Historiografia Contemporânea
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Volume 2
Volume 2
Historiografia Contempornea
Historiografia C
ontempornea
Felipe Charbel Teixeira
Pedro Spinola Pereira Caldas
9 7 8 8 5 7 6 4 8 7 8 7 6
ISBN 978-85-7648-787-6
-
Volume 2
Felipe Charbel Teixeira Pedro Spinola Pereira Caldas
Historiografi a Contempornea
Apoio:
-
Copyright 2011, Fundao Cecierj / Consrcio Cederj
Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, mecnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Fundao.
T266 Teixeira, Felipe Charbel. Historiografi a contempornea v. 2 / Felipe Charbel Teixeira, Pedro Spinola Pereira Caldas. - Rio de Janeiro: Fundao CECIERJ, 2011. 208 p. ; 19 x 26,5 cm.
ISBN: 978-85-7648-787-6
1. Historiografi a. 2. Cultura. I. Caldas, Pedro Spinola Pereira. II. Ttulo.
CDD 907.22011.2/2012.1Referncias Bibliogrfi cas e catalogao na fonte, de acordo com as normas da ABNT e AACR2.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfi co da Lngua Portuguesa.
Material Didtico
ELABORAO DE CONTEDOFelipe Charbel Teixeira Pedro Spinola Pereira Caldas
COORDENAO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONALCristine Costa Barreto
SUPERVISO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL Miguel Siano da Cunha
DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL E REVISO Henrique OliveiraJorge AmaralLcia Beatriz da Silva Alves
AVALIAO DO MATERIAL DIDTICOThas de Siervi
Departamento de Produo
EDITORFbio Rapello Alencar
COORDENAO DE REVISOCristina Freixinho
REVISO TIPOGRFICACarolina GodoiElaine BaymaRenata Lauria
COORDENAO DE PRODUORonaldo d'Aguiar Silva
DIRETOR DE ARTEAlexandre d'Oliveira
PROGRAMAO VISUALBianca Lima
ILUSTRAOBianca Giacomelli
CAPABianca Giacomelli
PRODUO GRFICAVernica Paranhos
Fundao Cecierj / Consrcio CederjRua da Ajuda, 5 Centro Rio de Janeiro, RJ CEP 20040-000
Tel.: (21) 2333-1112 Fax: (21) 2333-1116
PresidenteCarlos Eduardo Bielschowsky
Vice-presidenteMasako Oya Masuda
Coordenao do Curso de HistriaUNIRIO Mariana Muaze
-
Universidades Consorciadas
Governo do Estado do Rio de Janeiro
Secretrio de Estado de Cincia e Tecnologia
Governador
Alexandre Cardoso
Srgio Cabral Filho
UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIROReitor: Silvrio de Paiva Freitas
UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitor: Ricardo Vieiralves de Castro
UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitor: Luiz Pedro San Gil Jutuca
UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROReitor: Ricardo Motta Miranda
UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROReitor: Carlos Levi
UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor: Roberto de Souza Salles
-
Historiografi a ContemporneaSUMRIO
Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo _____________________________ 7Pedro Spinola Pereira Caldas
Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica __ 39Felipe Charbel Teixeira
Aula 11 Histria dos conceitos ___________________ 67Felipe Charbel Teixeira
Aula 12 Histria e ps-modernidade (I): a crise dos grandes paradigmas __________ 85Pedro Spinola Pereira Caldas
Aula 13 Histria e ps-modernidade (II): a questo da representao ____________119Pedro Spinola Pereira Caldas
Aula 14 Desafi os atuais da historiografi a contempornea: o problema do trauma __151Pedro Spinola Pereira Caldas
Aula 15 Desafi os da historiografi a contempornea: a histria comparada ___179Felipe Charbel Teixeira
Referncias _____________________________________201
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Pedro Spinola Pereira Caldas
Aula 9
P d S i l P i C ld
A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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Historiografi a Contempornea
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Meta da aula
Apresentar os desdobramentos dos fundamentos da histria cultural nas obras dos
historiadores Carlo Ginzburg, Dominick La Capra e Roger Chartier.
Objetivos
Aps o estudo desta aula, voc dever ser capaz de:
1. reconhecer na obra de Carlo Ginzburg a apropriao da ideia de circularidade;
2. identifi car por que, para Dominick La Capra, o conceito de dialogismo
importante para a histria cultural;
3. reconhecer como a ideia de apropriao, em Roger Chartier, um meio-termo
entre as propostas de Ginzburg e La Capra.
Pr-requisitos
Para melhor entender esta aula, importante que voc tenha estudado com muita
ateno a aula anterior sobre Bakhtin, sobretudo seus conceitos de dialogismo e
circularidade. Recomenda-se tambm uma reviso sobre o conceito de mentalidade, tal
como usado por Lucien Febvre, exposto na Aula 2 desta disciplina.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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INTRODUO
Um dos aspectos mais interessantes ao se estudar a histria
de uma disciplina cientfi ca consiste em perceber e reconhecer que
os fundamentos desta disciplina, s vezes, se encontram em outras
disciplinas.
Uma mudana de paradigma na historiografi a, portanto,
no necessariamente se faz a partir de recursos dispostos e criados
pelos historiadores. A infl uncia de Mikhail Bakhtin em autores
como Carlo Ginzburg e Dominick La Capra, por exemplo, prova
bastante eloquente de que, por mais que os historiadores saibam que
pertencem a um grupo profi ssional razoavelmente bem defi nido,
bastante saudvel que eles admitam que jamais teriam escrito obras
de histria se no fosse justamente a infl uncia que intelectuais de
outras reas exerceram em seu trabalho. No sculo XIX, por exemplo,
muito difcil pensar a historiografi a sem considerar a importncia
da fi losofi a, da teologia e das cincias da natureza. No sculo XX,
disciplinas como a Antropologia, a crtica literria e a psicanlise
passaram a ter um papel fundamental para o desenvolvimento da
escrita da histria. Voc j viu como a Antropologia foi essencial
para um Jacques Le Goff, a Geografi a para um Braudel, e como, de
alguma maneira, todos eles respiravam em um ambiente fortemente
marcado por homens como Sartre e Camus. H de se aprender algo
com a histria de nossa disciplina: estud-la ver que importante
sair dos limites impostos por uma especializao cada vez mais
rigorosa, e tentar imaginar como veramos o mundo se o olhssemos
a partir de outra janela.
Nesta aula, voc ver como podemos perceber, de fato, o
confl ito entre texto e contexto na historiografi a. O confl ito entre texto
e contexto foi visto na aula sobre Bakhtin, estando a importncia
do texto mais forte no livro sobre Dostoivski, e a do contexto na
obra sobre Rabelais. Procederemos, portanto, da seguinte maneira:
para abordar as diferentes tentativas historiogrfi cas de pensar a
dinmica entre contexto e linguagem, destacaremos os conceitos
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Historiografi a Contempornea
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de circularidade na obra de Carlo Ginzburg, o de dialogismo
nos trabalhos do historiador americano Dominick La Capra e o de
apropriao na obra de Roger Chartier.
As anlises dos conceitos-chave aludidos sero feitas em trs
etapas: (a) como crtica s obras de historiadores anteriores, de onde
poderemos apresentar como tais historiadores se situam na histria
da historiografi a sobre a cultura; (b) uso de conceitos importados de
outras disciplinas, sobretudo, da teoria literria de Mikhail Bakhtin,
da psicanlise e da teoria literria, conceitos estes que permitem a
crtica aos demais historiadores da cultura; (c) aplicao e prtica
na pesquisa historiogrfi ca que resultam das crticas e da importao
de conceitos destas outras reas do conhecimento.
Carlo Ginzburg: a circularidade da cultura
Nascido em 1939 em Turim, Carlo Ginzburg um dos
principais historiadores da atualidade. Sua especialidade a
histria moderna, e ele tem contribudo bastante em vrios campos
da histria cultural: ele transita da cultura popular para a cultura
erudita, e tem participado intensamente dos debates tericos mais
acalorados dos ltimos trinta anos, sobretudo aqueles que dizem
respeito importncia da linguagem para a escrita da histria e
para o estatuto cientfi co do conhecimento histrico.
Entre outras razes, Ginzburg famoso por ser considerado
um dos principais nomes se no for o principal da escola italiana
de histria chamada micro-histria.
Nesta aula, no daremos tanta ateno ao conceito de
micro-histria, que pode ser menos efi caz para pensar os rumos
da historiografi a. Do contrrio, fi caramos presos mais s ditas
escolas do que aos conceitos. Alm disto, como disse muito bem
Jacques Revel (REVEL, 1998, p. 15), a micro-histria basicamente
emprica, e no um programa terico a ser cumprido na prtica da
pesquisa, razo pela qual defi ni-la pode ser uma deciso infeliz e
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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violenta. Uma boa defi nio da prtica da micro-histria dada
por Giovanni Levi:
A micro-histria tenta no sacrifi car o conhecimento dos
elementos individuais a uma generalizao mais ampla, e
de fato acentua as vidas e os acontecimentos individuais.
Mas, ao mesmo tempo, tenta no rejeitar todas as formas
de abstrao, pois fatos insignifi cantes e casos individuais
podem servir para revelar um fenmeno mais geral (LEVI,
1992, p.158).
Feitas as consideraes iniciais sobre Ginzburg e a micro-
histria, agora veremos como o prprio Carlo Ginzburg se inseria
criticamente na histria da historiografi a do sculo XX. Neste sentido,
fundamental considerar sua Crtica histria das mentalidades por
meio do conceito de circularidade. E a obra em que esta crtica foi
feita um livro cuja primeira edio de 1976. E, apesar de pouco
mais de trinta anos, j se tornou clssico. Trata-se de O queijo e
os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela
Inquisio.
