Historic i Dade

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Rui Alexandre Grácio HISTORICIDADE, INTERPRETAÇÃO E ARGUMENTAÇÃO Na constelação conceptual do pensamento contemporâneo dois conceitos sobressaem pela sua particular importância: o conceito de interpretação e o de argumentação. Ambos têm em comum um fundo polémico e crítico relati- vamente à tradição filosófica moderna e ambos se associam a uma categoria essencial do pensamento contemporâneo- a categoria de historicidade- e a um traço característico das preocupações filosóficas dos nossos dias: a neces- sidade de repensar as relações entre teoria e prática e, mais especificamente, a preocupação de reencontrar aquilo que, ainda que essencial, parece ter sido (pela maneira como o desenvolvimento do conhecimento científico, na sua oposição com o senso comum, se foi consumando), progressivamente negli- genciado: a vinculação indissociável, dinãmica e dialéctica da teoria e da prá- tica. Aliás, esta necessidade de repensar as relações entre teoria e prática, consequência imediata da tentativa de assumpção de uma condição histórica que solidariza pensamento e contexto, reflexão e situação, é aquilo que cons- titui, porventura, o epicentro das filosofias que hoje apresentam propostas de uma nova racionalidade. É sabido que no quadro destas propostas assume também uma particular importância o velho problema da verdade. Com efeito, é a tradicional afinidade entre a razão e verdade, entre uma razão que é una e uma verdade que é única e eterna, que o conceito de his- toricidade vem pôr em causa. Segundo Gadamer, tomar em consideração a historicidade, a qual significa <<a constituição intrinseca do espirito humano, que, ao contrário de um intelecto infinito, não apreende de uma vez tudo o que é, mas, pelo contrário, toma consciência da sua própria situação his- tórica>>1, equivale a introduzir na filosofia <<UIJI tema autocritico que con- testa a sua velha pretensão metafisica de conseguir atingir a verdade>>'. Não que Gadamer abandone, de forma alguma, o problema da verdade; aquilo que a consideração da historicidade vem sublinhar é o vinculo, inelutável, 69

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  • Rui Alexandre Grcio

    HISTORICIDADE, INTERPRETAO E ARGUMENTAO

    Na constelao conceptual do pensamento contemporneo dois conceitos sobressaem pela sua particular importncia: o conceito de interpretao e o de argumentao. Ambos tm em comum um fundo polmico e crtico relati-vamente tradio filosfica moderna e ambos se associam a uma categoria essencial do pensamento contemporneo- a categoria de historicidade- e a um trao caracterstico das preocupaes filosficas dos nossos dias: a neces-sidade de repensar as relaes entre teoria e prtica e, mais especificamente, a preocupao de reencontrar aquilo que, ainda que essencial, parece ter sido (pela maneira como o desenvolvimento do conhecimento cientfico, na sua oposio com o senso comum, se foi consumando), progressivamente negli-genciado: a vinculao indissocivel, dinmica e dialctica da teoria e da pr-tica. Alis, esta necessidade de repensar as relaes entre teoria e prtica, consequncia imediata da tentativa de assumpo de uma condio histrica que solidariza pensamento e contexto, reflexo e situao, aquilo que cons-titui, porventura, o epicentro das filosofias que hoje apresentam propostas de uma nova racionalidade. sabido que no quadro destas propostas assume tambm uma particular importncia o velho problema da verdade.

    Com efeito, a tradicional afinidade entre a razo e verdade, entre uma razo que una e uma verdade que nica e eterna, que o conceito de his-toricidade vem pr em causa. Segundo Gadamer, tomar em considerao a historicidade, a qual significa 1, equivale a introduzir na filosofia '. No que Gadamer abandone, de forma alguma, o problema da verdade; aquilo que a considerao da historicidade vem sublinhar o vinculo, inelutvel,

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  • entre compreenso e situao, interpretao e preconceito3, e desta forma mostrar que, quer a dimenso de inacabamento da reflexo, quer a impos-sibilidade de um recomeo radical e absoluto, no so um defeito, mas a prpria condio do nosso ser histrico. Pde, por isso, concluir que
  • nio dos valores, capaz de justificar as suas opes. Mas, quais os critrios que permitem aferir a racionalidade de uma razo que se reconhece na sua condio hermenutica?

