, apontamento das eqüites como uma classe capitalista e

utilização de termos como feudalismo e capitalismo no mundo antigo; contudo sublinha a

importância das questões levantadas por Weber como ainda pertinentes para o momento: o

camponês como um elemento integrante da cidade antiga, mas não da medieval, ausência da

associação na cidade antiga e sua presença na medieval. Estes elementos que Finley considera

ainda pertinentes são questões que reforçam o primitivismo weberiano. Finley deixava de lado

as influências modernistas de Meyer sobre Weber e sublinhava os aspectos primitivistas de

Weber. Obviamente acentuando a comparação com o medievo e o mundo moderno.

Finley, entretanto, não termina a sua análise de Weber sem mencionar aquele que foi

segundo ele, o seu fantasma: Karl Marx. Apesar de apontar as divergências políticas e

analíticas, Finley aponta algumas zonas de confluência: a análise de Marx sobre as várias

formas de produção foi vista como extremamente interessante por Weber para analisar a

sociedade industrial moderna, o capitalismo como centro de interesse comum e uma grande

área de proximidade em relação às sociedades pré-industriais e a cidade antiga. Mas o que nos

chama a atenção é esta citação, também apontada como área de proximidade entre os autores:

Em suas anotações de 1857 Marx escreveu sobre a influência civilizadora do comércio externo”, embora a princípio só um “comércio passivo”, em uma passagem que não pode deixar de lembrarmos nitidamente da tese de Weber de que a mudança antiga do comércio passivo para o ativo foi o primeiro passo em direção ao abismo entre a cidade oriental e a ocidental. Para Marx (e Engels) nunca houve dúvida de que o capital comercial, as cidade comerciais e mesmo os povos comerciais (fenícios e cartagineses) eram fenômenos antigos muito disseminados, e que em alguns casos, na antiga Corinto, por exemplo, o comércio levou a uma manufatura desenvolvida.543

Finley tomava Marx como um parâmetro importante para sua concepção de História,

particularmente para combater a “História tradicional”, mas era extremamente crítico à

utilização de conceitos marxistas à economia antiga, em virtude, segundo ele, de sua

proximidade com a abordagem modernista. Esta posição pode até se justificar em relação

àqueles que interpretaram Marx, mas não em relação aos escritos de Marx, pois este admitia

543 ibid., p. 19

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que a pertinência ou não de usar termos como crédito, moeda, etc. para a Antiguidade

deveriam ser observados caso a caso. O conceito de modo de produção implica construir

modelos para cada tipo específico de sociedade, e não, projetar em direção ao passado o

modelo construído para o capitalismo contemporâneo. O modelo construído acerca da

economia antiga nos Grundisse, por exemplo, nada tem de modernista.

O tema final abordado por Finley em A Economia Antiga, O Estado e a economia,

remete a questões levantadas, no seio da tradição que estamos investigando, aos trabalhos de

Hasebroek, mas, também, encontra-se presente nas discussões entre intelectuais de esquerda e

de direita na época em que o livro foi escrito. Investigar até que ponto o Estado interfere na

vida econômica de uma nação ou os objetivos econômicos das ações governamentais são

questões que transcendem o mundo antigo. Com certeza são questões que nascem com as

transformações do mundo moderno, mas também estão relacionadas com as repercussões dos

escritos de Marx sobre o mundo contemporâneo. Coerente com a sua proposta de não isolar a

esfera política das outras esferas da sociedade, Finley analisa “a política comercial” dos

estados gregos, o imperialismo ateniense e a colonização em estreita relação com os diversos

grupos sociais. Finley procura demonstrar que apesar dos Estados clássicos gregos e romanos

interferirem em diversos aspectos da vida privada de seus cidadãos, o Estado, entretanto, não

tinha uma política econômica cujo objetivo fosse beneficiar os interesses dos comerciantes e

nem utilizava os impostos para alavancar a economia do Estado.

Não interferir na economia nada tem haver com o laissez faire, porque para Finley o

conceito de economia está ausente do mundo antigo, a despeito de haver suficiente

conhecimento empírico. Daí a dificuldade de distinguir uma política econômica e as

conseqüências econômicas de decisões não econômicas, em uma sociedade na qual os

“elementos econômicos estavam inextricavelmente ligados a fatores políticos e religiosos.”544

Não sendo os interesses do comércio e de uma classe mercantil a prioridade do Estado, Finley

afirma que o conceito chave era a satisfação das necessidades materiais, que poderiam até

beneficiar a classe mercantil, mas que não tinha isto como fim. Os interesses que interferiam e

perturbavam a satisfação das necessidades materiais eram políticos e militares. Este conceito

foi interpretado por alguns analistas como uma forte influência do substantivismo polanyiano

sobre Finley.545 Se o termo satisfação das necessidades materiais é próximo da definição

substantivista de economia de Polanyi, acreditamos, por outro lado, que Finley respondia aqui

544 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 211. 545 Ver HINDESS, B. Extended review. FINLEY, M. Democracy Ancient and modern. Politics in world ancient.