Nesta obra, Ginzburg procura compreender um episdio
do incio da era moderna, a saber, o processo inquisitorial levado
contra o moleiro Menocchio, nascido em 1532 com o nome de
Domenico Scandella. Ginzburg sabia muito bem em que seara
estava se inserindo, porquanto tinha, atrs de si, duas grandes obras
que tratavam do mundo popular no incio da era moderna. Voc j
pode perfeitamente adivinhar quais so: O problema da descrena
no sculo XVI, de Lucien Febvre, que tem Rabelais como centro, e
o estudo de Mikhail Bakhtin sobre o mesmo Rabelais. A segunda o
infl uenciou fortemente. primeira, cuja importncia no deixa de
reconhecer, Ginzburg no poupou crticas.
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Historiografi a Contempornea
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A leitura feita pelo italiano da obra de um dos fundadores
dos Annales foi marcada pelas restries feitas ao uso do conceito
de utensilagem (ou equipamento) mental, que, embora tenha sido
defi nido parcamente por Febvre, procura expor o repertrio mental
e cultural disponvel em uma poca, do qual faziam uso os homens
de ento. O uso no era idntico, mas variado; claro que o conceito
era bastante efi caz para se evitar o anacronismo e nisto, admite
Ginzburg, Febvre foi bastante feliz , mas no para ver o que nele
havia de efetivamente produtivo. Marcava limites do discurso, e no
suas ousadias, e, neste sentido, permanecia, inclusive, interclassista
e encobridor de confl itos. Nas palavras do prprio Ginzburg:
Quem eram aqueles mal identifi cados homens do sculo XVI?
Humanistas, mercadores, artesos, camponeses? Graas
noo interclassista de mentalidade coletiva, os resultados
de uma investigao conduzida sobre um pequeno estrato
da sociedade francesa composta por indivduos cultos so
tacitamente ampliados at abarcar completamente um sculo
inteiro (GINZBURG, 2006, p. 24).
Carlo Ginzburg
Carlo Ginzburg um dos historiadores cujas
obras tm maior repercusso no Brasil. Alm
de O queijo e os vermes, podemos encontrar
inmeros outros ttulos com traduo para a lngua
portuguesa, tais como Olhos de madeira Refl exes
sobre a distncia, Relaes de fora, Nenhuma ilha
uma ilha, Andarilhos do bem Feitiaria e cultos
agrrios nos sculos XVI e XVII, entre outros. A obra
de Ginzburg abrange temas tericos (sobretudo, sobre
retrica), anlise de textos literrios e pesquisas sobre
a religiosidade popular.
CC
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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Neste sentido, o conceito de equipamento mental verter-se-ia
rapidamente, ao longo da histria dos Annales, no conceito de
mentalidades tal como defi nido por Jacques Le Goff, como voc viu
na Aula 3 desta disciplina. Ou seja, a mentalidade da poca era
algo interclassista, presente no grande artista, no grande lder poltico
e no mais annimo dos seres, porquanto a mentalidade revelava-se
no gesto automtico, cotidiano, repetido. O problema do conceito
de mentalidades, segundo Ginzburg, consistia na sua tendncia a
generalizar em excesso, e, portanto, a uniformizar, estabelecendo
uma s identidade para um contexto muito amplo.
curiosa a diferena entre O queijo e os vermes e as principais
obras da historiografi a francesa, pois todas surgem em tempos de
crise. A Frana em que viveu e trabalhou Lucien Febvre padece
na Segunda Guerra Mundial, e os nacionalismos, j responsveis
pela catstrofe da Primeira Guerra, incomodavam igualmente os
historiadores annalistes, que privilegiavam, ento, os grandes
espaos geogrfi cos aos territrios nacionais, os hbitos mentais
lentamente transformados aos arroubos impetuosos (e, naquele
momento, destrutivos ou derrotados) dos agentes polticos.
A micro-histria de Ginzburg se inscreve na paisagem italiana
do ps-guerra, como muito bem apresenta Henrique Espada Lima
em sua obra sobre a micro-histria (cf. LIMA, 2006, p. 25-54).
tradicional histria poltica da esquerda italiana, fortemente
infl uenciada pelo pensamento de Antonio Gramsci, sucedeu-se a
decepo com a invaso sovitica na Hungria e as denncias s
atrocidades de Stalin. O dilogo com a historiografi a francesa, se
foi parcialmente interrompido, trouxe alguns ensinamentos, como a
predileo pela demografi a e pela anlise qualitativa de pequenas
comunidades camponesas. O ambiente poltico e cultural italiano
(para no dizer europeu e ocidental), marcado pelo movimento
contracultural e pelo abafamento da poltica causado pelo recuo das
esquerdas institucionais com os movimentos terroristas de inspirao
marxista na dcada de 1970 (sobretudo na Itlia e na Alemanha), deu
um novo sentido s contestaes e ao papel crtico da historiografi a.
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Historiografi a Contempornea
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A micro-histria , ento, a tentativa de enfatizar aes individuais
de relevncia social, ou seja, seu propsito consistia em estudar e
pesquisar temas que se inseriam fora dos grandes agrupamentos
sociais e dos espaos institucionais clssicos (como o Estado). Mas
nem por isso poderia ser chamado de conformista. Os confl itos
sociais e culturais tambm poderiam ser identifi cados mediante o
estudo de comunidades, famlias e mesmo indivduos.
Esta a forma como Ginzburg se insere na historiografi a do
sculo XX: necessrio fazer a crtica das conquistas de historiadores
como Febvre, mas, claro, sem retroceder.
E quais os recursos conceituais utilizados por Ginzburg para
mostrar a poca moderna de outra maneira, bem diferente da feita
por Febvre em seu livro sobre Rabelais?
No difcil perceber como, em O queijo e os vermes,
Ginzburg mostra ao leitor que no possvel compreender
Menocchio mediante uma relao causal com sua poca. Ginzburg
se recusa a dar explicaes do tipo: Menocchio foi mais um caso
do esprito de revolta contra as autoridades, tal como podemos ver
nos luteranos.... Menocchio parece no simbolizar coisa alguma,
no representar nada, nenhuma mentalidade, ou estrutura...
Menocchio era um homem simples, que no pertencia s elites,
mas teve acesso aos principais livros da poca, lendo-os, porm,
(sobretudo a Bblia), de uma maneira muito singular e prpria.
Tal interpretao foi possivelmente infl uenciada pela cultura oral
popular existente na poca, e foi sufi cientemente peculiar a ponto
de incomodar profundamente a Igreja.
Ginzburg mostra como Menocchio uma brecha, uma fenda
na qual se expressa uma cultura oral; mas tal expresso s possvel
graas Reforma e Imprensa, que permitiu a difuso dos livros por
ele lidos. Tal cultura oral, rebelde e insolente em Menocchio, no
atemporal. Na verdade, sua insurgncia contra a Igreja um sintoma
de perodos de crise, na qual a cultura popular, sempre tranquila em
sua estabilidade, passa a imaginar tempos melhores no passado, e
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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considera a sua situao presente como corrupta e degenerada. O
que se pode dizer o seguinte: Menocchio um excelente indcio
da crise, sem o qual esta poderia ser lida de maneira diferente,
menos rica talvez. Assim, v-se a circularidade na obra de Ginzburg,
inspirada em Mikhail Bakhtin, ainda que de maneira invertida:
um simples campons que obriga a releitura do todo social, e no
o literato (Rebelais) que se esvai para o popular.
a partir deste ponto que Ginzburg cria o chamado paradigma
indicirio, instrumento que permitir a Ginzburg obter um rendimento
maior da ideia de circularidade retirada de Bakhtin. Esta , sem dvida,
uma das caractersticas mais polmicas da obra de Ginzburg. Afi nal,
como ler o particular? Entenda-se o particular como justamente aquilo
que parece no representar nada, nenhuma mentalidade, classe social
etc. A pergunta no nova no mbito da cincia histrica, pois o
prprio cerne do historicismo, como voc aprendeu na aula sobre
historicismo. Droysen, em 1857, afi rmava que a histria deveria buscar
as anomalias, e no as analogias, e que o conhecimento de tais
anomalias era fruto do lugar do homem na criao divina. Lembrete:
a anomalia aqui algo incomparvel, indito, surpreendente. No
podemos ter acesso ao todo, pois a viso da luz pura nos cegar;
podemos ter acesso aos seus refl exos e deles ter conscincia. Claro
que o uso de Ginzburg do aforismo de Aby Warburg, Deus est no
particular, de cunho metafrico, mas, em certo sentido, a busca de
uma cincia do individual to antiga quanto a prpria historiografi a
cientfi ca moderna.
Por outro lado, diferentemente do que poderiam ter feito os
historicistas, Ginzburg oferece um novo caminho de dilogo, a saber,
com a psicanlise. um recurso muito interessante, de modo que os
indcios, isto , as pistas deixadas pelos agentes histricos, seriam
frutos da espontaneidade e no do ato deliberado, calculado e
consciente. Guardando que espontaneidade justamente o oposto
do automtico cotidiano (como na defi nio de Le Goff), podemos
ter a uma pista interessante para compreender uma determinada
poca da histria.
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Historiografi a Contempornea
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E como a psicanlise ajudar a fundamentar a ideia de
indcio? O indcio, de alguma maneira, fruto de um ato, mas
no o ato aparentemente signifi cativo, no qual todos prestam
ateno imediatamente. , antes, um sintoma, um vestgio, uma
pista discreta, que exige interpretao. Exemplo: imagine encontrar
algum que voc conhece muito bem. Essa pessoa, normalmente,
se veste de maneira muito caprichada e aprumada quando vai
ao trabalho ou a um encontro social. Um dia, a vemos quase
andrajosa, excessivamente despojada, usando farrapos e uma
estranha combinao de cores. A roupa um indcio de que algo
(ainda misterioso) deve ter acontecido com uma pessoa geralmente
vaidosa.