    Referindo-nos ainda passagem acima citada, faremos notar que Gadamer coloca como tarefa fundamental de toda a razo critica a tarefa de fazer fun-cionar critrios racionais justificadores de valores (trata-se, no caso, de mos-trar quando que um preconceito tem o valor ou o valor ileg-timo). No alude, contudo, ao modo como tais critrios se estabelecem ou podem estabelecer. Com efeito, o projecto gadameriano de pr em evidn-cia os limites que a ideia de mtodo impe ao saber~ e que se mostram na impossibilidade de uma tematizao cientfica do problema da aplicao10 e, de uma maneira mais originria, na inexistncia de um mtodo que ensine a pergWitar ou a ver o que questionvel H -encontra a sua realizao na possibilidade de convocar urna ordem da experincia humana -linguageira - situada aqum, precedendo, e por isso escapando s redues amputado-ras do mtodo. No seguimento da noo heideggeriana de experincia12 e em consonncia com ela, escreve Gadamer que na sua anlise do fenmeno da compreenso

  • guntar em que medida e at que ponto possivel, atravs do nosso querer e pelo trabalho de uma razo critica, tomarmo-nos sujeitos activos, capazes de responder racionalmente pelas nossas crenas e, se necessrio, de trans-form-las ou mesmo de substitui-las por outras. Formulada com toda a cla-reza, a questo a de saber 16 Ora esta questo encontra-se no centro das reflexes do filsofo a que de seguida nos referiremos; com efeito, recusando, este, a dicotomia crena/razo, mas, sobretudo, recusando-se a hipotecar a competncia da razo a crenas que seriam necessariamente cegas ou a convices inevitavelmente dog-mticas- e delimita-se, desta forma, teologia e filosofia-, pde afirmar que 17

    Ora, esta questo de uma racionalidade competente no domlnio dos valo-res (em que preciso escolher, decidir, deliberar), isto , exercida no trnsito do dado para o preferivel, no pertence, prirnordiahnente, ao campo do pro-blema hermenutico18, mas, por excelncia, ao domnio da retrica 19 aqui, de facto, que o problema da legitimidade das interpretaes aparece mais cla-ramente tributrio e associado aos problemas da argumentao. Se prescin-dirmos da ideia da existncia de uma instncia ltima e soberana de deciso que permitisse acabar com o conflito das interpretaes e instaurar, desse modo, a unicidade de um sentido inequivoco20 (o que equivaleria a sacrificar quer a ideia de interpretad'1 nutrida da abertura sobre a possibilidade de um sentido inesgotvel e mltiplo quer a ideia de argumentao fmjada sobre a ideia de pluralidade e da necessidade da escolha entre possiveis22), facilmente veremos como interpretao e argumentao se remetem mutuamente.

    Com efeito, se a interpretao o modo de ser da razo histrica, a argu-mentao o meio atravs do qual, por um trabalho de critica solidrio de um esforo de persuasiva justificao, a racionalidade interpretativa se revela na sua competncia prtica. que toda a argumentao no concebivel seno em funo da aco que ela prepara ou que ela determina", nem pode ser considerada como exercicio intelectual inteiramente desligado de toda a preocupao prtica".

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  • Nenhum exemplo mostra melhor este aspecto do que a prtica jurdica e o tipo de racionalidade que dela se pode desprender; e ningum insistiu tanto nos ensinamentos que os filsofos poderiam retirar do direito e da pr-tica jurdica como Chaim Perelman25

    Para o filsofo de Bruxelas, o exame do raciocnio jurdico e o estudo das prticas do direito tornam possvel chegar-se a >"; eles permitem no s alargar a concepo tradicional de razo como ainda reconciliar a razo com a praxis humana. Esta insistncia de Perelman no modelo jurdico no seno a forma inteligente de pensar a racionalidade, no a partir de pretenses e aspiraes ideais, porventura exor-bitantes e utpicas, mas de a encontrar no exerccio e no esforo efectivo dos homens confrontados com a necessidade de se organizarem numa socie-dade razovel e com o minimo de violncia. Por isso pde escrever, em consciente polmica com o cartesianismo, que em vez de fimdar a sua filo-sofia sobre verdades defmitivas e indiscutveis, partiremos do facto de que os homens e os grupos de homens aderem a toda a espcie de opinies com uma intensidade varivel, que apenas o pr prova permite conhecer. As cren-as de que se trata no so sempre evidentes e o seu objecto raramente con-siste em ideias claras e distintas. As crenas mais gerahnente admitidas per-manecem durante muito tempo implicitas e no formuladas, pois o mais frequente que no seno por ocasio de um desacordo quanto s conse-quncias que delas resultam que se colocam os problemas da sna formula-o e da sna determinao mais precisa".>> Recorde-se, alis, que foi este ponto de partida concreto e emprico - o recurso e a anlise de escritos em que se procura fazer prevalecer um valor, uma regra, mostrar que tal aco ou escolha preferivel a uma outra, preconizar uma linha de conduta e, mais genericamente, apresentar justificaes de toda a espcie - que colocou Perelman no caminho de uma nova tematizao da razo. E torna-se claro que a actividade jurdica com a qual o filsofo belga estava, pela sua pr-pria formao, familiarizado se apresentava como um recurso privilegiado para desenvolver a questo de saber como que se raciociona sobre valores.