Sociological Review. n. 23, 1975.

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a uma questão levantada na II conferência de História econômica, realizado em 1962, no qual

discutiu o tema Trade and politicis in the ancient world, título do livro de Hasebroek, no qual

ele considerava relevante a distinção feita por Hasebroek entre interesses de oferta de comida

ou de importação e interesses comerciais.546 Finley, em A Economia Antiga começava a

reinterpretar temas caros de Hasebroek e Weber à luz da perspectiva polanyiana e da História

social. O significado da frase satisfação das necessidades materiais está mais próximo dos

interesses dominantes de oferta de comida e de importação, aqui com uma roupagem

substantivista. Assim, Finley fundia questões do primitivismo com o substantivismo.

O imperialismo ateniense é um elemento fundamental para assegurar o abastecimento

de alimentos e madeira. A colonização era uma transferência de cidadãos para terras

estrangeiras. É, portanto, uma evasão, não uma solução, das necessidades dos pobres. A

colonização não modificou as finanças públicas do Estado ateniense. Duas das formas mais

importantes e lucrativas da exploração colonial moderna estão excluídas da colonização

ateniense: a exploração da mão de obra colonial com salários abaixo dos do mercado

ateniense e a aquisição, compulsória, se necessária, de matérias primas básicas a preços

substancialmente abaixo dos preços do mercado da metrópole.

O direito de cunhar moedas era um monopólio do Estado. O decreto ateniense do

século V, que proibiu a todos os Estados gregos de cunharem moedas de prata, exigindo que

só a moeda ateniense fosse válida em todo o território do Império ateniense é antes de tudo

uma medida política. No artigo de 1962, Finley examinou atentamente as origens e as

conseqüências deste decreto, duvidando da possibilidade do decreto ter sido adotado para

aumentar os lucros de um “punhado de trocadores de dinheiro.”547 Finley chega a minimizar

as conseqüências deste decreto afirmando ser ele motivado por orgulho e patriotismo.Em

seguida, sublinha que o comércio estrangeiro não foi o único estímulo de circulação de

moedas. O tributo devido pelas cidades-Estados, sob o domínio de Atenas, quando pago em

dinheiro, era feito com moedas ateniense. Estes fatores explicam porque as fábricas de

moedas dos estados submetidos foram fechadas. Retomando Hasebroek, Finley procura

demonstrar que até aquele momento, não havia nada de novo em relação à economia grega.

Apesar de Hasebroek, ter tido uma visão unilateral e tentar eliminar o comércio, os esforços

modernizantes para demonstrar a extensão e a quantidade do comércio como argumentos de

uma política comercial por parte do Estado continuavam infundados, pois se os conceitos de

546 FINLEY, M. (org.) Classical Greece. In: Second International Conference of Economic History. Trade

and Politics in the Ancient World, vol. I, New York: Arno Press 1979. 547 ibid., p. 22

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mercantilismo, curvas de preço, mercadorias de prata, imperialismo comercial, salário real

taxas de lucro podiam ser úteis no emprego da economia antiga, o seu significado deveria,

primeiro, ser estabelecido dentro da estrutura da pólis. Caso isto não fosse feito, aqueles

conceitos eram meras expressões.548

Em artigo escrito em 1978, The fifth-Century Athenian Empire: A balance sheet. (O

império ateniense: um balanço) Finley concluía o artigo perguntando-se qual teria sido as

vantagens econômicas diretas e indiretas do Império aos cidadãos e mesmo aos não cidadãos.

Os cidadãos obtinham vantagens econômicas diretas por meio de sua participação na armada,

ou através da aquisição de terras nos territórios dos Estados-súditos. Milhares de atenienses

pobres ganhavam salários remando na frota, além dos trabalhos nos estaleiros. Além disso,

havia o pagamento por cargos oficiais, do qual não se tem notícia em outros Estados gregos.