Para entender a infl uncia da psicanlise para Ginzburg,
importante recorrer ao texto em que esta teoria est exposta
de maneira mais clara. O texto chama-se Sinais: Razes de um
paradigma indicirio, certamente um dos mais infl uentes do sculo
XX, no qual Ginzburg procura evitar a dicotomia entre aparncia e
essncia, mostrando como o indcio se inscreve na prpria aparncia
da obra.
As infl uncias de Ginzburg
Alm de se referir psicanlise, Ginzburg cita
tambm as histrias de detetive criadas por Arthur
Conan Doyle (1859-1930), com o famoso detetive
Sherlock Holmes como personagem principal. Ora,
nenhum criminoso gosta de ser pego e faz o possvel
para esconder e apagar todo e qualquer trao que sir-
va de pista para sua identidade. Portanto, caber ao
detetive encontrar o autor do crime mediante os sinais
inconsciente e involuntariamente deixados pelo segun-
do. Da mesma forma, cabe ao historiador buscar as
pistas por detrs das intenes dos agentes histricos.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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Segundo Henrique Espada Lima (LIMA, 2006, p. 371), a
maneira como Ginzburg analisa os depoimentos de Menocchio
muito parecida com o mtodo usado por um psicanalista para
examinar seu paciente. O historiador italiano usa recursos como a
busca de atos falhos e as associaes livres, igualmente explorados
na clnica psicanaltica.
Ginzburg tambm cita o mtodo criado por Morelli,
um crtico de arte, para identifi car obras apcrifas, isto
, obras de autoria falsa como um quadro assinado
por um autor famoso mas que, na verdade, foi pintado
por outra pessoa, um imitador competente e mal-
intencionado. Segundo Morelli, nos conta Ginzburg,
nos pequenos detalhes que podemos identifi car a
autenticidade e perceber a falsidade de uma obra (por
exemplo, a forma como um determinado autor dese-
nha as unhas dos ps de suas fi guras etc.)
Associao-livre e ato falho
Associao-livre uma tcnica utilizada no
tratamento psicanaltico. Ela
(...) consiste em exprimir indiscriminadamente
todos os pensamentos que ocorrem ao esprito,
quer a partir de um elemento dado (palavra,
nmero, imagem de um sonho, qualquer
representao), quer de forma espontnea
(LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 38).
Por exemplo, ao ouvir o relato de um sonho de seu
paciente, o psicanalista o leva a estabelecer livremen-
te cadeias associativas entre palavras e imagens que,
a princpio, no tm uma relao objetiva entre si.
AA
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Historiografi a Contempornea
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Por outro lado, o uso da psicanlise coloca Ginzburg em um
impasse. Se uma de suas crticas mais ferozes a Febvre consistia
justamente no carter interclassista de sua obra, como entender
a qualidade da insolncia de um Menocchio e de sua maneira
peculiar de ler o mundo? Se os atos de Menocchio so indcios e
estes so inconscientes , como entender a conscincia do moleiro
sobre os seus prprios atos? Afi nal, fi camos com a sensao de
que Menocchio no tinha a dimenso da revolta que ele mesmo
causava apesar de ter pago com a prpria vida por ela. Somente
o historiador poderia perceber essa dimenso. E justamente
esse ponto que ser motivo para crticas a Ginzburg. Um dos
principais crticos o historiador americano Dominick La Capra,
que apresentaremos no prximo ponto.
Mas, apesar das crticas sofridas, Ginzburg abriu novas
portas para a pesquisa histrica. Agora, veremos como a crtica
histria das mentalidades e a busca por um paradigma indicirio
J ato falho o ato em que o resultado explicitamen-
te visado no atingido, mas se v substitudo por ou-
tro. Fala-se de atos falhos no para designar o conjun-
to de falhas da palavra, da memria e da ao, mas
para as aes que habitualmente o sujeito consegue
realizar bem (...) (idem, p. 44). Segundo Freud, o
ato falho seria a forma que o desejo inconsciente teria
para se revelar de maneira clara. Por exemplo: quan-
do trocamos o nome de uma pessoa (que conhecemos
bem, e por isso no h como esquecermos seu nome)
pelo nome de outra pessoa, que tambm conhecemos
bem. O ato falho no vale, como afi rmam Laplanche
e Pontalis, para casos em que a palavra no conhe-
cida, como, por exemplo, quando se tenta falar um
idioma estrangeiro do qual temos ainda um vocabul-
rio reduzido.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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se tornam realidade na escrita da histria, pois tanto a crtica
ideia de mentalidades como a busca por indcios levam a uma nova
concepo do objeto da histria. No lugar das totalidades dos
Annales (civilizao, mentalidade, sociedade etc), Ginzburg prope
a investigao de temas que representem um excepcional normal.
Dito de outra maneira: o objeto histrico no deve ser, de um lado,
algo totalmente singular, diferente do contexto em que se insere
(como talvez preferissem os historiadores do sculo XIX, de um modo
geral), mas tambm no deve ser algo amplo, geral, panormico,
abstrato, como mentalidade, sociedade, civilizao... O ideal seria
um meio-termo: compreender melhor uma sociedade mediante o
estudo de uma singularidade especfi ca. Trata-se de buscar algo
imprevisvel, de modo que uma poca pode mostrar suas brechas,
e, portanto, suas possibilidades de transformao. Menocchio no
extemporneo, mas suas atitudes no so reaes a estmulos,
reaes a condies sociais dadas. fundamental compreender
Menocchio como algum capaz de agir com automomia, pois d
cultura popular uma qualidade diversa. Esta no mais trabalhada
somente no eixo das grandes estruturas sociais e mentais. Passa
tambm a ter expresso prpria, concreta e singular, e no , assim,
trabalhada como massa amorfa e indistinta, na qual os indivduos
no se diferenciam entre si. Os Annales criticavam o dolo do
indivduo, e apresentavam uma estrutura social ampla. Ginzburg
procura mostrar que h, sim, espao para o indivduo na histria,
mas esse indivduo no necessariamente de elite social e cultural,
mas algum pertencente cultura popular, e, mais do que isso, sua
ao mostra que as camadas sociais inferiores tm, sim, margem
para ao, em vez de serem meras vtimas passivas.
O excepcional normal a expresso encontrada por Ginzburg
para falar da circularidade. Esta circularidade se d entre cultura
popular e de elite, entre indivduo e sociedade. Cultura popular e
cultura de elite no esto separadas de maneira estanque e defi nitiva.
A cultura popular se defi ne, tambm, por uma forma especfi ca de ler
a cultura de elite, e perfeitamente capaz de transform-la. Neste
sentido, o conceito de circularidade procura mostrar como as classes
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Historiografi a Contempornea
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se relacionam, em vez de dissolver os seus confl itos em conceitos
mais amplos e vagos como o de mentalidade ou civilizao,
termos da predileo de Lucien Febvre, por exemplo. O mesmo vale
para a relao entre indivduo e sociedade; embora o primeiro seja
impensvel sem a segunda, isto no signifi ca que todos os indivduos
existentes em determinado grupo social sejam iguais entre si.
Atende ao Objetivo 1
1. Leia atentamente a seguinte passagem de O queijo e os vermes.
Nos discursos de Mennocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda
no terreno, um estrato cultural profundo, to pouco comum que se torna quase
incompreensvel. Esse caso, diferentemente dos outros examinados at aqui, envolve
no s uma reao fi ltrada pela pgina escrita, mas tambm um resduo irredutvel de
cultura oral. Para que essa cultura diversa pudesse vir luz, foram necessrias a Reforma
e a difuso da imprensa. Graas primeira, um simples moleiro pde pensar em tomar
a palavra e expor suas prprias opinies sobre a Igreja e sobre o mundo. Graas
segunda, tivera palavras sua disposio para exprimir a obscura, inarticulada viso
de mundo (GINZBURG, 2006, p. 104).
A partir desta passagem, identifi que de que forma a relao entre cultura de elite e cultura
popular fundamental para o entendimento da ideia de circularidade.
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Resposta Comentada
Neste trecho, Ginzburg sintetiza bem a noo de circularidade. Mennocchio um homem
da cultura popular, e, enquanto tal, infl uenciado pela oralidade. Mas essa cultura oral teria
permanecido sem difuso, e mesmo sem testemunho, no fossem dois fenmenos essencialmente
atribudos a um contexto mais amplo da poca, inseridos na elite: a reforma protestante e a
imprensa. Se o protesto da cultura popular algo digno de nota, por outro lado, ele s pde
incomodar por causa das foras existentes na dita cultura de elite. Assim, cultura popular e
cultura de elite se misturam, sem deixar, com isso, de terem tenses entre si.
Dominick La Capra: o dialogismo na histria cultural
Assim como Ginzburg, o historiador americano Dominick La
Capra sofreu infl uncia de Mikhail Bakhtin, mais especifi camente
no conceito de dialogismo.
Vale a pena relembrar um pouco o que foi estudado na
aula anterior: Bakhtin desenvolve o conceito de dialogismo para
explicar como a potica de Dostoivski no pode ser vista, de modo
algum, como monolgica, ou seja, o autor no precede os seus
personagens e faz deles uma espcie de porta-voz. A essncia dos
personagens e sua expresso potica se equivalem, e o narrador do
romance no faz deles representantes de algo exterior ao texto: um
personagem no smbolo de uma classe, ou de uma ideia em
vigor na poca, ou de uma instituio etc. Os personagens, ento,
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Historiografi a Contempornea
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vivem em confl ito, demonstrando a abertura de si mesmos e do ambiente
em que circulam. Torna-se, portanto, extremamente difcil impor um
sentido unifi cado, uma mensagem, aos personagens de Dostoivski.
E isto importante para a histria cultural: o texto no um documento de
outra realidade que existe fora dele, no uma referncia de alguma
outra coisa, seja uma mentalidade, uma crise social e econmica etc.
