Histórias de Vida, volume 1

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MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR HISTÓRIAS DE VIDA organizador Gunter Axt VOLUME I Brasília, 2016

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MINISTÉRIO PÚBLICO MILITARHI

STÓR

IAS

DE V

IDA organizador Gunter Axt

VOLUME I Brasília, 2016

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Coordenação da Comissão do Projeto Memória: Péricles Aurélio Lima de Queiroz.

Comissão do Projeto Memória: Péricles Aurélio Lima de Queiroz, Antônio Pereira Duarte, Jorge Cesar de Assis, Eduardo de Campos Bastos Neto.

Pesquisa, edição de entrevistas e organização: Gunter Axt.

Apoio à pesquisa: Eliane Alves Alípio, Kimberly Eckhardt Trancoso, Dorian Wagner, José Luís de Lima.

Transcrição de entrevistas: Cristhina Boni Lavratti, Dandara de Oliveira, Elizabeth Castillo Fornés, Gunter Axt, João de Los Santos, Manoela de Souza, Marcos Lauermann, Matheus Silveira, Milena Costa.

Catalogação na Publicação

B823h Brasil. Ministério Público Militar. Centro de Memória. Histórias de vida / Coordenação: Centro de Memória do MPM; organização: Gunter Axt. – Brasília, 2016. 600 p. : il. (Histórias de vida, v. 1) ISBN 978-85-5595-002-5 1. Brasil. Ministério Público Militar - história. 2. Entrevista - história oral. I. Título. II. Axt, Gunter, org.

CDU: 347.963:930

Catalogação na publicação por: Marina Scardovelli de Souza (CRB-1/2304)

Equipe do Centro de Memória: Eliane Alves Alípio, Dorian Wagner, Marina Scardovelli de Souza, Kimberly Eckhardt Trancoso.

Revisão: Elizabeth Castillo Fornés.

Fotografias: Assessoria de Comunicação Institucional e acervo Arquivo do MPM.

Projeto gráfico e editoração: Alessandra Duarte e Míriam de F. Moreira

Capa: Alessandra Duarte

Tratamento de imagens: Clickpro e Assessoria de Comunicação Institucional.

Impressão: Gráfica Movimento

Tiragem: 1500 exemplares

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MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR

Procurador-Geral da República:

Rodrigo Janot Monteiro de Barros.

Procurador-Geral de Justiça Militar:

Marcelo Weitzel Rabello de Souza.

Vice-Procurador-Geral de Justiça Militar:

Roberto Coutinho.

Coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão:

Péricles Aurélio Lima de Queiroz.

Corregedora-Geral do Ministério Público Militar:

Herminia Celia Raymundo.

Diretor-Geral:

Jaime de Cassio Miranda.

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SUMÁRIO

7 Apresentação

9 Palavra da Comissão de Memória Institucional / CNMP

13 Prefácio

17 Introdução

70 Durval Ayrton Moura de Araújo

96 Paulo Duarte Fontes

122 Marly Gueiros Leite

146 Gilson Ribeiro Gonçalves

184 Rutílio Tôrres Augusto

210 João Jayme Araujo

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228 Jorge Luiz Dodaro

270 Maria Marli Crescêncio Pereira

282 Vera Regina Alves de Brito

312 João Alfredo da Silva

334 Olympio Pereira da Silva Junior

364 Renato da Cunha Ribeiro

392 João Ferreira de Araújo

416 Marco Antonio Pinto Bittar

450 José Carlos Couto de Carvalho

488 Marisa Terezinha Cauduro da Silva

538 Nelson Luiz Arruda Senra

560 Francisco Leite Chaves

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APRESENTAÇÃO

Inicio esta apresentação citando o escritor português, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, José Saramago, que, em sua obra Ca-dernos de Lanzarote (1994), escreveu: “Somos a memória que temos e a res-ponsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabili-dade talvez não mereçamos existir”.

O Ministério Público Militar também acredita nesse ideal e apoia toda iniciativa a favor da preservação de sua memória, em função da manuten-ção da lembrança de seus feitos no passado, do aprendizado acumulado em sua trajetória e dos reflexos de sua atuação nas ações das gerações futuras.

O Centro de Memória do MPM, que iniciou suas atividades em fevereiro de 2015, entre outros, tem como objetivos em relação à instituição: conservar a sua história, valorizar a sua identidade, preservar o seu patrimônio histórico. Para isso, desenvolveu um programa que abrange coleta de depoi-mentos, publicações de livros, exposições, site especializado e pesquisas.

Este livro representa uma das fases desse programa, na qual o relato de membros aposentados do MPM conta a história de um Brasil que, talvez, mui-tos da atual geração não conheçam. Um país diferente do que é hoje, após trans-formações substanciais, econômicas e sociais, promovidas por uma Constituição Federal democrática. Ele ultrapassa as limitações temporais de uma transmissão oral e verte-se para o meio de comunicação permanente que é a escrita. Confor-me Jacques Le Goff (1924-2014), “não se tem história sem erudição”.

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Deixo aqui os meus agradecimentos à Comissão do Projeto Me-mória do MPM, ao historiador Gunter Axt e a todos os colaboradores que trabalharam para que esta obra pudesse vir a lume. Espero que todos os leitores apreciem o seu conteúdo e aprendam um pouco mais sobre a nossa história e sobre o que representa o Ministério Público Militar para a sociedade brasileira.

Marcelo Weitzel Rabello de SouzaProcurador-Geral de Justiça Militar

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PALAVRA DA COMISSÃO DE MEMÓRIA INSTITUCIONAL DO CNMP

Sinto-me particularmente recompensado pela oportunidade de re-gistrar uma mensagem da Comissão de Memória Institucional do CNMP, a propósito do lançamento da obra “Histórias de Vida”, dentro do Projeto Me-mória Oral, desencadeado no âmbito do Ministério Público Militar.

Considero que todo o esforço empreendido na preservação da me-mória e da história de uma Instituição deve ser valorizado e enaltecido, sobre-tudo ao se constatar que o Ministério Público Militar, na condição de ramo especializado do Ministério Público da União, já beira um centenário de exis-tência, criado que foi nos distantes idos de 1920, possuindo, portanto, um las-tro histórico mui digno de resguardo.

É induvidoso que a trajetória institucional, marcada por aconteci-mentos de variados matizes, não pode, definitivamente, ser relegada ao olvido, menoscabando-se o repertório imprescindível de dados, documentos, imagens, relatos que formam essa teia multifária de vivências irrepetíveis. Aliás, são exa-tamente esses recortes que propiciam o amadurecimento institucional e per-mitem o resgate de fatos que permearam toda a atuação de pessoas que, no curso da história, devotaram-se ao cumprimento de suas nobres atribuições, deixando, indelevelmente para sempre, suas marcas ou impressões no tempo e no espaço.

Cuidar da memória e da história é mais do que um poder-dever ínsi-to na Carta Constitucional. É, de fato, uma necessidade decorrente do próprio

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sentido de continuidade e pertencimento a que todos, na humana condição, buscam ao longo da efêmera jornada carnal. Deste modo, ainda que breve a passagem, todos são compelidos, diuturnamente, a se agarrar às raízes que impulsionam ou impulsionarão mundo afora, mantendo as referências como forças motrizes dos embates de afirmação e de aprimoramento. Os seres hu-manos estão, como ressaltado por Guimarães Rosa, em seu Grande Sertão: Veredas, nas sábias palavras do personagem Riobaldo, em constante e perma-nente construção:

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.

Sendo assim, no âmbito institucional, onde, via de regra, as pessoas passam boa parte de suas vidas, ou melhor, passam, mas não passam em vão, certamente deixam bem mais do que suas digitais, ficando seus exemplos, suas contribuições, suas inigualáveis histórias recheados de acontecimentos únicos, que não podem e não se devem esvair como poeira ao vento. Todos lançam seus traços no grande livro da vida; e, quando conexos a uma Instituição quase secular como o Ministério Público Militar, tais Histórias de Vida devem ser cultivadas com todo o zelo, projetando-se tais elos nas consciências dos que hoje repercutem os fatos de outrora, na expectativa de que possam irradiar-se pelas gerações pósteras, ecoando para a eternidade como um fator indefectível

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a despertar para o indeclinável sentido evolutivo de cada ser, num plano em que todos são convidados, como lembrado por Whitman, a produzir um verso na grande poesia da vida.

Por isso e caminhando para o fecho dessa sucinta manifestação, cum-primento a todos que se envolveram nesta sensata, bela e impostergável tarefa de reavivar o ontem, na certeza do porvir, conferindo aquele sentido de pereni-dade evocado por Drummond no fecho de seu impecável poema “Memória”:

Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.

Antônio Pereira DuarteConselheiro Nacional

Presidente da Comissão de Memória Institucional / CNMP

PALAVRA DA COMISSÃO DE MEMÓRIA INSTITUCIONAL DO CNMP

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PREFÁCIO

A partir de meados da década de 1990 e início dos anos 2000, a Procu-radoria-Geral de Justiça Militar voltou os olhos para a Memória da Instituição, ocupando-se de projetos, com vista a recuperar informações, arquivos e outros dados de interesse histórico, desde sua criação em 1920. Não é uma tarefa fácil, pois requer pessoal especializado, investimento e interesse da alta administração.

Diversos foram os programas executados: pesquisa da memória e publicação do livro Resumo Histórico do Ministério Público Militar – Síntese Biográfica dos Procuradores-Gerais da Justiça Militar (1995); pesquisa histórica (2000-2006); publicação do livro Memória Histórica do Ministério Público Mili-tar (2012); nomeação da Comissão do Projeto Memória do MPM; criação do Centro de Memória; reedição ampliada da síntese biográfica dos PGJM, com o título Procuradores-Gerais de Justiça Militar: 1920-2016; edição do Manual de História Oral; e, finalmente, publicação do livro Histórias de Vida (2014-2016).

Acalentava-se há muito tempo produzir uma obra contendo entrevistas com membros inativos do MPM. Por meio da Consultoria Especializada em História do professor Gunter Axt, elaborou-se inicialmente o Manual de História Oral do MPM, uma exigência do rigor científico para esse tipo de pesquisa. Colheram-se 18 entrevistas com ilustres membros na inatividade. Com isso, buscou-se recuperar a história pessoal e funcional das personagens que tiveram relevante participação na atuação da instituição em diversos períodos. O programa não se encerra com esta publicação, mas deve prosseguir de modo a reunir depoimentos de todos os membros que se afastaram da ativa e que prestaram inestimável serviço à instituição e ao país.

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A realização dessa obra é o alcance de um sonho e a concretização de uma visão. O Centro de Memória do Ministério Público Militar foi idealizado como um lugar de memória, debatida no presente a partir de uma produção de pesquisa densa, que bebe inspiração nas histórias de vida dos membros que ajudaram a construir os alicerces da instituição ministerial que hoje conhecemos. O que se deseja é um espaço de reflexão crítica sobre as opções e os caminhos percorridos que nos trouxeram ao tempo hodierno em que vivemos. Porque não há soberania sem tradição. E não há tradição que se mantenha viva no presente, sem diálogo e sem transparência.

O Programa de História Oral foi instalado com lastro nas diretrizes estabelecidas pelo plano de gestão estratégica encomendado pela Comissão de Memória. Objetiva a formação de um acervo de depoimentos capaz de nos ajudar a acessar as representações, valores e afetos das gerações que nos preced-eram na construção do Ministério Público Militar. A publicação das entrevis-tas sob a forma de coletâneas no âmbito da série Histórias de Vida atende ao compromisso de divulgar a produção do Centro de Memória e debatê-la com a sociedade, de forma a podermos melhor refletir sobre a trajetória do Minis-tério Público Militar e seu papel na sociedade contemporânea.

No que respeita à história da instituição, o arco temporal alcançado pelas entrevistas aqui reunidas se estende de 1947, quando ingressou na car-reira o entrevistado mais antigo, a 2010, quando se aposentou a mais moderna. Durante essa quadra, o Ministério Público Militar passou por inúmeras trans-formações. Sua área de atuação e competência se alterou, sua infraestrutura se sofisticou, mudou o perfil de seus membros, aprimoraram-se as garantias funcio-nais e a autonomia institucional. Mudanças de tão profundas consequências so-mente se tornaram possíveis graças ao engajamento e a labuta de seus membros,

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que pugnaram incansavelmente por essas conquistas, que debateram diferentes projetos e que desempenharam o seu métier com dedicação e pertinácia.

As páginas que se seguem falam de vidas, de sofrimentos, de tensões, de conquistas, de afetos. Elas respiram e dialogam com o leitor a cada linha. Não é apenas a história do Ministério Público Militar que acessamos aqui, mas a dos brasileiros em seu conjunto. Os sentimentos e representações nesta obra transmitidos nos remetem a valores e a conquistas, mas também a desafios, a crises, a conflitos, a muitos dramas, pessoais e coletivos.

Instituição democrática por essência, o Ministério Público se fortalece com a multivocalidade, com a diversidade de narrativas e de opiniões sobre os viveres e sobre os fatos. Essa polifonia celebra nossa transparência e colmata o debate em torno da identidade da instituição.

Agradecemos a toda a equipe do Centro de Memória e da Assessoria de Comunicação Social pelo esforço que ajudou a viabilizar a edição, bem como aos membros que compõem a Comissão de Memória, órgão que tem funcionado como um privilegiadíssimo espaço de debates enriquecedores e construtivos, os quais têm-nos permitido avanços substanciais na matéria. Agradeço muito especialmente ao digníssimo procurador-geral de Justiça Militar Marcelo Weitzel Rabello de Souza pelo notável descortino demonstrado com a chancela da Comissão de Memória e de todas as suas proposições.

Péricles Aurélio Lima de QueirozSubprocurador-geral de Justiça Militar

Coordenador da Comissão do Projeto Memória

PREFÁCIO

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1 Agradeço pelos pertinentes comentários ao texto do subprocurador-geral de Justiça Militar Péricles Aurélio Lima de Queiroz, do procurador de Justiça Militar Antônio Pereira Duarte e do promotor de Justiça Militar Jorge César de Assis.

Gunter Axt

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INTRODUÇÃO

O PROGRAMA DE HISTÓRIA ORAL DO CENTRO DE MEMÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR

Ao ser desenhado o projeto que concebeu o Centro de Memória do Ministério Público Militar, um programa de entrevistas estribado nas técnicas e nos conceitos da História Oral foi imaginado como um dos pilares fundantes da nova proposta de trabalho. As entrevistas permitem-nos acessar a trajetória da instituição pela versão daqueles que a experenciaram. Muito do que elas contam não está impresso nos documentos escritos, pois são memórias pessoais, afetos, opiniões, representações do que se viveu, sempre com forte ênfase pessoal.

Documento construído pela interação entre o historiador e o depo-ente, a entrevista colhida no âmbito de um programa de História Oral celebra a memória, mas se constituiu, também, em ferramenta estratégica de referen-ciação para todos aqueles que pretenderem se debruçar, futuramente, sobre a narrativa da instituição ou dos fatos aos quais essa trajetória se conecta. Não é incomum, entrevistados que integram um certo conjunto expressarem-se de forma diferente sobre um mesmo acontecimento, ou cadeia de eventos, porque, sabemo-lo, cada um conta a história vivida desde a sua perspectiva.

E é desse caleidoscópio de versões que a História se constrói. A po-lifonia é desejável, pois encerra respeito pela diferença. O historiador acolhe múltiplos testemunhos como verdades subjetivadas pela percepção do indi-víduo, para, a partir daí, encontrar recorrências, divergências, silêncios, sen-tidos. Depois de comparados entre si, cabe cotejar os depoimentos às fontes impressas, aos documentos manuscritos, a vídeos, áudios, enfim, tudo aquilo

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que o historiador julgar necessário para ajudar a responder uma determinada pergunta sobre o passado. Trata-se de um esforço de fôlego, processual, e que tende a reverberar em vários textos, pela lente de todos aqueles que utilizarem as entrevistas publicadas e divulgadas como fonte para seus ensaios e pesquisas.

A História Oral, assim, é uma incrível janela de cognição, um lugar de memória que amplia fenomenalmente o leque de perguntas e respostas que podemos propor ao passado. Mas longe está de pretender esgotar qualquer uma dessas questões.

A História Oral ajuda a sistematizar narrativas, a publicizar pers-pectivas. Colabora para o debate em torno das identidades, das tradições e dos projetos de uma instituição. Uma ferramenta que se torna útil no contexto da modernidade acelerada, particularmente naqueles países que crescem aos sal-tos, reformulando instituições e incorporando grandes parcelas da população ao processo democrático e ao mercado de consumo, como aconteceu no Brasil em alguns momentos de sua história.

Autores célebres como Andreas Huyssen, Zygmund Bauman e François Jullien, entre outros, demonstram que a uniformização, que se desdobra do processo de mundialização engendra, por resposta, formas de resistência. A ultramodernidade contemporânea, com sua voracidade fragmentária, estandartizante e efêmera trouxe, também, em contrapartida, num aparente paradoxo, uma valorização cada vez mais onipresente da memória, como estratégia de grupos, comunidades e instituições que afirmaram sua identidade própria e se questionaram sobre sua especificidade no mundo.

No Brasil, o impacto do processo de globalização mais ou menos coincidiu com a abertura política e a econômica do país. Nesse cenário, não

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apenas as instituições passaram a se perguntar mais sobre sua identidade e a pensar em mecanismos internos para a transmissão de valores de uma geração para a outra, como, ainda, a sociedade passou a se questionar com maior fre-quência e intensidade sobre o sentido e a missão das próprias instituições. A comunicação dos entes da área jurídica com a comunidade tornou-se essencial. A História Oral e a memória constituíram-se, assim, em ferramentas de diálo-go em torno de identidades para os organismos da área jurídica.

Sobre a metodologia da História Oral, historiadores logo esclarecem que suas entrevistas estão distantes daquilo que os jornalistas normalmente fazem. O documento oral é o único construído pelo historiador, normalmente acostumado a escarafunchar o passado em arquivos que reúnem acervos esta-belecidos por outras pessoas, em outras épocas, no decorrer de vários anos, ou séculos. O método empregado nesta tarefa requer tempo e, sobretudo, dispo-sição para ouvir. Não nos interessa arrancar das pessoas uma frase de efeito ou uma informação reveladora, que seria eventualmente negritada nas manchetes de algum jornal, para se borrar na sequência, se esfumar no dia seguinte.

Atraímo-nos pelos sistemas descritos a partir das experiências indi-viduais, pelas representações de cada um sobre fatos que têm alcance coletivo. Queremos ouvir o que as pessoas têm a dizer. Interessamo-nos pelas suas lem-branças. Dedicamos-lhes o tempo e a atenção que forem necessários, processo durante o qual tentamos estabelecer empatia com o entrevistado. Contando histórias de vida, vamos divisando, aos poucos, no horizonte, a história da ins-tituição ministerial, da Justiça, do país.

Obedecemos a um método claro e transparente. A confecção de um manual consolidando todas as diretrizes e variáveis foi um dos passos iniciais

INTRODUÇÃO

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do projeto. O texto recebeu o tratamento editorial e, ainda que em tiragem restrita, foi disponibilizado aos interessados e envolvidos no processo.

A rede de depoentes foi estabelecida pela Comissão de Memória, instalada pelo procurador-geral de Justiça Militar. Foram ouvidos apenas membros aposentados que se encontravam em condições para enfrentar algumas horas de conversa com um historiador. O agendamento de cada entrevista foi precedido de um importante contato para explicar o intuito do projeto, feito pelo subprocurador-geral de Justiça Militar Péricles Aurélio Lima de Queiroz, coordenador da Comissão de Memória, o que pavimentou os caminhos.

Certamente, não se conseguiu ouvir todos aqueles que se gostaria, pois alguns ou convalesciam de alguma enfermidade, ou não encontraram disponibilidade para uma conversa durante o período de oito meses em que as entrevistas foram coletadas. Como muitos depoentes não puderam se deslocar a Brasília, o historiador foi ao seu encontro, em diferentes cidades, localizadas em seis Estados, como Canela, Porto Alegre, Florianópolis, Balneário Camboriú, São Paulo, Rio de Janeiro, Vassouras, Campo Grande e Fortaleza. Esta mobilidade da equipe de pesquisa foi fundamental para que o projeto chegasse a um bom termo, pois, em se tratando de instituições com jurisdição nacional, seus membros espalham-se por todo o território.

As entrevistas foram gravadas em meio digital e, posteriormente, transcritas. A primeira versão já não é igual ao momento original, para sempre perdido, pois não é capaz de reproduzir as expressões, as entonações da voz, as pausas, as ênfases, as características do ambiente no qual o depoimento se processou. Em função disso, muito, inclusive, do que se acha transcrito, seria de difícil ou de impossível compreensão para o futuro leitor, ou, pelo menos, de

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leitura pouco fluída e dinâmica, pois, quando falamos, raramente evitamos ví-cios usuais na oralidade, repetições de palavras, frases truncadas, sem mencio-nar certas passagens ditas com ênfases de contexto, fora do qual seus sentidos intrínsecos se perdem, se diluem, ou são confundidos.

Destarte, é fundamental que possamos editar o documento. Esta é uma das fases mais demoradas do processo. Para cada hora de entrevista, consomem-se várias de transcrição e muitas mais de edição. Se a transcrição e, posteriormente, a revisão gramatical final podem ser terceirizadas, a condução da entrevista e a sua edição precisam ser feitas pelo historiador responsável pelo programa.

Não imprimimos técnicas de ficção ao depoimento, mas procuramos adaptar a dinâmica da linguagem falada à escrita, esconsando o texto de vícios da oralidade – tão comuns a todos nós. Ajudamos a estruturar parágrafos, a limpar a narrativa, tornando-a mais saborosa ao leitor. Cuidamos de preservar a coloquia-lidade original do documento, limitando tais intervenções à forma, sem adulterar o conteúdo; pelo contrário, apurando a forma, a tendência é enfatizá-lo.

Aproveita-se, esse momento, para a checagem de dados, como a grafia de nomes próprios que precisam ser confirmadas. Datas de eventos ou fatos podem ser corrigidas, pois é comum nossa memória nos trair, afastando-nos da precisão. A fase de edição envolve intensa pesquisa. Fora necessário iniciá-la an-tes da entrevista, durante a preparação, para se obter as informações elementares, que dizem respeito ao entrevistado, a partir das quais as perguntas podem ser propostas. Mas a pesquisa é aprofundada e complementada durante a fase da edição, sendo comum que o historiador ajude o depoente a completar informa-ções mais objetivas, como números de processos, locais em que se deu uma de-terminada ação, nomes completo dos réus, desfecho preciso do julgamento, etc.

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Depois de editadas, as entrevistas foram submetidas à aprovação dos depoentes. Sendo a intenção arquivá-las no banco de História Oral e publicá--las, sob a forma de coletâneas como esta, não se pode prescindir da concor-dância dos entrevistados com relação ao resultado final. A expectativa, nesta etapa, é sempre no sentido de que mínimos sejam os ajustes processados, o que em geral se verificou, registrando-se, inclusive, alguns casos em que o texto final aprovado é idêntico ao editado. Afinal, a edição presta um serviço não apenas ao leitor, mas também ao depoente, tornando o processo de aprovação mais célere, menos questionável.

Síntese da evolução institucional

A Justiça Militar

O surgimento da Justiça Militar se confunde com a história dos exérci-tos, sujeitos a rígidos princípios de disciplina e hierarquia. A necessidade de vigi-lância desses princípios ensejou a implantação da Justiça Castrense, cujas normas já aparecem desenhadas em textos muito antigos, da Suméria, da Grécia e no Ve-lho Testamento. Em Roma, berço do Direito Ocidental, o Direito Penal Militar ganhou sistemática e começou a ser entendido como um ramo autônomo.

No Brasil, a Justiça Militar existiu antes mesmo da Comum, ten-do chegado a bordo das primeiras naus portuguesas. Em 1763, o Conde de Lippe, a pedido do Marquês do Pombal, condensou a dispersa legislação penal militar portuguesa e produziu os Códigos de Guerra, que previam penas severas e castigos corporais, próprios da época, como o arcabuza-mento e os pranchaços. Em 1808, com a vinda da família real para o Brasil, Dom João VI criou o Conselho Supremo Militar e de Justiça, embrião do

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atual Superior Tribunal Militar, que foi o primeiro órgão permanente de Justiça Castrense a operar no país.

A Justiça Militar hoje é um ramo especializado do Poder Judiciário, cuja especificidade justifica-se em função das peculiaridades constitucionais das Forças Armadas, encarregadas da defesa da nação, do território pátrio, da garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, missão assentada so-bre os valores da hierarquia e da disciplina, sem os quais, o país se precipitaria no caos infrene. Estas peculiaridades do Direito Militar são decorrentes das particularidades das Forças Armadas. Por essa razão, o Superior Tribunal Mi-litar é a única Corte do país que tem, por exemplo, competência para aplicar a pena de morte em tempo de guerra.

Desde a sua criação, a Justiça Militar esteve organizada, no primeiro grau, em Juntas ou Conselhos mistos. A partir de 1813, os Conselhos de Guer-ra, que até então funcionavam apenas no Rio de Janeiro, passaram a operar em outras localidades. Eram compostos por um oficial superior, que o presidia, um auditor e cinco oficiais militares. Os Conselhos de Guerra foram precursores dos atuais Conselhos de Justiça. Por ocasião do advento do Regulamento Pro-cessual Criminal Militar, editado pelo Supremo Tribunal Militar, em 18 de julho de 1895, manteve-se, em seus artigos 12 e 13, a composição de sete juí-zes, tanto para os Conselhos destinados a julgar oficiais-generais, como para os conselhos em geral (o presidente, oficial de maior graduação, o auditor togado e mais cinco oficiais).

No Império, as Juntas de Justiça Militar eram temporárias e tinham competência eventual para julgar civis. Além disso, Comissões Militares foram criadas para processar e julgar rapidamente líderes de insurreições regionais. O

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Código Criminal do Império, de 1830, estabeleceu que os crimes militares fos-sem julgados de acordo com sua ordenação própria, que, basicamente, seguia amparada nos Códigos de Guerra.

Em 1891, já sob a República, surgiu o Código Penal da Armada, es-tendido, em 1899, para o Exército. Em 1944, foi editado o Novo Código Penal Militar, cujo artífice foi o desembargador Silvio Martins Teixeira. O terceiro Código Penal Militar brasileiro foi editado em 1969, sob o regime militar que se instaurara em 1964.

Na Constituição Federal de 16 de julho de 1934, a Justiça Militar Federal foi plasmada como ente do Poder Judiciário, sendo estendidas, aos seus juízes, as mesmas garantias da magistratura togada. A competência, condensa-da no julgamento dos crimes propriamente militares e cometidos por militares, também podia se estender a civis, quando estes atentassem contra as institui-ções militares ou contra a segurança externa do país. A Constituição de 1937, outorgada pela ditadura getulista do Estado Novo, ampliou os civis à jurisdição militar nos chamados crimes contra a segurança nacional. Um tribunal exótico, o Tribunal de Segurança Nacional, foi criado e julgava tais crimes ao arrepio da legislação penal e processual penal, motivo pelo qual muitas de suas sentenças acabaram reformadas pelo Supremo Tribunal Militar, que, malgrado o cenário autoritário, logrou preservar parte de sua independência. No regime que se or-ganizou a partir da Constituição democrática de 1946, o TSN deixou de existir e a competência para o julgamento de civis foi novamente restrita aos crimes contra a segurança externa e contra as instituições militares.

A nova Lei de Segurança Nacional, que entrou em vigência em 5 de janeiro de 1953, em tempos de Guerra Fria no mundo, fixou a competência da

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Justiça Militar nos casos em que a vítima do crime fosse autoridade marcial, bem como para delitos de espionagem, utilização de meios de comunicação de forma a pôr em perigo a segurança do país, e formação de milícias e associa-ções, armadas ou não, que apresentassem finalidade combativa e insubordina-ção hierárquica. Até o Ato Institucional nº 2, contudo, não foram numerosos os processos que envolveram civis no âmbito da jurisdição militar federal.

Como desdobramento da ruptura desencadeada em 1964, que depôs o presidente João Goulart, uma série de atos institucionais alteraram a dinâmica da Justiça Militar. Com base na Lei de 1953, e no Ato Institucional de 9 de abril de 1964, inúmeros inquéritos policiais militares (IPMs) foram abertos. Entre os dias 10 e 13 de abril foram decretadas 45 cassações de mandatos, 162 suspensões de direitos políticos por dez anos e 146 militares foram transferidos para a reserva.

Entretanto, os chamados “coronéis dos IPMs”, sintonizados com a linha-dura do regime que começava, ansiavam por mais tempo para investigar e punir pessoas identificadas com a oposição ou acusadas de corrupção e se in-surgiam diante do fato de que muitas denúncias não estavam sendo acolhidas pelo Judiciário. Além disso, habeas corpus concedidos pelo STF, e, antes ainda, pelo STM1, eram interpretados como aberta contestação ao espírito revolucio-nário de 1964. Assim, o Ato Institucional nº 2, de 1965, estendeu o foro militar

1 Segundo o ministro Jorge Alberto Romeiro, a primeira liminar em habeas corpus preventivo, usada, sem lei a respeito, pela jurisprudência de todos os tribunais superiores, foi concedida pelo almirante José Espíndola. Quando, mais tarde, o STF atuou no mesmo sentido, em HC concedido a um governador na iminência de ser deposto, invocou-se o precedente da Justiça Militar. (ROMEIRO, 1994:15-16). Segundo Jorge Assis, que obteve cópia dos Autos nº 27.200, do então Estado da Guanabara, autuado em 28 de agosto de 1964, a pedido de um paciente civil, que respondeu a inquérito policial militar que visava apurar condutas relacionadas ao exercício funcional deste junto à Caixa Econômica Federal, a decisão do STM, que ocorreu em 31 de agosto, foi deferida em decisão preliminar, requerida pelo advogado para sustar o comparecimento do mesmo perante o encarregado do IPM até julgamento definitivo do HC pelo Superior Tribunal Militar. (ASSIS, 2013: 219).

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aos civis para a repressão dos chamados crimes contra a segurança nacional, abrindo um dos capítulos mais conturbados e polêmicos da história da Justiça e dos direitos civis no Brasil.

Em seguida, a Constituição outorgada em 24 de janeiro de 1967 consolidou a competência e conheceu o Supremo Tribunal Federal como ór-gão para recursos ordinários. O Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967, definiu com dureza os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, consolidando a noção de “guerra interna”.

O Ato Institucional nº 5, baixado em 13 de dezembro de 1968, enfeixou poderes discricionários nas mãos da presidência da República. O Congresso Nacional foi fechado por dez meses e suspensas as garantias de vitaliciedade e inamovibilidade dos juízes. Foram, ainda, excluídos de qual-quer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com o referido AI e seus Atos Complementares. Ministros do Supremo foram cassados e a composição da Corte foi reduzida de 17 para 11 membros. O habeas corpus foi restringido e limitado o uso de recursos extraordinários aos tribunais, bem como abolido o recurso ordinário nos casos de mandados de segurança denegados pelos tribunais. O AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, suprimiu o recurso ordinário, ao Supremo Tribunal Federal, de decisões proferidas pela Justiça Militar contra civis. O Decreto-Lei nº 510, de 20 de março de 1969, promoveu alterações na LSN, autorizando a prisão por 30 dias durante o inquérito e a sua prorrogação por uma vez de igual prazo, além de admitir a incomunicabilidade do preso por até dez dias. Além disso, a nova legislação tornou, para o Ministério Público Militar, o recurso compulsório nos casos de rejeição da denúncia pelo juiz-auditor ou de sentença absolutória profe-rida pelo Conselho.

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O Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969, admitiu a prisão perpétua e a pena de morte, permitiu, ao Conselho de Justiça, proferir sentença condenatória mesmo quando o Ministério Público pedisse a absolvição, além de reconhecer circunstância agravante não arguida na narração do fato criminoso.

Em 1978, a LSN foi revista e tornada mais branda, com a revogação do Decreto nº 898, e novamente reformulada em 14 de dezembro de 1983, es-tando em vigência até os dias atuais. Os crimes políticos voltaram para a jurisdi-ção federal apenas com a Constituição de 1988. Entrementes, em 1979, o AI-5 foi anulado e a anistia aos presos e aos condenados políticos foi decretada.

Atualmente, pequenos desvios de conduta, previstos nos regulamen-tos disciplinares, e que não configuram um delito, são resolvidos dentro da própria unidade na qual o militar serve, segundo os Regimentos Internos. Mas, em caso de falta grave, enquadrada no Código Penal Militar, deve-se abrir um inquérito policial militar. Quando o IPM chega à Auditoria, o auditor o enca-minha ao Ministério Público, que pode efetuar a denúncia. Aceita a denúncia pelo juiz-auditor e citado o réu, tem início o processo. Para o julgamento de praças, existe o Conselho Permanente, constituído pelo juiz-auditor civil e por quatro oficiais da mesma Força do acusado, juízes temporários, substituídos a cada três meses. Um Conselho Especial julga oficiais até os postos de ca-pitão de mar e guerra, e coronel. Neste caso, o Conselho precisa ser formado por oficiais de patente superior ou mais antigos na carreira. Oficiais-generais possuem foro privilegiado e são julgados no Plenário do STM. Defesa e Mi-nistério Público podem apresentar recurso ao STM em caso de discordarem do julgamento efetuado na primeira instância.

INTRODUÇÃO

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O Ministério Púbico Militar

O Ministério Público Militar foi institucionalmente organizado pelo Código de Organização Judiciária e Processo Militar de 30 de outubro de 1920. Sua primeira previsão constitucional se deu na Carta de 1934, nos artigos 95 a 98, sendo considerado, então, como um órgão de cooperação go-vernamental. O Código da Justiça Militar, de 2 de dezembro de 1938, previa que cada Auditoria deveria ser composta de um juiz-auditor, um promotor, um advogado, um escrivão, dois escreventes, um oficial de justiça e um servente, além de um suplente para auditor e um promotor adjunto, os quais podiam ser convocados em caso de acúmulo de trabalho ou necessidade de funcionamento do Conselho de Justiça nas unidades militares ou dos Conselhos Extraordi-nários nas Auditorias. Os Conselhos eram formados por militares indicados pelos seus Comandos. Junto ao Superior Tribunal Militar, órgão de recurso dos julgados em primeiro grau, funcionava um procurador-geral.

A carreira do Ministério Público Militar foi organizada pela Lei Or-gânica do Ministério Público da União, de 30 de janeiro de 1951, promulgada em atenção a um mandamento da Constituição de 1946, que fixava o ingresso mediante concurso público. O procurador-geral de Justiça Militar tomava pos-se perante o ministro da Guerra e era cargo de livre nomeação do presidente da República. Um subprocurador-geral, de provimento efetivo, substituía o procurador-geral em seus impedimentos.

A Justiça Militar organiza-se, no primeiro grau, em regiões, cha-madas Circunscrições Militares. Nos anos 1960 funcionavam, ao todo, dez Circunscrições Militares no país, sendo uma em cada sede, exceto no Rio de Janeiro, onde existiam cinco Auditorias de segunda entrância, duas em São

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Paulo e três no Rio Grande do Sul. Em 1966, foi criada, em Brasília, uma nova Auditoria junto à 11ª Região Militar. A 12ª Circunscrição Judiciária Militar foi criada em 1969, com jurisdição sobre os Estados do Amazonas e do Acre e nos territórios de Roraima e de Rondônia. Todavia, a efetivação das duas novas Auditorias não foi imediata; a 11ª foi instalada em 1970 e a 12ª, apenas em 1979. Os substitutos de juízes e de promotores eram designados por decreto do presidente da República, sendo convocados, em casos de impedimento do titular ou de excesso de serviço pelo procurador-geral, sem qualquer direito ou vantagem além do vencimento do cargo pelo período que durasse a convoca-ção. Não existia Defensoria Pública e a advocacia era dativa nos casos em que o réu não pudesse arcar com os honorários.

Em 1920, junto com o MPM, criara-se a Advocacia de Ofício da Jus-tiça Militar, vinculada ao Superior Tribunal Militar até 1992, quando foi conce-bida a Defensoria Pública da União. A Advocacia de Ofício foi, assim, precurso-ra da DPU. Em cada Auditoria havia um advogado de ofício titular e dois subs-titutos. Era um quadro funcional próprio do STM, custeado pela Justiça Militar.

Em fevereiro de 1967, o Ministério Público Militar foi reestrutura-do. Alterou-se a denominação de promotor para procurador de primeira, se-gunda e terceira categoria, funcionando, o primeiro, junto ao procurador-geral, os de segunda categoria, junto às Auditorias de segunda entrância (Distrito Federal e Estado da Guanabara) e os de terceira, junto às demais Auditorias. O Decreto-Lei nº 267, além disso, interferiu no princípio do promotor na-tural, permitindo que o procurador-geral avocasse inquéritos e processos. A mudança coincidia com o agigantamento do volume de trabalho que trouxe a extensão da competência da jurisdição especializada para o julgamento de civis, bem como se sintonizava com o endurecimento do regime.

INTRODUÇÃO

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Em 1969, a nova Lei de Organização Judiciária Militar abriu a pos-sibilidade, nas suas disposições transitórias, do aproveitamento dos substitutos de procurador que tivessem adquirido estabilidade em cargo inicial da carreira. Em 1984, foram criados mais três cargos de subprocurador-geral, que passa-ram a ser cinco e considerados como final da carreira – a promoção era conce-dida exclusivamente pelo critério de merecimento e, a escolha, a partir de lista tríplice organizada pelo Conselho Superior.

Entre 1985 e 1987, a nova composição foi discutida no STF a par-tir de um mandado de segurança impetrado contra a rejeição, pelo Congresso Nacional, do Decreto-Lei nº 2.159, que instituíra a modificação. Em 31 de dezembro de 1987, a carreira foi confirmada com cinco subprocuradores--gerais, oito procuradores militares de primeira categoria e 22 procuradores militares de segunda categoria, considerados os iniciais da carreira. Dos 44 cargos do Quadro Complementar (dois por Procuradoria), em extinção, es-tavam em exercício 34 substitutos de procurador de segunda categoria quan-do a Constituição de 1988, em suas disposições transitórias, incorporou-os ao quadro. A carreira inicial do MPM passou a contabilizar 78 cargos, sendo 44 decorrentes da Lei nº 7.380, de 1985, e 34 criados pela Constituição Fe-deral. Mas, uma interpretação divergente do então procurador-geral, acabou fixando a quantidade de cargos iniciais em 61 membros. Finalmente, a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, alterou as designações dos cargos. O Ministério Público Militar passou a ser então formado por 13 subprocuradores-gerais, 22 procuradores de Justiça Militar e 44 promotores de Justiça Militar, 79 cargos no total.

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As entrevistas

Entre março e setembro de 2015, foram ouvidos vinte membros. Apenas dois não aprovaram suas entrevistas a tempo de integrarem esta cole-tânea. Neste volume, as participações estão organizadas por ordem de antigui-dade do entrevistado, isto é, pela ordem de ingresso na instituição.

Os depoentes nasceram entre 1919 e 1951 e ingressaram no Minis-tério Público Militar entre 1947 e 1986, sendo que, dos vinte, doze o fizeram entre 1964 e 1980; desses, apenas uma (Marly Gueiros), por concurso; três ingressaram antes desse período e cinco, posteriormente. O Ministério Público Militar promoveu concurso público exclusivo de acesso à carreira em 1959, e voltou a fazê-lo apenas em 1981. Dentre os ouvidos, sete conquistaram a es-tabilidade por meio de concurso. A partir de 1981, esta fórmula passou a ser a regra e a nomeação de substitutos não mais se verificou.

Dentre os ouvidos, 20% são mulheres. Embora seja uma porcentagem considerada expressiva para qualquer instituição da área jurídica, é bastante re-presentativa do perfil de gênero do MPM, onde a participação feminina pode ser percebida como pioneira. No primeiro concurso, duas dos 40 candidatos que compareceram às provas eram mulheres, incomum para a época, quando as candidaturas femininas simplesmente tendiam a ser rejeitadas, ou não so-breviviam ao duro escrutínio a que eram expostas. Ambas foram aprovadas: em quinto lugar, Marly Valle Monteiro (que tem depoimento nesta edição) e, em 18º, Lourdes Maria Pereira da Costa Celso. Lourdes Maria foi empossada em fevereiro de 1962, como substituta, e Marly Monteiro, em setembro de 1964, como efetiva. Mais recentemente, por sua vez, a chefia do Ministério Público Militar foi exercida, durante doze anos consecutivos, entre 2000 e 2012, por

INTRODUÇÃO

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quatro diferentes mulheres, uma das quais, Marisa Cauduro, participa desta edição com um depoimento. Adriana Lorandi tornou-se, em 2000, a primeira mulher a chefiar o Ministério Público Militar no Brasil.

Dos 18 entrevistados, apenas quatro (Vera Regina Mota Coelho, Maria Marli Crescêncio Pereira, Rutílio Tôrres Augusto e Francisco Leite Chaves) não explicitaram registro de passagem pelas Forças Armadas ou pela Justiça Militar (na função de servidores, defensores, ou atuando como jorna-listas junto às Auditorias) antes do ingresso no MPM; tampouco tinham pa-rentes próximos ligados às Forças Armadas, como pais, cônjuges e irmãos. Mas todos tinham alguma relação, direta ou familiar, com o mundo político. Marli Crescêncio é quem menos se recorda dessa conexão, mas é razoável supor que ela existia, pois, em julho de 1964, foi nomeada adjunta de promotor de Justiça da comarca de Boa Viagem, no Ceará. Também na jurisdição comum, por essa época, a nomeação de adjuntos dependia de indicações.

A posse de substitutos se dava a partir de alguma sugestão proposta por pessoa ligada ao mundo jurídico, ao universo da caserna ou ao cenário político. Durante o regime militar, as indicações eram cuidadosamente checa-das pelo Serviço Nacional de Informações, que emitia a palavra final sobre a nomeação. As promoções também costumavam ser monitoradas e há indícios de que empeces sugeridos pela Marinha, pelo Exército ou pela Aeronáutica poderiam obstar a progressão na carreira.

Houve registros de membros do Ministério Público, assim como da Justiça Militar, inclusive de concursados, que foram cassados ou com-pulsoriamente aposentados durante o regime militar. No Superior Tribunal Militar, o caso do ministro Pery Bevilacqua, atingido em 1969 pelo Ato

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Institucional nº 5, é um dos mais célebres e rumorosos. Mas outros houve que alcançaram menos reverberação. Neste livro, Gilson Ribeiro Gonçal-ves se remete ao episódio da cassação de um juiz-auditor em Juiz de Fora, Minas Gerais.

A autonomia do Ministério Público Militar enfrentava escolhos para se afirmar. São unânimes os registros dos depoentes sobre a precariedade das instalações e a fragilidade do suporte disponível para o exercício das funções, situação que apenas começou a se reverter depois da chamada Nova República. A partir da Constituição de 1988 e da Lei Complementar nº 75, de 1993, o Ministério Público deu um salto qualitativo em termos de infraestrutura. A sede própria foi inaugurada em Brasília nos anos 1990 apenas, sendo, também nessa década, iniciadas obras para o erguimento de sedes privativas para as Procura-dorias Regionais.

Até então, era comum que os gabinetes utilizados pelos promoto-res e procuradores fossem cubículos cedidos pelos juízes nas Auditorias. O mobiliário era velho e insuficiente e há mais de um registro de membros que precisaram adquiri-lo às suas próprias expensas. Os servidores eram poucos e auxiliavam apenas o procurador-geral de Justiça Militar. Nas Procuradorias Regionais, os membros dependiam da boa vontade dos funcionários das Audi-torias e, sobretudo, dos magistrados, para terem algum apoio às suas atividades. Faltava material de expediente e até mesmo a utilização do telefone dependia da Justiça Militar. Os salários eram notadamente baixos. Até 1967, aliás, se-quer eram pagos em seu conjunto pela Procuradoria-Geral, mas por órgãos diferentes, como as unidades das Forças Armadas as quais as Auditorias juris-dicionavam, ou diretamente pelo Ministério da Justiça.

INTRODUÇÃO

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Os proventos minguados podiam ser em parte compensados pelo exercício da advocacia privada, que não era vedado, desde que não praticado na própria competência da jurisdição, antes da reforma institucional dos anos 1980. Muito embora alguns permanecessem vinculados a grandes escritórios de advocacia – como Durval Moura de Araujo, Jorge Luiz Dodaro e Renato da Cunha Ribeiro – a maioria recorria pouco a esse recurso, ou dele não se valia, até porque a atividade revestia-se de mais rentabilidade nos grandes centros urbanos, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, e nem todos atuavam junto às Auditorias que aí estavam.

Alguns, como Gilson Gonçalves, num desdobramento de suas atri-buições, desempenharam funções junto à célebre Comissão-Geral de Investi-gações, que tinha braços regionais nos Estados e que se encarregava da apu-ração de suspeitas de corrupção. A Comissão montava processos, secretos, de investigação sumária, que poderiam resultar em confisco de bens supostamen-te comprados com dinheiro de origem ilícita. Sua primeira versão funcionou entre abril e outubro de 1964. A Comissão foi recriada em setembro de 1968, para, finalmente, ser extinta em 1979.

Durante sua vigência, instaurou centenas de processos, mas a maior parte deles foi arquivada. A historiadora Heloísa Starling estimou que menos de 5% deles tenham terminado em confisco efetivo dos bens por meio de de-creto presidencial, o que sugere que o órgão, apesar de funcionar num contex-to autoritário, foi parcimonioso nas suas condenações e que pode ter servido aos altos dignitários da nação mais como ferramenta de pressão política do que como mecanismo de punição. Muitas das investigações instauradas nas subcomissões regionais terminavam sendo reformadas pela Comissão-Geral Nacional, como registrou, em depoimento colhido em 2007, o ex-procurador-

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-geral de Justiça Militar Milton Menezes da Costa Filho, pois os processos, segundo ele, “vinham com injustiças”. Pelo menos, na subcomissão de Minas Gerais, segundo Gilson Gonçalves, isso não teria se verificado, pois os proces-sos eram tecnicamente fundamentados, o que seria reconhecido, inclusive, por magistrados. Para o historiador Carlos Fico, que cita a diferença de tratamento dispensada a uma investigação sobre Brizola e a outra, sobre José Sarney, a Comissão tendia a aliviar em relação aos aliados do regime, e se esmerar para consolidar denúncias contra os opositores.

A prática da docência foi acolhida por alguns, como Jorge Luiz Do-daro, Vera da Mota Coelho e Marly Gueiros, professores junto aos cursos de Direito das universidades no Rio de Janeiro. Vera e Marly começaram como assistentes de reconhecidos catedráticos em universidades públicas. Jorge Do-daro foi professor na Cândido Mendes. Por seu turno, José Carlos Couto de Carvalho, que também foi professor na Universidade Gama Filho, consagrou--se como mestre responsável pelo principal curso preparatório para os con-cursos de ingresso às carreiras do Ministério Público Militar, da Magistratura Militar e da Defensoria Pública, tendo formado gerações de novos operadores do Direito Militar.

Ninguém ingressava no Ministério Público Militar almejando con-forto material e projeção financeira. Para alguns, a atividade constituía-se em uma forma de complementação de renda e um meio de se manter um vínculo com o serviço público. Além disso, a função, tal qual se registra em certas passagens, como no depoimento do ministro Olympio Pereira da Silva Junior, em decorrência do contexto vivido sob o regime militar, encerrava razoável prestígio, possivelmente facilitando o trânsito social.

INTRODUÇÃO

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Certamente havia aqueles, oriundos da elite jurídica e política que habitavam a antiga Capital Federal, como Paulo Duarte Fontes, Marly Guei-ros Leite e Vera Regina Alves de Brito. Vários, porém, percebiam o posto, mesmo com seus proventos limitados, como uma chance de ascensão social e, no limite, de conquista da estabilidade na área pública. Não são poucos os depoentes que têm origem na classe média ou na classe trabalhadora, como Rutílio Tôrres Augusto, filho de um sindicalista ferroviário, Marco Antonio Pinto Bittar, filho de um sargento-enfermeiro do Exército; Nelson Senra, filho de um pequeno comerciante do ramo de transportes; ou, ainda, João Jayme Araújo, João Alfredo da Silva e João Ferreira de Araújo, sargentos do Exército que lograram estudar Direito com muito esforço pessoal.

Não se tem, atualmente, um perfil geral dos membros em perspectiva de longa duração, mas não seria estranho supor que a presença de sargentos ba-charéis no MPM se incrementou depois de 1964. Como sugere o depoimento de João Jayme Araújo, os sargentos bacharéis recebiam estímulo dos seus Co-mandos para estudar, tendiam a ser por eles indicados ou avalizados para atuar no ente ministerial e, de certa forma, ao fazê-lo, permaneciam de algum modo conectados à hierarquia castrense.

Ainda que possa parecer paradoxal, em se tratando de ambiente tra-dicionalmente masculino, como o das Forças Armadas, as mulheres encontra-ram, no Ministério Público Militar, um território em grande medida favorável para o seu exercício profissional. Aparentemente, respeitador das hierarquias e da autoridade, bem como propenso à emulação de uma atitude cavalheiresca, o militar, salvo exceções, tende a não intimidar a mulher quando no desempenho de suas funções jurídicas na esfera militar. Assim, o ambiente das Auditorias, para as bacharelas, parecia ser relativamente preservado da figura depreciante

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do assédio, mais frequente em escritórios de advocacia antes dos anos 1970, como, aliás, sugere o próprio depoimento de Vera da Mota Coelho. Por sua vez, com pouca experiência anterior na prática advocatícia propriamente dita, mas muita dedicação aos estudos acadêmicos, as mulheres que atuaram pionei-ramente na área penal tendiam a ser rigorosas, formalistas, detalhistas e com-petentes na formulação de suas denúncias. No Ministério Público dos Estados, a vivência com o desempenho feminino era testada desde 1935. A origem familiar protegida e identificada com princípios cristãos, típica dos anos 1950 a 1970, reforçava esse perfil.

Mas essa condição facultada às promotoras, certamente não era ex-tensível às magistradas, por dois motivos: o membro do Ministério Público apresenta denúncia, mas não julga, não decide, e uma juíza- auditora ocuparia uma posição de muito mais poder que uma promotora ou procuradora, pre-sidindo o Conselho. Além disso, juízes mais conservadores não concebiam a possibilidade de uma mulher se reunir com os membros do Conselho a portas fechadas para arbitrar a sentença. Portanto, a chegada das mulheres à magis-tratura castrense se deu mais tarde.

A questão racial é mencionada apenas por João Alfredo da Silva, único negro dentre os entrevistados. Ele não refere nenhuma forma de discri-minação, mas admite, com humor, que sua origem humilde e racial podia pro-vocar algum estranhamento entre colegas ou servidores; nada que não tenha sido tratado com descontração.

Partilhando origens sociais diversas, vindos de diferentes regiões do país, é natural que os entrevistados tenham concluído sua formação em Direito em instituições distintas. Registra-se uma tendência de os mais antigos cursa-

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rem faculdades mais tradicionais, como a do Largo de São Francisco, em São Paulo, a exemplo de Durval Araujo, ou a Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, como o fizeram Francisco Leite Chaves e Paulo Duarte Fontes, ou a Faculdade de Direito da Guanabara, como Marly Gueiros, João Ferreira e Renato Ribeiro. Afinal, a época em que se formaram é anterior ao boom dos cursos de Direito no país. Essa tendência, naturalmente, também é partilhada por aqueles que provêm de um meio social mais elitizado. Mas, a partir dos anos 1960, o que coincide com a ampliação da presença na instituição de mem-bros oriundos da classe média, com a diversificação dos cursos jurídicos no país e com a federalização de algumas universidades, surgem bacharéis formados em outras instituições de ensino, como a Gama Filho, a Federal de Manaus, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Federal de Juiz de Fora, a Federal Fluminense, a Federal do Ceará, a Federal do Rio Grande do Sul, a Cândido Mendes e a Faculdade de Direito de Bauru.

Alguns assinalam a conquista de títulos de pós-graduação acadê-micos, como Francisco Leite Chaves, que se doutorou antes mesmo da refor-ma dos cursos superiores. Também concluíram mestrados e doutorados Vera Regina Mota Coelho e Marly Gueiros, que estavam mais ligadas à docência em nível superior no Rio de Janeiro. Vários desenvolveram cursos de especia-lização, como José Carlos Couto de Carvalho, que se formou em Magistério Profissionalizante. Alguns tinham formação em uma segunda área (além da militar), como João Ferreira de Araújo, diplomado em Enfermagem. Diver-sos entrevistados passaram pela Escola Superior de Guerra, entidade criada em 1948, segundo o modelo das war colleges norte-americanas e que deveria funcionar como um espaço de reflexão e sociabilização de militares e civis em torno de questões relacionadas ao desenvolvimento e à segurança do Brasil,

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abraçando um viés ideológico liberal-conservador. A ESG desempenhou pa-pel protagonista no processo de ebulição de ideias que levou à deposição do presidente João Goulart, com centralidade ainda durante o governo Castelo Branco. Depois disso, apesar de menos influente, continuou um espaço presti-giado de difusão de conceitos.

De um modo geral, os membros ouvidos não apontam envolvimento mais expressivo com o movimento estudantil, por falta de disponibilidade, já que muitos trabalhavam para se sustentar, ou ausência de sintonia ideológica. Uma exceção é Olympio Pereira da Silva Junior, que concorreu ao Diretório Acadêmico, sem se eleger.

Quanto às afinidades partidárias, são mais explícitas para aqueles que viveram a experiência democrática do período entre o Estado Novo e o regime de 1964, o qual extinguiu as tradicionais agremiações, decretou o bipartidaris-mo e impôs inúmeros constrangimentos ao processo eleitoral. Paulo Fontes sublinha proximidade ao antigo PSD. Renato Ribeiro e Marly Gueiros estão entre os que se identificavam mais com a UDN e, assim como Durval Arau-jo, professavam forte antigetulismo. A concluir pelo depoimento de Durval Araujo, o PTB estava, também, se afirmando junto à simpatia de alguns mem-bros quando sobreveio o movimento de 1964.

Por sua vez, Francisco Leite Chaves, nomeado em 1986 procurador--geral, sendo estranho à carreira, militou na oposição à ditadura, tendo sido eleito ao Senado pelo MDB em 1974. Mas ele não foi o único; antes dele, José Carlos Couto de Carvalho, que começou como servidor da Justiça Militar em 1966 e ingressou no MPM por concurso público em 1981, era filiado ao MDB, tendo chegado a se candidatar a um cargo eletivo.

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Os membros que ingressaram por concurso público a partir dos anos 1980, quando se processou a abertura política, não evidenciaram vínculos par-tidários, o que é típico da nova classe jurídica que se formou a partir da rede-mocratização, tendo acesso às instituições por meio de concurso público e regi-dos por novos estatutos que recriminam a militância partidária dos operadores do Direito na esfera estatal.

As nuances ideológicas reveladas estão em relativa sintonia com as identificações partidárias. Há evidente predomínio de um registro liberal-con-servador, com algumas exceções, como o senador Leite Chaves, cuja trajetória pessoal, profissional e partidária o situa junto a uma esquerda social-democrata, e José Carlos Couto de Carvalho. No outro extremo, entrevistados como Dur-val Araujo, Renato Ribeiro e Marly Gueiros exprimem o pertencimento a uma geração do período pós-guerra, que lutou contra o fascismo e se sentia mobili-zada para combater o comunismo, ameaça inflada e exacerbada pelo contexto global da Guerra Fria e pelo quadro de acirrada polarização ideológica que ca-racterizou o Brasil dos anos 1960 e 1970. Destarte, sentiram-se razoavelmente afinados com os conceitos de “guerra interna” e de “guerra psicológica” que a Lei de Segurança Nacional encampou nos anos 1960, o mesmo acontecendo com outros depoentes ingressos na instituição antes dos anos 1980.

Muitos traduzem forte engajamento espiritual. Paulo Fontes, Durval Araujo, Renato da Cunha Ribeiro, João Jayme Araújo, Marly Gueiros, João Alfredo da Silva e Jorge Dodaro figuram como exemplos de católicos prati-cantes. Rutílio Tôrres Augusto possui vínculo com a Maçonaria do Distrito Federal e Nelson Senra se mostra mais próximo a uma perspectiva espiritua-lista de matriz Espírita.

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Vários entrevistados compreendem excessos cometidos durante o re-gime militar como reprováveis, os qualificando, porém, como efeitos colaterais de uma “guerra civil” que não teria sido iniciada pelos militares, os quais, a propósito, teriam atendido, em 1964, a um chamado da sociedade civil para moralizar o Brasil e garantir a preservação de liberdades democráticas, ame-açadas, então, pelo aparente avanço da esquerda revolucionária e do sindica-lismo infrene. Alguns acreditam que o movimento de 1964 teria resgatado a nação do perigo de uma ditadura comunista, ainda que, nesse desiderato, a tenha precipitado numa outra ditadura, à de direita.

O argumento é conhecido. Embora não seja esta breve introdução o espaço pertinente para aprofundar a reflexão, cabe dizer que o conceito de guerra civil se aplica, grosso modo, ao confronto de duas forças, se não em igualdade de condições, pelo menos próximas, e que conseguem dominar fatias diferentes do território nacional. Na República, isso aconteceu entre 1893 e 1895 (ainda que tenha sido a Revolução Federalista uma guerra de guerrilhas e de movimento), e em 1932. Até mesmo para Canudos e para o Contestado, questiona-se a aplicação do conceito de guerra, muito embora a memória o tenha consagrado. Durante o regime militar, forças irregulares e dispersas tentavam fomentar a guerrilha urbana e rural contra Forças Ar-madas bem-estruturadas e que controlavam o aparelho do Estado. Também é fato que, quando o sistema repressivo atingiu o seu ápice, em 1970, com a implantação do SNI e do DOI-Codi, a esquerda já tinha suas fileiras consi-deravelmente desbaratadas, como lembram os historiadores Jacob Gorender e Carlos Fico.

Além disso, para Elio Gaspari, dentre outros, a grande motivação para a decretação do AI-5 – que muitos consideraram um golpe dentro do gol-

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pe, ou a verdadeira face da ditadura, que até então se apresentava mais tímida e algo “envergonhada” –, foi o temor do governo em relação a uma grande onda de protestos populares em decorrência das medidas de estabilização financei-ra e de reforma econômica que estavam sendo aplicadas, lembrando que, em março de 1964, a inflação alcançava a casa de 120% ao ano. O AI-5, enfei-xando poderes discricionários nas mãos da presidência da República, deveria funcionar como uma barreira de contenção para os protestos que viriam. É claro que seus efeitos foram muito além e tiveram consequências devastadoras para as liberdades civis.

Por sua vez, é fato que as ações de certos movimentos da esquerda e do próprio governo, especialmente entre 1963 e 1964, levaram água ao moi-nho da oposição, aproximando, pelo menos num primeiro momento, liberais, conservadores e até social-democratas. Em 12 de setembro de 1963, cerca de 600 cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha revoltaram-se em Brasília, motivados pela decisão do STF de reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para o Poder Legislativo, conforme previa a Constituição de 1946. O movimento dos sargentos fortalecera-se em decorrência de sua participação na Campanha da Legalidade em 1961, ao lado de Brizola e de Jango. Ocuparam importantes prédios públicos e prenderam algumas autoridades, entre as quais, o ministro do STF Vitor Nunes Leal, mais tarde atingido pelo AI-5. Recebe-ram apoio de deputados e sindicalistas. Mas, em poucas horas, a rebelião foi debelada pelo Exército.

O episódio, narrado por um dos entrevistados neste livro – Durval Moura de Araujo – foi um divisor de águas na política, pois convenceu muitos que uma conspiração estava em curso no país, com o apoio das altas autorida-des da República. Processos foram instaurados nas Auditorias Militares. Nos

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dias 19 e 20 de março de 1964, quando multidões protestavam nas ruas contra o governo e as esquerdas, aconteceu em São Paulo um rumoroso julgamento, no qual foram sentenciados dois civis, dirigentes do Sindicato dos Metalúr-gicos de SP, ambos foragidos; todos, os doze militares e os dois civis, acusa-dos de participação na Revolta dos Sargentos de 1963. O promotor – Milton Menezes da Costa Filho (aprovado em 2º lugar no concurso de 1959 e futuro procurador-geral de Justiça Militar) – não pediu a condenação de 13 dos 14 acusados (apenas seis foram, ao final, inocentados por falta de provas). O Con-selho de Justiça considerou que havia, no processo, indícios de cooperação de altas autoridades da República na prática dos crimes julgados. O juiz-auditor Tinoco Barreto queixou-se, na época, aos jornais, de pressões sofridas de parte do ministro da Justiça, Abelardo de Araújo Jurema, quem, segundo ele, teria tentado influir no resultado.

Enquanto isso, greves de trabalhadores, um atrapalhado pedido ao Congresso para decretação de estado de sítio e uma descabelada tentativa, de parte do governo, para a deposição do irrequieto governador da Guanabara, Car-los Lacerda, confirmaram, aos olhos de muitos, a quebra de hierarquia militar, a fragilidade política do presidente da República, a ameaça crescente de uma so-lução golpista e sinalizaram para o aumento do clima de desobediência, levando civis e militares moderados a se aproximarem de conspiradores de direita. Os próprios partidários centristas do PTB começavam a ter motivos para desconfiar das intenções democráticas do presidente, especialmente depois de fevereiro de 1964, quando Jango, aparentemente, endossou uma paralisação das classes con-servadoras de Pernambuco, que pretendia desestabilizar o governador Miguel Arraes, candidato mais cotado do partido à sucessão presidencial. Em meio ao caos econômico e à crescente intransigência política, Jango abraçou a estratégia

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da extrema esquerda brizolista – cuja face mais assustadora para os liberais era mostrada pelos rumores em torno da organização dos chamados Grupos dos Onze, processos citados aqui por alguns entrevistados, como Marly Gueiros e José Carlos Couto – de pressionar o Congresso a aprovar medidas polêmicas, com base em mobilizações populares de grande escala.

No entanto, não se verificou consenso entre os depoentes no que res-peita às políticas durante o regime militar. João Alfredo da Silva achou que a versão dos militares para o caso Vladimir Herzog não convencia ninguém. Paulo Fontes considerou um equívoco o desfecho em torno do inquérito do Riocentro, bem como criticou o encaminhamento dado, também em 1981, ao caso dos padres franceses Aristides Camio e François Gouriou, detidos na região do Ara-guaia, juntamente com onze camponeses, acusados de incitação à subversão.

O caso Herzog é comentado especialmente nos depoimentos de Durval Araujo, que assessorou o IPM realizado para apurar as responsabili-dades pela morte do jornalista em 1975, nas dependências do Exército, e no de Francisco Leite Chaves, que, então, na condição de senador pelo MDB, proferiu no Congresso um aparte que gerou grande irritação nos meios milita-res, fazendo correr ameaças de cassações de mandatos e abrindo conflito com o general Sylvio Frota. Durval, por sua vez, essencialmente reafirma a tese de suicídio de Herzog, sustentada pelo inquérito.

Já o caso Riocentro aparece tematizado nas entrevistas de Gilson Gonçalves, que assessorou o IPM, e de Jorge Luiz Dodaro, procurador que recebeu o inquérito na Auditoria e pediu o seu arquivamento. Ambos tecem considerações sobre o caso a partir de suas perspectivas e reafirmam as razões para o pedido. Gilson Gonçalves defende a independência do IPM, nega que

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o caso tivesse relação com outros atentados a bomba que vinham acontecendo no Brasil no final dos anos 1970, que foram atribuídos à ação de grupos de extrema-direita que resistiam ao processo de abertura política. Ele reconhece que o processo era acompanhado de perto pelo então procurador-geral de Jus-tiça Militar Milton Menezes da Costa Filho.

O caso foi reaberto em 1999, pelo procurador-geral Kleber de Car-valho Coêlho, instaurando-se novo IPM, que culminou com uma denúncia no Superior Tribunal Militar contra o general Newton Cruz e outros. O STM, contudo, não recebeu a denúncia e aplicou a anistia. O jornalista Ascânio Se-leme, de O Globo, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com as matérias sobre a reabertura do IPM do Riocentro.

Ainda no que se refere à falta de consenso em torno de certos episó-dios, Olympio Pereira da Silva Junior, Paulo Fontes e Rutílio Tôrres Augusto revelam desconforto com relação ao excesso de rigor e eventual precipitação na denúncia de crimes contra a segurança nacional por parte de alguns colegas de Procuradoria, sobretudo em Juiz de Fora. A Auditoria na cidade mineira foi pal-co para a atuação do procurador Joaquim Simeão de Faria Filho, cuja performance teria gerado críticas nos tribunais superiores e nos próprios Comandos Militares. Uma avaliação menos ácida de Simeão é oferecida por Gilson Gonçalves, quem também tece um retrato vivo da dinâmica de funcionamento da Justiça Militar em Juiz de Fora. Dentre os muitos personagens que frequentam a crônica dessas memórias, aparece Itamar Franco, futuro presidente da República, alcançado por uma prosaica denúncia arquivada pela Subcomissão-Geral de Investigações.

A interferência política externa e os problemas decorrentes da con-centração de poder, pelo procurador-geral, antes da Constituição de 1988, são

INTRODUÇÃO

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apontados por alguns entrevistados. Durval Araujo conta, por exemplo, ter sido afastado do inquérito sobre a rebelião dos sargentos em princípios de 1964, pelo procurador-geral Ivo d’Aquino e pelo próprio ministro da Justiça Abelardo Jurema. Já Paulo Fontes – sem deixar de reconhecer o grande mérito de Milton Menezes na restruturação do Ministério Público nos anos 1980 e 1990, preparando-o para a existência no regime democrático –, acredita que havia excesso de alinhamento com os militares, entre fins dos anos 1970 e princípio dos anos 1980.

Com maior ou menor grau de sintonia, a comunicação com os Coman-dos locais das Forças Armadas, durante o regime militar, é narrada nos depoimen-tos de Durval Araujo (que, afastado pelo governo Jango de suas funções, abrigou--se junto ao general Kruel, tornando-se, posteriormente, consultor jurídico do II Exército), Olympio Pereira da Silva Junior, Gilson Gonçalves e Paulo Fontes.

Além do depoimento de Durval Araujo, outros, como os de Olympio Pereira da Silva Junior e João Alfredo da Silva, sugerem como as substituições de procuradores, antes da Constituição de 1988, podiam ser manejadas pelo procurador-geral de Justiça Militar para que certos objetivos fossem alcançados.

Coincidentemente, Olympio e João Alfredo atuaram no processo mo-vido contra Chico Mendes (sindicalista seringueiro, assassinado posteriormente, em 1988), José Francisco da Silva (presidente da Contag), João Maia (delegado da Contag em Brasileia), Luiz Inácio “Lula” da Silva (então presidente do Sin-dicato dos Metalúrgicos do ABC e futuro presidente da República) e Jacó Bittar (secretário-geral do PT e futuro prefeito de Campinas), acusados, em fevereiro de 1981, de “incitar a luta armada” e fazer “apologia da vingança” entre seringuei-ros do Acre, e enquadrados por subversão na Lei de Segurança Nacional: depois

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de um ato público, em 27 de julho de 1980, em Brasileia – em desdobramento à viagem de Lula e Bittar para o lançamento do PT no Acre e, sobretudo, em protesto contra o assassinato, em 21 de julho, com três tiros à queima-roupa, de Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, fundado em 1975 –, seringueiros revoltados atacaram e mataram o fazendei-ro Nilo Sérgio de Oliveira, para muitos, então, considerado o responsável pelo crime. O julgamento aconteceu em Manaus em 9 de abril de 1981 e em 1º de março de 1984. Os acusados foram defendidos por Luiz Eduardo Greenhalgh, Heleno Fragoso, Pedro Marques da Cunha e Sepúlveda Pertence.

Na sessão em 1981, quando se ouviram os acusados, Olympio sur-preendeu ao pedir, na última hora, a prisão preventiva do Lula, atendendo, segundo ele, a uma encomenda do procurador-geral, a qual, de forma ainda mais inusitada, foi negada pelo Conselho. Ao reportar a suposta “traição” dos juízes para o então comandante militar da Amazônia, general Leônidas Pires Gonçalves, foi acalmado pelo “chefe”, que lhe disse que o presidente Figueire-do não desejava prender o Lula no momento em que patrocinava o avanço do processo de “abertura política”.

A passagem é reveladora, pois sugere que não apenas o procurador--geral distribuía missões aos substitutos, como, nesses casos, pelos menos, es-perava-se que o Conselho os acompanhasse, isto é, seus votos já viriam mais ou menos prontos para o julgamento. No caso em tela, tudo, provavelmente, não passou de um jogo de cena para enfatizar, à opinião pública, o compromis-so da presidência da República com a abertura, ao mesmo tempo em que se dava uma satisfação para a linha-dura, que não queria afrouxar a repressão. Por outro lado, os acusados, envolvidos diretamente na fundação do PT, ficaram amarrados ao processo judicial até 1984.

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Anos mais tarde, Leônidas Pires Gonçalves – que seria escolhido por Tancredo Neves, antes de sua morte, logo após a sua eleição indireta pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, primeiro ministro do Exército após o fim do regime militar, e quem garantiu a transição pacífica e a posse do vice José Sarney – concedeu entrevista em que deixou claro que não percebia Lula como subversivo e disruptivo, mas como liderança sindical integrada ao sistema político2. Lula, de fato, propunha transcender o antigo sindicalismo stalinista de confronto para um novo sindicalismo de mesa de negociações, mais ao estilo do polonês Lech Walesa. Como ele próprio declarou em uma de suas primeiras entrevistas de fôlego à grande imprensa: “Pouco importa que a direita me condene e a esquerda me massacre – estou no caminho certo.”3.

Na sessão de 1984, por sua vez, o procurador João Alfredo da Silva, também em substituição, surpreendeu os advogados de defesa ao apresentar o pedido de condenação do Lula, preparado e assinado pelo procurador Otávio Magalhães, fazendo questão de, contudo, externar sua perspectiva divergente, por não identificar, nos discursos proferidos em Brasileia, contribuições para a luta violenta entre as classes sociais. Posição idêntica tivera o procurador João Ferreira de Araújo, que passara pela Procuradoria de Manaus entre 1981 e 1982, depois da primeira audiência, na qual a prisão preventiva fora pedida. De fato, boa parte da acusação baseava-se numa frase do Lula: “Está na hora da

2 Suas palavras exatas foram: “Concepção comunista é uma coisa; regime de governo comunista é outra. [...] O que é um subversivo para nós? É um homem antissistêmico. O Presidente Lula sempre foi intrassistêmico. Ele fazia parte do segmento democrático que se chama sindicato. Ele nunca foi subversivo, no meu ponto de vista. [...] Na época vivíamos ações antissistêmicas todos os dias: assassinava-se, assaltavam-se Bancos, se raptava embaixador. [...] O regime militar salvou o Brasil de se tornar uma república sindicalista-comunista, criminosa e assassina, para desaguar, depois de muita luta, na democracia que temos agora.”. DOSSIÊ GLOBO NEWS. General Leônidas Pires Gonçalves fala sobre o Regime Militar. https://www.youtube.com/watch?v=796FbudzwI8. Publicado em 14 de maio de 2013.3 O ESTADO DE SÃO PAULO, 22 de novembro de 1981.

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onça beber água!”. Na plateia, entre outras personalidades, assistiam à sessão a cantora Fafá de Belém e a atriz Dina Sfat. O Conselho absolveu os acusados por unanimidade. Foi um dos últimos lances do capítulo dos julgamentos de civis enquadrados na Lei de Segurança Nacional pela Justiça Militar. O julga-mento também é comentado por Marisa Cauduro, que, na época, era servidora da Justiça Militar em Manaus.

A audiência de abril de 1981, na qual a prisão preventiva do Lula foi pedida pelo então procurador Olympio Pereira, acontecia sob o impacto do julgamento de 25 de fevereiro daquele ano, na 2ª Auditoria Militar, em São Paulo, no qual Lula e outros dez metalúrgicos foram condenados à revelia por incitação à desobediência coletiva às leis, por terem promovido as greves de abril de 1980 no chamado ABC paulista, mesmo depois de o TRT declarar, preliminarmente, a ilegalidade do protesto, no que foi, a posteriori, considerado um dos episódios mais emblemáticos da campanha pela afirmação dos direitos civis durante o processo de abertura política. Os sindicalistas tinham o apoio ostensivo da CNBB, da OAB e do PMDB. Em 3 de julho de 1980, o próprio Papa João Paulo II, que visitava o Brasil pela primeira vez, promovendo um clima de intensa comoção popular, recebeu membros do Sindicato dos Meta-lúrgicos de São Bernardo do Campo para uma conversa, no Estádio do Mo-rumbi, num momento em que a ameaça de cassação pesava sobre a direção da entidade. Lula e outros doze sindicalistas haviam sido presos em 20 de abril e liberados 31 dias depois.

Para o senador do PMDB, Teutônio Villela, a ausência dos advoga-dos de defesa e dos acusados durante a sessão de fevereiro, na 2ª Auditoria, fora uma forma de protesto diante da suspeita de que a sentença já estaria escrita antes do julgamento. Para o advogado Heráclito Sobral Pinto, a condenação

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era “uma demonstração clara de que a ditadura continua viva e atuante”. Para o colega Seabra Fagundes, a condenação teria “péssima repercussão no exterior, alterando a impressão que o presidente João Figueiredo causou na sua recente visita à Europa.” 4. A prisão e o julgamento, de fato, contribuíram para projetar a imagem do Lula nacional e internacionalmente, como um mártir da luta pela democracia e liderança popular em ascensão, ao mesmo tempo em que deixa-ram o governo em situação desconfortável.

Os condenados puderam recorrer em liberdade ao Superior Tribunal Militar, que anulou a sentença, determinando a convocação de novo julgamen-to, desferido efetivamente em 19 de novembro de 1981. Dessa vez, defesa e réus se fizeram presentes, recebendo da plateia apoio de personalidades como o senador Teutônio Villela e o suplente de senador Fernando Henrique Car-doso, além de muitos religiosos, com destaque para o bispo de Santo André, Dom Cláudio Humes, e para o bispo auxiliar da Abadia de Westminster, Dom Victor Guazelli. Afinal, as penas praticamente confirmaram as condenações do julgamento anterior5. Mas terminaram novamente suspensas pelo Superior Tribunal Militar, a partir de recurso da defesa. Por nove votos a três, o STM decidiu, em abril de 1982, remeter o caso à Justiça Federal para ser julgado sob a Lei de Greve, à luz da qual a matéria já estava em prescrição. O processo é lembrando neste livro nas memórias de Marco Antonio Pinto Bittar.

Assim como existem registros de alinhamento de membros do Minis-tério Público com o governo, há diversos relatos de inconformismo e de afirma-ção de independência. Durval Araujo representou para o procurador-geral de Justiça Militar contra o presidente da República, João Goulart. Muito embora

4 O ESTADO DE SÃO PAULO, 26 de fevereiro de 1981.5 O ESTADO DE SÃO PAULO, 20 de novembro de 1981.

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estivesse amparado pelo comandante do II Exército, no contexto de uma cons-piração civil-militar para a derrubada do governo que estava em curso, enfrentou, num primeiro momento, as consequências de seu ato. Paulo Fontes, mais tarde, negou-se a denunciar João Pinheiro Neto, ex-diretor da Supra, contrariando o general-presidente Costa e Silva e sendo por isso cumprimentado pelo ex-presi-dente Juscelino Kubitscheck.

José Carlos Couto de Carvalho faz questão de registrar o desem-penho de juízes que se insurgiram contra arbitrariedades, tentando barrar exageros e, em razão disso, amargaram prejuízos na carreira e acabaram por vivenciar um endurecimento ainda maior da legislação, com o AI-5 e a sus-pensão do habeas corpus. A percepção é confirmada em muitos depoimentos de advogados de presos políticos, como no de Antônio Modesto da Silveira ao CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, para quem, antes do AI-5, quan-do o juiz togado não estava sob forte coação e não era medroso, conseguiam--se habeas corpus: “Na maioria dos casos nós ganhávamos os habeas corpus, às vezes, até para trancar a continuação de um processo.”. Couto lembra, ainda, que o advogado Heleno Fragoso relaciona julgados do STM que questiona-vam certas decisões condenatórias, estabelecendo revisões, como no caso de alguns sequestros de aviões civis, mantendo o exame da prova e pondo em dúvida o peso do testemunho.

Rutílio Tôrres, que era também membro da direção da Ordem dos Advogados do Distrito Federal, está entre os que garantem jamais terem rece-bido nenhum tipo de orientação ou pedido vindo de parte dos militares ou do procurador-geral. Para ele, talvez tenha sido uma questão de sorte. Outros en-trevistados tampouco identificaram interferências diretas nas suas atividades.

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Jorge Luiz Dodaro menciona o Processo dos Coronéis, um julga-mento em pleno regime militar que durou dez dias, no qual altos oficiais foram denunciados por corrupção. Além disso, sublinha ter feito diversos pedidos de arquivamento de denúncias de réus incursos na Lei de Segurança Nacional.

João Jayme, por seu lado, alega, igualmente, ter pedido absolvições, mas bem menos nos processos relativos à chamada subversão. Para Jayme, em cerca de 70% dos casos que passavam pela Procuradoria estabeleciam-se con-denações. Durval Araujo confirma que havia muitas condenações, pois as pro-vas eram consistentes e inúmeras prisões eram em flagrante.

Olympio Pereira da Silva Junior contrariou o senador e ministro de Minas e Energia César Cals ao se negar a denunciar os jornalistas Hélio Fer-nandes e Hélio Fernandes Filho, da Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, por uma matéria que denunciava vantagem indevida na gestão do ministro.

Vera Regina Alves de Brito recusou-se, apesar das pressões de parte do procurador-geral e do general Newton Cruz, a denunciar estudantes da UNB como incursos na Lei de Segurança Nacional, por terem desrespeitado as medidas de emergência, baixadas pelo presidente João Figueiredo, e pro-movido uma passeata em 27 de abril de 1984, em protesto contra o resultado da votação no Congresso, que não aprovou a emenda Dante Oliveira, a qual propunha eleições diretas para o próximo pleito, em 1985.