Indiretamente, a fartura e a variedade de mercadorias disponíveis em Atenas, beneficiava

exportadores, artesãos e vendedores.549 E como os atenienses ricos, os kaloi kagathoi,eram

beneficiados com o Império? Finley em A Economia Antiga, afirma que a forma pela qual o

Estado democrático procurou ultrapassar as desigualdades sociais foi por meio da liturgia

(leiturgia), no qual os ricos arcavam com os gastos dos serviços públicos em troca de honras,

amparado no espírito competitivo entre os aristocratas, o agon. Esta foi uma forma do Estado

não burocrático não precisar cobrar impostos diretos dos cidadãos. Em O império ateniense:

um balanço, Finley ressalta que não é possível especificar como as classes superiores

poderiam ter sido as principais beneficiárias no Império, além da aquisição de propriedades

em territórios súditos. Para o autor, o Império beneficiou diretamente a metade mais pobre da

população ateniense, a despeito das enormes perdas de homens nas guerras. Esta constatação

levou Finley a supor que alguns súditos de Atenas preferiram a democracia respaldada pelo

poder ateniense à oligarquia em um Estado autônomo. Apesar de nunca ter chegado a nós a

forma do sistema de taxação nos Estados súditos, Finley infere que se o sistema de taxação

grego prevalecia, então quem arcava com tributo nos Estados súditos era o rico, não o homem

do povo. O sistema da liturgia era transposto para os Estados súditos. Portanto, também os

custos materiais suportados pelos súditos eram desiguais.550

Esta conclusão é um elemento importante para entendermos o paradoxo da reflexão

finleyniana sobre o primitivismo ateniense. Se ao longo de todos os seus trabalhos sobre a

548 ibid., p. 32. 549 FINLEY, M. O império ateniense: um balanço. In: ______________. Economia e sociedade na Grécia

antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 56-61. 550 ibid., p. 63-64.

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Economia antiga, Finley reafirmou o papel primitivo da economia ateniense em relação aos

cânones neoclássicos, reafirmando a proposta polanyiana, por outro lado, o autor iria

demonstrar em diversos trabalhos posteriores que a democracia ateniense apresentava um

caráter “moderno” em relação à democracia representativa. Este artigo sobre o imperialismo

ateniense esboça uma defesa da democracia ateniense. Realça o papel do Estado grego

democrático em beneficiar materialmente os setores mais pobres da população em detrimento

dos aristocratas, que apesar de compartilhar de benefícios políticos e materiais do regime

democrático - os favoráveis ao regime assumirem a direção política do sistema democrático -,

tiveram que arcar com a maior parte da tributação direta. Enquanto o “primitivismo”

econômico grego era usado para combater os mercadistas de plantão, a democracia direta era

usada contra os defensores da teoria elitista, que defendiam a participação dos cidadãos na

política moderna somente nos períodos eleitorais. Finley assumia assim, tanto nos argumentos

sobre a economia antiga, quanto em seus trabalhos sobre a democracia grega, uma postura

política polêmica contra os defensores de uma ideologia, considerada por ele, conservadora.

Finley conciliava o rigor acadêmico com a polêmica política, procurando demonstrar que a

democracia grega direta era bem diferente da democracia representativa moderna, se

posicionando francamente favorável à democracia antiga.

Em relação a Weber, Finley também inverteu seu raciocínio. Enquanto para Weber a

pólis é moderna em relação ao Oriente antigo, mas primitiva em relação ao Ocidente

moderno, para Finley a pólis já não é mais primitiva em relação ao Ocidente moderno. Em

Democracy Ancient and modern (democracia antiga e moderna), Finley combate

ferozmente a corrente elitista por meio dos exemplos da participação do demos ateniense nas

decisões políticas. A contradição weberiana acerca do caráter ora primitivo, ora moderno da

pólis é superado por Finley. O predomínio da “escravidão mercadoria” significou o

fortalecimento da cidadania, viabilizou a maior participação nas atividades políticas de uma

camada maior da população. Portanto, seu estudo sobre a escravidão no período clássico

trouxe consigo uma reflexão sobre a liberdade, ou melhor, graus de liberdade, elemento

fundamental na caracterização da particularidade ocidental em relação ao Oriente.

Em relação à economia antiga, Finley conseguiu, a luz de um material empírico

abundante, demonstrar a impossibilidade de se manter os elementos formalistas na análise da

economia antiga. Neste sentido, deu prosseguimento ao projeto polanyiano de remover as

bases neoclássicas da reflexão sobre a economia antiga. Com isso, ele também se mantinha

coerente com sua posição política de combater os modernistas defensores de um tipo de

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mercado em todos os períodos da história, mas também acabou tendo que combater os

marxistas, pois os via no debate com posições muito próximas dos modernistas. O oikos de