La Capra, ento, aplica tais conceitos para a anlise de
Memrias do subsolo (LA CAPRA, 1989, p. 35-55), a novela de
Fidor Dostoisvki da qual voc j tomou conhecimento na aula
anterior. La Capra, extremamente impregnado pelo pensamento
de Bakhtin, demonstra como o narrador de Memrias do subsolo
demanda um determinado tipo de leitura. A relao se subverte: o
leitor tem bastante limitadas suas possibilidades de interpretao,
ou seja, de imposio de sentido oculto, pois a prpria personagem
impe tal limite, uma vez que (a) as outras personagens s existem
na medida em que dizem respeito conscincia e imagem que
a personagem principal tem delas, no criando ento um terreno
neutro em que o espectador pudesse se situar; (b) a personagem faz
as vezes de leitor de si mesmo, antecipando as respostas que o leitor
lhe poderia dar. O texto no um documento referencial, mas algo
que exige ser interpretado nos limites de sua prpria linguagem.
Feitos estes comentrios iniciais sobre La Capra, para falar dele
adotaremos a mesma estratgia utilizada para tratar de Ginzburg: em
primeiro lugar, importante, mediante a crtica aos predecessores (no
caso de La Capra, o alvo o prprio Ginzburg!), entender como ele
se insere na histria da historiografi a; depois, veremos que conceito
ser importante para que ele torne efi caz essa crtica (novamente, a
infl uncia da psicanlise ser decisiva); e, por fi m, com o auxlio deste
novo conceito, que tipo de aplicao ser feito e que tipo de tema o
historiador da cultura dever privilegiar em seus estudos.
Sobre a crtica de La Capra ao livro O queijo e os vermes, de
Ginzburg, curioso que ele a sustente mediante um conceito de Bakhtin,
autor tambm importante para Ginzburg. S que, diferentemente de
Ginzburg, para quem o conceito central circularidade, para La
Capra ser o de dialogismo.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
23
La Capra, em um artigo exclusivamente dedicado a criticar
O queijo e os vermes (LA CAPRA, 1985, p. 45-70), comenta que,
apesar das crticas de Ginzburg histria das mentalidades, em
momento algum ele escaparia de uma oposio binria entre cultura
escrita e cultura oral, sem a qual Menocchio impensvel. Ou seja,
ao tentar demonstrar a audcia de Menocchio, e, portanto, o carter
confl ituoso presente na ideia de circularidade aplicada ao incio
da era moderna, Ginzburg lana mo de uma ideia arraigada de
inconsciente popular (por exemplo, dizendo que em determinadas
circunstncias de crise, a cultura popular, via oralidade, sempre
reage de uma determinada maneira). O resultado a unifi cao da
experincia. Dito de outra maneira: o inconsciente popular, segundo
La Capra, uniformiza todos os membros da camada popular. La
Capra parece dizer o seguinte: Ginzburg no abandona tanto o
conceito de mentalidade quanto gostaria de faz-lo.
Para La Capra, somente o conceito de dialogismo d
experincia singular uma capacidade de resistncia perante os
modelos explicativos dos intrpretes.
Dominick La Capra
Lamentavelmente, Dominick La Capra, professor
de histria da prestigiosa Universidade Cornell,
nos EUA, ainda no teve sequer um livro traduzido
para o portugus e editado no Brasil, o que empobre-
ce o debate da histria cultural em nosso pas. Suas
principais obras, como History and Criticism (Histria e
crtica), History, Politics and the Novel (Histria, poltica
e romance), Madame Bovary on Trial (Madame Bovary
em julgamento) e inmeros ensaios sobre histria inte-
lectual, teoria da histria e refl exes sobre o Holocausto
permanecem ainda sem verso em lngua portuguesa.
D
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Historiografi a Contempornea
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A crtica a toda forma de interpretao unifi cadora, que
torna a cultura homognea, uma grande caracterstica da obra
de La Capra. Em seu belo texto Rethinking intellectual history and
reading texts (Repensando a histria intelectual e lendo textos), La
Capra identifi ca seis pecados interpretativos (cf. La Capra, 1982,
p. 47-85): (a) intencionalismo com o que partilharia Ginzburg,
e, veremos, Chartier; (b) biografi smo a tentativa de explicar uma
obra a partir de experincias da vida do seu autor dadas fora do
seu trabalho; (c) determinismo sociolgico; ver a obra como puro
refl exo ideolgico de confl itos e estruturas sociais; (d) mentalidades
exatamente o que ele acusa em Ginzburg, e, por exemplo, no (belo)
livro de Carl Schorske, Viena Fin-de-Sicle, em que o autor veria
sintomas distintos (na literatura, na arquitetura, na psicanlise etc.)
para a mesma essncia, a saber, a relao entre poltica e cultura
no clima de decadncia modernista vienense; (e) unidade da obra
tentar compreender a trajetria de um artista ou de um intelectual
a partir, por exemplo, de conceitos como obra-prima, mediante
a qual cria-se uma espcie de fi nalidade convergente de variados
fenmenos; (f) anlises tropolgicas nas quais o texto afogado
em estruturas das quais o autor no tem qualquer conscincia, mas
que podem ser objetivamente estabelecidas. O melhor exemplo na
historiografi a , sem dvida, Hayden White.
Ficamos tentados a perguntar: o que resta, ento? O texto, em
sua inabalvel pureza, sem nenhuma relao com sua poca? La
Capra sabe dos riscos, e evita afi rmar uma metafsica individual,
ou, para dizer de outra maneira, ele evita colocar o texto em
um pedestal inatingvel. Contra a viso referencial e documental
do texto, de nada adianta cair no textualismo radical, pois o
principal na crtica viso documentalista (em que o texto apenas
smbolo de outra instncia da realidade) o seguinte: pela viso
documentalista, aprendemos no texto o que podemos aprender
por outros documentos, e, assim, ele apenas confi rma o j sabido.
Ao pensar um texto, o historiador deve ser capaz de pensar sobre seu
prprio trabalho, ou seja: h de se ter uma relao dialgica com
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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o texto, que, por sua vez, ser uma rede de resistncias. Isto : o
texto no ser bem-interpretado caso apliquemos nele, de maneira
apressada, nossas concepes de mundo. Ele ser uma rede de
resistncias na medida em que nos no nos identifi camos com ele
quantas vezes dizemos que tal histria tima! Parece que estava
falando da minha vida!? O bom texto no fala da nossa vida tal
como a concebemos; simplesmente obriga a mudarmos nossa forma
de perceber as coisas e o mundo. Tanto melhor ser um texto quanto
mais ele no deixar o historiador interpret-lo de qualquer maneira,
de acordo apenas com suas preferncias pessoais e interesses muitas
vezes ideolgicos. O dilogo com o texto , portanto, importante,
porque o historiador precisa rever suas posies a cada momento
de interpretao do texto. O passado no uma totalidade pronta
a ser descoberta; na verdade, sempre algo cujo conhecimento
permanecer inacabado. por isto que o historiador no pode
dizer o que bem entende sobre um texto: necessrio estar aberto
para um dilogo com o mesmo.
E, para demonstrar como o texto pode ser entendido, isto ,
no sendo documento ou referncia de uma outra coisa, mas tambm
tomando o cuidado para no ser algo totalmente fechado em si
mesmo, La Capra tal como Ginzburg! procurar apoio conceitual
na psicanlise. Um conceito de extrema utilidade aqui ser o da
crtica feita por La Capra postura narcisista dos historiadores, a
saber, sua tentativa de criar uma narrativa unifi cada de si mesmo, ou,
para usar um termo j utilizado, uma narrativa total. Tal narcisismo
superado, segundo ele, quando a relao com o passado de
transferncia, ou seja, aquela em o passado no engolido pelo
presente. Na verdade, o outro aparece como parceiro constante na
formao da identidade do sujeito, e no algo totalmente assimilvel
ou descartvel (LA CAPRA, 1985, p. 71-73).
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Historiografi a Contempornea
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Assim, um texto bom ser aquele capaz de romper e criticar
a imagem que temos de ns mesmos, um texto indispensvel (do
passado) para compreendermos nossa prpria poca, nosso
prprio presente.
Para La Capra, isso abre um novo campo de objetos para
o estudo da histria cultural, a saber, o texto clssico. O grande
clssico justamente o texto resistente s narrativas narcsicas,
ou seja, sobretudo, s narrativas especializadas. Autores como
Sigmund Freud, Karl Marx e Machado de Assis no podem pertencer
exclusivamente teoria psicanaltica, economia ou crtica
literria; necessrio que se demonstre, justamente, o que neles h
de resistente ao tempo e s fronteiras entre as disciplinas cientfi cas, e
justamente este aspecto que permite seu tratamento interdisciplinar
e coordenativo, to caro a Jacob Burckhardt e histria cultural,
conforme voc viu na aula anterior.
Narcisismo (...) o amor pela imagem de si
mesmo (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p.
287). Essa imagem, porm, no o refl exo de si
(como um espelho), mas, sim, em um outro corpo,
em outro objeto. Aplicando na prtica: ao estudar
um objeto para buscar a ideia de civilizao, men-
talidade, sociedade, procura-se uma totalidade sem
brechas, perfeita. Trata-se de um conceito que Freud
elaborou bastante ao longo de sua vida, de modo que
uma defi nio breve ser sempre insufi ciente.
Transferncia (...) o processo pelo qual os desejos
inconscientes se atualizam sobre determinados objetos
(idem, p. 514). A transferncia a condio que torna
possvel o tratamento psicanaltico, ou seja, a elabora-
o de desejos do sujeito, de seu inconsciente etc.