Marly Gueiros defendeu, no STM, a condenação do capitão Luiz Fernando Walther de Almeida, do 30º Batalhão de Infantaria Motorizado de Apucarana, Paraná, que, em 22 de outubro de 1987, cercou e invadiu o prédio da Prefeitura com seus comandados, em protesto contra os baixos salários per-cebidos e contra a deficiência do atendimento de saúde aos militares. Apesar

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da indisciplina, Walther, com o protesto, foi aclamado por muitos militares descontentes. Sinal de novos tempos, no Congresso, o senador Jarbas Pas-sarinho criticou o MPM e o procurador Péricles Aurélio Lima de Queiroz, que pedira a condenação do militar em primeira instância. Foi replicado pelo senador Leite Chaves, que já havia deixado a chefia da instituição e reassumido suas funções no Congresso. O STM reduziu a pena e desclassificou o delito, mas manteve a condenação.

Marisa Cauduro, já em um contexto completamente diferente, mas ainda assim afirmando a autonomia institucional de forma indubitável, inves-tigou e denunciou generais, durante sua gestão na chefia do Ministério Público Militar, entre 2002 e 2004.

Para muitos, a Justiça Militar como um todo comportou-se, em ge-ral, de modo técnico e célere. Vários acreditam que ela cumpriu o seu papel no período do regime militar, como um ponto de equilíbrio entre os excessos dos órgãos repressores e as ações consideradas também condenáveis, praticadas pelos opositores mais aguerridos. Outros, ainda, como Durval Araujo, acredi-tam que a jurisdição foi fundamental para evitar a instalação, no Brasil, de uma ditadura de esquerda. Já para Jayme Araújo, a política de contenção foi pouco eficaz, pois a “Revolução perdeu o seu caminho” ao se prolongar para além do “mandato-tampão” de Castelo Branco e, muitos dos que foram atingidos pela jurisdição, hoje estão no comando da nação.

Para Couto de Carvalho, a Justiça Militar teve a sua cota de resis-tência ao excesso de arbítrio no regime militar, o que teria sido fundamental para conter “barbaridades” como as que se verificaram em outros pontos do Continente Americano, a exemplo do Chile e da Argentina. Segundo ele, pelo

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menos antes do AI-5, houve mais independência para julgar. Couto avalia, ainda, ter sido a luta armada um equívoco, pois não somente era impossível enfrentar um Exército inteiro com um punhado de guerrilheiros, como suas ações serviram de justificativa para o fechamento maior do sistema e para o aprofundamento da repressão. Por outro lado, ele reconhece que ela difundiu a figura do preso político, ajudando a sensibilizar a opinião pública para a neces-sidade da redemocratização.

Indagados sobre as denúncias de maus-tratos a presos políticos, en-trevistados tendem a concordar que, nos inquéritos assessorados pelos pro-curadores, não se registravam violências contra os réus. Já para autores como Percival de Souza, certos juízes-auditores, e também procuradores, podiam ser vistos em quartéis ou dependências policiais, integrando aquilo que o advoga-do Heleno Fragoso teria, segundo registra, chamado de “repressão militar to-gada”. A concluir da narrativa de dois episódios feita por Durval Araujo – um, envolvendo um coronel oposicionista no Paraná, e, outro, um rapaz baleado em um confronto com homens do Exército –, reconhecia-se que a judicialização da prisão era uma garantia de integridade física ao acusado. O advogado Mo-desto da Silveira, em seu depoimento ao CPDOC, citado anteriormente, está entre os que corroboram esta tese.

As revelações de violências praticadas nos DOI-Codi ou outras de-pendências da Polícia ou das Forças Armadas costumavam ser interpretadas como estratégias típicas dos réus e da defesa para deslegitimar o testemunho. Dessa forma, eram, em geral, desprezadas. Para Vera Americano e Renato da Cunha Ribeiro, por exemplo, não se faziam exames de corpo de delito, o que dificultava a reunião de elementos concretos que comprovassem tais relatos. Alguns réus eram ainda considerados, eventualmente, tão violentos, que não

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parecia estranho, a membros do Ministério Público, que tivessem sido cap-turados em condições extremas. Vários, a propósito, sentiam-se imersos em um clima de conflagração, alimentado pelas notícias de sequestros e assaltos a Bancos. Os entrevistados registram que não havia o hábito de vistoriar peni-tenciárias, como hoje.

João Jayme destaca que a margem de manobra do promotor era res-trita, tendo em vista a falta de estabilidade funcional. Além disso, não lhe era facultado o direito de inquirir as testemunhas ou os réus diretamente, que eram, nas audiências, questionados pelo juiz. De resto, a legislação os obrigava a recorrer, em casos de absolvição.

Rutílio Tôrres, que recebeu na Auditoria em Brasília muitos proces-sos construídos por colegas em Juiz de Fora, disse que dedicava o maior tempo possível para sustentar alguns pedidos de absolvição, revertendo denúncias que considerava descabidas, pois, muito embora a tendência do Conselho fosse che-gar com certa orientação, havendo pouca margem para a modificação dos votos, lastreava-se, assim, já a fundamentação para o recurso junto ao Tribunal, ainda que o pedido de absolvição, formulado pelo Ministério Público, fosse considera-do, para a Corte, prejudicado em favor do recurso da defesa. Para Rutílio, embora existissem casos graves, como atentados, roubo de armamento das Forças Ar-madas, havia muitas acusações com pouco cabimento, baseadas em fragilidades, como um livro de capa vermelha que estaria na posse de um acusado.

O advogado Modesto da Silveira, de fato, no depoimento citado ao CPDOC, registra que, mesmo depois da suspensão do habeas corpus, os defen-sores de presos políticos colaboravam muito entre si, por vezes conquistando ressonância junto ao juiz togado, junto ao Conselho ou ao Ministério Público.

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Os advogados, recorda, peticionavam, por exemplo, com um outro título, e com isso, às vezes, levavam o juiz-auditor a requisitar informações, de forma que o promotor orientava o encarregado do IPM e algo podia ser feito, como se fosse uma espécie de habeas corpus.

Marli Crescêncio, com efeito, que atuou no auge da repressão no Rio de Janeiro, se recorda de um episódio em que o Conselho absolveu por unani-midade réus acusados de um assalto a Banco que ela tentara condenar.

Rutílio observa que, diante dos relatos de réus de exposição a tortu-ras durante o período de prisão, ao término do interrogatório fazia consignar, em ata, pedido para instauração de inquérito com o fim de apuração dos fa-tos e dos responsáveis, que estariam a serviço do Estado. Afinal, o Ministério Público agia como fiscal da lei. Na mesma linha, Paulo Fontes diz que a força do Ministério Público residia na sua capacidade de representar para outras autoridades em instituições como a própria Auditoria, a Procuradoria-Geral, o Comando Militar ou o Superior Tribunal Militar. Rutílio Tôrres garante que essas representações saíam da Auditoria, mas não sabe dizer se na Administra-ção Militar eram distribuídas.

Alguns entrevistados, como Rutílio Tôrres, Vera Americano e Jayme Araújo, avaliam a dificuldade de acompanhar certos processos, em virtude de os réus serem pessoas conhecidas no seu círculo de relações, ou, justamente, porque alguns relatos, nas audiências, podiam ser perturbadores.

Nem todos tinham consciência do contexto social e político em cur-so no país quando chegaram às Procuradorias. É o caso de Marli Crescêncio, que se impressionou com a quantidade de crimes, o nível de violência e o ines-perado volume de trabalho.

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O volume de trabalho foi variável. Segundo Gilson Gonçalves, por exemplo, antes do AI-2, não chegavam à Procuradoria, em Juiz de Fora, mais de cinco processos por mês, relacionados a questões de rotina, como pequenos furtos, acidentes com viaturas, disparos acidentais, indisciplinas. Depois, saltou para 50 ou mais! Vera Americano e Marly Gueiros, entre outros, sublinham, também, que houve um aumento significativo de processos nas Auditorias quando a jurisdição passou a julgar os assaltos a Bancos. Assim, dentre os réus, a partir desse momento, havia militares, presos políticos e bandidos comuns.

Para Jayme Araújo, assim como para outros, os prazos eram espre-midos e havia pouco tempo para avaliar os casos individualmente. Não poucos processos tinham vários réus. Rutílio Tôrres comenta a enorme dificuldade vi-venciada durante a instalação da Auditoria da 11ª CJM, em Brasília, pois uma avalanche de processos, com inúmeros réus, herdada da Procuradoria de Juiz de Fora, contrastava com a falta de infraestrutura de trabalho e com a exigência de prazos exíguos. Ele conta que alguns processos prescreveram, mas que se tentava fazer o possível para que tal condição fosse evitada, pois ela represen-tava demérito para a instituição.

A pena máxima – de morte –, foi pedida para réus por dois entrevis-tados: Marly Gueiros e Durval Araujo. Marly aplicou-a a um réu em Recife, acusado de atirar à queima-roupa em um jovem porque ele vestia uma farda militar. A primeira condenação à morte, em São Paulo, foi a partir de uma denúncia formulada por Durval Araujo, estabelecida em 29 de novembro de 1971, em sessão que julgou três réus acusados de matar o tenente PM Alberto Mendes Júnior, feito refém pelo grupo de Lamarca no Vale da Ribeira em maio de 1970. O STM costumava rever as penas à morte, transmutando-as para prisão perpétua ou reclusão de 30 anos.

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A relação com os juízes parece ter sido cordial, a julgar pela maior parte dos depoimentos. Para Dodaro, por exemplo, o ambiente na Justiça Mi-litar era como o de uma família, pois todos se conheciam e havia colaboração e solidariedade. Ainda assim, a condição de hóspedes nas Auditorias provoca-va razoável desconforto para alguns. Gilson Gonçalves descreve uma situação mais conflituosa com um auditor em Juiz de Fora, que acabou sendo cassado, porque deixava de se comunicar com o Comando Militar e teria tornado pú-blica sua oposição ao regime militar.

De um modo geral, os entrevistados parecem compreender que ha-via liberdade para a atuação dos advogados de defesa nas Auditorias – muito embora vários defensores, como Sobral Pinto, George Tavares e Modesto da Silveira, dentre outros, tenham, posteriormente, relatado coações impingidas por elementos ligados aos órgãos de repressão. Alguns, como Marli Crescên-cio, impressionavam-se com o desfile de grandes luminares do Direito, que as-somavam às Auditorias para defender os presos incursos na Lei de Segurança Nacional. Já Gilson Gonçalves decepcionou-se com o desempenho de figuras consagradas, como Heleno Fragoso, mas se empolgou com o de José Luiz Cle-rot e Laércio Pelegrino, dentre outros.

Contrariamente ao que se poderia imaginar à primeira vista, as relações entre advogados e membros do Ministério Público podiam não ape-nas ser pautadas pela cordialidade e pelo respeito, como alguns enfatizam, mas também pelo convívio amical. Vera Americano, por exemplo, que foi assistente de Hélio Tornaghi na Faculdade, frequentava a casa do Evaristo de Moraes, o criminalista; jogava cartas com a sua esposa e era cliente de sua mãe, que era esteticista. Para Vera, o fato de ambos se situarem em campos opostos nas Auditorias não contaminava, de forma alguma, a relação pes-

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soal, tampouco a amizade prejudicava o desempenho profissional. Rutílio Tôrres, que integrava a direção local da OAB no Distrito Federal, também percebia serem as instâncias administráveis, mas se recorda de episódios delicados, como o do IPM instaurado contra Maurício Corrêa, então pre-sidente da OAB/DF, que chegou à Auditoria. O caso aconteceu em 1984, porque a Ordem manteve um seminário mesmo sob a vigência das medidas de emergência baixadas pelo presidente Figueiredo.

Entre abril de 1985 e março de 1987, dois opositores do regime mili-tar recém-extinto chefiaram a instituição: George Tavares, advogado de grande prestígio com forte atuação na defesa dos presos políticos; e Francisco Leite Chaves, senador pelo MDB desde 1974. Ambos sofreram resistências internas, algumas das quais transparecem em depoimentos reunidos neste livro. Porém, ao mesmo tempo, suas gestões foram fundamentais para o processo de tran-sição institucional para a democracia. Leite Chaves, em especial, promoveu, em 1986, em Brasília, o Primeiro Encontro Nacional dos Procuradores de Justiça Militar, proporcionando uma chance para os membros se conhecerem pesso-almente. Até então, apesar da existência de uma associação de classe, que ainda era jovem, havia pouco convívio e interação entre os membros, que atuavam isoladamente em suas Procuradorias. O Encontro foi importante, ao mesmo tempo, para a classe aprimorar estratégias de mobilização, a fim de acompa-nhar o processo Constituinte que se avizinhava.

Leite Chaves, além disso, tomou iniciativas então consideradas, por alguns, como polêmicas, internamente, mas que alcançaram popularidade e reconhecimento junto à opinião pública, como a reabertura do caso Rubens Paiva. Ao deixar a Procuradoria, em março de 1987, Leite Chaves responsa-bilizou cinco militares do Exército e da PM, ex-integrantes do DOI-Codi do

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Rio de Janeiro, pela tortura, morte e sepultamento ilegal do deputado Rubens Paiva em janeiro de 1971. A reabertura do caso teve ampla repercussão, mas não foi adiante na gestão subsequente.

A relação com a imprensa é abordada em alguns depoimentos. Jorge Luiz Dodaro foi jornalista junto à Auditoria Militar antes de ser nomeado defen-sor substituto e, posteriormente, promotor substituto. O perfil não era incomum, havendo registros de outros membros que seguiram igual trajetória. De um modo geral, os entrevistados sentiam-se pouco pressionados pela imprensa nos anos 1970, quando, de fato, vivia-se um período de censura. João Jayme Araújo men-ciona que somente se comunicava com repórteres que considerava confiáveis e, geralmente, quando havia interesse na divulgação de alguma informação. Alguns, como Gilson Gonçalves, que assessorou no inquérito do Riocentro, sugerem que o assédio aumentou nos anos 1980, quando diminuiu a censura. Marisa Cauduro, por sua vez, conta que uma de suas iniciativas à testa da chefia institucional, entre 2002 e 2004, foi criar uma assessoria de comunicação social, pois compreendera ser imprescindível que as instituições se comunicassem de forma moderna.

A vida associativa é narrada com riqueza em algumas entrevistas, como as de Paulo Fontes, Jorge Luiz Dodaro, Marco Antonio Pinto Bittar e José Carlos Couto de Carvalho. A Associação do Ministério Público Militar foi fundada em 30 de novembro de 1978. A entidade cresceu nos anos se-guintes e se tornou um instrumento estratégico nas lutas da classe que foram travadas, sobretudo, nos anos 1980 e 1990, quando o Ministério Público no Brasil atravessou significativa reengenharia institucional.

Parlamentares como Bernardo Cabral e Maurício Corrêa, além do próprio Leite Chaves, que depois de deixar a Procuradoria-Geral reassumiu

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suas funções no Senado, foram lembrados como personagens que apoiaram as demandas da instituição durante o período constituinte e subsequente. Funda-mentalmente, o Ministério Público Militar pugnava pela manutenção da juris-dição – cuja extinção chegou a ser aventada no início do processo constituinte –, aderia ao projeto de reforma proposto pela CONAMP e pleiteava integrar a carreira do Ministério Público da União, com isonomia completa em relação aos membros do Ministério Público Federal. Os lances dessa campanha em prol da reengenharia institucional são discutidos, especialmente, por Paulo Fontes, Jorge Luiz Dodaro, Marco Antonio Pinto Bittar e José Carlos Couto de Carvalho.

A redemocratização trouxe estabilidade funcional e autonomia insti-tucional para o Ministério Público Militar, mas coincidiu com a inauguração de um período de agitação interna. A política institucional é tema das memórias de Marco Antonio Pinto Bittar, José Carlos Couto de Carvalho e Marisa Cauduro. O processo eleitoral interno democratizou o acesso ao posto de comando da ins-tituição, porém, criou grupos de apoio que passaram a disputar projetos distintos.

São muito ricas as entrevistas de Nelson Senra, Marisa Cauduro, Marco Antonio Bittar e José Carlos Couto no que se refere às reflexões em torno das reformas administrativas pelas quais a instituição passou no período posterior à Lei Complementar nº 75, de 1993. Novas rotinas, fluxos e proce-dimentos precisaram ser sedimentados, com o fortalecimento de órgãos, por exemplo, a Câmara de Coordenação e Revisão, a Divisão de Documentação Jurídica e a própria Corregedoria-Geral.

Há dezenas de processos mencionados nas entrevistas, aqui reunidas, tanto os relativos aos crimes propriamente militares, quanto os atinentes aos delitos incursos na Lei de Segurança Nacional. Desde casos prosaicos, como

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o suposto roubo de uma vaca por um soldado, relatado por Durval Araujo, ou o julgamento de um concurso de artes, em Minas Gerais, com obras vence-doras consideradas subversivas, narrado por Olympio Pereira da Silva Junior. Dentre os processos envolvendo militares, o espectro alcança casos obscuros e desconhecidos, como o de um sargento de Marinha, acometido de uma espécie de surto, que assassinou os oficiais superiores enquanto dormiam a bordo da embarcação, em 1963, contado por Paulo Fontes, até casos de enorme reper-cussão, nacional e internacional, como um envolvendo a construção do subma-rino nuclear brasileiro, abordado por Marco Bittar, ou os acidentes havidos no espaçoporto de Alcântara, tratados por Marisa Cauduro.

Gilson Gonçalves, por sua vez, chama a atenção para um tipo de processo muito peculiar que transitou pela Justiça Militar, no início do regime instalado em 1964: os chamados crimes contra a economia popular, que leva-ram a julgamento empresários e pequenos comerciantes, como açougueiros, acusados de desrespeitar o tabelamento de preços.

Há muitas personalidades do mundo jurídico, político, cultural e re-ligioso referidas nessas memórias, relacionadas a diferentes episódios e proces-sos. Apenas dentre presidentes da República citados estão: João Goulart, Ita-mar Franco, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, José Sarney, João Batista Figueiredo, Luiz Inácio “Lula” da Silva e Dilma Rousseff. Diversos processos emblemáticos, além de alguns já comentados, foram lembrados nas entrevistas, como o dos “Oficiais Contrarrevolucionários”, o da “Guerrilha de Caparaó”, o das “Cadernetas de Luís Carlos Prestes”, o do “Padre Alípio”, o do “Cofre do Adhemar”, o dos “Padres Dominicanos”, o de “Lamarca”, o da morte do “Capitão Chandler”, o da “greve da Polícia Militar na Bahia”, o “acidente entre um pequeno avião civil e um caça”, no qual faleceu um membro do Ministério

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Público do Rio Grande do Sul e muitos outros, menos ou mais conhecidos. Sobre alguns, acrescentam-se novidades, outros olhares e perspectivas. De ou-tros, nada se disse de realmente novo em face do que já é conhecido.

Alguns entrevistados abordam, ainda, aspectos da sua trajetória pro-fissional fora do Ministério Público Militar. Olympio Pereira da Silva Junior, por exemplo, descreve a experiência vivida na AGU, no Rio de Janeiro; Renato da Cunha Ribeiro discorre sobre as atividades do escritório de advocacia de sua família, no Rio de Janeiro; João Ferreira de Araújo conta sua passagem pela Marinha, com destaque para uma viagem de circunavegação do globo realizada nos anos 1950; Francisco Leite Chaves comenta a sua passagem pelo Congresso Nacional e as célebres eleições de 1974.

No espaço desta introdução é impossível comentar todos os casos, processos e vivências individualmente. Longe vai nossa pretensão, portanto, de aqui esgotar a matéria e de referir a vasta bibliografia existente sobre esses casos. Mas se espera ter oferecido ao leitor uma perspectiva geral da multipli-cidade dos temas e das ideias desenvolvidos.

Gunter AxtDoutor em História Social USP,

Pós-doutorando em Direito UFSC

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ENTREVISTAS

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DURV

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OEntrevista realizada na residência do entrevistado, em São Paulo, no dia 26 de junho de 2015, por Gunter Axt.

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Durval Ayrton Moura de Araujo nasceu em 17 de dezembro de 1919, em Cuiabá, no Mato Grosso do Sul. É filho de Dacio Browe de Araujo e Ostilia Moura de Araujo. Casou-se com Veralice Toledo Ladeira de Araujo. Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), em 1943. Começou suas atividades na Justiça Militar como defensor dativo substituto, em 1947. No mesmo ano, em agosto, ingressou no Ministério Público Militar, nomeado para o cargo de segundo substituto de promotor de primeira entrância, para atuar na 2ª Auditoria da 2ª Região Militar, em São Paulo. Em agosto de 1948, foi nomeado primeiro substituto de promotor de primeira entrância. Em 1959, prestou concurso público para ingresso na carreira como efetivo, posicionando-se na 17ª colocação entre os aprovados. Em 9 de novembro de 1960, teve reconhecida, pelo presidente da República, a estabilidade no cargo, por ocupá-lo durante mais de cinco anos, do qual, entretanto, foi afastado, temporariamente, pelo ministro da Justiça em princípios de 1964. Foi reintegrado em abril de 1964. Em 10 de maio de 1971, foi aproveitado no cargo de procurador de terceira categoria. Em 6 de janeiro de 1972, foi promovido a procurador de segunda categoria da 1ª CJM da Guanabara. Ainda nesse ano, em junho, foi designado membro da Subcomissão-Geral de Investigações no Estado de São Paulo. Em abril de 1979, foi designado para ocupar função de assessoramento junto à chefia da Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo. Em julho de 1980, ascendeu ao cargo de procurador militar de primeira categoria, funcionando na 2ª Auditoria da 2ª CJM, em São Paulo. Em janeiro de 1990, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor é natural daqui, de São Paulo?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sou natural do Mato Grosso do Sul, onde meu pai ajudou a construir os quartéis de Bela Vista e de Ponta Porã, pela Construtora de Santos, em 1915. São quartéis desmontáveis. Foi nessa ocasião que meu pai conheceu minha mãe, natural daquele Estado, da família Moura. Ela tinha 16 anos. Tiveram dois filhos, que lá nasceram, mas logo depois mudamos para São Paulo.

A minha trajetória no Ministério Público é longa, pois tenho 95 anos de idade e acho que hoje sou o mais antigo membro da instituição: completo 96 anos agora em dezembro. Cursei o CPOR em 1943, quando estávamos em guerra. Estava no quarto ou quinto ano da Faculdade e entrei para o CPOR, que funcionava na rua Abílio Soares, em São Paulo. Quando fiz o estágio, fui promovido a capitão R/2 (que significa da reserva). Estagiei no 4º Esquadrão de Cavalaria. Lá conheci, entre outros, um cabo que se chamava Anselmo, que se envolveu no roubo de uma vaca, sobre o qual abriram inquérito. Ele foi processado na 2ª Auditoria de Guerra. Como eu já estava praticamente formado, fui defender o cabo e consegui sua absolvição: ele não tinha nada a ver com a vaca, que, simplesmente, tinha sumido. Assim, conheci a Justiça Militar.

Nessa ocasião, o auditor era o Dr. [Otávio] Steiner do Couto, antigo na Justiça Militar e na 2ª Auditoria. Quando terminou a sessão, ele me chamou e perguntou se eu gostaria de assumir uma vaga de advogado de ofício substituto que estava disponível. Eu comecei a advogar muito cedo, porque trabalhava com um tio que era advogado em São Paulo e tinha uma banca grande. Então, já conhecia alguma coisa. Concordei e ele me nomeou primeiro substituto de advogado da Justiça Militar em 1947... Faz muito tempo!

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A minha função era substituir os advogados titulares durante as férias e impedimentos. Então, eu trabalhava, em geral, de três a quatro meses por ano. Foi assim que comecei, como advogado de ofício. A composição, naquela época, era curiosa. Havia o Conselho, formado por quatro militares, um auditor, um promotor e os advogados que funcionavam nas audiências. No mesmo ano de 1947, abriu uma vaga de segundo promotor substituto e assumi esse cargo. No ano seguinte, passei a primeiro promotor substituto, até que abriu o concurso para promotor militar titular: fui aprovado e continuei na Auditoria.

Memória MPM – Esse concurso de dezembro de 1959, foi aquele em que passaram o Dr. Milton Menezes da Costa, o Dr. Ruy [de Lima] Pessôa e a Dra. Marly [Gueiros Leite]?...

Durval Ayrton Moura de Araujo – Exatamente! O senhor está bem-informado! A Marly ficou no Rio de Janeiro, depois de passar por São Paulo; o Ruy foi para a Bahia e o Milton veio para São Paulo porque vagou o cargo de titular. O Ruy e o Milton tornaram-se, anos mais tarde, procuradores--gerais. Não sei dizer qual foi o destino dos outros aprovados.

Bem, aí chegou a Revolução de 1964. Para a 2ª Auditoria seguiam todos os processos relacionados à Segurança Nacional. Assim, acompanhei o rolo todo. Funcionei, por exemplo, no processo dos chineses, em 1964. Na denúncia dos oficiais que tiveram atitude contrarrevolucionária – havia, inclusive, generais envolvidos. Funcionei na denúncia dos sindicatos e líderes sindicais engajados na agitação marxista-leninista patrocinada pelo extinto governo João Goulart.

Atuei no processo dos frades dominicanos, que levaram ao [Carlos] Marighella, em 1969. Os dominicanos acolhiam os subversivos em uma igreja

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em Perdizes. Foram julgados em setembro de 1971, sendo quatro ou cinco condenados. Foi um julgamento tumultuado, com assistência lotada, muitos religiosos na plateia e bastante interesse da imprensa.

Funcionei em muitos processos sérios, inclusive num em que logrei condenar um réu à morte. A sua vítima era um tenente da Polícia Militar, chamado Alberto [Mendes Júnior], refém do grupo de Carlos Lamarca, que foi morto a coronhadas e enterrado ainda vivo, na região de Sete Barras, interior de São Paulo. O Superior Tribunal Militar converteu a pena de morte em uma pena de prisão.

Bem, eu trabalhei durante todo esse tempo. Em janeiro de 1972, fui promovido a procurador na Guanabara e, logo depois, me aposentei, pois já tinha mais de 30 anos de serviço. Durante todos esses anos, advoguei, porque, naquele tempo, curiosamente, os promotores podiam advogar, menos contra a Fazenda Nacional e as Forças Armadas. Assim, eu mantinha um escritório grande em São Paulo. Me especializei em advocacia de família. Fiz muita separação, divórcio, desquite. Trabalhei até dois, três anos atrás, quando fui acometido de artrose em ambos os joelhos, o que dificulta meus movimentos. Tinha que me submeter a uma operação, tomar remédios e passei a andar na cadeira de rodas. Nessa ocasião, já trabalhava em casa, mas chegou um ponto em que parei, não dava mais.

Memória MPM – Estou vendo, nesta sala, muitas fotografias de cavalos, de cavaleiros, adereços que representam figuras de cavalos...

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sempre fui apaixonado por cavalos! Naquela foto sou eu, saltando. Sou sócio há anos da Sociedade Hípica Paulista, onde mantive cavalos por muito tempo. Aquela outra foto é da minha turma do CPOR, em um trabalho de campo. Já estão quase todos falecidos.

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Memória MPM – O senhor estudou Direito no Largo de São Francisco? Como era naquela época?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim. A Faculdade de Direito funcionava no antigo convento, que existe até hoje. Então, quando entrei, ainda funcionava lá; depois foi erguido o prédio atual.

Memória MPM – O senhor se recorda dos professores?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Eram todos civis, não havia nenhum padre. Lembro-me muito do Miguel Reale, que foi meu professor de História da Filosofia do Direito. Era uma Faculdade muito reconhecida e a única em São Paulo. Depois começaram a aparecer outras Faculdades.

Memória MPM – O senhor funcionou no processo relativo à chamada Rebelião dos Sargentos, acontecida em setembro de 1963?

Durval Ayrton Moura de Araujo – No processo dos sargentos propriamente dito, não, porque esse correu, salvo engano, no Rio de Janeiro. Mas houve um, também instaurado na 2ª Auditoria, em São Paulo, que, inclusive, envolvia civis.

Os sargentos reivindicavam o direito a serem elegíveis para o Poder Legislativo, porém, o STF negava-o, o que serviu de pretexto ou justificativa para a insubordinação. Em Brasília, a coisa foi feia, porque cerca de seiscentos rebeldes se apoderaram do prédio do Departamento Federal de Segurança Pública, além do Ministério da Marinha, da Rádio Nacional, entre outros. As comunicações da Capital Federal com o resto do país foram cortadas. Ministros do STF foram tomados como reféns. O presidente da República estava em viagem, não estava lá. O Exército foi eficiente e sufocou a rebelião em cerca de

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doze horas e mais de quinhentos rebeldes foram detidos e enviados para um navio-prisão no Rio de Janeiro.

O IPM instaurado na 2ª Auditoria pretendia apurar os responsáveis pelo planejamento da rebelião em São Paulo, onde ela também repercutiu. Em 19 de março de 1964, no mesmo dia em que meio milhão de paulistanos tomavam as ruas na “Marcha pela Liberdade”, protestando contra a ameaça de ditadura, 14 indiciados, doze dos quais sargentos, e dois civis foram julgados. Seis sargentos foram inocentados e os demais, condenados a quatro anos de reclusão, que então era a pena máxima para os crimes de incitamento contra a autoridade e insubordinação militar. Mas não fui eu quem funcionou no julgamento.

Os dois civis envolvidos eram os sindicalistas [ José Araújo] Placido, e [Affonso] Delellis, que era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, empossado nessa função em setembro de 1963. O Sindicato participava do Comando Geral dos Trabalhadores e apoiava abertamente a política de radicalização do presidente Jango. Delellis e Placido, assumidamente comunistas, participaram do movimento dos sargentos, já que os insurgentes também apoiavam Jango. Eles estavam com panfletos do PTB, apoiando a elegibilidade dos sargentos e o movimento todo. Conduziram sargentos em seu automóvel. Ambos foram presos em dezembro e soltos em janeiro; acabaram indo a julgamento como revéis, pois estavam foragidos.

Memória MPM – Mas a Lei de Segurança Nacional já permitia que civis fossem julgados pela Justiça Militar?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim. A Lei nº 1.802 conferia, à Justiça Militar, a competência para julgar os crimes contra a segurança externa. Mas, como eles foram presos na área do quartel de Quitaúna, do II Exército,

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e estavam envolvidos numa rebelião que tomou a Capital Federal e respingou em São Paulo e no Rio de Janeiro, considerou-se crime militar. O ponto é que, nas declarações que prestaram nos autos, eles afirmaram que tanto a Rebelião dos Sargentos, quanto as greves, deflagradas em grande número em São Paulo naqueles tempos, haviam eclodido por ordem do próprio presidente da República.

Recebendo aquelas declarações, fiz um ofício ao procurador-geral da Justiça Militar, o senador catarinense Ivo d’Aquino [Fonseca], juntei com uma cópia dos depoimentos (que afirmavam que o responsável pelas greves e pela insurreição era o João [Belchior Marques] Goulart), e solicitei providências no sentido de denunciar o presidente da República. Ainda em dezembro de 1963, como resposta, recebi uma ordem da Procuradoria para deixar o cargo, e o ministro da Justiça [Abelardo de Araújo Jurema] veio pessoalmente a São Paulo para efetuar a minha prisão. Procurei o general Amaury Kruel, comandante da Região Militar, que me recomendou desaparecer. Então, me escondi no Guarujá. Como vagou o cargo, o Dr. Milton Menezes da Costa, que havia passado no concurso de 1959, foi indicado para o meu lugar. Assim, quem fez o julgamento foi o Dr. Milton, que mais tarde tornou-se nosso procurador-geral e por quem tenho imenso respeito. Ele tinha um viés meio esquerdista e creio que aliviou a mão na hora do julgamento. Eu teria sido mais duro na denúncia e na sua sustentação, pois, para mim, a responsabilidade de altas autoridades da República, naquele episódio, era evidente. Além disso, eu teria insistido em denunciar o envolvimento do presidente da República

Memória MPM – O senhor chegou a ser demitido ou foi transferido?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Fui afastado pelo ministro da Justiça e reintegrado ao posto com a Revolução.

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Memória MPM – Mas o senhor já era concursado, como conseguiram afastar um concursado?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Precisariam fazer um processo, pois em 1960 eu requerera estabilidade, em função de decorridos mais de cinco anos no exercício da função pública. Mas eu fui para o Guarujá, onde me escondi e, em março, veio a Revolução.

Eu estava no gabinete do Kruel, quando ouvi uma conversa dele com o Jango, pelo telefone. O Kruel dizia para o presidente voltar atrás e fazer uma declaração de que era democrata, que não apoiava a quebra da hierarquia militar, tampouco o clima de insubordinação civil. Na prática, ele estava instalando uma República sindicalista. As pessoas estavam convencidas de que ele e o Brizola queriam fechar o Congresso e instalar uma ditadura comunista. Foi nesse contexto que ocorreu aquela greve dos marinheiros no Rio de Janeiro. O clima, que já era muito tenso em função da Rebelião dos Sargentos e das muitas greves, ficou insustentável. A quebra da hierarquia e da disciplina militares e a insubordinação civil estavam patentes.

Enfim, quando veio a Revolução, o Kruel mandou um recado para eu reassumir o cargo, assim, espontaneamente. Perguntei sobre o procurador-geral que havia me afastado e ele disse que era para eu reassumir por ordem dele e pronto! Aí, voltei para a 2ª Auditoria e não saí mais de lá. Em 1972, fui promovido para a Guanabara, mas continuei vinculado a São Paulo. Quando fui transferido para Brasília, solicitei minha aposentadoria. Aconteceu muita coisa nesse tempo em que atuei como promotor e como procurador... até ameaça de morte eu recebi, assim como muitas cartas anônimas.

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Memória MPM – Então, o senhor já estava em São Paulo quando estourou a Revolução. Colaborou nesse processo?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, eu estava em São Paulo. As coisas eram diferentes do que hoje em dia. Eu pertencia a uma geração de guerra, que fora treinada para estar em prontidão. Primeiro, lutamos contra o fascismo. Em seguida, veio o inimigo comunista. O mundo atravessava a Guerra Fria. A revolução cubana, acontecida havia pouco, em pleno continente americano, despertava medos e paixões. Quando eclodiu o movimento dos sargentos, encaramos nossos piores temores, fantasmas da Intentona do Prestes, de 1935, quando militares foram covardemente assassinados dentro dos quartéis, enquanto dormiam, por colegas de farda. Parte dos sargentos apoiara o Jango e o Brizola em 1961 e se falava muito nos Grupos dos Onze, que estariam se organizando por todo o país. Havia greves. Ou fazíamos alguma coisa, ou corríamos o sério risco de sermos tragados por aquela maré. Se não houvesse ocorrido a Revolução, onde nós estaríamos?

Memória MPM – Em princípios de setembro de 1964, o senhor confirmou ao jornal Estado de São Paulo que teria sido indicado pelos comandantes do II Exército e da Quarta Zona Aérea ao cargo de procurador- -geral de Justiça Militar, mas a nomeação recaiu, por aqueles dias, sobre Eraldo Gueiros Leite...

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, eu estava ligado à Revolução e uma convocação assim seria natural. Ficaria muito honrado com a nomeação, mas já fiquei honrado com a indicação e os apoios recebidos. O presidente Castelo Branco preferiu o Dr. Eraldo Gueiros, pois os dois eram amigos desde os tempos de Recife. Eu tinha muita proximidade com o Kruel. Trabalhei como

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assistente jurídico do comandante do II Exército durante muito tempo, sem prejuízo de minha função. Continuei nessa atividade mesmo depois de minha promoção para a Guanabara. Também trabalhei no gabinete do secretário de Segurança de São Paulo.

Memória MPM – O senhor mencionou vários casos nos quais atuou...

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, fiz uma quantidade enorme de denúncias. Fui campeão de prisões! Estão todas documentadas, pois guardo cópias das denúncias. A Lei de Segurança Nacional previa prisão preventiva em face da denúncia.

Memória MPM – E, em geral, havia condenação?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Havia muitas condenações, até porque as provas eram consistentes e muitas prisões, em flagrante. Recordo-me de um caso curioso. Eu estava em meu escritório e fui procurado por um colega que disse precisar muito de meu auxílio. Ele tinha um preso que estava no Hospital São Camilo, que havia sido baleado em um confronto com o pessoal do Exército e aguardava para ser operado. Nesse confronto morrera um oficial e o meu colega não queria entregá-lo para o Exército, temendo que o matassem. Preferiu entregá-lo para mim, de forma que eu poderia prendê-lo e fazer o processo, mas ele estaria sob a proteção da Justiça. Logo recebi um telefonema do Exército, questionando onde estava o preso e eu disse que não tinha conhecimento. Peguei meu carro, fui até o hospital e falei com o diretor: “Vou entregar essa pessoa para o senhor; o senhor será o responsável por ele.”. Mandei bater um termo de entrega de preso e fui embora. Parece que o rapaz sobreviveu depois da operação.

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Outra vez, fui designado para ir a Curitiba visitar um coronel que estava preso e negava a acusação de ser comunista que incitava os subalternos. Fui ao local em que ele estava preso e conversamos, mas continuou negando. Então eu disse: “Se o senhor confessar, vou abrir um inquérito e o senhor será processado. Se não confessar, não sei o que vai acontecer com o senhor, e não me responsabilizo, porque vai ser entregue aos militares.”. Voltei ao hotel, onde recebi um telefonema do coronel. Ele disse que havia pensado melhor e que me contaria tudo o que tinha ocorrido e as pessoas envolvidas. Perguntei se era de livre e espontânea vontade. Ele respondeu que preferia ser preso e condenado, mas ficar vivo. No outro dia, peguei a declaração dele e voltei para São Paulo; esse foi um dos processos em que atuei também fora de São Paulo.

Outro fato significativo foi o julgamento de um companheiro do Lamarca que foi preso. Durante o julgamento da prisão preventiva, os jornalistas estavam acampados na frente da Auditoria. Procurei o auditor, Dr. [Tinoco] Barreto, e lhe falei: “Há uma turma de jornalistas acampados lá na frente para fazer pressão, o que o senhor vai fazer referente a isso?”. Ele disse apenas que não ia se meter e falou para eu procurar o outro auditor, que era sobrinho do Dr. Paulo Carneiro Maia (professor emérito do Largo de São Francisco e célebre advogado). Subi para falar com ele, que também falou que não se envolveria. Disse-me para resolver. Eu não tinha como resolver, era apenas promotor, ele era o responsável pela Auditoria! Mas, desci e procurei o sargento Roberto, um negro de dois metros de altura, e lhe informei que tínhamos uma missão; descemos com dois praças armados, cheguei lá e disse: “Vocês têm meia hora para sair daqui, se não a Polícia vai prender vocês ou coisa pior!”. Eu estava desarmado, mas o sargento Roberto carregava uma

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metralhadora. Depois de um tempo, veio o que poderia ser o jornalista-chefe e disse que sairiam em paz. Porque eu tinha alertado que, se eles não saíssem, não me responsabilizaria pelo que viesse a acontecer, porque, naquele tempo, valia tudo!

Memória MPM – Como foi acompanhar o inquérito do [Vladimir] Herzog, um caso emblemático que impactou a história do país?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Atuei na assessoria de diversos IPMs. Quando houve o caso do Herzog fui designado, pela Procuradoria--Geral de Justiça Militar, para acompanhar o inquérito, todo o desenrolar, a produção de provas. A família do Herzog estava representada pelo José Carlos Dias, que depois veio a ser ministro da Justiça, e que moveu uma ação contra o governo. Foi por causa desse processo e da morte do [Manoel] Fiel [Filho], que, pouco tempo depois, o general Ednardo [D’Ávila Mello] acabou sendo afastado. Esse foi, talvez, o processo mais sério que assessorei.

O encarregado era o [general] Cerqueira [Lima]. Foram ouvidas as testemunhas de defesa e de acusação. Fui ao Instituto Médico Legal para ver o cadáver. Também vi as fotografias do corpo, tiradas dentro da prisão, que o retratavam enforcado com o próprio cinto. Me convenci de que se tratava de suicídio.

Memória MPM – O rabino [Henry Isaac] Sobel, ao preparar o corpo, que, como suicida, teria de ser enterrado fora do cemitério, mudou de ideia e resolveu sepultá-lo dentro, pois concluiu que o mesmo apresentava indicações de sevícias, incompatíveis com a tese de suicídio. Quando o senhor esteve no IML, não viu nenhuma marca?

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Durval Ayrton Moura de Araujo – O corpo estava nu, disposto em uma pedra, pois os judeus costumam banhar os seus cadáveres antes de sepultá-los. Não havia sinais aparentes de que tivesse sofrido tortura. Dizem que ele se suicidou porque entregara os companheiros e isso lhe provocara um drama de consciência. Parece que ele tinha uma tendência depressiva. Chegou a escrever uma carta, confessando ser subversivo. Depois a rasgou e se suicidou.

Memória MPM – A família não reconheceu, nessa carta, o estilo de redação do Herzog...

Durval Ayrton Moura de Araujo – A esposa dele reconheceu a grafia e a assinatura do Herzog. Isso está no inquérito.

Memória MPM – Um dos motivos para que a tese do suicídio tenha sido muito contestada foi porque os joelhos estavam fletidos nas fotos da prisão que foram divulgadas. Além disso, o Herzog havia se apresentado espontaneamente pela manhã e, à tarde, já estava morto.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Levantaram diversas hipóteses no sentido de tentar provar que ele fora torturado antes de morrer. Porém, na fotografia grande, que analisei durante o inquérito, ele estava pendurado com o cinto do macacão que eles davam para os presos.

Memória MPM – Costumavam deixar os presos com cinto nas celas?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Até então sim. Só começaram a tirar depois da morte do Herzog. Mas, até então, fazia parte do uniforme, um macacão com cinto, com o qual ele se enforcou.

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Memória MPM – Isso acendeu um barril de pólvora em São Paulo, ocorreu uma missa ecumênica com 40 mil pessoas na Catedral da Sé.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, estava presente o cardeal--arcebispo [dom Paulo Evaristo] Arns, que dava cobertura para os subversivos, assim como aquele lá de Recife [dom Hélder Pessoa Câmara]. A Igreja dava cobertura, recebia e protegia esse pessoal. Como o Marighela foi morto? Porque os dominicanos foram apertados e deram toda a ficha: que ele estaria tal dia na Av. Casa Branca, etc. Ele foi morto no carro pela equipe do delegado [Sérgio Fernando Paranhos] Fleury.

Memória MPM – O senhor chegou a conhecer o Fleury?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Conheci-o pessoalmente, e em circunstâncias especiais. Eu estava em Ilha Bela, num barco, quando ele chegou, também de barco, com companheiros e amigos. Quando foi pular de um barco para o outro, caiu no meio. Morreu prensado, afogado, entre os dois barcos. Nem se fez autópsia. Estava junto um delegado de Polícia, muito amigo dele, que não deixou fazer. Tecnicamente, teria de ser feita, mas aceitaram os testemunhos. Parece que teve um infarto e caiu dentro da água, ficando preso entre os dois barcos. Meu barco estava do lado. Era um delegado especial; um homem corajoso, de iniciativa, mas meio bandido também, porque prendia e torturava. Era um delegado temido...

Memória MPM – Falando nessas denúncias de maus-tratos aos presos, elas chegavam às Auditorias?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Não, nunca! Eu recebia os inquéritos já prontos, com o relatório do delegado. Não havia nenhum sinal

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concreto. Comentava-se que o sujeito poderia ter sido torturado, que teriam lhe feito isso ou aquilo. Mas, veja, todo preso diz que sofreu maus-tratos. É uma estratégia de defesa. Agora, provas concretas, não havia. O responsável pelo DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna] era o general [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que, até hoje, está sendo processado e foi citado pela Comissão da Verdade. Dizem que fazia essas coisas, apesar de ele negar. Até admito, hoje, que acontecesse algo, pois, como dizia o Jarbas [Gonçalves] Passarinho, nós estávamos em guerra. E do outro lado também se promoviam excessos. Por exemplo, morreu aquele soldado sentinela [Mário] Kozel Filho, que estava na guarita quando jogaram um carro cheio de explosivos em cima dele, um menino de 18, 19 anos. De ambas os lados se cometiam exageros. Nós enfrentávamos bandidos, assaltantes de Banco. Eles me conheciam e me procuravam, o pessoal do DOI-Codi e do DOPS. Pediam conselhos, orientação jurídica. Mas nunca tive conhecimento de nenhuma tortura.

Memória MPM – No inquérito do Herzog, testemunhas que teriam sido detidas na mesma oportunidade, como o jornalista Paulo Markun, não relataram terem sofrido tortura?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, de fato, como mencionei, houve empenho de alguns para consolidar a tese de que o Herzog teria sofrido tortura na prisão, mas não havia provas suficientes, eram declarações subjetivas; outras, não diziam respeito ao caso em si.

Memória MPM – O juiz federal João Gomes Martins, titular da 7ª Vara, foi impedido, por um mandato de segurança do governo, de ler a sentença no caso da ação civil que a família moveu contra a União. Ele estava às vésperas da aposentadoria compulsória, aos 70 anos...

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Durval Ayrton Moura de Araujo – Correto. Aí a ação foi para as mãos de um juiz bem mais moço [Márcio José de Moraes], que contestou a nossa conclusão de que se tratara de suicídio e responsabilizou a União. No final, a família recebeu uma indenização.

Memória MPM – Foi uma decisão que repercutiu no mundo inteiro. O senhor mudou a sua opinião em relação à interpretação dos fatos?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Respeito a perspectiva do juiz e, realmente, depois de tanto debate, a gente reflete. Mas eu ainda acho que faltam elementos para, objetivamente, sepultar a versão de suicídio.

Memória MPM – O general Leônidas Pires Gonçalves seguiu convicto, em suas últimas entrevistas, de que se tratava de suicídio, assim como o coronel Erasmo Dias.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim...

Memória MPM – Logo depois da morte do Herzog ocorreu a morte, em condição suspeita também, do sindicalista Manoel Fiel Filho. O senhor chegou a funcionar nesse inquérito?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Não. Foi uma fase muito difícil... Havia muita tensão e desconfiança. Ao mesmo tempo em que se começava a falar em revogação do AI-5, havia quem generalizasse, vendo comunistas e terroristas por tudo. Isto é, um sujeito tinha uma inimizade qualquer e já o acusava de ser comunista.

Memória MPM – O senhor falou sobre a pressão que os jornalistas faziam sobre o Conselho. Havia pressão dos militares?

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Durval Ayrton Moura de Araujo – Nenhuma. Sabe como é militar: cumpre ordem. A ordem era cumprir a lei. O auditor tinha a função de dar orientação jurídica ao Conselho, mas o julgamento era do colegiado. Eles não sofriam pressão nenhuma, ao contrário.

Memória MPM – O senhor chegou a pedir absolvição alguma vez?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Muito raro, pois quando o inquérito feito nos quartéis ia para a Auditoria, já estava bem-preparado: faziam a coisa de acordo com a lei. Era tudo exemplar. As denúncias do Ministério Público eram publicadas na íntegra em alguns jornais. Mas caso não houvesse caracterização de delito, eu não pedia condenação. Porém, geralmente tinha, vinha tudo bem-preparado: declaração pronta, confissão, testemunhas, corpo de delito.

Memória MPM – O senhor mencionou, antes, ter sofrido ameaças...

Durval Ayrton Moura de Araujo – Foi uma vida tumultuada. Sofri ameaças. Um dia estava em casa, e, como era solteiro, morava com a minha mãe, que já era viúva; tinha acordado cedo e minha mãe disse que havia três pessoas lá embaixo que estavam esperando por mim. Eram pessoas que o general Kruel havia enviado para me proteger, como se fossem guardas. Aí, telefonei e lhe disse que não precisava, mas ele disse que eu estava correndo riscos.

Memória MPM – Isso foi em 1964?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Exato, em plena Revolução. Em outra ocasião, na Auditoria, recebi uma caixa com uma bala de revólver dentro e um bilhete: “Esta é para vossa senhoria.”. Era difícil, porque durante esses anos todos, meu nome saía diariamente no jornal.

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Memória MPM – Quando o senhor pedia as denúncias, a tendência do Conselho e do juiz-auditor era acompanhar?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Geralmente sim, acompanhavam.

Memória MPM – E costumava haver votos divergentes?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Raramente. Militar pensa da mesma maneira. Chegava um processo lá, era comunista, era subversivo, era assaltante de Banco, não tinha dúvida que seria condenado. Mas depois, entravam com recurso para o Superior Tribunal Militar.

Memória MPM – O Tribunal costumava confirmar as condenações e sentenças?

Durval Ayrton Moura de Araujo – De um modo geral, confirmava. Mas era muito imparcial. Hoje em dia, o Superior Tribunal Militar é presidido por uma mulher; naquela época eram todos homens, generais, almirantes, junto com os civis que representavam o Ministério Público. Também havia um corpo grande de excelentes advogados que defendiam seus clientes. Os criminalistas célebres que hoje aparecem, muitos advogaram lá.

Memória MPM – Nos processos em que o senhor funcionou, algum advogado hoje célebre foi réu?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, lembro o Modesto Carvalhosa, por exemplo, que foi réu em um processo, creio que da ALN. Já se passou muito tempo, não lembro o nome de todos os que figuraram nesses processos. Mas havia muitos intelectuais envolvidos com a subversão.

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Eu trabalhei num processo sobre os médicos da Faculdade de Medicina. O advogado de um deles foi o Paulo José da Costa.

Memória MPM – O senhor se recorda dos intelectuais e artistas envolvidos? O Florestan Fernandes é dessa época.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Havia muitos comunistas no meio intelectual e artístico. Um intelectual que defende ideias socialistas é contra a propriedade privada. O Florestan Fernandes é do meu tempo, mas não lembro de tê-lo denunciado, apesar de estar envolvido em um processo. Também tinha o Caio Prado Júnior e o Sérgio Buarque de Holanda, ambos envolvidos no processo sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e Letras da USP. Em 1966, o processo das “Cadernetas do Prestes” atraiu outro processo de professores e alunos da Faculdade, dentre os quais Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, porque havia um professor citado em ambos.

Mas o processo com mais repercussão talvez tenha sido o dos frades dominicanos. O julgamento aconteceu em setembro de 1971. Quatro foram condenados a quatro anos de prisão, dentre os quais, o frei Beto. Catorze foram absolvidos por falta de provas. Os padres compareceram em massa à sessão, cujo veredicto foi anunciado perto da meia-noite. Eu tinha ido a Roma uns anos antes e trouxera um pergaminho com uma bênção papal. Então, abri a acusação exibindo o pergaminho aos padres: era eu quem representava o verdadeiro cristianismo! Não eles!

Memória MPM – O advogado Mario Simas chegou a sustentar a tese de que o Marighella teria sido transportado já morto para o carro que havia trocado tiros com a viatura da Polícia...

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Durval Ayrton Moura de Araujo – Sim, uma tese absurda. Quem teria, então, matado a investigadora [Estela] Morato, que estava no local? Esta falta de sentido dá conta do quanto foi um julgamento tumultuado.

Hoje, eu não teria resistência para enfrentar tudo isso. Estava permanentemente correndo riscos. Trabalhei muito, pegava inquéritos grandes com 10, 15 volumes.

Memória MPM – Como fazia para processar esse montante? Porque, às vezes, havia processos de muitos volumes, com dezenas de réus. O senhor tinha 15 dias, prorrogáveis por mais 15, para oferecer a denúncia.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Passamos por isso no processo das Cadernetas do Prestes. Ainda em abril de 1964, fizeram uma diligência e encontraram 18 cadernetas escritas à mão pelo próprio Prestes no apartamento dele. Parece que havia mais uma, porém, desapareceu. Nessas cadernetas, ele descrevia cada um dos participantes do movimento. Uma coisa curiosa é que, em 1966, durante o processo das cadernetas, fui para Europa, nas férias, com um grupo de amigos. Eu guardava vários processos no meu escritório e tive a cautela de devolvê-los para a Auditoria antes de partir, o que foi a sorte, porque houve um incêndio. Foi um incidente casual, mas se tivesse deixado os processos lá, teriam queimado, inclusive este do Prestes, no qual funcionei, mas não ofereci a denúncia, porque precisava de diligências. Não lembro exatamente o que aconteceu.

Memória MPM – Agora, com relação a essa caderneta que teria desaparecido, tem gente que especula que ali estariam os nomes dos militares que seriam associados ao Partido Comunista.

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Durval Ayrton Moura de Araujo – E tinha mesmo.

Memória MPM – Porque nas outras cadernetas não apareciam nomes de militares, somente civis.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Exatamente, só apareciam civis. Curiosamente, a subversão também estava dentro das Forças Armadas. Cabos, sargentos e até oficiais, como o Lamarca, que surpreendeu. Ele, inclusive, era instrutor de tiro e, quando fugiu, levou o armamento. Acabou morrendo lá na Bahia. Eu tenho um grande arquivo com cópia dessas denúncias, inclusive a que propus contra o Jango. Engraçado, quando encaminhei essa denúncia ao procurador-geral, um amigo da Sociedade Hípica, promotor da Justiça Civil, o Dario de Abreu Pereira, me cercou e disse: “Você é um maluco, você é membro do Poder Executivo, como vai denunciar o presidente da República?”. Eu perguntei o que poderia fazer: estava lá no processo! Realmente, deu essa encrenca toda.

Memória MPM – E o senhor acha que o Jango era realmente o responsável por aquelas greves?

Durval Ayrton Moura de Araujo – O Jango queria criar uma República sindicalista. Não acredito que ele fosse comunista, mas queria mudar a estrutura do Estado para implantar uma República sindicalista. Ele não aguentou e foi embora; acabou morrendo no exílio. No entanto, no meio militar havia um grande número de comunistas que se identificavam com o projeto janguista, ou eram até mais radicais, tanto é que os ministros militares, que o Jango nomeou, eram todos comunistas.

Memória MPM – Alguns foram processados, como o almirante Aragão.

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Durval Ayrton Moura de Araujo – Examinando os autos de um inquérito instaurado na 2ª Divisão de Infantaria, para apurar responsabilidades por um plano de ação contrarrevolucionária, em 1964, no qual figuravam, como indiciados, dois majores e alguns sargentos, concluí que estariam implicados três generais [Bandeira de Morais, Aluísio de Miranda Mendes e Euryale de Jesus Zerbini]. Eles já tinham passado para a reserva quando pedi o encaminhamento dos autos para o Superior Tribunal Militar. Creio terem sido cassados, mas não sei dizer como o processo se concluiu.

Memória MPM – E antes de 1964, o senhor se lembra de algum processo que tenha lhe chamado a atenção, além do caso dos sindicalistas ligados ao movimento dos sargentos?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Que tenha causado alguma comoção, não, pois, até 1964, a Justiça Militar só processava militares. Eu me lembro de ter processado um capitão homossexual, que foi expulso das Forças Armadas. Mas é só isso. O trabalho árduo veio mesmo com a Revolução: eu praticamente larguei meu escritório.

Naquela época, as Auditorias eram muito pobres e o salário, péssimo. Quando assumi o cargo, na 2ª Auditoria, tive que comprar uma escrivaninha, pois não havia nem móveis. Mas, por outro lado, não havia corrupção. Em uma ditadura onde o caminho seria amplo para a corrupção, não se ouvia falar de um único caso. Hoje sabemos que houve tortura, maus--tratos, violência, morte, mas não há registros de corrupção, como esta que ocorre hoje em dia e está estampada em todos os jornais. Os militares e seu regime tinham muitos defeitos, mas nesse aspecto em particular, não pesava nenhuma acusação.

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Quanto à violência, no princípio, a gente não acreditava que ela acontecesse. Ainda no início da Revolução, o presidente Castelo Branco convocou todos os promotores e auditores para uma reunião em Brasília, na qual ele foi categórico: disse que não permitiria, durante seu governo, qualquer ato de violência contra os prisioneiros. Hoje sabemos que, com o tempo, a coisa se degradou, saindo eventualmente do controle, nas unidades. Ainda assim, acho que foi uma reação ao clima de violência disseminado pelo terrorismo. E, além disso, não creio que tenha sido uma coisa sistêmica. O regime cometeu, sim, os seus excessos, mas não era assassino. Prova disso é que muitas das pessoas que figuraram em minhas denúncias transitam hoje por aí, fazendo política e tocando as suas vidas. Muitos são remanescentes da subversão, como o [ José] Serra, que era presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), e vários que integraram o governo Lula.

Memória MPM – O senhor chegou a funcionar em algum processo em que o Lula aparecesse?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Não, ele apareceu apenas mais tarde. Era presidente de sindicato, participava de manifestações sindicais.

Memória MPM – Surpreendentemente, depois que os militares saíram do governo, e entraram os civis, os promotores militares começaram a ser melhor remunerados.

Durval Ayrton Moura de Araujo – Exatamente! Seus proventos foram equiparados aos dos ministros do Supremo, na mesma proporção. Eu trabalhava muito, todo dia tinha sessão, que começava às 13 h e varava a noite. Às vezes, começávamos pela manhã.

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Memória MPM – E como fazia nesses processos que tinham dezenas de réus?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Eram raros. Em média, não passava de vinte réus. Nesses casos, em duas ou três sessões ouvíamos as testemunhas de acusação e de defesa, os advogados falavam e a sentença era prolatada. A Justiça Militar teve uma influência muito grande durante a Revolução. Todo mundo a acusa disso e daquilo, mas ela agiu muito bem, com imparcialidade, inclusive.

Memória MPM – O senhor acha que teve momentos com mais volume de presos e de inquéritos? Ou era um fluxo contínuo?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Era bastante contínuo. Porém, com um aumento, pois começou a caça às bruxas, especialmente a partir do AI-5. É o tipo de coisa que ocorreu nos Estados Unidos, durante o macarthismo, onde diversos artistas foram presos. Esse mesmo movimento também ocorreu na Argentina.

Memória MPM – O senhor mencionou que logrou uma condenação à pena de morte, no caso do oficial refém morto pelo pessoal do Lamarca. O senhor pediu, em outra oportunidade, pena equivalente?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Pedi a pena de morte em três processos, para nove diferentes indiciados. Em 1970, pedia-a para três assaltantes de Banco que haviam assassinado um agente federal que estava, por acaso, numa agência atacada da Caixa Federal. Presos os réus, antes que fossem julgados, evadiram-se da cadeia. Pedi-a para um jovem terrorista da ALN, que fora estudante de Medicina, indiciado em vários inquéritos por assaltos e mortes, inclusive de dois PMs com os quais trocara tiros. Em 1971, foram

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condenados os réus do grupo do Lamarca responsáveis pela morte brutal do tenente da Polícia Militar de São Paulo. Também pedi a pena de morte para o próprio Lamarca.

Memória MPM – Mais alguma coisa que o senhor queira acrescentar, deixar registrada?

Durval Ayrton Moura de Araujo – Acho que o ponto mais importante é eu ter denunciado o presidente da República ao procurador-geral. Poucos tiveram essa coragem, porque eu praticamente pertencia ao governo. Muita coisa aconteceu, cada dia era uma novidade. Houve muitos processos diferentes e presos de toda ordem, desde o simples cidadão até o intelectual, o professor, o militar de alta patente. Para você ver como o comunismo tinha entrado no país...

Memória MPM – Dr. Durval, muito obrigado por seu depoimento.

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PAUL

O DU

ARTE

FONT

ESEntrevista realizada no Rio de Janeiro, na residência do depoente, em 8 de setembro de 2015, por Gunter Axt.

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Paulo Duarte Fontes nasceu em 4 de maio de 1927, na cidade do Rio de Janeiro. É filho de Fiel de Carvalho Fontes e Maria Duarte Fontes. Casou-se com Marly Barbosa Fontes. Formou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, em 1952. Indicado, iniciou sua carreira no Ministério Público Militar como segundo substituto de promotor, em 1964. Atuou em Juiz de Fora e no Rio de Janeiro. Em 1974, ingressou na Escola Superior de Guerra (ESG), formando-se em 1975. Em março desse mesmo ano, foi promovido a procurador de segunda categoria, passando a desempenhar as suas funções em Brasília. Foi vice-presidente da Associação do Ministério Público do Brasil entre 1973 e 1976. Em novembro de 1978, para a primeira diretoria da Associação Nacional do Ministério Público Militar (ANMPM), tomou posse como presidente. Em agosto de 1980, foi promovido ao cargo de procurador militar de primeira categoria. Em maio de 1984, foi eleito corregedor-geral do Ministério Público Militar. Em abril de 1987, alcançou o mais alto grau da carreira do Ministério Público Militar, o de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 18 de outubro de 1991, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor é natural de onde?

Paulo Duarte Fontes – Nasci no dia 4 de maio de 1927. Morávamos na Avenida Atlântica, em Copacabana. Naquele tempo, a praia ainda era muito rudimentar. Fiz o ginasial, me formei no colégio São Bento, beneditino; sou muito católico. Depois, fiz exame para a Faculdade Nacional de Direito e me formei em 1952.

Memória MPM – E desse período da Faculdade, o senhor se lembra dos professores, dos estudantes? Como era a vida acadêmica?

Paulo Duarte Fontes – Eu lembro! A vida acadêmica foi excelente. Era uma turma muito boa, professores notáveis. Alguns colegas tornaram-se magistrados, outros advogaram com destaque. Dois chegaram a ser embaixadores. Formei-me e resolvi montar um escritório, no último andar do Edifício Sloper, no Rio de Janeiro. Advogava no Crime e no Cível, e nas Auditorias também, onde fiz amizade com um sujeito sensacional, falecido em 1994, chamado Carlos [Maria] de Paiva Ronco, servidor da Procuradoria--Geral de Justiça Militar. Ele me indicou para ser promotor substituto da Justiça Militar. O substituto era, então, convocado para atuar em um processo, ou dois, por ano.

Mas estourou a Revolução. Certo dia, o Ronco me telefonou, dizendo que minha indicação estava travada no SNI. Como o professor Luiz Viana Filho era meu contraparente, amigo de família, telefonei-lhe, pedindo sua intervenção. Ele disparou apenas um telefonema e garantiu-me que eu estava nomeado. Imagine: na Revolução, alguns promotores efetivos – não vou declinar os nomes – tiravam o corpo fora e se colocavam em exercício, por medo da cassação.

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Os processos eram sérios. O primeiro que jogaram sobre mim, foi o do [Roberto] Hipólito [da Costa], que matou o Alfeu [de Alcântara Monteiro]: ambos brigadeiros. Alfeu era o comandante da 5ª Zona Aérea, no Rio Grande do Sul. O [Nélson Freire Lavanére] Wanderley, ministro da Aeronáutica, tinha ido lá para prendê-lo, pois ele era considerado janguista, e o levar para São Paulo. Ele era um sujeito de posições firmes e disse: “Aqui eu não vejo homem para a minha bala.”. Começou a discutir com o Wanderley, disparou um tiro, que o pegou de raspão. Aí dois oficiais entraram na sala e ele disparou novamente. Então, o Hipólito entrou e atirou. O Alfeu morreu, alvejado por dois tiros que atingiram a lateral esquerda do tronco. Eu funcionei nesse processo e defendi a tese da legítima defesa, própria e de terceiro.

Memória MPM – A legítima defesa do Hipólito?

Paulo Duarte Fontes – Do Hipólito, sim, que foi absolvido. Naquele tempo, na Aeronáutica tinha o [ João Paulo] Burnier. Todo mundo tinha medo dele, e eu tenho a impressão de que por causa desse processo ele me respeitava. Um dia ele disse a um advogado do Ministério da Aeronáutica que queria falar comigo. Atendi ao convite. Na sala dele, me deu uma porção de nomes – não vou citá-los –, gente que eu deveria denunciar. Disse-lhe que lastimava, mas um promotor não decreta a prisão preventiva de ninguém, de sorte que ele precisaria justificar o motivo, nome por nome, encaminhar o pedido para o juiz, que abriria vistas para mim. Só então poderia dar um parecer, que seria favorável ou contrário, dependendo da minha convicção e consciência.

O Burnier esperneou. Não gostou. Mas, apesar de ser uma dessas pessoas expansivas, que ao se precipitarem podem fazer besteiras, era também um sujeito com raciocínio, de forma que acabaria se acalmando e refletindo.

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Porém, saí de lá convicto de que seria cassado e cheguei a comentar isso com meu sogro, em sua fazenda, para onde fui em seguida. Estávamos em novembro, mês de Finados. Voltando da fazenda, para visitar meus pais, casualmente me encontrei com o Burnier. Surpreendentemente, me convidou para almoçar. Eu disse: “Brigadeiro, só de ver o senhor já tremi.”. Rimos. Afinal, ficamos até amigos.

Daí, fui promovido. Um dia, cheguei em casa – foi incrível –, liguei a TV e assisti ao presidente [Artur da] Costa e Silva dizendo: “Amanhã, aquele moleque do João Pinheiro Neto vai para a cadeia, porque vai ser denunciado!”. Ele estava falando, eu ouvindo. Ele disse até uma besteira, que o Pinheiro teria cometido latrocínio. Deu para ver quando um auxiliar o cutucou, como quem fala: “Não diz besteira!”. Desliguei a TV e fui estudar um processo que havia recebido naquele dia. Era, justamente, o processo do João!

Memória MPM – O senhor já sabia que estava com o processo do ex-diretor da Supra?

Paulo Duarte Fontes – Não! Sabia apenas vagamente que tinha alguma relação com as invasões de terras em Pernambuco.

Memória MPM – Mas por que um processo sobre invasão de terras em Pernambuco foi parar nas mãos do senhor?

Paulo Duarte Fontes – Ele era do Rio, tinha feito aquele discurso na Central do Brasil, junto com o João Goulart. Comecei a estudar o processo e, por sorte minha, havia um documento que dizia que, pelo mesmo fato, ele tinha sido julgado e absolvido na Justiça Comum. Ora, em Direito existe um princípio que diz: “Non bis in idem”, isto é, ninguém pode ser denunciado duas vezes pelo

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mesmo crime. Então, acabou-se o processo. É evidente que o Costa e Silva não deve ter gostado. Mas Juscelino [Kubitschek] gostou. Ele falou com o João Pinheiro que queria me homenagear. Assim, ofereceu um jantar no apartamento do João. Foi muita gente, inclusive minha prima Regina, filha do [Olavo] Bilac Pinto. A minha mulher, Marly Fontes, que era da UDN, saiu de lá encantada com o Juscelino. Nós sentamos na mesa de honra. O jantar foi admirável. Depois disso o João ofereceu um almoço mais restrito para mim, no qual o Juscelino também estava presente. Foi muito agradável e fiquei amigo do Juscelino.

Passou-se um tempo e fui promovido para Juiz de Fora. Um colega disse-me que iria me incomodar, pois lá havia dois substitutos: um era meio louco, vivia dando denúncias ineptas; e o outro trabalhava com o SNI. Mas isso não me assustou. Quando cheguei a Juiz de Fora, havia uma sessão em andamento, e o substituto exclamava-se com dramaticidade: “Hoje, sexta-feira, minha beca está manchada de sangue, porque meu substituto vai assumir a Auditoria de Juiz de Fora!”. Esse era o tal maluco. Estava referindo-se a mim (e nesses termos), quando o substituto era na verdade ele! Fui ao Cartório e avoquei todos os processos. O juiz era um sujeito espetacular, o [Antonio Carlos] Seixas Telles, de quem me tornei muito amigo. Senti que era um homem equilibrado, sério e faria cumprir a lei. Quando acabou a sessão, vem outro cara, com um [revólver] calibre 45 na cintura, dizendo: “Eu já distribuí os processos.”. Dei um berro: “Se o senhor entrar aqui com esse revólver, vou prendê-lo, porque sou o responsável, então, o senhor tome juízo! E tem mais: o senhor não distribui processo nenhum, quem distribui é o seu chefe, que sou eu; de hoje em diante, o senhor só faz o que eu mandar!”.

Já tinham me avisado que o substituto mantinha um escritório no próprio quartel. Naturalmente, ele foi queixar-se para o general [Ariel] Pacca

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[da Fonseca], comandante da 4ª Região Militar, das minhas providências. Também fui falar com ele. Achei-o uma simpatia. Expliquei-lhe que a força de um procurador residia no poder de representar. Assim, se percebesse algo errado, eu representaria para o Superior Tribunal Militar, para o comandante do I Exército, para onde necessário fosse. Ele compreendeu e me prometeu que aquela situação, de fato, teria fim. Começamos a julgar os processos. As coisas pareciam ter entrado nos eixos, até que um dia o sujeito denunciou o escultor Guido Rocha. O senhor sabe o motivo? Porque considerou os seus Cristos subversivos! Pode? Veja aquele Cristo ali na parede [apontando para uma escultura afixada na parede do hall de entrada do apartamento]: é um Guido Rocha.

Memória MPM – É um Cristo lindo! Representando com eloquência o drama do padecimento na Cruz…

Paulo Duarte Fontes – É claro! É arte, de qualidade. Denunciar o artista por causa de suas representações do Cristo era uma estultice, uma arbitrariedade! Mas isto estava longe de ser um caso isolado. Havia outras denúncias delirantes, baseadas em superdimensionamento de aspectos triviais, sem lastro probatório algum.

Noutro processo, ele denunciou uns trinta padres! Tinha havido, em 1968, no Rio de Janeiro, aquela tragédia com um estudante secundarista, morto em um confronto com a Polícia Militar. O corpo foi velado na Assembleia Legislativa e se celebraram missas na Igreja da Candelária. Saíra, então, um ônibus de Juiz de Fora com os padres, que lá foram em solidariedade e assinaram um livro de condolências, que funcionou como um manifesto de repúdio à morte lamentável de um menino de 16 anos num acidente. Não

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havia nem mesmo uma responsabilização da Polícia Militar nesse documento. Ora, qualquer um assinaria! Eu assinaria! Houve um coronel que assinou, era irmão de dois generais, um de cabelos vermelhos e o outro de cabelos pretos.

Mas o promotor denunciou os padres: escreveu duzentas e tantas folhas. Isso foi a julgamento. Ele estava crente que faria a acusação. Avoquei o processo. Estavam crentes de que me meteriam medo, mas “meti os ferros”: a denúncia era inepta. Numa dessas tiradas, o general [Euclides] Figueiredo (irmão mais velho do presidente) tinha dito que a Igreja Católica Apostólica Romana era marxista, leninista, comunista. Eu aproveitei o momento do julgamento para protestar. O general era um sujeito formidável, o respeitava, mas não podia admitir falarem nesse tom da minha Igreja.

O Longo, que presidia Conselho, achou ruim meu protesto, mas não disse nada na hora. Quando foi passar a palavra aos advogados, advertiu-os: “Os senhores vão poder falar, mas não vão fazer como o promotor que atacou o general Figueiredo.”. Pedi novamente a palavra: “Eu lastimo que o senhor não tenha entendido, eu não ofendi o general Figueiredo; pelo contrário, o admiro, agora, ele não entende nada do que é o comunismo na Igreja Católica!”. Afinal, absolveram os padres por unanimidade. O Longo terminou a sessão com uma ironia, imitando o gesto do padre quando encerra a missa, fazendo o sinal da cruz: “Vão em paz para casa.”. Desnecessário.

Um dia cheguei à Auditoria de Juiz de Fora e havia um recado de que o general Pacca queria conversar comigo. Eu gostava dele. Ele estava preocupado, porque o substituto, [ Joaquim] Simeão [de Faria Filho], junto com o La Vangeli, tinham prendido o dentista que o atendia e o arrolado como testemunha. Um absurdo! “E o senhor não o soltou?”, perguntei. “Não, não

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soltei... Sabe como é...”. De fato, era uma posição constrangedora. Garanti-lhe que resolveria. Cheguei à Auditoria e topei com o La Vangeli, que era militar: “Tem um minutinho? É o seguinte: vou fazer uma representação contra o senhor porque prenderam uma testemunha, fizeram tais absurdos, e vou representar.”. “Chutei o balde!”, como se diz. Empalideceu. Eles “pintavam e bordavam” em Juiz de Fora; fizeram os maiores absurdos, tudo em nome da Revolução! Coisa nenhuma! Misturavam seus interesses nisso e até prejudicavam a Revolução. Ele disse: “Não fui eu, Dr. Fontes, foi o Simeão”. Aí o chamou e eu disse que representaria contra os dois. O Simeão estava fazendo hemodiálise naquela época, passou mal e tivemos que o levar ao hospital. Logo em seguida soltaram todo mundo e esqueci o caso.

Tinha um advogado lá que não gostava do Simeão: o Obregon [Gonçalves]. Ele vinha queixar-se para mim e eu dizia que estava cumprindo o meu dever. O fato é que o Simeão acomodava-se quando sentia que se defrontava com alguma autoridade. Bastou eu afirmar um pouco a minha e tudo aquietou-se. No tempo em que estive lá, não teve subversão, não apareceram novos processos de segurança nacional, sobretudo porque o Simeão parou de denunciar as pessoas. Afinal, a passagem por Juiz de Fora foi agradável e saí de lá tendo feito muitas amizades, que guardei ao longo da vida.

Fui indicado para a Escola Superior de Guerra: maravilha aquele curso! Fiz grandes amizades lá. Foi um período extraordinário. Antes de o curso começar, em janeiro de 1974, o Ruy [de Lima Pessôa] – uma das maiores inteligências na Justiça Militar, muito meu amigo – me convocou para o Rio, porque sabia que eu era de lá. Foi ele quem me indicou para a Escola. O Simeão, contudo, espalhou em Juiz de Fora que eu tinha sido afastado. Ridículo!

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Quando fui para Juiz de Fora, alugara, todo mobiliado, o apartamento que tinha na Hilário de Gouveia, em Copacabana. O locatário não só não pagou aluguel, como ainda vendeu os meus móveis, quadros, tudo! Quando cheguei de volta ao Rio de Janeiro, não tinha nada. A imobiliária era uma porcaria e não conseguiu recuperar nada. Fiquei tão chateado que vendi o apartamento para o primeiro comprador que apareceu! Mas não faz mal, pois Deus nos tira com uma mão e nos dá com a outra.

Quando terminei a Escola Superior de Guerra fui promovido para a Procuradoria de Brasília, pelo Ruy de Lima Pessôa. Foi em 1975. Quando entrei na Auditoria fiquei escandalizado: o diretor-geral mandava mais do que todo mundo; os diretores tinham carro oficial, enquanto nós ganhávamos menos do que um sargento. Eu não aceitava isso.

Fui conversar com o Gilvan [Correia de] Queiroz, do Ministério Público do Distrito Federal, e com o Miguel Frauzino [Pereira], procurador da República. A Procuradoria-Geral da República apertava-se toda em meio andar do DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público], uma vergonha! Disse-lhes que precisávamos fazer algo, pois aquela situação era insustentável. O Frauzino estava à frente da Associação Nacional dos Procuradores da República, fundada em 1973. O Gilvan já tinha uma associação, do MPDFT, que vinha do início dos anos 1960. O Ministério Público, junto à Justiça do Trabalho, estava preparando a fundação de sua associação, o que de fato aconteceu em 1979. Era tudo ainda incipiente, mas nós não tínhamos nem isso. Então, resolvi fundar a associação, o que aconteceu em novembro de 1978.

Desde fins de março de 1978, eu funcionei numa comissão constituída pelo procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, com atribuição

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para elaborar o anteprojeto de lei complementar que estabeleceria as normas gerais para a organização do Ministério Público no Brasil, que acabou sendo a Lei Complementar nº 40, de 1981. A instituição, ali, deu um salto em termos organizacionais. Então, eu sentia o quão importante era que tivéssemos, também, a nossa associação de classe, para participar com legitimidade do debate que estava acontecendo e que acabaria ganhando corpo no Brasil dos anos seguintes. Eu tinha, na verdade, alguma experiência com a vida associativa, porque fui vice--presidente da Associação do Ministério Público do Brasil de 1973 a 1976.

Mas, enfim, o início não foi fácil. A adesão dos membros era voluntária e gratuita, de forma que organizei uma entidade meio simbólica. Estávamos com pressa em ter essa representação. A partir daí, o Gilvan o Frauzino e eu, estávamos os três legitimados para lutar pelos interesses da classe. Íamos ao Palácio, ao Congresso, lutamos muito. Como eu tinha sido militar, a carteirinha abria algumas portas. O [Paulo César] Cataldo e o Inocêncio [Mártires Coelho] estavam na Casa Civil e nos recebiam. A primeira coisa que conseguimos foi um aumento. Era a “gratificação de produtividade”, um nome meio fantasioso. E a coisa melhorou um pouco, mas estávamos longe de ficarmos satisfeitos. Queriam nos dar um V.A.S., mas comprometia as finanças do governo. Um dia, o ministro Cataldo comentou comigo na barbearia: “Saiu a outra gratificação para vocês.”. Ficamos com o salário e duas gratificações. Um dia, localizei uma jurisprudência do Supremo que determinava que o salário era o somatório do vencimento-base com essas duas vantagens. A partir daí é que se calculavam os anuênios e as vantagens pessoais. Requeri ao Milton [Menezes da Costa Filho] para ele deferir. Inteligente e brilhante como é, mandou o assunto para o Tribunal de Contas, onde foi aprovado por unanimidade. Então, o problema dos vencimentos ficou mais ou menos resolvido.

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Estávamos, naqueles tempos, subordinados ao Ministério da Justiça, o que era algo que nos diminuía institucionalmente. O chefe do Ministério Público da União era o ministro da Justiça. Depois de muita luta, conseguimos mudanças. Inicialmente, ficamos subordinados ao procurador-geral da República, mas não fomos aceitos na carreira do Ministério Público Federal, não sendo considerados equivalentes aos procuradores da República.

Era norma constitucional o presidente da República receber uma tabela de aumentos elaborada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, para os magistrados, e pelo procurador-geral da República, para os membros do Ministério Público. O [ José Paulo Sepúlveda] Pertence resolveu constituir uma comissão, da qual tive a honra de fazer parte, que recomendou um aumento maior de 5% aos procuradores da República. O Pertence tinha muita força. Logo depois, foi nomeado ministro do STF. Bem, a proposta seguiu para o Congresso Nacional. Na Câmara, o projeto fora aprovado – era presidente o deputado Ulysses Guimarães. Aí seguiu para o Senado. Meu primeiro movimento foi pedir apoio ao [Francisco] Leite Chaves, que tinha sido procurador-geral da Justiça Militar, mas ele achou que o aumento era um absurdo e não queria mais nem ouvir falar no Ministério Público. Procurei, então, o Maurício [ José] Corrêa, de quem era amigo, que de fato nos ajudou. Um dia, o Maurício Corrêa alertou-me: “Deu zebra, porque o Leite Chaves está criando um caso.”. Corri para o telefone, liguei para o [Marco Antonio Pinto] Bittar, que não estava; liguei para o Milton, que disse: “Eu vou para aí voando!”. Fomos conversar com o Leite Chaves, que gostava muito do Milton, mas não gostava de mim (porque eu não gostava dele; hoje, contudo, o admiro). Foi graças ao Milton que o Leite Chaves concordou com o projeto, garantindo a sua aprovação.