    Nesta ordem de consideraes, o modelo jurdico apresenta-se antes de tudo como uma possibilidade pela qual podemos tematizar a razo a partir do seu uso e ver que um tal uso s compreensvel no quadro de uma teo-ria da argumentao cuja amplitude se projecta muito para alm do prprio

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  • domnio do direito: ela revela-se essencial e indispensvel no apenas no raciocnio prtico, que tende a justificar toda a deciso razovel, mas tam-bm nas cincias humanas, em filosofia e mesmo nas cincias naturais, quando se trata de preferir um tipo de explicao a um outro, de justificar as revolues cientificaS)>2M.

    O movimento do pensamento perelmaniano efectua-se, assim~ no sentido de uma transferncia gradual

    Por isso, na racionalidade argumentativa proposta por Perelman, apos-tada em assinalar as interaces constantes do pensamento e da aco, em captar na sua vivacidade as relaes dialcticas que entre eles Se tecem, so essenciais as noes de justificao e de critica.

    Os pressupostos e as implicaes da ideia de justificao- e assinale-se que o problema da justificao no surge seno no donnio prtico, quando se trata de deciso, de aco, de escolhall -podem-se anunciar da seguinte forma:

    Toda a justificao pressupe a existncia, ou a eventualidade, de uma apreciao desfavorvel no que diz respeito quilo que nos esforamos por justificar. Por isso mesmo a justificao liga-se inti-mamente ideia de valorizao ou desvalorizao32.

    A justificao diz respeito quilo que simultaneamente discu-tvel e discutido. Resulta daqui que tudo aquilo que absolutamente vlido no deve ser submetido a um processo de justificao e, inver-samente, aquilo que procuramos justificar no pode ser considerado incondicional e absolutamente vlido33 .>>

    Deve ser justificado, para o esprito tomado de racionalidade, aquilo que no evidente nem arbitrrio34.>)

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  • No que diz respeito ide ia de critica, tal como ela concebida no mbito de uma racionalidade argumentativa, ela nunca pode ser sinnimo de epo-ch, nem solidria das pretenses de recomear, radicalmente, a partir do zero; criticar ser, ento, mostrar que wna aco se ope a uma regra admi-tida, que ela no consegue alcanar o ftm que visa, que ela se ope a um ideal reconhecido. Por outras palavras, toda a crtica que exige uma justifi-cao situa-se num contexto em que certas regras, certas normas, certos valo-res, certos ideais, so j admitidos. Sem isso a crtica seria impossvel. Isto no quer dizer que estas regras, que estas normas, que estes valores ou que estes ideais no pudessem, por seu turno, ser criticados, mas tal seria em relao a outras regras, outros critrios, outros valores. Uma crtica incon-cebvel fora de um contexto que pressupe a adeso a certas regras, a cer-tos valores, a certos ideais35.

    Argumentar , assim, fornecer argumentos, ou seja, razes a favor ou contra determinada tese. No dizer a verdade, mas aferir, no dilogo con-sigo mesmo e com os outros, a coerncia das opinies que se pretendem justas no contexto histrico-social, situado e concreto, em que se revelam pertinentes36 E se, como Perelman defende, por um lado, toda a argumen-tao se desenvolve em funo de um auditrio37 e, por outro, o visar a universalidade aquilo que constitui o nico critrio da racionalidade))38, ento aquilo que o autor de Justia e Razo denomina como auditrio uni-versal ser o que melhor permitir compreender a historicidade da razo39 que, ao falar-se da razo como auditrio universa140, no a uma uni-versalidade abstracta da razo que se faz referncia, mas a uma universa-lidade concreta da comunicao e do dilogo a que preside a conscincia de que no possvel persuadir nenhum auditrio seno partindo daquilo que ele j admite. No se trata da postulao da universalidade da razo, mas de, tendo em conta que preciso estabelecer um lao entre aquilo que se quer fazer admitir e aquilo em que partida se cr41 , ver em que medida as afirmaes e as crenas que admitimos so susceptveis de universali-zao ou podem ser consideradas como universalizveis aos olhos de todos; trata-se, portanto, da inteno e do apelo a uma universalidade dialgica pensada a partir do diferendo e da premncia prtica de estabelecer acor-dos e consensos que nada tm de imutvel e que nada garante serem defi-nitivos.