Bücher já havia sido totalmente superado como centro das argumentações dos membros da

tradição primitivista substantivista, contudo, Finley em O mundo de Ulisses retoma o caráter

predominante do oikos no período pré-arcaico, tenso os poemas homéricos como fonte

privilegiada. O domínio do oikos era acompanhado por uma reciprocidade hierárquica entre

os aristocratas, no qual o dom e contra-dom tinha papel proeminente. Finley neste trabalho

magistral coadunava as idéias de Bücher com Malinovsky, Mauss e Polanyi. É exatamente a

passagem da reciprocidade hierárquica deste período para uma reciprocidade igualitária, como

muito bem definiu Morris, que levou Finley a se voltar para o papel da cidadania como

elemento fundamental da controvérsia do oikos. Finley dedicou-se a um programa de pesquisa

que tinha como objetivo investigar os “graus de liberdade” dos diversos grupos sociais. Graus

de liberdade devem ser entendidos aqui como sinônimo de maior ou menor participação

política, e conseqüentemente, privilégios econômicos. É esta ligação entre cidadania e

participação com a escravidão e ausência de participação e direitos, envolvidos em um ethos

aristocrático que sedimentou o embedded finleyniano. Diferentemente de Polanyi, que

sustentou seus argumentos na existência de mercados locais, comércio administrado e outras

estruturas gerais que podiam ser pensadas para outras sociedades pré-capitalistas, mas que não

sublinhavam o papel dos grupos sociais na estrutura global de sua análise, Finley procurou

realçar o embedded ateniense por meio dos valores dominantes no seio dos grupos sociais.

Retomando uma análise voltada para os valores, de cunho weberiano, Finley procurava

“humanizar” um pouco mais o substantivismo polanyiano. O problema é que a análise

finleyniana, em consonância com a polanyiana, parece obscurecer as possibilidades de

mudança da economia e sociedade relacionados com o crescimento das trocas e comércio,

constituindo estes elementos uma ameaça as normas sociais. O bloqueio deste

desenvolvimento econômico por valores predominantes pode ter incitado tensões entre os

diferentes grupos de status. Estas questões foram levantadas por Humphreys em uma análise,

que apesar de simpática a Finley, propõe novos questionamentos para a relação entre

economia e sociedade grega.551 Tudo isso remete para uma questão, já discutida aqui, da

relação entre embedded e interesses políticos com sociedades pré-capitalistas e disembedded e

predomínio da esfera econômica com sociedades capitalistas. Uma sociedade inteiramente

551 HUMPHREYS, S. Economy and society in classical Athens. In: ___________. Anthropology and the

Greeks. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 136-157.

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dominada pelo laissez faire nunca existiu, da mesma forma que por detrás de interesses

políticos podem estar presentes os germes de uma diferenciação econômica.

Concomitantemente, a possibilidade de pensar em modelos para investigação da

economia antiga, mesmo em uma historiografia dominada pelo pós-modernismo, em que pelo

menos, no campo dos estudos da História Antiga, se vê uma retomada dos estudos filológicos

sem uma perspectiva macro histórica, é possível a partir de novas questões. Ultrapassando as

dicotomias destes autores paradigmáticos da tradição primitivista substantivista, John K.

Davies, escreveu um artigo intitulado Ancient economies: models and muddles, no qual

procura caminhos alternativos para responder algumas questões como: casos de padrão de

troca (direto e indireto), grau de intervenção de um regime (pólis ou outro) e interesses que

conduziram a tal intervenção. Davies procura descrever as principais correntes intelectuais,

criticá-las e apresentar nova perspectivas de análise. Mesmo afirmando que os historiadores

não devem isolar-se das tradições, suposições e tendências neoclásscias, o autor acredita que é

possível apresentar um campo unificado para as atividades específicas no seio da tríade

“comércio, comerciantes e cidades”. Para isto o autor apresenta algumas percepções: 1. criar

um mapa de longo alcance do espaço econômico; 2.os movimentos essenciais, a soma da qual

engloba uma economia, não são necessariamente trocas, mas o movimento de dinheiro,

mercadorias e serviços; 3.as trocas de recursos ocorrem dentro ou entre estruturas celulares.

Tais estruturas podem ser pequenas, e as trocas circularem em estruturas restritas, como por

exemplo o oikos de um homem, ou ocorrerem dentro de zonas mais amplas: vila, distrito,

pólis província romana; e atravessar fronteiras celulares; 4. qualquer modelo que possamos

construir para as economias antigas devem ser qualitativos e descritivos e não quantitativos;

5. nenhum modelo para a antiguidade pode ser satisfatório sem admitir, como fluxos que são

em algum sentido comensurável com fluxos monetários, de mercadoria, ou de outro recurso,

tanto devoluções ‘não monetárias’ (tal como reciprocidade negativa) e padrões de troca que

são gerenciados ou são em um sentido polanyiano embedded; 6. o reconhecimento dos papéis

econômicos de cultos e templos como receitas e despesas públicas.552 Estas percepções,

envolvendo a relação entre o household com a pólis, demonstram que, mesmo nos dias atuais,

a construção de modelos, originadas de novas perguntas, críticas aos antigos modelos e novos

testemunhos, ainda é possível e em nossa opinião salutar. O legado de Finley repousa em sua

capacidade de generalizar e ousar, herança oriunda dos primeiros protagonistas da tradição

investigada. Estes autores são paradigmáticos exatamente porque ousaram elaborar modelos 552 Davies, J. K. Ancient economies: models and muddles. In: PARKINS, H; SMITH, C. Trede, traders and

ancient city. Londres: Routledge, 1998. p. 225-256.