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Memória MPM – E por que o Leite Chaves não queria apoiar o projeto?

Paulo Duarte Fontes – Ele não queria mais se envolver, porque já tinha dado encrenca esse assunto do aumento.

Mais tarde, o Milton, com a inteligência, o preparo e o valor dele, fez cinco emendas e as justificou maravilhosamente. O [ José Carlos] Couto [de Carvalho], o Flávio Corrêa [de Andrade] e eu fomos ao Congresso, procurar o Leite Chaves para defender e apresentar estas emendas. Novamente ele disse que não queria nem saber. Levei as emendas à Comissão de Justiça, presidida pelo Amir Lando, cujo vice era exatamente o Maurício Corrêa, que as acolheu como se fossem dele. Uma dessas emendas inseria-nos na carreira do Ministério Público da União, o que nos garantia equiparação aos procuradores da República.

Memória MPM – Isso foi depois da Constituição, na Lei nº 75, de 1993?

Paulo Duarte Fontes – Exatamente. Isto foi fundamental. Nasceu ali um novo Ministério Público.

Memória MPM – E a associação, como foi organizada?

Paulo Duarte Fontes – No início, as coisas funcionavam muito na base do improviso. Era tudo incipiente, não tínhamos verba de representação, orçamento nem sede. Mas a entidade nos legitimava. Com as medalhas que criamos, por exemplo, adocicávamos autoridades. O pessoal gosta de receber medalhas e condecorações.

Eu, a propósito, também recebi as minhas. Condecorações do Superior Tribunal Militar, da Procuradoria-Geral de Justiça Militar, duas do Exército, da Marinha e até da Rádio Patrulha. Mas a que me comove e me orgulha é esta aqui

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[indica uma placa de metal guardada em uma caixa]: foi oferecida em um jantar no qual fui homenageado, pelo Milton, os colegas procuradores e os servidores. Os funcionários eram gratos a mim porque eu ajudava a conseguir apartamentos funcionais em Brasília. Me deram essa placa...

Memória MPM – “Paulo Fontes, admiração e respeito dos amigos da PJM”.

Paulo Duarte Fontes – Nesse almoço – ou jantar, já não me recordo bem –, estavam presentes o Milton, o Andrade, a Marly Gueiros, uma mulher extraordinária, dona de grande cultura geral e de saber jurídico; delicada e educada. Tenho muito apreço e admiração por ela.

O pessoal mais moderno fez muito pela associação, continuando a nossa obra. Conseguiram institucionalizá-la de uma forma mais consistente, dotaram-na com uma boa sede, o que é muito bom. É pena, apenas, que a memória daqueles tempos iniciais não tenha sido preservada. Eu doei para a entidade livros de fotos – das cerimônias de posse dos subprocuradores- -gerais, por exemplo. A minha posse como procurador de primeira categoria, em particular, foi muito prestigiada, porque o Luiz Viana Filho se fez presente, e, em 1980, presidia o Congresso Nacional. A presença dele atraiu, também, todos os ministros do Superior Tribunal Militar. Foi um evento importante para a instituição. Já minha posse como subprocurador-geral foi em 1987. O Luiz Viana Filho ainda estava vivo e no exercício do mandato de senador, mas já não presidia mais o Congresso. Eu também tinha deixado lá os livros com os registros das medalhas e condecorações que conferíamos às pessoas – muitos eram ministros. Mas creio que tudo isso se perdeu. Não houve preocupação em guardar esses registros.

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Memória MPM – Quem o senhor caracterizaria como o núcleo do Ministério Público nesse momento? O Milton, o senhor, a Marly…

Paulo Duarte Fontes – Era o Milton! Ele chefiou o Ministério Público com descortino, entre 1977 e 1985, e, depois, novamente, já como procurador-geral eleito pela classe e nomeado a partir de lista tríplice, entre 1990 e 1994. É graças à cultura jurídica do Milton que obtivemos o fortalecimento da instituição em alguns pontos estratégicos, como mencionei. Em 1981, ele anteviu a necessidade de renovação do Ministério Público Militar e convocou e organizou um concurso público, algo que não se fazia desde os anos 1950.

Agora, claro, ele fazia o jogo dos militares. Não se metia em nada que os contrariasse, pelo menos na primeira fase de sua gestão. E teve o azar de pegar dois processos rumorosos: o dos padres franceses e o Riocentro. Aquele inquérito do Riocentro é uma vergonha! Não sou eu que digo. As críticas que o almirante [ Júlio de Sá] Bierrenbach fez em seu livro são irrefutáveis. Ele foi, talvez, o maior dos ministros militares do Superior Tribunal Militar. Já no caso dos padres franceses, ele poderia ter distribuído o processo para um procurador, mas preferiu não o fazer. O Milton entrou no Ministério Público por concurso, antes da Revolução. Ficou doze anos ao todo à frente da chefia da instituição. Isto sem mencionar o período de 1985 a 1990, durante o qual ele teve um papel fundamental, assessorando os procuradores-gerais. O Leite Chaves gostava muito dele e o Eduardo Pires Gonçalves recorria ao Milton constantemente.

Os militares não tiveram a delicadeza de nomeá-lo ministro, porque ele os agradava, quer dizer, para os militares era ideal ter um procurador-geral com o qual pudessem dialogar e pelo qual seriam atendidos. Então, é claro, tem gente que o critica hoje por esse alinhamento aos militares, mas o fato

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é que ele foi importantíssimo para a instituição. Os Ministérios Públicos do Trabalho e do Distrito Federal também devem ao Milton o reconhecimento como membros da carreira do Ministério Público da União, em igualdade de condições com os procuradores da República.

Memória MPM – Voltando ao caso do Riocentro, o senhor chegou a criticar o inquérito na época?

Paulo Duarte Fontes – Sim, embora não publicamente, em respeito aos colegas. O Célio Lobão, corregedor-geral da Justiça Militar, que discordou do arquivamento estabelecido pelo juiz Edmundo [Franca de Oliveira], acabou representando contra mim, para o presidente do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Faber Cintra, e para o Milton Menezes. Mas foi por causa de um mal-entendido. Eu exclamei, num carro: “Que palhaçada é essa que estão fazendo no Riocentro?”. Logicamente, estava referindo-me ao inquérito e ao arquivamento. Mas o chofer contou para o Célio Lobão, e disse que eu estava referindo-me à decisão dele, como corregedor-geral da Justiça Militar, de representar ao procurador-geral contra o arquivamento. Engraçada a vida... Sempre gostei muito do Célio, que era mesmo dado a uns rompantes, tinha uma personalidade forte, mas era boa gente. E, de repente, ele representava contra mim, que estava de acordo com a crítica que ele fazia ao arquivamento.

O Faber Cintra, que era bem linha-dura, percebeu que aquilo era uma bobagem, rasgou a representação; nem respondeu. O Faber Cintra me conhecia, nós havíamos sido colegas na ESG. Aliás, era um homem agradável, muito rico, dono de um quarteirão inteiro em Ipanema: completou há pouco 100 anos de vida. A sua esposa faleceu não faz muito tempo, uma senhora adorável, educada, descendente de alemães, muito religiosa.

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O Milton também desprezou aquela representação. O chofer, depois de gerar um estresse desses, foi posto de escanteio, claro. Mas veja que ousadia: telefonou com ameaças, disse que era um subversivo, que sabia onde meus filhos estudavam, que os iria pegar. Sujeito desprezível! Falei com o Marabuto, que o enquadrou e acabou o assunto.

Memória MPM – E o Eduardo Pires Gonçalves?

Paulo Duarte Fontes – Foi procurador-geral da Justiça Militar mas nunca fez uma sessão do Superior Tribunal Militar. A revista Veja publicou, certa vez, que eu teria dito que ele era incompetente, que se tivesse que dar um parecer num processo, chamaria alguém para fazê-lo. Bem, ele era irmão de um general muito importante, ministro do Exército. Eu sabia que ele iria ganhar a disputa para a vaga. Essa matéria que saiu na Veja era violenta.

Memória MPM – Entrevista sua?

Paulo Duarte Fontes – Era um grupo de promotores, que incluía o Lima Pessôa, porque eles diziam que o general Leônidas Pires Gonçalves teria oferecido ao Ruy a direção em um banco para ele se aposentar. Houve essa reunião, foram os promotores, e eu disse que a coisa toda era uma vergonha. Uma vez o Eduardo tinha entrado na sala dos procuradores dizendo que tinha um sujeito ao telefone perguntando o que era Justiça Castrense e ele não sabia responder. A Veja publicou essas coisas: ficou chato. Ele era até boa gente. Telefonou-me: “Paulinho, como é que você faz uma coisa dessas?”, eu disse: “Mas você entende de alguma coisa?”, “Não, mas eu vou contratar um cara que faça por mim”. E ficou por isso mesmo.

Memória MPM – Dizem que ele era uma “parada”.

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Paulo Duarte Fontes – Sim, era uma “parada”. Como todo sujeito que mistificava, era muito agradável, envolvente e, sobretudo, engraçado. Imagine, ia à praia em Camboriú, de trajes de banho, com um revólver 45 na cintura [risos]. Ele andava sempre armado. Mas no trato pessoal, era um sujeito muito doce.

Memória MPM – O senhor chegou a participar das comissões do concurso?

Paulo Duarte Fontes – Acompanhei a do Amazonas e a de São Paulo.

Memória MPM – E as comissões para promoção?

Paulo Duarte Fontes – Sim. Isso nem sempre era uma questão tranquila. Um colega, pelo qual tenho muito carinho, o Flávio Corrêa, do Mato Grosso do Sul, ficou chateado comigo, certa vez, quando uma comissão formada por mim, pela Marly Gueiros e pelo Milton Menezes promoveu o Kleber [de Carvalho Coêlho]. Nos anos 1980, era o ministro da Justiça quem assinava as promoções: a indicação ia para o Departamento de Justiça do Ministério e lá eles escolhiam e informavam o ministro, que nomeava. O fato é que não adiantava eu dar um voto discordante, porque a Marly sempre votava com o Milton, que queria o Flávio... então foi o Flávio que figurou em primeiro lugar na lista, seguido do Kleber e do Amauri. O Kleber tinha acabado de fazer concurso e já estava efetivo. O Amauri não tinha feito o concurso de 1981: estava com mais idade e seria até um absurdo fazer o concurso para começar a carreira outra vez. Bem, mas eu tinha alguma força no Ministério da Justiça. O Kleber me telefonou. Eu tinha operado os dentes, estava com dores e mal podia falar. Ele queria que o acompanhasse ao Ministério da Justiça, que o apresentasse ao diretor, que era um juiz do Rio Grande do Sul. O Kleber era encantador quando queria, persuasivo; falou tanto que eu os aproximei e

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ele, muito envolvente, conseguiu que o cara alterasse a lista, colocando-o em primeiro. Aí o ministro nomeou o Kleber. Num almoço de aniversário de 80 anos, que o [Antônio Brandão de] Andrade ofereceu na casa dele, na Bahia, ele gracejou, contando essa história: “O Paulo derrubou o Milton”, referindo-se à lista que saíra da Procuradoria-Geral. Eu não tinha derrubado lista de Milton nenhuma! Quem ia ser nomeado era o Flávio. Foi um mal-entendido, que custou a nomeação do Flávio e adiantou a carreira do Kleber, que se credenciou uns dez anos mais tarde para o cargo de procurador-geral. Fiquei sentido, porque eu gostava muito do Flávio.

Memória MPM – E quanto aos casos de Segurança Nacional em que o senhor atuou, apareceu, por exemplo, algum com pena de morte?

Paulo Duarte Fontes – Não. Mas houve um episódio anterior ao meu ingresso no Ministério Público Militar como substituto. Como eu defendia militares acusados na Justiça Militar, coube-me a representação do caso de um marinheiro, que se envolveu numa história triste e escabrosa. Naqueles tempos, podia acontecer de o pessoal da Marinha, oficiais, inclusive, levarem moças a bordo de um navio atracado. Essas coisas aconteciam em cidades portuárias e são retratadas pela literatura e pelo cinema, como se sabe. Essas moças, às vezes, dormiam nos navios. Havia esse marinheiro, que era homossexual, e ficava arrumando as camas, servindo aos oficiais. Certa vez, um dirigiu-lhe gracejos. Estando em companhia das meninas, passando pelo marinheiro, exclamou: “Ah, esse aí é a ‘bichinha’.”. Isto é, humilhou o cara na frente dos outros. Ele não disse nada. Quando o navio zarpou para Rio Grande, as meninas já desembarcadas, numa madrugada, enquanto todos dormiam, foi de cabine em cabine, alvejando um por um dos oficiais. Matou oito! Quando apontou o revólver para o último, este se acordou e, numa reação

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automática, gritou para o marinheiro: “O senhor está preso! Me dê a arma!”. Surpreendentemente, ele parou, se desculpou e deu a arma para o oficial. Isto é, ficou louco, teve um surto, e saiu matando os oficiais. Evidentemente que, como advogado dele, pedi exames de sanidade mental.

Memória MPM – Como advogado de ofício?

Paulo Duarte Fontes – Não, como advogado particular. Era uma situação muito chata, um dilema, porque um dos oficiais mortos tinha oito filhos, o outro deixou mais tantos órfãos, e assim por diante... Uma tragédia! Naquele momento, a pena de morte não estava prevista na legislação, mas um cara desses a mereceria. No entanto, eu o estava defendendo e conseguiria provar sua incapacidade, sua insanidade. Então, foi uma sorte quando o Carlinhos Paiva Ronco disse que havia me indicado como substituto para procurador.

Memória MPM – Ah, foi nesse momento! Em plena efervescência da Rebelião dos Sargentos...

Paulo Duarte Fontes – Sim. Em decorrência dessa indicação, precisei me afastar da defesa.

Memória MPM – E como terminou o processo?

Paulo Duarte Fontes – Eu não me recordo...

Memória MPM – Dr. Paulo, voltando ao princípio, por que a escolha pelo Direito? Havia tradição de família?

Paulo Duarte Fontes – Sim, com certeza! Meu pai foi deputado federal, Fiel de Carvalho Fontes. Meu avô, Paulo Márcio Fontes, baiano,

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foi o primeiro juiz federal do Brasil. Na Campanha Civilista, foi candidato ao governo da Bahia, apoiado pelo Rui Barbosa, que se candidatara para a presidência. Perderam para o [ José Joaquim] Seabra. Naquele tempo, as eleições não eram exatamente confiáveis. Havia, de fato, fraude no sistema, de modo que eles nunca reconheceram plenamente a derrota.

Memória MPM – A jurisdição federal foi criada pelo Campos Salles em 1890. Ele foi o primeiro nomeado?

Paulo Duarte Fontes – Sim. Tanto que um juiz federal em Brasília pediu, esses tempos, a minha filha, para lhe repassar cópias das sentenças do vovô, porque elas têm essa importância. Mas eu nunca liguei para isto. Não conheci meu avô. Dizem que era “de lascar”. Ele e meu pai não se entendiam. Meu pai nem ia à Bahia e, inclusive, abriu mão da herança quando ele faleceu – vovô era um homem muito rico. Era um daqueles homens baianos à moda antiga, autoritários, violentos, convictos de encarnarem o poder do mundo. Mas é preciso entender isso no contexto da época.

Aos domingos, em Salvador, havia uma missa importante na Igreja da Vitória, na saída da qual as pessoas tomavam o bonde que seguia pela Avenida Sete [de Setembro]. Ele morava no Campo Grande. Ele e minha avó sempre se sentavam no primeiro banco. Aquilo era uma espécie de tradição e todas as pessoas sabiam que, na saída da missa, aquele era o assento de meus avós. Um dia, um sujeito de fora, parece que de São Paulo, que logicamente desconhecia essa regra não falada, apareceu sentado no banco. Meu avô não disse nada. Sabe o que ele fez? Abriu o guarda-sol, tomou minha avó pelo braço e seguiram os dois caminhando pelo trilho, na frente do bonde, que assim teve de seguir até o Campo Grande ao passo do casal. O bonde seguiu-o! Ninguém disse nada.

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Não teve um cara que honrasse as calças para se insurgir contra o absurdo daquela situação. Porque todos sabiam que, se algo fosse dito, ele mandava prender. Essa história eles contavam como vantagem, para exemplificar o poder que tinham. Eu acho uma idiotice, nada admirável. Dizem que o pessoal o elogiava por causa de um berro estrondoso que ele dava de vez em quando. Punha a cabeça para fora da casa e berrava: “Ahhhhh!!!...”. O Campo Grande inteiro ouvia. Pode? Eu ouvia essas histórias quando era garoto...

Meu pai foi deputado federal por quatro mandatos, caindo na Revolução de 1930, do Getúlio Vargas. Papai gostava de pescar, de viver, era apaixonado por minha mãe: todo sábado trazia um buquê de rosas para ela. A vida passa rápido...

Meu avô também foi removido do posto pelo Getúlio. Aí queria que papai fosse para a Bahia para administrar as fazendas, uma área grande em Cocorobó, Canudos, onde Antônio Conselheiro promoveu seu levante. Havia muito latifúndio lá. Papai negou-se. A minha avó, conheci com noventa e nove anos, magrinha... Dizem que foi um amor de moça.

Memória MPM – Seu pai era formado em Direito, também?

Paulo Duarte Fontes – Sim, mas não advogava. Ele foi presidente da Companhia de Anilinas, Produtos Químicos e Material Técnico. John Jürgens passou a presidência para papai quando, em função da Segunda Guerra Mundial, os alemães precisaram desligar-se do quadro social de empresas, para que não entrassem na chamada lista negra e fossem, assim, proibidas de vender e comprar. Seu Jürgens era uma joia de pessoa, não tinha nada a ver com a situação política na Alemanha, mas era alemão, e isso, para os governos brasileiro e norte-americano, já bastava.

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Durante a sua gestão, papai aproveitou funcionários da Bayer, que foram afastados da empresa em função da intervenção, como o seu presidente no Brasil, o Dr. Schultz. Após a Guerra, quando a Bayer reorganizou-se no Brasil, o Dr. Schultz tornou-se seu presidente. Era um cara fantástico!

Nesse novo contexto, a Companhia Anilinas não conseguiria competir com uma empresa do porte da Bayer. Eram precisos investimentos vultosos para modernizar o parque industrial, adquirir maquinário novo, etc. Então, o Dr. Schultz ofereceu ao papai comprar as fábricas e as patentes da Anilinas, que assim abandonaria a sua produção, mas passaria a fazer a distribuição em todo o território nacional dos produtos Bayer. Era um acordo maravilhoso, porque a Anilinas passaria a ser a distribuidora exclusiva dos produtos da Bayer.

Os engenheiros da Alemanha vieram, avaliaram tudo, redigiram um estudo completo. Papai reuniu a diretoria para concluir o negócio. Na reunião, um dos conselheiros disse que era contra a avaliação feita pela Bayer, pois o preço estaria baixo. Não estava. Era um negócio excelente, para todos. Mas papai, que também era um desses homens à moda antiga, sentiu-se desautorizado. Diante daquela contestação reagiu como meu avô faria: “Olha, a coisa que eu tenho mais perto de mim é o meu chapéu.”. Botou o chapéu na cabeça e saiu da companhia, para não mais voltar. Não quis receber nem a indenização por rescisão do contrato. Aí o Dr. Schultz chamou o papai para a Bayer.

Quando a diretoria se deu conta da oportunidade que estava perdendo, procuraram o Dr. Schultz, que então afirmou: “O negócio com a Anilinas eu só faria se o Dr. Fontes fosse o presidente; como ele não quer mais a função, acabou!”. Encerrou-se o assunto. Em poucos anos, a Anilinas pediu

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falência. Insistiram no modelo de negócio, adotaram uma política suicida, foram vendendo prédios para pagar indenizações de empregados demitidos, cobrir despesas com fornecedores, etc. Com isso, iam perdendo cada vez mais mercado e desvalorizando o patrimônio. Ao final, não podiam mais nem pagar os impostos. Foi o fim de uma das mais importantes indústrias químicas do país.

Memória MPM – E a sua aposentadoria?

Paulo Duarte Fontes – Pedi-a em 1991. Foi um processo meio demorado com o Tribunal de Contas, mas acabou tudo bem. Acabei me aposentando depois que saiu a Lei nº 75, de 1993. Como aposentado, me afastei do Ministério Público. Eu tenho apenas de, todo ano, provar que estou vivo. Vou até a Representação e lá me apresento para renovação de cadastro.

Me desliguei de Brasília. Tinha uma casa linda na QI 19, conjunto 10, casa 8; era grande. Eu mantinha dois dobermanns no pátio. É um cão manso para o dono, mas assusta os outros. Late muito no portão. Alguém se incomodou e um dia jogou carne envenenada para eles. Morreram os dobermanns.

Passo a maior parte do tempo na fazenda, em Ouro Fino, Minas Gerais, onde produzimos café. Torrado e moído, faz um pó especial, chamado Medalha Milagrosa. A produção é toda exportada. Mantemos, ainda, este apartamento no Rio de Janeiro.

Acho que Deus é muito generoso comigo. Sou muito feliz. Olho para a vida e penso em tudo o que vivi com leveza e bom-humor. Não tenho

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problemas hoje em dia. Amo minha família, gozamos, graças a Deus, de saúde e levamos uma vida confortável. Eu sou muito feliz, casado há cinquenta e sete anos. Estou com 88 anos e meu maior sonho agora é celebrar bodas de diamante, quando desejo promover uma grande festa.

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Entrevista realizada na residência da depoente, no Rio de Janeiro, em 13 de abril de 2015, por Gunter Axt.

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Marly Gueiros Leite nasceu em 1º de março de 1934, no Rio de Janeiro, batizada Marly do Vale Monteiro. É filha de Sady Magalhães Monteiro, general de brigada do Exército, e Yeda da Silva Vale Monteiro. Casou-se, em 1976, com Eraldo Gueiros Leite, que foi procurador-geral da Justiça Militar entre os anos de 1964 e 1968. Formou-se em 1957, na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Cursou dois anos de doutorado em Direito Penal Militar e defendeu, posteriormente, tese em livre-docência. Foi aprovada na quinta colocação no concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público Militar realizado em 1959. Foi nomeada em julho de 1963, atuando, inicialmente, como avulsa. Foi efetivamente nomeada, em setembro de 1964, promotora de terceira categoria da 10ª Região Militar, sediada em Fortaleza. No ano seguinte, foi removida para atuar junto à 2ª Auditoria da 2ª Região Militar, em São Paulo. Em janeiro de 1966, foi promovida a promotora de segunda categoria da Justiça Militar, transferindo-se para o Rio de Janeiro. Em novembro de 1970, alcançou o cargo de promotora de primeira categoria da Justiça Militar. Em 1984, foi promovida a subprocuradora-geral de Justiça Militar, transferindo-se para Brasília. Em 1993, formou-se na Escola Superior de Guerra (ESG). Em fevereiro de 1994, aposentou-se.

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Memória MPM – A senhora é natural de onde?

Marly Gueiros Leite – Sou carioca, natural do Rio de Janeiro. Minha mãe era também carioca. Meu pai era gaúcho, do bairro da Azenha, em Porto Alegre... Militar, chegou a general de brigada. Quase todos os homens da família eram militares, tanto por parte de mãe, quanto por pai. E eu, como mulher, acho que o destino me levou para a Justiça Militar... [risos]. Eu praticamente nasci dentro de um quartel, não é verdade? Meu pai era bem “gauchão”, tocava acordeão e todos nós cantávamos. Lutou na Segunda Guerra Mundial. Da Itália, trouxe um álbum de músicas napolitanas que nos serviam de inspiração; ele tocava e eu cantava...

Memória MPM – Ah, ele participou da FEB?

Marly Gueiros Leite – Sim, foi do 9º Batalhão de Engenharia. Tenho dois irmãos também militares, um já falecido.

Memória MPM – Onde a senhora estudou?

Marly Gueiros Leite – Estudei no Rio de Janeiro. O primário e o ginasial foram no Colégio Tijuca-Uruguai, que não existe mais. O Clássico, fiz no melhor colégio da época, de estilo americano, o Instituto Lafayette. Hoje em dia, é a Fundação Bradesco. Mas foi ali que formei toda minha estrutura literária; era um colégio maravilhoso! Aprendi até a falar latim, graças a um excelente professor, Carlos Alberto Portocarrero de Miranda, que, por ser advogado, despertou meu interesse para o Direito. Mas, desde garotinha, eu gostava de estórias de crime, como as da revista X-9, que seguia o gênero policial. Depois de formada, me especializei justamente em Direito Penal.

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Entrei na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, na Rua do Catete, em 1952. Hoje está em escombros. Quando passo lá, sinto vontade de chorar. Aquilo foi um berço de cultura maravilhoso. Eu tive os maiores professores que você possa imaginar: Ary de Azevedo Franco, que foi ministro do STF; Benjamim Moraes, Afonso Arinos [de Melo e Franco], e por aí vai...

Memória MPM – O Nelson Hungria era professor lá, não é?

Marly Gueiros Leite – Sim; também me deu aulas no curso de doutorado, assim como o Roberto [Tavares de] Lyra... Eu era uma aluna aplicada. Conquistara a segunda colocação no vestibular. A prova não era de múltipla escolha, como hoje. Precisava redigir. Lembro que havia uma questão sobre a imprensa, outra sobre os versos de Camões, que precisavam ser analisados na perspectiva morfológica, na sintaxe, tudo!

Como tirava ótimas notas, no segundo ano do Direito, o professor de Direito Penal, Benjamim Moraes, convidou-me para ser sua assistente. Levei um susto: “Professor, como vou dar aula para meus próprios colegas?!”. Ele respondeu: “Se vira!”. Nunca me esqueci dessa frase. A partir daí, sempre “me virei”! Por dez anos fui assistente dele, da cadeira de Direito Penal. Adorava lecionar. Formei-me em 1957, fazendo, depois, dois anos de doutorado em Direito Penal Militar. Tratava-se de uma matéria nova, ainda pouco conhecida. Foi o destino que me conduziu para isso. Defendi a tese Espionagem militar.

Memória MPM – E depois da tese?

Marly Gueiros Leite – Emendei um concurso para a livre-docência, porque o meu foco, até então, era lecionar na Faculdade. Aí o tema da tese foi sobre a Responsabilidade penal da mulher. Em seguida, foi aberto o concurso para

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a Justiça Militar. Eu estava com tudo fresquinho na cabeça, pois tinha acabado de sair do doutorado sobre o tema. Na época, a Justiça Militar no Brasil era pouco conhecida, porque se restringia apenas a julgar o acontecido nas casernas, nos quartéis, como casos de deserção, insubmissão e outros crimes especificamente militares. Ela só veio a ter mais relevância com o advento da contrarrevolução de 1964 – não chamo de revolução, não! Chamo de contrarrevolução, mesmo! Enfim, com a Lei de Segurança Nacional, aí sim a Justiça Militar veio à tona. Eu prestara o concurso um pouco antes. Vi, um dia, no Diário Oficial: “Concurso para promotor de Justiça Militar”. Pensei: “Ah, é aqui mesmo que eu vou!” [risos]. Não comentei com ninguém.

Memória MPM – Isso foi em 1960?

Marly Gueiros Leite – Tomei posse em setembro de 1964, mas fui nomeada antes, quando a validade de quatro anos estava quase expirando...

Memória MPM – Foi seu primeiro concurso público?

Marly Gueiros Leite – O primeiro e único depois de formada! E passei em quinto lugar; a única mulher que se atreveu a se inscrever para a Promotoria Militar. Fui a primeira mulher na Justiça Militar brasileira! Como o edital do concurso não falava se era extensivo à mulher, inscrevi-me para o MPM, mas antes cheguei a consultar a banca para ver se mulher poderia fazer a prova, porque foram omissos no edital; então, fui e entrei “com a cara e a coragem”.

Memória MPM – Pois é, me conte um pouco mais sobre isso. Quantas mulheres havia na Faculdade quando a senhora estudou?

Marly Gueiros Leite – Ihhh, poucas! A maioria, com certeza, era de homens. Naquela época, as mulheres não vestiam calças compridas. Tinha

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uma colega, a Iara, baiana, que usava calça comprida e era um escândalo. Depois viemos saber que ela tinha levado uma injeção na nádega, que infeccionou e a deixara com sequelas graves, o que a impossibilitava de usar saias. Enfim, nesse ambiente de preconceito, eu abri os caminhos! Os jornais da época interessaram-se pela novidade [lendo o jornal]: “A primeira mulher a ingressar no STM”. O jornal errou, porque eu nunca cheguei ao Superior Tribunal Militar, ingressei na Promotoria da Justiça Militar. Mas tudo bem, isso não tem problema. [Lendo outro jornal] “A primeira promotora militar do Brasil”. Aqui o meu nome apareceu com “i” ao invés de “y”.

Memória MPM – [Lendo] “Como advogada com apenas dois anos de formada, assistente da cadeira de Direito Penal da Faculdade do Rio de Janeiro”... Nesta reportagem, a data marca dezembro de 1959... Então o concurso foi ainda nesse ano?

Marly Gueiros Leite – Pode ser, não me recordo ao certo...

Memória MPM – Creio que sim, pois aqui já fala sobre o seu quinto lugar. [Lendo] “Tirou o quinto lugar para concurso de promotor daquela Casa, a senhorita Marly do Vale Monteiro, descendente de uma longa estirpe de militares, realizando um sonho acalentado desde os primeiros passos da Faculdade. Ela tem dois irmãos na Academia Militar das Agulhas Negras, sendo filha do coronel Sady Magalhães Monteiro e de dona Yeda da Silva Vale Monteiro. O regulamento do concurso pedia quatro anos de exercício da profissão, e a nova promotora tem apenas dois anos, mas compensou a exigência por meio do estágio forense, quando ainda estudante. Este ano também alcançou outra vitória ao concluir o curso de doutorado.”.

Marly Gueiros Leite – Isso mesmo! Citam aí meu nome de solteira, e meu doutorado foi feito em dois anos, de 1957 a 1959. Mas, de qualquer

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forma, esse é o orgulho da minha vida, ter sido a primeira mulher a entrar no MPM. Hoje há muitas... Até procuradora-geral já teve! Até ministra, no STM! Se eu tivesse ficado lá, em Brasília, quem sabe? Mas sofri muito com a ida a Brasília, para onde segui apenas em 1984, promovida a subprocuradora-geral, que é o fim da carreira, já que o procurador-geral é por indicação e não só por merecimento. Todas as minhas promoções foram por merecimento. Comecei como promotora de terceira categoria, depois segunda, depois primeira...

Memória MPM – Sempre no Rio?

Marly Gueiros Leite – Não! [ênfase]. Eu inaugurei uma Auditoria em Fortaleza, a 10ª CJM. Ah, foi um período sofrido, logo após a minha estreia na Justiça Militar. Mandaram-me para Fortaleza, em outubro de 1964, depois da Revolução. O Brasil estava pegando fogo. Lá fui eu, sozinha; não conhecia ninguém. Hospedei-me no hotel Iracema, na Praia de Iracema. Jogadores de futebol hospedavam-se ali também. Chegavam bêbados, de madrugada. Esqueciam a chave dos apartamentos e os arrombavam, ou batiam na minha porta para eu ajudar... Ah, eu ficava desesperada. Bom, deixa para lá, isso já passou... Depois, vim para São Paulo, porque na Justiça Militar é preciso ir para onde te mandam. Em São Paulo, fiquei de 1965 a 1966. Funcionei naqueles processos, dos estivadores de Santos... Era muita responsabilidade.

Memória MPM – Em relação ao Sindicato dos Estivadores de Santos?

Marly Gueiros Leite – Isso. E o juiz-auditor era tirano. Fazia as audiências até meia-noite. A Auditoria ficava na Av. Brigadeiro Luís Antônio e eu precisava voltar para a casa da minha prima, onde me hospedava, saindo à meia-noite, sozinha... No piso inferior da Auditoria ficava um depósito de material apreendido dos subversivos: dinamite, granadas, tinha de tudo. Se

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jogassem um fósforo aceso, tudo explodiria. Era um prédio velho. Um curto- -circuito, uma faísca, poderiam ser fatais.

Memória MPM – Antes de avançarmos mais na narrativa dessa fase, me conte um pouco mais sobre o concurso. Muito difícil?

Marly Gueiros Leite – Para mim foi fácil, porque estava com tudo fresco na cabeça. Foi prova escrita e prova oral, com banca examinadora, com aqueles ministros já idosos do Superior Tribunal Militar, gente que eu não conhecia. Alguns colegas passaram na minha frente, mas de qualquer forma, foi um honroso quinto lugar.

Memória MPM – Mas a senhora acha que eles se classificaram melhor porque eram homens ou porque tiveram um desempenho melhor nas provas?

Marly Gueiros Leite – Olha, um deles eu conheci, foi um grande colega, o Dr. Milton [Menezes da Costa Filho]. Esse, posso dizer, entrou por mérito. Agora, os outros, não sei. O Milton foi um companheiro até o fim: aposentamo-nos juntos, em 1994.

Por essa época, inscrevi-me na Escola Superior de Guerra, a ESG. Era um sonho antigo. Foi outro “Clube do Bolinha” que furei. Mas a Rachel de Queiroz já tinha desbravado o caminho para as mulheres. Defendi a tese A revisão constitucional no aperfeiçoamento do Poder Judiciário brasileiro: a Justiça Militar, sua relevância e aspectos específicos. Era o momento em que se processava a revisão constitucional e se avolumava o discurso que defendia a extinção da Justiça Militar. Puro revanchismo! A Justiça Militar é a mais antiga do Brasil, tendo chegado nestas terras com as naus portuguesas. Poucos assumiam a defesa pública da Justiça Militar naquela conjuntura. Então, achei que

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seria importante fazer esse debate. A minha turma foi batizada de Juscelino Kubitschek...

Memória MPM – [Risos] A senhora não gostava muito dele?

Marly Gueiros Leite – Não! Tenho minhas restrições... Pelo amor de Deus! Construir uma cidade no meio do deserto, com tudo levado até lá de avião? Só podia dar no que deu!

Memória MPM – Em relação à dívida impagável que ele deixou, mais o rompimento com o FMI?

Marly Gueiros Leite – Sim! Nós ficamos reféns do FMI... Mas tudo bem, já passou.

Memória MPM – Por que demorou tanto tempo entre o concurso e a posse?

Marly Gueiros Leite – Porque as nomeações eram efetuadas na medida em que iam surgindo as vagas... Fiquei no aguardo; era a quinta. São essas coisas do destino. Minha designação saiu em janeiro de 1963, quando apresentei todas as credenciais de aptidão para o exercício de função pública. Minha nomeação chegou em julho de 1963. Fiquei funcionando avulsa, atuando em IPMs, até assumir uma substituição, no Rio de Janeiro. Meu diploma de nomeação foi assinado pelo João Goulart. Por ironia, no final de seu governo, nomeou-me promotora. Sem comentários!

Memória MPM – E como foi esse início de carreira?

Marly Gueiros Leite – Foi um período difícil para mim. Recém--formada, recém-designada... Não tinha muita prática; apenas a doutrina, a teoria. Não havia lidado com nenhum processo de Direito Penal Militar.

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Aprendi na marra, no tal do “se vira!”. Não tive ninguém para me orientar, não. O Eraldo, que seria meu marido, no futuro, conheci quando tomei posse, pois ele era, então, o procurador-geral da Justiça Militar, nomeado pelo general Humberto Castelo Branco. Os dois eram muito amigos. O Eraldo era promotor em Recife e o Castelo Branco apreciava consultá-lo sobre assuntos relacionados aos processos jurídicos. Aí, a relevância da Justiça Militar já era um fato concreto. Mas eu não tinha nada a ver com Eraldo nessa época. Aliás, foi ele quem me mandou para Fortaleza! [risos]. Era meu chefe.

Memória MPM – [Risos] Então, foi depois que aconteceu a união de vocês?

Marly Gueiros Leite – Só nos casamos em 1976, depois que ele enviuvou. Isso faz muito tempo...

Memória MPM – Ele enviuvou em que ano?

Marly Gueiros Leite – Acho que foi em 1974. Não cheguei a conhecer a esposa. Tinham cinco filhos. Um faleceu num desastre. Comigo, teve uma menina. Depois, foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar. Precisou aposentar-se para ser governador de Pernambuco. Casei-me com ele quando já estava viúvo e aposentado.

Memória MPM – Como foi a ida dele para o governo de Pernambuco?

Marly Gueiros Leite – Tomou posse no governo em março de 1971. Ele não suportava política! Foi praticamente forçado a ser governador... Foi eleito indiretamente, depois de indicado pela presidência da República e pela Arena. Era quase um tipo de nomeação... Ele não tinha perfil de político, era jurista... A família dele toda é ligada ao Direito. Meu cunhado, Evandro

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Gueiros Leite, foi ministro do STJ. O primo deles, Nehemias Gueiros, um grande jurista, muito reconhecido na OAB e no Tribunal Internacional de Haia. Hélio Gueiros, outro primo, mais distante, governou o Pará.

Memória MPM – E seu trabalho na Promotoria?

Marly Gueiros Leite – Acho que me dei bem na Justiça Militar. Os ministros elogiavam-me muito, porque eu tinha algumas opiniões ousadas! Cheguei a provocar a modificação de um acórdão do Supremo Tribunal Federal num caso de crime de dano culposo, previsto no Código Penal Militar. Coitado do réu naqueles tempos, pois todo civil que batesse de carro com uma viatura militar, no trânsito, na via pública, era julgado e, em geral condenado, pela Justiça Militar. Causava um mal-estar terrível! Nos meus pareceres, sempre pedia a absolvição do civil. Mas eles mantinham a sentença condenatória. Porém, “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Furei. Foi uma grande vitória quando o Supremo reconheceu que casos como esse não deveriam ser julgados pela Justiça Militar. Então, mudei o acórdão do Supremo.

Memória MPM – Isso resultou num dos muitos elogios do MPM ao seu desempenho...

Marly Gueiros Leite – Sim, há vários. Tenho, inclusive, medalhas das três Forças: Marinha, Aeronáutica e Exército. Depois que me aposentei, fui várias vezes a Brasília, para receber medalhas. Modéstia à parte!

Memória MPM – Sim, segundo os nossos registros: Medalha da Ordem do Mérito Jurídico-Militar, em 1962; Medalha da Ordem do Mérito Judiciário, em 1980; Medalha da Ordem do Mérito Judiciário-Militar, Alta Distinção, em

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1986; Santos Dumont, por destacados serviços prestados à Aeronáutica brasileira, também em 1986; Medalha da Ordem do Mérito Militar, no grau oficial, em 1986; o Mérito Tamandaré, em 1992; Medalha do Mérito Público Militar, em 2001...

Marly Gueiros Leite – Sim, creio que é isso. E teve minha formatura na ESG em 1993. Também fui procuradora-geral, por alguns meses, substituindo o Dr. Milton. Mas aquele caso do jipe do Exército abalroado por um civil foi uma das maiores conquistas da minha vida.

Memória MPM – Quais os outros casos em que a senhora funcionou? Tem lembrança de alguns?

Marly Gueiros Leite – Sim, lembro-me de vários, mas... alguns foram escabrosos. Teve o caso do almirante Cândido [da Costa] Aragão, comandante dos Fuzileiros Navais. A marujada toda o carregava no colo, numa época em que a hierarquia estava desvirtuada, não havia ordem nem disciplina. Os sargentos estavam por cima...

Memória MPM – Em relação à rebelião dos marinheiros em 1964? Mas a senhora estava em Fortaleza, em 1964, não?

Marly Gueiros Leite – O processo rolou por muito tempo. Ele foi julgado diretamente no Superior Tribunal Militar, pela sua patente, por ser almirante. Foi acusado de chamar os fuzileiros para trabalharem na reforma de uma residência sua na Ilha do Governador. Teria desviado material da Marinha, como madeira, cimento, entre outras coisas, mandando os subordinados levarem a carga para a tal obra, na qual ainda tinham de trabalhar, como operários de construção. Ele tinha muita simpatia junto aos subordinados, que não se queixavam. Mas isso deu um processo e, é claro, foi absolvido!!!

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Atuei, também, nas cadernetas de Luís Carlos Prestes, secretário--geral do PCB (partido que era formalmente clandestino), encontradas na devassa que se fez na casa dele, em abril de 1964. Os nomes de todos estavam lá! Acho até que foi uma infantilidade dele: era só abrir e ver, nome por nome, todos seus apaniguados. Reuniões, empresas de fachada, atribuições de cada membro. Foram indiciadas mais de 70 pessoas e condenadas meia centena, em junho de 1966, na Auditoria de São Paulo. O Prestes foi condenado a 14 anos de prisão à revelia. Não me lembro direito de todos os detalhes, foi um processo tão grande... Milhares de páginas e muitos volumes. Aliás, por ser conhecida como anticomunista, todos os processos desse gênero o procurador--geral mandava serem distribuídos para mim. Eu pegava processo de vinte, trinta, até cinquenta volumes, e ficava trabalhando até de madrugada, para dar conta de tudo.

Memória MPM – Tinha quinze dias para oferecer a denúncia, não?

Marly Gueiros Leite – Sim, mas me refiro aos pareceres, não às denúncias. A denúncia era nas Auditorias. E nesse período, como procuradora de primeira categoria, só dava parecer.

Memória MPM – A principal diferença entre as categorias era esta?

Marly Gueiros Leite – Você funciona como promotor, acompanha todo o processo, e depois oferece a denúncia, faz sua exposição oral no julgamento, para condenação ou absolvição. Eu, muitas vezes, inverti o meu papel de promotora, e assumi quase a função de advogado de defesa, porque era cada caso terrível que recebíamos lá! E promotor, quando pede absolvição, na verdade não fala nesses termos; havia, isso sim, a prática de “pedir justiça”, que é a maneira de o promotor pedir absolvição.

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Memória MPM – Algum exemplo?

Marly Gueiros Leite – O caso dos Grupos dos Onze, do [Leonel de Moura] Brizola, terrível! Eu ficava ouvindo a Rádio da Legalidade, do Brizola, ele incitando as massas a formarem os tais grupos, como se fossem times de futebol. Gente analfabeta, que não sabia nem escrever, uns pobres coitados. A prova contra eles eram listas de papel almaço, com os nomes “assinados” com o dedão. Eu podia condenar essa gente? De jeito nenhum! Nunca condenei um homem que botava o dedão nessas listas do Grupo dos Onze. Por outro lado, houve, também, os casos das subversões lá em São Paulo, como o com os homens da orla marítima. Era cada um... truculentos estes estivadores! Eu me munia de toda a coragem necessária, apontava para eles e relatava os malfeitos. Ainda era muito moça!

Memória MPM – A senhora sofreu alguma represália?

Marly Gueiros Leite – Graças a Deus, não! Eu tinha segurança, em especial, um sargento da Polícia Militar, muito leal, já falecido. Esperava-me no Tribunal, pegava meus processos e me levava até meu gabinete. Nunca senti ameaças diretas. Apenas uma vez, numa época em que chefiava a Representação da Procuradoria-Geral no Rio de Janeiro, me senti um pouco assustada, por um maluco que entrou no meu gabinete.

A propósito, essa Representação era uma espécie de filial, mantida depois que a Procuradoria-Geral se mudou para Brasília. Fiquei muitos anos ali. O meu marido, depois que se aposentou, não me deixou aceitar promoção para Brasília. O que que podia fazer? Ficava sempre dizendo, então, que não queria ser promovida e, assim, chefiava a Representação. Ele morreu em 1983. Em 1984, o Dr. Milton ligou-me dizendo: “Marly, você tem que vir para

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Brasília, não pode mais ficar no Rio, vão dizer que você não tem competência para ser promovida, já que tantas vezes recusou.”. Então, aceitei. Eu já estava liberada mesmo... Aí fui para Brasília, e justamente no dia em que Tancredo Neves morreu. O senhor [ José] Sarney assumiu a presidência, com aquela Nova República. Foi um período desagradável.

Memória MPM – Por quê?

Marly Gueiros Leite – Porque o presidente Sarney quis acabar com todas as supostas “mordomias” da Justiça Militar. E, então, estabeleceu uma perseguição implacável. Ele nos tirou o carro da Representação, um Opala velho que eu tinha. Fui ao leilão e arrematei o carro de volta! [risos].

Memória MPM – Vi na sua declaração este fato e fiquei de perguntar, para a senhora, do porquê de ter arrematado esse carro tão velho num leilão! [risos].

Marly Gueiros Leite – [Risos] Eu sou carne de pescoço! Fiquei com o carro! Tirei a placa de bronze e botei a placa comum.

O convívio com a Nova República era difícil. Já naquele momento vieram com o propósito da reabertura do inquérito do Riocentro, bem como o do Herzog. O Dr. Milton precisou dar dois ou três pareceres contrários. O presidente Sarney nomeou um senador do Paraná, amicíssimo dele, chamado [Francisco] Leite Chaves, para ser nosso procurador-geral. Ele não tinha relação nenhuma com a Justiça Militar, talvez nem mesmo conhecesse o Código Penal Militar. Seu papel era reabrir esses casos. Fui eu quem acabou dando o parecer final contra a reabertura do Riocentro e o Tribunal mais uma vez arquivou o processo. Antes do Leite Chaves, o presidente Sarney já tinha nomeado o Dr. George Tavares para a Procuradoria-Geral da Justiça

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Militar, logo ele, que tinha sido um dos mais atuantes advogados de defesa dos comunistas e dos subversivos! Uma incongruência, um paradoxo: um advogado de defesa de comunistas ser nomeado dessa forma! O Dr. George Tavares era muito simpático. Mas nem mesmo às sessões no STM ele ia. Quem fazia as sessões no terceiro andar, era eu, pegando a beca emprestada do meu colega, Dr. Milton, já que nem tinha ainda a minha. O Dr. George Tavares só aparecia em Brasília nas quintas-feiras. Como poderia ser diferente? Tinha um grande escritório no Rio de Janeiro. As tentativas de reabrir o Riocentro eram puro revanchismo. O terceiro procurador-geral do governo Sarney foi Eduardo [Victor] Pires Gonçalves, irmão do general Leônidas Pires Gonçalves. Era um gaúcho fazendeiro, rico, célebre colecionador de armas e gostava de andar armado. Não era concursado, tendo entrado na Procuradoria por indicação e passara toda a sua carreira cedido como assessor em outros órgãos ou gabinetes. A época Sarney foi terrível! Um dos casos mais famosos em que funcionei foi o do capitão Luiz Fernando Walther de Almeida, o processo de Apucarana.

Memória MPM – Ah, o caso de rebelião. Como foi?

Marly Gueiros Leite – Bem, ele era capitão do 30º Batalhão de Infantaria Motorizado em Apucarana e, em [22 de outubro de] 1987, cercou e invadiu o prédio da Prefeitura com seus comandados, em protesto contra os baixos salários percebidos e a deficiência do atendimento de saúde aos militares. Entregou ao assessor do prefeito uma carta de protesto. Foi algo inaceitável.

Memória MPM – Mas ele foi ovacionado pela tropa, não? Era uma espécie de liderança...

Marly Gueiros Leite – Sim, é claro! Todos estavam querendo aumento mesmo. Mas ainda assim, essa era e é uma forma de protesto

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inadmissível para um militar. Graças a Deus que não houve nenhum ferido, tampouco maiores consequências políticas.

Memória MPM – Ele foi condenado por essa infração?

Marly Gueiros Leite – Foi a julgamento em Curitiba, na 5ª Circunscrição Judiciária Militar, tendo sido condenado a três anos de prisão. Houve apelação e o Superior Tribunal Militar diminuiu a pena [para oito meses]. Depois, passou para a reserva como tenente-coronel.

Memória MPM – A senhora chegou a pedir condenação?

Marly Gueiros Leite – Pedi, claro!

Memória MPM – Nessas manifestações de ontem, no Rio de Janeiro, há quem tenha pedido a volta dos militares...

Marly Gueiros Leite – Eu não participei dessas manifestações de rua. Acho que não vão dar em nada. Não parece uma repetição da “Marcha com Deus pela Pátria e pela Família”, de 1964. Não foram os militares que fizeram a Revolução, não! Foi a pedido da sociedade! Isso é algo que a Comissão da Verdade precisa contemplar nos seus relatórios, para não relatar uma versão facciosa.

Memória MPM – A senhora foi à Marcha de 1964?

Marly Gueiros Leite – Eu não! Mas quando jovem fui à passeata do Jânio [da Silva] Quadros. A vassoura daquele louco!... Como esses políticos enganam a gente, não é? O [Fernando Affonso] Collor [de Mello], meu Deus do céu! Ainda me dá calafrios a memória da ministra Zélia [Cardoso de Mello] anunciando, pela televisão, o sequestro dos ativos financeiros em 15 de março

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de 1990. Meu pai já estava muito doente, na reserva. Eu tive que juntar notas fiscais de farmácia, dos remédios dele, laudos de médicos e um calhamaço de papéis, tudo isso para provar que ele precisava realmente movimentar seu próprio dinheiro da poupança. Foi terrível, uma época que não gosto nem de me lembrar!

Memória MPM – E como a senhora conheceu o seu marido?

Marly Gueiros Leite – Como procurador-geral. Fui subordinada dele por muitos anos. Mas quando o conheci, era casado. Não tinha nada a ver com ele no período, pelo contrário, eu tinha muito respeito por ele. Depois, não sei dizer ao certo, talvez por afinidade de pensamento, começamos a nos aproximar. Aí, ele começou a me distribuir processos, como o do Vladimir Palmeira, que liderou em 1968 a Passeata dos Cem Mil, o do José Dirceu... Eram tantos processos!...

Memória MPM – O José Dirceu passou por suas mãos?

Marly Gueiros Leite – Sim, nos processos da UNE. Aquele congresso em Ibiúna, em São Paulo, tudo isso passou pelas minhas mãos. Tenho que ver nos meus registros, porque de memória não me lembro dos detalhes. Havia situações difíceis, escabrosas, que precisava descrever, o que não era assim tão fácil. Eu era a única mulher funcionando junto ao Tribunal. Recordo-me daquela mesa ovalada: os ministros todos sentados e eu, firme na minha tribuna de procuradora, relatando estupros, casos de pederastia (na Marinha havia maior incidência de pederastia). Como falar aquelas palavras? Mas eu tinha que falar, descrever os atos criminosos. Na hora, me dava uma coragem e me enchia de tranquilidade. Todos me respeitavam.

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Memória MPM – Os casos de estupro aos que a senhora se refere são de militares contra civis?

Marly Gueiros Leite – Não. Dentro da caserna mesmo, militar contra militar.

Memória MPM – Mas aí já eram casos de pederastia?

Marly Gueiros Leite – Sim. Outra coisa que acontecia com frequência era acidentes com armas. Brincadeiras em alojamentos acabavam com feridos ou mortos.

Memória MPM – A senhora acha que a Justiça Militar, nesse período dos anos de 1960 e 1970, cumpriu o seu papel? Como repercutiam as denúncias de excessos e maus-tratos aos presos?

Marly Gueiros Leite – Cumpriu, com certeza! Estávamos em uma guerra civil, que, aliás, não fora provocada pelos militares. Dois lados antagônicos enfrentavam-se. Houve excessos de ambos os lados. Mortes aconteceram, combatentes tombaram. Hoje se esqueceram dos mortos de um dos lados. Mas basta olhar os jornais da época. Havia toneladas de assaltos a banco. Caracterizavam-nos como expropriações, para financiar a luta armada. Não existiam caixas automáticos, como hoje. As agências eram invadidas e se houvesse um vigia, mulher ou criança, no caminho, na linha de tiro, pouco importava, executavam-nos. Ninguém mais se lembra disso hoje em dia. Dizem que fulana e fulano foram presos arbitrariamente, torturados. Mas, e as vítimas que eles executaram, às vezes friamente, e que estão esquecidas? Não estavam lutando pela democracia, mas para a instalação de um regime ditatorial comunista. Como o Serviço de Inteligência iria antecipar suas

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ações? Era para ficar sentado esperando que o pior acontecesse? O [Carlos] Marighella dava instruções de guerrilha num livro, uma coisa revoltante. Anistia em grego quer dizer apagar. Então, a Anistia Penal apaga o crime, de ambos os lados. Agora se pretende uma anistia unilateral, um cancelamento retroativo da anistia para um dos lados, isso depois desse mesmo lado receber indenizações polpudas pagas pelo Estado, para supostamente compensar os males causados. E os soldados que morreram? Os vigias? As pessoas que foram sequestradas? Peguei um processo em Pernambuco de um tenente da Aeronáutica que estava com a companheira dentro de um Fusca, na praia de Boa Viagem, namorando, como faziam os jovens então, quando um grupo armado com metralhadoras passou, viu e, gratuitamente, estuprou a moça e disparou no rapaz. Esse tenente ficou tetraplégico. Era bonito, saudável e foi reduzido a um fio de ossos até morrer. Foi um crime covarde. Naquele tempo, tinha pena de morte. Eu pedi, para esse caso. Acho que fui a única pessoa na Justiça Militar que teve coragem de pedir pena de morte. Os ministros transformaram a pena de morte em pena de 30 anos. Já viu alguém aqui no Brasil cumprir pena de 30 anos? Não. Então, acabava-se nisso.

Se a Justiça Militar cumpriu seu papel? Posso dizer que cumpriu. Se melhorou ou se piorou, isso é outra história. O dever foi cumprido e a pedido da sociedade. Do jeito que o país estava, ninguém aguentava mais.

Memória MPM – O Dr. Eraldo se notabilizou, na época em que foi procurador-geral, por pedir o arquivamento de um processo muito rumoroso, do Negrão de Lima, acusado de atividades comunistas, junto com várias outras pessoas...

Marly Gueiros Leite – Não me lembro disso, não.

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Memória MPM – Isso foi em 1965, logo depois do AI-2.

Marly Gueiros Leite – Eu estava em Fortaleza, não sabia de nada, não, e nem queria saber. Afinal, estava lá sozinha, sem conhecer ninguém, naquele hotel horroroso, com aqueles problemas desagradáveis de que falei. E todo dia, às sete horas da noite, acabava a luz na cidade. Eu fazia tocha de jornal para ir para meu quarto, apavorada, com aqueles bêbados em volta. Foi horrível. A única coisa importante lá foi a inauguração da Auditoria, onde deixei meu nome perpetuado.

Memória MPM – A senhora a inaugurou, não é verdade?

Marly Gueiros Leite – Sim, fui a primeira promotora; inaugurei.

Memória MPM – A senhora sentiu alguma resistência dos juízes- -auditores, dos membros do Conselho, do Tribunal ou dos colegas da Promotoria, pelo fato de ser mulher?

Marly Gueiros Leite – Nunca. Pelo contrário, fui sempre muito prestigiada. Diversos acórdãos me elogiaram.

Memória MPM – Como era esse cargo que a senhora ocupou durante vários anos, de representação da Procuradoria-Geral de Justiça Militar?

Marly Gueiros Leite – Ainda existe. Tem muito colega aposentado no Rio de Janeiro. Então, por exemplo, o recadastramento, é feito aqui. Mas funciona mais para aposentados mesmo. E também para as Auditorias que funcionam no Rio, tanto do corpo administrativo quanto dos próprios procuradores. Fui chefe da Representação até porque era a única possibilidade de um cargo para mim no Rio, de onde eu não

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podia sair, em função do casamento. Eraldo não aceitava minha ida para Brasília. Depois, precisei ir. Colocaram-me na Asa Sul, perto do aeroporto. Horrível! Agora, até está bem melhor, mas naquela época, eu me sentia muito mal; me sentia verdadeiramente num deserto. O meu temperamento requer esse tumulto todo de Copacabana, onde moro. Aos finais de semana, Brasília era um túmulo. Por sorte, as passagens áreas não eram tão caras, então, na sexta-feira eu embarcava num avião para o Rio. Na segunda-feira de manhã, cedinho, voltava para Brasília. Não dava para ficar no final de semana lá. Não aguentava mais ir a clubes. Sinceramente, não achava aquelas piscinas convidativas.

Memória MPM – E a senhora tem acompanhado a Justiça Militar, o Tribunal e o MPM, hoje, depois de aposentada?

Marly Gueiros Leite – Estou parcialmente afastada. Está tudo mudado. Para mim, não é mais aquele Tribunal que vivi, que senti.

Memória MPM – Mas por que isso?

Marly Gueiros Leite – Não sei explicar exatamente. Não há mais aquele laço que nos unia. Não conheço sequer o presidente do Tribunal. No meu tempo, era como se fôssemos uma família. Não sei se eu via isso assim porque todos os ministros militares e o pessoal do MPM se conheciam; era uma afinidade muito grande. Agora, não sei mais. Eu tinha grande apreço pelo almirante [Raphael de Azevedo] Branco, pelo general Sérgio [de Ary] Pires. Eram meus amigos. Prestigiavam-me muito durante as sessões. E agora, não conheço mais ninguém. Muitos já morreram... É outro Tribunal. E tem que ser assim mesmo, as coisas mudam, evoluem...

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Memória MPM – Havia uma maneira de se vestir, de se apresentar como promotora? Porque a senhora era uma moça jovem... Já se podia usar calças, por exemplo?

Marly Gueiros Leite – Havia uma maneira de se apresentar. O uso de calças compridas acabou sendo incorporado pelas mulheres, com o tempo. Nos anos 1980, isso já estava estabelecido. Eu particularmente estava sempre de saia e blazer. E tinha que botar a beca para fazer as sessões. Usava somente salto alto.

Memória MPM – Qual o balanço que a senhora faz da sua profissão?

Marly Gueiros Leite – Eu adorei e adoro a minha profissão! Não me arrependo de nada! Durmo com a cabeça tranquila no travesseiro. Nunca promovi uma injustiça contra ninguém. Mesmo durante o período da “ditadura”, como dizem, houve casos em que pedi absolvição, porque a Justiça vinha em primeiro lugar. Agora, evidentemente, se existissem provas que incriminavam, pedia condenação, sim.

Memória MPM – E a bateria? A senhora toca bateria, não é?

Marly Gueiros Leite – Onde o senhor ouviu isso? [risos]. Não, eu batuco, batuco em qualquer lugar. Mas bateria nunca toquei, não... Estão querendo me difamar...[risos].

Memória MPM – Mas a senhora sabe que a sua bateria é famosa, não é? Em Brasília, a senhora não tocava bateria em casa?

Marly Gueiros Leite – Somente para um público interno, mas externo nunca... Na Escola Superior de Guerra, nos nossos passeios, nas

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nossas viagens, gostava muito era de jogar sinuca, na fazenda do “rei da soja”, Olacyr [de Moraes]. Que fazenda maravilhosa ele tinha, e com uma mesa de sinuca memorável! Inclusive em Teresópolis, em minha outra casa, eu tinha uma mesa de sinuca, mas a inundação acabou com tudo.

Memória MPM – A senhora foi atingida por aquela inundação?

Marly Gueiros Leite – Sim, perdi carro, sofá, sala de jantar, tudo. Entrou mais de um metro e meio de água na casa. Mas já está tudo reconstruído. Quantas inundações houver, eu reconstruo. Aquilo foi atípico, nunca mais aconteceu, nem acontecerá, se Deus quiser!!!

Memória MPM – Então está bem. A senhora gostaria de acrescentar mais alguma coisa, de deixar algo mais registrado?

Marly Gueiros Leite – Não, creio que não. A minha vida foi esta, está toda contada aqui e não me arrependo de nada. Tenho muito orgulho de ter pertencido à Justiça Militar do Brasil, porque foram anos e anos em que me doei de corpo e alma. Foi gratificante para mim. Acho que, de alguma maneira, eu contribuí fazendo justiça, aplicando justiça. Espero que ela nunca seja extinta, porque faz parte da história do Brasil, foi a primeira Justiça do Brasil, e tem uma característica que nenhuma outra tem: na Justiça Militar, não há pagamento de nada, tudo é de graça. Na Justiça Comum, é tudo pago. Enfim, na Justiça Militar só se pratica justiça. E agradeço a você, pela presença, pelo carinho e pela atenção.

Memória MPM – Muito obrigado!

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Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça de Santa Catarina, em Florianópolis, no dia 27 de março de 2015, e no dia 18 de junho, em Balneário Camboriú, por Gunter Axt, com a presença da Sra. Maria Angélica Gonçalves.

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Gilson Ribeiro Gonçalves nasceu em 4 de setembro de 1935, em Juiz de Fora, Minas Gerais. É filho de José Ribeiro Gonçalves e Maria Athayde Gonçalves. Casou-se com Maria Angélica Lamas Cruz Gonçalves. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1961. Sua carreira no Ministério Público Militar teve início em 17 de janeiro de 1967, quando foi designado segundo substituto de procurador militar de terceira categoria, atuando, inicialmente, na Auditoria junto à 4ª Circunscrição Judiciária Militar, em Juiz de Fora. Em 1969, prestou serviços à Subcomissão-Geral de Investigações no Estado de Minas Gerais. Em agosto de 1973, foi transferido para a Auditoria da 11ª CJM, em Brasília. Desta, passou a exercer funções na Procuradoria-Geral da Justiça Militar, em Brasília. Em abril de 1980, foi nomeado procurador militar de terceira categoria, funcionando junto à 12ª Circunscrição Judiciária Militar, em Manaus. Em junho do mesmo ano, foi designado procurador militar de segunda categoria, tendo atuado, nesse cargo, na 11ª e 12ª CJMs e na Procuradoria-Geral de Justiça Militar. Em 1982, foi promovido a procurador militar de primeira categoria. Alcançou, ainda, o mais alto cargo da carreira, o de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 5 de abril de 1990, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor e a senhora são naturais de onde?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Sou natural de Juiz de Fora, Minas Gerais. Minha esposa, Maria Angélica, é de São João Nepomuceno, que fica a 70 km de distância, mas também morava em Juiz de Fora.

Memória MPM – E os seus estudos foram em Juiz de Fora?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Primeiro fui para o Exército, fiz o curso preparatório em Porto Alegre, mais tarde ingressando na Academia Militar. Só que nesse meio tempo sofri um estresse e, quando fui perceber, já era tarde demais; carrego sequelas até hoje. Tinha 16 ou 17 anos e acabei sendo desligado da Academia porque não aguentei o curso: fui reprovado.

Depois que saí da Academia, voltei para Juiz de Fora e prestei o vestibular para Direito. Consegui passar e iniciei o curso. Mas as dificuldades de atenção e concentração permaneceram. De forma que comecei a me questionar sobre a causa disso, pois o curso em que eu estava antes era muitas vezes mais difícil e complexo, isto é, as coisas deveriam estar mais fáceis. Mas não estavam. Um colega me indicou um médico-psiquiatra, porque ele já havia feito um tratamento similar. Era um médico de origem eslava, muito competente. Aplicou-me uma série de testes e constatou que eu estava com problemas de memória: se falasse uma coisa, dali a dois minutos não conseguia repetir. Ele concluiu que isto era causado pelo estresse. Mencionou, na época, um esgotamento nervoso, pois não existia a palavra estresse.

Aplicou-me um teste de atenção, que consistia numa lauda, toda datilografada e impressa, como se um texto fosse, mas não era um texto em língua nenhuma. Mandou que eu riscasse quatro letras – me lembro até

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hoje: “P,Q,R,S”. Ele sentava atrás de mim, sem movimento nenhum, com tranquilidade. Cronometrou meu tempo. Numa folha cometi 17 erros. Nas primeiras linhas sublinhei certo, depois de umas três ou quatro errei um, e fui diminuindo os acertos e aumentando os erros; quando cheguei ao final, eu errava tudo o que estava em quatro linhas inteiras. Ele me prescreveu um tratamento que durou quase um ano. Quando achou que eu estava bem, pediu para repetir o teste: apenas um erro! Segundo ele, poderia até ser um defeito de impressão, ou qualquer coisa. Mas nunca mais tive boa memória. Fiz o curso de Direito sem ser um aluno brilhante, porque não tinha mais condição. Depois fui exercer a profissão, e acho que o meu esforço foi maior do que de um colega que não tivesse passado por isso.

Memória MPM – A Faculdade foi em Minas Gerais?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Eu sou formando da primeira turma da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. O meu diploma foi o registro número um, da folha um, do livro um. Fiquei na história. E depois disso, para minha infelicidade, o meu diploma foi roubado em Brasília: era pequeno, bonitinho. Em Brasília, naqueles tempos, a mão de obra doméstica era péssima e uma gatuna, que estava empregada em nossa casa, nos afanou até documentos, dentre os quais, o meu diploma. Ela agiu durante um período de convalescença minha – fiquei um tempo internado no hospital em decorrência de uma cirurgia e, depois, em recuperação em casa.

Maria Angélica Gonçalves – Foi a única vez que enfrentamos uma situação dessas. Levou o liquidificador novinho, que estava guardado porque era de voltagem 110 V e em Brasília é 220. Deve ter queimado quando tentou usá-lo.

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Memória MPM – Qual foi o ano da formatura?

Gilson Ribeiro Gonçalves – 1961.

Memória MPM – Mas aí já estava advogando, como solicitador?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Me tornei solicitador no quarto ano do curso. Meu pai era dentista. Dentre seus clientes havia um advogado que me ofereceu um estágio no seu escritório. Ele estava começando, porque originalmente era contador. Tinha uma casa de comércio que vendeu para abrir o escritório de advocacia. Era uma salinha pequena, muito simples.

Memória MPM – Assumiam todas as causas? Criminais, cíveis, trabalhistas ou tinha uma especialização?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Tudo o que caísse na rede. Peguei prática e conheci o Fórum de Juiz de Fora. Eu era bastante conhecido, porque sou nascido lá. Quando voltei para estudar Direito, conhecia todo mundo na Faculdade, ninguém era estranho. Em Juiz de Fora, se não me conheciam, conheciam meu pai, ou minha irmã mais velha, ou meu irmão, que já tinha saído de lá.

Memória MPM – Alguém da sua família já tinha seguido o Direito?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, ninguém. O meu irmão é militar, e a minha irmã, dentista. Nem sei dizer por que escolhi Direito; não tinha vocação. Comecei a conhecer as pessoas, a admirar a qualidade de orador de um advogado, o desempenho de um promotor, a apreciar a inteligência dos professores. Modelos foram se estabelecendo. Um professor foi depois nomeado desembargador. Mantive ótimo relacionamento com meus ex-professores,

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inclusive porque, mais tarde, eu já procurador, fui deslocado da Procuradoria para aquela Subcomissão-Geral de Investigações em Minas Gerais, em função da qual saí de Juiz de Fora e fui para Belo Horizonte. Permaneci quatro anos nessa função. Numa oportunidade, levei o general da reserva, que presidia a Subcomissão, para conversar com o presidente do Tribunal de Justiça, graças à intermediação daquele professor que se tornou desembargador. Ele foi à Comissão para ver o que a gente fazia. Peguei um processo, botei em cima da mesa: “O senhor pode olhar.”, e ele folhou tudo.

Memória MPM – Como é que funcionava a dinâmica da Comissão?

Gilson Ribeiro Gonçalves – A Comissão foi baseada no Ato Institucional nº 5, considerado o mais violento. O Ato criou a Comissão- -Geral de Investigações, órgão anexo ou dependente do Ministério da Justiça, cujo presidente era o ministro da Justiça, mas quem administrava, organizava e funcionava na Comissão era um vice-presidente, general Oscar Luiz da Silva. Havia diversos membros. Quem fez parte, depois, dessa Comissão, foi o Dr. Milton Menezes da Costa Filho, que foi o procurador-geral da Justiça Militar.

A Comissão-Geral criou Subcomissões nos Estados. Quando eu estava já em Brasília, conheci um brigadeiro da reserva que tinha sido membro da Subcomissão no Nordeste, creio que em Pernambuco. Então era uma operação das Forças Armadas: a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, cada uma de acordo com sua disponibilidade, sendo que o Exército não permitiu a participação de nenhum oficial da ativa, além do general, vice-presidente da Comissão-Geral; todos os outros oficiais eram da reserva.

Em Belo Horizonte, a Subcomissão era presidida por um general de brigada, e composta por mim e um coronel. O primeiro indicado para ser

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presidente dessa Subcomissão foi um coronel da ativa, que, quando indicado, pediu que eu fosse o jurista participante, porque me conhecia – eu o havia assessorado num inquérito envolvendo estudantes em Belo Horizonte. Eu estava recém-casado (casei-me em outubro de 1968). O Ato Institucional foi assinado em dezembro, e em janeiro ou fevereiro, ele me ligou, querendo saber se poderia me indicar para um serviço. Perguntou porque a minha esposa poderia não concordar, mas eu lhe disse que se era para serviço, ela não estabeleceria obstáculos. Ele previu três ou quatro meses de trabalho, mas permaneci quatro anos, depois dos quais pedi para sair.

Minha esposa trabalhava no IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários), motivo pelo qual ela não quis se mudar para Belo Horizonte. Ademais, ficaria longe da família. De forma que fiquei, nesses quatro anos, me deslocando entre Belo Horizonte e Juiz de Fora. Ia na segunda-feira de manhã e voltava na sexta-feira à noite. Conhecia cada curva da estrada. Nos trechos bons, meu fusquinha voava baixo. Numa ocasião, dei uma carona para o então auditor em Juiz de Fora, o Dr. Mauro Seixas Telles. Era noite escura, não se enxergava nada. Quando percebi seu nervosismo, para acalmá-lo comecei a descrever o caminho que viria em seguida: “Adiante, uma curva, quando chego aqui, passo a uma terceira para entrar firme, e agora já vamos acelerar porque tem que subir.”. Ele se tranquilizou.

Memória MPM – Por que o Ministério Público Militar?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Juiz de Fora era uma cidade pequena e sempre fui razoavelmente comunicativo. Uma noite saí para encontrar uns amigos na badalada rua Halfeld, para um bate-papo. No caminho cumprimentei uma roda de oficiais do Exército, que estavam nas faixas de capitão e major;

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conhecia quase todos e acabei participando da conversa como se fosse parte do grupo. Mas um deles se retraiu, porque eu era um paisano. Quando saí, quis saber dos outros quem eu era. Explicaram que eu fora cadete e irmão do Gil, oficial. No dia seguinte, fez questão de me procurar para se desculpar pela indelicadeza. Ficamos amigos. Ele havia terminado o curso da Escola de Comando e Estado-Maior e estava servindo em Juiz de Fora, porque era impedido de ficar mais de dez anos na mesma guarnição, no seu caso, a do Rio de Janeiro, onde a esposa trabalhava e as filhas estudavam. Como Juiz de Fora era perto do Rio, a família ficara lá.

Juiz de Fora era mais ligada ao Rio do que à capital mineira. Quem construiu a estrada de rodagem entre Juiz de Fora e Belo Horizonte foi o Juscelino Kubitschek, no seu primeiro governo em Minas. Até então, o tempo de viagem para o Rio de Janeiro era muito menor do que para Belo Horizonte. O pessoal de Belo Horizonte ficava ressentido – dizia que a turma de Juiz de Fora era “carioca do brejo”. Como esse oficial passava a semana na cidade sem a família, acabamos convivendo. Ele seria o responsável por me indicar para o cargo.

Entrementes, os processos se acumulavam na Auditoria, sobretudo, depois que o Ato Institucional nº 2 passou a atribuição dos crimes contra a Segurança Nacional para a Justiça Militar. A Justiça Militar funcionava, à época, com um auditor, um promotor, e um advogado de ofício. A cada um desses cargos ligavam-se dois substitutos, o primeiro e o segundo. Para dinamizar o serviço, convocaram-se os substitutos, formando-se Conselhos Extraordinários. Então, havia o Conselho Permanente, integrado pelos titulares, e o Conselho Extraordinário, composto pelos substitutos. O auditor convocado para o Conselho Extraordinário era um sujeito que para maluco

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faltava pouco! Fora professor de ginásio e os alunos o ridicularizavam; não era respeitado em lugar nenhum. No Fórum, onde advogava, criava caso em todos os cartórios. Os escrivães o menosprezavam. O próprio Tribunal Militar passou a ter má vontade com esse Conselho, até que chegou ao ponto de desconvocá-lo. Já o segundo substituto tinha sido meu professor, muito bom, muito competente, com sentenças dignas. Às vezes, por impedimento do primeiro, acontecia de este assumir o Conselho.

Numa ocasião, fui chamado para defender um açougueiro. Uma lei tabelava o preço da carne e obrigava o açougue a vender pelo preço de segunda a carne de primeira, caso a de segunda acabasse. Então, um empregado num açougue fez a burrice de dizer para um policial, disfarçado de freguês, que a carne de segunda tinha acabado, esquecendo-se de mencionar que tinha a de primeira. O policial nem conversou: mão nele, para a cadeia! Prendeu o dono do açougue também, que estava nos fundos e nem sabia do que se passava. O sujeito era de uma cidade próxima de Juiz de Fora, para onde se mudara há pouco tempo. Uns amigos seus eram meus clientes e me chamaram para ajudá-lo. Embora não tivesse ainda assumido, eu já havia sido indicado para ser o segundo substituto de promotor, o que, apesar de ser uma coisa sigilosa, tinha vazado e era comentado por alguns.

Bom, fui defender o açougueiro. Na primeira audiência interrogatória pedi o relaxamento da prisão. E esse auditor deu um voto dizendo que o açougueiro e o patrão eram os maiores criminosos do mundo. Queria se mostrar para os militares como auditor vigoroso, enérgico e cumpridor da lei, doesse a quem doesse. Eu, muito inexperiente na Justiça Militar, ainda tateando, tomei a palavra, ao final da sessão, e fiz um pedido que na jurisdição não existe: reconsideração de ato. O promotor me deu uma gozada. Mas para

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pedir a reconsideração de ato justifiquei que não havia demonstrado tudo no pedido inicial. Com isso, os oficiais perceberam a burrice que tinham feito ao acompanhar o voto do auditor. Dos quatro oficiais do Conselho, o mais moderno acompanhara o auditor, por inexperiência, o que fora repetido pelo segundo mais moderno. O terceiro, um capitão, disse ao major, presidente do Conselho, que não adiantava votar, pois a questão já estava decidida, de maneira que terminou seguindo o voto. Mas o major votou pela liberação do réu, repetindo meus argumentos.

Assim, com um voto pela absolvição, perguntei quando poderia marcar uma nova sessão. O major me disse que o mais rápido possível, que iríamos, dessa vez, soltar o rapaz. Quando fui conversar a esse respeito com o auditor, ele reagiu mal, entendendo que eu o estava desacatando. Em seguida, contudo, um funcionário da Auditoria comentou que eu seria o indicado para segundo promotor substituto. Ele se apavorou!

Havia muitos casos semelhantes. Estava todo mundo correndo para o Rio, pedindo habeas corpus, e o Tribunal concedia. Mas fiquei me perguntando, para que correr atrás do habeas corpus no Rio de Janeiro se a solução poderia ser encontrada ali. Assim, o açougueiro ficou mais uns dias preso, aguardando nova sessão. E, de fato, foi solto. Bem, enquanto tramitava a minha indicação para segundo substituto, aquele julgamento foi uma vitória.

Funcionava como segundo substituto de promotor, por azar, um ex-colega de turma, sobrinho de um subprocurador, que o havia indicado. Mas ele não se ajustara na função. Achava-se muito importante, com nariz empinado, mandava, fazia, acontecia. Ele fora chamado ao Quartel General para uma conversa com o general [Alfredo Souto] Malan, informação que

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recebi bem mais tarde. O general Malan lhe pedira a dilatação de prazo de um inquérito para estudá-lo melhor (os prazos eram curtos, dez ou quinze dias), pois receberia, nesse meio tempo, informações que satisfariam seu ponto de vista. Só faltou dizer-lhe: “Está para sair um Ato Institucional.”. Mas o substituto não deu bola e pediu o arquivamento do inquérito. Logo depois, saiu o Ato Institucional nº 2. Então, o general estava descontente com o seu desempenho e queria substituí-lo. Foi aí que entrou o major do Rio de Janeiro que estava fazendo o estágio do pós-Estado-Maior em Juiz de Fora. Era um oficial inteligente, instruído. Ele passara pelas várias seções do quartel, sendo finalmente designado para levar os assuntos a serem debatidos com o general, a quem ele disse que a legislação estabelecia que os cargos de substitutos seriam da confiança do comandante da região, com autoridade e competência para exonerar e nomear. O general Malan queria pedir a exoneração daquele moço, porque não o desejava mais na Auditoria, mas não tinha outro para indicar. Foi quando o major sugeriu meu nome. Não sei como, tinha meu currículo – nem eu tinha meu currículo! – e o encaminhou ao general, que pediu aos oficiais do quartel que me conhecessem para se manifestarem por escrito. Fiquei sabendo disso porque um dia encontrei com um coronel, com quem me dava muito bem, sujeito finíssimo, quem me disse que lamentava não ter o dom da escrita, o qual lhe daria melhores condições para poder expressar tudo aquilo que admirava em mim, porque o general solicitara depoimentos por escrito.

Mas a indicação tinha de passar pelo crivo final da presidência da República e, antes, pela apreciação da Procuradoria. O procurador-geral de Justiça Militar era o Dr. Eraldo Gueiros [Leite]. Aí o presidente [Humberto de Alencar] Castelo Branco foi fazer uma visita a Juiz de Fora. No gabinete da Prefeitura recebeu várias autoridades representativas. Lá pelas tantas, o

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arcebispo, na frente do general Malan – que participava das audiências como ajudante de ordens –, pediu para reconsiderar a exoneração daquele rapaz, que seria de boa família e tal. O Castelo virou-se para o Malan e perguntou o que teria ele a dizer. O general respondeu que o pedido de exoneração partira dele mesmo e que se preferisse atender ao arcebispo estaria desmerecendo o seu comando, situação na qual preferiria ser transferido. O Castelo, na hora, disse para o bispo: “Negativo.”. Depois da Revolução, não dava mesmo para alguém, na função em que estava esse rapaz, ficar em cima do muro.

Memória MPM – Como foi acompanhar o 31 de março, que começou em Juiz de Fora?