N
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
27
Pense no seguinte: o clssico no pode ser explicado somente
pela poca em que foi criado, em que surgiu. Imagine o seguinte
exemplo: os poemas de Homero foram criados na Grcia antiga,
e ainda so lidos at hoje. Mas nenhuma das condies sociais,
econmicas e polticas da Grcia homrica existem mais; e se
pudssemos entender a Ilada e a Odisseia, se compreendssemos
a economia, a poltica e a sociedade gregas de ento, como seria
possvel ainda desfrutar e aprender com Homero? E o mesmo vale
para autores como William Shakespeare, Miguel de Cervantes... s
para citar alguns. este o sentido do dialogismo, tal como Dominick
La Capra o entende. O dilogo se d entre passado e presente.
Mas todos os historiadores no fariam esse dilogo? De certa
forma, sim. Mas, para La Capra, a questo mais profunda. Ao
ler um texto como indcio, como pista, estou buscando algo
que uma poca no sabia sobre si mesma ou da qual no tinha
conscincia assim como um criminoso no quer deixar pistas que
revelem sua identidade, ou seja, o historiador se julga capaz de
saber mais sobre um homem de outra poca do que ele sabia sobre
si mesmo. Para La Capra, o dilogo se d sempre que o estudo de
uma outra poca revela que no tenho como saber tudo sobre uma
poca. O historiador passa a conhecer suas prprias ignorncias,
por assim dizer.
A contribuio de La Capra tanto mais interessante porque,
alm de enfatizar a relao dialgica entre passado e presente, e,
nisto, muito semelhante s contribuies feitas pela Esttica da
Recepo e por Hans-Georg Gadamer que voc estudar logo
a seguir, quando for estudar um pouco da obra de Roger Chartier
, mas, tambm, por entender que o tratamento dos clssicos s
possvel por uma coordenao de abordagens que, em vez de
lhe esgotarem o signifi cado por uma mera superposio de foras,
engrandece-lhe o signifi cado.
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Atende ao Objetivo 2
2. Por que, para Dominick La Capra, o conceito de dialogismo um instrumento importante
para a crtica histria total?
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Resposta Comentada
O conceito de dialogismo indica que um historiador no tem como saber mais de um texto do
que seu autor. Isto , no tem como avaliar o que h de inconsciente nas intenes desse autor
que ele estuda. Na verdade, ao ler um texto, o historiador acaba descobrindo suas prprias
limitaes como intrprete. Ao tentar encontrar o sentido em alguma fonte, ele descobre que
essa fonte inesgotvel.
Assim, constri-se um dilogo, isto , o meu saber no autossufi ciente, ele se constri a partir
da leitura dos textos. E esta leitura no me leva a uma totalidade, mas a conhecer as fronteiras
de meu conhecimento.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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Roger Chartier e o conceito de apropriao
Tentaremos, por meio da apresentao de algumas refl exes
e aspectos da obra de Roger Chartier, demonstrar uma espcie de
alternativa intermediria s propostas de Carlo Ginzburg e Dominick
La Capra. No est aqui implcito nenhum posicionamento, apenas
uma exposio da forma como trs autores distintos tentam resolver
o problema apresentado na introduo deste texto.
O primeiro passo consiste em identifi car semelhanas entre os
autores. Neste sentido, a abordagem de Chartier parecida (mas
no idntica) tanto com a de La Capra como com a de Guinzburg
(CHARTIER, 2002).
Chartier reconhece a crtica da histria das mentalidades
histria intelectual, afi rmando que h sentido em fazer reservas a
uma noo voluntarista de cultura, em que o todo social se dissolveria
nas ideologias conscientemente formuladas. Mas, segundo Chartier,
a tal oposio se formulou um essencialismo, presente de maneira
mais mitigada no conceito de equipamento mental de Febvre, e
mais forte no conceito de mentalidade, de Le Goff. O conceito
de utensilagem, de alguma maneira, reservava ao indivduo uma
margem de ao consciente em meio a um repertrio possvel.
O mesmo no era possvel com o conceito de mentalidade, que
indicava o automtico e o cotidiano.
De alguma maneira, Chartier tem semelhanas com Ginzburg,
nomeadamente na tentativa de encontrar uma alternativa ao
voluntarismo da antiga histria intelectual e ao determinismo da
histria das mentalidades, seja no estilo mais brando de Febvre,
seja no mais rigoroso de Le Goff. Como Ginzburg, Chartier procura
dissolver a fronteira entre erudito e popular, mas talvez menos por
querer enfatizar as brechas sinalizadoras de confl itos, e mais pelas
formas como operava essa circularidade. Por exemplo: se Menocchio
lia livros, como ele os lia? E como tais obras chegaram s suas
mos? Para que tal problema ganhe relevo em sua obra, Chartier
destacar o conceito de apropriao.
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Historiografi a Contempornea
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Com Dominick La Capra, Chartier tem uma semelhana,
qual seja a anlise bastante cerrada dos textos como ele faz,
por exemplo, com a pea Georges Dandin, de Molire, de que
falaremos mais tarde. Para compreender a maneira como a pea de
Molire produz sentido nos contextos em que encenada, Chartier
no se furta a notar que a recepo ambivalente (ou polivalente)
da pea est de alguma maneira inscrita no texto, quando Molire
usa em uma comdia termos normalmente empregados para uma
tragdia, como temor etc.
Mas Chartier aponta riscos para as posturas adotadas por La
Capra e Ginzburg. bom que se diga que, em momento algum, tais
posturas so nominalmente atribudas a um e outro. De acordo com
nossa proposta, estamos aqui tentando elaborar maneiras de pensar
as questes tericas colocadas. Os riscos na verdade partem de um
mesmo ponto: a aposta excessiva na ideia de autonomia (da cultura
popular, de um lado, do texto, de outro), que, de alguma maneira,
mata na raiz a prpria forma de construo coordenada do objeto
da histria cultural para no dizer da prpria histria nos termos
propostos por Burckhardt e Carl Schorske, tal como apresentados
na aula anterior desta mesma disciplina.
O grande risco da ideia de circularidade pelo qual Bakhtin
no pode ser responsabilizado consiste em se criar uma ideia de
cultura popular pura, que alimentaria a cultura erudita, tanto como
seria capaz de, a partir de suas prprias referncias, absorver
elementos daquela. No se pode insistir na ideia de autonomia,
algo que manteria a dicotomia igualmente sustentada por uma
diviso elitista entre eruditos e populares.
O grande risco do dialogismo seria cair em uma forma de
textualismo radical, no qual o texto um campo fechado de signos.
Fundamentalmente, a potica toma o lugar do prprio autor, e a
lgica da produo de sentido fi ca totalmente abstrata, desapegada
do autor e, claro, da sua forma de circulao social e apropriao
por outros homens, a comear pelo prprio pblico leitor. Levado
ao extremo, haveria apenas uma forma correta e atemporal de
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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ler um texto a saber, aquela que decifrasse os mecanismos de
funcionamento potico do mesmo , e as diferentes formas de leitura
seriam desconsideradas.
De que maneira Chartier ir encontrar um meio-termo? Para
ele, ser fundamental o conhecimento da ideia de recepo,
proveniente da teoria literria, mais especifi camente, da chamada
esttica da recepo, elaborada por tericos como Hans-Robert
Jauss e Wolfgang Iser, na Universidade de Konstanz (Alemanha),
aps a Segunda Guerra Mundial.
Para autores como Jauss e Iser, o texto fi ccional sempre
precisa do complemento do leitor. Ele no uma estrutura fechada,
um mecanismo com leis prprias e atemporais, mas, segundo
eles, faz parte da experincia esttica a participao do leitor/
ouvinte/espectador. como afi rma Luiz Costa Lima, tambm um
terico da literatura e introdutor das discusses sobre esttica da
recepo no Brasil:
(...) se a arte tem uma fi nalidade em si, se sua qualidade
depende to-s de sua estruturao interna, a qual no tem
satisfaes para dar ao mundo, nem h de se preocupar com
o efeito que causa, i.e., se absolutamente auto-referente (...)
como pode interessar a um nmero considervel se no estiver
apoiada ou conjugada a um outro tipo de experincia, de
algum modo pragmtica? (LIMA, 2000, p. 51).
A Escola de Konstanz
A Escola de Konstanz contou com nomes de
grande peso intelectual, como Hans-Robert
Jauss, Wolfgang Iser, Hans-Ulrich Gumbrecht,
Karlheinz Stierle, entre outros. O fato de a teoria da
recepo mostrar que inerente prpria obra de
arte gerar um efeito sensvel no pblico torna possvel
AA
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Historiografi a Contempornea
32
Apesar de seu dbito com a esttica da recepo de origem
alem, Chartier se preocupa em marcar uma diferena em relao
a autores como Jauss e Iser, procurando mostrar que a ideia de
recepo, ali, se d na forma de leitura silenciosa feita com o olho
(que uma forma historicamente circunscrita de se ler), entre a
pgina do livro e a mente do leitor. O pressuposto que o espao
de produo de sentido (o formato de um livro, a arquitetura de um
teatro etc.) torna-se neutro, isto , ele incapaz de produzir sentido.
Para Chartier, assistir a uma mesma pea, de um mesmo autor,
dirigida por um mesmo diretor em outro teatro j altera o sentido e
a interpretao da pea. Os fatores arquitetnicos, a localizao
do teatro na cidade onde encenado... tudo isto conta para a
interpretao da pea.
Apenas um adendo, a propsito das reservas de Chartier em
relao esttica da recepo: aceitvel a crtica de Chartier,
mas uma leitura de alguns trechos de Verdade e mtodo, a principal
obra de Gadamer, teria feito com que suas crticas fossem mitigadas.
Nessa obra clssica da hermenutica contempornea, Gadamer
desenvolve o conceito de simultaneidade, desenvolvido justamente
a propsito do espetculo teatral (com o qual Chartier se ocupou, no
a articulao entre arte e sociedade, sem que se
perca o valor esttico das obras de arte (e assim
elas seriam bem mais do que mero refl exo de estru-
turas sociais). Assim, a teoria da recepo um dos
caminhos mais frteis para o debate entre histria e
literatura.