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gerais e teorias para o entendimento da sociedade e economia antigas. Tais teorias foram

motivos de críticas, defesas, ajustes e debates. Mas com certeza, foram elas que propiciaram o

“progresso” da História antiga e não somente o acúmulo de novos testemunhos. Ao final de

seu artigo The ancient economy and its critics, Finley lembrou que um crítico considerou A

Economia Antiga como um evento por ter sido publicado no meio de uma época em que a

História econômica vivia uma crise de teoria. Ainda seguindo Mazza, o crítico citado, Finley

finalizava o artigo com um chamado, que consideramos extremamente relevante para os dias

de hoje: “não é hora de abandonarmos os debates explicativos intermináveis, como no volume

de Gramsci, em favor do que, em outros campos, denominar-se-ia verificação de hipótese por

estudos empíricos?”553

553 FINLEY, M. The ancient economy and its critics. Mimeógrafo. S/d. p. 6

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6 CONCLUSÃO

No início deste trabalho, afirmamos que o objetivo desta pesquisa era investigar os

desdobramentos da tradição primitivista – substantivista, que, gerada sob o ambiente

intelectual do historismo e formulada sob os cânones da tradição histórica alemã, teve como

primeiro representante o economista Karl Bücher, o qual, influenciado por Johann Karl

Rodbertus, elegeu o oikos como o elemento central do primitivismo econômico antigo, em

uma perspectiva evolucionista. O debate inicial do oikos, originado no seio deste contexto,

trazia consigo os germes da Historiografia moderna: o caráter específico da ciência histórica

em relação às ciências naturais.

O trabalho de Bücher foi motivo de críticas violentas de historiadores alemães, como

Eduard Meyer e Beloch, que não concordaram com o domínio do oikos por um longo período

de tempo, em sociedades e épocas com características muito mais complexas do que aquelas

apresentadas por Bücher. Respondendo às críticas sobre as lacunas empíricas de seu trabalho,

Bücher afirmou que o objetivo de seu trabalho era descobrir as leis de desenvolvimento

econômico das sociedades em uma perspectiva histórica.

O trabalho pioneiro de Bücher, produzido no interior da ciência econômica, e, como

ele mesmo afirmava, de cunho teórico, representou um momento novo nas pesquisas sobre a

História econômica. Ajudou a romper com o domínio da História política, alérgica a modelos,

descritiva e preocupada com os grandes personagens. Bücher e seus predecessores da Escola

Histórica de Economia Política introduziram novas estruturas na investigação das sociedades.

O evolucionismo econômico defendido por ele inseriu, nas ciências econômicas, as

generalizações das ciências naturais. Bücher procurou confluir as propostas teóricas da Escola

neoclássica inglesa, simpática à aplicação dos métodos das ciências naturais à economia, com

as propostas da segunda geração da Escola Histórica de Economia Política, voltadas para o

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estudo exaustivo das instituições das realidades investigadas, conforme propunha Gustav Von

Schmoller.

Apesar das críticas violentas dos historiadores direcionadas à transposição dos

métodos das ciências naturais para as ciências da cultura, por acharem que esta não poderia

colocar em segundo plano o significado das ações individuais, o seu trabalho abriu novas

perspectivas à ciência histórica ao eleger o “econômico” como elemento central de

investigação. Os historiadores foram desafiados a produzir, a partir desta ciência, uma

reflexão de cunho teórico que fortalecesse o caráter científico das ciências históricas e

respondesse àqueles que acreditavam que a História era somente uma ciência empírica, isto é,

apenas coletora de dados.

Este desafio nos ajuda a entender, na controvérsia do oikos, o papel de Max Weber,

em seus trabalhos históricos, que, apesar de reafirmar o caráter primitivista de Bücher,

demonstrou que a perspectiva evolucionista não propiciaria o rigor científico necessário às

ciências da cultura. Desta forma, como o oikos não poderia continuar sendo o elemento

central da argumentação antimodernista, o capitalismo passou a ser a sua referência para

pensar o desenvolvimento e as transformações políticas, sociais e mentais das sociedades

antigas. Ao tomá-lo como um tipo ideal, Weber “encontrou” diferentes tipos de capitalismos

em diferentes sociedades e diferentes épocas, para definir melhor o capitalismo moderno. As

sociedades clássicas greco-romanas, dominadas por um capitalismo político, isto é, sob

orientação de interesses político-militares, encontraram seu caráter primitivo não mais no

oikos, mas na pólis – alçada, então, ao centro de sua preocupação porque reunia as condições

necessárias, materiais e mentais, para demonstrar que a esfera econômica daquela realidade

não era dominada pelos mesmos interesses das sociedades capitalistas modernas. Apesar das

contradições em relação ao caráter primitivo da pólis, Weber procurou superar as

incongruências históricas dos primeiros primitivistas, que não tinham como refutar os

testemunhos históricos que contradiziam a hipótese de domínio do oikos para toda a

Antiguidade.