Gilson Ribeiro Gonçalves – No dia 31 de março eu não estava em Juiz de Fora. Como advogado credenciado pelo IAPC (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários) para fazer cobrança de dívida ativa da agência de Ponte Nova, que abrangia várias comarcas, tinha viajado. O IAPC era um dos institutos antigos. Uma vez por mês eu recebia as certidões de dívida ativa e ia aos cartórios, já entrando com as ações. Depois, ia receber e prestava contas. Nesse dia, estava em um ônibus, retornando de Ponte Nova para Juiz de Fora. Quando passamos por um bar numa cidade, mais ou menos na metade do caminho, ouvi um rádio a todo volume: “Tropa do Exército… Revolução...”. Tinha, no ônibus, um camarada com um rádio portátil que me deixou ouvir um pouco a notícia, mas era um ignorante que só queria saber de escutar música! Quando cheguei a Juiz de Fora, à noite, procurei me inteirar imediatamente, mas o desfecho já tinha se dado. Ir ao QG, então, me oferecer como voluntário depois da batalha ganha seria uma palhaçada. Nem fui, deixei para lá. Mas se estivesse em Juiz de Fora, seguramente teria me oferecido como voluntário, até porque essa era a atitude coerente com minha história de vida e familiar.

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Memória MPM – Havia alguma expectativa de que o general Mourão Filho fosse tomar aquela iniciativa?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não. O Mourão dissera de si mesmo: “Sou uma vaca fardada.”. No final das contas, ele foi presidente do Tribunal Militar e não teve maiores atuações políticas. Na ocasião da Revolução, ele era general de divisão e os outros é que tomaram a frente. Quando chegou a general de Exército, já estava sendo ultrapassado pelos que corriam na frente havia muito tempo.

Memória MPM – Como foi a experiência na Auditoria nesses primeiros anos?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Logo depois de eu ser nomeado, o auditor titular saiu de Juiz de Fora, promovido, sendo substituído por um auditor vindo de Mato Grosso, por uma remoção, a pedido, aparentemente sem ônus. Tinha um sujeito imprestável na Auditoria, não servia para nada. Um datilógrafo, que não tinha um dedo na mão. Passava o dia sem fazer absolutamente nada. Mas era espírita e maçom. Então, se metia em todo processo que envolvesse algum maçom ou espírita, especialmente se tivesse comunicação com ele. Apresentava logo um requerimento “de ouvido”, conversava com o auditor. Tenho a impressão que ele envolveu bem o novo auditor: já estava servindo até de motorista, levando o auditor de um lado para o outro no seu fusquinha particular – a Auditoria não tinha carro.

De todos os processos em que eu dera denúncia, ele só aceitara o primeiro, e ainda disse, para o meu colega, que era uma deferência que me fazia porque era a primeira denúncia que eu oferecia. Todas as outras, rejeitou. Tive que fazer recurso para o Tribunal, que, em geral, mandava aceitar.

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Por outro lado, o auditor não se comunicava com o Exército. Acho que nem fez uma visita de chegada. Tinha um relacionamento frio com o meio militar e, talvez, até hostil. Lá pelas tantas, o que desagradou ainda mais o Exército, ele passou a publicar artigos no jornal local contra o governo militar. Imagina: o cara é da Justiça Militar e mistura uma coisa com a outra. Resultado: foram acumulando elementos no prontuário dele...

Sabia-se tudo de todo mundo. Certa vez, encontrei na rua o major que me indicou e, enquanto batíamos um papo, apareceu um sujeito que o cumprimentou. Depois que se foi, perguntei-lhe por que dar atenção a um cara tão desqualificado. Ele me respondeu que se quisesse ter informação do que se passava num convento, precisaria falar com uma irmã de caridade enclausurada; se desejasse saber sobre um prostíbulo, perguntaria a uma prostituta. Isto é, não dava para buscar informações sobre um prostíbulo com uma irmã de caridade e vice-versa. O tempo foi passando...

Os oficiais que integravam o Conselho já não eram os mesmos, pois foram transferidos, substituídos. Mas quando chegou o AI-5, o novo chefe da seção já estava extravasando de raiva com o auditor. Pegaram a pasta dele e o cassaram. Eu não conhecia o conjunto do dossiê, mas acho que se tivessem dado um aperto em certos pontos não seria preciso chegar a esse extremo. Não sei dizer se houve muitos outros casos de auditores cassados, mas creio que não. A Justiça Militar é pequena, ninguém esconde nada de ninguém.

Não há esse padrão de convivência no meio civil. Estive no Exército por apenas quatro anos e os meus colegas são amigos até hoje. Ainda nos comunicamos. Sou convidado para as reuniões, nas quais, em geral, não vou, porque são em diferentes cidades. A única vez que fui, em Porto Alegre, tive o

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desprazer de encontrar um sacana que veio me agredir moralmente, porque eu dei denúncia de um amigo dele. Meus colegas me disseram que agora posso comparecer, porque esse sacana já morreu. Mas não vou. Recebo um jornal dessa turma, mensalmente, muito bem-escrito, muito bem-noticiado. Acho que já são mais de 150 números. Nesse noticiário, é raro o mês em que não vem notícia de que faleceu um. Há meses em que perdemos dois ou três de uma só vez. Estamos na hora da baixa, porque todo mundo está na faixa dos oitenta anos. Eu sou um dos mais novos, completo os oitenta este ano.

Memória MPM – Como era a infraestrutura de trabalho?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Minha nomeação ocorreu em janeiro de 1967, época em que o STM e, consequentemente, a Procuradoria- -Geral funcionavam no Rio de Janeiro, instalados em prédio histórico, mas notadamente acanhado, na Praça da República – Campo de Santana. O gabinete do procurador-geral era no andar superior, mesmo nível do Plenário do STM, numa sala de boa dimensão, mas tornada exígua por também abrigar o subprocurador-geral, secretário e outros. Não havia privacidade. E, na antessala, as datilógrafas. Não me lembro se, desde então, ou pouco depois, havia uma sala no térreo, onde estava instalada toda a estrutura administrativa (que era quase nada) da Procuradoria-Geral. Nessa época nossos vencimentos eram pagos pela tesouraria do Quartel General da Região Militar. Nossos deslocamentos funcionais eram noticiados no Boletim Interno do QG para que o tesoureiro providenciasse as correspondentes diárias.

Na Auditoria, eu e o Simeão éramos considerados como inimigos, sem direito ao mínimo. Os funcionários eram proibidos de nos fornecer uma única folha de papel em branco, mesmo se pedíssemos. Eu era amigo de muitos

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funcionários, mas o juiz-auditor, [Antônio de] Arruda [Marques] – que é esse que foi cassado em 1969 – não permitia. A Procuradoria tinha uma salinha de dois metros por dois (algo assim), na qual cabiam uma mesa, uma cadeira e um armariozinho de aço, que fora adquirido pelo [Felippe Luiz] Paletta [Filho] – ali ele guardava a beca. Se eu e o Simeão estivéssemos ao mesmo tempo na sala, um teria de ficar em pé. Se alguém quisesse se entrevistar com o procurador, não tinha cadeira para oferecer. No Cartório, não havia cadeira disponível. Não podíamos pedir nada ao Cartório, nem mesmo um bloco de notas.

Foi assim que o Simeão me propôs, e eu aceitei, mandarmos imprimir papel timbrado para uso nas denúncias e alguma correspondência oficial necessária. Juntos, fomos à tipografia e fizemos a encomenda de um milheiro, que dividimos em partes iguais – custos e uso. As denúncias eram datilografadas por nós mesmos e com algumas cópias (citação, arquivo, etc.) para as quais eu usava aquele papel mais fino, de seda, para ficarem mais legíveis.

O carbono também era por nossa conta e a máquina de escrever, de nossa propriedade. No meu caso, acabei possuindo duas: uma no escritório que ainda mantive por algum tempo e outra em casa, para algum serviço extra. Não me recordo quando a Procuradoria-Geral passou a operar os pagamentos.

Memória MPM – E o Arruda em Juiz de Fora?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Faleceu pouco tempo depois. Acho que levou um choque tão grande com a cassação que teve algum tipo de depressão. Ninguém espera ser cassado.

Memória MPM – As condições de infraestrutura melhoraram em Brasília?

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Gilson Ribeiro Gonçalves – Quando fui para Brasília, acredito que em julho de 1973, trabalhei por 2 ou 3 meses, tirei férias e voltei a Juiz de Fora para acompanhar o nascimento de meu segundo filho – Rodrigo – ocorrido em outubro, e providenciar nossa mudança para Brasília. Só quando passei a funcionar por convocação, junto à Procuradoria-Geral, é que me foi oferecido algum material: blocos para rascunho, pastas de papelão para arquivar papéis, esferográfica, etc. A Procuradoria-Geral ocupava todo o 7º andar do prédio do STM e não podia esbanjar espaço. Ia crescendo e ampliações já se faziam necessárias. Aposentei-me nessa fase. Quando fui conhecer o prédio próprio já contava algum tempo de aposentado. Hoje está uma beleza, com muitos recursos outrora inimagináveis e com a possibilidade de cada vez mais ir se estruturando adequadamente para cumprir o seu múnus.

Memória MPM – Qual era a natureza dos feitos, das denúncias, do trabalho do promotor militar nesse momento em Juiz de Fora?

Gilson Ribeiro Gonçalves – O serviço era o mesmo de hoje. O promotor recebia os IPMs: um soldado que disparou sua arma e atingiu o outro; um que furtou algo; uma viatura que bateu e quebrou... Rotina do serviço. Não era de grande volume. Antes da Revolução, havia três, quatro ou cinco processos por mês. Mas, depois do AI-2, saltou para cinquenta ou mais! Alguns em vários volumes e com prazos apertados correndo.

Em São João Del Rei, uma turma de estudantes, de gracinha, pichou pelos muros “Abaixo a ditadura!”, e outras palavras de ordem. O quartel de São João telefonou para Juiz de Fora perguntando como proceder: “Prende, e faz um inquérito!”. Nessa ocasião, eu estava em Barbacena, na Escola Preparatória da Aeronáutica, envolvido em um inquérito. De Juiz de Fora, me ligaram

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pedindo que eu fosse para São João Del Rei. Cheguei lá, e o delegado civil, que tinha recebido a orientação do Exército para prender, me perguntou o que poderia acontecer se não o fizesse, pois, segundo ele, eram todos meninos de boa família. Respondi que se batesse um flagrante na minha mão e os acusados não estivessem presos, teria de me manifestar, questionando por que o delegado não cumprira a lei. Prendeu todos! O quartel arranjou um caminhão e mandou os rapazes para Juiz de Fora. Porém, saiu uma decisão do Tribunal dizendo que pichar muro era crime contra o patrimônio alheio, não contra a Segurança Nacional. Aí soltaram os meninos.

Memória MPM – O caso foi para a Justiça Comum?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, porque a denúncia depende do dono do patrimônio. As coisas aconteciam muito assim, porque ninguém sabia o que era, definitivamente, crime ou não. Então, tinha casos que se dizia: “Vamos ver que bicho vai dar...”.

Memória MPM – E teve assaltos a Bancos por lá?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Em Juiz de Fora não.

Memória MPM – E a Serra do Caparaó?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Quando entrei em exercício, foi instaurado o inquérito da Serra do Caparaó. Neste caso tinha o Avelino [Bioen] Capitani, um marinheiro; um sargento; o Juarez [Alberto de Souza Moreira], capitão do Exército; e outros. No fim, foi preso o professor [Bayard Demaria] Boiteux, que era um sujeito inteligente, culto; não contestava e nem firmava o ponto de vista, escorregava. Eu assisti, mas não atuei no julgamento deles. O Marcello [Nunes] de Alencar e, salvo engano, o Evaristo [de Moraes Filho] os

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defenderam. Cheguei a ir à Serra para fazer diligência na investigação: fui de avião e voltei de jipe. Foi coisa à toa. Fui lá ouvir o pessoal da Polícia que havia feito a prisão: eram, os prisioneiros, “gente boa”, nenhum tinha antecedentes, todos com carteira de identidade, tudo bonitinho... Mas tudo falsificado! Nem sei como é que descobriram que era tudo falso.

O capitão Juarez tinha sido meu contemporâneo: conhecíamo-nos. Eram três irmãos: o Juarez era o mais velho, o Lourival [de Souza Moreira Filho] era o segundo – que eu conheci melhor, porque o Lourival estava um ano na minha frente –; o mais novo, mal conheci. Eram paraquedistas e parece que até bons oficiais. Todos os três se subverteram e passaram a integrar grupos de esquerda. Mais tarde, fui ao Rio, e encontrei com o Lourival no Tribunal, porque, depois de cassado, estudou Direito, e estava advogando. Ia ao Tribunal para defender o pessoal dele. Conversamos bastante.

Memória MPM – Estavam ligados ao [Leonel] Brizola?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim, porque um elemento desse grupo do Caparaó teve que ir à granja do Brizola, no Uruguai; outro fizera curso de guerrilha em Cuba... Enfim, nenhum era santinho. E falavam disso abertamente. Uma coisa que me impressionou foi o seguinte: se uma pessoa é presa e está tendo toda sua vida examinada, seu pensamento e sua atenção se concentram nesse processo, tornando todo o resto secundário. Bem, um dos presos, não me lembro de qual, não estava nem aí para o dia de hoje ou de amanhã. Parecia estar num alheamento, apegado a um passado remoto, aparentemente, pouco se importando se pegasse prisão perpétua ou se seria solto, como se tudo fosse a mesma coisa. Acredito que essa indiferença tenha sido um produto da formação de guerrilheiro, da doutrina.

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Memória MPM – Uma forma até de enfrentar a situação da prisão...

Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim. Teve um que se suicidou. E com a menor corda que se possa imaginar: pegou o debrum do lençol que foi dado a ele, cortou e trançou numa cordinha pequena, enrolou no pescoço e na torneira do chuveiro da prisão, foi girando, apertando até se enforcar. Não fazia muito, eu tinha conversado com ele. O cara não falava nada, absolutamente nada; estava totalmente doutrinado! Não deixava transparecer nada.

Memória MPM – Eles se queixavam de maus-tratos, ou alguma coisa assim?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, ninguém, porque ninguém estava sendo maltratado. O Exército, com a Revolução, praticou os seus abusos. Mas isso não foi um fenômeno generalizado. Contam-se nos dedos os casos de maus-tratos aos presos. Eu identifiquei um ou outro militar que abusava. Em Belo Horizonte, num desses inquéritos envolvendo jovens estudantes, soube-se de um oficial que teria dito algo como: “Serviço sujo a gente deixa para PM.”. Mas eu acompanhei inquérito de estudante, fervendo no caldeirão, e não vi esse abuso. É lógico, eram tratados com energia, mas isso não significa excessos nem abusos. Lá em Juiz de Fora, o inquérito do Caparaó foi tranquilo. Acompanhei vários inquéritos. Sentava-me à mesa com os presos, como estamos agora, conversando, eventualmente tomando um cafezinho. A única coisa que uma vez fiz, de molecagem, com um rapaz que fumava desbragadamente, o que era perceptível pelos dedos escurecidos, foi dizer-lhe que estava se envenenando e o proibi de fumar quando tomamos um café, o que o deixou bastante nervoso. Logo liberei o fumo.

Memória MPM – Na mesma época do Caparaó, o Che Guevara estava operando na Bolívia. Essa relação chegou a ser estabelecida nas investigações?

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Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, não se tinha conhecimento disso, pelo menos, não que eu saiba. Apesar do profissionalismo de alguns, havia certo romantismo naquele grupo, quase como uma expedição de intelectuais. Foram descobertos porque os moradores da região estranharam a movimentação de pessoal, diferente, e os denunciaram para a Polícia.

Memória MPM – A Auditoria de Juiz de Fora também jurisdicionava Brasília?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim, até ser instalada a Auditoria em Brasília, Juiz de Fora tinha atribuição sobre a Capital Federal. Muitos dos presos que eu interrogava, jovens, estudantes, vinham de Brasília. Um dos processos que me coube – acho que eu fiz a denúncia – foi o do Flávio [Aristides Freitas Hailliot] Tavares, jornalista, escritor. Ele se dizia um santo, que nunca fizera nada. Foi um dos prisioneiros trocados em setembro de 1969 pelo embaixador norte-americano que fora sequestrado.

Memória MPM – Qual foi o ano da sua ida para Belo Horizonte?

Gilson Ribeiro Gonçalves – 1969.

Memória MPM – E a Subcomissão funcionava como? Ela recebia denúncias, promovia inquéritos?

Gilson Ribeiro Gonçalves – A Comissão tinha por finalidade apurar o enriquecimento ilícito e a malversação dos recursos públicos. Então, teve gente que denunciou até a própria mãe. Houve muita invenção e fantasia, mas nossa orientação era apurar todas as denúncias, desde que não fossem anônimas, tampouco desprovidas de qualquer elemento probatório. Recebemos muitas. Em Belo Horizonte eram mais relativas às Prefeituras.

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Dizia-se que os prefeitos desviavam verbas. Não era diferente do que acontece hoje em dia.

Memória MPM – Mas fazia como? Porque hoje há a Polícia Federal, o Ministério Público, a Polícia Civil, enfim, uma estrutura de investigação montada...

Gilson Ribeiro Gonçalves – Sim, instituições aparelhadas, com capacidade técnica. Naquela época não havia isso. Nós tínhamos autorização prévia para requerer a prestação de serviço de qualquer órgão público, inclusive dos Bancos. Mas estes nós deixávamos para o Banco Central, que tinha essa atribuição de fiscalização. Quando a gente precisava saber se a conta de determinado órgão estava de acordo, o fiscal do Banco Central, a pedido nosso, reservadamente, ia numa agência bancaria e pedia para ver a movimentação. Mas isso era muito raro. E nós tínhamos contadores do Ministério da Fazenda, fiscais de renda, do imposto de renda, fiscal da Fazenda Estadual, cada um na sua área.

Certa vez, recebi uma denúncia de Juiz de Fora. O prefeito Itamar Franco, que sempre foi meio esquerdista, embora jamais comunista (havia quem o denunciasse por ser comunista, mas isso não tinha sentido), doou, de uma forma administrativamente incorreta, algo equivalente a uns mil cruzeiros para uma instituição de caridade. Agora você vai cassar um prefeito por causa de uma bobeada de mil cruzeiros? Espera aí! A Comissão fez um ofício para o Itamar, que se explicou. Aceitou parcialmente a explicação, mas pediu para sanar a falha. Foi um alvoroço danado! Recebi um oficial do Exército, que me perguntou se eu achava que o Itamar era um ladrão. Falei que ele agira de boa-fé, mas o modo não foi correto. Afinal, ficou por isso mesmo. Eu me dava bem com o Itamar. Uma vez, o encontrei durante uma campanha eleitoral, nas

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oficinas de uma marcenaria do Agostinho Pestana. Ele estava pedindo votos para os trabalhadores. O Itamar me estendeu a mão falando: “Eu sei que você não vota em mim, mas pode me cumprimentar.”.

Memória MPM – A Comissão costumava receber, por exemplo, lista de candidatos e inscritos de concurso?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não, a Comissão não tinha nada a ver com questões pessoais ou políticas.

Memória MPM – Nem nos Estados?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não. Porque esse negócio de lista de candidato era questão política gerida pelo SNI. Inclusive, qualquer profissional que requisitássemos para prestar serviços à Comissão tinha de ter o nome previamente aprovado pelo SNI. Houve uma pessoa que indiquei que foi vetada: “Esse não!”. Eu palmilhava o Estado, de norte a sul, de leste a oeste, realizando inspeções, e costumava me fazer acompanhar de um contador, um fiscal de rendas do Estado, da Receita Federal ou do Tribunal de Contas da União, cada um dentro da sua especialidade. Às vezes, os fiscais aplicavam multas.

Memória MPM – E a ida para Brasília como foi?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Em princípios de 1973, o Tribunal se transferiu para Brasília e a Procuradoria acompanhou-o, mas ficou com alguma deficiência de pessoal, porque nem todos que estavam no Rio de Janeiro aceitaram ir para Brasília. O procurador-geral era o Ruy de Lima Pessôa, nomeado quando ainda estava no Rio. O primeiro procurador que peguei foi o Eraldo Gueiros – gostei muito dele. Depois foi o Nelson [Barbosa] Sampaio, um baiano, muito bacana, mas não durou muito: foi nomeado ministro do

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Tribunal e faleceu cedo. Também me recordo do Jacy [Guimarães Pinheiro], que não gostava de mim, nem me cumprimentava. Depois do Jacy, foi o Milton Menezes da Costa Filho. Houve, também, um advogado, amigo do [ José] Sarney, que almejava ser nomeado ministro, mas não conseguiu e por isso saiu: o George Tavares. Foi seguido por um senador, o Francisco Leite Chaves, também ligado ao Sarney. Não gostei de nenhum dos dois. Depois teve o [Eduardo Victor] Pires Gonçalves, o [Marco Antonio Pinto] Bittar, a Adriana Lorandi , já falecida, que era casada com o Enéas Carneiro, candidato meio folclórico à presidência da República em diversas eleições passadas.

Memória MPM – Como foi acompanhar o inquérito do Riocentro, desde o início, passando pelos dois encarregados, o coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro e depois o coronel Job Lorena de Sant’Anna?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Quando surgiu o Riocentro, esse coronel Prado foi encarregado. Ele viu que o “troço” era uma bola quente, e, na gíria, “amarelou”, não quis ficar. O Job, então, assumiu o inquérito e fez tudo que deveria fazer.

Quanto à minha participação, cabe explicar que a função do promotor não modificou até hoje, pois é representar a sociedade na Justiça, oferecendo denúncia e acompanhando o processo, mas, também, antes do processo, assessorar na organização do inquérito. Porque na Justiça Militar o inquérito é feito pelos militares, não por um bacharel em Direito, como na Justiça Comum, que são estabelecidos por um delegado. Pode ser um incompetente, mas é delegado e bacharel em Direito; o mínimo ele tem de conhecer. Na Justiça Militar, os oficiais recebem uma noção elementar de Direito na Academia, que não significa muito na hora do inquérito. Então,

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quando é alguma coisa além daquela rotina do quartel (roubo de um equipamento, um acidente de carro...), um promotor pode ser solicitado a assessorar. Recebi inúmeras solicitações nesse sentido e acompanhei dezenas de inquéritos. O do Caparaó acompanhei extraoficialmente, pois o oficial que estava na 2ª Seção e que acompanhava o inquérito, bem como o próprio encarregado, haviam solicitado o auxílio de um procurador, o [ Joaquim] Simeão [de Faria Filho]. Mas me pediram para acompanhá-lo, também, para ir treinando. Passei, posso dizer, uns quarenta dias dentro do quartel naquela oportunidade. Basicamente, eu datilografava o que o Simeão ditava. Acompanhei, depois, inquéritos em Belo Horizonte, em Brasília (como esse do Flávio Tavares), em Barbacena... Então, com o Riocentro, saiu no jornal que eu era especialista em inquéritos.

Memória MPM – Como foi acompanhar esse inquérito com toda aquela pressão da imprensa? O país inteiro estava de olho no que estava acontecendo. Como se deu a sua indicação para assessorar nesse inquérito?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Sempre tive facilidade de relacionamento com os oficiais do Exército. Alguns, até meus colegas haviam sido. No caso do inquérito do Flávio Tavares, por exemplo, eu estava em Juiz de Fora, sendo o [ Joaquim] Simeão [de Faria Filho] o primeiro substituto. O titular era o [Felippe Luiz] Paletta [Filho], deslocado para o Rio de Janeiro, para acompanhar a Subcomissão-Geral de Investigação (quando assumi em Juiz de Fora, o Paletta já estava no Rio de Janeiro, de modo que pouco convivi com ele). O encarregado do inquérito do Flávio foi um coronel, comandante da PE em Brasília e um major. Nisso, pediram um promotor de Juiz de Fora. Fui de ônibus para Brasília. Quando cheguei à rodoviária, tomei um táxi e fui para o quartel, me hospedar. Lá chegando,

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me mostraram onde ia ficar. Enquanto arrumava minhas coisas no armário, um soldado pediu minha identidade, pois o tenente esquecera-se de tomar nota. Dei a identidade e fomos jantar, eu e o major. No dia seguinte, fomos tomar o café da manhã. Quando ingressávamos no rancho, um oficial, que tinha sido meu colega, muito camarada, veio me cumprimentar e fez aquele estardalhaço. O major, que também funcionava no inquérito pensou: “Mas que sacana, eu passei a noite pensando em como esse promotor veio parar aqui!”. Ele só conhecia o Simeão e pensara que havia um único promotor em Juiz de Fora.

Assim, quando fui para o Riocentro, já havia trabalhado em Belo Horizonte com o tenente-coronel que era comandante da PE do Rio. Desci do avião no aeroporto do Rio de Janeiro e um motorista me conduziu de carro ao quartel. Mostrou-me o meu retrato que tinha saído no jornal, do qual se valera para me identificar. O QG estava cheio de jornalistas. Era preciso caminhar uns quatro metros, depois de desembarcar do carro, para acessar o hall, com o elevador ao fundo. Cheio de gente! Um tenente e um capitão postaram-se um do meu lado, outro do outro; segurando-me pelo braço, foram tirando os jornalistas da frente, para podermos passar. Ao entrar no elevador, me tiraram uma fotografia. O general Gentil [Marcondes Filho] estava me esperando no gabinete e me perguntou onde iria ficar. Esse coronel, comandante da PE, disse que já tinha preparado um quarto para mim. Então, me deram um motorista e um cabo, como segurança, e fiquei hospedado na PE. O carro me levava onde quisesse. Eu ia para o QG e voltava para a PE; foi o único trajeto que fiz o tempo todo em que fiquei no Rio, com exceção de uma noite, em que fui jantar com um amigo. O carro me levou, e o motorista e o cabo ficaram de plantão, tomando conta da gente. Falei para tomarem uma cerveja no bar do lado.

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Num final de semana, fui a Juiz de Fora, de ônibus, para ver meus pais. Ao descer na rodoviária eles estavam me esperando, porque a gente não sabia qual o risco que eu poderia estar correndo. A coisa estava muito mascarada. Quando comecei a investigar o problema e ouvia as partes e tal, desconfiei do oficial, insisti no depoimento dele, mas o Job desconversou: “Ele ainda está doente, ainda está ferido.”. Resolvi tranquilizar meus pais pessoalmente. Caminhando na rua em Juiz de Fora, um professor me viu, veio conversar comigo, rindo. Os jornalistas me conheciam, mas me respeitaram.

Quase toda semana ia a Brasília, levando documentos para dar ciência ao Milton. Logo que fui nomeado, numa segunda-feira pela manhã, a Marilena Chiarelli, jornalista da Rede Globo em Brasília, me pegou de surpresa na garagem, em casa, e gravou um rápido depoimento ali mesmo. Já durante o inquérito, havia, na Procuradoria-Geral, um funcionário que gostava de ajeitar as coisas com os jornalistas e ele esparramara para imprensa que, naquele dia, eu estaria em Brasília. Quando entrei na Procuradoria, estava sendo caçado. Escondi-me num canto, fui falar com o Milton. Nunca fui de dar trela para jornalistas.

Não conhecia o Job pessoalmente; o meu irmão já tivera algum ligeiro contato com ele. Encontrei vários oficiais conhecidos no QG do Exército, mas é aquele negócio, ninguém falava nada, enrolavam. Depois do caso, mais tarde, é que a coisa foi se esclarecendo. Hoje, acho que todo mundo tem a ideia certa de que foi um atentado promovido por personagens do Exército.

Memória MPM – Isso está absolutamente consolidado na memória nacional. É algo que, inclusive, teria levado à renúncia do Golbery do Couto e Silva.

Gilson Ribeiro Gonçalves – É, ele e o [Otávio Aguiar de] Medeiros brigavam, não se davam.

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Memória MPM – O Medeiros deu uma declaração, há alguns anos, dizendo que teria sido informado sobre a bomba horas antes do atentado, o que motivou a reabertura do caso em 1999.

Gilson Ribeiro Gonçalves – Havia na época a desconfiança, mas nenhuma certeza. Quem primeiro amparou o capitão que estava com a barriga aberta depois da explosão foi a irmã do Aécio Neves, ouvida como testemunha. Ela estava no show e foi a primeira a socorrer o sujeito.

Quando aconteceu o atentado do Riocentro, eu estava retornando de uma substituição em Porto Alegre. O titular, em decorrência de um câncer no intestino, estava de licença constante. Em janeiro ou fevereiro, resolveu reassumir para que o substituto pudesse tirar férias, pois esse vinha trabalhando direto. Doente, assumiu o serviço. Enquanto o substituto foi para uma praia e sumiu do mapa, o que estava doente não aguentou mais de uma semana. A Procuradoria precisava de alguém em Porto Alegre e me designaram. Era para ser uma substituição de vinte e dois dias, mas o Carnaval caiu no meio. Mal retornara de Porto Alegre, me designaram para o caso do Riocentro. Mas em julho, voltei para Brasília, pois o inquérito foi concluído. O procurador [ Jorge Luiz] Dodaro pediu arquivamento. O juiz Edmundo [Franca] aceitou, mas antes pediu diligências; fez uma jogada política para aparecer. O corregedor de Justiça Militar, Dr. Célio Lobão [Ferreira], um sujeito cricri, recomendou o desarquivamento e remeteu o processo ao procurador-geral, o Dr. Milton Menezes, que opinou pelo arquivamento. Foi seguido pelo relator do processo junto ao STM, general Carlos Alberto Cabral Ribeiro. Por dez votos a quatro, dentre estes últimos todas as ressalvas do almirante [ Júlio de Sá] Bierrenbach, os ministros sepultaram a reabertura das investigações.

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Memória MPM – Em 1999, o juiz Edmundo Franca concedeu uma entrevista à revista IstoÉ declarando ter sofrido pressões para concordar com o arquivamento e implicando os generais Walter Pires, Gentil Marcondes e Otávio Medeiros no Riocentro. Além disso, ele afirmou estar convicto de que o atentado do Riocentro tinha relação com outros ocorridos nas semanas anteriores, dentre os quais, a bomba que explodiu na sede da OAB.

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não tinha nada disso! O Walter Pires era o ministro do Exército, o Medeiros, chefe do SNI e o Gentil comandava o I Exército. Para dizer que esse episódio tinha relação com outros casos, seria preciso admitir que houvesse um poder paralelo de amplitude. Poderia ter um ou outro descontente com a situação política querendo fazer alguma coisa, mas nunca percebi nada que nos levasse a concluir sobre a existência de uma força paralela. Eu conhecia vários oficiais. Quem eu achei mais fechado era o coronel [ Júlio Miguel] Molinas [Dias], o chefe do DOI-Codi, aquele que foi assassinado recentemente em Porto Alegre, coronel de Engenharia. Foi da minha turma. Como eu estava hospedado na PE, um dia o encontrei. Usava uma manicaca com nome falso. Disfarçou quando eu dei a perceber que o conhecia. Não quis conversa comigo. Era um sujeito muito fechado. Mas outros oficiais eram falantes e bastante abertos. Não deixavam transparecer nada, que houvesse alguma coisa. Não acredito que existisse um comando paralelo. Acho que, sobretudo, o general Gentil foi injustamente implicado em toda essa história. A briga sobre a qual se falava era entre o Medeiros e o Golbery. Mas o chefe da Casa Civil, tampouco o SNI, não tinha comandamento sobre as Forças Armadas. Enfim, acho que implicar os generais diretamente nesse episódio seria enxergar “chifre em cabeça de burro”. Não era nada disso. O Edmundo tem seu valor, certamente, mas quis aparecer, chamar a atenção.

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Memória MPM – Bem, e o retorno para Brasília em julho, depois de encerradas as investigações?

Maria Angélica Gonçalves – Eu sei que ele voltou para casa e logo os meninos entraram em férias e a imprensa estava em cima da gente. Estavam nos cercando lá em casa. Faltei ao serviço um dia por causa de um jornalista que estava atrás de mim, e ele nem tinha chegado ainda!

Gilson Ribeiro Gonçalves – Então, conversei com um oficial do gabinete do ministro do Exército – eu tenho a suspeita de que foi ele quem pediu ao Milton para me indicar – para me arranjar uma carona no avião da FAB para Manaus. Peguei uma substituição, a Maria Angélica conseguiu tirar férias e levei a família inteira. Fomos num aviãozinho pequeno, num Xingu, eu, ela, os filhos e dois oficiais pilotando.

Maria Angélica Gonçalves – Ainda pegamos uma pessoa no meio do caminho. Onde é que abasteceu o avião?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Na Serra do Cachimbo, onde há uma base da Aeronáutica. O avião pousou para abastecer e um sargento, que servia lá estava de folga e pegou carona.

Maria Angélica Gonçalves – Aí botei o Marcelo no meu colo e ele sentou no lugar ao lado. Antes de aterrissarmos em Manaus, o piloto voou sobre o Encontro das Águas.

Gilson Ribeiro Gonçalves – A mordomia foi completa! [risos]. A Maria Angélica não aguentou o calor de Manaus, queria ir embora. Apareceu uma comitiva do Estado-Maior, que chegara num Buffalo, no

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qual ela retornou com as crianças de carona para Brasília. Eu ainda fiquei um tempo lá, até concluir o período de substituição.

Maria Angélica Gonçalves – Tinha mais caixas e bagagens do que gente!

Gilson Ribeiro Gonçalves – Do lado dela estava um oficial carregando um jogo de cristais no colo, para não quebrar...

Maria Angélica Gonçalves – Afinal, foi um voo tranquilo.

Memória MPM – E assim terminou o episódio Riocentro para vocês?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não. Quando o inquérito foi reaberto eu fui ouvido. Morava em Curitiba, já aposentado. Recebi uma intimação imperiosa, “Deveis comparecer tal e tal, no QG para ser ouvido.”. Depois, um oficial do QG telefonou: eu disse que não iria. Dias mais tarde, o procurador, que estava assessorando o general encarregado, me telefonou, comunicando que, naquele dia, passariam por Curitiba com a finalidade de me ouvir. Eu disse que tudo bem, que se quisessem iria até o aeroporto, reservaria uma sala para que tomassem o meu depoimento e fossem embora; resolveríamos a coisa. Que nada, o general queria se exibir! Confirmou aquela intimação para comparecer no dia tal na Procuradoria com base no artigo tal do Código Penal (não do Código de Processo). Queriam me ouvir como? Réu ou testemunha? Pelo Código Penal, eu sou réu. Eu morava em São Brás e a Auditoria é do outro lado da cidade. No meio do caminho, ligaram de um celular para confirmar se eu estava mesmo indo. Quando entrei na Procuradoria, me receberam e nos cumprimentamos. Pedi um Código ao procurador e mostrei o equívoco: eu ainda tinha prerrogativa de escolher dia, hora e local. O próprio procurador, assessorando, tinha obrigação

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de saber. O procurador quase deu um pulo da cadeira quando percebeu a falha. Registrou, ao escrivão do inquérito, um tenente-coronel, que haviam confundido CPM com CPPM e o coronel perguntou “Mas não é a mesma coisa?”. Santa ignorância! Prestei as declarações. Queriam saber se tinha havido pressão para a solução, se o Job tinha feito não sei o quê. Falei que não teve nada. Não tinha o que esclarecer ali. Fui ouvido e o inquérito prosseguiu.

Memória MPM – Voltando a Juiz de Fora, o senhor mencionou o Dr. Joaquim Simeão de Faria Filho, que figura em depoimentos de réus e advogados, com o Dr. Obregon Gonçalves, para quem o Simeão mandava na Procuradoria.

Gilson Ribeiro Gonçalves – O Obregon é um advogado inteligente, estudioso e que se expressa com desenvoltura. Portador de deficiência física, tem uma atrofia nos dois braços, além de uma perna torta. Mas compensa essas limitações com uma voz poderosa e uma incrível agilidade desenvolvida para se virar apenas com os cotovelos. Nos julgamentos, impressionava, porque enquanto falava com segurança, manipulava as páginas dos processos com precisão e rapidez. E brilhava na tribuna, de certa forma até explorando o impacto que a deficiência causava nas pessoas. Juntava aqueles cotovelos, de um jeito que eu não consigo fazer, segurava uma caneta com incrível destreza e escrevia nos processos com uma letra mais bonita do que eu jamais conseguiria fazer. Eu o conheci como advogado defendendo acusados em Juiz de Fora. Depois, foi eleito vereador em Belo Horizonte. Eu não tive processos com o Obregon. Mas ele contrariava o Simeão e o Simeão o contrariava. É natural que ele diga que o Simeão era autoritário. Não me lembro de todo o contexto, mas havia funcionários na Auditoria que temiam o Simeão, porque achavam que ele fazia fofoca no quartel. Então, preventivamente, tratavam o Simeão na palma da mão. Mas isso não significa que ele realmente enfeixasse todo esse

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poder. O Simeão era muito hábil em arquitetar histórias para conseguir das pessoas o que queria.

Memória MPM – E os outros advogados que atuaram em Juiz de Fora?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Tinha o Dalton Villela Eiras, vizinho do Simeão em Juiz de Fora. Mais tarde, foi indicado advogado de ofício. Também me recordo do Francisco Isento. Por conta de um acidente de motocicleta na década de 1940, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, oportunidade na qual ele foi violentamente lançado de cabeça contra o meio-fio, não tinha a parte frontal esquerda do crânio. A região ficara coberta apenas pela pele, de forma que era possível ver o cérebro pulsando quando ele falava. Os médicos que o atenderam acharam que era um caso perdido e nem se deram ao trabalho de colocar uma placa de platina, mas, enquanto ele se recuperava, disponibilizaram a penicilina, cujos frascos os enfermeiros despejavam inteiros, segundo me contou, na cabeça dele. Então, contra todos os prognósticos, sobreviveu. Como já tinha visto a morte de perto, o Francisco era um homem destemido. Isso contrastava com o Simeão, que era, na verdade, um sujeito temeroso. Por exemplo, quando saíamos de carro, ele se segurava todo, com medo do tráfego. Uma vez o Simeão e o Francisco viajaram num aviãozinho e enfrentaram uma tempestade. O Francisco permaneceu tranquilo, o Simeão ficou muito ansioso. Certa feita, estávamos quatro num fusquinha, à noite, e atropelamos um jacaré de uns dois metros de comprimento, que se meteu na frente do carro de repente. O bicho caiu na valeta ao lado da via e dali não conseguia sair, não podia se mexer. Resolvemos abatê-lo. Um amigo fez um laço com uma corda e com ele puxou a mandíbula para cima, mantendo-a aberta. Enquanto eu descarregava o meu calibre 22 dentro da boca do animal, o Simeão, que estava com um revólver

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calibre 32, queria atirar no jacaré a considerável e prudente distância, o que não surtiria efeito algum...

Dentre outros advogados que atuavam em Juiz de Fora, recordo-me do José Luiz Clerot, que defendia os presos em Brasília. Foi deputado federal e se tornou ministro do STM. Era um bom advogado. Não cheguei a ter processos com ele, mas nutríamos muita consideração um pelo outro. Quem me impressionou muito foi o Laércio Pelegrino, um sujeito simpático, muito ético e finamente educado. Como advogado, tinha um desempenho notável, porque encontrava brechas na legislação que favoreciam seus clientes. Ele encontrava soluções onde ninguém as via. Sabemos que aquilo que a lei não proíbe, é permitido. Certa vez, em Juiz de Fora, ele entrou com um pedido de justificação, algo incomum no Direito Militar. Presenciei-o agindo de forma semelhante no Tribunal, anos mais tarde. Essas posições, ele defendia com muita elegância e eloquência, acabando por formar convencimento ao seu favor.

Por sua vez, o Heleno Fragoso, que era precedido por grande fama, me decepcionou pelo excesso de pose, de pompa. Vi-o com um desempenho algo grosseiro para com o juiz-auditor. Que culpa tem o juiz da lei?

O Mário Soares Mendonça era advogado de ofício, substituído pelo Francisco Isento. Também atuava lá o Antônio Carlos Teixeira, um criminalista famoso, que fazia grandes júris, nos quais se digladiava com um promotor do Ministério Público do Estado. Era um sujeito de grande habilidade, delicadeza e educação. Ainda me recordo do Lino Machado, maranhense, bom advogado, mas um tanto impaciente e agitado. Ele esperava ser nomeado para o STM, mas não logrou sucesso.

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Lembro-me, ainda, de duas figuras exponenciais que conheci logo ao chegar a Brasília, nos idos de 1973: Silvio Guimarães, advogado de ofício (titular) na Auditoria de Brasília, estudioso, dedicado, competente, já então um experimentado servidor da Justiça Militar. Não esqueço nosso primeiro contato: eu, na sala destinada ao MPM (na Auditoria), de porta aberta, vejo entrar aquela figura corpulenta e extrovertida perguntando: “Você é o novo procurador? Vindo de Juiz de Fora? Você é mineiro?”. Respondi: “Sim, sou mineiro.”. E ele: “Eu também sou mineiro; sou do Salto da Divisa!”. Respondi: “Então você não é mineiro, você é ‘baianeiro’.”. Ouviu-se ali uma estrondosa gargalhada seguida da afirmação: “Sou mesmo ‘baianeiro’, minha mãe é baiana!”. Aí nasceu uma boa amizade. Logo a seguir, quando me foi distribuído um apartamento, tive a boa surpresa de ser vizinho do Silvio. A seguir, ele fez concurso para auditor. Parece-me, talvez, já se vislumbrando modificação na estrutura da Advocacia de Ofício (muitos advogados de ofício fizeram esse concurso). Ele foi auditor em Campo Grande. E nos encontramos pela última vez em uma solenidade no STM.

Outra figura a quem agora me referencio é o então substituto de advogado de ofício: J. J. Safe Carneiro. Mineiro, acho que é de Belo Horizonte. Acreditou em Brasília e para lá foi bem no início. Dedicado, estudioso, inteligente, boa figura na tribuna, tornou-se reconhecidamente famoso advogado na Capital Federal. Seu escritório, hoje, congrega especializados profissionais e ele ainda exerce o magistério jurídico. Embora distanciados pela posição geográfica, sei que somos bons amigos. É bem assim: ele lá e eu aqui, mas se um precisar do outro, sabe, com certeza, que pode contar com o amigo.

Memória MPM – Chegou a advogar durante o exercício da função ou depois de se aposentar?

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Gilson Ribeiro Gonçalves – Muito pouco. No início, quando recém-formado ou enquanto estava estudando. Ao ser nomeado para a Justiça Militar, acabei parando porque não sobrava tempo. Eu tinha escritório, arrumadinho, mas não fui adiante. Até pedi a minha licença na Ordem e fiquei descredenciado. Quando me aposentei, não voltei porque o que ganho dá para sustentar a família com o conforto necessário. Não vou ficar rico, nem vou ficar esbanjando dinheiro, dá para viver. Ademais, mudei-me para uma região diferente, onde ninguém me conhecia. Se me aliasse a algum escritório, seria para abrir portas, para o qual não me presto. Finalmente, como lhe falei, minha memória é ruim, de modo que não me sentia mais atualizado no Direito Comum, depois de anos na jurisdição especializada.

Memória MPM – Sua memória parece estar muito boa.

Gilson Ribeiro Gonçalves – Lembro-me dos aspectos gerais, mas não me recordo dos detalhes mais precisos.

Maria Angélica Gonçalves – Pergunta o número do telefone da Procuradoria lá de Brasília!

Memória MPM – Qual é o número do telefone da Procuradoria em Brasília?

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não sabia, nunca soube! [risos].

Maria Angélica Gonçalves – Ele ligava para mim, no meu serviço, para perguntar o telefone do serviço dele!

Gilson Ribeiro Gonçalves – Porque na Procuradoria eu não tinha expediente. Fiquei apenas uns cinco ou seis meses na Auditoria e fui logo

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requisitado para a Procuradoria, para dar pareceres nos processos que vinham do Tribunal. No começo era só deserção e insubmissão, o bê-á-bá; mais tarde, peguei outras coisas. Fazia o serviço em casa e devolvia os processos para a Procuradoria. Às vezes, ligavam da Procuradoria avisando quando tinha processo e eu passava lá pegar. Bom, o funcionário descia de elevador, me levava no carro e eu vinha embora para casa. Mas o telefone da Procuradoria, de fato, não sabia de cor. Então eu ia a um orelhão, ligava para ela, pois esse número guardava de memória, ela me confirmava e eu entrava em contato com a Procuradoria. Naquele tempo não tinha celular.

Maria Angélica Gonçalves – Meus funcionários riam a valer dessa. Era gozado! [risos].

Gilson Ribeiro Gonçalves – Não fico ocupando meus neurônios à toa.

Memória MPM – Muito obrigado.

Gilson Ribeiro Gonçalves – Eu que agradeço.

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RUTÍ

LIO T

ÔRRE

S AU

GUST

OEntrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar em Brasília, em 8 de abril de 2015, por Gunter Axt.

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Rutílio Tôrres Augusto nasceu em 25 de outubro de 1935, no município de Araraquara, em São Paulo. É filho de José Tôrres Augusto e Ibraina Pires Tôrres. Casou-se com Mathilde Rosa de Freitas Tôrres. Graduou-se em Direito, em 1962, pela Faculdade de Direito de Bauru, em São Paulo. Passou a advogar em Brasília a partir de 1963. Por decreto de 13 de janeiro de 1967, foi nomeado, pelo presidente da República, para a função de segundo substituto de promotor na Auditoria da 11ª Região Militar, em Brasília, entrando em exercício em abril de 1970. Em 1976, passou a atuar junto à Procuradoria-Geral de Justiça Militar, também em Brasília. Em 20 de fevereiro de 1995, foi promovido ao cargo de procurador da Justiça Militar, para atuar junto à Auditoria da 7ª Circunscrição Judiciária Militar, em Recife. Em 8 de fevereiro de 1996, ascendeu ao mais alto cargo da carreira, o de subprocurador-geral da Justiça Militar. Exerceu, além disso, o cargo em comissão de assessor de ministro no Superior Tribunal Militar e, ainda, o cargo em comissão de chefe de gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça Militar. Aposentou-se em julho de 1996.

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Memória MPM – Doutor Rutílio, o senhor é natural de Araraquara?

Rutílio Tôrres Augusto – Araraquara, Estado de São Paulo.

Memória MPM – E a escola, foi cursada lá?

Rutílio Tôrres Augusto – Tudo em Araraquara, com exceção da Faculdade, que cursei em Bauru.

Memória MPM – O que faziam seus pais? Como surgiu a opção pelo Direito? Havia alguma tradição na família?

Rutílio Tôrres Augusto – Não havia tradição alguma. De minha parte, foi uma paixão, vontade de acessar conhecimentos humanísticos. Meus pais eram muito pobres. Meu pai era ferroviário e havia necessidade de eu colaborar com o orçamento familiar, de modo que ele determinou que eu fizesse o curso técnico de contabilidade, pois acreditava que haveria, assim, mais garantia de colocação no mercado de trabalho. Atendi ao desejo dele, mas me inscrevi também no vestibular para Direito. Não foi fácil, porque precisei fazer um esforço concentrado para vencer as matérias que cairiam nas provas.

Memória MPM – O curso técnico também foi em Araraquara?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim.

Memória MPM – Mas o Direito era o grande sonho...

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Prestei um concurso para o Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo e fui lotado em Araraquara. O emprego público me deu a estabilidade necessária para cursar o Direito. Por meio de um pedido político, consegui transferência para a

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Contadoria de Bauru. O Jânio Quadros era o governador de São Paulo. Fui para Bauru, onde fiz o curso presencial matinal.

Memória MPM – O senhor menciona um pedido político: tinha alguma articulação no partido do Jânio, a UDN?

Rutílio Tôrres Augusto – Não, nenhuma, pelo contrário!

Memória MPM – Como chegou ao governador?

Rutílio Tôrres Augusto – Meu pai era um importante cabo eleitoral no meio ferroviário. Ele tinha relacionamento com um deputado estadual da cidade, o Lupo, quem apoiou o pedido de transferência. Em decorrência da pesada burocracia da época, sem essa intervenção, haveria uma grande dificuldade em lograr êxito.

Memória MPM – Seu pai era da Estrada de Ferro Araraquarense?

Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente.

Memória MPM – A conclusão do curso em Bauru foi em 1962?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim, me formei em 1962. Fui para Bauru em 1958...

Memória MPM – Alguma lembrança desse período de Faculdade?

Rutílio Tôrres Augusto – Muitas... Tivemos grandes mestres, a começar pelo Ulysses Guimarães, que era o nosso professor em Constitucional. Havia o renomado Frederico Marques, em Processo Civil; o desembargador Moura Bittencourt, que nos ministrava Direito de Família; e assim por diante... Foi um bom curso.

RUTÍLIO TÔRRES AUGUSTO

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Memória MPM – Era uma Universidade privada?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Eu ganhava pouco à época, mesmo no funcionalismo público... Mas graças a uma colega da nossa classe, conseguimos que nos fosse concedida uma bolsa parcial, por meio das gestões do deputado [Nicola] Avallone Júnior: dava mais ou menos um terço da mensalidade que eu pagava. Eram tempos difíceis. Tudo foi conquistado com muito sacrifício e esforço. Os pais não podiam ajudar. Meu salário tinha de pagar a pensão, a mensalidade, custear os livros, todas as demais necessidades. Mas, felizmente, foi tudo bem.

Memória MPM – E a decisão de vir a Brasília?

Rutílio Tôrres Augusto – Eu achei que Brasília, por ser uma cidade nova, ofereceria um melhor campo para a advocacia, inclusive a relacionada ao Estado. Deu certo. Vim para cá sem nada. No começo de 1963, logo depois de formado, fiz uma cirurgia que estava protelando ha-via tempo para não prejudicar os estudos e logo depois me transferi para a nascente Capital Federal.

Memória MPM – Pediu desligamento do Departamento de Estradas de São Paulo?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Quando fui me desligar, o contador--chefe, Dr. Martins, me chamou: “Rutílio, não faça isso, não.”. Ele era advogado também: “A advocacia é meio ingrata. Peça uma licença de dois anos, você tem direito, sem vencimentos. Deixa a exoneração para depois.”. Agradeci, mas lhe disse: “Doutor Martins, o senhor acha que eu voltaria se fracassasse?”. Loucura de moleque! [risos]. E pedi exoneração na hora. Estabeleci-me na W3, numa

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sobreloja, que funcionava como escritório de dia, enquanto que à noite eu dormia no sofá... Nas noites frias, me cobria com jornal, por falta de cobertor [pausa]. A gente lembrando, assim, emociona, e dá saudades...

Mas, caminhamos. Depois, abri um escritório em Taguatinga, com um colega, e fomos avançando na vida. Tornei-me advogado da Associação dos Servidores do Departamento Federal de Segurança Pública, que incluía o pessoal da Polícia Federal e da Polícia do Distrito Federal. Em 1970, o DPF – Departamento de Polícia Federal – separou-se da Secretaria de Segurança. Fui advogado dessa associação de 1963 a 1970, quando ela se extinguiu pela bipartição das duas Forças. Paralelamente, me dediquei a vários sindicatos de trabalhadores, para os quais prestava assistência jurídica, como o dos comerciários, dos trabalhadores do asseio e conservação, da construção civil e assim por diante.

Memória MPM – Então o senhor foi um dos pioneiros de Brasília. Quando o senhor chegou, a cidade estava ainda em processo de construção...

Rutílio Tôrres Augusto – Claro, estava emergindo ainda.

Memória MPM – Muita poeira vermelha...

Rutílio Tôrres Augusto – Muita poeira, muita poeira! Era uma lástima porque eu não tinha carro, ia para o Fórum de ônibus, chegava com os sapatos sujos... Desagradável para um advogado, de paletó e gravata e com os pés sujos. Isso foi assim por mais uns cinco anos, até a gente conseguir comprar um carrinho, melhorar um pouquinho.

Memória MPM – E essa efervescência toda do início da Capital? 1963 já estava sendo um ano “fervente”, com o levante dos sargentos...

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Rutílio Tôrres Augusto – Como a gente estava iniciando na profissão, não havia possibilidade de partir para o campo político, ou examinar a política. Nossa prioridade era sobreviver. Estabeleci alguns contatos, sobretudo com congressistas, porque conosco veio um colega, Célio Gonçalves, radialista em Bauru, da Bauru Rádio Clube. Ele fazia transmissões para São Paulo ao vivo e entrevistava figuras notórias... como o Almino Affonso, primeiro ministro do Trabalho do presidente Jango, depois de restabelecido o sistema presidencialista, em 1963... O deputado Plínio de Arruda Sampaio, falecido recentemente, que chegou a se candidatar à presidência da República; o Plínio Salgado... Conheci esse pessoal por intermédio dele, mas minha vida era essencialmente entre o escritório e o Fórum.

Memória MPM – E como é que se deu, em 1967, a designação para segundo substituto da Promotoria de Justiça Militar, da Auditoria da 11ª Região JM?

Rutílio Tôrres Augusto – A Auditoria tinha outra circunscrição, abrangendo o Distrito Federal e Territórios, Goiás, o hoje Estado de Tocantins, que então pertencia a Goiás... Em 1969, com apenas cinco anos em Brasília, me tornei conselheiro da Ordem dos Advogados do Distrito Federal, conquista que muito me orgulha. Tinha um bom relacionamento com os colegas. Bem, nesse contexto, alguém me alertou que estava sendo criada a Auditoria e me perguntou se teria interesse em ali atuar. Não pensei muito no assunto, mas acedi a essa sondagem, de forma que o meu nome foi submetido por esses colegas à apreciação do ministro Esdras Gueiros, que fora presidente da Ordem do DF e então estava no antigo Tribunal Federal de Recursos: foi quem chancelou a designação, em 1967. A Auditoria ainda não existia, sendo implantada em 1970.

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Memória MPM – O senhor foi designado, tomou posse, mas chegou a operar?

Rutílio Tôrres Augusto – Em 1967, fui designado e tomei posse em seguida.

Memória MPM – Em janeiro de 1967?

Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente. Fiquei no aguardo de que fosse instalada a Auditoria. A Justiça Federal e a Justiça do Distrito Federal funcionavam no Bloco 6, da Esplanada dos Ministérios. Não havia ainda o Tribunal de Justiça na Praça dos Buritis e os advogados estavam sempre por ali. Um dia, um juiz me chamou e disse “Olha, eu tenho aqui uma carta precatória da Justiça Militar de Juiz de Fora...”.

Memória MPM – Que jurisdicionava Brasília.

Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente. “O senhor não quer oficiar aqui como promotor?”. Eu falei: “Se o senhor me fizer ad hoc, eu posso, caso contrário, não, porque não estou convocado.”. E isso ocorreu umas duas ou três vezes. Eu oficiei como promotor ad hoc em feitos que seriam da Justiça Militar de Juiz de Fora, por precatório. Em 1970, quando instalada a Auditoria, houve a convocação de fato.

Memória MPM – O senhor se lembra do que se tratava? Eram casos corriqueiros?

Rutílio Tôrres Augusto – Não. Eram todos sobre a Lei de Segurança Nacional. Cerca de 80% do movimento da Auditoria era relativo à Lei de Segurança Nacional. A grande demanda!

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HISTÓRIAS DE VIDA

Memória MPM – Há uma correspondência sua, guardada na pasta funcional, para o procurador-geral, na qual o senhor lista cinquenta e quatro inquéritos, todos da Lei de Segurança, citando apenas o nome do primeiro denunciado, mencionando que alguns dos inquéritos tinham mais de cinquenta réus, outros possuíam vários volumes. No final, o senhor concluía pela necessidade de apoio à ação da Promotoria, solicitando melhor estrutura, talvez a designação de algum procurador para ajudar, a fim de se evitar o risco de prescrição. Como era a ambiência?

Rutílio Tôrres Augusto – Eu não me recordo bem dessa correspondência, mas foram várias nesse tom. O problema estava no volume descomunal de demanda que contraditava com a deficiência estrutural do Ministério Público. A instituição não dispunha de dependências condignas, máquina de escrever, ou papel. Era tudo fornecido pela Auditoria, isto é, pela Justiça Militar. Eu pleiteava um socorro para que pudéssemos agilizar os processos. Isso teve efeito... Quando foi instalada a Auditoria, o Dr. Benedito Felipe Rauen era o titular e eu, substituto [longa pausa]. Recebemos um número grande de processos porque acolhemos todo o acervo de Juiz de Fora, que jurisdicionava o Distrito Federal. Enfim, a Procuradoria-Geral de fato mandou um ou dois promotores para colaborar e vencermos o trabalho.

Memória MPM – O que aconteceria se os processos prescrevessem?

Rutílio Tôrres Augusto – Seria um desprestígio para o Ministério Público. Algo inaceitável! Mas alguns já vieram praticamente prescritos e, com efeito, prescreveram.

Memória MPM – Havia alguma tendência do Ministério Público, no sentido das denúncias: algum tipo de orientação, um critério?

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Rutílio Tôrres Augusto – Creio que eu tive muita sorte, porque nunca recebi um pedido de parte da chefia institucional, ou dos militares. Nunca! Os procuradores-gerais com os quais trabalhei me deram a devida autonomia: “O senhor aja como achar que deve ser.”. Na Ordem dos Advogados chegavam a me perguntar como conseguia conviver com aquela situação contraditória, de membro do Ministério Público Militar, conselheiro e advogado de sindicatos de trabalhadores...

Memória MPM – Pois eu pretendia lhe perguntar isso... [risos].

Rutílio Tôrres Augusto – Eu respondia que vivia a minha vida. Na Procuradoria-Geral, me comprometi a obedecer à lei – o Direito Penal Militar, a Lei de Segurança Nacional – guardando meu critério de avaliação em cada caso. No início, isso até me gerou um problema, porque a maioria dos processos veio de Juiz de Fora, tendo a denúncia sido oferecida por um colega. Mas eu entendia que várias não tinham o mínimo cabimento. As pessoas simplesmente não deveriam ter sido denunciadas. Então, o que acontecia? Na hora do julgamento...

Memória MPM – Pedia a absolvição?

Rutílio Tôrres Augusto – Não só pedia a absolvição, como me detinha, me demorava no pedido, fundamentando a inconsistência das provas... E por quê? O Conselho de Justiça é composto por quatro militares e um juiz togado. Os quatro militares, sabia-se à época, tinham uma orientação. Então, evidentemente, sabia-se que, dependendo deles, os denunciados fatalmente seriam condenados, daí minha grande preocupação em perder certo tempo na sustentação da Promotoria para fundamentar o pedido de absolvição. Porque sempre tive por princípio que levaria minha sustentação oral depois, até o

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Tribunal, se por ventura o pedido não fosse satisfeito em primeira instância. Houve um episódio, no qual se evidenciou a condição aparentemente contraditória, de membro do Ministério Público Militar e de conselheiro da Ordem, relativo a uma medida de emergência, quando a Ordem, pelo seu presidente Maurício Corrêa, um grande e querido amigo [pausa, emoção]...

Memória MPM – Isso já nos anos 1980.

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. A Ordem programara um encontro de advogados com uns três, quatro meses de antecedência. E aconteceu de ser decretada medida de emergência na exata época em que seria realizado esse encontro. Mas como ele já fora programado, a presidência da Ordem achou que a agenda deveria ser mantida, mesmo havendo a proibição de reuniões. Terminado o encontro, houve uma invasão da Ordem, a mando do condutor das medidas de emergência, o general Newton Cruz... [pausa]. O Conselho da Ordem se reuniu emergencialmente às quatro, cinco horas da manhã. Eu estava presente. Fui incumbido, pelo Conselho, com mais dois colegas, de ir à Superintendência da Polícia Federal em Brasília, para pedir a liberação de um funcionário que havia sido detido. No dia seguinte, nove horas da manhã, procurei o procurador-geral, Dr. Milton Menezes da Costa Filho, para lhe explicar minha posição. Ele me olhou e falou: “Rutílio, faça o que você julgar direito.”. Apoiou-me plenamente. Isso eu devo ao doutor Milton até hoje, já que, a essa altura, meu nome estava no SNI, porque eu me identifiquei ao ir à Superintendência da Polícia Federal. O interessante é que tudo tem consequências, às vezes gratificantes. Contra o Maurício Corrêa, presidente da Ordem, por esse fato, foi instaurado um IPM que evidentemente caiu na Auditoria na qual eu oficiava. Dei-me por suspeito, lógico, porque fui arrolado como testemunha.

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Memória MPM – Testemunha de acusação ou?...

Rutílio Tôrres Augusto – Testemunha genérica. E compareci ao Comando Militar para prestar o meu depoimento, em favor do Maurício Corrêa, porque ele não fez nada de errado. Fui questionado por uns quarenta, cinquenta minutos e, ao sair, qual não foi minha surpresa: um coronel, presidente do inquérito, vai até o elevador comigo e diz “Doutor Rutílio, se eu precisar de advogado vou procurá-lo.” [risos]. Quer dizer, são certas coisas que parecem contraditórias, mas são gratificantes, não é mesmo? E isso surgiu devido ao aparente conflito entre o procurador militar, a advocacia, o conselheiro da Ordem... No íntimo, eu conseguia administrar essas diferenças. Para mim era uma coisa normal, não havia conflitos. Hoje em dia, a concepção de Ministério Público é diferente, mas até 1988 éramos pessimamente gratificados. Não havia como manter uma família apenas com os vencimentos de promotor. Então, era comum que advogássemos para complementar a renda.

Memória MPM – Acontecia de f iliado a algum sindicato, de repente, aparecer em algum IPM?

Rutílio Tôrres Augusto – Não! Inclusive porque eu era muito ouvido no interior dos sindicatos. Minhas orientações eram respeitadas e os nossos sindicatos não se envolviam em badernas, de forma nenhuma! Me daria por impedido se algo assim tivesse acontecido.

Memória MPM – Nos casos em que o senhor pedia absolvição, especialmente nesses em que o colega de Juiz de Fora propusera denúncia, qual era a tendência do Conselho?

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Rutílio Tôrres Augusto – Normalmente o Conselho já tinha uma sentença esboçada... A tendência era pela condenação.

Memória MPM – E como furar essa barreira, se o Conselho já tinha um convencimento?

Rutílio Tôrres Augusto – Minha preocupação era, nesses casos, sustentar o melhor e o mais detidamente possível em favor do réu, para lastrear o futuro recurso que poderia propor. O juiz togado, por sua vez, normalmente acompanhava o Ministério Público nos pedidos de absolvição. Isso reforçava minha posição no sentido recursal. O Tribunal se via numa situação difícil: um pedido de absolvição da defesa e do Ministério Público. Era estranho. A saída era atender ao pedido formulado pela defesa e julgar, assim, prejudicado o pleito do ministerial. Aconteceu muitas vezes.

Memória MPM – A afirmação da instituição não ficava, de certa forma, deslustrada?

Rutílio Tôrres Augusto – Não, porque estava sendo prestigiada de forma indireta. Eu não podia admitir injustiça; podia até estar errado, mas tentava evitar o que considerava injustiça. Houve muitos casos, principalmente mulheres, que relatavam terem sido vitimadas por torturas, sofrido queimaduras, submetidas a pau de arara, a violência sexual... [voz embargada]. Ao término do interrogatório, eu sempre fazia consignar em ata que fosse instaurado inquérito para apuração dos responsáveis, se realmente existentes, pois estavam a serviço do Estado. Era o que o Ministério Público podia fazer como fiscal da lei.

Memória MPM – O pedido era atendido ou não?

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Rutílio Tôrres Augusto – Olha, da Auditoria o pedido era expedido. Mas não sei dizer se na Administração Militar era distribuído. A época em que alguns desses casos “ferveram”, e outros pedidos neste sentido surgiram, coincidiu com minha requisição para a Procuradoria-Geral, de forma que deixei a Auditoria. Então, não pude acompanhar de perto os desdobramentos.

Memória MPM – O senhor foi requisitado para a Procuradoria-Geral em 1977, confere?

Rutílio Tôrres Augusto – Eu creio que sim... não tenho certeza.

Memória MPM – Em 1976 o senhor teve uma licença de saúde, não é?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim.

Memória MPM – Houve uma designação do Dr. Ruy de Lima Pessôa para funcionar na sessão de julgamento do Processo nº 287/75, em que são acusados Yoshio Ide e outros, no dia 24 de setembro de 1976.

Rutílio Tôrres Augusto – Ah, sim, houve vários casos como esse!

Memória MPM – Essas designações?

Rutílio Tôrres Augusto – Em setembro de 1976 fui requisitado para a Procuradoria-Geral. A partir daí, podia acontecer de faltar promotor na Auditoria, de modo que eu era designado em substituição. A Procuradoria--Geral funcionava no sexto andar do Superior Tribunal Militar e no sétimo andar do mesmo prédio ficava a Auditoria. Numa dessas oportunidades, inclusive, tive um atrito com uma juíza-auditora. Como eu ia à Auditoria esporadicamente, lá chegava de espora pronta! [risos].

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Memória MPM – O senhor conviveu com pelo menos três juízes- -auditores. O primeiro foi o Dr. Célio Lobão?...

Rutílio Tôrres Augusto – Não, o primeiro foi o Dr. José Bolívar Régis. Depois, do Paraná, veio o Dr. Célio Lobão Ferreira, que foi seguido pelo Dr. Fernando Przewodowski Nogueira, um homem muito gentil, que permaneceu da Auditoria até a aposentadoria. Esporadicamente, vinha um do Rio, quando havia impedimento do juiz local, mas era raro.

Memória MPM – Os dois emitiram declarações de elogio ao seu desempenho.

Rutílio Tôrres Augusto – Hummm, é?

Memória MPM – Sim, o Célio e o Bolívar Régis… São duas declarações de 1973. Pelo que entendi, era um concurso, alguma coisa que o senhor ia fazer e eles tomaram a iniciativa de mandar ao Procurador-Geral uma recomendação. Aparentemente, tinham muito apreço e consideração pelo senhor.

Rutílio Tôrres Augusto – Aquilo era uma irmandade. Havia colaboração e cordialidade entre os membros... Recordo-me de uma oportunidade, presentes vários advogados, na qual o Dr. José Luiz [Barbosa Ramalho] Clerot, advogado atuante e combativo, se opôs a algo, e o Dr. Célio lhe deu voz de prisão em plena audiência! Eu, vivendo a dupla condição de promotor e conselheiro da Ordem, pedi a palavra: “Meritíssimo, eu peço permissão, mas Vossa Excelência não pode executar essa prisão sem a presença do presidente da Ordem”. Mas o Célio não quis nem saber e manteve o rapaz preso por umas duas horas. Depois o soltou. O interessante é que esse Dr. Clerot veio a ser ministro do Tribunal [risos] mais tarde [nomeado em 1986].

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Memória MPM – O mundo dá voltas, não é? O senhor conviveu muito com os ministros do Tribunal, correto?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Certa feita, o presidente do Tribunal solicitou ao procurador-geral que me cedesse para auxiliar em algumas tarefas, como a confecção do projeto da Lei Orgânica da Justiça Militar. Além disso, estive três vezes na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, para assessorar o presidente do Tribunal, general Reynaldo Mello de Almeida, nas suas conferências. Eu tinha um relacionamento muito bom com o Tribunal. Também assessorei o ministro [Paulo César] Cataldo durante seis ou oito anos. Mesmo depois da minha aposentadoria, continuei atuando como assessor.

Memória MPM – O senhor se aposentou em 1996?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim, e permaneci assessorando o ministro Cataldo depois.

Memória MPM – O senhor foi grão-mestre da Loja Maçônica do Distrito Federal entre 1975 e 1978...

Memória MPM– Ah, sim! Entre 1972 e 1975 fui grão-mestre adjunto, o primeiro substituto do grão-mestre, quem, infelizmente, teve uns probleminhas e precisou se afastar. Não chegou a ser uma cassação do mandato, mas ele não teve condições de permanecer. Na prática, cumpri quase todo o mandato interinamente. Em seguida, fui eleito grão-mestre da jurisdição, de 1975 a 1978. Foi uma época profícua para mim. Fiquei muito honrado com esta distinção. Entre 1966 e 1969, para que se tenha uma ideia, o grão-mestre foi o Washington Bolívar de Britto, que presidiu posteriormente o Superior Tribunal de Justiça. Mas é uma entidade fechada, da qual se dá notícia apenas pela investidura deste cargo.

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Memória MPM – Sim, esta informação está disponível na internet.

Rutílio Tôrres Augusto – Exatamente. Ajudei a construir a Grande Loja de Brasília. Quando entrei, era um templo de madeira, muito simpático até. Foi em minha gestão que erguemos o templo definitivo, que está lá até hoje.

Memória MPM – A Maçonaria é uma entidade tradicional e Brasília é uma cidade muito nova, que estava nascendo...

Rutílio Tôrres Augusto – É verdade. Às vezes havia estranhamentos. Eu sempre tive um ótimo relacionamento com os magistrados e, certa vez, me encontrei com um juiz conhecido que disse que gostaria de me fazer um convite. Os dias se passaram, encontrei-o novamente e perguntei sobre o tal convite. Ele respondeu que desistira de formulá-lo por ter descoberto ser eu maçom – ele era um senhor muito católico [pausa]. Isso não tem sentido, pois o próprio ingresso na Maçonaria é condicionado à crença em Deus. Não importa se sua religião é cristã, católica, protestante, muçulmana... Mas você precisa crer em Deus. Muitos católicos foram maçons. Há até encíclicas papais que explicitam a não condenação dessa condição. Eu mesmo sou católico. Para começar, não se abre uma sessão da Maçonaria sem a leitura do Livro da Lei, um versículo da Bíblia.

Memória MPM – O senhor chegou a colaborar também com procuradores-gerais?

Rutílio Tôrres Augusto – Fui chefe de gabinete do procurador--geral Francisco Leite Chaves, na transição para a Nova República. Assim como o Dr. George Tavares, o Dr. Leite Chaves veio de fora da carreira,

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era senador da República. Ele organizou o primeiro Encontro Nacional dos Membros do Ministério Público Militar.

Memória MPM – Em agosto de 1986.

Rutílio Tôrres Augusto – Foi muito bem-sucedido. Pela primeira vez os membros de todos os Estados do Brasil se reuniram, num congraçamento profícuo. O Leite Chaves deixou muita saudade entre os membros da carreira depois que se afastou da posição, porque é uma figura adorável, um exímio orador. No início, contudo, foi bastante contraditado, em razão de ser um elemento estranho. O Ministério Público Militar se acostumara a ser chefiado pelos membros da carreira. Mas ele se desempenhou muito bem, inclusive junto ao Tribunal. Ele e o George Tavares foram fundamentais para a consolidação do processo de transição para a democracia.

Memória MPM – A instituição chega ao processo Constituinte com uma imagem questionada pela sociedade em função da atuação nos crimes de Segurança Nacional.

Rutílio Tôrres Augusto – Principalmente em razão de alguns colegas que, no meu entendimento, se excediam, que não eram promotores, mas acusadores sistemáticos.

Memória MPM – Isso foi reconhecido, foi identif icado pela sociedade naquele momento?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Por isso, a vinda dessas pessoas de fora ofereceu um bálsamo, no sentido do retorno à normalidade.

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Memória MPM – No período da Constituinte chegou a haver propostas de extinção da Justiça Militar...

Rutílio Tôrres Augusto – Houve, sim. A deputada Zulaiê Cobra, de São Paulo, era uma das mais ferrenhas defensoras da extinção da jurisdição. Por sorte, podíamos contar com fortes braços amigos, como o do senador Maurício Corrêa, que nos apoiou incondicionalmente, apesar de ter sido atingido pela jurisdição, em função do episódio da invasão da sede da OAB do Distrito Federal. Isto é, ele soube diferenciar a importância do papel constitucional da jurisdição da questão ideológica e do contexto vivido durante o regime militar. Achava que a Justiça Militar deveria permanecer.

Memória MPM – E os outros membros do Ministério Público que estavam no Congresso naquele momento? Eu penso, por exemplo, no Plínio de Arruda Sampaio, que pontificava na Subcomissão do Poder Judiciário.

Rutílio Tôrres Augusto – Não me recordo do desempenho dele, mas sei que era contra a Justiça Militar, sem dúvida. O Plínio era radical. Sempre foi. Havia outros parlamentares infensos à jurisdição militar, mas tínhamos, no Maurício Corrêa, um interlocutor privilegiado. Ele conhecia bem a Justiça Militar e era capaz de enxergar o seu papel no futuro, sem ressentimentos em função do passado. Outro que colaborou foi o Bernardo Cabral.

Memória MPM – Voltando à época dos processos que foram julgados no âmbito da Lei de Segurança Nacional, há algum que tenha chamado mais a sua atenção?

Rutílio Tôrres Augusto – [Pausa] Eu não vejo diferença entre os processos. Mas tivemos um caso mais folclórico, podemos eventualmente dizer, o do padre Alípio.

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Memória MPM – Célebre!

Rutílio Tôrres Augusto – No interrogatório, quando lhe perguntaram a profissão, ele não titubeou: “Comunista!” [risos]. É claro, havia casos graves, de roubo de armamento em quartel, por exemplo. Mas a maior parte era formada de simpatizantes. É complicado julgar as pessoas pelo seu pensamento. O próprio ministro Jarbas Passarinho teve a coragem de alertar para os excessos, pessoas que estavam sendo presas porque tinham livros em casa com uma simples capa vermelha! A posse de um livro vermelho não pode ser apontada como prova de que o sujeito era um comunista e terrorista. Mas se chegava a esse absurdo. A gente via nas audiências trinta, quarenta réus... Aquele monte de meninos, estudantes, semblantes tristes, como quem diz: “Pô, o que eu estou fazendo aqui, afinal?”. Aquilo doía. Às vezes, à noite, a gente não dormia... [pausa, voz embargada]. Não tinha como salvá-los daquela situação se não fosse encontrando um caminho dentro da lei. Quem tivesse cometido um ato que se enquadrasse na legislação seria punido, sem dúvida. Mas havia muitos ali que não haviam cometido crime algum. Que haviam lido um livro, participado de uma reunião... Mas o sistema queria punir todos, indistinta e rigorosamente. Com isso eu discordava e tentava oferecer alternativas.

Memória MPM – O padre Alípio foi condenado?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim, em vários processos. Acho que ele não era comunista coisa nenhuma, falou aquilo de molecagem. Na prática, pediu para ser condenado. O Conselho entendeu a declaração como uma afronta. O comportamento contrastava com o de outros que estavam na mesma situação. Um réu que se comportou de forma afável foi o Francisco Julião, advogado das Ligas Camponesas. Foi muito ameno no interrogatório. E olha que ele era tido

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como um sujeito poderoso. Eu acho que diante de uma autoridade é necessário se comportar, a não ser que se queira ser prejudicado.

Memória MPM – O Julião foi deputado federal, eleito pelo PSB de Pernambuco...

Rutílio Tôrres Augusto – Pois é... Foi lamentável. Na véspera da prisão ele esteve em Brasília, acho que foi ao Tribunal, com a defensora, Dra. Elisabete. Poucos dias depois, já não se tinha mais notícias dele.

Memória MPM – Ele conseguiu deixar o país em fins de 1965, com destino ao México, onde residiu como exilado até retornar ao país depois da Anistia.

Rutílio Tôrres Augusto – Não era um cara belicoso, perigoso. Não havia motivo para ser detido.

Memória MPM – O senhor mencionou que muitos dos réus eram estudantes, jovens. Filhos de conhecidos apareciam como réus?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Algumas histórias tristes aconteceram. Como numa oportunidade em que um maçom famoso de Goiás tentou intervir em favor do filho, réu em um processo que estava comigo. Ele falou “Sou pai de fulano.”. Eu olhei para ele e disse: “Vou lhe explicar minha situação: esse rapaz está no meio de trinta a quarenta pessoas; analiso todos de uma só vez. Se você me pedir, vou examinar pormenorizadamente o caso do seu filho. Isso significa que, se ele tiver um envolvimento sério, será mais punido que os outros...”. Afinal, pediu para deixar o caso com os outros. Não era possível prevaricar. Se recebêssemos uma solicitação, tinha-se de ir fundo na investigação. Havia processos de cinquenta volumes. Impossível ler página por página! De modo que as

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encomendas, as solicitações, acabavam sendo analisadas com lupa, o que era pior para o réu. Mas esses pedidos realmente nos chegavam. E o drama era sempre o mesmo.

Memória MPM – Neste caso em particular, qual foi a decisão, o réu foi absolvido ou condenado?

Rutílio Tôrres Augusto – Se não me engano, condenado com os demais. Mas a pena foi a mais branda possível. Quando a condenação era inevitável, em função das provas e do enquadramento na Lei, eu procurava solicitar a pena mais branda, dentro da razoabilidade. Nunca exagerei em pedidos de penas.

Memória MPM – E o que era razoável?

Rutílio Tôrres Augusto – Razoável geralmente era o mínimo legal. Digo razoável, porque na Lei de Segurança o mínimo já era “desrazoável”. Era uma legislação muito dura. Na véspera dos julgamentos, eu varava as madrugadas tentando encontrar formas de aliviar aquilo, porque sabia que no dia seguinte encontraria os infelizes dos seus familiares na assistência.

Memória MPM – Os pais, as mães...

Rutílio Tôrres Augusto – Sim, exato: pais, mães, esposas, maridos... Seriam todos atingidos. A família inteira! Então, isso dói. Mas alguém tinha de fazer. Eu procurava fazer com o máximo de moderação.

Memória MPM – Se não, a mão ainda poderia pesar mais?

Rutílio Tôrres Augusto – Ah, sim... Havia colegas que não hesitavam... O Supremo Tribunal Federal chegou a apelidar um colega

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de procurador “Metralha”, pois ele botava todos os artigos da Lei de Segurança na denúncia.

Memória MPM – Na sua pasta funcional há uma pequena sequência de telegramas trocados entre o senhor e o procurador-geral de Justiça, que estava no Rio de Janeiro, em 1971, sobre o processo de Mário Guimarães e outros. O Dr. Ruy parecia preocupado com uma notícia, que teria chegado pelo rádio, de que o auditor Célio Lobão não teria denunciado o réu, no processo nº 9.570, quando o senhor teria informado, em telegrama anterior, ter pedido a denúncia. O senhor se lembra disso?

Rutílio Tôrres Augusto – Mário Guimarães... [pausa]. Sobre a não denúncia? Não me recordo. Provavelmente o juiz não tivesse recebido a denúncia. O Célio era uma pessoa muito independente. Às vezes ele agia no sentido até de acirrar os ânimos. Lembro-me de uma ocasião em que ele, estando como corregedor-geral, entrou com um mandado de segurança no STF contra o presidente do STM, que apresentara uma nova Lei Orgânica da Justiça Militar extinguindo a Corregedoria.