O fundamento fi losfi co da teoria da recepo a
hermenutica fi losfi ca, sobretudo, tal como desenvol-
vida por Hans-Georg Gadamer, ainda que os autores
citados tenham se esforado em, sem deixar de re-
conhecer a importncia de Gadamer, se separar dos
elementos fi losfi cos de seu pensamento.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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texto sobre Dandin, de Molire): neste conceito, Gadamer demonstra
que o palco teatral um lugar poltico por excelncia, pois no
h como saber previamente seu resultado. Cada execuo um
acontecimento, como se fosse a pura contingncia anloga ao fato
histrico, mas seu signifi cado no autnomo em relao ao texto.
Ambos so indiscernveis, texto e cena. isso que levar Gadamer
a afi rmar que toda repetio to original quanto a prpria obra.
Mas deve ser lembrado que Gadamer no se esmerou em fazer
pesquisas concretas sobre tal situao (era fi lsofo, no historiador),
mas sua importncia fi losfi ca inegvel.
O desafi o enfrentado por Roger Chartier no pequeno:
como transportar para a pesquisa histrica conceitos desenvolvidos
para resolver problemas referentes esttica e teoria e histria
literria? Em meio a tais adeses e crticas, Chartier procura mostrar
que se deve buscar a dinmica entre norma e experincia, entre
parmetros sociais e textuais dados objetivamente e as maneiras
como os diferentes atores culturais se apropriaram de tais fatores
objetivos. Procura-se, assim, ver como possvel representar
de maneira peculiar um mundo dado e no qual os homens j
se encontram (permitindo assim sua releitura), mas sem cair no
voluntarismo e no populismo. H tambm limites representao,
dados em ambientes fora do texto.
E como Roger Chartier aplicar e praticar tais crticas e
ponderaes tericas? Um bom exemplo desta abordagem o
texto Da festa da corte ao pblico citadino (cf. Chartier, 2003),
em que Chartier apresenta duas maneiras distintas de apropriao
e encenao do texto de Georges Dandin, uma das peas de
Molire. Este em si, como j apontamos, ambguo em sua forma
cmica repleta de vocabulrio trgico.
Na festa da corte, a encenao da pea fez parte dos festejos
reais pela conquista do Franco-Condado e pelo estabelecimento da
paz. Era uma celebrao tipicamente barroca, em que a decorao
em Versalhes foi feita de maneira muito semelhante prpria cena,
de modo que as fronteiras entre realidade e iluso tornaram-se bem
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Historiografi a Contempornea
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menos ntidas. Experimenta-se a realidade como iluso (cascatas de
gua, fogos de artifcio) e a iluso como a realidade quando, por
exemplo, o texto de Molire fala do casamento de um campons
com uma fi lha de famlia nobre. Neste sentido, o texto tem um
elemento interno prprio, a saber: a quem cabe a defi nio dos
papis sociais?
O carter ilusrio mais reforado porque, naquele momento,
a pea correspondia aos desejos da nobreza. Naquele contexto,
a atribuio da nobreza era exclusividade do rei este, portanto,
dizia o lugar social de cada um ao passo que, na pea, cabe
nobreza (como coletividade) a distribuio dos papis sociais. Como
os espectadores eram da corte, tem-se a iluso de que a pea fala
de um real verdadeiro, com o qual os nobres se identifi cam.
J para o pblico parisiense, o texto demonstra o carter
ridculo e arrivista do burgus que deseja ser nobre, mas, ao mesmo
tempo, consola por demonstrar que o ridculo se d em qualquer
tentativa de romper o equilbrio da ordem natural da sociedade, bem
como mostra que s genuinamente ridculo quando exagerado, e
no ponderado e razovel.
O texto pode ser lido de duas maneiras e se apropria de
signifi cado nas recepes feitas na corte e na cidade, ganhando
ambiguidade. Assim, percebe-se como, para Chartier, um texto
fi ca mais rico quando o historiador consegue enumerar e compilar
as formas como ele recebido. Afi nal, como pode uma pea ser
recebida de maneira distinta tanto pela nobreza como pela burguesia
urbana? Esta a plasticidade da obra, algo que muito possivelmente
somente a arte pode engendrar. Se um texto cientfi co, a princpio
dotado da inteno de ser objetivo, se mostra involuntariamente
ambivalente e ambguo, h algum problema com o prprio texto.
Mas se algo semelhante acontece com uma pea de teatro, porque
ela, de alguma maneira, permite ser apropriada de diferentes
maneiras, e, assim, permite tambm uma leitura da sociedade.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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Atende ao Objetivo 3
3. Leia atentamente os trechos abaixo, extrados do artigo A histria entre narrativa e
acontecimento, de Roger Chartier.
A micro-histria italiana (...) ofereceu a traduo mais viva da transformao
desse procedimento histrico inspirado pelo recurso a modelos interacionistas ou
etnometodolgicos. Radicalmente diferenciada da monografi a tradicional, cada
microstoria pretende reconstruir, a partir de uma situao particular e normal, por ser
excepcional, a maneira como indivduos produzem o mundo social, por meio de suas
alianas e confrontos, por intermdio das dependncias que os ligam ou dos confl itos
que os opem. Os objetos da histria no so, portanto, ou no so mais, as estruturas
e os mecanismos que regulam, independentemente de qualquer infl uncia objetiva, as
relaes sociais, mas as racionalidades e as estratgias executadas pelas comunidades,
parentelas, famlias, indivduos (CHARTIER, 2002, p. 84).
As obras no tm mais sentido estvel, universal, imvel. So investidas de signifi caes
plurais e mveis, construdas na negociao entre uma proposio e uma recepo, no
encontro entre as formas e os motivos que lhes do sua estrutura e as competncias ou
as expectativas dos pblicos que delas se apropriaram (CHARTIER, 2002, p. 93).
Lidos os trechos, identifi que de que forma Chartier busca uma via intermediria entre as
ideias de circularidade de Ginzburg e dialogismo de La Capra, e do que ele se apropria
de cada um dos autores.
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Resposta Comentada
Podemos ver, que Chartier busca, tanto na microstoria como no estudo de obras especfi cas,
contextos especfi cos. Mas os contextos no so mais, por assim dizer, uniformes, em que os
indivduos no se diferenciam entre si, mas, na verdade, formados por estratgias entre pequenos
grupos e a sociedade. Ou seja, no faz sentido, para Chartier, a oposio entre indivduo e
sociedade, mas a interao entre ambos. O mesmo vale para a obra de arte; se ela no
refl exo da sociedade, o artista tambm no um indivduo totalmente isolado do ambiente em
que sua obra apresentada. Nem s o contexto, nem s o texto.
CONCLUSO
Em vez de uma frmula e de uma soluo, a nova histria
cultural, se bem entendida, apresenta, antes de tudo, um grande
problema: como relacionar indivduo e sociedade, texto e contexto,
obra e pblico? Um equilbrio perfeito seria, aparentemente, o
ideal, mas no podemos nos esquecer de que ora o contexto social
importante, e ora um indivduo e uma obra podem ser dignos de
mais destaque.
O importante que o historiador tenha em mente que, para
cada orientao de seu estudo e de sua pesquisa, ora ele pode
pender para uma anlise mais prxima da micro-histria, ora para
uma anlise de textos clssicos que o leva a dialogar muito com a
teoria literria. E, por vezes, caber tambm ao historiador entender
como se d o relacionamento entre obra e pblico, e qual o impacto
social de uma ao individual no mbito da cultura.
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Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo
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Atividade Final
Atende aos Objetivos 1, 2 e 3
Vimos, nos trs autores aqui abordados, diferentes maneiras de se praticar a histria cultural.
Como cada um deles lida com a literatura? Que possibilidades Ginzburg, La Capra e
Chartier abrem para o estudo de textos fi ccionais?
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Resposta Comentada
Dos trs, indiscutivelmente, La Capra quem mais privilegia a literatura. Para ele, a literatura
histrica quando um texto sobrevive ao tempo em que foi criado. Quando uma obra literria
ultrapassar seu tempo, porque ainda atrai os leitores pelas suas caractersticas estticas, posto
que muitos dos aspectos sociais da poca de sua criao j no mais existem.
J Ginzburg e Chartier enfatizam a circulao das obras, seja na construo de uma mentalidade,
seja na forma como ela apropriada por diferentes grupos sociais. Encenar uma pea em um teatro
burgus diferente de faz-lo em um teatro de periferia, por exemplo, por mais que o texto e os
atores sejam os mesmos. Da mesma forma, um livro circula e lido por diversos grupos sociais, que
adquirem conscincia de si e das fraturas culturais mediante essa obra que passaram a conhecer.
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Historiografi a Contempornea
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RESUMO
Nesta aula, voc estudou trs formas de estudo e pesquisa da
nova histria cultural, todas elas derivadas teoricamente do que foi
aprendido na aula anterior sobre Mikhail Bakhtin.
Temos a micro-histria de Carlo Ginzburg, crtica da histria
das mentalidades de Lucien Febvre. Ginzburg procura, mediante o
conceito de indcio, identifi car confl itos sociais onde eles so quase
imperceptveis e, assim, encontrar a ideia de circularidade nas
relaes entre cultura erudita e cultura popular.
La Capra critica Ginzburg, dizendo que ele trabalha com
uma noo ainda homognea de cultura popular. La Capra dir
que a histria cultural deve ser praticada com os clssicos, com
textos cuja estrutura potica permanece ainda mistriosa. Aqui, o
presente e o passado mantm uma relao dialgica mediante os
textos clssicos.
Por fi m, temos Roger Chartier que, por sua vez, procura uma
via intermediria entre a circularidade de Ginzburg e o dialogismo
de La Capra. O conceito mais forte para isso seria o de apropriao,
ou seja, as obras tm, sim, uma estrutura prpria, mas elas no
encerram todas as possibilidades de signifi cado da mesma, podendo
ser apropriadas pelo pblico que entra em contato com ela.