Por outro lado, Weber, em seus trabalhos metodológicos, procurou responder aos

críticos de Bücher, simpáticos às tendências descritivas dos fenômenos sociais, com os “tipos

ideais”, um instrumento de análise que, apesar de não ter como fim último as leis gerais das

ciências naturais, procurava estabelecer conceitos causais às ciências humanas. Ele, então,

buscou conciliar os interesses divergentes, naquele momento, entre aqueles que defendiam

uma ciência de cunho mais teórico, voltada para a formulação de leis e hipóteses gerais, e

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aqueles que propugnavam por uma ciência de cunho mais descritivo, refratária à formulação

de métodos e hipóteses, e voltada para a descrição dos grandes indivíduos históricos. A

posição de Weber contribuiu para inserir as ciências da cultura nos preceitos da investigação

metódica e racional das ciências modernas. A sua preocupação com o capitalismo moderno o

levou a analisar prioritariamente o mundo antigo, comparando-o às sociedades medievais,

modernas e orientais.

Johannes Hasebroek procurou extirpar algumas influências modernistas de Weber,

supervalorizando o papel da cidade-Estado nas relações comerciais. Os trabalhos de Bücher,

Weber, Hasebroek, e mesmo de Meyer, produzidos no seio do Historismo e da Tradição

Histórica, demonstram que as diversas esferas sociais e econômicas poderiam ser pensadas

com a política. Isso levou estes autores a darem um passo na constituição da História Social.

O trabalho de Karl Polanyi representa uma guinada na tradição que estamos

analisando porque a redireciona acadêmica e politicamente, em conseqüência da sua

orientação socialista, diferente dos autores até então apresentados, levando-o a remover os

resquícios neoclássicos do primitivismo. Polanyi procurou demonstrar que o mercado era

artificial e moralmente perverso e, ao colocá-lo no centro dos argumentos primitivistas, com

instrumentos conceituais oriundos da Antropologia, ampliou as questões iniciais da

controvérsia do oikos e criticou os aspectos formalistas da teoria weberiana e de seus

seguidores.

Diferentemente do oikos e da pólis, o mercado foi alçado ao centro da tradição em

uma perspectiva negativa. O substantivismo polanyiano, amparado nos trabalhos de

Malinovsky e Thurwald, procurou demonstrar que o papel do mercado em sociedades pré-

capitalistas não seguia a mesma lógica do mercado nas sociedades modernas: enquanto lá o

mercado se encontrava embedded nas instituições não econômicas, nas sociedades modernas

do século XIX, em razão de um processo histórico intencional e não intencional de uma série

de intervenções ideológicas e políticas, o mercado assume um caráter autônomo em relação às

outras esferas da sociedade. Desta forma, o substantivismo polanyiano rompeu com o ponto

de vista de Weber e Bücher e, mesmo de Marx e Ricardo, de que o capitalismo mercantil era

o resultado de uma ascensão progressiva, necessária e histórica, apesar do conceito de

embeddedness ir ao encontro do institucionalismo de Weber, já presente nos trabalhos de

Schmoller.

Se por um lado, o conceito de embeddedness contribuiu para uma melhor descrição

das economias antigas, por outro, foi gestado em um contexto de divergências entre a

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Antropologia e a História. As influências funcionalistas colaboraram para a aproximação da

Antropologia com as ciências naturais. O modelo polanyiano, extensivo a um amplo raio de

sociedades no tempo e no espaço, procura organizar todas as sociedades pré-capitalistas de

acordo com as formas de integração. As particularidades históricas e culturais foram

“engessadas” nessas formas de integração que se aproximavam das leis gerais das ciências

naturais. As tensões sociais, presentes nos trabalhos de Weber e Hasebroek, foram diluídas

em esquemas compartimentalizados da organização social. Se, por um lado os conceitos de

reciprocidade, redistribuição e intercâmbio superavam a dualidade racionalidade e

irracionalidade, estabelecida por Weber, por outro lado, reorientavam a análise primitivista

para o campo metodológico das ciências naturais. Eis a contradição do substantivismo

polanyiano no seio da tradição investigada.