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  • A argumentao no confere fundamentos absolutos, mas tambm no tece arbitrariamente. Exprime as escolhas e as preferncias possveis no hori-zonte de uma historicidade que razo permite o esforo de, interpretando e decidindo, ser razovel.

    Notas

    1 H.-G. Gadamer, Historicidade>>, in Histria e Historicidade, col. Panfletos, Gradiva., 1988, p. 101.

    2 Id., ibid. 3 Cf. Vahreit und Methode, trad. esp., Salamanca, Ediciones Sguerne, 1977, p. 344 (dora-

    vante V. M). 4 v. M., trad. esp., p. 372. 5 v. M., trad. esp., p. 432. 6 V. M., trad. esp., p. 433. 1 Caberia, contudo, proceder discusso do que esta proposta de relativismo significa.

    Com efeito, seria preciso analisar minuciosamente o papel estratgico e a eficcia que Gadamer continua (na sequncia da tradio filosfica e, mais particulannente, de Hegel) a atribuir ao reconhecimento. O que radicalmente se joga na questo do reconhecimento o modo como, do ponto de vista da conscincia reflexiva, se estabelece a relao com os limites do saber. Se a resposta clssica a este problema foi dada em termos de superao e apropriao (aAufhebung hegeliana), parece-nos que tambm Gadamerno se desvia muito do modo tradicional de colo-cara questo. Por um lado, insiste na necessidade de experienciar os prprios limites; mas, por outro, no deixa de ligar a conscincia dos limites possibilidade sempre em mira de os supe-rar: ( (L 'art de comprendre, d. Aubier Montaigne, Paris, 1982, p. 25). Parece-nos, pois, merecedora de alguma reflexo a objeco que W. Pannenberg colocou hermenutica gadameriana segundo a qual esta no passaria de um hegelianismo disfarado (Cf. Hermeneutik und Universalgeschichte>>, Zeitschriftfr Theologie und Kirche, 60, 1963, citado, em R. Bubner, La filosofia alemana contemporanea, trad. esp., Ed. Ctedra, Madrid, 1984, p. 84).

    8 Ver, por exemplo, P. Ricouer, De 1 'interprtation. Essa i sur Freud, Le Senil, Paris, 1965, p. 52.

    ' V. M. trad. esp., p. 344. 10 V. M., trad. esp., pp. 378-414. ll V. M., trad. esp., p. 443. 12

  • 15 J. Greisch, L 'ge hermenutique de Ja rajson, Les ditions du Cerf, 1985, p. 32. 16
  • apporter au philosophc)), in Jus/ice et raison, 2. edio, ditions de 1 'Universit de Bruxelles, 1972, pp. 244-255.

    26 Ch. Perelman: {{Ce que le pbilosophe peut apprend.re par l'tude du droiN, in Droit, morale et philosophie, 2. edio, Paris, LGDJ, 1976, p. 196.

    21 Cf. T. A., pp. 677M678 (sublinhado meu). 2 ~ Ch. Perelman, Le champ de l'argumentalion, Bruxelles, Presses Universitaires de

    Bruxelles, 1970, p. 9. 29 Cb. Perelman, Justiceet raison, 2.8 edio, ditions de I'Universit de Bruxelles, 1972,

    p. 7. 30 Cb. Perelman, lntroduction historique la philosophie morale, ditions de l'Universit

    de Bruxelles, 1980, p. 206. 31 Cb. Perelman, Cinq leons sur la justice)}, in Droit, moral e et philosophie, 2. edio, Pari~ LGDJ, 1976, p. 50.

    32 Cb. Perelman, Jugements de valeur, justification et argumentatiOn>), in Justice et rai-son, 2.8 edio, ditions de l'Universit de Bruxelles, 1972, p. 236,

    n Id., ibid., p, 236. 34 ld., ibid., p. 237.

    3 ~ Ch. Perelman, (mioral et libre examen., in Droit, mnrale et philosophie, 2. edio, Paris, LGDJ, 1976, p. 173.

    36 Caracterstica da nova racionalidade proposta por Perelman a afinidade que nela encon-tramos entre a ideia de razo e a ideia de justia. Razo e justia no aparecem aqui oomo duas noes desligadas, mas, pelo contrrio, como noes que se esclarecem mutuamente.

    31 T.A., p. 7. 38 Ch. Perelman, Raison ternelle, raison historique)>, in Justice et raison, 2! edio,

    ditions de I'Universit de Bruxelles, 1972, p. 103. 39 Id., ibid., p. 100. 40 A propsito do e da racionalidade que ele incarna, ver, entre outros,

    T. A., 7,