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Felipe Charbel Teixeira
Aula 10
Felipe Charbel Teixeira
Novas possibilidades da histria poltica
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Historiografi a Contempornea
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Meta da aula
Avaliar as transformaes nos campos da histria poltica e da histria do pensamento
poltico, ocorridas a partir da dcada de 1960.
Objetivos
Aps o estudo desta aula, voc dever ser capaz de:
1. identifi car as crticas dirigidas histria poltica tradicional no quadro da
redefi nio do estatuto cientfi co da histria, nas primeiras dcadas do sculo XX;
2. reconhecer os traos principais da chamada nova histria poltica francesa e
associ-los chamada crise dos macromodelos explicativos;
3. avaliar os fundamentos tericos do chamado contextualismo lingustico, de
Quentin Skinner e John Pocock, e o projeto de redefi nio das bases da histria do
pensamento poltico.
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Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica
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INTRODUO
A histria poltica , atualmente, um dos campos historiogrfi cos
que mais crescem. Porm, h trinta ou quarenta anos, a histria
poltica encontrava-se, em algumas tradies historiogrfi cas, como a
francesa, completamente margem: autores como Fernand Braudel
e Ernest Labrousse consideravam-na uma espcie de vestgio de
uma certa concepo de histria solapada no incio do sculo XX
pelas tentativas de redefi nio das bases cientfi cas da histria, a
partir de uma aproximao com a sociologia, a antropologia e a
economia.
No Brasil, a histria poltica nunca deixou de ser praticada.
Contudo, com o recrudescimento da historiografi a marxista no pas,
na segunda metade do sculo XX, e a recepo positiva da tradio
historiogrfi ca dos Annales, a partir de meados da dcada de 1970,
a histria poltica foi relegada a um segundo plano, passando a
ser tratada como uma prtica menor, pouco importante, de certo
modo conservadora, por se ater exclusivamente ao que ento se
chamava de superfcie dos acontecimentos, e no s suas estruturas
profundas, de ordem econmica, social e cultural.
Nas ltimas dcadas, essas ideias tm sido reconsideradas,
e isto por duas razes. Em primeiro lugar, com a chamada crise
dos macromodelos explicativos, que analisaremos em "A nova
histria poltica" e depois, com mais profundidade, nas Aulas 12
e 13 , as grandes narrativas cientfi cas, como o estruturalismo
e o marxismo, deram lugar a anlises voltadas compreenso
das dinmicas individuais, das estratgias sociais e da construo
coletiva das identidades. Tanto a nova histria cultural quanto a
micro-histria ganharam fora no mbito de tais reconfi guraes
(conferir o ltimo item da Aula 4, assim como as Aulas 7 e 8), que
podem ser caracterizadas, em linhas gerais, como uma passagem do
macro ao micro. Em segundo lugar, a histria poltica tambm
deve ser pensada luz dessas transformaes gerais da cincia
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Historiografi a Contempornea
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histrica. Da se falar em nova histria poltica, em oposio a
uma histria poltica dita tradicional, considerada excessivamente
descritiva e pouco rigorosa.
Nesta aula, discutiremos as transformaes nos campos da
histria poltica e da histria do pensamento poltico, ocorridas a
partir da dcada de 1960; para tanto, daremos destaque tanto
chamada nova histria poltica como ao contextualismo
lingustico, de Quentin Skinner e John Pocock. Antes, porm,
traaremos um panorama acerca da profunda interdependncia
existente entre histria e poltica nos regimes de historicidade antigo
e moderno, ligao esta que foi problematizada no incio do sculo
XX, no mbito das tentativas de redefi nio do estatuto cientfi co
da histria, como veremos em "A histria poltica no quadro da
redefi nio do estatuto cientfi co da histria (incio do sculo XX)".
A histria poltica at fi ns do sculo XIX: um breve panorama
A afi rmao da histria como prtica discursiva distinta do mito,
da tragdia e da epopeia se tornou possvel, na Grcia Antiga, a
partir da delimitao de um conjunto de procedimentos investigativos,
associados confi gurao de um campo temtico privilegiado.
Como o objeto central desta aula no a historiografi a antiga, mas
o estudo das transformaes por que passou a histria poltica nas
ltimas dcadas, vamos nos ater apenas questo do campo temtico,
como modo de introduzir a discusso sobre a profunda afi nidade
existente, desde o mundo antigo, entre a histria e a poltica, condio
fundamental tanto para a consolidao da histria como prtica
discursiva autnoma, na Grcia Antiga, como para a defi nio da
histria como cincia, no incio do sculo XIX.
As primeiras obras consideradas efetivamente histricas, escritas
por gregos antigos como Herdoto, Tucdides e Polbio, a partir do
sculo V a.C., e romanos como Salstio, Tito Lvio e Tcito, tinham
como foco principal a narrativa dos fenmenos de ordem poltica,
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Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica
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como grandes batalhas e aes de homens tidos como importantes
reis, generais, cnsules, tribunos da plebe etc. Esse predomnio de
temticas polticas no deve ser considerado como uma possibilidade
dentre outras igualmente vlidas, como o caso na historiografi a
mais recente como se a histria poltica fosse, para gregos antigos
e romanos, uma espcie de campo disciplinar, para empregar
categoria to em voga atualmente. Pode-se dizer que, para os
antigos, praticamente toda histria era poltica, na medida em que
esta se constitua como um discurso sobre a plis, seus homens, seus
feitos e seus valores morais. Tratava-se, fundamentalmente, de um
discurso voltado exposio das aes memorveis daqueles que,
de algum modo, contriburam para a grandeza da cidade em que
viviam. sintomtico, nesse sentido, que a prpria palavra poltica
derive da palavra plis.
Tal nfase nos fenmenos de ordem poltica pode ser considerada
um aspecto constitutivo do que se convencionou chamar de regime de
historicidade antigo. Este prevaleceu, nas sociedades ocidentais, da
Grcia Antiga a meados do sculo XVIII, e pode ser caracterizado
pela nfase atribuda, na construo do discurso histrico, ao princpio
da exemplaridade o que se convencionou chamar de modelo da
histria mestra da vida, tpica retrica presente em praticamente
todas as obras historiogrfi cas da Antiguidade.
PlisAs poleis (plural de plis) gregas eram
cidades independentes, responsveis pela
prpria administrao, que era feita pelos
cidados mais infl uentes.
Regimes de historicidade
Tomando por base as categorias espao de
experincia e horizonte de expectativa, como
defi nidas pelo historiador alemo Reinhart Kosel-
leck (2006), o historiador francs Franois Hartog
procura refl etir sobre os diferentes modos de conceber
a relao entre passado, presente e futuro nas socie-
dades ocidentais o que chama de regimes de histo-
ricidade. O regime de historicidade antigo, segundo
ele, possua seu fundamento fi losfi co na ideia de uma
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Historiografi a Contempornea
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natureza humana estvel, permanente, o que condicionava
um modo de experincia do tempo bastante conectado aos
ciclos da natureza (HARTOG, 2006, p. 16). Tal compreenso
da realidade implicava, segundo Koselleck (2006, p. 308),
uma hipervalorizao da experincia, tanto a singular como
a coletiva, encontrada nas crnicas e registros do passado
mantidos por diversos povos, como os gregos antigos e ro-
manos, de modo que o passado pudesse orientar o presente,
e o futuro pudesse ser visto como repetio do passado, se
no nos acontecimentos particulares, ao menos nas tendn-
cias mais gerais, como as formas de governo. Nesse sentido,
atribua-se ao gnero histrico um carter pedaggico e para-
digmtico. Como luz da verdade, vida da memria e mestra
da vida, segundo formulao sugerida pelo fi lsofo e orador
romano Marco Tulio Ccero no dilogo De Oratore, a histria
deveria orientar a ao presente e afi rmar a virtude, por meio
de exemplos edifi cantes. Um exemplo importante da profunda
articulao entre histria e poltica no regime de historicidade
antigo o de Maquiavel (2007, p. 6-7), que nos seus Discur-
sos sobre a primeira dcada de Tito Lvio afi rma que o
motivo por que infinitas pessoas que as leem as
histrias sentem prazer em ouvir a grande variedade de
acontecimentos que elas contm, mas no pensam em
imit-las, considerando a imitao no s difcil como
tambm impossvel; como se o cu, o sol, os elementos, os
homens tivessem mudado de movimento, ordem e poder,
distinguindo-se do que eram antigamente.
J o regime de historicidade moderno se consolida a partir
de meados do sculo XVIII e pode ser caracterizado por uma
transformao signifi cativa nos modos predominantes de
experincia do tempo. O sentido moderno de histria , em
grande medida, produto de tal transformao. Como percebe
Reinhart Koselleck, a concepo antiga de histria modelo
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Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica
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A passagem do regime de historicidade antigo para o regime
de historicidade moderno no deixou em segundo plano o interesse
pelos fenmenos polticos. As refl exes sobre o Estado, por exemplo,
mostraram-se centrais tanto nas fi losofi as especulativas da histria de
autores dos sculos XVIII e XIX, como Kant, Hegel e Comte, como nas
abordagens de historiadores do sculo XIX, como Ranke e Droysen.
Assim, pode-se dizer que a afi rmao da histria como cincia no
apenas manteve aceso o interesse pelos fenmenos polticos como fez
de tal interesse uma precondio do prprio conhecimento histrico
tido como rigoroso.
da histria mestra da vida comea a perder espao em
meados do sculo XVIII. No idioma alemo, isto se torna visvel
pelo declnio do emprego do vocbulo Historie, associado ao
recrudescimento do uso, em textos diversos, de Geschichte.