A formulação de problemas, a precisão empírica, o uso de teorias, modelos e tipos-

ideais, o interesse em estudos interdisciplinares e comparativos e uma orientação voltada para

a compreensão de sociedades inteiras estão mais ou menos presentes nos trabalhos dos autores

que estamos investigando. Contudo, foi Moses Finley quem sedimentou os postulados da

História Social no seio dessa tradição ao eleger estes princípios como bandeiras de luta no

trabalho historiográfico. Consolidando posições políticas e acadêmicas não dominantes até a

primeira metade do século XX, Finley iria defender a utilização de modelos sociológicos e

antropológicos na investigação histórica, a despeito das críticas aos aspectos a-históricos

destas ciências naquele momento. Tomando os tipos ideais como os modelos mais adequados

à investigação histórica e o institucionalismo histórico weberiano, proveniente da Escola

Histórica de Teoria Econômica, com os princípios do substantivismo polanyiano – mesmo

sem utilizar de forma explícita os conceitos de embeddedness –, juntamente com sua crítica ao

formalismo econômico, Finley conseguia enfim conectar em sua análise da economia antiga

as questões que rondaram, mas não reuniram, os protagonistas da tradição primitivista –

substantivista: remoção do caráter formalista da economia antiga e utilização de modelos

próprios às ciências humanas – mesmo que não formuladas pela História – não orientados

pelas ciências naturais, como os métodos estatísticos.

Esta postura refletiu-se nos trabalhos sobre a economia antiga, a qual Finley tratou

como uma totalidade, pois, apesar das diferenças cronológicas e geográficas da época arcaica

grega até a Antiguidade tardia, ela não cessava de apresentar as mesmas grandes

características. Os tipos ideais, como a cidade antiga, amparados em uma pesquisa empírica

rigorosa, foram utilizados para combater a transposição acrítica de conceitos e análises

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econômicas modernas. Não priorizando mais o oikos do debate original nem o mercado de

Polanyi, Finley estabeleceu o caráter específico da pólis ateniense com o nascimento e a

consolidação do estatuto do cidadão, forjado com o fim da servidão por dívida e o predomínio

da escravidão-mercadoria, que viabilizaram a participação política e os privilégios

econômicos de um amplo setor da população, que, anteriormente, estava alijado das decisões

políticas. Ele utilizou as categorias ordem e status, em detrimento de classe, e demonstrou que

o status age como um freio no desenvolvimento de mercados de terras, trabalho, comércio e

avanço tecnológico. Portanto, a economia no mundo greco-romano é abordada sob a

dimensão de relações de status, e não como uma esfera autônoma. Finley privilegiou em sua

análise não a antinomia livre e não livre, mas a presença ou ausência de privilégios políticos e

econômicos dos diversos grupos sociais. O envolvimento de Finley, no início de sua carreira,

com os filósofos marxistas da Escola de Frankfurt o levou a travar um debate ruidoso com os

marxistas acerca da utilização de conceitos marxistas à economia antiga. Finley rechaçou o

conceito de modo de produção e outros conceitos marxistas não por diferenças ideológicas,

mas por acreditar que tais conceitos aproximavam-se da postura modernista, como, por

exemplo, o conceito de lutas de classes e de modo de produção escravista.

Uma tradição de pensamento, como dito no início do trabalho, não é simplesmente o

reforço de idéias transmitidas ao longo do tempo, é também uma reflexão crítica produzida

por diferentes pensadores com o fim de reorientar os princípios daquela tradição. É a

avaliação de preconceitos, que, discutidos e reinterpretados sob um novo contexto político,

econômico e intelectual, que produz novos conceitos. A tradição investigada aqui nasceu sob

o impacto de um fenômeno que dominou a mente dos homens que viveram no final do século

XIX: o capitalismo. Tentar explicar, defender, transformar ou superar o capitalismo ocupou as

preocupações de todos eles. Foi a partir do capitalismo e suas transformações que começaram

a ser formulados os paradigmas que investigamos, isto é, os modelos elaborados por esses

autores estiveram diretamente atrelados às questões que surgiram durante o desenvolvimento

do capitalismo. Daí a relação entre as ciências modernas, capitalismo e História. O estatuto

científico da História nasce no bojo destas transformações e coloca o estudo da sociedade

como uma das maneiras de se pensar a História de forma científica. Dos trabalhos dos

protagonistas da Escola Histórica de Teoria Econômica até Finley, vimos como o “social”

nasceu e se firmou no interior de uma tradição de pensamento.

Se a constituição da Historiografia moderna esteve atrelada ao capitalismo, ela

também legitimou o domínio de valores do Ocidente sobre o resto da população do planeta.