Memória MPM – E ganhou?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Ele havia sido posto em disponibilidade, mas conseguiu anular o ato. O Célio sempre foi belicoso, inclusive com seus amigos, como eu o era. Ele se exaltava no Plenário. Às vezes discutíamos.

Memória MPM – E a relação com os jornalistas, com a imprensa?

Rutílio Tôrres Augusto – A relação com a imprensa sempre foi cordial. Os jornalistas eram sempre bem-recebidos e havia liberdade para o seu ofício. Eu tinha amizade com alguns, inclusive. Havia uma moça do Estadão,

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outro da Globo... Até os encaminhava para o assessor de imprensa do Tribunal, quando era o caso.

Memória MPM – O senhor participou da fundação da Associação de classe, não é?

Rutílio Tôrres Augusto – Ah, sim! Fui um dos fundadores da entidade em 1978. A Associação do Ministério Público Militar cresceu muito desde então, graças ao trabalho abnegado de colegas como o José Carlos Couto de Carvalho.

Memória MPM – E a aposentadoria em 1996? Já tinha sido promovido a subprocurador, correto?

Rutílio Tôrres Augusto – Sim. Em julho, me aposentei. Começou uma pressão grande, de colegas, que pretendiam se aposentar, mas antes galgar o final de carreira. Diante disso, pedi uma certidão de tempo de serviço: contava, para efeitos de aposentadoria, com quarenta e um anos e vinte e sete dias de serviço público. Achei que ficara tempo suficiente e já estava demais aquela pressão, que, de certa forma, tinha razão de ser, pois os colegas também tinham seu direito. Não havia por que eu permanecer obstaculizando a progressão dos companheiros.

Memória MPM – O senhor gostaria de deixar algo mais registrado?

Rutílio Tôrres Augusto – Sou muito grato à instituição por tudo o que ela me proporcionou. Também sou grato aos procuradores-gerais com os quais convivi, como o Dr. Milton Menezes da Costa, a quem devo muitíssimo, e o Ruy Pessôa, um sujeito boníssimo. O primeiro que conheci foi o Dr. Jacy Guimarães Pinheiro, quem me convocou quando a Auditoria foi instalada. A

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qualquer momento eu poderia ser desconvocado, porque antes da Constituição de 1988 não tínhamos estabilidade, mas isso nunca aconteceu, o que significa que meu trabalho era respeitado.

Memória MPM – Muito obrigado pelo seu depoimento.

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JOÃO

JAY

ME A

RAÚJ

O Entrevista realizada em 28 de março de 2015, em Porto Alegre, na residência do depoente, por Gunter Axt.

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João Jayme Araújo nasceu em 23 de maio de 1935, em Santa Rosa, no Rio Grande do Sul. É filho de João Aguirre Araújo e Amélia Zenni de Araújo. Casou-se com Claudete Antonieta de Araújo, em 1958. Formou-se técnico em contabilidade. Foi sargento do Exército. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1965. Pós-graduou-se em Atos e Fatos Jurídicos pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Em 24 de março de 1971, foi nomeado ao cargo de segundo substituto de procurador militar de terceira categoria, para atuar na 1ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em 4 de maio de 1995, foi promovido ao cargo de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 13 de junho de 1995, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor é natural de onde?

João Jayme Araújo – Sou natural de Santa Rosa.

Memória MPM – E estudou lá?

João Jayme Araújo – Estudei lá até o curso médio. Eu era sargento do Exército. Consegui transferência para Porto Alegre para prestar o vestibular. Eu fiz para Direito e a minha mulher, para Educação Física Infantil. Graças a Deus tivemos êxito e estamos em Porto Alegre até hoje.

Memória MPM – Em que ano vocês vieram?

João Jayme Araújo – Foi em 1960.

Memória MPM – E qual foi a Faculdade de Direito que o senhor cursou?

João Jayme Araújo – A Faculdade de Direito da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Memória MPM – Como era a ambiência da Faculdade naquele momento? O que o senhor se lembra dos professores, dos colegas?

João Jayme Araújo – Dentre meus professores recordo o Dr. Galeno Vellinho de Lacerda, diretor da Faculdade; o professor Jorge Fernando Schneider, de Processo Civil; o professor Luiz Lopes Palmeiro, de Penal; o professor Armando Pereira Correia da Câmara, dominava filosofia como ninguém, mas sabia que nós não, então fazia a mesma pergunta para todo mundo nas provas orais: “O que que tu achas da filosofia? O que tu entendes por filosofia? O que é a filosofia para ti?”, e passava todo mundo; o Elpídio Ferreira Paes, professor de latim e de Direito Romano.

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Cursei o primeiro ano em Passo Fundo. Fiz uma prova com mais dois colegas para poder entrar na UFRGS. Tive a felicidade de sair na frente deles porque, por um acaso, no período da tarde eu revisara um livro de Direito Romano, sobre fontes das obrigações, contrato, quase contrato, delito, quase delito... E de noite caiu justamente esse ponto.

Dentre os colegas, não me esqueço do Dr. José Luiz Vieira, recentemente falecido. Ele era R/2 e estava saindo do 18º RI. Conseguiu uma vaga numa indústria química. Mais tarde, fui encontrá-lo como juiz-auditor na Justiça Militar. Alguns colegas se tornaram famosos, como o Roberto Sfoggia, professor; o Marco Aurélio Garcia, assessor da presidente Dilma Rousseff para assuntos internacionais. O Jorge Arthur Morsch, foi procurador do Estado e assessor do governador Antônio Britto Filho. Dizia-se que nossa Faculdade fazia os melhores quadros até então; não sei se para nos agradar ou se para aguçar nosso senso de responsabilidade para com a herança recebida.

Memória MPM – O senhor se formou em que ano?

João Jayme Araújo – Me formei em 1965.

Memória MPM – Então o senhor pegou os eventos de 1961 e de 1964. Como foi essa época?

João Jayme Araújo – Eu era sargento e os movimentos estudantis estavam a pleno vapor. Meu relacionamento com os colegas era mais ou menos assim: eu não me dava muito a conhecer e eles me respeitavam. Eu lhe disse que fiz o primeiro ano em Passo Fundo. E o Morsch dizia para eu tomar cuidado. Coincidentemente, houve um congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) e o Luiz Carlos Lopes Madeira, que estava um ano mais

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adiantado do que eu (se tornou mais tarde ministro no Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília), disse: “Vamos junto!”. Mas não tinha como... Ouvi o comício do presidente Jango, aquele famoso com o pessoal da Marinha, e comentei na Faculdade, “Ninguém mais segura o Jango.”. Essa situação de sargento e de estudante de Direito impedia que eu tivesse um relacionamento maior com os colegas. Em março, eclodiu a Revolução.

Memória MPM – O senhor já estava advogando em 1965?

João Jayme Araújo – Eu advoguei com Processo Cível em um escritório de um amigo, o Dr. Roberto Carrion. Mas precisei aliviar o ritmo, porque tive um problema cardíaco. No quartel, tendo em vista a minha formação jurídica, eu costumava ser nomeado para escrivão em inquéritos policiais militares. Certa vez, o encarregado de um foi à Justiça Militar colher subsídios e o acompanhei. Lá conheci o auditor Dr. Dorvalino Tonin, que me convidou para trabalhar com ele na parte da tarde, ajudando-o na datilografia das sentenças. Consultei o chefe do Estado-Maior, meu amigo coronel Clóvis Borges de Azambuja, que concordou. Mas os procuradores, Dr. Luís Eduardo Madalosso e Dr. Cezar Tadeu Mazzin Canarim, pediram para ficar com eles. Assim, comecei auxiliando na Promotoria, na acusação. Aprendi muito de Justiça Militar. Outros auditores com os quais convivia e aprendia eram o Dr. Rubem Cachapuz Medeiros e o Dr. Larry José Ribeiro Alves. O advogado de defesa era o Dr. Luís Lopes Dariano.

O trabalho era solitário. Não recebíamos quase nenhum recurso ou material de Brasília. Eu até estava estudando para atuar como juiz-auditor, mas então veio uma legislação intercorrente que estendeu efetividade aos substitutos. Assim, fui efetivado como segundo substituto de procurador.

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Trabalhei em Porto Alegre e em Santa Maria. Fui designado para Bagé, mas troquei com uma colega. Também atuei em Curitiba, por solicitação do Dr. José Antônio de Lima Guimarães, que não conhecia os promotores de lá, com o Dr. Alceu Alves dos Santos, que se tornou juiz-auditor corregedor no STM. Fui a Curitiba para atuar em um processo de Lei de Segurança Nacional.

Depois, fui recebendo promoções e cheguei a ser designado subprocurador-geral da Justiça Militar. Um colega nosso, procurador-geral, Dr. Marco Antonio Pinto Bittar, queria que eu fosse para Brasília. Mas havia aquelas picuinhas em torno das promoções. Não tinha nem mesmo espaço físico para trabalhar.

Quando entrei no exercício funcional, o procurador-geral era o Dr. Ruy de Lima Pessôa, seguindo-se o Dr. Milton Menezes da Costa Filho; dos seguintes, muitos se destacaram por suas características pessoais: Dr. Kleber de Carvalho Coêlho, o grande impulsor da construção de Procuradorias pelo país; Dr. Eduardo Pires Gonçalves, irmão do ministro do Exército de então e oriundo da Procuradoria local; Dra. Marisa Terezinha Cauduro da Silva, também minha colega em atividade comigo e com a Dra. Solange Augusto Ferreira, na Auditoria de Porto Alegre.

A Dra. Marisa deve ter sido a pessoa que mais deu força para as reuniões dos membros do Ministério Público Militar, em todo Brasil e, o Dr. Marco Antonio Pinto Bittar, a quem sou grato por ter visto em mim condições para ser promovido a subprocurador-geral.

Num encontro de Direito Penal Militar em Florianópolis, a turma lançou a minha candidatura para procurador-geral. Os que estavam lá, iriam comigo, mas minha mulher perguntou para a senhora do procurador-geral

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como era o negócio: “Nem te mete nisso, é uma briga com eles lá por picuinhas, por melindres e etc.”, disse ela. Aí eu perguntei para ele: “É imprescindível a minha presença em Brasília?”. Ele respondeu: “Imprescindível, não é; eu gostaria muito de te ter lá, mas não chega à condição de imprescindibilidade.” [risos]. Então eu resolvi pedir a aposentadoria, já estava com quarenta e dois anos de serviço, contando o tempo de Exército. Fiquei por volta de 1970, até 13 de junho 1995, coincidentemente a data de Santo Antônio, e o dia do aniversário da minha esposa, Claudete.

Memória MPM – Vocês se conheceram em Santa Rosa?

João Jayme Araújo – Sim. Ela é de São Luiz Gonzaga. Perdeu a mãe e foi para Santa Rosa morar com um tio; foi quando nós nos conhecemos.

Memória MPM – Então vocês já estavam casados quando vieram a Porto Alegre?

João Jayme Araújo – Nós nos casamos em 1958. Eu estava por ser excluído do serviço militar, em 1954, e o subcomandante Agnaldo Caiado de Castro fez muito empenho para eu ser promovido, porque eu tinha um curso de técnico em Contabilidade, e ele propôs a minha promoção. Perguntei para o pai e a mãe: “E agora, o que faço?”. Na sabedoria dos mais antigos, recomendaram: “Fica no quartel, pois lá não tem carestia.”. Eu já tinha aceitado a promoção e estava com o certificado de conclusão de serviços militares pronto, isso no fim do ano, acho que em 26 de novembro. A gente ganhava relativamente bem. Solteiro, deu para segurar uns “pilas” por mês. Quatro anos depois, nos casamos, em 1958. Em 1960, viemos para Porto Alegre fazer o vestibular.

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Memória MPM – Ela fez a UFRGS também?

João Jayme Araújo – Sim, ali no Jardim Botânico. Eles não tinham todas as instalações na UFRGS, então faziam alguma coisa onde fica a piscina do Grêmio Náutico União, na SOGIPA (Sociedade de Ginástica de Porto Alegre), não sei se faziam na ACM (Associação Cristã de Moços), acho que não. E tinham determinadas aulas que eram lá na própria Faculdade que estava em construção.

Memória MPM – E ela chegou a pegar a Universíade, em Porto Alegre?

João Jayme Araújo – Sim, em 1963, por ocasião da Universidade.

Memória MPM – Mas voltando para um pouco antes do seu ingresso no Ministério Público, em março de 1964, o senhor estava na Faculdade ou no quartel?

João Jayme Araújo – Em ambos. Na 3ª Companhia de Saúde, onde hoje é a PE.

Memória MPM – O Leonel Brizola estava levantando os sargentos...

João Jayme Araújo – Nossos, não tantos, mais na Brigada Militar, pelo que eu lembro. Eles me transferiram para o QG da 6ª DI, na época. Eu acho que no lugar de dois que eles tiraram de lá, ou transferiram. Um, eu conheci com certeza, ficou meu amigo; não tinha culpa de nada. Eu fazia o que devia fazer, minha atribuição. Tinha preferência por determinada cor política, não era militante. E eu fui para a Justiça Militar no início dos anos 1970.

Tenho um trauma, que vou lhe contar: numa ocasião nós estávamos na casa de um amigo nosso, um casal, quando veio a notícia: “O Cleiton da Silva Vanini foi preso.”. Ele era irmão da senhora da casa, eu conhecia ele, era um

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“gurizão”. Quando chegou o inquérito para a Auditoria, era um inquérito com mais ou menos cem pessoas, todas presas, e uma vez que elas estavam assim, eu tinha cinco dias para apresentar a denúncia. Trouxe para casa o inquérito: era “capa verde”, e trabalhei como um louco! Graças a Deus era Páscoa, então não tinha expediente na Procuradoria e dava para trabalhar em casa. Como esse guri era conhecido da gente, bastante amigo, fiquei com trauma daquele inquérito, que depois se tornou processo, e continuou com a mesma capa. Em determinado período eu não conseguia nem tomar cafezinho, pois vivia trêmulo por causa disso.

Com relação a minha função na Procuradoria Militar, eu sempre achei que se o cara fosse filiado a um partido considerado subversivo ou a uma chamada agremiação clandestina, já incidia nas penas da lei, simplesmente por ser filiado. Depois, eu punha mais todos os delitos cometidos. Para mim, cabia então, nas alegações finais, confirmar ou aliviar aquilo que requerera, ou pedir absolvição, o que também fiz muitas vezes (em processo de subversão, nem tanto, porque naquela época nós estávamos empenhados num país diferente, quer se queira, quer não, e aqueles que eram considerados carrascos, hoje são percebidos como heróis, isto é, as circunstâncias da vida e da política se alteraram completamente). Então eu fazia o seguinte: tirava o “chumbo grosso”, depois ia tirando os pequenininhos, os fragmentos, essas coisas.

Memória MPM – Quando o senhor diz “tirando os pequenininhos, os fragmentos”, se refere àqueles para os quais podia pedir absolvição, é isso?

João Jayme Araújo – Num julgamento, com o Dr. Oswaldo de Lia Pires na defesa de uma das rés, namorada de um tal Félix Silveira da Rosa Neto, creio, eu disse: “Essa moça pecou, faliu ou deve, mas isso foi por amor; ela aderiu

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ao conceito do namorado e tal.”. O Lia Pires pegou essa tese, sublinhando ter sido o próprio promotor seu autor. Ela foi absolvida. O Lia Pires ganhou uma “nota grande” usando meu argumento [risos].

Memória MPM – O Franklin ao qual o senhor se refere é o de Araújo?

João Jayme Araújo – Não, outro. Mas sobre o Carlos Franklin Paixão de Araújo, minha tia, Lina de Araújo, irmã do meu pai, mas Zanella por casamento, encontrou há certo tempo com ele numa procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, e, sendo todos Araújo, começou aquela conversa, de quem é parente, quem conhece, e tal: “O senhor conhece meus filhos? O Nelson, o Raul, o Artur?”. “O Artur, eu conheço!”, ele responde. Tratava-se do Artur Zanella, vereador em Porto Alegre. Aí a conversa foi prosseguindo. Até que ela teria perguntado para o Carlos Franklin: “Vem cá, e conhece o ‘Major’ João Jayme Araújo?”. “Ahhh... conheço demais, sim! Foi ele quem me botou na cadeia!” [risos]. Ela dissera “Major”... Surpresa, ela então notou: “Mas o senhor deve ter aprontado alguma coisa, não é? Porque o Jayme é tão queridinho...”. Ele disse: “Eu só roubei um banco!” [risos]. Ele foi meu contemporâneo de Faculdade. O conhecia de vista. Não tivemos proximidade... Certa vez, entretanto, me dei por impedido de atuar num processo, o do Luís Heron Paixão de Araújo, irmão do Carlos Araújo. O Heron era namorado de uma moça que fora minha colega na Faculdade, da mesma turma. Contudo, o juiz não aceitou. Disse que eu tinha de ficar lá. Afinal, fiquei, porque era interrogatório mesmo, o Ministério Público não falava nada, as partes não podiam se manifestar. Só o juiz inquiria. Mas me considerei impedido.

Memória MPM – De quem mais o senhor se recorda de ter colocado na cadeia? O João Carlos Bona Garcia, que depois presidiu o Tribunal Militar do Estado, passou pelo senhor?

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João Jayme Araújo – O Bona Garcia passou por mim, sim. Eu não me lembro do final. Mas naquela época eram quase todos condenados: era meio que status quo. O caso do Bona Garcia realmente é interessante, porque se passaram os anos e ele se tornou auditor na Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, pela vaga destinada à OAB pelo Quinto Constitucional, e acabou presidindo o Tribunal.

Memória MPM – A presidente Dilma Rousseff não chegou a ter nenhum processo em Porto Alegre?

João Jayme Araújo – A Dilma apareceu por aqui, junto com o processo do Carlos Franklin, mas ré aqui ela não foi. Deve ter sido ré em Minas Gerais, que é a terra dela, ou no Rio de Janeiro, onde ela residiu, ou em São Paulo, onde as ações do grupo do qual ela participava tiveram mais repercussão.

Memória MPM – Em Porto Alegre houve uma tentativa de sequestro de um diplomata...

João Jayme Araújo – Teve, no Bairro Petrópolis, na Av. Protásio Alves. Era o cônsul norte-americano, mas não logrou sucesso.

Memória MPM – Algum caso do qual o senhor se recorde, que tenha lhe chamado mais a atenção?

João Jayme Araújo – Olha, para mim todo processo era processo. Passaram por mim grandes vultos da esquerda, como o Edmur Péricles de Camargo, que respondia a uns cem processos: ex-sargento da Brigada. Não gravei direito os nomes, porque era muita gente. Havia mais dois de Viamão. Um dia, chegou um repórter da Zero Hora, que queria uma entrevista. Eu disse:

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“Agora não posso porque vou entrar em audiência.”. E ele ficou por lá... A sessão terminou tarde, à noite. Eu estava com a escolta para me levar até o carro, que era de carona com o Dr. Guimarães – mesmo sendo colegas, querendo ou não, ele era meu chefe, porque eu era substituto; ele tinha mais conhecimento e, ainda, porque ele comungava bem dos sentimentos da Revolução, com os quais eu também comungava, embora com menor intensidade... Enfim, eu não tinha nada a declarar ao jornalista, porque independentemente da notoriedade do réu, ou do caso, eu acho que todos tinham igual importância.

Memória MPM – O que podia o promotor, ou o procurador, na época?

João Jayme Araújo – Como o promotor da Justiça Comum, em matéria de Direito Penal. Nossa competência era sobre os crimes militares, mas foi estendida aos crimes contra a Lei de Segurança Nacional pela Revolução de 1964.

Memória MPM – O promotor podia requisitar diligências?...

João Jayme Araújo – Sim. O processo chegava à Auditoria e ia para o juiz, que o examinava. Se estava tudo certo, dava vistas para o Ministério Público. Nós tínhamos que apresentar denúncias em cinco dias, se o réu estivesse preso.

Memória MPM – Era tempo suficiente para um processo?

João Jayme Araújo – Às vezes não, como nesse caso que relatei em que eram cem réus e eu tive que fazer em cinco dias. E nessa época eu não tinha ninguém na Auditoria comigo. As nossas procuradoras foram a Dra. Marisa Terezinha Cauduro da Silva, que chegou posteriormente a procuradora-geral de Justiça, e a Dra. Solange Augusto Ferreira – não lembro

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quem entrou primeiro. Depois, o presidente Fernando Collor de Mello acabou com alguns postos. A irmã da Marisa, Clarice Cauduro da Silva, que trabalhava no ex-INAMPS, em Passo Fundo, fechado pelo Collor, veio para a Auditoria, a pedido. Ela se tornou um dos baluartes da Auditoria. E depois a Polícia Federal mandou uma moça também, a Ezilda. Elas me ajudaram muito, sendo que a Clarice com destaque, tanto que ela está aí até hoje, na Procuradoria e, eu acho que ela se tornou diretora da Secretaria. Gosto muito delas, da Marisa e da Solange.

Memória MPM – Mas, então, a margem de ação do procurador militar...

João Jayme Araújo – Apresentar a denúncia, como eu estava lhe dizendo, era nossa função. Depois de recebermos o processo do juiz-auditor era possível requerer diligências. Uma vez atendidas, cabia pedir denúncia ou arquivamento. Voltava o processo para o juiz, que aceitava ou rejeitava – neste caso, era preciso recorrer. Se a denúncia fosse aceita, o processo caminhava para o interrogatório do acusado, sobre o qual ninguém tinha ingerência a não ser o juiz-auditor. O promotor e o advogado de defesa não faziam perguntas. Então, não tinha como a gente mandar nem contra e nem a favor. Seguia-se a audição do Ministério Público, depois das testemunhas de defesa, após as quais apresentávamos as alegações finais, quando se fazia uma análise de todos os incidentes, os decorrentes do processo e, principalmente, para ver se ficara provada a culpa ou a inocência do réu. Então, a gente pedia a procedência ou a improcedência da denúncia. Havia uma opção de não emitir opinião e deixar a critério do nobre Conselho, adotada quando não tínhamos a convicção certíssima de que a pessoa estava certa ou errada. Então, é assim que funcionava um processo.

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Em caso de sentença absolutória pela Lei de Segurança Nacional, tinha que se recorrer. Então vinha de novo o processo para a gente apresen-tar as razões do recurso. Depois, seguia para a defesa apresentar as contrar-razões de recurso. E subia para o Tribunal, onde faziam a parte processual. O Ministério Público de segundo grau exerce as mesmas funções que nós no primeiro. Vai de acordo com a consciência de cada um pedir ou não a conde-nação. Termina com a sentença de segundo grau, lavrando um acórdão, que voltava para a Auditoria.

Memória MPM – Ou seja, era rápido, um processo célere, não é?

João Jayme Araújo – Os advogados faziam de tudo para retardar. Nesta Lei de Segurança Nacional as penas eram muito graves, severas, não havia prescrição, por recogitação penal, etc., mas eles sempre queriam dar tempo ao tempo, para que a opinião se modificasse, para que o julgamento passasse por vários Conselhos. Pela Justiça Militar, atrasos não aconteciam. Não fazíamos medidas protelatórias, requerimentos bobos, para o juiz dizer que sim ou que não e voltar ao Ministério Púbico... Então, vou dizer que por nossa parte, por parte da Justiça Militar, os processos poderiam ser céleres, mesmo aqueles que envolviam vários réus. É claro que na Justiça Civil um processo semelhante levaria uma barbaridade de tempo! Assim, em termos comparativos, eu diria que sim, que eram mais rápidos, mais céleres do que na Justiça Comum.

Memória MPM – E as testemunhas, como eram arroladas?

João Jayme Araújo – Algumas testemunhas eram trazidas já no inquérito, no âmbito do qual eram ouvidas. Destas, a gente selecionava as que estavam mais de acordo com a prestação acusatória e as arrolava. Elas

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vinham ao interrogatório do réu. Se fossem seis, por exemplo, a gente fazia em dois dias. Na Auditoria Militar também é muito menor o serviço do que na Justiça Comum, então dá para ser célere, fazer uma sessão por semana. Eram poucos processos, porque fora da Segurança Nacional, com os militares era “vapt-vupt”.

Memória MPM – E acontecia, por exemplo, nos casos desses processos da Lei de Segurança Nacional, de haver divergência entre a declaração do réu e aquilo que ele dizia depois na audiência?

João Jayme Araújo – Normalmente, sim. Na audiência ele negava o que estava no inquérito, às vezes até usando o direito de não falar. As testemunhas eram as que ele, réu, indicava, ou aquelas que tinham prestado declarações no inquérito, condizentes com aquilo que o acusado dizia.

Memória MPM – E quem eram os advogados, o senhor se recorda? O senhor mencionou o Lia Pires, que é um dos grandes advogados de Porto Alegre.

João Jayme Araújo – O Dr. Lia Pires, o Dr. Dariano, o Dr. Eloar Guazzelli, o Dr. Amadeu de Almeida Weinmann e o Dr. Salgado Martins... Eu estreei contra estas “feras”. Nos processos, eles eram “cobras criadas”, grandes advogados! O Dr. Dariano foi um dos tribunos mais eloquentes que conheci. Inventava coisas, para divagar, dispersar, para distrair a atenção dos membros do Conselho. Eu, começando, sonhava em um dia alcançar o mesmo grau de eloquência dele. Nunca consegui, porque cada um é cada qual. Então, eu pensava: “Vou pegar ele por outro lado, vou estudar o processo até não poder mais!”. Ele vinha com aquelas atochadas (permita-me a expressão) e eu retrucava: “Mas onde que tá isso, doutor?”. “Ah, acho que está nas páginas tais”. “Não, doutor, nas páginas tais não tem nada sobre isso...”. A minha tática

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sempre foi essa, saber sobre o processo mais do que os advogados. E graças a Deus, deu certo! Eram quatro causídicos de destaque do Rio Grande do Sul. O Dr. Dariano, brilhante, passou em um concurso para auditor. Esteve na Bahia, como auditor, depois voltou para Porto Alegre. No início eram três auditores: o Dr. Dariano, a Dra. Maria do Carmo Benevenuto Pereira e a Dra. Iara Alcântara Dani. Trabalhei com todos eles.

Havia um réu, Carrion, que agora é deputado pelo Partido Comunista, PCdoB, cujo pai foi à Auditoria com outro Carrion, chefe do escritório de advogados em que eu trabalhava, no Cível, e pediu, pelo amor de Deus, que eu não pedisse a prisão preventiva do filho, que a mulher ia ter um troço se isso acontecesse. Eu fiz uma série de perguntas no sentido de saber quais as garantias que ele oferecia, caso o rapaz fosse liberado... Quando ele saiu da Auditoria, o rapaz já estava no Chile! Ele garantia... mas não muito [risos]. O rapaz se movimentou às escondidas, usou codinome.

Memória MPM – Tinha acompanhamento da imprensa nesses processos?

João Jayme Araújo – Tinha. Normalmente o Dr. Tonin não concedia entrevista, a não ser que fosse do interesse dele ou da Justiça Militar. Eu concedia entrevistas para dois órgãos que julgava confiáveis, cujos repórteres não distorceriam minhas declarações: O Globo – que tinha um correspondente que trabalhava na Secretaria, o Aldo Mendes –, e o Correio do Povo, que tinha o Marco Antônio, que depois foi gerente-geral da GM. Havia outro rapaz, do Jornal do Comércio, cujo nome não recordo agora. A Zero Hora estava começando e os repórteres não se faziam afáveis, pode estar certo! Eu não os atendia... Os outros dois chegavam lá, conversavam comigo, se mostravam confiáveis. Nunca me decepcionei com o que eles publicaram.

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Memória MPM – Não sei se o senhor tem uma visão de perspectiva estatística, mas se fosse considerar, dentre os réus acusados, a maior parte foi condenada ou foi absolvida?

João Jayme Araújo – Eu penso que a maior parte tenha sido condenada. Pelo menos uns 70% o eram, creio.

Memória MPM – E as penas costumavam ser de quanto tempo?

João Jayme Araújo – Eram condizentes com o que estabelecia o nosso Código Penal.

Memória MPM – E quando os assaltos a banco vieram para a Segurança Nacional, os réus eram assaltantes comuns ou estavam efetivamente envolvidos com entidades clandestinas?

João Jayme Araújo – Nunca eram assaltantes comuns. Sempre estavam engajados ou militando em organizações tidas como subversivas.

Memória MPM – Qual é o balanço que o senhor faz desse período? Adiantou conter esse pessoal daquela forma?

João Jayme Araújo – Eu acho que não adiantou conter esse pessoal porque, segundo meu entendimento, a Revolução perdeu o próprio caminho, quer dizer, o Castelo Branco veio para fazer um governo “tampão”, “botar ordem na casa” e entregar o poder, mas eu não sei se os subversivos foram mais atuantes, mas incisivos, e fizeram com que os militares não abrissem mão. A não ser pelo Ernesto Geisel, que começou a lenta, progressiva e restritiva abertura.

Memória MPM – E quanto aos crimes dos militares?

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João Jayme Araújo – Peguei crimes relacionados às Intendências. Teve um caso, no qual a Dra. Marisa atuou, de um ex-oficial de Alegrete, cujo advogado pediu sua exclusão da denúncia. Ele foi excluído mesmo, mas protestou: “Não, de jeito nenhum, não vou concordar, vou ficar aqui, onde tenho possibilidade de ficar com essa pessoa tão bonita, tão querida: eu quero ser réu!” [risos].

Memória MPM – Qual foi o resultado daquele caso em que o filho de uns amigos seus figurava como réu?

João Jayme Araújo – O resultado final do processo, eu não lembro. Nesses dias, a Claudete e eu saímos do consultório do meu médico, em Porto Alegre, e pegamos um táxi. O motorista começou a falar comigo sobre música. Ele era bem entendido! E estava de acordo com meu gosto. Viemos todo o trajeto conversando animadamente. Quando chegamos à Av. José de Alencar ele disse: “Mas eu lhe conheço: o senhor não é o Dr. João Jayme Araújo?”. “Sou, sim.”, respondi-lhe. Então, ele replica: “Eu fui seu réu.”. Era o Cleiton! Guardei o cartãozinho dele, de taxista.

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Entrevista realizada em 3 de março de 2015, em Brasília, na Procuradoria-Geral de Justiça Militar, por Gunter Axt.

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Jorge Luiz Dodaro nasceu em 15 de novembro de 1942, no antigo Estado da Guanabara, situado no atual município do Rio de Janeiro. É filho de Salvador Dodaro e Ursolina Malicia. Formou-se em Direito pela Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas, no Rio de Janeiro, em 1969. Concluiu, ainda, especialização em Direito Aeronáutico e Espacial e em Direito Fiscal. Atuou como jornalista e funcionou na advocacia privada. Foi nomeado advogado de ofício da Justiça Militar em 1970. Ingressou no Ministério Público Militar, em junho de 1972, como segundo substituto de procurador de segunda categoria, atuando, inicialmente, na 3ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Foi membro da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar. Entre 1982 e 1990, foi presidente da Associação Nacional do Ministério Público Militar, ocupando a vice- -presidência da referida Associação entre os anos de 1990 e 1992. Integrou a diretoria da Associação do Ministério Público do Brasil e a diretoria da CONAMP. Aposentou-se em novembro de 2012.

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Memória MPM – Dr. Dodaro, bem-vindo! É uma honra recebê-lo para que possamos dar início aos trabalhos do Programa de História Oral do Centro de Memória do Ministério Público Militar.

Jorge Luiz Dodaro – Que sejam minhas primeiras considerações, ainda que de forma pobre e descolorida, sem o realce necessário que merece o momento, para parabenizar e enaltecer os idealizadores do Projeto Memória do MPU, no âmbito do MPM, nas pessoas do procurador-geral do MPM, Dr. Marcelo Weitzel Rabello de Souza, do subprocurador-geral, Dr. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, coordenador da Comissão do Projeto e do historiador Gunter Axt, projeto este que tem por escopo coletar o depoimento de membros aposentados do MPM, sendo eu um dos entrevistados, o que haverá de se somar a outros testemunhos, para alcançar o desiderato dos seus autores.

É a vida escrita de nossa instituição. É a preservação de nossa identidade histórica. A propósito, é oportuno destacar que uma instituição sem memória é o mesmo que um corpo sem alma! Somos, hoje aposentados, uma parcela dos que foram outrora os insignes colegas a moldar, de forma vigorosa, o quadro vivo e de avanço firme e perene da instituição, que se vislumbra cada vez mais altiva, mercê de seus atuais valorosos membros (promotores, procuradores e subprocuradores-gerais), os quais, com elevado descortino e lucidez, dão relevo, na atualidade, aos novos rumos, mais promissores do MPM.

Sou uma parcela mínima do Parquet castrense, que tenho a honra de integrar, já que ostento com orgulho e entusiasmo a vitaliciedade do título, no início promotor, hoje, subprocurador-geral do MPM.

Memória MPM – O senhor é natural do Rio de Janeiro?

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Jorge Luiz Dodaro – Sim. Sou carioca. Nasci em Santa Teresa, onde passei minha infância. Na juventude, mudei para Ipanema. Hoje moro em Teresópolis, também com residência na “Cidade Maravilhosa”.

Memória MPM – Onde o senhor estudou?

Jorge Luiz Dodaro – A vida escolar começou em Santa Teresa, na escola pública, perto de casa, chamada Santa Catarina. Concluí o 2º grau (Científico) no Colégio Estadual Souza Aguiar, também público. Vale lembrar que, por volta dos anos 1956 ou 1957, o Diretório Acadêmico do Colégio promoveu um concurso de monografia sobre a construção de Brasília. Fiz uma pesquisa profunda sobre o tema. Conquistei o terceiro lugar, fazendo jus ao Prêmio Ernesto Silva, tesoureiro da Novacap. O prêmio, além de livros, constava de uma viagem a Brasília. A cidade estava em acelerada construção. Para se ter uma ideia, o atual lago era tão somente um enorme buraco, sem água. Eu e os outros quatro classificados fomos recebidos pelo presidente Juscelino Kubitschek no Palácio da Alvorada. Foi antes da inauguração da Capital Federal. Uma emoção! Tudo era “pioneiro”. As obras, segundo confessara na ocasião um engenheiro, eram executadas ao ritmo de música, chorinho, naturalmente, se fosse valsa, a cidade não estaria pronta até hoje! [risos].

Desde o primário, gostava de cerimônias. Era uma espécie de monitor. Representava a escola em inaugurações, festividades cívicas, etc. No Souza Aguiar, decidi fazer o Científico, porquanto pretendia cursar Medicina. Havia, apenas, duas Faculdades no Rio de Janeiro (antigo Estado da Guanabara). Um belo dia, fui ao Instituto Nacional do Câncer (INCA), um centro de referência no Rio de Janeiro. Cheguei todo empolgado, mas saí em choque, ao ver os pacientes, a maioria, em estado terminal. Na mesma época, para piorar,

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ocorrera um descarrilamento de trem na Estação de Paciência, localizada em um subúrbio carioca, com muitos feridos. Pediram voluntários. Hesitei. Não fui. Percebi, então, que a Medicina não era a minha praia.

Fiquei na dúvida; pensei em fazer História ou Química, duas carreiras que eu apreciava. Até que um colega do Souza Aguiar, José Valdeci Pinheiro, que cursara o Clássico, me indagou por que não tentava o Direito. Respondi: “Valdeci, no Científico o latim não faz parte da grade. O latim que eu sei é do ginasial. Visando a suprir tal carência, ele me convidou para estudarmos na Casa de Rui Barbosa (hoje Fundação). Acabei topando. Afinal, nem precisei do latim porque era, apenas, classificatório.

Memória MPM – Como foi na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas?

Jorge Luiz Dodaro – Optei por ela, embora tenha passado, também, na UERJ, que, antigamente, chamava-se “Catete”, por se situar na Rua do Catete. Mas, como Valdeci Pinheiro só conseguira passar na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas, resolvi acompanhá-lo. Fui solidário com o amigo. Amigo é para esses momentos.

Memória MPM – Quais são as lembranças que o senhor tem da época de Faculdade?

Jorge Luiz Dodaro – Foi espetacular! Eu não era dos alunos mais assíduos, sobretudo em função do jornalismo, com o qual trabalhava. Mas sempre fui dedicado. Os professores foram excelentes. Catedráticos. Depois, cursei Administração de Empresas, na Faculdade Moraes Júnior. Sou bacharel nessa área.

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Uma vez formado e, paralelamente, exercendo o jornalismo a pleno vapor, fui convidado – e aceitei de imediato – a integrar o escritório do Dr. Lino Machado Filho, um artífice do mundo jurídico. O Lino era como um irmão. Pai do Nélio, advogado criminalista bem-sucedido. O Nélio, por algum tempo, atuou na Defensoria Pública na Auditoria da Marinha, e, por força da advocacia privada e do magistério, não o permitiram continuar. Fiquei no escritório do Dr. Lino um bom período. Por lá passaram outros doutos profissionais, entre eles: Alcides Martins, hoje subprocurador-geral da República; Sérgio Lúcio de Oliveira e Cruz, atualmente desembargador do TJ/RJ, ambos estimados amigos. Depois saí, porque montei meu próprio escritório. O Nélio casou com a Letícia, juíza-auditora, sobrinha do Marcelo de Allencar, ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, diga-se de passagem, um excelente tribuno.

Memória MPM – E a sua atuação como jornalista?

Jorge Luiz Dodaro – Turbulência política à parte, vivi uma época de ouro no Rio de Janeiro. Cobri os Festivais Internacionais da Canção. Conheci Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Clara Nunes, Edu Lobo, Chico Buarque, Roberto Carlos, Wanderléia, Quarteto em Cy, Ivan Lins, Maria Bethânia, etc., todos em início de carreira. Nesses eventos, os jornalistas circulavam no Hotel Glória, no Copacabana Palace, onde estavam os cantores de outros países, no Canecão, casa de show carioca e no Maracanãzinho.

Memória MPM – Como foi o início de sua carreira?

Jorge Luiz Dodaro – A gênesis da minha trajetória na Justiça Militar ocorreu nos idos de 1970, quando fui nomeado advogado de ofício, atual Defensoria Pública da União. O ministro Alcides Carneiro, vice-presidente do STM, foi quem assinou o Termo de Posse, que muito me gratificou. Fui

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designado a exercer tal múnus na Primeira Auditoria de Aeronáutica, da 1ª CJM, no Rio de Janeiro. O juiz-auditor titular era o Dr. Teócrito Rodrigues de Miranda, e o Dr. Mário Moreira de Souza, substituto, os quais se tornaram diletos amigos. Foram dois anos de efetivo exercício e harmoniosa convivência.

Dois anos após, em 1972, estimulado pelo procurador de Justiça Militar, Dr. Rubens Pinheiro de Barros, a quem convidei para ser meu padrinho de casamento, ocorrido no dia 18 de setembro de 1976, ingressei no MPM. Era procurador-geral do MPM o Dr. Ruy de Lima Pessôa, que se tornou ministro do STM. A 3ª Auditoria do Exército da 1ª CJM foi o meu destino. Dois juízes-auditores conduziam aquela instituição: o Dr. José Garcia de Freitas, juiz-auditor titular (pai do colega e amigo do MPM, Dr. José Garcia de Freitas Júnior) e o Dr. Oswaldo Lima Rodrigues (genitor do colega de MPM Osvaldo Lima Rodrigues Júnior, que encerrou sua carreira como juiz-auditor).

A minha aposentadoria não se tratou do cerrar da cena, deu-se apenas o alvorecer de uma nova fase. Os sentimentos que ora experimento são nitidamente contrastantes: vão da excruciante dor da aposentadoria compulsória ao júbilo da certeza do dever cumprido.

Memória MPM – E a Associação Nacional do Ministério Público Militar?

Jorge Luiz Dodaro – A Associação Nacional do Ministério Público Militar foi criada em 1978. O primeiro presidente foi o colega Dr. Paulo Duarte Fontes. Assumi em 1982 e permaneci na presidência até dezembro de 1988. Com a mudança da Procuradoria-Geral para Brasília, achei que iria onerar a entidade com as frequentes viagens, em consequência, resolvi sair da presidência. Permaneci, ainda, como vice do dileto colega, Dr. Marco Antonio Pinto Bittar, até fins de 1992. O quadro de associados era mínimo, reduzido mesmo, e, às

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vezes, alguns nem pagavam. Hoje é descontado em folha; antigamente, não. Viajava às minhas custas, pagando passagens de avião e hotel do próprio bolso. A Associação não tinha lastro para suportar tais despesas. Depois, outro estimado amigo e colega, o Dr. José Carlos Couto de Carvalho, assumiu a direção e fez um fecundo trabalho. Devemos a ele a sede própria da Associação.

Outros ilustres colegas, além dos acima aludidos, presidiram a Associação Nacional do Ministério Público, a saber: Marcelo Weitzel [Rabello de Souza], Aílton José da Silva e Giovanni Rattacaso, atual presidente.

Memória MPM – Sem verbas, o que se podia fazer na Associação do MPM?

Jorge Luiz Dodaro – Eu e a diretoria enfrentamos sérios desafios. Para se ter uma ideia, editávamos um boletim, que era rodado em mimeógrafo. Ficava com as mãos todas sujas! Distribuíamos para todos. Recentemente, voltei para a diretoria, na condição de vice do estimado colega Dr. Giovanni Rattacaso. Ele, é claro, fica em Brasília e eu, no Rio de Janeiro, num espaço compartilhado com a doce amiga e colega Dra. Lúcia Beatriz Magalhães de Mattos, ouvidora-geral do MPM, como sendo a “subsede”. No Rio, vale acentuar, é onde reside o maior número de associados (ativos, inativos e pensionistas). Há uma promessa, da atual chefia do Parquet castrense, no sentido de uma nova dependência na futura sede do MPM no Rio de Janeiro, em fase de construção.

Memória MPM – Além da 3ª Auditoria, o senhor atuou em outros ofícios?

Jorge Luiz Dodaro – Coincidentemente, nunca saí do Rio e da 3ª Auditoria. Relutei em termos de promoção, porque eu era muito ligado à minha

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mãe idosa e não desejava ficar distante dela. Mas quando aceitei concorrer à promoção para subprocurador-geral, foi uma glória. Adorei tudo e todos, dos pares e dos funcionários e fiquei me perguntando por que não tinha aceitado antes. Mas aí já estava na contagem regressiva. Aposentei-me no dia em que completei 70 anos. Sempre gostei do Ministério Público Militar. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para que a chamada “PEC da bengala” passasse, nas não obtive sucesso.

Houve uma época, respondendo à sua pergunta, que assumi, simultaneamente, a Procuradoria da 4ª Auditoria da 1ª CJM, em razão da aposentadoria do estimado colega Dr. Renato da Cunha Ribeiro. Foram, assim, os únicos ofícios em que atuei: 3ª e 4ª Auditorias da 1ª CJM, sediadas no Rio de Janeiro.

Memória MPM – Como era a advocacia e o Ministério Público Militar?

Jorge Luiz Dodaro – Eu acumulava a advocacia privada com a atuação no Ministério Público Militar. Contava com uma boa clientela, graças a Deus! Tive como cliente um supermercado então famoso, Casas da Banha. Não existe mais. Defendia os interesses da empresa e dos funcionários, especialmente, os que não tinham condições de pagar honorários advocatícios, de modo que, com frequência, advogava de graça. Relutava, no entanto, em atuar na área de Família. Quando alguém vinha me procurar para fazer uma separação, dizia: “Eu só uno, não separo.”. Procurava reconciliar o casal. Reconciliei muitos casais.

Certa feita, vale a pena relembrar, se me permite, o motorista do presidente da Casas da Banha, me deu, a título de pagamento por uma ação bem--sucedida, veja só, um peru vivo! Eu não queria aceitar, mas ele deu indicações

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de que ficaria ofendido. Deixei o peru sob custódia com o responsável pelo depósito, que se prontificou a alimentá-lo e o fez com todo carinho. O peru até engordou [risos]. Mas precisei levá-lo, pois estava estorvando no depósito. Coloquei-o no meu “fusquinha”, devidamente amarrado, rumo à cidade. Mas como tinha que recolher uma guia no BANERJ, parei o carro próximo ao estabelecimento bancário. E o peru “glu-glu-glu” o tempo todo. Quase abri a porta, para soltá-lo. Não tive coragem. Jamais faria isso! Em frente ao BANERJ, pedi autorização a um guarda para deixar o carro e voltar logo em seguida. E o peru fazendo um escândalo. Quando voltei, estava o guarda olhando o peru: “Desculpe, eu esqueci de avisá-lo. Ganhei de presente. Não quer esse peru?”. Ele pensou que fosse brincadeira, algo assim. Não aceitou. Diante da resposta negativa do policial, fomos embora: eu e o peru [risos]. Afinal, minha mulher conseguiu que o padeiro, seu Zé, desse um jeito de matar o galináceo e assá-lo. Foi um peruzão espetacular e nem era dia de Natal! [risos].

Memória MPM – Como era a relação com os juízes com os quais o senhor conviveu?

Jorge Luiz Dodaro – Sempre muito amigável e colaborativa. Eu tinha amizade com todos os juízes, bem como com os advogados que militavam na 3ª Auditoria e em outros ofícios. Preocupava-me sempre em valorizar a instituição ministerial. Certa feita, o notável advogado criminalista, Prof. Heleno Fragoso, escreveu um livro elogiando aspectos da Justiça Militar. Como eu tinha uma fraterna amizade com ele, indaguei: “Heleno, isso vai por conta da amizade: você escreveu, falou dos juízes, dos ministros da Justiça Militar e não dedicou um capítulo ao Ministério Público?”. Ele riu e retrucou: “Jorge Luiz Dodaro, se eu fosse falar do Ministério Público, ia só falar de você!”.

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Mas, voltando à pergunta, além dos juízes mencionados, convivi, harmoniosamente, com os seguintes doutores: José Victor Marques dos Santos, Edmundo Franca de Oliveira, Mário César Machado Monteiro, Carlos Henrique Reiniger, Cláudio Amin Miguel, Roberto Menna Barreto, Jorge Marcolino dos Santos e Marco Aurélio Petra de Mello, todos de larga experiência na Justiça Militar.

Memória MPM – E os advogados de ofício?

Jorge Luiz Dodaro – A Defensoria Pública contava, de igual sorte, com ilustres causídicos, dentre outros, o Dr. Mário Soares de Mendonça, pai dos ilustres colegas e amigos, Dr. Mário Sérgio Marques Soares (subprocurador--geral do MPM); e do Dr. Carlos Alberto Marques Soares (ministro do STM aposentado); a Dra. Telma Angélica Figueiredo (corregedora-geral da Justiça Militar); o Dr. Celso Celidonio (atual juiz em Santa Maria, RS), Dr. Ariosvaldo de Góis Costa Homem, Dra. Lúcia Lobo, Dra. Mariza Pereira do Couto e a Dra. Ana Maria Marins Cortês, viúva do estimado amigo Dr. Mário Mattos Cortês, procurador da Justiça Militar. A propósito, os dois se conheceram mais aprofundadamente nas Bodas de Ouro de meus pais. Fui padrinho de casamento juntamente com outra caríssima colega e amiga, Dra. Vera Regina Coelho Americano Alves de Brito.

Havia, inclusive, outros advogados de ofício, como o Dr. Augusto Süssekind de Moraes Rego, excelente tribuno. No meu primeiro julgamento como promotor da Justiça Militar ele atuou como defensor. Süssekind dividia o escritório com dois advogados de alto coturno: Dr. Alcyone Pinto Barreto e Dr. Manuel de Jesus Soares, ambos professores e colegas na Faculdade Cândido Mendes. O Süssekind chegou a ser convidado para uma vaga no

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STM, mas não aceitou, segundo me revelou, porque ganhava mais com o escritório de advocacia.

Memória MPM – E a sua amizade com o ministro Olympio [Pereira da Silva Junior]?

Jorge Luiz Dodaro – Nos conhecemos há muitos anos. Passou pelo meu escritório. O pai dele, Olympio também – médico e advogado, cujo inventário patrocinei, era professor de Medicina Legal na Faculdade Cândido Mendes, onde eu também lecionei, à noite, Processo Penal. O Olympio Filho, era uma alegria no escritório. Eu o acompanhei no primeiro júri que fez. Ao ser sabatinado no Senado, ele me contou, perguntaram-lhe se não se sentia constrangido, sendo um dos últimos do quadro, de estar passando à frente de todos com a nomeação a ministro do STM? “Ora”, respondeu ele, “A vaga é do quadro, não dos mais antigos na carreira.”. Aliás, Como presidente da Associação, eu enviara um ofício ao presidente do STM e ao próprio Olympio, parabenizando-o pela nova função a ser trilhada. Ele leu o ofício na sessão do Senado que o credenciava a exercer com méritos tal missão. Ademais, o fraterno Olympio era bem-relacionado com o presidente Itamar Franco, portador de notável saber jurídico e elevados atributos pessoais. E mais, profundo conhecedor do Direito Castrense. O Olympio revolucionou o STM, sem quebrar a austeridade da Corte. Ele é adorado pelos seus eminentes pares. Presidiu o STM. É autor – música e letra – do hino do STM.

Outra do Oly, como carinhosamente o chamamos. Minha chegada ao escritório de advocacia coincidiu com uma campanha do STM para retomar o rigor das vestes talares nas Auditorias. Pedi emprestada a sua beca de formatura. Minha esposa adaptou-a com um cinto vermelho e adereços nos

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punhos. Passou a ser minha! Com o tempo ficou bem surrada, mas permaneceu comigo até o fim. Se a lavasse, podia desmanchar toda. Dava até um tema de livro: A beca surrada [risos]. Em suma, um querido amigo.

Memória MPM – O senhor se recorda de processos que tenham lhe chamado a atenção?

Jorge Luiz Dodaro – Muitos. Embora eu esteja aposentado, o tempo não me sobra, de modo que não consigo avançar com o projeto de produzir um livro composto por coletânea de casos jocosos ocorridos no universo da Justiça Militar e fora dela, com o seguinte título: O pitoresco na Justiça.

Eis alguns casos: na Auditoria, apareceu um civil que gostava de uma operária que trabalhava numa fábrica localizada no subúrbio do Rio de Janeiro. E ele ia lá, frequentemente, paquerá-la; ela enfrentava um processo de separação conjugal. Descobriu que a moça gostava de farda, então, resolveu comprar um uniforme de capitão do Exército, razão pela qual foi parar na Justiça Militar: uso indevido de uniforme, artigo 171 do CPM. Ele ia todo alinhado ao encontro da moça. Certo dia, deparou-se com o ex-marido; foi aquela confusão. Brigaram. O segurança da fábrica, um militar reformado, os levou para a Delegacia. Na Polícia, ele se identificou como capitão do Exército, mas, acredite, inobstante não ter documento comprovando sua condição de militar, aceitaram a sua palavra. Ficou registrado. Isso deixou-o mais empolgado, de modo que não abria mão da farda para os encontros amorosos. Num certo momento, ele ficara sem tempo para revê-la e, para suprir tal ausência, enviava cartas, por meio das quais contava histórias, uma delas, que teria sido preso por ter-se negado a acatar uma ordem injusta de um superior. E arrematava: “Não se preocupe, porque eu logo vou te ver, tenho

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muitos amigos no STM.”. Citava o nome de alguns ministros… E insistia: “Tenha paciência!”.

Entrementes, ele deixara numa quitanda, lá no subúrbio, próxima à residência de sua amada, uma “pasta 007”. Como não aparecia para apanhá-la, o quitandeiro falou para ela: “Olha, fulana, o seu noivo deixou uma pasta aqui há muito tempo. Leva.”. E a mulher, curiosa, abriu-a. Descobriu que ele tinha um certificado militar revelando que não servira o Exército, fora dispensado! Ela ficou tão revoltada, que procurou a Polícia. Foi quando a história toda veio à tona. Sabe onde ele estava? Preso por vadiagem! [risos]. No dia da audiência, na Auditoria, ele respondeu ao juiz: “Doutor, eu comprei a farda porque ela disse que gostava de militar, se ela dissesse gostar de juiz eu comprava uma toga.” [risos]. Está lá no livro, que será lançado brevemente. Aguardem!!!

Há outras passagens, igualmente pitorescas, ocorridas fora do âmbito da Justiça Militar. Em São Paulo, por exemplo, num concurso para juiz – a banca só de desembargadores –, um desembargador exclamou diante de uma resposta do candidato: “Meu caro doutor, o senhor acaba de dizer uma grande asneira.”, ao que o candidato – um advogado de Bauru, retrucou: “Asneira na minha boca, porque se fosse na de Vossa Excelência seria um voto vencido.” [risos].

Noutro episódio, um juiz mandou intimar um cidadão, Jorge, vulgo “Jacaré”. O oficial de Justiça, não o encontrando, lascou: “Certifico e dou fé que não consegui intimar o aludido réptil.” [risos].

E mais, numa Vara Orfanológica, o advogado assim peticionou: “O de cujus deixou sete de cujinhos.” [risos].

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Lembro, também, de uma outra história. Essa não deve entrar no livro. O Prof. Heleno Fragoso, volto a citá-lo, autor de importantes obras de Direito Penal, conceituadíssimo, dominava bem o alemão e fazia citações nessa língua em suas defesas escritas. Certa vez, recorri a um estimado colega, Dr. Paulo Jacob, advogado; ele tinha um cliente metalúrgico, Andreas Munck, nascido na Hungria, que dominava o alemão, a quem pedi para verter um trecho de um texto meu para o citado idioma. O Andreas fez e eu o citei em uma peça processual, como sendo um “jurista alemão” importante [risos]. Por isso é que nunca fui de fazer citações de juristas, quanto mais os estrangeiros, sem ter segurança na fonte! Só depois de muito tempo, operada a prescrição, é que revelei a história para o Heleno, que riu bastante. Ele gostava de mim. Éramos bons amigos, amizade que se estende até hoje na pessoa de seu douto filho, o Dr. Fernando Fragoso.

Memória MPM – E quanto aos processos nos quais atuou?

Jorge Luiz Dodaro – Foram inúmeros. O “processo dos coronéis”, é um deles. Foi marcante. O julgamento durou dez dias. Tratava-se de um esquema de corrupção (qualquer semelhança com a época atual é mera coincidência), que envolvia vários coronéis, inclusive reformados, além de civis (fornecedores). As propinas exigidas eram extorsivas, o que levou os fornecedores a revelar o esquema, resultando na denúncia de trinta e poucos acusados.

Cabe aqui um parêntese, se me permite acrescentar: a Justiça Militar Federal, às vezes, é incompreendida por quem não a conhece, achando-a parcial. Ledo engano! Eu mesmo oficiei pela absolvição, talvez, mais do que pela condenação. De igual sorte, requeri incontáveis pedidos de arquivamento, embasado sempre nos indícios ou provas contidas nos autos.

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Atuei em um processo no qual um dos envolvidos era filho do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues: Nelson Rodrigues Filho. Os pais assistiam às audiências do julgamento. A cada resultado, a mãe do Nelson desmaiava; cena horrível e triste de se ver! Se não me falha a memória, acho que ele respondeu a dezoito processos na Justiça Militar: assalto a Banco, incurso na Lei de Segurança Nacional.

Memória MPM – E os processos em que o senhor atuou como jornalista?

Jorge Luiz Dodaro – Mais de uma centena, sem medo de errar, tamanho o volume de processos que eram julgados na seara castrense. Vale lembrar: o do roubo do cofre de Adhemar de Barros, que se encontrava em uma casa em Santa Teresa, na rua Aarão Reis, no Rio de Janeiro, contendo valores que teriam sido do ex-governador de São Paulo. Um dos envolvidos era o Lamarca.

Lembro-me, também, dos processos que versavam sobre os sequestros do embaixador Charles Elbrick, dos EUA, assim como do embaixador Giovanni Bucher, da Suíça.

A Justiça Militar também foi palco, ainda na vigência da Lei de Segurança Nacional, de processos de assaltos a Banco com ou sem conotação política, previstos nos artigos 27 e 28 da citada lei (Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969).

Inúmeros civis foram processados e julgados naquela Corte, sob a acusação de assalto a estabelecimentos de crédito, sem conotação política. Conheci aquela turma toda: “Lúcio Flávio” (que foi tema de um filme), “Francisco Horroroso”, “Marta Rocha”, “Escadinha”, “Paulo Maluco”,

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“Carlinhos Gordo”, o maior ladrão de automóveis que agia naquela época. Ele abria e levava qualquer carro. Cada figura! Turma da pesada!

Memória MPM – Mas por que isso caía na jurisdição militar?

Jorge Luiz Dodaro – Porque a LSN punia essa conduta delituosa em seu Art. 27, cuja pena era de 10 a 24 anos de reclusão, e, às vezes, de outra forma, eram presos com armamento de uso privativo das Forças Armadas. A competência passava a ser nossa.

Memória MPM – O senhor também acompanhou o processo do “bom burguês”, não é?

Jorge Luiz Dodaro – Sim, um cidadão que, valendo-se de sua condição de gerente de Banco, se apropriou de considerável verba, em dólar, simulando pertencer a uma organização clandestina, com o propósito de obter alguma vantagem, como, por exemplo, ser enquadrado na LSN e, com isso, ser banido ou trocado por alguma personalidade, como ocorreu no caso do embaixador americano. Não conseguiu. Este caso deu origem a um filme, “O bom burguês”.

Memória MPM – E sobre a Lei de Segurança Nacional, o que o senhor tem a nos dizer?

Jorge Luiz Dodaro – Por força do Ato Institucional nº 2, de 27/10/65, a Justiça Militar passou a processar e julgar casos que atentassem contra a segurança interna do país. Diante de episódios de grupos considerados como subversivos, que resistiam, de forma armada, ao regime então reinante. Época árdua! Oportuno destacar que a 1ª CJM, no Estado do Rio de Janeiro, então Capital Federal, contava com sete Auditorias: três do Exército, duas

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da Marinha e duas da Aeronáutica, além do STM, que julgava, como é de igual sabença, os recursos do MPM e da defesa, tramitados, antes, pela Subprocuradoria-Geral do MPM.

Eu e os colegas enfrentamos uma tarefa difícil, no torvelinho das agitações e paixões, para encontrarmos regras e preceitos da herme-nêutica, trilhando, sempre, pelo caminho da justiça e da verdade desata-viada de dúvidas.

O desafio foi enfrentado. Como defensor da sociedade e fiscal da lei, agia tecnicamente, em consonância com a lei e as provas dos autos. Tanto assim que inúmeras foram as manifestações de arquivamento e/ou de absolvição, as quais, na maioria das vezes, eram acolhidas pelo douto juízo.

A propósito, certa ocasião – não me lembro quando –, o próprio STM divulgou estatística, segundo a qual, a Justiça Militar da União absolveu mais do que condenou, na maioria dos casos, civis levados àquela Corte castrense, envolvidos em crimes previstos na LSN e/ou no CPM.

Comento, à guisa de ilustração, a Segurança Nacional foi objeto de apreciação legal, exclusivamente, pela Justiça Militar, por força do Ato Institucional nº 2, de 27/10/65, quando estendeu a competência da Justiça Castrense para processar e julgar os civis, nos casos expressos na LSN (nº 1.802, de 05/01/53).

Essa Lei foi revogada, após ter vigorado por mais de 14 anos, pelo Decreto-Lei nº 314, de 13/03/67, alterada pelo Decreto-Lei nº 510, de 20/03/69, e ambos substituídos pelo Decreto-Lei nº 898, de 20/09/69, que vigorou até a mudança da competência da Justiça Militar.

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A Lei de Segurança Nacional que vigia na época era bastante dura: instituiu as penas de morte e de prisão perpétua em tempo de paz, que somente eram previstas em tempo de guerra, mantendo, assim, a disposição do Ato Institucional nº 14, de 05/09/69, referendada na Constituição pela Emenda nº 1, de 17/10/69. Quarenta tipos de crimes eram ali definidos.

Memória MPM – A propósito dos processos relativos à Segurança Nacional, em sua opinião, o STM pesava a mão ou aliviava a pena?

Jorge Luiz Dodaro – Eu acho que o STM, a Justiça Militar como um todo, dosou bem. Não foi mão-pesada. Ao contrário. Sopesou os feitos que apreciou e julgou com sabedoria. O objetivo, acredito, era punir os cabeças e aliviar aqueles que eram utilizados como massa de manobra.

Muita gente foi indenizada posteriormente que, na realidade, durante o regime, à época, ficou na praia bebendo chope enquanto outros pegavam, de fato, em armas para assaltar Bancos e enfrentar os militares. Por outro lado, a Lei de Anistia – Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 – alcançou a todos, incluindo alguns que tiveram comportamento especialmente violento.

Enfim, o objetivo do sistema, do qual o STM era parte, ao meu sentir, seria alcançar a cúpula da subversão, assim definida na época. Quero crer que conseguiu. A estrutura foi totalmente controlada, para que não avançasse mais. Isso trouxe certo conforto para todo mundo e certa segurança. Ademais, ninguém queria um quadro de conflagração civil generalizada, e essa ameaça, acreditava-se, existia de fato. A sociedade desejava ordem e tranquilidade, que vieram mais tarde de forma pacífica e democrática, sem desavenças ou lutas. Isso nos deu paz de espírito, porque o MPM contribuiu, eficazmente, para que tal ocorresse. Acalmamos a sociedade. Aquela turbulência de manifestações,

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quebra de hierarquia nos quartéis, assaltos a Bancos, sequestros, guerrilha, enfim, tudo passou.

Nesse contexto, sempre procurei ter uma atuação técnica. Ademais, o papel do MPM, do qual estava plenamente imbuído, era promover justiça. Em alguns casos, notadamente os de menor potencial ofensivo, insignificância ou bagatela, com ou sem conotação política, buscava-se uma solução benigna. Por outro lado, quando os agentes eram perigosos, contumazes na prática criminosa, envolvidos com armas ou drogas, não havia condescendência. Aplicava-se o rigor da lei.

Lá pelas tantas, visando a amenizar a árdua tarefa ministerial, comecei a procurar um bálsamo nas instituições culturais e associativas, e esse passou a ser meu foco antes da aposentadoria.

Pertenço a várias instituições culturais. Presido, por exemplo, em Teresópolis, o Elos Clube, com 43 anos de fecunda existência. É uma instituição internacional, fundada no Brasil, com o objetivo de defender e propagar a língua portuguesa, a quinta mais falada no mundo. A propósito, o Elos Clube foi levado para a Europa (Portugal) por Juscelino Kubitschek, então membro da Academia Mineira de Letras e do Elos Clube de Belo Horizonte, juntamente com o embaixador José Aparecido de Oliveira, também elista, um dos organizadores da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP, integrada pelos países lusófonos. Sou conselheiro da Pro Arte/UNIFESO, um Centro Cultural integrado à Universidade em Teresópolis. Tudo é voluntário. E a gente vai levando. A cabeça tem que estar sempre funcionando. Aliás, sempre apreciei boa música e ambientes festivos e, principalmente, culturais.

Memória MPM – O senhor atuou no inquérito do Riocentro?

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Jorge Luiz Dodaro – Sim. O Dr. Olympio Pereira da Silva Junior, que dividia comigo a Procuradoria na 3ª Auditoria do Exército, suspirou aliviado quando soube que o “pepino” não tinha parado nas mãos dele [risos]. A propósito, no dia do episódio, 1º de maio, Dia do Trabalhador, feriado nacional, eu estava em Ouro Preto/MG, com o amigo e colega Dr. Rubens Pinheiro de Barros. Não sabia de nada. Após retornar à Procuradoria tomei conhecimento do fato.

Enfim, o inquérito veio para mim. Havia muita divulgação na mídia. Alguns jornalistas que cobriam o caso eram meus conhecidos. Requeri o arquivamento. Foram 32 laudas sob o argumento de que o crime existira, mas que não havia provas suficientes para caracterizar a autoria. Deixei claro, também, que caso surgissem novas provas, o MPM se manifestaria sobre a propositura da competente ação penal. Mas eu tinha de me pronunciar sobre o inquérito oficial, que tramitava na 3ª Auditoria do Exército, não pelo que estava sendo noticiado, concomitantemente, pelo Jornal do Brasil. A versão do “JB” não estava nos autos, não existia para o mundo jurídico, para o mundo do processo. Agi – repito – tecnicamente.

Memória MPM – O senhor chegou a fazer alguma diligência, a aprofundar algum aspecto do inquérito?

Jorge Luiz Dodaro – Sim. Em determinado momento, apareceu o coronel reformado, Dickson Grael. Achava, entre outros argumentos, que a segurança não foi correta. Veio falar comigo. Eu lhe garanti que não estava ali para “passar a mão na cabeça” de ninguém. Se houvesse culpados, iríamos puni-los. Ponderei: o meu prazo era de 15 dias. Diligenciei ao encarregado do inquérito, o coronel Job, para que esclarecesse, com a maior brevidade o

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solicitado pelo coronel Grael. Os fatos que sucederam são de elementar sabença por conta da repercussão do episódio vivamente explorado pela mídia.

Memória MPM – O senhor estava falando do Job...

Jorge Luiz Dodaro – Sim, ele foi o segundo encarregado do IPM. O primeiro, coronel Prado Pereira, se afastou, e o coronel Job Lorena de Sant’ Anna assumiu. Eu não o conheci pessoalmente.

Memória MPM – O senhor recebeu alguma pressão?

Jorge Luiz Dodaro – Nenhuma. O juiz-auditor, Dr. Edmundo Franca de Oliveira acompanhou o ponto de vista ministerial. O Dr. Milton Menezes da Costa Filho, procurador-geral do MPM teve o mesmo entendimento, que acabou sendo confirmado, por maioria de votos, pelo STM, cujo relator foi o ministro civil Dr. Antonio Carlos de Seixas Telles.

Memória MPM – E o processo do embaixador da Suíça que o senhor mencionou anteriormente?

Jorge Luiz Dodaro – O processo sobre o sequestro do embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher merece destaque. O episódio ocorreu no dia 07/12/70, na rua Conde de Baependi, em Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro/RJ, e resultou na morte do agente de segurança Hélio Carvalho de Araújo. Segundo os autos, a ação foi liderada por Carlos Lamarca. Participaram da empreitada delituosa: José Roberto Gonçalves de Rezende, Alex Polari de Alverga, Inês Etienne Romeu, Adair Gonçalves Reis, Alfredo Hélio Syrkis, Tereza Ângelo e Herbert Eustáquio de Carvalho. Foram processados, julgados e condenados pelo CEJ da 3ª Auditoria do Exército. O juiz-auditor do feito foi o Dr. Oswaldo Lima Rodrigues. Foram enquadrados, obviamente, como

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incursos na LSN, que previa a pena de morte, uma vez que, da ação delitiva, resultou a morte do agente de segurança Hélio Carvalho de Araújo. Segundo a decisão condenatória, Adair, Alfredo, Tereza e Herbert foram condenados à pena mínima, 15 anos de reclusão, prevista no artigo 28 da LSN (DL nº 898/69); José Roberto, Alex e Inês foram apenados com prisão perpétua (parágrafo único do citado artigo). Quanto à morte do agente Hélio, a autoria do disparo fatal foi atribuída a Carlos Lamarca, falecido no curso do processo, caso contrário, certamente, seria condenado à pena de morte.

Lembro-me, de igual sorte, dos presos políticos trocados pelo embaixador dos EUA, Charles Elbrick, que eram integrantes dos grupos denominados AP (Ação Popular), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), fato este ocorrido pelos idos de setembro de 1969.

Por outro lado, o Decreto nº 82.960, de 29/12/78, revogou os Atos de Banimento de diversos apenados na LSN, dentre outros, que eu me lembre: Flávio Tavares, José Ortigas, Wladimir Palmeira, Apolônio de Carvalho, Carlos Fayal de Lira, Daniel Aarão Reis Filho, Fernando Gabeira, Liszt Vieira, Eliomar Mendes Brito e Nancy Mangabeira Unger. Este decreto foi chancelado pelo presidente Ernesto Geisel. Armando Falcão era o ministro da Justiça.

Memória MPM – O senhor chegou a ter algum pedido de pena de morte?

Jorge Luiz Dodaro – Funcionei, por exemplo, em um processo que versava sobre assalto a Banco, que resultou em morte. Não fui o autor da denúncia. Acho que foi o estimado amigo e colega Dr. Humberto Augusto da Silva Ramos (falecido). Produzi, no entanto, as alegações finais, nas que

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desclassificava o parágrafo único (pena de morte) para o caput do artigo 27 da LSN. Pedi, inclusive, a absolvição de dois envolvidos no episódio criminoso. O Conselho Especial de Justiça, por unanimidade, acolheu o ponto de vista ministerial, confirmado, após, em grau de recurso, no STM. A pena imposta, contudo, foi reduzida.

Eu sempre fui de paz, contra qualquer tipo de violência. Mas era uma convivência da qual não havia como escapar, porquanto era o ônus do nosso trabalho. Sustentava, com frequência: “O MPM não persegue o criminoso, combate o crime; ao criminoso, há de se dar uma oportunidade para se ressocializar.”. Posso antecipar: embora atuasse como órgão de acusação, não era um acusador sistemático.

Em um certo julgamento, quando de seu término, um dos acusados veio me abraçar, mesmo tendo sido condenado a 30 anos de reclusão, porquanto a pena pedida, originalmente, era de morte. Depois, o Tribunal, em grau de recurso, reformou a sentença e reduziu a pena. Eu me preocupava com as provas contidas nos autos para formar a minha convicção. Quando não eram contundentes, pedia a absolvição.

Memória MPM – Havia casos em que o juiz era pela absolvição e o senhor pela condenação?

Jorge Luiz Dodaro – Sim, inúmeros. Cito, a título de exemplo, o caso dos trinta e tantos coronéis anteriormente aludido. O juiz Oswaldo Lima Rodrigues foi pela absolvição. O Conselho Especial, formado por generais, votou pela condenação. O resultado final foi de 4 a 1. Acompanharam o MPM.

Memória MPM – Como foi a sua experiência com o jornalismo?

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Jorge Luiz Dodaro – Uma época fértil. Uma escola de vida. Tra-balhei em inúmeras empresas jornalísticas. Tanto do Rio, Diário de No-tícias, O Paiz (com “z” mesmo), O Dia e O Globo, quanto de São Paulo, Folha e O Diário Popular – sucursais. Iniciei no Diário de Notícias, um jornal conceituado na época. Aliás, vale mencionar, tive o privilégio de ter como colega, também iniciante, o jornalista Ricardo Boechat, só para citar um, à guisa de ilustração. O foco, à época, era, sem dúvida, a Justiça Militar, em razão dos processos políticos. Fiz parte da fundação da “Sala de Imprensa” no STM, credenciado pelo presidente daquela Corte, o mi-nistro Olympio Mourão Filho. Meu caro Gunter, este segmento na minha vida profissional é vastíssimo. Recordo-me, com saudade, das viagens que desfrutei, como jornalista, no Brasil e no exterior. Em nosso país, acompa-nhava, entre outros, como representante do Diário de Notícias, o ministro dos Transportes Mário Andreazza.

Memória MPM – O que o senhor tem a nos dizer a respeito dos advogados com os quais conviveu?

Jorge Luiz Dodaro – Um verdadeiro exército, cultores do Direito. Uma plêiade de profissionais até hoje respeitados, admirados e reverenciados. É claro que não me lembro de todos. Além dos advogados de ofício mencionados, destacarei alguns, notadamente, os radicados no Rio. Vale lembrar, sete Auditorias, duas da Marinha, duas da Aeronáutica e três do Exército, e o STM estavam sediados no Rio de Janeiro. Eis, pois, alguns: Lino Machado Filho, Marcelo de Allencar, Heleno Cláudio Fragoso, Augusto Süssekind Moraes Rego, Antônio Evaristo de Moraes Filho, Nilo Batista, Alcyone Vieira Pinto Barreto, Manoel de Jesus Soares, Técio Lins e Silva, Edgard Pinto de Lima, Antônio Carlos Barandier, Wilson Mirza, Oswaldo Mendonça, Títo Lívio,

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Marcelo Cerqueira, [Heráclito Fontoura] Sobral Pinto, Ilídio de Moura, Antônio Modesto da Silveira, Eny Raimundo Moreira, João Alfredo Portela, George Tavares, Paulo Goldrajch, Arthur Lavigne, Humberto Teles e Paulo Arguelles, pelos quais nutro, até hoje, fraternal amizade. Muitos estão, hoje, advogando no Tribunal Celestial. Subiram antes do combinado.

Por falar em advogados, na Academia Teresopolitana de Letras eu ocupo a cadeira nº 15, cujo patrono é o insigne advogado Antônio Evaristo de Moraes, sobre cuja trajetória fecunda escrevi na Antologia da Academia. Aliás, um de seus filhos, o Evaristinho, como era conhecido, criminalista, foi sondado para ser procurador-geral da Justiça Militar no governo do Tancredo/Sarney, mas ele declinou. O advogado, Dr. George Tavares, que era muito ligado ao Evaristo, aceitou. O George me chamou para ser o chefe de seu gabinete, mas recusei, porque não queria sair do Rio de Janeiro naquela época, em razão da minha mãe idosa.

Memória MPM – E os ministros?

Jorge Luiz Dodaro – Recordo-me, quando ingressei na Justiça Militar (advogado de ofício) dos seguintes ministros militares, do Exército: Olympio Mourão Filho, Octacílio Terra Ururahy, Pery Constant Bevilacqua, Ernesto Geisel. Da Marinha: Valdemar de Figueiredo Costa, Sylvio Monteiro Moutinho, Mário Cavalcanti de Albuquerque. Da Aeronáutica: Armando Perdigão, Gabriel Grün Moss e Francisco de Assis Correia de Mello. Ministros civis: Alcides Vieira Carneiro, João Romeiro Neto, Nélson Barbosa Sampaio, Eraldo Gueiros Leite, Waldemar Torres da Costa, Ernani Ayres Sátyro e Souza, Amarílio Lopes Salgado, Jacy Guimarães Pinheiro e Ruy de Lima Pessôa.

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O ministro Alcides Carneiro, notável orador, certa ocasião, ao falar sobre o erro, assim se manifestou: “Basta que nasça gente, para se ficar sujeito a erros. Só Deus, que é Pai de todos, não erra. Infelizmente, sua imensa filharada, que se espalha pelo mundo, não puxou ao Pai.”.

Memória MPM – O senhor fez parte de uma Comissão que elaborou o anteprojeto da Lei Orgânica do MPU?

Jorge Luiz Dodaro – Sim. Fui indicado pelo então procurador- -geral da República, Dr. Sepúlveda Pertence, que muito me honrou. Eu era, na Comissão, o único participante que não residia em Brasília.

Memória MPM – Quem presidia a Comissão?

Jorge Luiz Dodaro – Foi presidida pelo procurador da República, Dr. Aristides Junqueira. O grupo era formado por ilustres e doutos colegas, a saber: o Dr. Álvaro Augusto Ribeiro Costa, que representava a Associação Nacional dos Procuradores da República; o procurador João Pedro Ferraz dos Passos do MPT, que chegou a procurador-geral; e o hoje ministro do STF, Celso de Mello, que, à época, era promotor em São Paulo, indicado pelo ministro Saulo Ramos. Havia um representante do Ministério da Justiça, cujo nome não me recordo no momento, e mais dois procuradores da República. Trabalhamos por quatro meses. Foi o embrião da Lei Orgânica. Depois, o Dr. Pertence nomeou uma Comissão de subprocuradores-gerais da República para enxugar o texto que hoje rege a instituição (Lei Complementar nº 75, de 20/5/93 – Estatuto do Ministério Público da União).

Gostei muito de ter participado dessa Comissão. Foi um aprendizado. Acho que tinha sintonia com meu temperamento, porque sempre

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fui um agregador. Não tenho inimigos, pelo menos que eu saiba. Nunca fiz mal a ninguém, em lugar nenhum! Se, porventura, prejudiquei alguém, foi inconscientemente. Eu trato todo mundo igual.

Memória MPM – No que a Lei Orgânica avançou?

Jorge Luiz Dodaro – Os avanços foram expressivos, consistentes. A Lei Orgânica nº 75/20.5.93, definiu, dentre outras conquistas, inúmeras normas e regulamentos, tais como: os princípios e funções institucionais, os instrumentos de atuação, o controle externo da atividade policial, a defesa dos direitos constitucionais, garantias e prerrogativas, autonomia, estrutura e a carreira. E mais, somente se poderá nomear, como chefe do MP federal, funcionários da carreira. Antigamente, permitia-se ao presidente da República nomear alguém de fora dos quadros ministeriais, como ocorreu na Procuradoria da República e na Procuradoria do MPM; eram nomeados no vernáculo pátrio e exonerados em latim: ad nutum [risos]. Com o advento da Constituição Federal de 88, repetido na Lei Orgânica do MPU de 93, tal regra não será mais possível aplicar.

A Lei Orgânica aperfeiçoou, de igual sorte, o Colégio de Procuradores, o Conselho Superior, as Câmaras de Coordenação e Revisão, a Corregedoria--Geral, vencimentos e vantagens, a disciplina, deveres, vedações e sanções. Em síntese, operou-se um avanço digno da instituição ministerial em um todo. O Ministério Público brasileiro, como bem lecionou o professor Alfredo Valadão, que conheci, é, sem dúvida, o “Quarto Poder”. Ouso acrescentar: tem prerrogativas de Poder sem ser Poder.

Memória MPM – E os congressos que a Associação do Ministério Público do Brasil organizou na Europa?

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Jorge Luiz Dodaro – Promovemos dois congressos: em Roma e na Dinamarca. O primeiro foi presidido pelo procurador da República, Dr. Samuel Auday Buzaglo, dileto amigo e irmão, que tive a honra de suceder na presidência da Associação do Ministério Público do Brasil – AMPB, fundada em 24/06/57. O segundo congresso, eu presidi.

Memória MPM – E o ciclo de palestras no Comando Militar Leste?

Jorge Luiz Dodaro – Ajudei a fundar. O ciclo destinava-se a estudantes universitários. A fim de que o Ministério Público Militar fosse melhor conhecido, convidei o Dr. Couto como nosso representante, o qual prontamente aceitou e pontificou com maestria. Com a transferência do iluminado colega para Brasília, eu o substituí.

Além das palestras inerentes à Justiça Militar, ministradas por cultores do Direito Militar (promotores, magistrados, delegados e militares), os participantes assistiam a um julgamento na 3ª Auditoria. Fazia parte do programa, ainda, visitas a um Forte sediado no Rio de Janeiro e à AMAN – a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende/RJ. O ciclo em comento, Estudos sobre Direito Penal Militar, encontra-se na sua XXXVII edição.