Ainda que as duas palavras signifi cassem, no idioma alemo,
histria, o conceito atrelado a cada uma era distinto: por
Historie, entendia-se o relato, a narrativa de algo aconteci-
do; j Geschichte signifi cou originalmente o acontecimento
em si ou, respectivamente, uma srie de aes cometidas ou
sofridas, assim como o relato desses acontecimentos ou srie
de aes. importante frisar que a palavra Geschichte no
constitui, segundo o argumento de Koselleck, um mero substitu-
to de Historie. Ela deve ser compreendida como um vocbulo
que comporta um conceito distinto do implicado em Historie:
por Geschichte, entendia-se, simultaneamente, o evento histri-
co, ou um determinado conjunto de eventos histricos, e a sua
representao, ou seja, o acontecimento particular, ou uma
srie de acontecimentos encadeados em processo linear, e a
narrativa desses acontecimentos ou do processo geral que arti-
cula tais eventos. a partir de ento, meados do sculo XVIII,
que se pode falar na histria como coletivo singular, unidade
composta de inmeros acontecimentos particulares.
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Historiografi a Contempornea
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O caso do historiador prussiano Leopold von Ranke bastante
signifi cativo. Para ele, o estudo dos acontecimentos particulares
no deveria ser tomado como fi m em si mesmo: ao contrrio, eles
deveriam constituir pontos de partida para refl exes mais amplas,
voltadas descoberta das principais foras e tendncias atuantes na
Histria (GILBERT, 1990, p. 44). Essas foras fundamentais, na sua
tica, eram os Estados e as naes, especialmente os europeus, que
conformavam uma totalidade sempre cambiante chamada Europa,
cuja balana de poder constitua, para Ranke, uma espcie de
plano divino realizado na Histria. Da a afi rmao do historiador
Georg Iggers de que a historiografi a de Ranke alicerava-se em
uma espcie de metafsica da poltica. Diz Iggers (1969, p. 72),
acerca da concepo de histria do autor prussiano:
Embora toda existncia s possa ser compreendida em
termos de sua histria, por trs da aparncia efmera de
cada fenmeno particular haveria uma verdade geral.
Uma ideia fi nal a de que os Estados existentes na histria
so as expresses concretas dessas ideias subjacentes.
A valorizao das aes dos grandes personagens, como
reis, ministros, diplomatas e generais, deve ser entendida de acordo
com esse vis analtico: Ranke (apud Hinrichs, 1999) chega a afi rmar
que os grandes indivduos so espritos originais que intervm
autonomamente na batalha das ideias e das foras universais
Tambm na Frana do sculo XIX, especialmente com a
consolidao da chamada escola metdica francesa, a histria
era concebida, fundamentalmente, como o relato das aes polticas,
militares e diplomticas. Da ser possvel afi rmar que, at o incio do
sculo XX talvez at meados do sculo XX , a histria poltica tenha
sido amplamente dominante nos meios acadmicos europeus.
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Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica
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A histria poltica no quadro da redefi nio do estatuto cientfi co da histria (incio do sculo XX)
Como vimos nas Aulas 2 e 4, na passagem do sculo XIX para
o sculo XX historiadores, fi lsofos, socilogos e economistas iniciam
um movimento crtico destinado a questionar o primado, nos meios
acadmicos franceses, de uma historiografi a metdica, de carter
factual, focada principalmente no exame dos fenmenos polticos.
O fi lsofo francs Henri Berr, um dos protagonistas, no incio do
sculo, da crtica aos historiadores metdicos do XIX, argumentava
que uma historiografi a atenta exclusivamente s aes de grandes
homens, s batalhas memorveis e aos tratados internacionais
representava uma histria historizante, concebida como cincia
do particular, voltada para si mesma, incapaz de trazer elementos
para a compreenso do presente ou das transformaes sociais e
econmicas por que passam as sociedades.
Como discutimos em aulas anteriores, Franois Simiand, em
seu artigo "Mtodo histrico e cincia social", de 1903, argumenta
que os chamados historiadores historizantes incorriam comumente
em trs vcios, a que chama de dolos da tribo dos historiadores o
dolo poltico, o dolo individual e o dolo cronolgico. Ainda mais
marcante foi a crtica de Simiand a uma determinada concepo de
mtodo histrico. Ele tinha em mira, particularmente, a prestigiosa
Introduo aos estudos histricos, de Charles-Victor Langlois e
Charles Seignobos, publicada em 1898.
Langlois e Seignobos consideravam como fontes histricas por
excelncia os documentos escritos, especialmente aqueles produzidos
em pocas passadas por agentes ligados ao Estado. Ambos
partilhavam a convico de que, uma vez realizada a apreciao dos
documentos segundo o mtodo crtico, os acontecimentos passados
poderiam ser traados como se fossem observados diretamente,
constituindo-se ento como fatos histricos objetivos, independentes
de valores subjetivos ou critrios interpretativos. Simiand, discpulo do
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Historiografi a Contempornea
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socilogo francs Emile Durkheim, argumentava que os procedimentos
defendidos pelos historiadores metdicos no eram sufi cientes para
atribuir histria um carter cientfi co.
Fundamentalmente, o que estava em jogo era a rejeio da ideia
de histria como cincia alicerada no estudo das particularidades,
critrio predominante na histria poltica tradicional, como praticada
ao longo do sculo XIX. A singularidade da cincia histrica, assim,
deveria ser buscada em sua aproximao qui subordinao,
como em Simiand em relao sociologia, especialmente de matriz
durkheimiana, alicerada no tratamento do fato social como coisa,
ou seja, como dados passveis de comparao, de considerao
para alm de seus valores sociais. Nesse sentido, a obra que mais
contribuiu para a afi rmao dessa concepo de cincia histrica
foi O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Filipe II,
de Fernand Braudel, publicado em 1949, que j discutimos na Aula 3.
Escrito ao longo dos anos em que Braudel foi prisioneiro nazista, o
livro tenta pr em prtica uma ideia de histria capaz de abarcar
diversos aspectos da realidade a partir de um recorte espacial e
temporal bastante ampliado.
A primeira parte do livro, como vimos, dedica ateno especial
ao meio geogrfi co: o mar Mediterrneo e suas lentas transformaes
ao longo dos sculos, os costumes de pequenas tribos e lugarejos
que so condicionados pela forma particular com que os homens se
relacionam com a natureza. Trata-se de uma histria quase imvel,
suscetvel s mudanas lentas, ou de uma geo-histria, uma histria
da relao do homem com o meio fsico. Na segunda parte do
livro, Braudel analisa os movimentos conjunturais, as transformaes
econmicas e sociais que podem ser notadas no espao de algumas
geraes. J a terceira parte destinada quilo que Braudel chama
de a espuma do mar da histria, os acontecimentos. Trata-se de
uma histria da superfcie, dos eventos e aes que quase sempre
so condicionados pela relao do homem com o meio ou pela
dinmica das conjunturas socioeconmicas.
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Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica
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Como argumenta Stuart Clark (1995), os esforos de
Braudel constituem uma tentativa terica de transcender o evento
individual e particular atravs de uma nfase no meio geogrfi co
e nas transformaes econmicas, foras impessoais que na
realidade modelam o homem. Trata-se, ainda segundo Clark, de
uma viso da experincia humana em que o agente individual
e a ocorrncia individual deixam de ser os elementos centrais
da explicao social. Fica evidente, assim, a nfase atribuda
macrocompreenso e ao exame das grandes estruturas.
Diante desse quadro de renovao do conhecimento histrico e
redefi nio de suas bases cientfi cas, a histria poltica passou
a ocupar, especialmente entre as dcadas de 1940 e 1970, um
lugar secundrio nos meios acadmicos franceses e alemes as
principais excees foram os pases anglo-saxnicos, onde a
histria poltica no perdeu totalmente sua fora.
Atende ao Objetivo 1
1.
A histria poltica [tradicional] permanecia uniformemente narrativa, escrava do relato
linear, e no melhor dos casos, s temperava a mediocridade de uma descrio submetida
cronologia pelo talento eventual do autor, que ento fazia com que sua obra se aparentasse
mais com a literatura que com o conhecimento cientfi co (RMOND, 1996, p.17).
Ren Rmond, o autor da passagem, considerado um dos precursores da chamada nova
histria poltica. No trecho acima, fi ca clara a inteno do autor de diferenciar sua proposta de
uma histria poltica renovada do que se poderia chamar de uma histria poltica tradicional,
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Historiografi a Contempornea
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como a predominante no sculo XIX, tanto na Frana como na Alemanha. Tomando por
base a passagem acima, explique a relao existente entre a rejeio da histria poltica
por autores do incio do sculo XX, como Henri Berr, Franois Simiand, Marc Bloch, Lucien
Febvre e Fernand Braudel, e o projeto das duas primeiras geraes de historiadores ligados
tradio dos Annales de redefi nio das bases cientfi cas da histria.
Resposta Comentada
A rejeio da histria poltica por autores como Henri Berr, Franois Simiand, Marc Bloch,
Lucien Febvre e Fernand Braudel envolvia uma tentativa de redefi nir o estatuto de cientifi cidade
da histria, o que indicado na passagem pelo argumento de Rmond de que a histria
poltica tradicional se avizinhava mais da literatura que da cincia. De onde decorre a
crtica ao carter narrativo, linear e cronolgico da tal historiografi a. O modelo de cincia
histrica pensado pelos historiadores das duas primeiras geraes dos Annales era muito
distinto, portanto, daquele consolidado no sculo XIX com o historicismo alemo e a Escola
Metdica francesa, por se pautar na tentativa de compreender as estruturas da vida social,
da economia e da cultura. Nesse sentido, pode-se dizer que com a afi rmao dos campos
da histria social e da histria econmica em meados do sculo XX, e logo em seguida da
histria das mentalidades, a histria poltica relegada, ao menos na Frana e nos pases
infl uenciados por sua historiografi a