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Na medida em que o capitalismo é fruto de uma revolução econômica, política e mental no

interior de formações sociais ocidentais, a Historiografia moderna não poderia deixar de

produzir uma reflexão sobre o passado em que os valores do capitalismo ocidental estivessem

no centro de suas reflexões. Os autores paradigmáticos da tradição primitivista –

substantivista procuram demonstrar que os valores dominantes do capitalismo moderno

ocidental foram produtos de um processo histórico. Racionalismo, mercado e liberdade são os

temas principais sobre os quais os protagonistas de nossa tradição procuraram especificar os

elementos constitutivos do Ocidente. Weber demonstrou que as atitudes constituintes da

racionalidade capitalista moderna, forjadas em um dado momento histórico, eram vistas por

sociedades passadas como atitudes irracionais. Ao historicizar o nascimento da mentalidade

capitalista moderna, Weber voltou-se para sociedades passadas para entender as raízes dos

valores capitalistas e os motivos pelos quais eles não eram dominantes naquelas sociedades. A

antinomia racional e irracional é localizada no passado greco-romano, no medievo e nas

sociedades modernas ocidentais, excluindo-se, portanto, o Oriente por não ter produzido as

raízes políticas e econômicas favoráveis ao nascimento de uma sociedade capitalista moderna.

Polanyi justifica a artificialidade do mercado, pelas tendências sociais dos homens nas

sociedades pré-capitalistas e desnaturaliza o individualismo mercadista contemporâneo. As

sociedades primitivas ocidentais aparecem como originárias dos mercados, em contraposição

ao Oriente sem mercado. A presença de mercado é o traço específico do Ocidente, em

contraposição a sua ausência no Oriente. Naquelas sociedades ocidentais primitivas, contudo,

os mercados formadores de preço, apesar de já incipientes, eram minoritários diante dos

outros tipos de mercado. Para Polanyi, o domínio da redistribuição e reciprocidade e de um

mercado administrado pela pólis eram produtos das tendências antiindividualistas do homem.

Estas formas de integração encontravam seu paralelo moderno no socialismo, uma forma de

redistribuição planejada moderna, mas que, para Polanyi, deveria ter um caráter democrático.

O laissez faire era combatido por uma experiência histórica, em que o Estado, a pólis,

regulava as relações mercantis em favor das tendências “naturais” do homem.

Equivocadamente, Polanyi incorria em um novo tipo de naturalismo. A liberdade do homem

difundida pelo liberalismo era substituída pela liberdade do homem em sociedades

redistributivas, tanto do passado quanto do futuro.

A liberdade esteve no centro dos argumentos finleynianos para comparar o moderno e

o antigo, mas não para defender tendências naturais antimercadistas. Foi de todos os autores

desta tradição o que mais valorizou a experiência da democracia direta ateniense e o papel da

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cidadania como um elemento particular da experiência grega em relação ao Oriente. Para

Finley, um sentimento peculiar de liberdade nasce na Grécia antiga, como resultado das lutas

sociais pela abolição da servidão por dívidas dos atenienses, pela criação do estatuto de

cidadania e pela adoção predominante da escravidão-mercadoria. A ausência desses traços no

Oriente dá ao Ocidente um caráter próprio, pois, apesar de demarcar as fronteiras de liberdade

entre a Grécia antiga e o mundo contemporâneo, é aos atenienses que ele recorre para

encontrar uma origem para este sentimento.

É na sociedade ateniense que estes pensadores encontram as raízes dos valores e

instituições caras à sociedade burguesa ocidental. Provendo as utopias de gerações de homens

desde a Idade Média, passando pelo Renascimento e pela Revolução Francesa, a Atenas

clássica fomentou um diálogo retrospectivo com os protagonistas da tradição investigada aqui

a partir de um fenômeno tão transformador e intenso para eles quanto a própria democracia

para aos gregos. Os protagonistas de nossa tradição encontraram em Atenas o elo originário,

filtrado já por diversas tradições, do nascimento da civilização ocidental. Davam assim um

sentido para a História. Eis aqui mais um elemento característico da Historiografia moderna, o

caráter teleológico, que esta tradição ajuda a consolidar.

Se hoje vivemos em uma realidade em que o capitalismo, ainda presente e dominante,

não mais engendra grandes modelos explicativos, é porque ele próprio se transformou. As

grandes antinomias do século XX – capitalismo versus comunismo, capital versus trabalho –

estão diluídas em uma série de novas questões que não mais privilegiam a afirmação ou

superação do capitalismo. Capitalismo agora se encontra naturalizado e mesmo rotinizado,

não estando mais no centro dos grandes debates acadêmicos e políticos. Neste contexto, a

Historiografia atual formula novas questões sobre a Antiguidade e redimensiona os modelos

formulados pelos sábios de nossa tradição. Se isto é positivo para o “progresso” da História,

como diria Finley, esta historiografia, que se instala redefinindo as interrogações do presente

acerca do passado e procurando novas respostas, não poderá fazer interpretações do mundo

antigo sem levar em conta o legado da tradição aqui investigada, responsável pela elaboração

de um rico quadro de categorias acerca da economia antiga.

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