Memória MPM – Como eram as condições de trabalho, os proventos, especificamente?

Jorge Luiz Dodaro – A propósito, lembro de uma passagem peculiar, em torno dessa difícil questão dos proventos, que aconteceu no Ministério Público do Rio de Janeiro. O governador do Estado do Rio de Janeiro, [Antônio de Pádua] Chagas Freitas, era associado da AMPB e da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – AMPERJ.

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Certa ocasião, o procurador Leôncio de Aguiar Vasconcellos, presidente da Associação carioca, e que também era da diretoria da entidade que eu presidia (AMPB), veio pedir os meus préstimos para que interviesse junto ao governador, no sentido de tentar reverter um mal-estar que se criara por causa de sua expulsão da entidade carioca. Eles haviam entrado numa espécie de “vigília institucional”, para pressionar o governo pelo aumento dos proventos. Como se criou um impasse, a Associação resolveu expulsar o Chagas Freitas do quadro de associados. Assim, a pedido do Leôncio, fui falar com o Chagas. Ele amarrou a cara e não anuiu às nossas ponderações. Acabou não dando o aumento e não voltou para a AMPERJ; continuou, contudo, na AMPB. Relato esse episódio só para salientar a penúria que vivíamos em relação aos nossos vencimentos.

No que pertine a nós, corremos atrás, também, no sentido de melhorar os nossos proventos tão defasados à época. Partimos, eu e alguns diretores para o Planalto em busca de uma solução benigna para o desconforto salarial que passávamos então. Fomos recebidos pelo presidente da República, general João Baptista Figueiredo, o qual, depois de um saudável, produtivo e descontraído colóquio, sempre solícito, recomendou que o nosso pleito fosse encaminhado ao chefe da Casa Civil, ministro [ João] Leitão de Abreu. Assim agimos. O chefe de Gabinete do ministro era o eminente e douto colega do MPF, Dr. José Francisco Rezek.

Entrementes, recorremos, com igual objetivo, a um estimado amigo, Dr. Arthur de Castilho, subprocurador-geral da República, vice--presidente da AMPB (um dos palestrantes brasileiros no simpósio promovido pela Entidade em Roma/Itália) e secretário-geral do ministro da Justiça [Ibrahim] Abi Ackel, que muito nos ajudou. O aumento, em

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forma de “gatilho”, afinal veio [risos]. Foi um dos últimos atos presidenciais. O alívio foi geral, alegria total!

Memória MPM – No que consistia o mecanismo do gatilho?

Jorge Luiz Dodaro – A magistratura saiu na frente. Conseguiu reverter o quadro de magreza salarial que vivia, por meio de um artifício denominado “efeito cascata”, que consistia no somatório de quinquênios laborados no efetivo exercício da função. Nos primeiros cinco anos, 5% de aumento; dez anos, 5% mais 10%, e assim, sucessivamente, até os trinta anos. Se a memória não me falha, era isso.

O “gatilho”, por seu turno, não era aumento e sim uma correção ou ajuste compensando a perda salarial por conta da inflação. Cada mês, vinha no contracheque um valor diferenciado, a maior, naturalmente. Bendito “gatilho”! Veio em boa hora [risos].

Memória MPM – O senhor chegou a participar da mobilização pela Constituinte?

Jorge Luiz Dodaro – Sim, intensamente. Havia muitas reuniões e debates. Eu e todo o MP do Brasil (federal e estadual) fomos incansáveis na Constituinte. Cada MP trabalhava na bancada de seu Estado de origem, visitando os constituintes (senadores e deputados), reivindicando os nossos anseios. Valeu o esforço! Pode-se dizer, o MP do Brasil, hoje, é conhecido pela sua sólida estrutura como: antes e depois de 88. Outrora, um MP, embora eficiente, sem o merecido reconhecimento. Proventos incompatíveis com o honroso múnus exercido pelos valorosos membros do Parquet. Os concurseiros aprovados, tanto para o MP quanto para a magistratura, é claro,

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optavam pela segunda, uma vez que pagava mais. Hoje os ventos mudaram o curso da história.

No passado não muito distante, o MP era um barco sem rumo, perdido num mar revolto, quase à deriva. Hodiernamente, navega em mares serenos e ancorado em porto seguro. Agora, só nos resta, cada vez mais, aperfeiçoar as incontáveis conquistas alcançadas e zelar com denodo para que continue cada vez mais forte, razão de ser da perenidade do Ministério Público.

Ainda no curso da Constituinte, tentei, mas não consegui, por falta de apoio político, unir o Ministério Público da União por meio de um concurso único de ingresso. O procurador-geral da República, Inocêncio Mártires Coelho até abraçou a ideia, mas ela não prosperou.

Memória MPM – O senhor concorreu para o cargo de procurador-geral?

Jorge Luiz Dodaro – Sim. Fui o segundo mais votado, entretanto, o procurador-geral da República, Dr. Aristides Junqueira, acabou conduzindo o primeiro da lista tríplice, o procurador Kleber de Carvalho Coêlho.

Memória MPM – E qual era sua plataforma de campanha?

Jorge Luiz Dodaro – Estávamos vivendo ativamente o momento de valorização institucional (com a Constituição Federal e a Lei Orgânica). Com a edição desses dois institutos, surgiu outro Ministério Público. A época anterior foi terrível, com os proventos baixíssimos – eu ainda tinha desconto pela não exclusividade. Não tínhamos gabinete. Dividíamos com a defesa uma saleta cedida pela Auditoria. Quem datilografava as denúncias, ou qualquer outra peça, era eu [risos]. Não tínhamos auxiliar. O papel era sem timbre. Não tínhamos absolutamente nada. Não dispúnhamos

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de carros oficiais, ou motoristas. Vivíamos assoberbados de processos, em função dos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e no CPM (deserção, insubmissão, etc.). Hoje, a situação se inverteu, pois há excelente infraestrutura e diminuiu o volume de trabalho. Como corregedor-geral, visitei algumas Procuradorias e constatei que, de certa forma, já se pode trabalhar com bastante conforto. Os antigos, como eu, sofreram, mas jamais perderam o entusiasmo.

Participei, ativamente, do debate e da mobilização para a conquista desse novo patamar. De forma que, quando surgiram as eleições, entrei embalado na campanha, respeitando, é óbvio, os concorrentes.

Oportuno lembrar um outro episódio ocorrido na Constituinte: para garantir a não exclusividade ao MP, ficou estabelecido, na Constituição, que todos aqueles que haviam ingressado antes de 1988 poderiam optar se seriam ou não alcançados pela vedação ao exercício de outras atividades, como a advocacia. O debate interno em torno dessa questão era vivo, pois parte considerável da CONAMP entendia que não deveria haver exceção às vedações. Externamente, o Judiciário não aceitava a equiparação pertinente às prerrogativas. Os delegados, paralelamente, pressionavam para terem as mesmas condições que os membros do Ministério Público. E havia disputas por atribuições, algo que repercute ainda hoje, como nessa malfadada PEC-37, felizmente sepultada. Contudo, não se pode descuidar. Prevenir acidentes é dever de todos [risos]. Precisamos estar vigilantes. Então, foi necessário, naquele momento, aparar as arestas internas para estarmos ainda mais unidos. Conseguimos. Sobre a vedação, a matéria consolidou-se no “Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” da nossa Lei Maior (Art. 29, § 3º).

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Enquanto a CONAMP tinha como local, para a concentração dos colegas, o gabinete do deputado Ibsen Pinheiro, eu e outro promotor do MP carioca, Dr. Antero Gaspar, nos reuníamos no gabinete do presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães, porque a secretária do deputado tinha um sobrinho que era do MP, que também advogava.

Memória MPM – Fale-nos sobre as medalhas conseguidas na sua passagem no MPM.

Jorge Luiz Dodaro – Foram inúmeras. Não por mérito do outorgado, mas em razão da generosidade dos outorgantes. Caso a memória não me traia, eis algumas: Medalha do Mérito Tamandaré, Colar do Mérito Judiciário/TJ/RJ, Amigo da Marinha, Medalha Marechal Zenóbio da Costa, Medalha Mérito Santos-Dumont, Ordem do Mérito Naval, Ordem do Mérito Judiciário Militar (Alta Distinção), Medalhão Comemorativo do Bicentenário da JMU, Ordem do Mérito Aeronáutico, Comenda Visconde de Mauá (Grau de Cavaleiro), Ordem do Mérito MPM (Alta Distinção), Medalha do Pacificador (Exército), Ordem do Mérito Militar (Grau de Cavaleiro), Ordem do Mérito Militar (Grau de Oficial), Ordem do Mérito Judiciário Militar (Distinção), Colaborador Emérito do Exército (CML), Colar do Mérito do Rio de Janeiro, Colar do Mérito Tamandaré.

Memória MPM – Além do Elos e da Pro Arte, o senhor integra outras instituições?

Jorge Luiz Dodaro – Sim, além do Elos Clube e da Pro Arte, ambos de Teresópolis, faço parte de algumas. Dentre outras, o Instituto Cultural Sanmartiniano del Brasil (Consulado-Geral da República Argentina), Lions Clube Rio Comprido, Academia de Letras, Ciências e Artes – ALAC, Academia Luso-Brasileira de Letras – ALBL, Academia Teresopolitana

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de Letras – ATL, Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, Asociación Latino-Americana de Derecho Aeronáutico y Espacial – ALADA, Casa do Estudante do Brasil, Sociedade Brasileira de Direito Comparado e União de Juristas Católicos.

Memória MPM – E a Subprocuradoria-Geral?

Jorge Luiz Dodaro – A Subprocuradoria-Geral foi a consagração. Além de exercer o múnus na fase recursal, participar de sessões no STM, oficiei junto à Câmara de Coordenação e Revisão, tendo como pares os nobres e doutos colegas: Dr. Péricles (coordenador) e a Dra. Hermínia Célia Raymundo, vogal como eu. Uma experiência memorável. Participei, de igual sorte, das sessões do Conselho Superior do MPM. Falo de tudo isso com muita saudade. Foi uma rica passagem. A “PEC da bengala” não me beneficiou. Paciência! Com a minha aposentadoria, contabilizo, como consolo, que a “fila” andou… [risos]. Creio que contribuí, ainda que modestamente, para o engrandecimento do MPM. A propósito, ouso acentuar: eu não entrei para o MPM, o MPM é que entrou em mim, e continua até hoje, mesmo aposentado, uma vez que as ideias e os sonhos continuam latentes. Caso venha a “PEC da muleta”, quem sabe, eu seja alcançado... [risos].

Não poderia desfrutar de desfecho mais sublime para minha carreira: ser coroado com o privilégio de oficiar no STM e na Procuradoria-Geral, ambos integrados por seletas mentes luminosas, que compõem um verdadeiro manancial de cultura e de conhecimento de nosso Ordenamento Jurídico Pátrio.

Memória MPM – E a advocacia depois da aposentadoria?

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Jorge Luiz Dodaro – Vai relativamente bem. Não tão agressiva como outrora. Gosto de advogar, excetuando-se a área Trabalhista, que advogo só para amigos. Desativei, praticamente, meu escritório. A meta, hoje, é só inventários. Não há audiência; ocorre só quando há interditos. E mais, quando não há testamento, menores ou incapazes, pode ser resolvido na esfera extrajudicial. Advogo desde que entrei na Justiça Militar. Minha esposa reclama que, mesmo aposentado, eu não desacelerei [risos].

Memória MPM – Como foi sua vivência na CONAMP?

Jorge Luiz Dodaro – A CONAMP, antes CAEMP, foi fundada nos idos de junho de 1971, e seu primeiro presidente foi o procurador-geral do MP/SP, Oscar Xavier de Freitas, que esteve à frente da instituição por duas gestões (71/73 e 73/75). Sua indicação foi fortemente sugerida, com êxito, pelo procurador José Cupertino Gonçalves, então presidente da Associação Mineira do Ministério Público, que recusara o cargo, sob o argumento de que a Associação Mineira não tinha como bancar a presidência de uma entidade de âmbito nacional, lançando, assim, por reconhecer no indicado, Oscar, entre outros atributos, sua experiência e liderança.

Vale assinalar, no entanto, que a ideia de se criar a CAEMP surgiu no Rio de Janeiro, em Teresópolis, onde resido atualmente. Naquele momento, veio a lume o nome de Cupertino, a quem reverencio pela sua franqueza, lealdade e, sobretudo, amor ao MP, em prol de novos rumos da instituição. Daí para a frente, a CAEMP começou a se estruturar, participando ativamente de memoráveis lutas para consolidar o Ministério Público, cujos reflexos são perceptíveis até os dias atuais, mercê de seus valorosos membros. O segundo presidente da CAEMP foi o procurador

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Ferdinando de Vasconcellos Peixoto, do MP/RJ, nos biênios: junho/75 a junho/77, e junho/77 a junho/79.

Em 1979, pela primeira vez, ocorreu uma disputa eleitoral. Dois candidatos: o procurador Joaquim Cabral Netto, representante da Associação mineira, e o procurador José Pereira da Costa, da Associação goiana. Foi eleito o enciclopédico e carismático Cabral: sabe tudo sobre o Ministério Público!

Com o ingresso de entidades de classes do ramo da União (República, Militar, Trabalho e a Associação do Ministério Público do Brasil, que honrosamente presidi), o Estatuto da CAEMP foi aperfeiçoado, visando a acolher os novos associados.

Memória MPM – E os biênios seguintes à presidência do Cabral?

Jorge Luiz Dodaro – No biênio seguinte, ainda sob a égide da CAEMP, a presidência foi exercida pelo Pereira, o qual foi sucedido pelo promotor Luiz Antônio Fleury Filho, do MP/SP (biênios 83/85 e 85/87), que se tornou governador do Estado de São Paulo. E por aí vai.

Memória MPM – Como se deu a mudança da sigla CAEMP para CONAMP?

Jorge Luiz Dodaro – Em agosto de 1978, na cidade de Goiânia/GO, na segunda administração de Ferdinando Vasconcellos, o Estatuto da CAEMP sofreu nova reforma, com o propósito de modificar o nome da entidade para Confederação do Ministério Público do Brasil, embora já, naquela oportunidade, houvesse surgido a sugestão de mudar sua denominação para Confederação Nacional do Ministério Público, com a

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sigla CONAMP, conquanto mantida, estatutariamente, a sigla CAEMP. A questão só foi definitivamente dirimida na presidência do Fleury, em 1984. Equivale dizer, desaparecia a indicação de que ela – CAEMP – se constituiria tão somente em órgão de representação estadual.

Mais tarde, por proposta do procurador Cláudio Barros Silva, do MP/RS, em uma Assembleia da CONAMP realizada no Hotel Nacional, em Brasília, o Estatuto foi novamente alterado para consolidar a denominação da entidade para Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, conservando-se inalterada a sigla CONAMP.

Memória MPM – O senhor se lembra de outros que tenham presidido a CONAMP?

Jorge Luiz Dodaro – Muitos outros ilustres e doutos colegas do Parquet assumiram, com lucidez e eficiência, os quais conduziram com firmeza os destinos da entidade. Depois do Fleury surgiram: Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo, do MP/SP; Paulo Moura, do MP/SE; Voltaire de Lima Marques, do MP/RS; Milton Riquelme de Macedo, do MP/PR; Aquiles de Jesus Siquara Filho, do MP/BA; Marfan Martins Vieira, do MP/RJ; João de Deus Duarte Rocha, do MP/CE; José Carlos Cosenzo, do MP/SP; César Bechara Nader Mattar, do MP/PA; e Norma Angélica Cavancanti, do MP/BA (atual presidente). Mentes luminosas, incansáveis no trato dos assuntos inerentes ao Ministério Público do Brasil. Que Deus proteja a todos!

Memória MPM – O senhor fez parte da diretoria da CONAMP?

Jorge Luiz Dodaro – Sim, de algumas, a saber: na gestão do Dal Pozzo, 87/89, representando a Associação do Ministério Público do Brasil; sob

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a égide do Voltaire, 91/93, pela AMPM; e, depois, na presidência do Riquelme, 93/95. Outros colegas, como o Couto e o Marcelo também fizeram parte da diretoria da CONAMP.

Ainda sobre o tema, relembro, jubiloso, que foi durante a minha gestão na presidência da AMPM (hoje ANMPM), e da AMPB, que a nossa entidade de classe se filiou à CONAMP, e continua até hoje. E mais, de certa forma, como já destaquei, com o nosso ingresso e de outras Associações Federais do Ministério Público, a CAEMP virou CONAMP.

O Fleury, como presidente da CONAMP, realizou um excelente mandato. Foi incansável na Constituinte. Mais tarde, como governador do Estado de São Paulo, convidou todos os ex-presidentes das Associações ligadas à CONAMP para um almoço no Palácio dos Bandeirantes. Ele foi muito elegante conosco.

Mudando de um polo a outro, participei, recentemente, da banca avaliadora do concurso promovido pelo CNMP: Prêmio CNMP, objetivando premiar os programas e os projetos do MP brasileiro que mais se destacaram na concretização e alinhamento do Planejamento Estratégico Nacional. Fiquei impressionado com a qualidade dos trabalhos produzidos pelos membros do Ministério Público de todo o país. Descortinei uma visão macro da instituição ao encarar os desafios contemporâneos que devem ser enfrentados e superados pelo MP brasileiro para cumprir seu importante papel constitucional, o de agente de transformação social, dentre tantas outras iniciativas.

Memória MPM – E os seus colegas no curso de sua jornada pelo MPM?

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Jorge Luiz Dodaro – Cometeria imperdoável injustiça ao mencionar nomes, pois não alcançaria todos os que atuaram ao meu lado nesse exuberante cenário. Seus exemplos estimulam e fortalecem a alma.

Credito-me, despido de qualquer vaidade, participação efetiva em prol do MPM, desde a fundação da Associação do Ministério Público Militar, de que fui presidente, no segundo mandato, e, reconduzido, mercê da generosidade dos companheiros. Não desconhecem, sobretudo os mais antigos, minha participação efetiva na defesa dos interesses da classe, quer quando da elaboração da Lei Orgânica, que hoje nos rege, quer quando, juntamente a outros, defendemos, para a dignidade do cargo e do exercício, vencimentos condignos.

No entanto, não só aí participamos das lutas em prol da dignidade do cargo, pois que, como tantos outros, cerramos fileiras para a conquista, entre outras, das prerrogativas que hoje ornam a instituição.

Tive, de igual sorte, a indescritível honra de ser alçado ao rol dos subprocuradores-gerais da Justiça Militar, em quem enxergo valiosas virtudes: integridade, determinação, honradez, dentre inumeráveis outras. Mas, sobretudo, a mais nobre das qualidades: a amizade, cujo término não se dará neste momento, mas num futuro, oxalá muito distante, quando não mais encontrar-se-á em minhas mãos o poder de decidir acerca de meu trilhar.

Como ápice da honraria, fui designado – lamentavelmente, por um curto período – a exercer o cargo de corregedor-geral do Ministério Público Militar, função altamente gratificante, pois imprescindível à

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convergência de valores e esforços, capazes de redundar na otimização e engrandecimento da instituição; e, ressalto, a atuação correicional encontra-se diametralmente oposta ao mero ato de destaque ao erro.

Prevaleço-me do momento para expor meus sentimentos de gratidão por tudo o alcançado em minha travessia pelas águas plácidas e cristalinas do Ministério Público Militar. Em primeiro plano, ao Grandioso Criador, nas mãos afáveis de quem repousam nossos desígnios; à minha amada esposa, por toda a dedicação, carinho e paciência investidos, dando-me conforto e suportes emocional e espiritual, ao passo que me empenhava em meu mister; à miríade de colegas, que, em muitos casos, tornaram-se verdadeiros irmãos, ao manifestarem seu espírito cooperador e desbravador no exercício do múnus público, e, por fim, mas não menos importante, aos servidores que, abnegadamente, despenderam seu tempo, energia e habilidades em prestar auxílio valioso, sem o qual não seria possível a concretização dos objetivos institucionais.

Não se trata do cerrar da cena, ocorre apenas o alvorecer de uma nova fase. Os sentimentos que ora experimento são nitidamente polares: vão da excruciante dor da despedida ao êxtase da certeza do dever cumprido. Enfim, lanço mão da vasta sabedoria do Apóstolo São Paulo: “Combati o bom combate. Terminei a carreira. Guardei a fé.”. Meu caro Gunter, parece até um discurso, e é! Mas, acredite, são palavras ditas pelo coração.

Memória MPM – O senhor gostaria de deixar algo mais registrado?

Jorge Luiz Dodaro – Apenas acrescentar, com toda a humildade, que fui uma semente nessas mais de quatro décadas de Ministério Público Militar e, se me permite um toque poético, para concluir, cabem aqui os versos de Henfil:

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“Se não houver frutos,valeu a beleza das flores.

Se não houver flores,valeu a sombra das folhas.

Se não houver folhas,valeu a intenção das sementes.”

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AEntrevista realizada por Gunter Axt, em 5 de julho de 2015, em Fortaleza/CE, na residência da depoente.

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Maria Marli Crescêncio Pereira nasceu em 4 de abril de 1936, em Acaraú, no Ceará. É filha de Antônio Raimundo Pereira e Joaquina Rodrigues dos Santos. Casou-se, em 1980, com o advogado Luiz Crescêncio Pereira, falecido em 1985. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Ceará, em 1963. Em julho de 1964, foi nomeada adjunta de promotor de Justiça da comarca de Boa Viagem, cargo do qual foi exonerada, a pedido, em abril do ano seguinte. Advogou no Rio de Janeiro. Ingressou no Ministério Público Militar como substituta de procurador de segunda categoria da Justiça Militar, designada em 30 de maio de 1972. Atuou, primeiramente, junto à Procuradoria da 1ª Auditoria, e, posteriormente, da 2ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Em 20 de junho de 1980, foi removida, a pedido, para a 10ª CJM, em Fortaleza. Em 1995, foi promovida ao cargo de procuradora da Justiça Militar. Em 30 de março de 1999, aposentou-se.

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Memória MPM – De onde a senhora é natural?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Nasci em Acaraú, no Ceará, em 4 de abril de 1936. É uma praia. Uma cidade pequena, cuja economia era basicamente voltada para a pesca.

Memória MPM – O que faziam os seus pais?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Eram aposentados. Tinham um pequeno comércio, uma mercearia.

Memória MPM – A senhora fez os estudos em Acaraú?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Me formei [em 1951 na Escola Rural Normal Virgem Poderosa]. Depois, continuei meus estudos na [Escola Estadual do Ceará], em Fortaleza. Meus pais se mudaram para a Capital e os acompanhei. Prestei vestibular para Direito e me formei na Universidade Federal do Ceará em 1963.

Memória MPM – Por que a senhora escolheu o Direito?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Era o que vários colegas estavam escolhendo. Não havia muitas opções de estudo superior na época. Medicina eu não queria, porque não gosto de injeções [risos]. Então, “fui na onda”. Foi depois que passei a gostar.

Memória MPM – E havia outras moças na Faculdade de Direito?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Já havia outras, sim. Tornaram-se advogadas atuantes, desembargadoras até. Eu só cheguei a ser promotora: não quis ir além, nem ficar mais.

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Memória MPM – A senhora se recorda dos professores?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Não muito dos seus nomes, infelizmente. Estou meio esquecida já. Mas havia bons professores. Gostei muito de minha época de estudante.

Memória MPM – E depois de formada, a senhora advogou?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Fui nomeada promotora de Justiça da comarca de Boa Viagem [em 7 de julho de 1964]. Mas pedi exoneração no ano seguinte.

Memória MPM – Por quê?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Passei a ter outros interesses. Quis ir para o Rio de Janeiro.

Memória MPM – Como a senhora chegou ao Ministério Público Militar?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Foi por meio de uma indicação, do Dr. José Manes Leitão. Foi assim: abrira um concurso para promotor de Justiça em Niterói. Resolvi me inscrever, pois um emprego público me daria mais garantias. Eu estava trabalhando num escritório de advocacia. Descobri o edital apenas numa quarta-feira e as inscrições se encerravam na sexta-feira. Me apressei para conseguir a documentação.

Na Auditoria da Aeronáutica, precisava retirar um atestado. O rapaz que atendia lá me disse para voltar noutro dia, porque naquele momento estava com muito trabalho e seria impossível eu retirar o atestado. Me conformei e fui saindo do prédio aos prantos. Estava chorando, sozinha, porque era evidente que perderia aquela oportunidade. No elevador, chegou um senhor e

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perguntou: “Por que a moça está chorando?”. Não sabia quem era, mas contei a história, admitindo, inclusive, que tinha sido um desleixo meu, porque deixara tudo para a última hora – é que eu realmente só ficara sabendo do edital na última hora. Então ele me perguntou: “Mas o rapaz não lhe deu a certidão?”. “Não, infelizmente, e hoje é o último dia.”. “Vamos voltar lá, me mostre quem foi!”. “Não, pelo amor de Deus, não quero ninguém com raiva de mim!...”. Esse senhor era o procurador José Manes Leitão.

Afinal, voltamos lá, ele tirou satisfação do rapaz e pediu a certidão para já. Sentei em uma cadeira e fiquei esperando. Num instante estava com a certidão. Agradeci e saí correndo, me desculpando pela pressa, porque o prazo estava se esgotando. O procurador pediu-me para dar notícias, depois, do resultado.

Com isso tudo, acabei perdendo a barca. Peguei a próxima, atravessei a baía, mas quando cheguei ao local, as inscrições tinham acabado de encerrar. Telefonei, depois, para o Dr. Manes Leitão para contar: “Olhe, não deu certo. Quando cheguei, a última pessoa já havia sido atendida.”. Ele disse para eu ligar novamente para ele na quarta-feira. Quando liguei, me pediu para ir à Auditoria. Fui lá e ele me contou que cada procurador poderia apresentar um candidato para substituto e que se eu quisesse, me indicaria. Achei que seria uma boa. Veja só, ele nem me conhecia... Foi uma pessoa mandada por Deus! Fiquei tão contente! Uma colega chegou a comentar que ele poderia estar com segundas intenções. Não era nada disso: sempre foi muito respeitador, muito distinto. Enfim, protocolei a papelada e esperei.

Naquele tempo, não estavam fazendo concurso porque tinham medo de infiltração comunista. Fizeram um rastreamento tremendo na minha

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vida. Levantaram a minha trajetória desde o primário. Queriam saber se eu participara do movimento estudantil, mas nunca tive nenhuma relação.

Passou quase um ano. Um dia, eu estava no carro – porque pegava carona de vez em quando com um colega advogado que morava na mesma rua que eu – e ele ouviu meu nome no rádio, na Voz do Brasil! Estávamos conversando e ele apenas ouviu meu nome: Maria Marli Pereira – esse era meu nome, pois ainda não era casada. Eu disse: “Como?”. Ficamos atônitos, porque não sabíamos qual era o motivo. Mas como uma informação saíra com um erro, no mesmo bloco, repetiram todo o bloco de notícias. Veja só! Aí conseguimos entender o que haviam dito sobre mim. Era minha nomeação!

No dia seguinte fui à Auditoria falar com o Dr. Manes, que me disse para esperar o Diário Oficial. A nomeação foi publicada em seguida. Eu tinha um mês para assumir. Ele disse para assumir logo, para não perder o salário. Foi o que fiz. E lá fiquei.

Memória MPM – A senhora, então, atuou no Rio de Janeiro?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim. De vez em quando, contudo, ia para algum outro Estado, em substituição, apenas. Mas era raro.

Memória MPM – Mas a senhora não atuou em Fortaleza?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim, mais tarde. Minha mãe já estava com uma certa idade. Assim, propus a um colega fazer uma permuta. Ele aceitou.

Memória MPM – E o período em que a senhora trabalhou no Rio de Janeiro, como foi?

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Maria Marli Crescêncio Pereira – Quando aceitei o convite e a indicação do Dr. Manes não imaginava tudo o que estava acontecendo. A gente sabia algo pelas notícias, mas na Auditoria havia um volume grande de processos relacionados à Lei de Segurança Nacional. Fiquei impressionada com os assaltos a banco, como os sequestros...

Houve alguns casos violentos. Lembro que um soldado da PM morreu num assalto a banco [em 1975]. No ano seguinte, um agente de segurança de uma agência no Meier também morreu num assalto. Acho que julgamos tantos casos de assalto a banco que esse tipo de crime foi erradicado, pelo menos por um tempo. Foi uma época muito complicada.

Também havia, eventualmente, estudantes que, em função daquela euforia da juventude, deixavam-se envolver com certas coisas... Havia, ainda, alguns crimes envolvendo militares. Poucos.

Eu procurava desempenhar o meu papel da melhor forma possível. Normalmente denunciava, mas pedi vários arquivamentos. Quando achava que as provas eram inconsistentes, pedia arquivamento...

Memória MPM – Quando a senhora pedia arquivamento, alguém reclamava?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Não, sempre respeitaram minha posição, tanto os colegas, quanto os juízes e os militares.

Memória MPM – E as suas denúncias?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Eu tinha muito cuidado com a formulação das denúncias. Procurava reunir todas as provas necessárias para as

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sustentar. Houve um processo [em 1975] em que denunciei [quinze] pessoas envolvidas em atividades subversivas relacionadas ao Partido Comunista no qual o juiz entendeu que não havia provas suficientes para sustentar a denúncia contra dois dos réus. Mas era muito raro de isso acontecer. Depois de julgado, em caso de condenação, normalmente, os advogados apelavam. Às vezes o Tribunal modificava as sentenças, mas geralmente confirmava o que se havia decidido nas Auditorias.

Memória MPM – A senhora se lembra dos casos em que atuou?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Já faz tanto tempo... Praticamente já não recordo mais, não.

Memória MPM – O deputado Marco Antônio Tavares Coelho passou pela senhora?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim! Um deputado federal, pela Guanabara, ligado ao Partido Comunista, que havia sido cassado... Tinha sido dado como foragido, mas foi preso em São Paulo. Requisitei que fosse ouvido em nossa Auditoria. Mas creio que foi julgado em São Paulo.

Memória MPM – Havia casos que repercutiam na imprensa?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim, alguns eram bem rumorosos. Em especial, esses assaltos a banco, ou os processos envolvendo os militantes do Partido Comunista, como no caso desse parlamentar. A Auditoria estava sempre cheia de jornalistas. Acompanhavam tudo. Mas eram muito respeitadores, nunca atrapalharam nosso trabalho, tampouco nos pressionavam para obter informações. De vez em quando me perguntavam o que eu achava, sobre minha estimativa de resultado da sessão... Eram educados, não perturbavam.

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Memória MPM – A senhora se lembra dos advogados, dos promotores e dos juízes que atuavam na Auditoria?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Lembro-me de alguns. Já estou meio esquecida... Eram advogados famosos, a gente ficava impres-sionada! Recordo-me do Heleno Fragoso... do Evaristo de Moraes... O Heleno me parecia muito tímido. Era engraçado, porque era um homem tão famoso... Havia também bons advogados de ofício. Aprendi muito com aqueles advogados.

Dos colegas, lembro-me da Dra. Marly Gueiros, respeitada e famosa. O Jorge Luiz Dodaro, muito querido, quero bem ele. O procurador-geral era o Dr. Ruy de Lima Pessôa... Acho que depois dele veio o Dr. Milton Menezes [da Costa Filho].

Memória MPM – Alguma vez a senhora recorreu?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Aconteceu, mas poucas vezes. Com aqueles advogados famosos e tão importantes a gente precisava ter cuidado e respeito. Então, eu pensava bem antes de recorrer.

Memória MPM – Aconteceu de denunciados serem absolvidos?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Sim, acho que algumas vezes, embora eu, logicamente, procurasse sustentar a acusação com firmeza. Mas isso faz parte do trabalho, nem sempre o promotor vence. Lembro-me de um grupo de assaltantes a banco que foi absolvido: esses, que se envolveram no assalto a uma agência no Meier. O advogado encontrou atenuantes que não estavam no inquérito e logrou o convencimento do Conselho.

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Memória MPM – Como era a rotina de trabalho? Tinha muito trabalho?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Variava. Tinha épocas em que ficávamos sobrecarregados, sobretudo quando eram processos volumosos, com muitos réus. Em outras épocas, era tranquilo, com menos serviço. Creio que no final dos anos 1970 diminuiu o volume de serviço.

Memória MPM – Chegavam até a senhora denúncias de maus- -tratos aos presos?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Não. Eu me detinha aos autos, ao inquérito, onde nada constava a esse respeito. Os advogados, eventualmente, mencionavam essas questões, mas a gente achava que era parte da estratégia de defesa.

Memória MPM – Alguma vez a senhora se sentiu ameaçada, ou constrangida?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Não, jamais. Nunca sofri ameaças. Também não sofri pressões.

Memória MPM – E como era ser uma mulher, promotora, na Justiça Militar?

Maria Marli Crescêncio Pereira – Embora o Direito e as Forças Armadas fossem, naquele tempo, carreiras eminentemente masculinas, sempre fui tratada com muita distinção e respeito. Não me lembro de ter sofrido alguma forma de preconceito.

Memória MPM – E como foi em Fortaleza?

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Maria Marli Crescêncio Pereira – Ainda havia alguns crimes de Segurança Nacional, mas poucos. Aí os tempos já eram outros e os crimes, mais propriamente militares. Não havia mais interesse da imprensa. Em Fortaleza, casei-me [em 22 de setembro de 1980]. Voltei por causa da minha mãezinha e também para me casar. Meu esposo era um advogado militante, conhecido: Luiz Crescêncio Pereira. Ele faleceu [em 1985]. Eu continuei trabalhando. Fui promovida a procuradora [em 1995]. Aposentei-me [em 1999] quando achei que já tinha tempo de serviço suficiente e porque queria fazer outras coisas.

Memória MPM – A senhora gostaria de deixar mais alguma coisa registrada?

Maria Marli Crescêncio Pereira – No momento, não me ocorre mais nenhum fato. Penso que minha contribuição para a instituição foi singela. Acho que foi um período muito rico em minha vida e faria tudo de novo se fosse preciso! E gostei muito da sua visita e da sua presença aqui nesta tarde.

Memória MPM – Muito obrigado.

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TOEntrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar, em Brasília, em 5 de março de 2015, por Gunter Axt.

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Vera Regina da Mota Coelho Americano Alves de Brito nasceu em 29 de julho de 1943, em Itabuna, na Bahia. É filha de Jaime Teodoro Coelho e Maria Ester Guimarães Mota Coelho. Casou-se com Rubens Americano Alves de Brito. Em 1968, formou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concluiu, ainda, mestrado e doutorado, nos anos de 1976 e 1977, na mesma instituição. Foi professora de Direito Penal na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas entre os anos de 1973 a 1980. Atuou, inicialmente, na Procuradoria da Justiça do Trabalho, no Rio de Janeiro. Ingressou no Ministério Público Militar como segunda substituta de procurador de segunda categoria, por indicação, em 25 de agosto de 1972, funcionando, inicialmente, na 1ª e na 2ª Auditorias da Marinha da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Em 1980, requisitada, passou a atuar em Brasília. Em outubro de 1988, passou a ocupar o cargo de procuradora militar de segunda categoria, função que teve nomenclatura alterada, em maio de 1993, para promotor(a) da Justiça Militar. Em 20 de fevereiro de 1995, foi promovida a procuradora da Justiça Militar. Em 31 de maio de 1995, ainda, foi promovida a subprocuradora-geral da Justiça Militar. Em 20 de novembro do mesmo ano, aposentou-se.

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Memória MPM – Doutora Vera, a senhora é natural de Itabuna, na Bahia?

Vera Regina Alves de Brito – Sou de Itabuna, mas fui criada no Rio de Janeiro, para onde fui com dois meses de idade.

Memória MPM – E sua família fazia o quê? Era natural da Bahia?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, meu avô era desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia e meu pai, médico.

Memória MPM – E a família mudou-se para o Rio?

Vera Regina Alves de Brito – Com a Segunda Guerra Mundial, meu pai resolveu se mudar. Ele tinha uma fazenda de cacau em Itabuna – todo mundo em Itabuna cultivava cacau. O preço do produto no mercado caiu drasticamente. Então, ele resolveu transferir-se para o Rio. Tanto que eu fui a Itabuna, até hoje, uma única vez.

Memória MPM – E como surgiu a decisão de fazer a Faculdade de Direito?

Vera Regina Alves de Brito – Olha, eu estava fazendo vestibular para Medicina, em parte influenciada pelo meu pai. Mas numa brincadeira de colegial, fomos à Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, onde os estudantes estavam em um departamento dissecando uma minhoca. Prenderam a minhoca aqui, ali e cortaram. Quando a vi, quase desmaiei: “Meu Deus do céu, como é que eu vou estudar Medicina, se não consigo ver cortar uma minhoca?!”. Em casa, transmiti, então, ao meu pai o desejo de prestar vestibular para Direito. Ele reagiu como todos os pais faziam: “Que

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coisa horrível, não sabe o que quer da vida!”. Estávamos em novembro, ou dezembro, e o vestibular seria em janeiro.

Memória MPM – Em que ano foi o seu ingresso?

Vera Regina Alves de Brito – Eu entrei em 1964. Foi problemático, porque, embora eu estudasse latim na escola, no vestibular caía Sociologia também, e tive pouquíssimo tempo para me preparar.

Memória MPM – A família apoiou, concordou com a ideia do Direito? Porque na época existia certo estranhamento com mulheres nessa área.

Vera Regina Alves de Brito – Inicialmente, meu pai não gostou. E minha mãe quis saber o que eu iria fazer com o Direito: “Vou ser promotora!”. E assim foi.

Memória MPM – E por que a opção por promotora?

Vera Regina Alves de Brito – Coisa de jovem... Não tinha muita dimensão das coisas. Eu admirava uma prima, um pouco mais velha. Achava-a inteligentíssima, preparadíssima, educada, bonita, elegante. Ela era advogada. Acho que isso teve alguma influência...

Memória MPM – Ela era advogada no Rio de Janeiro?

Vera Regina Alves de Brito – Era natural da Bahia, mas estava no Rio.

Memória MPM – Então era uma família com toda uma tradição no Direito.

Vera Regina Alves de Brito – Sim. O Adalício Coelho Nogueira, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal, era meu primo, mas a gente considerava como tio, porque foi criado pelo meu avô.

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Memória MPM – Sim, e seu avô, que foi desembargador, como se chamava?

Vera Regina Alves de Brito – Teodoro Ferreira Coelho, desembargador pelo Tribunal de Justiça da Bahia. Depois ficou em disponibilidade, por causa do sobrinho Adalício, que não poderia continuar na carreira com o tio na ativa.

Memória MPM – E como foram seus anos de Faculdade? Era um período agitado...

Vera Regina Alves de Brito – Foi muito agitado! O primeiro ano foi uma coisa terrível! Como a gente era muito nova, não tinha noção, mas me lembro do clima difícil. Cheguei a ter um problema sério de saúde, porque era tanta bomba que explodia dentro da Faculdade, que não íamos ao banheiro, com medo de sermos atingidas.

Memória MPM – E depois vieram os acontecimentos de 1968...

Vera Regina Alves de Brito – Em 1968, me formei.

Memória MPM – E como foi o curso? Havia muitas mulheres?

Vera Regina Alves de Brito – Poucas. Os tempos eram diferentes. Existia mais formalismo. Os rapazes faziam os exames orais de paletó e gravata. Nenhum deles usava jeans. Eu, nem calças compridas vestia, hábito que mantive durante o tempo em que atuei na Procuradoria! Minha indumentária constituía-se de saias, tailleurs...

Memória MPM – A senhora sentiu algum tipo de discriminação por ser mulher?

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Vera Regina Alves de Brito – Algumas vezes... A cada dia era preciso “matar um leão”, para comprovar competência, porque havia um pouco de discriminação. Em 1969, quando fui convidada para dar aulas de Penal na Faculdade de Direito, isso ficou mais perceptível.

Memória MPM – Pois é, já em 1970 a senhora atuava regularmente como professora.

Vera Regina Alves de Brito – Como eu era bem nova, tive alguns problemas. Um professor de Direito Comercial, depois de terminada sua aula, quando meu turno começava, sentou-se em uma carteira e ali ficou. Estranhei o que um professor faria ali, se sua aula já tinha acabado. Fiquei assim meio sem graça e ele me disse que queria saber se era mesmo competente.

Memória MPM – A senhora era assistente nessa época?

Vera Regina Alves de Brito – Eu era assistente do catedrático de Direito Penal, Hélio Tornaghi. Embora ele fosse processualista, célebre, na Faculdade ministrava Direito Penal.

Memória MPM – Foi ele quem a convidou?

Vera Regina Alves de Brito – Sim. Fiquei assustada: “Como vou dar aula de Direito?”. Ele disse: “Vera, a diferença entre um aluno e o professor é que o primeiro paga para estudar e o segundo é pago para estudar.”. Nunca me esqueci disso! De fato, a gente tinha que estudar para preparar as aulas. Foi uma época gratificante, que deixou saudades, como também deixou o período de estudante, apesar dos embates na Faculdade.

Memória MPM – Logo em seguida a senhora já começou a atuar...

VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO

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Vera Regina Alves de Brito – Sim, fui para a Procuradoria da Justiça do Trabalho. Mas pouco depois, a Procuradoria transferiu-se para Brasília; o procurador-geral me convidou, com mil e uma vantagens, mas preferi permanecer no Rio de Janeiro, pois não queria deixar meus pais. Assim, fui para a Justiça Militar.

Memória MPM – E como foi o ingresso na Justiça Militar em 1972?

Vera Regina Alves de Brito – Na Faculdade um colega professor me disse que a Justiça Militar estava admitindo, sugerindo que eu tentasse. Éramos nomeados por indicação, não havendo concurso nessa época. Todos eram contratados como substitutos. Estranhei: fiquei me perguntando o que tinha a ver com a Justiça Militar. Nada! Só que, por coincidência, o procurador-geral era o doutor Ruy de Lima Pessôa, que tinha sido, na Bahia, aluno do Adalício Coelho Nogueira; conhecia minha família toda. Resolvi aceitar. Assim, entrei na Justiça Militar por indicação desse colega e porque o doutor Ruy aceitou.

Memória MPM – A senhora foi para qual Auditoria?

Vera Regina Alves de Brito – Inicialmente, iria para a segunda da Marinha, mas fui requisitada para a da Aeronáutica. Depois de cinco anos, fui para a Auditoria da Marinha. Era o auge da repressão, entre 1972 e 1973. Aquilo foi muito traumatizante para mim, porque, de repente, comecei a pegar processos pesadíssimos, nos quais reconhecia colegas, contemporâneos de Faculdade, denunciados por crimes contra a Segurança Nacional. Tomei conhecimento (hoje em dia ninguém quer mais falar nesses termos) de todas aquelas terríveis ações terroristas. Ficava me indagando como aquelas pessoas com as quais eu convivera, que haviam sido colegas meus e do meu irmão, teriam sido capazes de atos como aqueles. Um dos primeiros processos que

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me chegou, do qual jamais me esqueci, tamanho foi o choque, referia-se a um assalto a banco praticado pelo pessoal da subversão (não era assaltante comum) em um subúrbio do Rio, chamado Bonsucesso. O guarda bancário, que estava desarmado, foi metralhado. Esse guarda deixou cinco ou seis crianças órfãs. Uma coisa chocante! O pessoal que participava da luta armada não era gente pobre. Eram jovens instruídos, da classe média, e até da classe alta...

Memória MPM – E existiam, também, assaltantes comuns?

Vera Regina Alves de Brito – O Decreto-Lei 898 [de 29 de setembro de 1969] considerou os assaltos aos bancos crimes contra a Lei de Segurança Nacional. De repente, a gente começou a julgar e processar assaltantes comuns.

Memória MPM – E conseguia fazer a distinção de quando se tratava de preso político ou assaltante comum?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, porque as quadrilhas de assaltantes comuns eram “da pesada”. Os réus políticos eram jovens, estudantes, que pertenciam a organizações como a VAR-Palmares. Dizem que, como todos ficaram presos juntos na Ilha Grande, os conhecimentos sobre técnicas de assalto a bancos foram transmitidos de uns para os outros.

Memória MPM – Houve aumento da incidência de assaltos a bancos?

Vera Regina Alves de Brito – Sim.

Memória MPM – Havia denúncias de tortura e de abuso de autoridade de parte dessas pessoas que eram julgadas?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, mas eu nunca presenciei algo assim. Nos depoimentos eles relatavam aquelas violências sofridas no DOI-

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Codi. Mas todo preso sempre se queixa de sofrer coação, sevícias, arbitrariedades, maus-tratos... Não tínhamos elementos concretos que comprovassem que aquilo de fato tinha acontecido. Hoje em dia se faz o exame de corpo de delito, mas naquela época, não. Me recordo de uma situação na Auditoria em que uma denunciada, Inês Etienne Romeu, desafiou os militares, dizendo algo assim: “Eu estou aqui sentada, mas amanhã serão vocês.”. Com muito sangue frio, na sala de espera da Auditoria, ela arrancou uma unha do pé. Estava com a unha machucada. Dizem que foi sangue para todo lado. Não assisti à cena, mas estava na Auditoria naquele dia.

Outro caso do qual me recordo, logo no início, em 1972, foi de um rapaz, um réu chamado Hélio da Silva: não era estudante, não sei o que fazia, operário talvez, mas estava infiltrado num desses agrupamentos, que matou um marinheiro inglês, David Cuthberg, que veio em uma esquadra da Inglaterra e passou o carnaval no Rio, ancorada. O jovem marinheiro saiu para passear e foi morto. O juiz-auditor perguntou-lhe por que fizera isso, o que teria o marinheiro a ver com a situação do Brasil. Ele respondeu: “Nós fizemos isso para chamar a atenção do mundo sobre o Brasil.”. Eu era recém-chegada, ainda muito nova, e fiquei chocada com essa lógica.

Memória MPM – A senhora era solteira?

Vera Regina Alves de Brito – Nesse tempo era solteira.

Memória MPM – Paralelamente, quando a senhora estava no Rio, pôde fazer pós-graduação, mestrado e doutorado. Quais foram os temas?

Vera Regina Alves de Brito – Em Direito Penal, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, antiga Universidade do Brasil ou Faculdade Nacional

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de Direito, onde estudei. Com o problema político, os cursos de pós-graduação foram suspensos. Quando os reabriram, eu já estava na Justiça Militar. Tinha largado o Direito do Trabalho de vez e dava aulas de Direito Penal. Prestei um exame de ingresso para o primeiro curso de mestrado que ocorreu na Faculdade Nacional de Direito, depois de 1964. Concluído o mestrado, logo em seguida fiz o doutorado.

Memória MPM – Não eram muitas mulheres com doutorado em Direito no Brasil, não é?

Vera Regina Alves de Brito – Não. Fico espantada com o número de mulheres nas Faculdades de Direito hoje, assim como no Ministério Público e na magistratura. É impressionante. Mas o fato é que eu acho se tratar de uma profissão muito boa para mulher.

Memória MPM – Por quê?

Vera Regina Alves de Brito – Bem, eu me realizei profissionalmente. Há independência na atuação. Cada um é responsável pelo seu trabalho. Claro, não sei como é hoje em dia. Além disso, as mulheres são muito conscienciosas e detalhistas, mais do que os homens, o que funciona bem no Direito.

Memória MPM – A senhora acha que existe um jeito feminino, diferente, no Direito?

Vera Regina Alves de Brito – Sim. As mulheres são mais detalhistas. Meus colegas homens, talvez, tivessem mais capacidade na tribuna ou mais conhecimento do que eu, mas eu examinava folha por folha do processo, os detalhes nas entrelinhas.

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HISTÓRIAS DE VIDA

Memória MPM – Alguma vez a senhora sentiu algum tipo de desconforto pelo fato de ser jovem, mulher, e de estar atuando na área Penal Militar?

Vera Regina Alves de Brito – Havia algo, até porque eram pouquíssimas mulheres atuando na Justiça Militar, no Brasil inteiro.

Quando trabalhei na Procuradoria-Geral da Justiça do Trabalho no Rio de Janeiro, havia até um assédio irritante por parte dos procuradores: eu era jovem, solteira, recém-formada. Acaba sendo uma espécie de coação, porque a gente está precisando começar a vida profissional e, de repente, começam os indivíduos a assediar. Se a pessoa não responde positivamente, fica a impressão de que pode acabar sofrendo algum tipo de perseguição no futuro. Por sorte, eu era muito protegida pelo procurador-geral, o Dr. Marco Aurélio Prates de Macedo, o que me blindava.

Na passagem dos anos 1970 para 1980, houve um concurso para juiz--auditor promovido pelo Superior Tribunal Militar e pensei em me inscrever. Estava me preparando. Mas me senti dissuadida depois de uma advertência recebida de parte do ministro [Georgenor Acylino de] Lima Torres, quando este fazia uma visita à Auditoria da Marinha, no Rio de Janeiro: “Prepare-se bem, doutora, porque vou arrochá-la, pois não admito mulheres como juízas- -auditoras militares.”. E ainda complementou: “Como uma mulher vai se reunir sozinha com o Conselho de Justiça a portas fechadas?”. Foi traumatizante para mim. Acho que hoje em dia essas coisas não acontecem mais no meio jurídico e se acontecem, é raramente.

Memória MPM – Algum outro processo que tenha lhe chamado a atenção nesse período no Rio de Janeiro?

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Vera Regina Alves de Brito – Há vários. Como o primeiro processo que me coube, para arrazoar o recurso do Ministério Público no caso de um assalto a uma mansão em Santa Teresa, de onde levaram um cofre que pertencia ao Adhemar de Barros. Também havia menção a um cofre em um apartamento na rua Marechal Mascarenhas de Morais. Uma ação na que, creio, a atual presidente Dilma Rousseff também estaria envolvida – não lembro mais qual era o codinome dela. Foi o primeiro processo em que atuei.

Memória MPM – Quais foram os argumentos? Alguma coisa em especial?

Vera Regina Alves de Brito – Não. Eu guardei apenas essa informação, porque foi o primeiro caso que recebi. Lembro-me de que se tratava do caso do cofre do Adhemar de Barros e de um apartamento na rua Marechal Mascarenhas de Morais.

Memória MPM – E como era o ambiente de trabalho na Auditoria?

Vera Regina Alves de Brito – Como a Justiça Militar era pequena, havia muita integração entre juízes e procuradores, pelo menos assim era no Rio de Janeiro, onde eu vivia. Essa integração alcançava também os advogados de ofício e os advogados de fora. Eu era amiga dos juízes com os quais trabalhei. Não encontrei esse mesmo clima em Brasília; havia mais isolamento entre as pessoas.

Memória MPM – O que a senhora poderia nos dizer da convivência com os advogados? Refiro-me especialmente ao período em que atuou na Auditoria no Rio de Janeiro.

Vera Regina Alves de Brito – Sim, foi a fase dos crimes contra a Lei de Segurança Nacional. Tive contato com excelentes advogados, a “papa-fina”

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da advocacia no Rio de Janeiro. Entre eles, não me esqueço do Heleno Fragoso, do Evaristo de Moraes Filho, do Antônio Modesto da Silveira, do Augusto Süssekind de Moraes Rego, do Virgílio Donicci.

Memória MPM – E a senhora trabalhou com qual dos irmãos Evaristo de Moraes?

Vera Regina Alves de Brito – Trabalhei primeiro na Justiça do Trabalho com Evaristo, o trabalhista, uma inteligência de assombrar. E na Justiça Militar tive vários processos com o criminalista. Então, atuei com os dois. O trabalhista era bem mais velho, mas o criminalista morreu cedo.

Memória MPM – Na Justiça Militar, ele defendendo e a senhora acusando?

Vera Regina Alves de Brito – Isso: eu acusando e ele defendendo.

Memória MPM – Quem ganhava?

Vera Regina Alves de Brito – Dependia muito das provas no processo. O Conselho de Justiça ficava adstrito às provas. A defesa podia ser brilhante, mas se houvesse provas, o acusado seria condenado. Havia outros advogados, bastante badalados, mas com os quais não tinha muita afinidade.

Memória MPM – Com o Modesto, o Heleno Fragoso, os irmãos Evaristo e o Süssekind a senhora convivia no ambiente mais pessoal, ou só no profissional?

Vera Regina Alves de Brito – Frequentava a casa do Evaristo de Moraes, o criminalista, porque jogava biriba com a mulher dele. A mãe dele, dona Dora, era minha esteticista: cuidava da minha pele. Éramos todos muito amigos. No trabalho éramos adversários...

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Memória MPM – Mas isso não contaminava a relação?

Vera Regina Alves de Brito – Não. Um único advogado, bada-lado, cujo nome não vou citar, conduzia para o lado pessoal essas coisas, e me incomodava muito. Já é falecido. Trabalhei também com excelentes advogados de ofício. O Rio de Janeiro tinha esse ambiente intelectual-mente preparado.

Memória MPM – A senhora conheceu os irmãos Evaristo em função da atividade profissional?

Vera Regina Alves de Brito – Trabalhei com os dois e os conheci bem, pois o Hélio Tornaghi, de quem eu era assistente da Universidade, era amigo do trabalhista. Eles eram mais velhos. Eu frequentava muito a casa do Hélio Tornaghi. O Evaristo e o João Romeiro Neto, que era criminalista no Rio e depois ministro do STM, frequentavam assiduamente, com as respectivas esposas, as reuniões dos domingos à noite. Eu ficava fascinada com a inteligência daqueles homens.

Memória MPM – A senhora se lembra de alguns presos que o Evaristo defendia?

Vera Regina Alves de Brito – Assim é difícil recordar... Me lembro de alguns presos como a Inês Etienne, o Hélio da Silva... ambos já men-cionados. Lembro-me demais do Nelson Rodrigues Filho, filho do Nelson Rodrigues. Eram várias as acusações contra ele. Impressionante, porque ele foi colega do meu irmão na Faculdade Nacional de Engenharia, no Largo São Francisco de Paula, onde atualmente fica a sede do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. A mãe dele, que se chamava Elza, guardo na memória até

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hoje, aquela mulher sofredora, marcada, que nunca deixou de estar com o filho todas as vezes em que ele ia prestar depoimento nas Auditorias.

Memória MPM – Eram mais de dez acusações contra ele...

Vera Regina Alves de Brito – Era um rol.

Memória MPM – E ele foi condenado em tudo?

Vera Regina Alves de Brito – Pode até ter tido alguma absolvição, mas não me recordo. Lembro-me do Alex Polari de Alverga, hoje escritor, que se envolveu no sequestro do embaixador da Alemanha; do jornalista Cid de Queiroz Benjamin: esse menino era novinho, tinha seus 18, 19 anos, mas o garotinho não era mole!

Memória MPM – E a maior parte deles foi condenada ou tinha também absolvições?

Vera Regina Alves de Brito – Muitas absolvições também...

Memória MPM – O promotor tinha atribuição para tomar a iniciativa, por exemplo, de fazer vistoria nos presídios, nas detenções, nas carceragens?

Vera Regina Alves de Brito – Tenho conhecimento de que colegas faziam vistoria nos presídios, mas eu nunca fui convidada. Provavelmente, por duas coisas: pelo fato de ser jovem e pelo fato de ser mulher. Fui a presídios quando era solicitadora, estagiária da Defensoria Pública, mas depois não retornei mais.

Memória MPM – O estágio na Defensoria Pública foi na Justiça Comum?

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Vera Regina Alves de Brito – Junto às Varas Cíveis, que eram 21 ou 22. Enfim, nas Auditorias, não sei se por ser mulher, ou se por ser tão jovem, com falta de experiência de vida, ou as duas coisas, os colegas mais velhos procuravam me preservar, e me alijar até, de maneira que as coisas não chegavam até mim. Só ouvia falar das arbitrariedades contra os presos nos seus depoimentos. E, sinceramente, achava que era um negócio meio difícil de ocorrer. Parecia tão improvável... E a gente via nos autos tanta violência praticada por eles... O preso sempre reclama de ter sofrido violência...

Pouco depois de eu chegar à Auditoria, o auge da repressão passou. Peguei a Lei de Anistia ainda no Rio de Janeiro.

Memória MPM – Qual foi o ambiente na Auditoria em torno da Lei da Anistia? Os processos sem condenação continuaram andando?

Vera Regina Alves de Brito – Eu não me recordo bem, mas acho que foi isso, porque me lembro de conversar muito sobre a Lei da Anistia com o juiz-auditor, o Dr. Mauro Seixas Telles, um rapaz inteligente, meio vanguardista, irmão do ministro Antonio Carlos de Seixas Telles, do Superior Tribunal Militar.

Memória MPM – Em termos de infraestrutura, como eram as Auditorias?

Vera Regina Alves de Brito – Não havia nada. A gente fazia o serviço de datilografia, de pesquisa de jurisprudência, a parte administrativa, tudo. Não havia assistentes, infelizmente. Para coletar a jurisprudência, por exemplo, era preciso ler o Diário Oficial, recortar os acórdãos do Tribunal, que eu então encadernava em volumes. Retirava do DOU apenas a parte relativa ao STM. Durante anos mantive esses

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volumes encadernados. E fazia fichas para os delitos e seus julgados. Hoje está tudo na internet...

Memória MPM – E material?

Vera Regina Alves de Brito – Material até que tinha, nunca senti falta de papel. Mas alguns reclamavam que até papel faltava.

Memória MPM – E segurança?

Vera Regina Alves de Brito – Não havia nenhuma.

Memória MPM – Como era lidar com casos, às vezes tão rumorosos, que chamavam a atenção?

Vera Regina Alves de Brito – Numa oportunidade, passei um susto terrível! Eu pedi a condenação de um assaltante de banco e soube que um tempo depois ele se evadiu. Um dia eu estou passando pelo Largo do Machado indo em direção à Rua das Laranjeiras, quando o identifico ali, solto: ele me reconheceu e eu o reconheci. Parecia que meu coração tinha saído pela boca! A gente não tinha segurança nenhuma.

Lembro-me bem de um crime militar, sem relação direta com a Segurança Nacional. Pedi a condenação de um cabo, ou sargento, agora não me recordo, por um ato de violência contra superior e ele chegou a ser condenado. Mas, integrante do Centro de Informações da Aeronáutica, o CISA, nunca cumpriu pena, porque mandava e desmandava. Se agredia um superior, imagine o que mais fazia. E algumas vezes me cruzei com ele nas ruas. Numa oportunidade, eu estava em uma lanchonete, tomando um cafezinho, quando escutei aquela voz atrás de mim, dizendo: “Mas é muito

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boa, pena que seja tão brabinha.”. Tomei aquele susto! Mas não o encarei, nem me voltei.

Memória MPM – Chegou a haver algum incidente na Auditoria?

Vera Regina Alves de Brito – Pois é, numa oportunidade eu telefonei para a Auditoria avisando que me atrasaria dez minutos, porque as audiências começavam pontualmente. Mas quando chego para estacionar o carro, não consigo ter acesso, pois havia um cordão de isolamento e policiais. Um deles me informou: “Olha moça, foi um tiroteio no prédio do Ministério da Aeronáutica.”. Então, fui embora. Depois liguei e me relataram que um desses presos, das quadrilhas de delinquentes comuns – eles entravam pela parte de trás do prédio, chegando de camburão, e passavam por um corredor para entrar no hall social onde ficavam os elevadores –, agarrou a metralhadora de um guarda e disparou. Houve tiroteio e ele morreu. Foi um desespero. Não tinha segurança nenhuma, os tempos eram outros. Na Auditoria da Aeronáutica havia um salão enorme onde os presos aguardavam e para chegar a minha sala tinha que passar no meio deles.

Memória MPM – Alguma vez a senhora sentiu algum tipo de pressão, da área militar em relação a sua atuação nos processos?

Vera Regina Alves de Brito – Não, de parte da área militar jamais sofri pressão com relação aos crimes contra a segurança nacional. Fui sofrer pressão tempos depois, em Brasília, na época da emenda Dante de Oliveira.

Memória MPM – Eu pergunto em geral, mas podemos falar primeiramente dos crimes contra a segurança nacional.

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Vera Regina Alves de Brito – Não senti pressão da área militar. O procurador-geral também não interferia na minha atuação. Talvez tenha tido sorte, pois alguns colegas relataram terem sofrido pressões.

Memória MPM – E nos crimes militares?

Vera Regina Alves de Brito – Apenas, numa oportunidade, um capitão de mar e guerra adentrou na minha sala e ficou solicitando que eu pedisse a absolvição de um capitão. Expliquei que não podia, por ser um crime culposo. Questionei se fosse um praça que tivesse cometido crime culposo contra o superior, ele iria até ali pedir sua absolvição. Então me disse: “A senhora, como toda mulher, não entende nada de hierarquia e disciplina militares.”. E terminou dizendo que lugar de mulher é na cozinha. Disse isso dentro da minha sala! Tinha um colega meu chamado Coelho, que faleceu cedo. A sala era um cubículo, o Coelho saiu de fininho, só vi a porta abrir e o Coelho sair. Me levantei e respondi: “Comandante, o lugar da sua mãe, da sua filha e da sua mulher talvez seja na cozinha, mas o meu não é! O senhor, por favor, saia da minha sala!”. Foi o único incidente assim.

Memória MPM – E como foi em Brasília?

Vera Regina Alves de Brito – Anos depois, aqui em Brasília, tive muito medo, na época do deputado Dante de Oliveira e da campanha pelas “Diretas Já!”. Foram baixadas aquelas medidas de emergência, proibindo passeatas. Mas o pessoal da Universidade de Brasília enfrentou a proibição. O general Newton Cruz saiu dando chicotada nos carros. Um inquérito policial foi instaurado e veio parar na minha mão, numa época em que estava assoberbada de serviço. Olhei aquilo e pensei em pedir arquivamento. Eu devia ter falado logo, mas em função do acúmulo de serviço deixei para me

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pronunciar só no final do prazo. Começou, então, uma guerra contra mim. Fui chamada pelo procurador-geral, Dr. Milton Menezes da Costa Filho, que disse que não era caso de arquivamento e que eu deveria enquadrar o pessoal na Lei de Segurança Nacional. Respondi que não tinha artigo nenhum na Lei de Segurança Nacional em que pudesse enquadrar o que eles fizeram, sair em passeata: “É arquivamento!”, disse. Veio então um recado do Comando Militar do Planalto, por meio do juiz-auditor: “O general Newton Cruz quer conversar com a senhora.”. Eu já imaginava o que era... Disse que deveria ir ao Comando Militar no Planalto para conversar com ele. Aí, questionei: “Mas eu ir ao Comando Militar no Planalto se é ele quem quer conversar comigo? Ele que venha aqui!”. E não fui. O doutor Milton, contudo, me chamava todo dia. Colegas na Procuradoria diziam: “Vera, você tem que ver se não há um crime...”. Eu dizia que não havia. Foi um cerco. Então, me sentei uma noite em casa e fiz o arquivamento. Passei a noite inteira trabalhando nele. No dia seguinte, fui levar o pedido de arquivamento para o doutor Milton ver. Daí a secretária dele disse: “Doutora Vera, faça uma coisa: já traga o pedido datilografado, porque se estiver datilografado o doutor Milton não vai mudar.”. Voltei para casa, datilografei e levei novamente. Dito e feito! Ele não mudou. Pedi o arquivamento, mas comecei a ter muito medo, porque havia também um processo grande, que veio lá de Luziânia, um crime militar. Um tenente que matou um traficante de carro, tenente Avelino – era um processo bem complicado, envolvendo a Polícia do Exército. Ora, o Newton Cruz era o comandante da Região Militar. Senti-me intimidada ao me deparar com esse caso de uma turma “barra-pesada” de militares que se envolveu com delinquentes de Goiás. Quando eu saía à noite da Auditoria, naquele estacionamento deserto, meu carro ficava parado longe e eu sentia um frio na espinha. Diziam, por aqueles tempos, que o Newton Cruz, quando diretor do SNI, teria até sido mandante do assassinato do jornalista

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Alexandre von Baumgarten, em outubro de 1982. As audiências iam até tarde... Aí o juiz-auditor começou a me levar de carro pelo estacionamento, até o meu automóvel. Tudo escuro, um deserto! Eu entrava no meu carro e dirigia sozinha até minha casa.

Memória MPM – Em que ano a senhora veio para Brasília?

Vera Regina Alves de Brito – Em 1980.

Memória MPM – Foi promoção?

Vera Regina Alves de Brito – Vim requisitada.

Memória MPM – E a Auditoria era mista?

Vera Regina Alves de Brito – Era mista, com todas as Armas: Exército, Marinha e Aeronáutica. Incluía, ainda, a Polícia Militar e os Bombeiros.

Memória MPM – E como foi essa experiência?

Vera Regina Alves de Brito – Era horrível! Tremenda sobrecarga de serviço e a responsabilidade por julgar policiais e bombeiros.

Memória MPM – E o que tinha mais de volume processual?

Vera Regina Alves de Brito – A Polícia Militar, seguida do Exército.

Memória MPM – E o que era?

Vera Regina Alves de Brito – Abuso de autoridade, indisciplina, mortes violentas. Isso tudo ia parar em nossas mãos.

Memória MPM – E tinha um bom volume de apuração e condenação?

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Vera Regina Alves de Brito – Quem julgava a Polícia Militar e os Bombeiros eram os Conselhos do Exército. A tendência era condenar.

Memória MPM – A senhora participou, prestando assistência, de algum inquérito policial militar?

Vera Regina Alves de Brito – Não, nunca participei de IPM. Alguns colegas participavam. Eu prestei apenas uma assessoria, num inquérito em Anápolis.

Memória MPM – Na sua ficha constam algumas assistências em IPMs: um em 1982, na Guarda Presidencial, em Brasília; outro em 1987, no Comando-Geral da Polícia do Exército, em Brasília; e em 1988, na base aérea de Anápolis, em Goiás.

Vera Regina Alves de Brito – Esse de Anápolis eu lembro, mas os outros dois, não. Esse de 1987, talvez, tenha sido um rapaz preso pela Polícia do Exército que sofreu algumas lesões. A revista Veja fez uma reportagem, onde publicava o laudo pericial do Instituto de Criminalística, que ainda não tinha sido concluído. Nesse caso, assessorei o inquérito. O rapaz não sofreu as lesões na Polícia do Exército, lá chegando já com lesões. Eu não sei por que, não me lembro mais. Por essa época, creio que em função desse caso até, tive um embate com um deputado de Brasília, hoje deputado federal, Chico Vigilante. Sobre a Guarda Presidencial, me recordo apenas que de fato fui lá numa oportunidade, mas não sei a razão, tampouco tenho lembrança de um inquérito.

Memória MPM – A senhora conheceu vários procuradores-gerais...

Vera Regina Alves de Brito – Conheci mais o doutor Ruy [de Lima Pessôa] e o doutor Milton [Menezes da Costa Filho], que foi 12 ou 13

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anos procurador-geral. Com os outros, embora já estivesse em Brasília, tive menos contato. O Dr. George Tavares conhecia como advogado badalado no Rio de Janeiro, mas não tive muito contato com ele em Brasília. O mesmo se deu com os doutores [Francisco] Leite Chaves e Eduardo [Pires Gonçalves], que havia sido meu colega.

Memória MPM – A senhora foi professora de francês também?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, comecei minha vida como professora de francês e de música. Mas, onde conseguiram todas essas informações? Eu até havia me esquecido disso [risos]...

Memória MPM – Brasília, embora fosse a capital, era uma cidade muito recente, ainda interiorana. Como foi a mudança do Rio de Janeiro para Brasília?

Vera Regina Alves de Brito – Foi um baque! Acho que até para a minha vida profissional a vinda para Brasília foi uma regressão. Porque se tivesse continuado no Rio de Janeiro, na Faculdade, com as amizades que tinha, cursos e mais cursos, acho que profissionalmente teria ido além. Ainda moro em Brasília, mas não gostei da cidade. Eu lembro que saía da Auditoria e chegava a meu apartamento, na Asa Norte, no sexto andar do prédio, ao final da tarde. Havia poucas construções ao redor. Os pores do sol eram maravilhosos sobre aquele horizonte amplo. Batia muitas fotos. Mas a nostalgia era imensa. Demorei muito a me adaptar.

Memória MPM – Seu esposo também veio para Brasília?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, viemos em 1980. Ele recebeu um convite para assessorar o ministro das Comunicações, Aroldo Correa de Matos. Até hoje moro aqui, mas não me acostumo muito. Ontem estava no Rio.

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Memória MPM – A sua família veio para cá?

Vera Regina Alves de Brito – Meu irmão já morava aqui, minha família é pequena. Embora meu irmão tenha quatro filhos, cada um mora em um canto do mundo.

Memória MPM – O convívio que a senhora tinha com advogados célebres no Rio de Janeiro se reproduziu em Brasília?

Vera Regina Alves de Brito – Não. No Rio de Janeiro, havia advogados com grande cabedal jurídico. Com honrosas exceções, o mesmo não se passava em Brasília, no meu entendimento. Por exemplo: recordo-me de um processo que veio às minhas mãos quando o meu colega Marco Antonio Bittar entrou no gozo de férias. O juiz resolveu fazer o julgamento. Assim, levei o processo para casa, estudei-o por horas a fio. Para minha surpresa, no dia da sustentação oral, o advogado – muito conhecido – nada sabia do processo e da situação do seu próprio cliente. Eu tive até vontade de, num ímpeto, pedir que o réu fosse considerado indefeso, mas tinha lá o juiz, os militares, que não aceitariam. Foi terrível! Depois o advogado veio falar comigo: “Doutora, a senhora me surpreendeu, porque conhecia o processo.”. “O senhor queria que eu entrasse em julgamento sem conhecer o processo?”. No dia seguinte, chego à Auditoria, e o diretor de Secretaria me diz: “A senhora não imagina quem foi nomeado ministro do Tribunal Federal de Recursos!”. Era o advogado da véspera! Era amicíssimo do senador José Sarney. Quando nos encontrávamos, em algum evento ou cerimônia, ele fingia que não me conhecia. Até que o encontrei numa festa em São Luís do Maranhão e resolvi interpelá-lo: “O senhor não está lembrado de mim?”.

Memória MPM – E ele?

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Vera Regina Alves de Brito – “Ah, sim: doutora Vera, da Auditoria.”. Claro que se lembrava de mim. Haviam se passado vários anos e ambos estávamos aposentados.

Memória MPM – Alguma vez a senhora chegou a pedir a absolvição do réu?

Vera Regina Alves de Brito – Cansei de pedir! Sempre que tinha dúvidas. Como disse, acho que as mulheres são mais cuidadosas com os detalhes. Então, se havia dúvidas, pedia a absolvição.

Memória MPM – Isso acontecia mais em que tipo de crime?

Vera Regina Alves de Brito – Não me recordo, mas acho que em todos.

Memória MPM – Em 1988, a senhora passou a procuradora militar de 2ª categoria. É isso? Em fevereiro de 1995, foi promovida a procuradora da Justiça Militar – é que o nome do cargo foi mudando...

Vera Regina Alves de Brito – É, foi mudando. Depois fui subprocuradora, em maio de 1995. Logo depois, me aposentei.

Memória MPM – Em novembro de 1995.

Vera Regina Alves de Brito – Eu tenho arrependimento de ter pedido a aposentadoria tão cedo.

Memória MPM – Por que pediu a aposentadoria?

Vera Regina Alves de Brito – Minha promoção tinha sido por merecimento, não por antiguidade. Havia colegas mais velhos do que eu que

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queriam se aposentar no final da carreira e fizeram pressão para que eu cedesse a vaga. Acabei cedendo. Calhou que meu marido tinha se aposentado e nós pretendíamos viajar. Mas logo depois ele faleceu.

Memória MPM – Em 1995 houve uma leva grande de aposentadorias.

Vera Regina Alves de Brito – Sim, porque aumentaram as vagas e havia muita gente querendo se aposentar.

Memória MPM – Havia também ameaça de mudanças no regime da Previdência.

Vera Regina Alves de Brito – Verdade! Bem-lembrado! Consegui contar tempo de licença-prêmio não gozada, três anos e meio ou quatro de estágio, e me aposentei com 28 anos de serviço.

Memória MPM – A senhora também contou o tempo de serviço no Ministério Público do Trabalho?

Vera Regina Alves de Brito – Isso e o estágio como solicitadora. Porque meu diploma veio com o nome errado, o que levou um ano para ser corrigido.

Memória MPM – Por esse motivo é que as datas da sua formatura e do seu diploma não batem.

Vera Regina Alves de Brito – Exatamente! Eu me formei em 1968 e o diploma é de 1969. Demorou demais, porque veio o nome errado. Era Vera Regina da Mota Coelho e não constava o “da”. Já era uma época tumultuada no Brasil. Como não podia registrar meu diploma, acabei permanecendo como solicitadora. Mas isso foi bom, por um lado, porque me fez contar mais tempo para a aposentadoria.

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Memória MPM – A senhora atuava como solicitadora junto a algum escritório de advocacia ou de forma independente?

Vera Regina Alves de Brito – Primeiro foi na Defensoria Pública, junto às Varas Cíveis. Também fiz estágio na Justiça do Trabalho.

Memória MPM – A senhora possui publicações no Direito do Trabalho, uns dois ou três artigos.

Vera Regina Alves de Brito – Tenho! Lembro-me de um sobre os aeronautas. Na Justiça Militar, nunca tive tempo para publicar, porque trabalhava demais.

Memória MPM – Especialmente em Brasília?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, em Brasília não foi brincadeira! Permaneci quinze anos na Auditoria, sendo que, por várias vezes, fiquei sozinha, sem ajuda de outro colega, sem uma secretária. Depois de certo tempo, me queixei ao doutor Milton, informando que não estava aguentando o serviço. Ele disse que trabalho não matava ninguém, mas me fez o favor de disponibilizar uma das datilógrafas que serviam aos subprocuradores-gerais para me ajudar, porque eu não estava dando conta. Durante muito tempo não tive final de semana. Hoje em dia, o mesmo trabalho que eu fazia sozinha, acrescido da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, é feito por vários procuradores.

Memória MPM – Em 1994, antes da aposentadoria, a senhora recebeu a Medalha do Pacificador.

Vera Regina Alves de Brito – Sim, recebi. Foi uma homenagem que me tocou muito. Porque esse negócio de medalha, como sabemos, é por

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indicação. Até hoje não consegui descobrir quem me indicou. Foi alguém que trabalhou comigo, provavelmente algum militar.

Memória MPM – A senhora acompanhou diferentes momentos do Ministério Público Militar. Nos anos 1970/80, o volume de atribuições era maior do que é hoje, porque havia a Lei de Segurança Nacional, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros, mas a estrutura era muito mais precária. Como é que a senhora percebe essa mudança?

Vera Regina Alves de Brito – O Ministério Público hoje parece bem menos unido do que era na nossa época. Hoje em dia, cada um tem seu gabinete, entra e não sabe nem quem está na Casa. Antigamente, trabalhávamos três promotores num cubículo na Auditoria da Marinha. A mesa de um era grudada na do outro. Todos conviviam. Almoçávamos juntos, promotores, juízes e advogados de ofício. Havia muita interação, eu conheço o Dr. [ José Carlos] Couto de Carvalho dessa época, por exemplo. Ele era funcionário da Auditoria da Marinha. Então, havia uma convivência estreita e amistosa.

Memória MPM – A senhora sentia que era uma espécie de família?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, uma espécie de família. Quando cheguei aqui, em Brasília, a Procuradoria funcionava em um andar no prédio do Superior Tribunal Militar. A Auditoria ficava em outro. A parte administrativa, os procuradores, tudo estava junto.

Memória MPM – Como é que a senhora via a relação, naqueles tempos, do Ministério Público Militar com o Tribunal Militar?

Vera Regina Alves de Brito – Nunca me relacionei muito com o Tribunal, até porque eu era a única mulher em Brasília, e sempre fui um pouco

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tímida. Não tinha relacionamento com o Tribunal. Nessa época, somente o procurador-geral, que era o doutor Milton, fazia as audiências no Tribunal. Ele nunca delegou essa atribuição.

Memória MPM – Quando a senhora diz ser a única mulher, era na Auditoria? Porque na Procuradoria já havia outras.

Vera Regina Alves de Brito – Isso, na Auditoria. Na Procuradoria tinha a doutora Marly [Gueiros Leite], além da Dra. Nadir [Bispo], mas ela vivia muito afastada e depois foi para São Paulo ou para o Rio de Janeiro. Foi candidata a um cargo parlamentar. Trabalhou um tempo comigo. Mas, em geral, eu ficava sozinha.

Memória MPM – Com os ministros, a senhora não convivia?

Vera Regina Alves de Brito – Nunca fui de ir ao Tribunal, mas era prestigiada pelos ministros que me conheciam. Especialmente o [Antonio Carlos] Seixas Telles, com cujo irmão, Mauro, trabalhei. Havia também o ministro Leal Ferreira, quem me indicou para a medalha que recebi do Tribunal. Não me recordo mais de outros. Havia colegas que estavam sempre no Tribunal. Muitos juízes, como o Roberto Menna Barreto, com quem também trabalhei. Mas, sempre me resguardei um pouco, nem sei o porquê, talvez pelo fato de estar sozinha me sentia um pouco acanhada. Para se ter uma ideia, certa vez um sobrinho do general Rodrigo Octávio [ Jordão Ramos], ministro do STM, muito respeitado, encontrou o meu marido, que era militar da reserva, e mencionou: “Escuta, existe uma procuradora aqui na Justiça Militar que tem seu sobrenome, por acaso tem alguma ligação com você?”. Eu nem cheguei a conhecer o general Rodrigo Octávio, pois ele havia entrado na compulsória.

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Memória MPM – A senhora chegou a encontrar auditoras?

Vera Regina Alves de Brito – Sim, cheguei a trabalhar com duas em Brasília.

Memória MPM – E as mulheres apareciam como rés?

Vera Regina Alves de Brito – Muito pouco. Houve uma mulher como ré em um processo da Marinha, mas era uma civil, envolvida num crime de agiotagem, perpetrado pelo genro dela dentro da Marinha. Ele era cabo ou sargento. Mas o capital era dela, então foi denunciada como coautora. Eu me lembro só desse caso, tirando, é claro, a parte de segurança nacional, que tinha muita mulher.

Memória MPM – Se a senhora fizesse um balanço de sua trajetória no Ministério Público Militar, como a sintetizaria?

Vera Regina Alves de Brito – Foi gratificante. Profissionalmente foi muito bom. Foi uma boa época da minha vida. A única coisa que lamento foi ter me aposentado tão cedo. Acho, sim, que se tivesse continuado no Rio de Janeiro, teria ido mais longe. Deixei a Faculdade, adorava dar aulas. Até fui indicada para ministrar aulas na Universidade de Brasília, mas era à noite, uma coisa complicada, pois o trabalho na Auditoria era pesado. Cheguei aqui sem conhecer ninguém e senti um baque. Fui me reestruturar melhor quando veio o Dr. Bittar e começamos a trabalhar juntos. Foi um amigo, um colega, nos adaptamos bem.

Memória MPM – Bem, agradeço muito pelo seu depoimento.

Vera Regina Alves de Brito – Obrigada, foi muito bom para mim, eu relembrei certas coisas que até já tinha esquecido.

VERA REGINA DA MOTA COELHO AMERICANO ALVES DE BRITO

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JOÃO

ALF

REDO

DA

SILV

AEntrevista realizada por Gunter Axt, em 5 de julho de 2015, em Fortaleza, na residência do depoente.

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João Alfredo da Silva nasceu em 21 de agosto de 1934, em Baturité, no Ceará. É filho de Pedro Alfredo da Silva e Francisca Chagas da Silva. Casou-se com Maria Monteiro da Silva. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), em fevereiro de 1971. Atuou na advocacia trabalhista e serviu no Exército. Em 27 de novembro de 1972, foi designado primeiro substituto de procurador militar de terceira categoria, para atuar junto à Procuradoria da Auditoria da 10ª Circunscrição Judiciária Militar, em Fortaleza. Aposentou-se em 25 de abril de 1991.

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HISTÓRIAS DE VIDA

Memória MPM – O senhor é natural de Baturité, no Ceará?

João Alfredo da Silva – Sim, que fica a uns 90 km de Fortaleza. É uma cidade serrana. Nasci na base da elevação, do Maciço.

Memória MPM – E os estudos foram feitos em Fortaleza?

João Alfredo da Silva – Lá tive apenas o contato com os estudos por meio da estrutura familiar. Tinha uma irmã bem aplicada que me ensinou alguma coisa. Lembro-me de um detalhe interessante: embora eu tivesse avançado mais do que os colegas, seguia falando com forte acento local e errando, de propósito, algumas palavras, porque sentia vergonha de não falar como eles, aliás, como eu próprio [risos]. Era um menino... seis anos, por aí, mas tinha essa preocupação!

Memória MPM – As aulas eram em casas de família?

João Alfredo da Silva – Sim, eram completamente informais, na base da curiosidade.

Memória MPM – E aí completou os estudos e veio para Fortaleza?

João Alfredo da Silva – Vim para Fortaleza e estudei no Grupo Escolar Presidente Roosevelt, numa das principais avenidas de Fortaleza, a Bezerra de Menezes; depois, fiz admissão e fui para o Ginásio 7 de Setembro, hoje Colégio 7 de Setembro. Terminei o Ginásio e fiz dois anos no Liceu do Ceará. Do Liceu fui para o Colégio Porto Carreiro, em Recife, onde fiz o terceiro ano do colegial, concluindo em 1954. Simultaneamente, servi no Exército. Então, fiz vestibular.

Memória MPM – O senhor fez o Clássico?

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João Alfredo da Silva – O Científico; depois fiz o vestibular para a Faculdade. Matriculei-me em 1966, me formei em 26 de fevereiro de 1971 e fiz três anos de Advocacia Trabalhista. Em 27 de novembro de 1972, saiu a publicação, no Diário Oficial da União, de minha nomeação a primeiro substituto de procurador de terceira categoria junto à Procuradoria da Auditoria da 10ª Circunscrição da Justiça Militar. Foi uma indicação do colega Carlos Alberto Borges, há pouco tempo falecido. Fiquei no Ministério Público. Aposentei-me em 25 de abril de 1991. Meu tempo de serviço total é de 38 anos.

Memória MPM – E como se deu a opção pelo Direito?

João Alfredo da Silva – Ah, eu gostava de Direito desde o colégio.

Memória MPM –Tinha alguém na família com tradição no Direito?

João Alfredo da Silva – Ninguém! Tinha um irmão que era professor. Mas, enfim, acho que eu era vocacionado. No exercício funcional, o tempo mais acre, mais dificultoso foi na vigência da Lei de Segurança Nacional, porque os tipos penais eram muito imperfeitos... Tínhamos uma carga muito grande de serviço e precisávamos enfrentar vários advogados. Havia processos vultosos. O mais volumoso teve 37 acusados. Aqui pontificaram advogados célebres, como Heleno Cláudio Fragoso, [Antônio] Jurandy Porto [Rosa], um rapaz muito competente, [Antonio de] Pádua Barroso, Antônio Carlos [de Araújo] e muitos outros...

Memória MPM – A Dra. Mércia [Albuquerque Ferreira] também atuou aqui? Ela era de Recife e teve algum caso em Brasília também...

João Alfredo da Silva – Não, a Dra. Mércia, esteve no Recife... Eu atuei, por exemplo, em Belém. Penso que o ambiente em Fortaleza, na

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HISTÓRIAS DE VIDA

Auditoria, apesar do contexto da época, era de certa forma tranquilo, porque tínhamos uma visão superior do exercício funcional do Direito: fazíamos o nosso trabalho e se a defesa vencesse, estava bom, isto é, não nos sentíamos obrigados a fazer a denúncia vingar sempre. Por sua vez, a defesa também aceitava nosso desempenho. Em Belém, o pessoal pautava-se por outro comportamento. Aqui, era a técnica exigida pelo Código de Processo Penal, nada além disso. A gente trabalhava nesse sentido, não tinha nada de pessoal. Uma vez passei dois meses em Belém, na época do procurador-geral Dr. Milton Menezes da Costa Filho, e senti esse clima diferente, que nós, felizmente, não tínhamos.

Depois, passando a serem julgados somente os crimes propriamente militares, a coisa ficou fácil. O Ministério Público melhorou muito porque a estrutura e o apoio logístico avançaram. As pessoas hoje vivem muito bem. Há uma sede própria, um quadro de servidores excelente... que nós não tínhamos.

Éramos hóspedes da Auditoria Militar. A hospedagem hoje não existe mais, mas se preserva um bom relacionamento... Não fui mais lá porque estou com 81 anos e já não conheço os juízes e o pessoal de apoio.

Memória MPM – Bom, voltando ao tempo da Faculdade, quais são as lembranças dessa época, dos professores, da formatura?

João Alfredo da Silva – Ah, eu guardo algumas coisas ainda na memória, inclusive algumas hilárias, porque havia professores de todos os matizes. Havia um, muito bom, de Direito Comercial, que não perdia oportunidade para fazer uma piada. Um colega, certa feita, chegou para ele reclamando de uma nota. Ele tinha a mania de olhar o aluno por cima dos óculos. O colega disse: “Professor, estudei tanto e olhe a nota que o senhor me deu!”, e ele disse: “Estude menos e raciocine mais!” [risos]. Chico Olavo!

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Há um livro, intitulado Um caso de álibi, publicado pelo professor Clodoaldo Pinto, no qual se resume um julgamento de um crime em Maranguape. Era uma súmula muito bem-feita, um resumo da tese que ele defendeu na época. Recebi esse livro de presente, de um procurador, hoje subprocurador aposentado da Justiça Federal, Raimundo Francisco Ribeiro de Bonis (foi meu colega de colégio). Depois encontrei esse livro num sebo, dedicado pelo próprio autor ao Chico Olavo [risos]. Isto é, ele descartou o livro e eu o comprei e o guardo com todo carinho ainda! Fiquei com os dois exemplares [risos].

Memória MPM – Como era a ambiência? Porque esse foi um período de efervescência política e estudantil: pegou “Maio de 68” e algumas Universidades do Brasil, como a UnB e UFRJ, no Rio de Janeiro, foram ocupadas, pela Polícia ou pelo movimento estudantil...

João Alfredo da Silva – Aqui nós tivemos alguma efervescência; um dos cidadãos que tinha militância expressiva era o Zé [ José] Genoino [Guimarães Neto], que foi deputado federal. Ele era da área de Letras, mas vivia na Faculdade de Direito, exatamente porque o ambiente era potencializado. Não guardo dele nenhuma inimizade. Ele certamente nem se lembra de mim! Passei essa época sem me envolver ideologicamente. Não tomei partido por ninguém. Ele tinha uma atuação fabulosa lá dentro, mas não me deixei envolver.

Memória MPM – Aconteceu de os alunos ocuparem a Faculdade?

João Alfredo da Silva – Não. Houve um fato, interessante, em 1967, que não mereceu apoio da estudantada, apesar de, na época, sermos todos nós calouros. O general Dilermando Gomes Monteiro foi proferir uma aula inaugural e houve quem fosse deselegante com ele, dizendo da desnecessidade

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HISTÓRIAS DE VIDA

daquela palestra. Foi constrangedor, porque o general era muito educado. Um colega, o Welington, que faleceu também há um ano e pouco, tomou a palavra e pediu desculpas ao general [e pediu] para ele não julgar o perfil dos demais pelo comportamento de alguns. O general agradeceu a delicadeza dele.

Interessante, agora que falei do general, lembrei que nunca hou-ve, durante minha atuação no Ministério Público, qualquer interferência do Comando da Região. Nenhum comandante da Região pediu-me qual-quer concessão!

Apenas houve, durante esse tempo todo, uma interferência boba de um general da reserva, Vica de Paula Pessoa, que me pediu a condenação de um acusado. Aí eu disse: “General, esse pedido o senhor não me faça; do meu exercício funcional dou conta”. Ele não mais insistiu.

Houve também um coronel, ajudante-geral, encarregado de um inquérito que indiciou o jornalista Teobaldo Landim. Eu me manifestei pela inadequação do foro: não era lá que deveria responder por aqueles fatos. Aí [o coronel] disse: “Puxa, eu faço tudo para botar eles na cadeia e você dá pela incompetência do foro!”. Mas o caso era de desclassificação e eu não iria forçar ninguém a responder processo na Justiça Militar para atender às expectativas de alguém. Ele se conformou...

Essas, felizmente, foram coisas passageiras; além disso, não me recordo de qualquer outra pressão... nunca!

Memória MPM – Como o senhor foi indicado para a vaga de substituto?

João Alfredo da Silva – Eu fui auxiliar do Carlos Alberto [Borges]. Ele foi designado para a função e me consultou se aceitaria a indicação. Então

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eu disse: “Carlos Alberto, se você acha que tenho qualificação para isso, tenho habilidade e mereço sua confiança, aceito.”.

Memória MPM – Na época, ele era advogado?

João Alfredo da Silva – Não, era substituto de procurador; foi efetivado e me indicou. Meu nome percorreu toda a área de informações, os “SNIs da vida”, e outros locais mais. Felizmente não tinha nada, porque, na verdade, eu não tinha envolvência política, ideológica. Então, passou, não tive problema.

Memória MPM – Precisou realizar alguma entrevista?

João Alfredo da Silva – Nenhuma, por incrível que pareça! Ninguém me chamou para nada [risos]. Porque eu fui muito exigente comigo mesmo, nunca tive vocação para a transigência... Sempre procurei dar conta do meu recado sem me envolver com ninguém. Um colega, Fernando César Porto Mendonça, tinha muita intimidade e dizia: “Por que mandaram esse “nego” para cá? Foi para espionar a gente!” [risos]. Mas, na verdade, eu não fui para espionar ninguém; fui lá e dei conta do meu papel, sem precisar da proteção de ninguém, graças a Deus!

Memória MPM – O senhor comentou que os militares nunca pediram nada, e a Procuradoria-Geral da Justiça?...

João Alfredo da Silva – Também não.

Memória MPM – Do Rio de Janeiro e depois de Brasília, alguma vez teve alguma orientação, solicitação?

João Alfredo da Silva – Não, não... Eu peguei vários procuradores--gerais: o Ruy [de Lima Pessôa], foi meu amigo, ministro, veio aqui, muito

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distinto! Eu me dava bem com o governador César Cals [de Oliveira Filho] e certa vez lhe telefonei pedindo apoio para fazermos uma pequena recepção para o Dr. Ruy, que viria nos visitar. A Procuradoria não gastou um centavo e o recebemos com um bom jantar!

Memória MPM – O César Cals foi ministro de Minas e Energia...

João Alfredo da Silva – Foi. Atuou muito na área do polígono das secas, junto à hidrelétrica de Boa Esperança e teve uma atuação positiva em favor do Nordeste. Depois do Ruy...

Memória MPM – Veio o Milton [Menezes da Costa Filho], não é?

João Alfredo da Silva – É, foi o Milton e depois dele passou um bocado de gente...

Memória MPM – Depois do Milton veio um que ficou meses, George Tavares, seguido pelo senador Leite Chaves.

João Alfredo da Silva – Leite Chaves! Com ele também tinha um excelente relacionamento, com uma deferência muito grande pela gente; ele aceitou um almoço na minha residência. Era muito distinto e eu gostava muito dele.

Memória MPM – O Leite Chaves organizou, em 1986, o Primeiro Encontro Nacional dos Procuradores de Justiça...

João Alfredo da Silva – É, ele tinha até algumas áreas de atrito, por exemplo, com o procurador da Bahia, o Dr. Kleber [de Carvalho Coêlho]; o Kleber não focava bem o Leite Chaves, mas tudo passou...

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Memória MPM – O Kleber foi assessor do ministro Ruy [de Lima Pessôa], não é?

João Alfredo da Silva – Foi, exatamente!

Memória MPM – Foi ascendendo na carreira e chegou a procurador-geral...

João Alfredo da Silva – É, fez concurso... Eu não cheguei a fazer concurso porque fui indicado e, depois, pela Constituição de 88, fui efetivado por força das Disposições Transitórias, um dispositivo que está lá, ainda.

Memória MPM – O senhor se lembra de algum caso que tenha lhe chamado mais a atenção pelos aspectos jurídicos, pelos personagens envolvidos, pelo desempenho dos advogados ou pelo impacto que teve na opinião pública?

João Alfredo da Silva – Não, aqui não. Em Manaus, houve o julgamento do Lula, muito concorrido; veio gente de todo o Brasil.

Miriam Monteiro da Silva (esposa) – Ele passou um mês lá.

Memória MPM – Um mês! Mas como foi, o senhor fez a preparação?...

João Alfredo da Silva – Eu peguei um “abacaxi”... O processo empilhado dava mais de um metro de papel. Tinha muita precatória indo e voltando; o calhamaço era grande. Fui lá sem saber de nada e, quando cheguei, o diretor de Secretaria me disse: “Você sabe o que está lhe esperando aqui?”; eu disse, “Não!”. “É o julgamento do Lula!”. Aí disse: “Pô, isso é uma sacanagem!”.

Memória MPM – Mas o Lula já era um personagem conhecido?

João Alfredo da Silva – É, já era um agitador! Foi algo que ele disse em Brasileia...

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HISTÓRIAS DE VIDA

Memória MPM – Ele fez um discurso num comício no Acre...

João Alfredo da Silva – Exatamente, e isso teve repercussões e ele respondeu a processo lá. Veio muita gente de fora. Nosso juiz-auditor caiu na besteira de deixar o fax ligado e, simplesmente, passou rodando as 24 horas antecedentes ao julgamento: amanhecemos com um monte de papel; tinha muita matéria para ler. Mas o colega que deveria ter me substituído entrou em férias e sobrou para eu resolver. Ele não devia ter feito aquilo. Passei uma semana estudando aquele processo para entender a mística da acusação, porque o nosso colega fez uma alegação mínima, quer dizer, deixou o “abacaxi” todo para a sustentação oral... quase me matou! O Heleno Cláudio Fragoso o defendeu.

Memória MPM – Mas o senhor chegou a fazer o julgamento?

João Alfredo da Silva – Fiz, julgamento e atuação em Plenário.

Memória MPM – Mas houve dois julgamentos?

João Alfredo da Silva – Não sei dizer, eu atuei em apenas um.

Memória MPM – Houve vários que atuaram no processo, mas sempre em substituição e sei que o ministro Olympio [Pereira da Silva Junior] chegou, numa sessão do julgamento, a pedir a prisão preventiva do Lula...

João Alfredo da Silva – Foi.

Memória MPM – Então, teve vários momentos esse processo de Manaus?

João Alfredo da Silva – Foi.

Memória MPM – E aqui, em Fortaleza, como era a rotina na Procuradoria?

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João Alfredo da Silva – Na época dos crimes contra a Segurança Nacional havia audiências todos os dias; cansativa batalha! E eu guardo a vaidade de nunca ter faltado e nunca perder um prazo. Houve sobrecarga durante certo período em que um colega se ausentou, com licença. Fiquei só no batente. Era cansativo, mas dei conta do recado, porque eu – esse autoelogio não posso deixar de fazer –, sempre fui muito rígido em matéria de trabalho. Se tinha trabalho para fazer, fazia, e fui recompensado. Cheguei até a passar mal, certa feita, e um colega me socorreu na audiência: anunciou para o juiz-auditor que eu não estava passando bem; o juiz suspendeu um pouco, melhorei e voltei para a audiência... E assim segue a vida!

Memória MPM – E o perfil das pessoas julgadas, os réus? Nessa época, da Lei de Segurança, eram mais jovens, estudantes, professores, jornalistas... Quem eram essas pessoas?

João Alfredo da Silva – Além do Teobaldo Landim, que foi apenas indiciado, teve o jornalista Lindolfo Cordeiro. Houve outros. Se deixaram levar pela propaganda e se envolveram “bestamente”. Teve até um rapaz que contrastava com a idade de todos eles, não me lembro também do nome, mas ele respondeu a processo desnecessariamente porque era um homem que não tinha “letras”, acho que era um menino de recado. E o Pádua Barroso, um excelente advogado, também muito tranquilo, fazendo a defesa dele, na hora da atuação, concitou o Conselho a ver com tranquilidade, imparcialidade, a situação daquele rapaz – todos muitos jovens, etc. e tal. Aí, põe os óculos e diz: “Esse rapaz não está tão jovem assim! [risos]. Foi uma risada geral! [risos]. Mas era esse tipo de piada respeitosa, faziam o chiste, mas depois não ficava inimizade nenhuma. Terminava o julgamento, acabou! Um advogado que atuou aqui, também, muito distinto, foi o Raimundo Evaldo Ponte, advogado

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antigo, mas que sabia conduzir-se com elegância; nunca destratou ninguém, era um cidadão espetacular!

Memória MPM – A Auditoria, aqui, foi instalada em 1964?

João Alfredo da Silva – Foi, funcionava no Fórum, numa salinha simples, muito sem expressão.

Miriam Monteiro da Silva (esposa) – Outro foi o Blanchard Girão!

João Alfredo da Silva – [ José] Blanchard Girão [Ribeiro]! Advogado e jornalista; tem livro publicado. Uma pérola de criatura! Muito cortês, incapaz de, fora do ambiente do processo, produzir qualquer ofensa ou de utilizar a imprensa para qualquer fim. Ele nunca fez isso!

Memória MPM – No início da Auditoria, aqui em Fortaleza, acho que apareceram alguns casos mais pesados, de jovens que fuzilaram um militar que estava namorando na praia... teve casos de assalto a bancos. Em seu período, o senhor chegou a pegar algo assim?

João Alfredo da Silva – Não, muitos deles foram julgados no Recife, pois a competência era de lá. Eu assumia quando o processo era todo realizado aqui mesmo.

Memória MPM – Houve algum caso de pedido de prisão perpétua ou pena de morte aqui?

João Alfredo da Silva – Prisão perpétua acho que houve um, mas feito na época do Julio Carlos Crispino Leite. Creio que o único caso foi dele... Mas ele tinha motivos para o fazer, porque a lei não abria outra alternativa: era pena de morte ou perpétua, e ele pediu a segunda.

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Memória MPM – E no seu caso, houve situações em que o senhor chegou a pedir absolvição?

João Alfredo da Silva – Houve, houve... A Lei de Segurança Nacional, tanto a nº 1.802 [de 05.01.1953], como a que a sucedeu, tinha uns tipos penais terrivelmente difíceis de serem ajustados aos fatos ou os fatos ajustados a eles. Eram terríveis! Tínhamos que fazer “uma ginástica” tremenda e isso facilitou demais a vida da defesa. Não tem quem trabalhe bem com tipos malfeitos. Aquela diretriz no início do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem...”, bom, não estou lembrando a descrição legal... [pena sem prévia cominação legal.”]. Mas tem que haver a descrição do tipo e aquela Lei de Segurança Nacional era de uma imprecisão terrível! Uma colcha de retalhos, às vezes, inconciliável. Então, se disser que trabalhar com a 1.802 era fácil, não é verdade, e isso facilitou para a defesa. Havia dificuldade de homologar as provas!!! Nós tivemos um juiz-auditor muito bom, o Ângelo Rattacaso, um cidadão que não se rendia a ajustes fora da lei; lei é lei: com ele era assim. E isto dava um trabalho grande, mas em muitos casos obtivemos condenação.

Memória MPM – O senhor tem alguma ideia da porcentagem de condenação dos réus: 50%, 60%...

João Alfredo da Silva – Não tenho mais... Mas, em razão da quantidade de réus, quase sempre era meio a meio. Nos processos de menor quantidade de réus, na maioria, eram absolvidos. Havia uns advogados cricris, caras persistentes, insistentes, que andavam atrás de tudo e não dispensavam nada e isso também deixava o Conselho, às vezes, num beco sem saída... Sem dúvidas! Isso que aqui nós tivemos bons juízes de fato e de Direito, também.

JOÃO ALFREDO DA SILVA

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Memória MPM – Costumava haver divergências entre o juiz-auditor e o Conselho?

João Alfredo da Silva – Ah, havia! Acontecia três a dois com frequência! Sempre dividia... Não existia quase nunca unanimidade na decisão. Tinha uns mais “mãos-pesadas” e outros mais benevolentes e a coisa saía da unanimidade.

Memória MPM – O senhor acha que isto era uma característica de Fortaleza ou era geral?

João Alfredo da Silva – Não sei... O interesse do juiz era pelo entendimento. O Rataccaso, por exemplo, era muito detalhista: fazia questão de explicar a fundamentação jurídica daquilo da melhor maneira possível, para que os membros do Conselho não ficassem em dificuldades. E ele conseguia isso, porque era realmente um rapaz preparado. Não era condução, era fundamentação jurídica que fazia da melhor maneira possível.

Memória MPM – Ângelo Rattacaso era juiz-substituto?

João Alfredo da Silva – Ele foi substituto e depois titular. Sempre se conduziu da melhor maneira, como substituto e como titular: era muito abrangente na fundamentação jurídica. Primo do nosso colega Giovanni Rattacaso...

Memória MPM – Que hoje é o presidente da Associação...

João Alfredo da Silva – Exatamente!

Memória MPM – E dos resultados, das decisões da Auditoria e do Conselho... era comum a defesa recorrer?

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João Alfredo da Silva – Ahhh, demais!!! Não passava um processo que não recorressem! Muitas das decisões eram mantidas, mas algumas também eram reformadas, porque não alcançavam unanimidade no Tribunal.

Memória MPM – E o senhor costumava recorrer, também?

João Alfredo da Silva – Também, tendo brecha, não deixava de recorrer, porque podia parecer pusilanimidade, da minha parte, defender aqui uma tese acusatória e depois me acomodar. Dava trabalho, mas nunca deixei de fazer.

Memória MPM – E essas decisões costumavam repercutir na imprensa local? Porque em algumas cidades, alguns Estados, chegava a existir uma coluna, quase diária nos jornais, que reproduzia os feitos julgados. Isso acontecia aqui, também?

João Alfredo da Silva – Não, não tínhamos essa regularidade. Dependendo das pessoas envolvidas, o fato merecia destaque na imprensa, mas não tinha esse problema de citar o nome do promotor, do procurador. Era uma notícia informal; não era direcionada nem para a defesa nem para o Ministério Público

Memória MPM – Mas o senhor era conhecido, na cidade, como promotor militar...

João Alfredo da Silva – Eu sempre vivi aqui e, felizmente, sempre fui muito bem acatado e recebi muito respeito por parte dos colegas que atuavam na defesa. Nunca tive problema de foro, de processo, bate-boca.

Memória MPM – E com a imprensa?

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João Alfredo da Silva – Também não.

Memória MPM – Alguma vez o senhor chegou a ser ameaçado?

João Alfredo da Silva – Nunca! Nunca recebi ameaça de qualquer natureza.

Memória MPM – Então sua atuação foi relativamente tranquila?

João Alfredo da Silva – Eu considero minha atuação muito feliz. Certamente, atribuo isso ao zelo com que me conduzi. Nunca fiz favor, como no caso do coronel encarregado do inquérito, nem ao general da reserva... Não faço favor! Havia, também, uma moça, que respondia por um crime da Lei de Segurança Nacional e que a mãe era muito “penetra”... Ela chegava aqui e dizia: “Eu quero falar com o senhor.”, e eu dizia: “Aqui mesmo, senhora.”. Ela queria me levar para um lugar reservado e eu dizia que não, “A senhora fala aqui comigo, na frente de todo mundo!”, porque eu não queria que ela nem ninguém levantasse suspeita. A filha dela era uma militante empedernida, Rosa [Maria Ferreira] da Fonseca [Nascimento].

Memória MPM – Essa moça ficou muito tempo presa?

João Alfredo da Silva – Ela ficou enclausurada algumas vezes, não lembro quanto tempo, porque respondeu a vários processos, mas não lembro a quantidade nem tampouco a estatística das condenações.

Memória MPM – Após o regime militar terminar, e até antes, já se discutia muito, no Brasil, o problema dos maus-tratos aos presos. Há o rumoroso caso do [Vladimir] Herzog, em 1975, um divisor de águas... Chegavam à Auditoria ou à Procuradoria denúncias de maus-tratos?

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João Alfredo da Silva – Do Herzog ficamos sabendo pela imprensa, como todo mundo. Esse caso, de fato, deixou os militares numa situação difícil, porque a posição em que estava o corpo do Herzog, para um suicídio, era muito precária. Convenhamos, não convencia ninguém... o cidadão se suicidar com as pernas encostadas!!!

Memória MPM – Os joelhos fletidos... e com o cinto...

João Alfredo da Silva – Não convencia ninguém!

Memória MPM – As pessoas podiam ficar com os cintos nas celas?

João Alfredo da Silva – Havia muita negligência naquela época. Então, podia acontecer, sim. As pessoas não tinham vivência com aquele tipo de procedimento. Agora, aquilo foi imperdoável, não deveria ter existido.

Memória MPM – E na Auditoria de Fortaleza, os presos costumavam queixar-se de situações semelhantes ou não?

João Alfredo da Silva – Sim. Nas audiências havia reclamações, muitas delas, infundadas, coisas que tiravam do bolso do colete para poder perturbar o andamento do processo. Tinha uma advogada, falecida, que merece meu respeito, mas que era muito envolvente, a Dra. Wanda [Rita] Othon Sidou. Atuante, trabalhadora, mas acho que conduzia muito o pessoal para a área da alegação de maus-tratos. Devo respeitar a ausência dela, porque não é apenas física, é eterna, completa. Eu parto daí, porque não tenho elementos para dizer que era, de fato, dessa maneira. Numa oportunidade, uma testemunha chegou a dizer: “A doutora Wanda me disse que falasse dessa maneira.”. Caiu muito mal, porque era induzimento da testemunha. Ela ficou braba na audiência. Sem maldade ou com uma certa indiferença para o fato, não peguei uma certidão

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dessa declaração da testemunha. Foi até bom, deixei o tempo passar e se desfez a imagem.

Memória MPM – Aconteceu de o senhor precisar denunciar algum ex-colega de Faculdade?

João Alfredo da Silva – Aconteceu... Este cidadão não tem mágoa nenhuma de mim: Zé [ José] de Arimatéia Ribeiro. Tinha o maior apreço por mim, porque conduzi a denúncia contra ele sem ser massacrante. Isso eu digo em consideração ao colega, que era da mesma turma: não carreguei; fui leve na acusação. E certamente por isso, soube que comentou que o colega tinha sido muito elegante, porque não tinha se aproveitado da situação para fazer média em cima dele.

Memória MPM – E os políticos, que hoje pontificam na política regional ou nacional, algum deles passou pelo senhor?

João Alfredo da Silva – O Genoino passou, mas eu não tive atuação direta contra ele, porque aqui, quando éramos dois, a carga era dividida. Então, acredito que o Genoino tenha ficado, nessa época, com o Crispino ou com outro.

Memória MPM – Quem mais, os Gomes?

João Alfredo da Silva – Não, nenhum dos dois respondeu processo.

Memória MPM – E os crimes propriamente militares, quais eram: indisciplina, deserção, peculato? O que acontecia?

João Alfredo da Silva – Peculatos houve alguns, envolveram até os superiores, mas não me lembro, agora, dos personagens.

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Memória MPM – Coronéis?

João Alfredo da Silva – Exatamente. Mas não me lembro dos personagens para nominá-los. De Fortaleza, nenhum; lembro-me de outros Estados: Piauí e Maranhão.

Memória MPM – Na época, a Auditoria jurisdicionava Ceará, Piauí e Maranhão?

João Alfredo da Silva – Exatamente, a competência estendia-se a esses Estados.

Memória MPM – E nesses outros Estados, houve algum caso que tenha lhe chamado a atenção?

João Alfredo da Silva – Esse de Maranhão, foi o caso de peculato dos coronéis. Deu condenação.

Memória MPM – E de Segurança Nacional, chegavam casos do Maranhão também?

João Alfredo da Silva – Também, mas não recordo quais eram.

Memória MPM – O senhor chegou a ser promovido para Brasília antes da aposentadoria?

João Alfredo da Silva – Não, fiquei no cargo de procurador.

Memória MPM – E quando vocês dois se conheceram?

João Alfredo da Silva – Eu e Miriam nos conhecemos há 53 anos. Graças a Deus, foi uma sociedade que deu certo [risos]. Devo mais a ela do que

JOÃO ALFREDO DA SILVA

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ela deve a mim [risos], em matéria de sacrifícios, de contribuição... não tenho dúvida. Temos quatro filhos e seis netos.

Memória MPM – Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de deixar registrada?

João Alfredo da Silva – Não, penso que está muito bem.

Memória MPM – Muito obrigado!

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OLYM

PIO

PERE

IRA

DA S

ILVA

JUNI

OREntrevista realizada na residência do depoente, em Brasília, em 6 de maio de 2015, por Gunter Axt e José Luiz Lima de Oliveira.

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Olympio Pereira da Silva Junior nasceu em 4 de janeiro de 1951, na cidade do Rio de Janeiro. É filho de Olympio Pereira da Silva e Emília Cardoso Pereira da Silva. Casou-se com Angela de Lyra Costa. Em 1975, formou-se em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, onde mais tarde ministraria a cadeira de Prática Forense. Ingressou na carreira do Ministério Público Militar em 1976, designado pelo presidente da República, Ernesto Geisel, para assumir a Procuradoria junto à Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, em Juiz de Fora, onde permaneceu até 1979, quando, então, foi transferido para o Rio de Janeiro, exercendo suas atividades junto à 3ª Auditoria do Exército. Atuou, ainda, como procurador junto às Auditorias de Manaus e Santa Maria. Em 1982, foi transferido para a Auditoria da 4ª CJM, onde permaneceu até 1993. Nesse mesmo ano, foi nomeado para exercer o cargo em comissão de procurador regional da Advocacia-Geral da União da 2ª Região, no Rio de Janeiro. Um ano mais tarde, nomeado pelo presidente da República Itamar Franco, tomou posse como ministro do Superior Tribunal Militar. Em 2001, foi eleito presidente daquele órgão. Em 2003, após completar o mandato, reassumiu funções como ministro do STM. Em 2011, foi eleito vice-presidente do referido órgão para um mandato de dois anos. Aposentou-se em 2015.

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Memória MPM – O senhor é natural de onde?

Olympio Pereira da Silva Junior – Sou carioca da gema! Nasci em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Posteriormente, minha família se mudou para Ipanema onde passei grande parte de minha infância.

Memória MPM – E como foi a opção pelo Direito? Existia essa tradição na sua família?

Olympio Pereira da Silva Junior – Meu pai e meu irmão eram médicos e alguém da família precisava fazer Direito, para ajudá-los, caso fizessem alguma bobagem [risos]. Mas, na verdade, decidi estudar Direito porque tinha simpatia pela área. Antigamente, a educação escolar possuía uma terminologia diferente para os graus básico e médio, chamados respectivamente de Ginásio e Científico. Estudei em um colégio tradicional, o Colégio Rio de Janeiro e, quando concluí o Ginásio, fiquei em dúvida sobre qual curso escolher. Acabei fazendo um teste vocacional que me direcionou para vários cursos possíveis, dentre os quais, preferi a Medicina.

O Científico durava três anos e oferecia os conhecimentos relacionados com a área escolhida para quem fosse prestar o vestibular. Desisti logo na primeira aula quando o professor começou a lecionar química e desenhou fórmulas no quadro. Depois, escolhi Engenharia por causa do meu padrinho que era engenheiro. Desisti mais uma vez quando o professor começou a escrever os cálculos de matemática e as fórmulas no quadro. Eu estava muito triste com esta indefinição, sentado na lanchonete do colégio, quando tocou o sinal para o início do segundo período das aulas. Os alunos se dirigiam para as salas e observei que havia uma escada por onde só subiam meninas. Fiquei curioso e fui verificar. Quando cheguei à sala percebi que

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se tratava do curso Clássico, no qual se estudavam matérias relacionadas às Ciências Sociais. Como eram poucos homens e muitas mulheres nas salas, decidi frequentar aquelas aulas [risos]. Fui ficando...

Optei pelo curso de Direito e, posteriormente, consegui aprovação no vestibular para a Faculdade Nacional de Direito e para a Universidade Cândido Mendes, onde meu pai lecionava. Optei pela Universidade Cândido Mendes, onde me formei advogado. Antigamente, quem concluísse o curso de Direito já era considerada advogado, mas hoje é apenas bacharel e precisa fazer o exame da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] para poder advogar. Acho esse exame um truque, uma espécie de caça-níqueis, porque você qualifica o profissional pela atuação dele e não por meio de um teste. Minha filha tentou fazer o exame, mas não foi aprovada na primeira vez. Quando tentei fazer o exame dela, pude verificar que eu também não seria aprovado. Consegui uma nota média em Penal, mas no resto me saí muito mal. Esse exame é difícil porque tem que alimentar os cursinhos. Na minha época bastava se formar e entregar o diploma na OAB. O meu registro é de 1973: 25446! Estava pensando em me aposentar e voltar a advogar. Recentemente liguei para a OAB informando os dados da minha carteira de advogado e eles disseram que a minha inscrição já tinha perdido a validade e que, atualmente, as inscrições estavam com números de sete dígitos! Com um número desse tamanho, vão achar que eu me formei ontem [risos]!

Memória MPM – Quais foram as áreas de atuação depois de formado?

Olympio Pereira da Silva Junior – Na Universidade consegui um estágio no escritório do Heleno [Cláudio] Fragoso, que foi meu professor e também era amigo de meu pai. O filho dele era meu colega. Fiquei apenas três

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meses como seu estagiário. Como não estavam me pagando, fui conversar com o professor. Perguntei se ele gostava do meu trabalho e ele disse que sim, que não havia nenhum problema. Falei para ele que até aquele momento eu não tinha recebido nenhum pagamento e ele me respondeu com uma pergunta: “Você veio aqui para ganhar dinheiro ou para aprender?”. Fiquei mais um mês no escritório e depois me transferi para uma empresa imobiliária do Rio de Janeiro, de propriedade de Sérgio Dourado Lopes, sempre atuando na área do Direito.

A minha tendência, contudo, era para o Direito Criminal. Depois de formado, me convidaram para coordenar a área Criminal do Escritório Modelo da Faculdade, onde lecionei Direito Penal e Direito Processual Penal. Nesse período, mergulhei completamente na área Criminal, participando de júris semanais. Posteriormente, surgiu na minha vida a Justiça Militar da União, que eu desconhecia, assim como muita gente até hoje não a conhece. Entrando no Fórum no Rio de Janeiro, subindo as escadas, havia uma porta onde estava escrito “Auditoria Militar”. Mas como era da Polícia Militar, nunca me interessei por aquilo. O meu sogro foi coronel da Aeronáutica e era “cordinha” do ministro Carlos Alberto Huet [de Oliveira] Sampaio, apelidado de “Bebeto Nescau”, por causa de um tique que ele tinha – passava a ponta da língua sobre os lábios, como se dissesse “hummm!...”, o que lembrava uma propaganda do achocolatado Nescau, veiculada na época. Certo dia, meu sogro me convidou para assistir a uma sessão da Justiça Militar da União. Foi em 1973, ano em que o Tribunal saiu do Rio de Janeiro. O ambiente, com os conselheiros fardados em gala, era impressionante, mas também familiar. Meu pai servira o Exército, na Artilharia Montada. Era oficial R/2 quando foi convocado para lutar na Segunda Guerra, onde

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acabou ferido. Minha vida toda achei que se ferira em combate, que ele era herói. Mas depois descobri que tinha sido em um acidente de jipe, que ele dirigia [risos]. Ferido em guerra, voltou para o Brasil, podendo entrar na lista de oficial. Mas aí fez vestibular para Medicina. Era pobre. Conseguiu se formar e acabou deixando o Exército. Sempre gostei do clima que havia em casa e dos hinos da Artilharia Montada que meu pai cantava. Assim, achei interessante o Ministério Público Militar e comecei a me informar a respeito, a “beliscar” daqui, dali. Em 1976 fui nomeado promotor, pelo presidente Ernesto [Beckmann] Geisel.

Memória MPM – Como funcionava essa nomeação? Tinha indicação?

Olympio Pereira da Silva Junior – Tinha. A época era danada! Não havia concurso. Quando me interessei pela Justiça Militar, o Bebeto deu o arranque. Só que o tempo passou e nada aconteceu. Fui falar com um ex-colega de Faculdade, o Fernando Falcão, filho do ministro da Justiça Armando [Ribeiro Severo] Falcão, e descobri que meu nome estava no SNI – Serviço Nacional de Informações, com restrições, porque me candidatara ao Diretório Acadêmico na Faculdade. Pô, eu nem tinha vencido a eleição! Como eu tinha bons padrinhos, consegui ser chamado para uma entrevista em Brasília, conduzida por uma “rapaziada boa” da época. Viram logo que a minha tendência era essa mesmo e acabaram me aceitando.

Em 1976, eu era jovem e quando se falava em Justiça Militar, tremiam as bases, parava tudo. Não tinha Supremo, nem nada! “O que você é, guri?”. “Sou promotor da Justiça Militar...”. Como se diz lá em Minas, “mandava para mais de metro”. Tinha bastante cartaz. O procurador-geral de Justiça Militar era o Dr. Ruy de Lima Pessôa.

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Memória MPM – Houve algum processo que lhe chamou mais sua atenção?

Olympio Pereira da Silva Junior – Foram muitos. Não apenas processos, mas lances incríveis! Comecei no Rio de Janeiro. Ainda estava lá quando aconteceu o caso da bomba do Riocentro. Nesse dia eu estava na 3° Auditoria Militar junto com o Jorge Dodaro. Nós dois fomos falar com o general, comandante da Região. Depois apareceu alguém carregando o caixão com o corpo do sargento. A coisa ficou feia! O general era um homem de baixa estatura e que depois faleceu vítima de infarto. Tivemos pouca participação nesse caso do Riocentro. O primeiro auditor com quem trabalhei no Rio de Janeiro foi o Dr. Edmundo Franca de Oliveira.

Outro caso aconteceu no dia em que o general me ligou dizendo: “Vamos ao cais do porto porque apreenderam um contêiner que veio de Washington.”. Chegando lá, tinha um contêiner enorme, de 70 m3, com um buraco que disseram ser resultado de uma queda. Não acreditei nisso. Tinha um manifesto grudado que dizia “Segurança Nacional – Exército Brasileiro – Não Mexer”. Quando abriram o contêiner, havia no interior várias sandálias do tipo Melissa “trançadinha” e chips de computador, tudo oriundo de contrabando. Essas sandálias, não tinha no Brasil. Era uma coisa de doido! O general, pelo telefone, disse que era para apreender toda a carga. Essa foi a primeira prisão internacional que vi acontecer pelo telefone. Quando voltamos para a Auditoria, o general ligou para o coronel Agissé [da Silva] Bahia, agente responsável de Washington, dizendo “Se apresenta aqui depois de amanhã porque você está preso por contrabando!”. Ele foi preso. Porém, o Agissé Bahia era um sujeito diferenciado, que poderia ser considerado o primeiro da turma desde o jardim de infância. Tinha muitas medalhas e fez inclusive um curso em Washington,

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onde ficou na frente de todos os candidatos. Meti a caneta nele! Ele pegava as muambas e guardava na residência de um amigo na Ilha do Governador. Quem era o amigo dele? O Hélio Gracie, lutador de jiu-jitsu.

Fomos até o sítio do Hélio Gracie e apreendemos as muambas. Eu ia mandar prender o Hélio Gracie, mas resolvi arrolá-lo como testemunha. Ele se apresentou para dar o depoimento e levou todos os filhos. Os Gracie todos! O Dodaro brincava comigo dizendo que quando a audiência acabasse eu iria apanhar muito [risos]. Esses Gracie eram mal-encarados. O juiz era o [Osvaldo de] Lima Rodrigues [ Junior], apelidado de “Ó-ponto”, por causa de sua assinatura. Ele iniciou perguntando se a testemunha prestava o compromisso de dizer a verdade sob as penas da lei. Eu tinha mania de ficar em pé na bancada, de uma forma um pouco intimidadora, olhando para a testemunha. O Hélio respondeu para o juiz “Eu só falo a verdade!”. Quando o juiz ia dar prosseguimento ao caso, pedi a palavra e disse para a testemunha que ele deveria dizer “Eu me comprometo a dizer a verdade.”, que só aquilo que ele havia falado não bastava. O velho me deu uma encarada. O Osvaldo perguntou de novo e a testemunha repetiu que só dizia a verdade e insisti, novamente, que ele deveria falar direito. O Osvaldo me olhou e disse, “Mas ele está dizendo que só fala a verdade!”. Os filhos dele me encaravam e o Dodaro falando “Vai apanhar, vai apanhar!” [risos]. Por fim ele disse a frase como mandava o figurino e prosseguimos o caso.

O Agissé, que estava sendo processado, fazia uma série de perguntas para o advogado dele. O advogado dele era pai de um colega meu de Faculdade. Ele era muito inteligente, mas era malandro. Em determinado momento, o processo estava muito ruim para o lado dele, inclusive íamos chamar o Conselho e pedir para caçar a patente de militar do Agissé Bahia, quando o advogado

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me disse que ia pedir juntada de um livro de Contabilidade com vários registros. Você vê que o cara é um canalha por causa disso. Dentre os itens, o primeiro da lista, um conjunto de radioamador para um importante general; um conjunto de polo vindo do Canadá para outro; e assim por diante. Isso era comum; pô, quando os colegas viajavam, nós pedíamos que comprassem algumas coisas do exterior! Mas o advogado tinha a relação de tudo! Peguei o livro e mostrei para o general Samuel Teixeira Primo, presidente do Conselho e comandante da 1ª Brigada de Artilharia Antiaérea, que me disse que não iria permitir a juntada. Mas falei que isso ia ser pior porque o Agissé entraria com HC [Habeas Corpus]. No momento da audiência havia cerca de vinte jornalistas e o general Samuel me disse que a negação da juntada não ia dar certo. Falei para ele que, como se tratava de um oficial graduado, era melhor fazer a audiência em sigilo. Na época podíamos fazer isso, mas atualmente não é possível. O general disse “Ótima ideia, esvazia a sala, todo mundo!”. Então, eles fizeram a juntada do livro, que o general já sabia. Depois disso, o processo foi arquivado, me transferiram para Juiz de Fora e o Agissé Bahia pediu para entrar para a Reserva. Assim as coisas se acomodaram. Eles tinham que me transferir daquele lugar porque eu não deixava as coisas acontecerem daquele jeito. Troquei de lugar com o Paulo “Maluco” [César de Siqueira Castro], de Curitiba, apelidado assim porque piscava de um jeito peculiar.

Memória MPM – Ele foi designado para as buscas ao corpo do ex-deputado Rubens Paiva? Isso foi bem noticiado nos jornais de 1987 porque ele ficou cavando na Barra da Tijuca.

Olympio Pereira da Silva Junior – Exatamente. Depois de trocar com o Paulo, troquei com o [Ronaldo] Petis [Fernandes]. Era possível abrir mão de 20% dos vencimentos para poder advogar. Mas decidi me dedicar

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apenas ao Ministério Público Militar. Fui para Juiz de Fora e o Petis continuou advogando. Como diz o Roberto Carlos, “Foram grandes emoções!”. Devido às proximidades com o quartel e com a Lei de Segurança Nacional, trabalhar no Ministério Público Militar representava muito poder.

As estradas eram ruins e havia muitos acidentes no trajeto do Rio de Janeiro para Juiz de Fora. Viajei várias vezes de ônibus, saindo terça- -feira de manhã do Rio de Janeiro e voltando depois do final da sessão, na quinta-feira à tarde. Em uma dessas voltas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, durante a noite – uma escuridão tremenda na estrada – e fazia um frio disgramado, eu estava sentado no ônibus lotado, armado, como sempre. Ando armado até hoje, mas antigamente tinha mais vontade. Passando pela cidade de Comendador Levy Gasparian, na fronteira de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, o motorista parou para ajudar outro veículo que estava na pista. “Que socorro que naadaa!...”, não deu tempo de avisar o motorista! Um grupo encapuzado e armado invadiu o ônibus e começou a assaltar as pessoas. Pensei em reagir, mas acabei desistindo com medo de ferir alguma pessoa inocente. Alguém poderia morrer e ia ser uma desgraça! Quando eles estavam dois bancos na minha frente, um dos assaltantes olhou para mim e gritou para o grupo: “Vamos embora, é o promotor!”. Se fosse hoje, teriam me matado. Paramos na Delegacia, em Três Rios, para prestar queixa e me perguntaram se conhecia os assaltantes. Disse que não, mas que eles me conheciam e que poderiam ser soldados de Juiz de Fora. Escaparam com o roubo, mas depois foram pegos. Naquela época existia respeito pelas autoridades. Hoje, se avistam um policial, os bandidos trucidam-no, levam-no para a favela e o colocam no “micro-ondas”. Eles teriam me matado sem pensar duas vezes.

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Eu tinha um Passat, da Volkswagen. Certa vez, atrasado e ansioso para chegar ao Rio de Janeiro, em uma curva, onde hoje tem um pedágio, havia uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. Estava com arma na cintura, era jovem, carregando processos para casa e decidi atravessar a fila pelo acostamento. Passei pelos carros e pelas caminhonetes da PRF. Comecei a escutar buzinas, apitos, atrás de mim: “pipipi-pipipi!”. Parei o carro e vieram dois policias, um deles gordo e arfando. Desci com a arma na cintura e falei, dono da razão: “O que está acontecendo? Sou promotor militar, estou cheio de processos e com pressa!”. O policial gordo colocou a mão no capô do carro, tomando fôlego, e disse: “Sebastião, dá uma multa rápida ao promotor que ele está com pressa!” [risos]. Peguei a multa e fui me embora. Saí dali pensando em como esses policiais foram bacanas comigo e que, mesmo eu usando a prerrogativa da autoridade, eles não deixaram de cumprir a lei. Que caras bons! Mandaria chamar eles se um dia precisasse de pessoas assim.

A estrutura de trabalho era meio precária. Em todo o Brasil, as Procuradorias ficavam dentro das Auditorias, em uma sala. A própria Procuradoria-Geral ficava num andar do prédio do STM. Isso estava errado porque se o promotor brigasse com um juiz por alguma coisa, não havia nada documentado. Dependíamos da boa vontade do juiz-auditor. Quando estava em Juiz de Fora, pensei em arranjar algum outro lugar. Consegui uma casa junto à linha do trem, que pertencia à Rede Ferroviária. Quem trabalhava comigo nessa época em Juiz de Fora era a Marisa Cauduro. Mandamos pintar a casinha e a fizemos de sede. O problema é que era muito perto da linha do trem e quando ele passava parecia que a casa ia cair! Tremia tudo. A Marisa, bonitona, acomodava-se próxima à janela e o trem apitava para ela toda vez [risos].

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Memória MPM – E a Lei de Segurança Nacional?

Olympio Pereira da Silva Junior – Durou até 1988 e atuei desde 1977 sob sua vigência. Recordo-me de vários casos. Houve um que envolveu o senador e então ministro de Minas e Energia César Cals [de Oliveira Filho] – que tinha o rosto marcado por cicatrizes, como se fossem pequenos “furinhos”. Ele enviou um ofício para o procurador-geral da Justiça Militar Milton [Menezes da Costa Filho], que o encaminhou aos meus cuidados, porque se tratava da minha jurisdição, informando ter se sentido muito ofendido com uma reportagem publicada na Tribuna da Imprensa, no Rio de Janeiro, do jornalista Hélio Fernandes, assinada por ele e por seu filho, Hélio Fernandes Filho. Basicamente, dizia que o César Cals teria concedido o direito de exploração de uma mina de esmeralda em Itabira, Minas Gerais, depois de ter recebido (ele, ou sua mulher) um colar de diamantes. O Milton disse: “Isso é uma indignidade! Falar assim do ‘meu’ ministro!”. Passei a caneta nos dois jornalistas e intimei-os! Os advogados do caso eram Arutana Cobério Terena, José de Castro Ferreira e Evaristo de Moraes Filho. Durante o interrogatório, acabei por conhecer melhor um dos advogados, o José de Castro Ferreira, ex-deputado cassado, que seria meu amigo para o resto da vida e também o meu futuro padrinho para o STM. Os jornalistas trouxeram as provas de que realmente houve a troca de presentes. Mandei um ofício para o Milton, relatando o ocorrido e lhe pedi para questionar o ministro – se ficara com o colar, se o jogara fora... [risos]. Depois apareceram alguns homens na minha residência, em Juiz de Fora, solicitando que eu fosse conversar com o ministro em Brasília. Não fui, claro! Nas alegações finais absolvi o acusado por falta de provas. O ministro ficou indignado! O Milton me chamou para uma conversa. Disse-lhe que poderia dar prosseguimento

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ao caso se desejasse, já que ele era o procurador-geral. Mas ele retrucou: “Se você resolveu, está resolvido!” [risos].

Noutro processo interessante, envolvendo a Lei de Segurança Nacional, no final da década de 1970, discutiu-se um concurso de arte no Museu de Arte Moderna de Belo Horizonte. A vencedora foi uma composição fotográfica do Lincoln Volpini Spolaor – me lembro do nome até hoje. O quadro mostrava crianças pobres em um lixão, próximas de um muro, sobre o qual se tinha escrito a seguinte frase: “Viva a guerrilha do Pará!”. Sobrepondo-se à foto havia uma corda com quatro nós pintada nas cores verde, azul, amarelo e branco. Pô! O DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], sob o comando de David Hazan, considerou a obra subversiva. Ele era brabo! Quando comecei a escrever a denúncia, me indaguei do porquê de essa obra ter conquistado o primeiro lugar. Se ganhou era porque os jurados concordaram com o que o autor estava querendo dizer. Meti a caneta em todos os jurados! Entre os envolvidos estavam Rubens Gerchman, da Rede Globo; o Carybé [Hector Julio Páride Bernabó], Mário Cravo Junior, Frederico Gomes de Moraes. Só tinha gente de primeira linha e “sentei a mamona” neles! A denúncia era por instigar e fazer apologia... O advogado do Lincoln Volpini Spolaor era o Waltamir [de Almeida Lima], que depois se tornou juiz-auditor. O advogado dos dois intimados da Rede Globo era o meu amigo Técio Lins e Silva. Ele é gago, mas é igual ao Nelson Gonçalves, quando canta perde a gagueira. A prova do fato era que, como havia muitos quadros, os jurados foram acomodados em uma mesa grande por cuja frente alguém ia passando, com as obras na mão, de modo a que todos pudessem vê-las. Eles usaram isso como desculpa para tentar provar que não dava tempo de dar a nota adequada. Mas mesmo assim, por que escolheram aquele quadro e não os

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outros? Tem um quadro de florzinha aqui, por que não o escolheram? [risos]. No momento em que o Técio Lins e Silva foi fazer a defesa dos acusados, apresentou uma máquina de calcular e disse “Minha defesa hoje não vai ser jurídica, vai ser matemática.”. Não tinha como não pensar: “Pô, são só dez horas da manhã e o Técio já tá mamado!” [risos]. Ele começou falando que o cliente dele estava sentado no terceiro lugar da mesa e que a mesa tinha quatorze metros: “Vamos registrar o número!”. E a máquina fazia “tchá-tchá-tchá-tchá...”. Assim, ele foi registrando as medidas das cadeiras, dos espaços entre elas, a distância percorrida no andar de uma pessoa, etc. Eu sabia que isso não ia dar certo... O rolo de papel da máquina já estava encostando no chão. O Técio acabou se confundindo com os números. Irritado, ele pegou o papel, rasgou e disse: “É, eu estudei Direito porque tenho ódio de matemática, vamos voltar ao jurídico!” [risos]. Afinal, os jurados não foram condenados, apenas o autor do quadro ganhador.

Também me lembro do deputado federal Paulinho Delgado, que cansei de mandar prender porque ele promovia movimentos sociais e enfrentava o Exército. Deve ter tomado muita porrada do Exército! Depois se tornou meu amigo.

Em 1981, o Milton me chamou e disse que eu tinha uma missão em Manaus e que só saberia quando chegasse lá. Igual o filme Missão Impossível!!! [risos]. Foi minha primeira vez em Manaus e fiquei perturbado por causa do calor e do trânsito. Quando cheguei lá era: “A mensagem se autodestruirá em cinco segundos!” [risos]. Quem estava lá era a hoje subprocuradora-geral Maria de Nazaré Guimarães de Moraes, minha amiga até hoje. Ela estava em férias. Fiquei hospedado do lado da Auditoria Militar, em Ponta Negra. Ficava parede com parede com o BIS – 11° Batalhão de Infantaria de Selva, e

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o CIGS – Centro de Instrução de Guerra na Selva. Tinha um juiz, chamado Rosa, que acordava às 7 horas da manhã, colocava paletó e gravata e ia regar as plantas. Louco! A missão era a seguinte: em Brasileia, no Acre, houve um comício na praça central no qual o convidado especial proferira um discurso considerado inadequado. A cidade é precária ainda hoje, imagina em 1980! A discussão era entre os seringueiros e os donos dos seringais, envolvendo a CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. O convidado estava discursando e dizia (imitando a voz inconfundível do ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva): “Companheiros, está na hora da onça beber água!”. Por azar, no momento em que ele discursava estavam passando de carro, junto à praça, o dono do seringal, sua esposa e o capataz. A multidão os atacou! O carro em que estavam foi tombado e queimado. A esposa e o dono do seringal conseguiram escapar, mas o capataz não. O Lula já vinha de uma condenação em São Paulo, por causa da greve do ABC paulista. Portanto, a manobra consistia em denunciá-lo para que fosse até Manaus, onde seria interrogado, e durante o interrogatório eu pediria a prisão preventiva dele e da turma que andava com ele: Chico Mendes [Francisco Alves Mendes Filho], o Jacó Bittar, que foi prefeito de Campinas, o presidente da CONTAG [ José Francisco da Silva], entre outros. Tenho todos os dados dos envolvidos aqui comigo. Eu era novinho e estava com sangue na boca! Eles foram intimados e eu sabia que se mandasse prender, a votação seria de 4 a 1, porque o Rosa iria negar a prisão. Inclusive, em Manaus, é bacana, porque eles colocavam na entrada onças para acompanhar a guarda. Claro, onças bem-treinadas, que só comiam comunistas! [risos].

Começou a sessão. O lugar estava lotado. Havia padre por tudo! O Luiz Inácio da Silva (só anos depois ele virou o Lula de hoje) tinha uma cara

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de bandido... Passei a caneta nele! Eu já tinha feito a acusação antes, então só fiz um resumo do pedido de prisão. O juiz iniciou o interrogatório e o primeiro a falar foi o Lula, cujo advogado era o [Luiz Eduardo] Greenhalgh. Os advogados que atuavam com eles em São Paulo eram o Greenhalgh e o [ José Paulo] Sepúlveda Pertence, que mais tarde foi procurador-geral da República. O Greenhalgh iniciou a defesa dizendo que não havia como controlar a multidão e que o que aconteceu não foi culpa do acusado. Falou muita bobagem. Mas a minha denúncia não foi a de que o Lula tinha cometido o crime, mas que ele incitara a população para o ato ao dizer que “era hora da onça beber água”. O interrogatório durou cerca de uma hora e, quando acabou, quem se apresentou como advogado do presidente da CONTAG foi o Heleno Fragoso – meu professor e amigo de meu pai. Chamava-me de Olympinho! Ele veio na minha direção e falou “Olympinho, tem alguma novidade?”. Eu não podia revelar nada para ele. O Greenhalgh fez um requerimento para o Conselho, pedindo autorização para o Lula poder retornar para São Paulo. Ele já tinha cumprido um mandado de intimação. Antes de o Conselho decidir, o juiz perguntou o que o Ministério Público Militar pensava a respeito da proposta e recusei, dizendo que pelo que o Lula fez, ele poderia, pelo menos, honrar a Justiça Militar com a sua presença. Ainda completei falando que tinha um requerimento para fazer ao final do interrogatório. Depois que falei isso houve certo tumulto; o Heleno arregalou os olhos. Posteriormente, o interrogatório foi interrompido para retornar às 14 horas. Acabou às 19 horas e o juiz deu mais uma pausa de dez minutos. Quando voltamos – eu suava muito (como diria um amigo meu, “Suava mais que nêgo recebendo santo!”). Subi no púlpito e falei tudo o que tinha para falar. Sentei a “bucha”! Finalizei com o pedido da prisão preventiva do Lula. Falei de forma agressiva, porque acho que um promotor tem que ter essa agressividade na acusação. Eu adorava! Quando

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pedi a prisão preventiva os advogados se irritaram. O resultado foi decidido em sessão secreta do Conselho. Quando o juiz se retirou para a decisão, eu pensei que fosse demorar muito tempo para ter um parecer e decidi tirar a beca e ir até o quartel tomar um banho para voltar depois. A vestimenta esquentava muito porque a beca ia por cima do paletó e a gola era muito apertada. A gola tinha um botão e me deixava igual a um bispo. Quando estou desabotoando a beca, o meirinho se dirigiu até onde eu estava e disse que o Conselho estava voltando. A votação não levou nem cinco minutos! Eles compuseram a mesa e o juiz falou que o Conselho, por unanimidade de votos, negava o pedido do promotor. O público presente começou a falar alto e me levantei, apontei o dedo para o Lula e gritei: “Como nega?!”. Nessa hora tiraram uma fotografia que estampou o jornal do dia seguinte sob o título: “Promotor insano tenta prender o Lula!” [risos].

Quando terminou o interrogatório me dirigi para o Comando Militar da Amazônia e fui falar com o comandante Leônidas Pires Gonçalves, sujeito de “sangue azul”: “Chefe, fomos traídos!”. Ele me disse para ficar calmo e sentar. Senti uma friagem. Ele disse que o presidente Figueiredo estava se dirigindo para Manaus patrocinando a abertura política e não seria bom prender o Lula naquela oportunidade. Achei que tudo aquilo tinha sido parte de uma figuração, na qual eu desempenhara um papel que me fora designado. Não serviria para nada, de qualquer forma. O Lula foi absolvido desse processo e do ABC de São Paulo. Ele seguiu a vida dele e eu, a minha. Encontramo-nos de novo quando ele se tornou presidente da República e eu presidente do Tribunal. Cada um com suas medalhas... Ele disse que não ia receber a medalha enquanto eu fosse o presidente do Tribunal. Aquele jornalista que trabalhou com o [Fernando Affonso] Collor [de Mello] escreveu uma matéria,

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em sua coluna, dizendo que o Lula não quis receber a medalha da mesma pessoa que o mandou prender.

Aí teve o Baile do Aviador. Eu estava numa mesa que ficava um pouco à frente da mesa do presidente, por questões de segurança. O Lula estava com a sua esposa, Marisa [Letícia “Lula” da Silva], que inclusive perdeu um brinco na festa e tivemos que procurar depois. O Lula e o comandante da Aeronáutica [Luiz Carlos da Silva] Bueno estavam conversando e decidi me aproximar. O comandante Bueno perguntou se o Lula já me conhecia e o Lula falou com aquela voz característica: “Prazer”. Ficamos conversando [risos]. De repente, surgem por trás dois braços que seguram o Lula e a mim pela nuca. Era o brigadeiro Joseli Camelo – meu amigo, que toma posse como ministro amanhã no STM (ele estava na Argentina quando o Lula fazia a campanha presidencial, se conheceram e o Lula o convidou para o Palácio do Planalto, de onde ele só sai agora para o STM, depois de ter pilotado para o Lula e para a presidente Dilma Rousseff ). Era um baile, ele já alegre, depois de umas e outras, diz para o Lula: “Presidente, esse aí é o ministro Olympio, aquele que te mandou prender lá em Manaus!” [risos]. Pensei: “Pô, Joseli, queimou meu filme!”.

Memória MPM – E o Itamar Franco?

Olympio Pereira da Silva Junior – Quando eu ainda era promotor em Juiz de Fora, em 1991, o Itamar Franco era o vice do Collor. Então o José de Castro Ferreira – quem eu conhecera como advogado naquele caso do César Cals contra os jornalistas – apareceu na Auditoria perguntando se eu poderia tomar uísque na casa dele naquela noite. Aceitei, porque naquela época, tomar uísque no fim do dia com os amigos era comigo mesmo. Ao

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chegar à casa dele, fui recepcionado pela sua esposa, advogada e minha amiga, que me levou para a mesa de jantar, onde estavam o Itamar e várias outras pessoas que formavam o que se chamava então de “República do Paraibuna”. Pensei “Caraca, fui chamado para tomar uísque com o vice-presidente da República!”. O Zé de Castro, comendo pão de queijo, veio falar comigo sobre a briga que havia entre o Collor e o Itamar. Eu querendo ir embora para casa logo... Ele disse que chegou ao absurdo de o Collor, quando se ausentava, não passar a presidência para o Itamar. Queriam resolver esses problemas e me pediram ajuda. A ideia era entrar com uma ação civil pública, que tinha de ser assinada por um procurador da União, para ter valor. Pensei: “Dancei!”. Eu estava do lado do vice-presidente, como iria escapar de uma proposta dessas? Pensei em ganhar tempo para poder resolver isso. Perguntei para o Zé de Castro quem iria fazer ação e ele me disse “Sou eu, e já está pronta!”. Ele abriu uma maleta e sacou dois maços de documentos, um original e o outro, uma cópia, e os colocou na minha frente, sugerindo que levasse para casa, desse uma lida e decidisse se assinava ou não. Olhei para o Zé de Castro e perguntei se tinha sido ele mesmo quem redigira o documento. Ele disse que sim. “É agora!”. Meti a caneta nos documentos! Assinei os documentos e falei que não precisava ler e que confiava nele. Nisso ele falou para o Itamar: “Esse é o Olympinho, o cara de quem precisamos!”. Fui para casa e fiquei duas semanas sem dormir pensando onde isso iria terminar [risos]. “Estou ralado!”. Fiquei com medo de ser exonerado do meu cargo por ter assinado um documento daquela magnitude sem a permissão do procurador-geral. Fiquei esperando receber algum ofício, algum petardo...

O tempo passou, uma semana, dez dias e não recebi resposta. Até que o Zé de Castro me ligou dizendo que eu precisava ir a Brasília porque

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o vice-presidente queria falar comigo. O gabinete ficava onde era a AGU [Advocacia-Geral da União] e atualmente é o GSI [Gabinete de Segurança Institucional]. O Itamar estava me esperando. “Doutor Olympio, gostaríamos de enaltecer a sua ação, mas já descobrimos a solução.”. Pensei comigo: “Ai meu Deus do céu, lá vem!” [risos]. Ele continuou falando que o Collor não precisava passar a presidência para ele, que isso seria apenas um ato de gentileza, mas que o presidente não era um homem gentil. Explicou que o presidente estava na Venezuela e que, quando o avião cruzasse a fronteira, ligariam para o Itamar e, todos, incluindo eu, estaríamos na sala do presidente esperando por ele. Falei que iria com o maior prazer e perguntei: “Onde está a ação que eu assinei? Gostaria de guardar de recordação.”. O vice-presidente me entregou os documentos e, logo quando cheguei em casa, queimei aquela coisa! Ele me disse que iríamos para a sala do presidente às 6 horas da manhã do dia seguinte. No dia combinado, naquela hora eu peguei o avião e fui para Juiz de Fora. Algum tempo depois sobreveio o impeachment do Collor e o vice- -presidente assumiu o cargo.

Em 1992, ainda em Juiz de Fora como promotor, o Zé de Castro me ligou em um domingo de manhã dizendo que o presidente Itamar desejava falar comigo, porque eles queriam instaurar a AGU. Até então ela apenas existia no papel e a defesa da União era feita pelo Ministério Público Federal, o que era realmente uma incoerência. A AGU estava na Constituição e eles queriam tirá-la do papel e fazê-la funcionar. O presidente me daria o cargo de procurador-geral. O Zé de Castro estava no Palácio do Planalto com o presidente e esperava uma resposta. Eu não sabia o que dizer, pois estava feliz em Juiz de Fora. Pedi para ele me dar cinco minutos para pensar e ele reclamou: “Vai fazer uma palestra, pô?” [risos]. Na verdade, eu precisava

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falar com a “polícia” – que estava dormindo ao meu lado –: minha esposa. A nossa vida era maravilhosa em Juiz de Fora. Ela falou que se me dissesse para aceitar o cargo e me desse mal, eu iria culpá-la para o resto da vida e que se dissesse para recusar, eu faria o mesmo. Coisa de mulher, inteligente. Acabei aceitando a proposta. Liguei de volta: “Zé, estou dentro!” e ele disse “Já sabia, tua passagem já foi enviada!”. Cheguei a Brasília na segunda-feira e no dia seguinte fui nomeado procurador-geral da União. O José de Castro, que foi o último consultor-geral da República se tornou o primeiro advogado-geral da União. Depois da nomeação fui trabalhar no Rio de Janeiro sem ter a mínima ideia do que iria fazer.

Esse período foi uma vivência extraordinária. Fui emprestado do MPM para a AGU, onde fiquei dois anos ajudando a organizá-la, porque não havia praticamente nada. Dei um jeito de o pessoal da Petrobras contribuir. Havia, no Fórum Estadual, discussão com relação aos royalties do petróleo, com o governador Leonel [de Moura] Brizola, e a Petrobras não conseguia alcançar suas pretensões. O advogado da Petrobras me chamou e disse que se a União entrasse na discussão, deslocaria a competência para o Federal. Retruquei a ele: “Estou louco para fazer isso, mas não posso.”. Expliquei que minha sala não tinha ar-condicionado, cadeira, mesa, etc. Ele disse que era só fazer a lista do que eu precisasse que em breve estaria lá. Nós montamos a AGU assim. Conseguimos uma sala na Candelária. Fomos “capinando”, catando assessor jurídico e defendendo a União.

A sala ficava no prédio do BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento], no último andar, quando o porteiro me interfonou dizendo que tinha um problema na garagem. Desci rápido. Chegando lá, havia dois caminhões da Transportadora Gato Preto, enormes, e dois rapazes de terno.

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Logo imaginei... Arregacei as mangas e perguntei do que se tratava. Eles se apresentaram dizendo que eram procuradores do Ministério Público Federal. Um deles, então, falou: “Doutor Olympio, com o advento da AGU, o MPF perdeu a atribuição e viemos entregar os processos para vocês.” [risos]. Perguntei onde estavam os processos e eles apontaram para os caminhões. Sentei no banquinho do vigia e pedi para que me trouxessem a relação dos processos. Veio uma folha matricial com metro e meio de altura. Peguei a caneta e pedi para trazerem o primeiro dos processos que eu iria conferir na lista. Eles reclamaram falando que eram muitos e que seria impossível conferir um por um. “Mas como vou receber sem conferir o que estou recebendo? Nem se fosse da minha santa mãezinha eu receberia sem conferência!”. Na verdade, eu sabia que eles não iam fazer isso. Então, pediram para levar os processos para o arquivo. Liguei para Brasília e pedi para irem buscar. A Justiça não tinha suspendido os prazos judiciais. Propusemos uma medida provisória suspendendo os prazos por 30 dias, prorrogáveis por mais 30. Era uma inconstitucionalidade tremenda, mas não tinha outro jeito. Fizemos-na pequena para caber em um carimbo. Com esse prazo poderíamos estruturar e trabalhar melhor em cima dos processos. Passamos duas semanas carimbando os processos com a medida provisória. Foi assim que nasceu a AGU.

Memória MPM – Nesse período, nos jornais do Rio de Janeiro, há três coisas que chamam a atenção: pessoas que importavam carros usados, privatizações das empresas e o Centro de Recuperação do Exército em Itaipava.

Olympio Pereira da Silva Junior – Pois é, estava se disseminando essa moda de importar pneus usados e, depois, carros usados. Só que, de repente, não eram mais usados coisa nenhuma. Pedia-se no Banco do Brasil, junto ao antigo DECEX [Departamento de Operações de Comércio Exterior], emissão

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de guia para importação, mas enquanto isso, o navio já estava a caminho com os produtos. O Banco do Brasil negava e eles recorriam para a Justiça. O juiz dava a liminar. O navio vindo e eu correndo atrás para cassar as liminares. Cassa daqui, cassa de lá, anulamos todas! Numa oportunidade, quando o navio aportou, estavam o delegado federal, um fiscal da Receita Federal e eu, já com a cassação em mãos. Os donos da embarcação ficaram fulos, todos lascados. Havia vários carros no convés. Alguns estavam plastificados, porque ficava mais barato. Mas o “filé” estava no porão. Só tinha carro bacana! Entre eles um Jaguar conversível com forro de antílope. Fiquei maluco ao ver aquilo! E o delegado da Receita dizendo que o carro iria estragar se ficasse parado num pátio [risos] e que o ideal seria que alguém o utilizasse. Todo mundo queria o carro [risos]. Peguei o telefone e liguei para o José de Castro. Falei que havia um carro apreendido que era de meu interesse para utilizar no trabalho, um carro oficial. Ele me perguntou o tipo de carro e eu falei “Um Ja...” e ele perguntou de novo e respondi: “Um Jaa...” [risos]. O José de Castro perguntou se era fechado e com quatro portas. Eu respondi que era conversível e ele: “Você é maluco? Vai acabar destruindo o presidente!” [risos].

Vivíamos duros, sem dinheiro. O Planalto, certo dia, depositou um milhão de reais na conta e logo pensei em comprar utensílios que melhorassem as condições de trabalho. Primeiro, foi um ar-condicionado, porque na Candelária faz muito calor. Consultamos os preços no jornal e pensei em comprar um no valor de R$ 500,00, mas me disseram que era melhor adquirir dez ares-condicionados, pois o preço cairia para R$ 400,00. Decidimos ir para Xerém, Rio de Janeiro, direto na fábrica. Lá compramos 27 aparelhos, vendidos pela quantia aproximada de R$ 200,00 cada um. O rapaz perguntou como iríamos pagar: “Na bucha, na grana!”, respondi. Ele até se assustou ao saber

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que o governo pagaria à vista e em dinheiro [risos]. Comprei troço para burro! Mesas, cadeiras... Enviamos as notas da prestação de contas para Brasília. Pensei que iriam me dar uma medalha [risos]. Depois recebi um ofício da Fazenda reclamando que comprei sem licitação. Falei que consegui desconto e que respeitei a rubrica de um milhão. O funcionário se mostrou surpreso: “Desconto? Desde quando a União compra com desconto?”. Respondi para ele “Como assim, a União não compra com desconto? A nossa conversa acabou agora. Vou atravessar a rua e falar com presidente da República!”. O rapaz achou que era brincadeira, que eu não ia falar coisa nenhuma com o presidente. Só que realmente atravessei a rua e me dirigi ao Palácio para falar com o presidente [risos]. Falei com a secretária Sofia e esperei duas horas para me entrevistar com o presidente. O Itamar me recebeu, me conhecia bem. Se eu dissesse “Estão querendo me ferrar!”, ele não ia dar a mínima atenção. Agora se eu dissesse “Estão querendo pegar a gente!”, daí a coisa funcionava [risos]. Expliquei toda a situação, destacando que comprei os produtos com desconto e o que o rapaz da Fazenda tinha me dito. Falei ainda que era assim que a União deveria agir, comprando com desconto e não essa corrupção da Lei 8.666. Falei que achava que o pessoal da Fazenda queria pegar a gente [risos]. O Itamar pediu para ligarem para o Fernando [Henrique Cardoso], ministro da Fazenda. O Itamar explicou a história e disse que era para eu voltar lá na Fazenda que o problema tinha sido resolvido. O burocrata que tinha falado comigo estava fulo da vida, com a cara amarrada: tinha recebido uma ordem superior para arquivar toda aquela meleca. Sentei na frente dele e disse “Você realmente achou que eu não ia falar com o presidente?” [risos]. Depois ele se tornou meu amigo. Esse processo todo é uma coisa extremamente burocrática e uma das fontes de corrupção do país. Se você recebe dentro do seu orçamento, certa quantia em dinheiro, dá para comprar muitas coisas com desconto e de forma

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mais rápida que nas licitações. Nas licitações existem roubos onde cobram caro por produtos ruins e de má qualidade.

[Comenta fotografias] Nessa foto você pode ver a inauguração da sede da AGU no Rio de Janeiro. Esse era o ministro da Defesa, Alexandre [de Paula] Dupeyrat Martins. Estavam no evento o presidente do Tribunal do Trabalho, o advogado-geral da União, o Alexis Stepanenko, ministro-chefe da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação e o presidente da Petrobras. Era muita força na época.

Memória MPM – Como foi o caso do Centro de Recuperação do Exército, em Itaipava?

Olympio Pereira da Silva Junior – No âmbito desse processo de privatizações, havia liquidações e empresas em crise que precisavam ser vendidas por determinadas questões legais. Os empregados também entravam no processo. Esse Centro de Instrução General [Ernani] Ayrosa, em Itaipava, Rio de Janeiro, era preparado por uma empresa elétrica do Rio de Janeiro, com salas de aula espetaculares. Ocorreram muitas reuniões e encontros nossos nesse local. Liguei para o STM e perguntei o que seria desse Centro. Eles disseram que não tinham utilidade para um centro que ficava em Itaipava. Liguei para o MP e disseram a mesma coisa. Sobrou apenas o glorioso! Ressalvando qualquer engano, foi feito um contrato de 25 anos com o Centro, que ainda está funcionando. Meu nome está lá.

Memória MPM – Seria interessante a digitalização dessas fotos.

Olympio Pereira da Silva Junior – Eu tinha mania de ficar na bancada encarando o acusado, conforme essa foto.

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Memória MPM – [Lendo trechos de manchetes] “Os militares começam a articular um nome mais ligado à categoria, o do ministro Olympio Pereira da Silva Junior, do STM, para o lugar de Waldir Pires à frente do Ministério da Defesa”. “Em 1980, como promotor, em Manaus, Olympio pediu a prisão preventiva do então sindicalista ‘Lula’ e de outros militantes, com base na Lei de Segurança Nacional, por estarem incitando a população, em Brasileia, no Acre, área sob sua jurisdição”. Matéria do Jornal do Brasil de 6 de abril de 2007.

Olympio Pereira da Silva Junior – Nessa foto aparece o José de Castro. As fotos eu tirei do site do Hélio Fernandes e de seu filho. Nesta, estamos eu e o Marco Aurélio [Mendes de Farias Mello], meu amigo, presidente do Supremo, na China. Quando cheguei no SMT, inventei uma estória de que eu era o ministro mais jovem, mas não era. Era o Marco Aurélio. Tinha esquecido que ele foi do TST [Tribunal Superior do Trabalho].

Já, esta aqui, foi tirada na saída do Primeiro Encontro Nacional dos Procuradores da Justiça Militar, realizado em Brasília, em 1986. O procurador--geral da Justiça Militar era o Francisco Leite Chaves, quem, aliás, enalteceu a carteira de procurador. A nova carteira que recebemos na sua gestão era bonita e vermelha. Como tinha o desenho animado do He-Man, apelidamos-na de “Eu tenho a força!”. A carteira tinha força! Eu estava elegante, com colete e tudo!

Memória MPM – Como foi sua nomeação para ministro?

Olympio Pereira da Silva Junior – Eu estava na AGU, em outubro de 1994, quando recebi um telefonema do Zé de Castro dizendo que o presidente queria falar comigo. Fui a Brasília... Enfim, pouco antes do telefonema, eu tinha recebido o Boletim com a digesta de assuntos militares e uma das notas dava

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conta de que abriria vaga para o STM, porque é necessário comunicar com 60 dias de antecedência o desejo de se aposentar, salvo se for de compulsória, evidentemente. Bom, o Itamar desejava saber se me interessava. O mandato dele se encerraria em 31 de dezembro de 1994, quando seria substituído pelo Fernando Henrique. E aparecia essa vaga, dentre as quinze cadeiras do STM, que era para o MPM. A vaga era ocupada pelo gaúcho Eduardo Pires Gonçalves, conhecido como “Dudu Carabina”. É claro, respondi ao presidente Itamar, que me interessava. Ele disse que tudo bem. Achei que isso fosse fácil, mas havia outros candidatos. Na época, eu era promotor e acabei concorrendo com procuradores e procuradores-gerais. No dia de minha sabatina o senador Nilo [de Sousa] Coelho disse “O senhor não fica com vergonha de ser o 47° da lista e passar a perna e dar uma carona em todos?”. Respondi que não tinha “dado carona” em ninguém porque eu estava saindo da instituição para concorrer à vaga. Disse, ainda, que essa pergunta ele deveria fazer ao presidente da República porque foi ele quem me escolheu. E completei falando que, às vezes, o 47° é melhor que o primeiro, que o segundo ou que o terceiro colocado. A sabatina era para o Maurício [ José] Corrêa, que concorria a uma vaga para o Supremo Tribunal Federal, e eu, indicado para STM. Foi a segunda vez que tremi na vida. A primeira foi no meu casamento [risos].

No mês anterior eu tinha ido aos Estados Unidos. Gosto de colecionar armas. Em Miami, no dia de ir embora, minha mulher foi fazer compras e me perguntou se não queria ir com ela. Disse que não aguentava mais e fiquei na rua, passeando, olhando, até que vi uma luva de boxe pendurada em uma loja. Depois da loja havia um corredor e fui entrando até chegar a uma porta de ferro com uma campainha. Toquei, um rapaz veio e perguntei “Do you have some guns?”. Era um paiol, tinha até fuzil! Pensei “Tô

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lascado!”. Comprei um revólver 8,5 polegadas da Smith & Wesson, 44 Magnum, e bastante munição. Meu medo era ser pego com a arma nos Estados Unidos; no Brasil não tinha problema. Falei para a minha esposa colocar a arma na bolsa que lá no Rio de Janeiro eu me garantia. Decolamos e no Rio de Janeiro prenderam todas as coisas. Um delegado me disse: “Me admira o senhor, que é um promotor, fazendo contrabando.”. Perguntei: “O senhor por acaso já viu contrabando com recibo, pô? Eu sou colecionador de armas!”. Quem salvou a gente foi o Zenildo [Gonzaga Zoroastro de Lucena], ministro do Exército. Quando o fiscal empacotou tudo, eu disse para o delegado não esconder lá no fundo porque iria voltar logo para pegar. Demorou três meses... O Kleber [de Carvalho Coêlho], procurador-geral da Justiça Militar na oportunidade, achou que podia capitalizar aquela situação. Eu disse para esperar que iria sair a autorização. O Zenildo deu a autorização e eu a entreguei ao delegado para encerrar a sindicância. Foi dito que tudo estava legalizado e se determinou que fossem devolvidas arma e munições. Mandei a solução da sindicância por fax para o gabinete do procurador. Se o Itamar descobrisse que eu fora acusado de contrabando, ele me matava [risos].

Fiquei 18 anos na instituição com muito amor e orgulho. Uma vivência que calou muito fundo em mim.

Memória MPM – E o caso Aramar? Na época, o procurador-geral era o [Marco Antonio Pinto] Bittar, que pediu o arquivamento do caso e tem uma entrevista sua na qual o senhor se mostrou contra o arquivamento do processo.

Olympio Pereira da Silva Junior – O problema não era o submarino, mas sim o projeto inteiro. A Aramar [CEA – Centro Experimental Aramar] estava nas mãos de um almirante que facilitou as coisas. Ele fazia as coisas

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acontecerem, mas houve problemas com as viaturas, pois ele dava baixa e as usava. Caí em cima. Investiguei e achei que cabia denúncia. Hoje tem o projeto lá e está funcionando.

Fui conhecer a base que a Marinha está erguendo em Itacuruçá, um espetáculo! Vão construir os submarinos atômicos nessa região. É uma base para oito mil fuzileiros. Mas não sei de quem precisaremos nos defender com um submarino atômico – do Paraguai? [risos].

Memória MPM – E a Comissão da Verdade? Saiu um relatório agora e o seu nome está lá...

Olympio Pereira da Silva Junior – Não. Mas eles me ligaram bastante. Aquele nome é o do meu pai, médico-legista, Olympio Pereira da Silva. Sempre achou que “comunista comia crianças”. Com certeza ele estava inserido nesse contexto de repressão. Minha mãe duvidava dessas coisas, mas eu não. Ele tinha um posicionamento bem de milico. Ela reclamava do que as pessoas poderiam falar, mas a minha opinião é que deixem que falem. O [general Sérgio] Etchegoyen disse que ia entrar com uma ação caso falassem do pai dele. Para mim, essa Comissão da Verdade não vai dar em nada, é um desperdício de dinheiro.

Memória MPM – Ministro Olympio, muito obrigado pelo seu depoimento.

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Entrevista realizada na residência do entrevistado, em Vassouras, Rio de Janeiro, no dia 12 de abril de 2015, por Gunter Axt.

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Renato da Cunha Ribeiro nasceu em 22 de agosto de 1929, no Rio de Janeiro. É filho de Targino Ribeiro e Odetta da Cunha Ribeiro. Casou-se com Graça Maria Ferreira Guimarães Ribeiro. Formou-se, em 1952, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, hoje Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Advogou no Rio de Janeiro pelo tradicional escritório de seu pai. Em março de 1970, foi designado segundo substituto de advogado de ofício da 2ª Auditoria da Aeronáutica da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Em 22 de abril de 1980, foi nomeado segundo substituto de procurador de terceira categoria, para atuar junto à Auditoria da 6ª CJM, em Salvador. Em outubro de 1980, foi designado a servir na 1ª CJM, no Rio de Janeiro. Em 1981, prestou concurso público para ingresso na carreira. Em 3 de maio de 1995, foi promovido a procurador da Justiça Militar, a ser lotado na Procuradoria da 9ª CJM, em Campo Grande. Em março de 1996, foi removido para a 4ª Procuradoria do Rio Janeiro. Em 16 de outubro de 1996, aposentou-se.

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Memória MPM – Quem é o senhor?

Renato da Cunha Ribeiro – Meu nome é Renato da Cunha Ribeiro, sou filho de Targino Ribeiro e Odetta da Cunha Ribeiro. Nasci em 22 de agosto de 1929, portanto, sou do século passado, e trago comigo seus ensinamentos, embora, atualmente, um pouco arcaicos. Tive irmãos, mas sou o único ainda vivo. Sou casado com Graça Maria Ferreira Guimarães Ribeiro, nascida em Belo Horizonte e tenho duas filhas, Camilla e Renata. Sou carioca, Flamengo e Mangueira.

Memória MPM – O senhor estudou no Rio de Janeiro?

Renato da Cunha Ribeiro – Cursei o ensino primário no Colégio Batista Shepard, de 1938 a 1940, em três anos, fazendo dois anos em apenas um. O curso ginasial, fiz no mesmo colégio e, modéstia à parte, no segundo, quarto e quinto ano, tirei medalha de ouro como melhor aluno da turma. Depois, fui para o Colégio Andrews, considerado, na época, o melhor do Rio de Janeiro. Era muito puxado; eu estranhei, pois era um colégio que exigia, ao mesmo tempo em que dava liberdade ao aluno. O genro da fundadora, Carlos Octavio Flexa Ribeiro, com quem me dava muito bem, e era, inclusive, amigo da minha família, entrava nas turmas do Clássico e do Científico e dizia: “Olha, neste colégio vocês não precisam ter medo; como adolescentes precisam ter liberdade para se exprimir. Não é necessário se esconderem dos inspetores de disciplina, pois eles não estão aqui para punir vocês, mas sim para servi-los. Se não querem ter aula, fiquem no pátio, não se escondam. Às 10 horas o portão é aberto, se quiserem ir à praia, ninguém vai impedir. Porém, quem não souber e/ou não tiver frequência, não passa de ano.”. Tanto era assim que, no segundo ano do Clássico, foi reprovado, sem direito à segunda época, meu querido

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amigo Paulo de Tarso Fernandes Nonato [da Silva], filho do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Orozimbo Nonato [da Silva]. Dessa forma, um colégio que reprova o filho do presidente do Supremo Tribunal Federal, por faltas, é um colégio que se faz respeitar. E nós o respeitávamos muito. Tive lá grandes amigos que se tornaram nomes na indústria e no comércio, como meu amigo Giacomo [René Maria] Luporini, filho de Marcello Luporini, dono da indústria Luporini. O Giacomo foi um grande amigo de turma, que agora está morando com o filho em Miguel Pereira, depois de ter perdido uma fortuna enorme, e, infelizmente, sofrendo de Alzheimer. Há muitos outros, mas é impossível enumerar todos. Em 1948, prestei o vestibular para Direito.

Memória MPM– Por que a opção pelo Direito?

Renato da Cunha Ribeiro – Quando era menino, meu pai perguntava o que gostaria de ser quando crescesse. Respondia que queria ser cantor de rádio ou jogador de futebol, pois achava que era essa a turma que ganhava dinheiro; depois percebi que advocacia dava dinheiro também. Meu pai e meus dois irmãos eram advogados e minha irmã, professora, por isso resolvi seguir a tradição da família no Direito. Eu tinha, também, um temperamento compatível com a área. Duas profissões que, acho, me daria bem, pois, como se percebe, sou muito falador e aprecio a comunicação, são o Direito e o teatro cômico.

Naquele tempo só se podia fazer vestibular para uma Faculdade, então escolhi a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, aconselhado por vários professores, amigos do meu pai, como Nelson Hungria [Hoffbauer], Ary de Azevedo Franco, entre outros. Era a Faculdade mais puxada. Existiam duas principais: a da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde

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se formaram meus dois irmãos; e a da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, para onde foi meu amigo Giacomo Luporini. Muitos outros estudaram na Federal, como o José Bonifácio de Andrada e Silva – não o velho, o novo, sobrinho-neto de terceira geração –; o Plínio Bento de Faria, neto do ministro do Supremo Tribunal Federal, Antônio Bento de Faria; Paulo Nogueira Baptista, embaixador na Alemanha, e depois ministro de Estado; tantos colegas...

Naqueles tempos antigos, dos anos 1940, o Supremo Tribunal Federal era um baluarte, inclusive de democracia; não era essa “esculhambocracia” de hoje. Era democracia verdadeira, de centro, sem pender nem para a esquerda nem para a direita. Existia liberdade de expressão, de palavra, de opções. Hoje, é esculhambação; não sei onde vamos parar, só Deus sabe! Naquela época, o Supremo era supremo! Entrei para a Faculdade em 1948 e também para o escritório de meu pai, com 18 anos, assim como os meus amigos de toda a vida, o desembargador César Augusto Leite, e o procurador de Justiça Gerson Nicácio Garcia.

Memória MPM – Quais eram as causas com as quais o escritório lidava?

Renato da Cunha Ribeiro – Trabalhamos como os médicos clínicos gerais, com causas diversas, desde 1909 até hoje, estando o escritório com 106 anos de existência. Na época de meu pai – peço que me desculpe se parecer vaidade –, era considerado o maior escritório do Brasil. Tivemos causas importantíssimas, como quando meu pai defendeu os revoltosos do “Levante dos 18 do Forte de Copacabana”, que ocorreu em 1922. O Eduardo Gomes chamava meu pai de Dr. Targino e meu pai o chamava por você. Eu me dava bem com o Eduardo Gomes. A “Revolta do Encouraçado São Paulo”, quando

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o Augusto do Amaral Peixoto, não o governador, o presidente da Assembleia, era tenente. Quando da desapropriação da São Paulo Railway, apesar de todo o corpo jurídico que tinha o Estado de São Paulo, papai foi contratado para defender esta causa, pelo então interventor federal José Carlos de Macedo Soares, que vem a ser tio-avô da minha primeira mulher; foi ministro das Relações Exteriores, governador de São Paulo, fundador do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Me dava muito bem com ele, o chamava de Dr. Zé Carlos.

Quando o papai chegava ao Supremo Tribunal, para defender uma causa, era levado diretamente à sala dos ministros, onde eles colocavam a beca, tomavam café, trocavam ideias e, papai ficava ali, em grau de igualdade. Uma vez, quando José Linhares era presidente da República, papai foi ao Palácio do Catete falar com ele e encontrou o ministro da Justiça, Antônio de Sampaio Dória. De repente, José Linhares, excelente pessoa, de uma simplicidade enorme, falou: “Aqui não tem mais presidente da República, nem ministro da Justiça, nem advogado famoso. Aqui estão três mocinhos, da turma de 1908, da Faculdade de Direito de São Paulo.”. Mais alguns nomes importantes desta turma são: Waldemar Martins Ferreira, Gastão Vidigal, Jorge Doria, advogado famoso de São Paulo, Filadelfo de Azevedo, se não me engano, entre outros.

Papai era um homem encantador, de uma simplicidade enorme e um tino espetacular, além de portador de grande sabedoria jurídica.

Outra causa importante foi a questão de limites de terras entre o os Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais. Papai foi convidado a ser o advogado de Espírito Santo. O governador, Carlos Lindenberg, esteve em nossa casa à noite, convidando meu pai a advogar pelo Estado, pois havia

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escutado, de Levi Carneiro e também do presidente Eurico Gaspar Dutra, que o Dr. Targino Ribeiro era o melhor advogado do Brasil. Nesse processo, uma coisa muito interessante, que me lembra de uma espécie de retrato do Brasil atual é que o papai cobrou, na época, Cr$1 milhão e o governador disse que teria de vender o Estado para lhe pagar [risos]. Finda a questão, papai já havia falecido e meu irmão Raul da Cunha Ribeiro, que estava chefiando o escritório, foi cobrar a segunda parte dos honorários. Em função da inflação, contudo, recebeu apenas uma nota de Cr$ 500,00, pois na época do fim do processo não existia correção monetária. Aproveitamos muito bem os primeiros honorários; eu recebia 5% da renda do escritório e, na segunda parte, foi apenas uma notinha de Cr$500,00.

Existem tantas histórias do escritório... Papai tinha uma secretária alemã, dona Ana Fischer, que se chamava Julia, mas preferia Ana mesmo [risos]. Ela adivinhava os pensamentos do meu pai; corria a fazer tudo, por antecipação. Em um daqueles dias agitados, papai estava trancado na sala dele com o Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello e, na sala de espera, estavam o gerente-geral da Leopoldina Railway, da qual meu pai também era diretor; o gerente do Banco Holandês Unido; o representante da multinacional Frigorífico Anglo, todos aguardando para conversar com meu pai. Nisso, meu sobrinho Ruyzinho, que hoje dirige o escritório – na época estava com cinco anos, louro, com os cabelos espichados para a frente, de olhos verdes –, abriu a porta do escritório de papai com toda a força e dona Ana gritou: “Não abre essa porta, menino. Seu avô...”, mas não houve tempo, ele já havia entrado e começado a falar: “Oi, vovô. Vamos para a casa de brinquedos?”. Meu pai o apresentou ao Chateaubriand, que o cumprimentou e teve como resposta: “Vou levar o meu avô, viu?”. Então papai disse ao Chateaubriand

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que o Raul o atenderia; chamou meu irmão pelo interfone e disse: “Venha até a minha sala atender ao Chateaubriand, porque vou com o Ruyzinho até a casa de brinquedos. Meu neto é mais importante que qualquer um de vocês!” [risos]. E ainda completou com um: “Ouviu, seu Mello?”, que rapidamente respondeu, rindo, que se entenderia com o Raul. Dois homens de simplicidade enternecedora, meu pai e o Chateaubriand. Papai saiu, foi até a sala de espera, avisou para todos aqueles que o estavam aguardando que iria para a casa de brinquedos com o Ruyzinho e que, se o assunto fosse muito importante, que só pudesse ser resolvido com ele, esperassem, que voltaria. Mas ele fazia isso com tamanha simpatia e charme que ninguém se zangava.

Quando o escritório estava bem, todo o fim de mês havia uma romaria de velhinhas, algumas tias do papai. Inclusive uma jornaleira que o tinha ajudado, fiando os jornais para ele antigamente, pois, quando papai veio para o Rio de Janeiro e começou a advogar, sem conhecer ninguém, enchia a pasta de jornais para dizer que tinha causas e poder ficar no foro. Nessa época, muitas vezes, tinha de ir andando da Rua do Rosário até a Central. Quando essa senhora jornaleira não pôde mais trabalhar, passou a ir buscar uma mesada todo fim de mês no escritório, pois papai lembrava-se dos tempos de início da carreira e retribuía aos que o haviam apoiado.

Quando o chofer do papai bateu com o carro, ele esperou o carro ficar pronto e pediu demissão, alegando estar com pouca visão e que, por isso, tinha batido o carro. Meu pai disse saber que ele não era culpado e se preocupou em como ele iria se sustentar se se demitisse. Ele respondeu ao papai que tinha a aposentadoria do IAPETEC – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas, para receber. Papai disse que isso era coisa do Getúlio [Vargas] e que poderia receber aquele dinheiro, mas, como

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havia conduzido nossa família em segurança por 25 anos, deveria, todo o dia 30 de cada mês, passar no escritório para continuar recebendo seu salário integral, mesmo tendo se demitido. Quando o Roque, nosso empregado do escritório por 53 anos, fez 25 anos de serviços, papai lhe deu uma casa. Quando fez 50, papai já sendo falecido, meu irmão Ruy lhe deu Cr$ 500 mil. Ele reconhecia os empregados, coisa que nem todos os patrões o fazem.

Memória MPM – Seu pai nasceu em Cabo Frio?

Renato da Cunha Ribeiro – Não. Em São Pedro de Aldeia e, com cinco anos, mudou-se para Campos. Então, foi estudar na Faculdade de Direito de São Paulo. Meu avô era exportador de café, de uma projeção muito grande. De repente, houve uma crise no café e perdeu tudo, exceto o que não estava no nome dele. Vovô passou a viver de um colégio que ele havia dado à minha tia Antonieta Ribeiro, de presente de formatura como professora. Papai, então, escreveu de São Paulo a meu avô, pedindo que suspendesse sua mesada de estudante, e passou a trabalhar na Secretaria da Faculdade e dar aulas particulares aos vestibulandos, até se formar. Meu avô transferiu o colégio para São Paulo de Muriaé, onde nasceu minha irmã Lúcia da Cunha Ribeiro e, de lá, foram para o Rio de Janeiro. Meu pai chegou ao Rio de Janeiro sem conhecer ninguém e começou a advogar aqui, ali, acolá e, com muito esforço, conseguiu ser considerado o melhor advogado do Brasil em sessão do Senado. Houve, inclusive, uma ocasião em que o presidente do Supremo, não lembro se era o José Linhares ou o Orozimbo Nonato [da Silva], mandou colocar uma cadeira na tribuna e pediu para que meu pai falasse a seus pares. Só ele e Rui Barbosa receberam essa honra.

Tivemos, como grandes clientes, a Dupont, o Banco Holandês, o Banco Português, a Leopoldina Railway, a Cantareira, o Severino Pereira da

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Silva com todas as indústrias têxteis; de cimento, da Paraíso e Barroso, a E. G. Fontes com todas as companhias de exportação e importação, o Frigorífico Anglo, a Auxiliadora Predial, a Assicurazioni Generali di Trieste e Venezia, a Shell, a Antartica, a Tabacaria Londres, entre outros.

Memória MPM – Na política, seu pai tinha tradição mais getulista ou mais udenista?

Renato da Cunha Ribeiro – Papai era essencialmente democrata. Numa oportunidade, em 1945, saiu no noticiário que o brigadeiro Eduardo Gomes havia sido ovacionado na avenida Rio Branco. Acontece que ele estava saindo do nosso escritório, onde havia ido receber um auxílio para a campanha, dado pelo Severino Pereira da Silva. O Eduardo Gomes era udenista; meu pai já não estava muito de bem com o Getúlio Vargas, porém, somente depois de 1937 passou a lhe fazer oposição. Getúlio era um homem sui generis. Combatia e, quando sentia que o adversário era mais duro, o chamava até ele. Dessa forma, chegaram cartas da presidência da República para meu pai, oferecendo-lhe, por duas vezes, a Procuradoria-Geral do Ministério Público Federal, duas vezes o cargo de ministro do Supremo, uma, o cargo de ministro da Justiça e outra, o de ministro da Fazenda. Não temos essas cartas, pois papai devolveu todas com seu cartão de visitas pregado, com os seguintes dizeres: “Meus ideais são incompatíveis com seu regime. Obrigado, não aceito.”. Os homens daquele tempo eram diferentes dos de hoje.

Meu pai fez um habeas corpus no Supremo Tribunal de uma causa famosa, que permitiu que voltassem ao Brasil, do exílio, em pleno regime ainda ditatorial, em 1945, Armando Sales de Oliveira, Otávio Mangabeira e Paulo Nogueira. Posteriormente, recebemos um telegrama do Otávio Mangabeira,

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já como governador da Bahia, agradecendo e lembrando este fato. Papai era dessas coisas... houve muitas outras causas políticas.

Um dia, ao sair do escritório, convidou-me para jantar fora, porque iria fazer um discurso em um comício pela liberdade do Luís Carlos Prestes, na Associação Brasileira de Imprensa. Eu sabia que ele não era comunista, então questionei o porquê de participar em um comício deste tipo. Ele me respondeu que como havia feito o habeas corpus para que o Otávio Mangabeira voltasse ao Brasil, se não discursasse em prol da liberdade do Prestes, estaria sendo parcial e não deveria sê-lo.

Papai presidiu a OAB por duas vezes, entidade também presidida pelo meu irmão Raul, que, a semelhança do papai, recusou o convite para integrar o Supremo, pois não quis largar o conforto da casa e da família para se enfiar em um apartamento frio de Brasília, somente pelo nome que vinha com o cargo. O Ruy era o chefe do Departamento Jurídico da Light; um dia, o convidaram para se tornar presidente, porém ele não quis, pois teria de abandonar o escritório, de onde vinha a maior parte do seu rendimento. Ele também era tenista; defendeu o Brasil nas Olimpíadas Universitárias de Mônaco e deram seu nome, como homenagem, a um campeonato de de tênis [Taça Ruy da Cunha Ribeiro, Tijucas Tênis Club]. Foi um grande tenista, um dos três melhores do Brasil à época, sendo o primeiro do Rio de Janeiro, campeão carioca. Tinha um coração enorme. Foi vice-presidente da Aerovias Brasil e vice-presidente das Lojas Murray, juntamente com Álvaro Sá. Construiu a vida dele como advogado.

O governo inglês enviou para as pessoas gradas – meu pai entre elas, pois grande parte das companhias em que ele advogava eram inglesas –, uma

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caixa com artefatos de pedra, uma faca de madeira, um cinzeiro, um peso de papéis e alguns pegadores de livro. Tenho um certificado assinado por Sir Vincent Bradley, que era presidente da Casa dos Comuns. Este pedaço de madeira pertencia ao Parlamento, no Palácio de Westminster; são fragmentos do bombardeio. Papai tinha muito apreço por esses objetos e, quando faleceu, os dividimos entre os irmãos; agora estão com os netos.

A secretária do papai, dona Ana, era germanófila. Eu, com dez anos na época, fui influenciado por ela e acabei torcendo pela Alemanha no início da Guerra Mundial. Quando iam ao escritório os clientes ingleses de meu pai, embora havia, também, alemães e italianos, a dona Ana começava a discutir sobre a guerra com os presidentes das empresas inglesas, dizendo que o Hitler estava certo. Papai ficou em uma situação complicada, porque, ao mesmo tempo em que não podia prescindir dos serviços dela, não a podia impedir de expressar suas ideias; então, trocou os horários da dona Ana, passando a trabalhar pela manhã em nossa casa: assim não prejudicava o andamento do trabalho e ela não brigava mais com os clientes.

Quando papai morreu, o Raul ficou na chefia do escritório. Ele sabia de Direito como pouca gente sabe. Quando foi nomeado juiz de alçada, cargo equivalente ao de desembargador, não podia mais advogar, portanto passou a chefia do escritório a meu outro irmão, Ruy da Cunha Ribeiro. O Ruy morreu em 1979. Em 1980, fui nomeado procurador da Justiça Militar e tive que assumir o cargo na Bahia. Então, o meu sobrinho Ruyzinho assumiu a chefia do escritório, o que foi uma escolha muito interessante, pois não sou bom administrador. Se eu tivesse substituído meus irmãos, talvez o escritório não tivesse feito cem anos, porque não tenho o tino administrativo que meu sobrinho tem para dar essa continuidade. Não que eu seja trêfego demais, só

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não tenho essa qualidade de administrar, como o Chateaubriand, que sempre pensou no bem do Brasil, mas não entendia de administrar o seu império jornalístico e cometeu muitos erros. Mas era um encanto de pessoa! Um dia, ele me pegou pelo braço, me levou ao jornal e me contou histórias dele, rindo às gargalhadas. Convivi com muitas pessoas boas e com grandes personagens da nossa cultura jurídica e política.

Quando fui receber a Medalha Sobral Pinto, na Ordem dos Advogados do Brasil, também tinha sido agraciado meu colega de turma, Ricardo Pereira Lira, filho do José Pereira Lira, que levou meu irmão Raul a advogar na Light e, depois, o Ruy e o Ruyzinho. Quando foi minha vez de ir para a Light, eu estava advogando internamente para o Severino Pereira da Silva. O senhor Pereira era um grande homem. Tinha uma fazenda-zoológico aqui pertinho, com leão, zebra, camelos, lhamas. Fiquei hospedado lá muitas vezes. Um dia, nosso amigo Paulo da Costa Reis, advogado da Light, e também substituto de advogado de ofício, perguntou ao meu sobrinho, Ruyzinho, se gostaria de ocupar uma vaga de substituto de advogado de ofício, na Justiça Militar. Já que o Ruyzinho não se interessava por essa área, disse ao Paulo que me procurasse, e eu agradeci o convite. Aceitei-o.

Assim, no ano de 1970, entrei para a Justiça Militar como segundo substituto de advogado de ofício da Segunda Auditoria da Aeronáutica. Lá passei dez anos. Em 1980, fui nomeado procurador militar pelo ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, no governo do João [Baptista de Oliveira] Figueiredo. Naquela época, o Ministério Público fazia parte do Ministério da Justiça. Eu senti que a tendência era acabar com os substitutos de advogado de ofício, e ao mesmo tempo, prestigiar o Ministério Público. Por esse motivo, comecei a me esforçar para ingressar na instituição. Não havia, então, concurso.

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Eu devo à bondade e à misericórdia de Deus ter entrado no Ministério Público, porque sonhar em passar da Defensoria de Ofício ao Ministério Público Militar era um pulo de carreira que não tinha nada a ver uma coisa com a outra. Tenho uma gratidão e admiração enorme pelo Edgard de Brito Chaves Júnior, que sabia da minha pretensão, e me disse que quem poderia indicar novos membros, ao procurador-geral Milton Menezes da Costa Filho, era o pai dele, Milton Menezes da Costa, um amor de pessoa, a quem também agradeço e muito admirava. Porém, o Milton Menezes da Costa era nosso adversário na Ordem dos Advogados: era presidente do Sindicato e nós, componentes da Chapa Azul, desde a época do meu pai, embora sempre tenhamos lutado com honra e dignidade, sem falsidade. Comecei, então, a procurar pessoas que pudessem me garantir essa passagem.

O Ruy, meu irmão, morou muito tempo com a sogra e, quando ela faleceu, ele decidiu levar a esposa para desanuviar a cabeça na Europa. Em função disto, foi até a Policlínica de Botafogo, cujo laboratório pertencia ao meu cunhado, fazer o exame e tomar as vacinas exigidas e lá descobriu que estava com leucemia. Aquilo foi um baque! Na sexta-feira pediu-me que preparasse meu currículo e o entregasse a ele; na segunda-feira, teve um pequeno derrame e foi internado no Hospital Adventista Silvestre, onde teve outro derrame, no tronco cerebral, e morreu.

Enquanto ele estava internado, conversei com o Caetano da Fonseca Costa, que substituiu meu irmão Raul na presidência do Tribunal de Alçada. Perguntei se ele se dava bem com o Milton Menezes da Costa; respondeu que apenas se cumprimentavam, nada além, mas que o advogado Pedro Farah tinha uma relação boa com ele. Na missa do meu irmão, o Caetano disse que havia conversado com o Farah, que aguardava uma ligação minha e me passou o

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número de telefone. Liguei e ele me informou que havia marcado uma reunião com o Milton na sexta-feira, no Sindicato.

Fui até lá, o Farah ainda não havia chegado; o Dr. Milton me viu, perguntou se gostaria de falar com ele, respondi que sim e fomos até sua sala. O Raul já era falecido; o Dr. Milton, então, perguntou como estava o Ruy, e respondi que acabara de falecer. Depois, chegamos ao assunto da reunião: comentei que estava havia dez anos na Justiça Militar e que tinha sabido da abertura de duas vagas no Ministério Público, para uma das quais tinha muito interesse em ser nomeado, e queria saber se ele poderia fazer isto por mim. Isso foi em novembro; ele falou que passaria o Natal em Brasília e que, no início de janeiro, entraríamos em contato novamente.

No dia 2 de janeiro, a Graça, minha esposa, atendeu ao telefone e me avisou que o Dr. Milton queria falar comigo. Ele me perguntou se aceitaria a vaga de Salvador. Respondi que se me mandasse para Timbuctu iria feliz. Agradeci muito, e, inclusive, mandei uma placa de prata a ele como sinal da minha gratidão. Teve, em seguida, todo o processo de aprovação no SNI – Serviço Nacional de Informações. Depois da indicação fui nomeado e, no dia da minha posse, fui a Brasília, onde o Dr. Milton Filho me recebeu e me disse: “Renato, você é um homem de sorte, porque você pediu à única pessoa para quem eu não poderia negar, que é o meu pai.”. Abriu as gavetas e me mostrou todos os outros pedidos: havia do Eduardo Gomes, de diversos generais, e até do Figueiredo, presidente da República. Entrei nomeado, pois não existia ainda o concurso, mas me senti à vontade, porque não havia feito nada de desonesto, simplesmente pedi. E, quando abriu o primeiro concurso, em 1981, me inscrevi.

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Assim que fui nomeado pelo Dr. Milton, a primeira coisa que fiz foi ir ao quinto andar, pedir exoneração do cargo de advogado de ofício. Em seguida, fui à Câmara dos Deputados encontrar o Célio de Oliveira Borja; o procurei para perguntar como andava o processo de efetivação no Ministério Público e ele me informou que estava para votação. Então, lhe disse que precisava ir ao Rio de Janeiro, depois seguir para a Bahia, alojar minha esposa em um apartamento menor, e pedi que me avisasse com antecedência o dia da votação. O Célio pediu ao chefe de gabinete que pegasse meu telefone e me ligasse diariamente, para me manter atualizado do andamento. Ele segurou o processo para que desse tempo de eu ir para Salvador. Deixei minha mulher, minhas duas filhas e os cachorros em um apartamento menor em Copacabana e fui dirigindo para Salvador. Chegando lá, tomei posse na casa do Kleber, na festa de aniversário do filho dele. Passei cinco meses e voltei.

Na Bahia, meu primeiro caso foi a greve da Polícia Militar. Um fator interessantíssimo foi que, ao chegar a Salvador, o Kleber de Carvalho Coêlho, um excelente sujeito e, posteriormente, grande procurador-geral, pediu férias para estudar para o concurso e tive que assumir o cargo no lugar dele. No início, era para eu ficar na Bahia permanentemente, porém, tomei posse em 9 de maio e, em 9 de outubro, já estava de volta ao Rio de Janeiro. Mas eu tinha ido mesmo para não ficar, tanto que, antes de embarcar, o Ruyzinho me perguntou como ficaria o escritório e eu respondi: “Você toma conta e eu continuo recebendo, porque eu preciso, você é meu sobrinho e nós nos amamos.”. Ele, então, disse que eu havia dado um bom motivo, mas que isso se estenderia por seis meses e depois veríamos como iria ficar. Em cinco, já estava de volta ao Rio de Janeiro, porque entrei firme trabalhando em Salvador. Eu e o Kleber zeramos os processos na Auditoria, enquanto as outras ainda estavam

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cheias. Quando soube que a Vera Regina Coelho Americano – um encanto de pessoa –, havia se casado e mudado para Brasília, liguei para o Dr. Milton e escrevi uma carta de dez páginas, mostrando como a Auditoria estava zerada. Nela escrevi que estava longe dos meus livros, do meu escritório, da minha família, sozinho em Salvador. Assim, pedi retorno ao Rio de Janeiro para a vaga da Vera. Isso foi numa sexta-feira; na terça-feira, o Dr. Milton me ligou, dizendo que a Vera não havia aberto a vaga dela para mim, porque nós éramos substitutos, mas que a minha carta o tinha comovido e queria saber se aceitaria assumir a 2ª Auditoria da Marinha, em caráter precário, e condicionado a viajar para Salvador sem direito a diárias, sempre que preciso.

Memória MPM – Em quais casos o senhor atuava na advocacia?

Renato da Cunha Ribeiro – Foram vários. O E. G. Fontes, por exemplo, deixou para a filha, aproximadamente, dois mil imóveis, entre casas, terrenos, apartamentos e edifícios. Ele tinha uma imobiliária chamada Metropolitana, somente para cuidar de seus próprios imóveis. A Imobiliária Metropolitana era nossa cliente, tanto quanto o Banco Português e os negócios de importação e exportação, também do Fontes, um grande milionário. A Maria Thereza Fontes Williams, sua filha, hospedava reis e rainhas, como os da Suécia, quando vinham ao Brasil. A casa deles, na Pedra Bonita, no alto da Boa Vista, parecia um castelo, com campo de tênis, todo o conforto. Eu fui lá muitas vezes quando era pequeno. O Brasil tem coisas que nunca foram difundidas; essas coisas até podem parecer bobagens e, às vezes o são, porque muito mais que a riqueza, é importante a honradez, o bom nome, o significado da vida, o amor. Creio em tudo isso. Dinheiro é secundário, mas é interessante para que se possa viver melhor.

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Memória MPM – E no Ministério Público?

Renato da Cunha Ribeiro – No Ministério Público também tive casos importantes. O primeiro que peguei foi a greve da Polícia Militar, em Salvador e toda a Bahia. Fui para lá substituir o Kleber. Quem assessorou os IPMs foi meu querido amigo Montenegro, já falecido.

Peguei dois processos de IPM, um da Marinha e, o outro, do Exército, com mais de mil páginas cada um. Em Salvador, fui ao Comando Naval; a Polícia Militar não estava jurisdicionada ao Exército nem à Marinha, ela não tinha nada a ver com nada! Mas o Exército abriu um inquérito policial militar, porque considerou aquela greve uma infração à Lei de Segurança Nacional e, a Marinha, porque houve um entrechoque com as tropas da Polícia Militar, o que ocasionou a morte de um oficial da Polícia Militar e ferimentos em outro, que ficou paralítico. Dessa forma, a Marinha abriu um IPM e o Exército, outro. Neste ponto, o general e o almirante pararam de se falar e, quando houve a passagem de comando do general, o almirante foi para o mar para não ter de ir à posse. Havia essa crise quando cheguei lá.

Logo que cheguei fui ao 2º Distrito Naval e falei com o oficial de segurança, que me disse que a situação estava feia; cada um querendo puxar as coisas para si. Era um clima de guerra, a Polícia Militar em greve, Exército e Marinha se entrechocando. Falou que eu deveria resolver. Encarei! Me apresentou dois sargentos, que iriam ser meus seguranças pelo tempo que ficasse na Bahia, porque o clima não estava mesmo dos bons, mas não aceitei; não gosto de homem, principalmente atrás de mim [risos]. De lá saí para visitar algumas amigas e fui jantar. Pedi o jantar e, de repente, entrou um cavalheiro vestido de calça cinza e camisa branca, que parou em frente ao caixa,

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sacou um revólver e deu dois tiros para o alto olhando para mim. Levantei, fui ao caixa e perguntei ao moço que lá trabalhava se não iria chamar a Polícia. Ele respondeu que o homem que havia atirado era oficial da Polícia e, não adiantaria nada. Eu pensei que o negócio era comigo mesmo.

Essa greve teve repercussão nacional, todos os noticiários de rádio e televisão estavam acompanhando e avisaram que chegaria um procurador do Rio de Janeiro para oferecer, ou não, a denúncia. Eles queriam saber como iria resolver aquela briga e eu disse que não atenderia a ninguém da imprensa. No dia que foi anunciada a minha chegada, todos correram para o aeroporto, enquanto eu desembarcava na rodoviária. Da rodoviária peguei um táxi e fui para o Grupamento de Fuzileiros Navais de Salvador, onde iria ficar hospedado. Eles me procuraram em todos os hotéis, mas fiquei 25 dias no Grupamento, sem que ninguém me descobrisse ali.

Um dia, houve uma passagem de comando da Marinha em um almoço, e lá estava uma apresentadora de televisão. Ela me perguntou se eu havia vindo do Rio de Janeiro e se conhecia o Renato da Cunha Ribeiro, que apresentaria, ou não, a denúncia. Falei que não o conhecia, e quando me perguntou o que eu fazia, desconversei, dizendo que era também da imprensa. Aos poucos, fui estudando o processo. A primeira coisa que fiz foi decidir a questão do Exército e da Marinha, na qual mandei trocar peças dos dois IPMs, de um para o outro. E decidi que o IPM do Exército julgaria exclusivamente a questão da greve e o da Marinha os acontecimentos da “Calçada”, ou seja, o tiroteio que aconteceu na Praça da Estação. Assim, distribuí as atribuições salomonicamente, metade para cada um, e eles se acertaram. Havia duas preocupações principais: a primeira era saber a verdade. Como fiz isso? Bem, eu estava hospedado nos fuzileiros: mandei chamar os oficiais da Marinha

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que conhecia e os que ainda não. Falei a cada um que queria a verdade; alguns insistiram que já tinham prestado depoimento, mas pedi que mesmo assim falassem a verdade. Queria saber quem da Marinha havia atirado, quem estava lá, quem não estava, toda a verdade.

O negócio aconteceu da seguinte forma: era comandante do Grupamento de Fuzileiros o Fragata Ribeiro, e o governador baiano Antônio Carlos [Peixoto de] Magalhães, dividiu a cidade em três zonas. Encarregou a Aeronáutica de ocupar, com as viaturas da PM, pois a cidade estava sem policiamento, o trecho da cidade que ia do aeroporto à Barra. Da Barra ao Campo Grande encarregou o Exército e, a área da Cidade Baixa, ficou ao encargo da Marinha. Foi ali que houve o confronto. Quando os grevistas souberam que suas viaturas estavam sendo ocupadas por soldados da Marinha fuzileiros, eles começaram a retomá-las à força, com violência. Ao tomar conhecimento, o Ribeiro mandou recolher todos os carros da Marinha ocupados por fuzileiros, para evitar o confronto. Mas não conseguiu evitar o da Praça da Estação, porque enviou uma Kombi que chegou no exato momento em que a guarnição da Marinha armada era rendida pelos oficiais grevistas. Temendo um tiroteio, o Ten. Ribeiro, não o comandante, chegou de mãos levantadas, mas foi recebido a tiros pela PM. Com sorte, conseguiu não ser alvejado, pois se jogou ao chão. Porém, quem estava no carro, vendo essa situação, reagiu. Foi assim que morreu o oficial da PM e o outro ficou paralítico. Apurado este entrevero, pude então resolver outras questões. Um dos chefes da greve era o major Etiene Falcão, que era considerado o terror da PM. Duas chacinas tinham sido comandadas por ele, além de ter chefiado o ataque a um carro. Em uma ocasião, saí à noite com um amigo, o Schmitt, oficial da Aeronáutica. Estávamos em um grupo e paramos em Piripiri, que era zona de influência e

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moradia deste major. Sentei em um barzinho, pedi um uísque e quem estava sentado ao meu lado? O major Etiene! Não pude fingir não tê-lo visto. Então, o cumprimentei, ele cumprimentou de volta, suspendi o jantar que havia pedido, porque não ia afrontá-lo, mas não dei uma de covarde também... Terminei meu uísque, tranquilamente, pedi a conta, dei boa-noite a ele e fui embora.

Outra vez, tive um caso assim na Auditoria da Marinha, em que fiquei a três metros de um sujeito do Comando Vermelho, em uma sala de audiências. Era um sujeito incrivelmente forte, já havia matado três ou quatro e tentado matar mais dois. Na sessão em questão, tinha intencionado fugir. Algumas coisas são inexplicáveis... Uma vizinha minha, esposa de um advogado, tinha visões. Ela descreveu o sujeito certinho, antes de ele ser preso pelo capitão Sérgio, sem tê-lo visto, e me disse que ele estava ameaçando matar a mim, ao Sérgio e ao juiz e que planejava fugir no dia seguinte. Disse, ainda, que a fuga tinha sido planejada por outra pessoa que era sarará. Não tive dúvidas. Depois que ela me disse isso tudo, fui falar com o Arnaldo, que era comandante do Distrito Naval do Rio de Janeiro e mais tarde ministro-chefe das Forças Armadas, meu amigo desde que ele estava na Escola Naval. Falei que havia uma fuga premeditada para tal dia, de um sujeito que iria prestar depoimento na Auditoria e, então, pedi que reforçasse todo o policiamento da área. Quando encostei o carro na vaga privativa junto ao prédio da Auditoria, o capitão Sérgio chegou dizendo ter prendido o Sarará e que era ele quem estava armando a fuga do Cláudio. Começou a sessão, eu acusei, com muito respeito, o qual tenho sempre por todos os réus. Acho que o réu também merece respeito, assim como o juiz, o advogado e o promotor. Olhei para ele: estava uma fera! Quando acabou a sessão, o oficial de Justiça perguntou-lhe o que faria; ele disse que mataria esse promotor e esse juiz e fugiria. Quando ouvi

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isso o encarei de lado, ele me encarou de volta e abaixou os olhos. Quando fez isso, pensei ter ganhado. Ao fim da sessão, o datilógrafo colocou-se entre nós para me defender, mas eu não tinha pedido, não!

Memória MPM – E os réus da Lei de Segurança Nacional?

Renato da Cunha Ribeiro – Há muita gente por aí requisitando indenização, sob o argumento de que estava defendendo a democracia durante o regime militar, mas as coisas não eram bem assim. Eles queriam implantar o comunismo no Brasil, todos eles! Eu vivi isso. Uns eram leninistas, outros maoístas, mas todos comunistas de carteirinha assinada; queriam simplesmente derrotar o governo e implantar o comunismo. Ninguém queria uma democracia, fosse liberal ou socialista.

A prova disso é o crime do marinheiro inglês, que pedi para que não mandassem para mim o caso. Um marinheiro inglês veio em uma força-tarefa para aqui, no Rio de Janeiro, saltou porque queria conhecer Copacabana, pegou um táxi e, quando chegou à esquina da Rua Larga, foi fechado por um Volkswagen: os ocupantes saíram de metralhadora em punho, mataram o rapaz, de 20 anos – chamava-se David–, gritando que era preciso implantar o comunismo e soltaram panfletos. Isso é combater a ditadura? Assassinar um homem da companhia de gás, em São Paulo, na frente dos filhos e depois vir dizer que sofreu tortura?... Ora, dê-se ao respeito! Prove que sofreu tortura! Prove, que dou crédito. Do contrário, não. Direito não é brincadeirinha. Quem afirma precisa ter provas. Quantos outros crimes horrorosos eles cometeram?...

Memória MPM – O crime do marinheiro inglês foi na sua época de defensor de ofício. O senhor defendeu os réus?

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Renato da Cunha Ribeiro – Não. Achei aquilo uma barbárie tão grande que pedi que os autos fossem distribuídos para outro advogado de ofício. Uma vez, em outro caso, tive que parar a defesa e virar para os meus dois réus, um deles filho do Nelson [Falcão] Rodrigues que, enquanto o pai chorava de desgosto na sala de espera, ele estava sentado mascando chiclete, junto ao amiguinho, afrontosamente de pernas cruzadas diante do Conselho, conversando. Parei e disse: “Um instante. Ou os réus se comportam como réus, ou vou parar a defesa, porque eles não estão com uma postura digna de um Tribunal. Estão afrontando o Tribunal, o Ministério Público e a defesa.”. O promotor do caso era o Ruiz, meu grande amigo, que posteriormente teve um derrame e está há três anos de cama – é enteado do ministro Nelson Sampaio Barbosa, do Superior Tribunal Militar –, uma pessoa maravilhosa, muito amiga.

Nós, os antigos – não sei como está hoje –, éramos uma turma unida, compacta. Já entrevistou o Jorge Luiz Dodaro? Ele é um encanto de pessoa; sempre foi comedido. Pegávamos os piores casos; ele pegou o do Riocentro. Desejei-lhe boa sorte no caso, do qual escapei por pouco, porque soltaram uma bomba no Espírito Santo e esse processo veio para mim. Mas é aquele negócio, sou um homem que não cultivo ódios, graças a Deus. Às vezes faço conceitos não muito lisonjeiros de certas pessoas, mas sempre digo os porquês. Nunca é a ponto de odiar ou querer mal, pelo contrário. O Ministério Público, para mim, sempre foi um lugar de devoção. Nunca sofri qualquer pressão por parte de nenhum procurador-geral para julgar assim ou assado, para acusar ou deixar de acusar, para denunciar ou não.

Memória MPM – O senhor recorda outros casos impactantes em que tenha atuado?

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Renato da Cunha Ribeiro – O assalto a duas agências do Banco do Brasil, realizadas por pessoas que ajudaram a organizar o Partido dos Trabalhadores, como o sargento Antônio Prestes de Paula. Ele e outros se reuniram na Bahia, oriundos de vários lugares como Serra Pelada, Salvador, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, para se organizarem e assaltarem agências bancárias naquele Estado. Na agência de Vitória da Conquista, renderam o gerente e sua família: encostaram a arma na cabeça das crianças para que o gerente abrisse a agência mais cedo na manhã seguinte, o que ele fez. Na fuga, espalharam “miguelitos” pelo chão, aquelas bolas de ferro com três pontas. Como tiveram sucesso, decidiram assaltar outra agência do Banco do Brasil, agora em Salvador, mas nessa foram presos em flagrante delito. Todos eram filiados ao PT. O partido disse que não tinha relação nenhuma com o caso. Mas, na casa deles, foram encontrados exemplares do jornal interno do PT e, esses jornais diziam algo assim: “Temos que tomar o poder. Seja legalmente ou através da guerrilha urbana.”. Esse processo dos assaltos foi no ano de 1986, depois da Anistia e antes da Constituinte. Após o Carnaval de 1986, denunciei os acusados.

Memória MPM – O senhor voltara do Rio de Janeiro para a Bahia?

Renato da Cunha Ribeiro – Por uns quatro ou cinco anos, sempre que se precisasse da minha presença, retornava à Bahia, mesmo estando no Rio de Janeiro. Viajar à Bahia era muito bom, porque eu ia, voltava, sabia o tempo que ficaria lá; não era como no início, que tinha ido para ficar permanentemente. Lá não havia tantos processos como no Rio de Janeiro. Na Bahia, os processos na Auditoria eram de deserção, etc. Em um mês, estavam resolvidos.

Memória MPM – E em Brasília?

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Renato da Cunha Ribeiro – Havia acúmulo de processos. Quando fui para Brasília era procurador-geral Eduardo Victor Pires Gonçalves e encontrara, ao chegar, uma pilha de processos enorme na Auditoria. Todos se referiam a coronéis, tenentes-coronéis, comandantes de guarnições, e eu pensei: “Qual é a diferença entre um soldadinho e um coronel? Vamos julgar. É ou não é?”. Fui resolvendo tudo, arquivava ou denunciava o que achava necessário e a pilha acabou. Em função disso, o Eduardo se encantou comigo. Eu entrava na sala dele para pedir alguma coisa, ele dizia que já estava concedido. Era uma excelente pessoa. Não tinha muitas luzes jurídicas, mas tinha consciência disso e não se metia no Tribunal a fazer defesa oral; dedicou-se a administrar e fez isso muito bem. Viu que o gaúcho estava no Amazonas, o paraense estava no Rio Grande do Sul, então colocou cada um em seu lugar de origem. Eu gostava muito dele, porque era uma pessoa que sabia reconhecer suas limitações e agia dentro desse conceito.

Memória MPM – E a Associação?

Renato da Cunha Ribeiro – Foi o Paulo Duarte Fontes, um colega encantador, quem me levou para a Associação. Cheguei a integrar a diretoria, mas não fiz nada. A Associação, naquele período, não tinha tanto poder ou importância; era diretor, mas ficava por isso mesmo. Fui diretor de futebol do Flamengo também. Participei do Conselho da FEBEM, antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. Recebi da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, a Medalha Sobral Pinto. O Ministério Público muito me honrou com a minha condecoração. Aposentei-me não por desejo, mas por duas coisas que me contrariaram: a primeira é que teria que atuar em Brasília, o que não era de minha vontade; a segunda, não me aposentando, estava impedindo que colegas, que vinham atrás de mim, tivessem promoções, o que achava injusto com eles,

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pois eu já havia me realizado no Ministério Público. Tive uma carreira boa, sem queixas, tanto lá quanto na advocacia. Sempre procurei pautar meus atos segundo me parecia ser a vontade de Deus. Sempre pedia, antes de entrar em uma sessão, a proteção divina, que Deus me iluminasse para que eu pudesse fazer justiça acima de tudo. Minha carreira foi essa, com muitos processos.

Houve um caso especial, que desejo relatar. Quando eu era advogado de ofício, um réu comum, após o interrogatório, procurou-me e me pediu para não ser recambiado para o Presídio da Ilha Grande. Ao ser inquirido, revelou que os detentos estavam armados e planejavam uma fuga em massa para o domingo seguinte, Dia das Mães, e como ele só respondia a um processo de assalto comum a Banco, não desejava participar da fuga planejada, mas, se não aderisse, seria morto.

Pretextei uma nova oitiva do réu e comuniquei o fato ao Theódulo Rodrigues de Miranda e ao Agapito, respectivamente, juiz e promotor do processo, e o levamos ao conhecimento das autoridades militares. Passado o fim de semana, na terça-feira seguinte, fomos procurados pelo coronel ao qual tínhamos feito a comunicação, e ele nos confirmou que, efetivamente, os detentos estavam armados, o plano de fuga era real, e mais, que cada preso tinha o nome e endereço de um juiz militar, um procurador, ou um advogado de ofício, e que, caso conseguissem fugir, ao chegarem em terra firme, a missão era dirigir-se ao endereço e matar a autoridade ali residente.

Memória MPM – Gostaria de deixar mais alguma coisa registrada?

Renato da Cunha Ribeiro – Deus me abençoou com o ingresso no Ministério Público Militar. A Justiça Militar é a melhor justiça humana, é a justiça do homem que mais se assemelha à de Deus. É um colegiado no qual

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oficiais deixam as suas atribuições daquele dia para serem juízes; procuram acertar e agir como juízes: se informar, consultar o auditor, o procurador, o advogado de ofício. Esses militares, que vão ser juízes, vestem a toga sem despir a farda. Continuam homens e oficiais íntegros que procuram sempre acertar e fazer a justiça. Fui abençoado, ainda, em fazer parte da Justiça Militar com os homens que a constituíram na época, como o Afonso Carlos Agapito da Veiga, um grande exemplo para o Ministério Público; o Paulo da Costa Reis; o Dr. Theódulo Rodrigues de Miranda, que, para mim, foi o melhor juiz da Justiça Militar; o irmão dele, Teócrito Rodrigues de Miranda, também foi um grande juiz, entre muitos outros grandes juízes. Theódulo e eu éramos muito amigos; quando ele morreu fiz um discurso no enterro e saiu uma crônica do Ziraldo [Alves Pinto], na que ele cita meu nome por esse discurso. Éramos muito amigos mesmo, ele morava de fronte a minha casa e íamos juntos para o Carnaval, para a fazenda em Barbacena, para os eventos. Nossos julgamentos ficaram na história, porque sempre agimos com isenção de ânimos, dentro da lei e da justiça. Éramos como irmãos. Minha família gostava muito dele, tanto os meus irmãos, como meu sobrinho Ruyzinho, que dirige o escritório hoje, onde já está, também, meu sobrinho-neto e logo estará o sobrinho-bisneto. O escritório, com 106 anos, é, além disso, meu ingresso no Ministério Público, outro motivo de gáudio para mim. Deus é muito bom e misericordioso, só tenho a agradecer a Ele essas bênçãos e outras mais. Que Deus abençoe a todos nós e, principalmente, ao Brasil, que tanto precisa. O Ministério Público para mim sempre foi fonte de alegria. Meus colegas também.

Memória MPM – Muito obrigado pelo seu depoimento.

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OEntrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar, em Brasília, no dia 4 de março de 2015, por Gunter Axt.

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João Ferreira de Araújo nasceu em 29 de julho de 1929, em Lagarto, Sergipe. É filho de Valério Ferreira de Araújo e Vitalina Maria de Jesus. Casou-se com Cherubina Bastos Melo de Araújo. Serviu na Marinha. Formou-se técnico em enfermagem. Graduou-se em Direito pela antiga Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1962. Atou na advocacia trabalhista. Ingressou na carreira do Ministério Público Militar em 1981, aprovado em concurso público, nomeado em 10 de agosto procurador militar de segunda categoria, cargo atualmente denominado promotor de Justiça Militar. Inicialmente, exerceu suas funções na 1ª Auditoria da 12ª Circunscrição Judiciária Militar, em Manaus. Em 1982, foi removido para o órgão do MPM junto à 1ª Auditoria da Marinha da 1ª CJM, no Rio de Janeiro. Em 12 de dezembro de 1991, foi promovido a procurador militar de primeira categoria. Em 20 de fevereiro de 1995, ascendeu ao cargo de subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 16 de março do mesmo ano, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor é natural de uma cidade pequenina que fica em Sergipe, não é? Lagarto?

João Ferreira de Araújo – É, isso, município de Lagarto. Nasci em um sítio que ficava num distrito rural.

Memória MPM – Mas o sítio produzia?

João Ferreira de Araújo – Produzia tudo, mas não para comércio, apenas para sustento familiar.

Memória MPM – E o senhor teve muitos irmãos?

João Ferreira de Araújo – Minha mãe teve vinte e um filhos!

Memória MPM – O senhor é qual desses vinte e um?

João Ferreira de Araújo – Eu sou o quarto.

Memória MPM – O senhor é de 1929?

João Ferreira de Araújo – Exato.

Memória MPM – O senhor estudou onde?

João Ferreira de Araújo – Lá. Aquilo era um atraso tremendo. O Brasil inteiro era muito atrasado. Onde tinha um desenvolvimento regular era em São Paulo, que havia algumas indústrias. Quando se queria qualquer coisa, era preciso importar da Alemanha. O Brasil veio a se desenvolver mais com o governo Juscelino [Kubitschek]. Não votei no Juscelino, porque eu era lacerdista; achava o Carlos Lacerda muito inteligente, grande orador. Ele era da UDN. Mas reconheço que Juscelino descobriu o Brasil. Então, fiz o curso

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primário numa escola particular, que funcionava em uma casa de família. Era ali que os meninos aprendiam o bê-á-bá.

Memória MPM – E recebiam uma subvenção do governo do Estado?

João Ferreira de Araújo – Não, nem recebiam; não tinha subvenção nenhuma. A minha professora não recebia nada, coitada!

Memória MPM – Como era o nome dela, o senhor lembra?

João Ferreira de Araújo – Nunca me esqueci: Júlia e era casada com um cara que se chamava José. Não era formada em Escola Normal. Eu não tinha dificuldade de aprendizagem e com seis meses sabia as quatro operações, lia e escrevia rudimentarmente. Com esses conhecimentos elementares, fui crescendo, melhorando. De Sergipe, fui para Salvador, onde consegui entrar na Escola de Aprendizes de Marinheiros. Terminei o curso e fui para o Rio de Janeiro, para jurar a bandeira.

Memória MPM – Em que ano o senhor foi para o Rio?

João Ferreira de Araújo – Final de 1945...

Memória MPM – Já tinha terminado o Estado Novo do Getúlio...

João Ferreira de Araújo – Já tinha terminado. Já tinham votado a Constituição de 1946. Então, foi final de 1946. Fiquei embarcado onze meses. Consegui desembarcar em Natal, na base naval. E lá entrei para um curso particular. Embarcado não daria para estudar. Consegui, assim, concluir o curso do Art. 91, um tipo de supletivo. O Art. 91 foi criado para contemplar as pessoas que haviam estudado nos seminários católicos. Os padres não queriam que fossem oficialmente reconhecidos, para que as pessoas não apresentassem

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falsas vocações ao sacerdócio, tentando garantir acesso à educação. Depois, com as matérias que havia cursado, consegui me matricular no Colégio Estadual do Rio Grande do Norte e conquistei meu certificado de ginásio. Fiz o colegial, o Clássico, pois minha intenção já era cursar Direito.

Memória MPM – E por que o senhor pensava já em fazer Direito?

João Ferreira de Araújo – Eu tinha evoluído um pouquinho, já sabia de alguma coisa, como, por exemplo, que o Direito era muito bom para o indivíduo conhecer os seus direitos e os dos outros. E também tinha o seguinte, lá no interior, com aquele atraso danado, havia muitas questões de terra, que eram mediadas por um cidadão chamado José Deda – mas a turma o chamava de Zeca Deda. Qualquer problema, recorriam ao Zeca Deda, que vinha montado em um burro, armado com um “papo amarelo” – uma carabina Winchester calibre 44, de 1873, muito popular na região do cangaço; apelidaram-na assim por causa do cabeçote, o elevador de munição, em metal amarelo. Ele traçava os rumos daquelas propriedades. Ninguém discutia mais. Diziam ser advogado, mas ele não era coisa nenhuma! Nem provisionado, nem rábula; era o homem que resolvia. Eu achava aquilo importante. Molecote, dizia assim: “Quero ser o Zeca Deda, é o homem que resolve os problemas, é o homem que tem força, é o homem que manda.”. Então, quando consegui ir para o Rio de Janeiro, prestei o vestibular. Passei na Faculdade de Direito do Distrito Federal.

Memória MPM – E como foi o tempo de Faculdade?

João Ferreira de Araújo – Foi ótimo. Bons professores, alunos excelentes. Tenho boas recordações.

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Memória MPM – O senhor chegou a participar do movimento estudantil?

João Ferreira de Araújo – Não! Eu precisava trabalhar e estudar. Não tinha tempo para a política. Só queria viver a minha vida. Mas a turma toda não se ligava em movimento estudantil.

Memória MPM – O senhor se lembra de quem eram os seus professores?

João Ferreira de Araújo – Lembro-me bem do [ José] Pereira Lira, do Direito Civil, chefe da Casa Civil do presidente [Eurico Gaspar] Dutra. Excelente professor! Um paraibano. Direito Constitucional era ministrado pelo Afonso Arinos de Melo Filho, o velho. Em Ciência das Finanças tínhamos um deputado federal baiano, muito expressivo, o Aliomar [de Andrade] Baleeiro. Eram muitos professores...

Memória MPM – A frequência era obrigatória ou não?

João Ferreira de Araújo – Era obrigatória.

Memória MPM – Tinha que assistir à aula e responder à chamada?

João Ferreira de Araújo – Tinha, exatamente. Eles não faziam a chamada, mas conheciam todo mundo. Se o cara faltasse, apontavam. Eu me inscrevi na turma da noite, mas, quando podia, também frequentava a turma da manhã. Havia somente duas Faculdades de Direito no Rio, a Nacional e a do Distrito Federal. Falavam que o curso de Contabilidade se transformaria em Direito, o que aconteceu logo em seguida. Imagine: hoje, em qualquer esquina, tem uma Faculdade de Direito.

Memória MPM – E tinha colegas mulheres também?

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João Ferreira de Araújo – Era misto. Mas havia poucas. No vestibular da Faculdade do Distrito Federal tínhamos de optar pelo teste de francês ou inglês. Optei pelo segundo. Na minha frente foi chamada uma moça de Fortaleza, Raimunda. Ela falava inglês muito bem. Eu apenas lia e traduzia, mas tinha dificuldade para falar. Ao que parece, por ter se empolgado com o desempenho desta moça, o professor ultrapassou o tempo dela. Ficou conversando com ela. Eu, de longe, ouvindo ele a arguindo, pensei: “Estou lascado! Quando chegar a minha vez, o desnível vai ser evidente, vai ser um fracasso!”. Mas ele só me deu um textinho comercial para traduzir, bem fácil. Não me perguntou nada demais. Comecei a traduzir e ele já me interrompeu dizendo que estava satisfeito. Saí dali aliviado. Afinal, parece que a fluência dela me salvou, porque ocupou o tempo dela e o meu. Salvou-me, a Raimunda! Foi uma boa aluna. Os alunos, de modo geral, eram muito bons. Eu também me esforçava. Fiquei em segunda chamada apenas em Ciência Política. O professor era um baiano, bem agitado, mas muito bom mestre. Ele, contudo, não indicava bibliografia. Dizia que a matéria estava toda nos jornais. Bastava lê-los. Mas na segunda chamada me saí bem.

Memória MPM – E o senhor chegou a fazer algum estágio durante a Faculdade?

João Ferreira de Araújo – Ah, fiz! O estágio em escritório de advocacia me parece que não era oficial. Você podia fazer se tivesse um amigo, um contato. O estágio válido era na Defensoria Pública.

Memória MPM – Certo. Como advogado de ofício?

João Ferreira de Araújo – Como advogado de ofício.

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Memória MPM – Quartanista?

João Ferreira de Araújo – Exatamente. Era muito bom o estágio. Não havia muitas vagas, e os alunos tinham que se interessar, porque se não se interessassem, eles não ficavam dizendo, “Faça isso, aquilo...”. Se o cara não fizesse, azar!

Memória MPM – O senhor se formou em 1962, então?

João Ferreira de Araújo – Sim. O Altamir [Souza Neto], um colega de turma, hoje aposentado, acabei encontrando em Brasília, pois ele atuou como consultor do Exército. Era um cara conhecidíssimo de todo mundo na escola, porque, naquela época, aconteceu um crime no Rio de Janeiro, chamado “O crime do Sacopã”. Um segundo-tenente, Bandeira, da Aeronáutica, matou um funcionário do Banco do Brasil, numa rixa passional. Esse funcionário do Banco do Brasil era meio chantagista. Naquele tempo, um dos melhores empregos era ser funcionário desse Banco. Então, ele era elegante, namorava moças bonitas no Rio e fazia chantagem. Depois que a moça se apaixonava, ele tirava fotografias de todo jeito e (diziam) ficava chantageando, tomando dinheiro. Aconteceu que esse tenente tinha uma namorada, chamada Marina, que foi chantageada pelo tal bancário. O Bandeira marcou um encontro com ele, armou uma emboscada, na Ladeira do Sacopã. O Bandeira foi a julgamento e condenado. O advogado dele foi o João Romeiro Neto, um dos melhores criminalistas do Rio de Janeiro, que chegou a ministro do Superior Tribunal Militar. Evandro Lins era muito amigo dele e, na época, já estava como ministro do Supremo, indicando-o para o Tribunal Militar. Durante o regime militar, infartou e morreu, dizem que de preocupação com as cassações e os processos políticos. Morreu como

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ministro na ativa. Pois bem, ele foi o advogado do tenente Bandeira, que foi condenado a 18 anos, uma coisa assim... Depois de algum tempo, ainda prisioneiro, ele namorou a filha do Tenório Cavalcanti.

Memória MPM – Ah, o homem da Lurdinha!

João Ferreira de Araújo – O homem da Lurdinha. O homem da capa preta, deputado federal, sempre reeleito. Vivia em Duque de Caxias. A casa dele era uma fortaleza. Pois bem, o Tenório se interessou pela defesa do tenente. Fez uma confusão danada, mas não conseguiu nada também. O tempo passou, e depois de ter cumprido a pena fizeram uma revisão; descobriram um erro no processo e ele foi absolvido. Recuperou os direitos dele na Aeronáutica e terminou aposentado como coronel. Ele foi julgado no Rio pelo 2º Tribunal do Júri. O juiz era um cara muito preparado.

Memória MPM – Mas foi julgado na Justiça Comum, então?

João Ferreira de Araújo – Na Justiça Comum. O auxiliar do juiz era o Souza Neto, piauiense, superestudioso, novo, substituto. O juiz substituto, no Tribunal do Júri, não presidia o julgamento, embora auxiliasse o titular no resto. Mas o Souza Neto era tão preparado que o titular entregou o caso para ele. Com a transferência do Distrito Federal, ele veio para Brasília; continuou a carreira e chegou a desembargador. Um julgamento anulado, depois de tanto tempo da pena cumprida... Foi um caso interessante.

Memória MPM – E o senhor chegou a fazer a assistência desse processo na época?

João Ferreira de Araújo – Não, não. Eu só acompanhava, pelos jornais, pelos noticiários.

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Memória MPM – E durante esse período da Faculdade, o senhor trabalhava na Marinha?

João Ferreira de Araújo – Trabalhava na Marinha. Quando terminamos o curso, nós alugamos uma sala, uma turma: o Luís Chaves Nunes, já morreu, um cearense; o Armando, de quem eu não tenho notícias; o Vital, excelente aluno; o Jacó Sitrinbal; acho que eram esses. Montamos o escritório em conjunto, na Lapa, na Rua das Marrecas, que hoje se chama Pablo Duarte. Um edifício novo, de doze andares, creio.

Memória MPM – Antes dos Arcos da Lapa?

João Ferreira de Araújo – Sim, antes de atravessar os Arcos. Começamos logo a advogar. Eu era da Marinha, mas em toda folga, estava no escritório. Eu chamava clínica geral: tudo que viesse estava bom. Era para praticar. Depois saiu o Vital, foi convidado por um dos nossos professores. O Armando saiu em seguida. No final, ficamos eu, o Jacó e o Nunes. Eu e o Jacó passamos a fazer acidentes de trabalho, que na época aconteciam muitos. Existiam duas Varas de Acidentes de Trabalho no Rio e havia uma conversa de que seria uma atividade difícil. Como havia poucos advogados que atuavam na área, tinham muitos clientes. O Jacó tinha tino para bons negócios e percebeu a oportunidade quando mencionei o assunto a ele. Era uma advocacia que rendia muito e, na verdade, facílima, porque a gente fazia uma petição e xerocopiava já uma porção, só trocando aquilo que era específico do caso. Dava indenização, então, era fácil ganhar dinheiro. O trabalhador quebrava uma unha, dava indenização. Chegou ao ponto que tínhamos tantos clientes, eu e o Jacó, que já não aceitávamos qualquer um, só acidente de coluna, de crânio... As indenizações não eram grandes,

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mas o volume as tornava interessantes. E havia garantia de pagamento, porque o juiz lançava a indenização na Carteira de Trabalho, em audiência, e o trabalhador a recebia na Vara. Dali, a gente ia para o Banco para receber o dinheiro das seguradoras; levávamos uma mala daquelas “007” e a enchíamos! Tinha de apertar, às vezes, os maços de dinheiro para caber tudo. Era uma boa!

Memória MPM – O dinheiro da indenização...

João Ferreira de Araújo – Era; a gente cobrava 20% das indenizações. E naquele tempo não tinha o INPS, o governo não entrava nesse negócio de acidentes do trabalho. Era tudo seguradora particular, feito na base do acordo. Chegava lá, na hora da audiência, com a seguradora e o cliente e fazia um acordo.

Memória MPM – E a Justiça do Trabalho reconhecia o acidente de trabalho?

João Ferreira de Araújo – Ah, reconhecia. Pagavam! Porque era com a seguradora.

Memória MPM – Agora, nesse meio tempo, o senhor continuava na Marinha?

João Ferreira de Araújo – Continuava na Marinha.

Memória MPM – Mas com trabalho em terra?

João Ferreira de Araújo – Só em terra. Eu embarquei apenas por onze meses, desembarcando no Rio Grande do Norte para ver se conseguia estudar. E depois foram mais 13 meses e 13 dias fazendo uma viagem de

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volta ao mundo. Eles chamavam de circunavegação. A Marinha tinha feito uma viagem assim havia uns 25 anos. Em 1953, fez outra no navio-escola Almirante Saldanha, e eu fui convidado para acompanhar. Parece-me que não fez mais nenhuma dessas depois.

Memória MPM – Quem era o comandante da embarcação?

João Ferreira de Araújo – Ah, eu acho que era comandante Barata; já morreu.

Memória MPM – Como foi esse convite?

João Ferreira de Araújo – Eu tinha feito um curso técnico de enfermagem, porque para continuar na Marinha, só tendo uma profissão. Passei em primeiro lugar, no Rio. Ganhei a viagem de volta ao mundo, como prêmio. O ministro da Marinha era o almirante [Renato de Almeida] Guillobel, quem dava uma oportunidade ao indivíduo que estudasse e se classificasse bem. Recebi soldo em dólar, o que era a grande vantagem.

Memória MPM – O senhor já era casado nessa época?

João Ferreira de Araújo – Era casado.

Memória MPM – Bom, então deu para fazer um bom pé de meia.

João Ferreira de Araújo – Ah, eu tenho uma boa propriedade em Nova Friburgo, fiz bastante economia; um sítio que comprei justamente com esse dinheiro.

Memória MPM – E como foi essa viagem? Onde é que vocês pararam? O senhor lembra?

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João Ferreira de Araújo –Tenho em casa um livro de toda a viagem. Saímos do Rio de Janeiro para Dacar, África do Norte.

Memória MPM – Certo, Senegal.

João Ferreira de Araújo – É. De Dacar, fomos ao Marrocos, Casablanca, donde partimos para a Europa. Passamos por vários países.

Memória MPM – E qual é a história da louça do Café Filho?

João Ferreira de Araújo – O Café Filho... O [ José Carlos] Couto [de Carvalho] esteve aqui? Ele que contou isso?

Memória MPM – O Dr. Couto esteve aqui. Ele contou outra história divertida também.

João Ferreira de Araújo – Hummm... Bem, foi o seguinte: o imediato era um capitão de fragata, comandante Moutinho, muito elegante, trabalhador, mas bastante enérgico. Nós levamos muita coisa do Brasil: laranja, frutas... para distribuir, como propaganda do que a gente produzia. Mas todo mundo queria comprar umas coisinhas para trazer, principalmente nos Estados Unidos, coisas que não existiam no Brasil, ou eram proibitivas. Tínhamos uma cota, dada pelo posto do indivíduo. Quer dizer, os oficiais tinham uma cota maior. O navio foi com uma turma de guardas-marinhas, cuja cota era menor. Os subalternos tinham cotas baixas. Quando chegava no cabo, no marinheiro, a cota era uma bobagem. Em Jacarta, na Indonésia, vi uma louça japonesa, a Noritake, por um preço de banana: um aparelho de cem peças, completo! Mas excedia a minha cota, sem mencionar que não tinha lugar no navio para acomodar aquilo. Mas, fazendo parte do serviço de saúde, atinei que tinha, acima da casa de máquinas, um compartimento que ninguém usava, por causa

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do calor: “Rapaz, eu vou aproveitar esse espaço aqui!”, pensei, disposto, então, a correr o risco. Comprei! Era a oportunidade de ter um aparelho daqueles. Contratei uns marinheiros, controlei a movimentação do guarda-marinha que estava de serviço e quando ele foi para um lado, entrei com o meu caixote de louça. Guardei lá e deixei escondido. Um dia, o Moutinho mandou fazer uma inspeção para ver quem tinha coisas a mais do que podia. Aí descobriu esse caixote de louças naquele lugar. E fosse de quem fosse, ele mandou jogar na água. Quando eu vejo, vem um guarda-marinha e uns marinheiros tirando o caixote: “Para onde vão com esse caixote?”, perguntei, e ele disse: “É para os imediatos jogarem na água. Você sabe de quem é?”. Eu disse: “É meu!”. Aí me veio na mente, “Fiz um troço que não devia ter feito, mas fiz!”; então falei: “Mas não tem problema, pois estou levando de presente”. Eles: “Para quem?”, e eu: “Para o Café Filho”. Era o vice-presidente da República, e me veio na mente porque era amigo de meu sogro, lá do Rio Grande do Norte. O meu sogro era um cabo eleitoral fiel dele. O Café Filho era uma pessoa simples. E a bordo, durante a viagem, mandou uma mensagem de Natal para mim. Aí, acharam que eu tinha relações com Café Filho, mas não tinha, praticamente não o conhecia, era questão lá do meu sogro. Então, o guarda-marinha parou, botou o caixote no chão e foi lá falar com o Moutinho, que mandou guardar. Ninguém jogou o caixote fora, que desse modo foi salvo! Acontece que não era para o Café Filho e nem eu dei depois que voltamos, porque não era dele mesmo, era para mim! Depois fiquei com remorso: “Não devia ter dito isso de jeito nenhum!”. Mas me veio aquilo na mente, num lampejo, foi como uma legítima defesa. Esse jogo até hoje está na família; dei para o meu filho. Ele usa pouco.

Memória MPM – E depois que o senhor retornou dessa viagem?

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João Ferreira de Araújo – Ah, voltei para o Hospital Central da Marinha, trabalhando na Clínica Oftalmológica. Gostava de lá, era gente boa! E gostavam de mim porque era responsável: não precisava ninguém mandar, eu sabia o que tinha que fazer; se tivesse alguma dúvida, perguntava para quem sabia. O médico era um excelente profissional. Então, o Tribunal precisou de um enfermeiro e de um médico, para a assistência dos ministros e eu fui indicado; já era bacharel em Direito. O ambiente era excelente. Fui recebido muito bem. O presidente me acolheu com um destaque que nunca tinha recebido. Eu não tinha preguiça de fazer o serviço, mesmo se passava da hora de ir embora: acho que agradei. O cargo era muito bom, o vencimento melhor, então, achava que essa era a maneira certa de proceder.

Memória MPM – Como é que o senhor vivenciou os episódios de 1963 e de 1964? A rebelião dos sargentos, a paralisação dos marinheiros?...

João Ferreira de Araújo – Dentre os subalternos, na Marinha, um dos mais influentes era meu conterrâneo, um cara muito inteligente e bem--intencionado. Ele me convidou para entrar no Sindicato dos Marinheiros. Mas eu, educadamente, recusei porque percebi que não era o caminho cer-to, que aquilo daria errado. Um Sindicato de Marinheiros seria percebido como inversão da hierarquia. A Revolução, de fato, terminou com aquilo. Ele foi processado. Acompanhei, portanto, todo esse processo à distância, sem me envolver.

Memória MPM – Nesse período no Tribunal Militar, o senhor conviveu com os ministros. O senhor se lembra dos ministros?

João Ferreira de Araújo – Me dava muito bem com todos eles. Eram indivíduos de idade avançada para os padrões da época, isto é,

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perto dos setenta anos. Dei-me muito bem com o general [Oliympio] Mourão Filho.

Memória MPM – Pois é, agora vem aquela história que o Couto contou, da injeção [risos]. Como foi?

João Ferreira de Araújo – Bem, quando houve aquela Marcha dos Cem Mil, com os estudantes nas ruas, o presidente Mourão Filho mandou, por prevenção, fechar o Tribunal, que seria cercado. As mulheres, ele determinou que saíssem pelos fundos e fossem embora. Nós ficamos lá. Fui aplicar-lhe um calmante, por injeção. Ele disse: “Não! Não quero tomar essa p., não!”. Retruquei: “Mas é bom para acalmar, com toda essa situação...”. Ele: “Se eu dormir nessa m., eles vão invadir o Tribunal!”. “Mas não é para dormir, não. É só para não ficar nervoso.”. “Não quero uma espetada no traseiro com o Tribunal sob ameaça de invasão!”. O Mourão falava assim mesmo. Ele não quis, não tomou a injeção. Era um cara um tanto quanto agitado, falava muito, mas era boa gente.

Memória MPM – Ele chegou a declarar para a imprensa que era uma “vaca fardada”, um trocadilho irônico com a “vaca sagrada”. E de quais outros ministros o senhor lembra?

João Ferreira de Araújo – O mais antigo do Tribunal era o [ José Norberto] Vaz de Mello, um mineiro civil que sabia tudo do Tribunal. O [Octávio] Murgel de Rezende tinha sido do Ministério Público. E tinha um dos generais antigos do Exército, o [Pery Constant] Bevilacqua, daqueles que a palavra valia por qualquer assinatura. Acabou sendo aposentado compulsoriamente, por decreto.

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Memória MPM – Qual foi o problema?

João Ferreira de Araújo – Bem, o Bevilacqua era um homem convicto, mas eu creio que a gota d’água foi um problema qualquer envolvendo o aterro em Copacabana. Ele e o Mourão Filho se opuseram a algo que tinha relação com o aterro e isso criou atrito. O Bevilacqua entrou em desacordo com o Costa e Silva. Ele ficou magoado, porque foi aposentado junto com Evandro [Cavalcanti] Lins e Silva, do Supremo. Acho que a mágoa maior foi ter sido aposentado compulsoriamente junto com outros. O Bevilacqua era de grande envergadura.

Memória MPM – E o senhor, de alguma forma, acompanhava os casos que eram julgados?

João Ferreira de Araújo – Eu assistia às sessões do Tribunal. Ficava lá ouvindo... Havia uns camaradas chamados de linha-dura, outros que não eram. O general Amaury Kruel era tido por linha-dura, votando contra os subversivos, como eram chamados os que se opunham ao regime militar. O Kruel tinha tendência de acompanhar o voto do relator que estivesse endurecendo contra os chamados subversivos. Já o Bevilacqua tinha sua opinião própria. O [Ernesto] Geisel, eu achava muito inteligente. Era um cara caladão, não era de andar conversando com ninguém, nem mesmo com os colegas generais. Mas quando dava o bote, era certo. Às vezes, em uma discussão com os ministros, quando chegava a vez de ele falar, conseguia fazer com que os outros o seguissem. O procurador-geral do Ministério Público, Eraldo Gueiros [Leite], era dos poucos com quem o Geisel conversava. O Eraldo Gueiros era muito simpático, versátil, preparado.

Memória MPM – Algum caso mais rumoroso do qual o senhor se lembre?

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João Ferreira de Araújo – Pois é... Eram muitos processos políticos, mas não me lembro deles isoladamente, a não ser um ou outro. Eu me lembro bem do processo do [ João de] Seixas Dória, governador de Sergipe, defendido por um famoso ministro, aposentado, do Supremo Tribunal Federal. Conseguiu a absolvição do Seixas, que foi solto. Também recordo o julgamento do governador de Goiás, Mauro Borges Teixeira.

Memória MPM – Como era o Ministério Público nesse tempo?

João Ferreira de Araújo – O Ministério Público era muito diferente de hoje, em tamanho, em tudo. Além do procurador-geral, só havia um subprocurador-geral substituto. Os outros eram procuradores de terceira, de segunda e de primeira categoria. O Ministério Público funcionava dentro do prédio do Tribunal. A dependência não era apenas física, pois os membros eram nomeados pelo governo, que também escolhia o procurador-geral. O Ministério Público era ligado diretamente ao Poder Executivo, subordinado ao ministro da Justiça.

Memória MPM – Mas o senhor fez o concurso em 1981... Como foi o concurso?

João Ferreira de Araújo – O último concurso acontecera no finalzinho dos anos 1950 e os aprovados foram tomando posse no início da década de 1960. O Dr. Milton Menezes da Costa [Filho] tinha sido aprovado nesse concurso e era, em 1981, o procurador-geral de Justiça. Foi uma iniciativa muito importante que o Dr. Milton tomou, que permitiu a transformação da instituição, pois havia anos nomeavam-se apenas substitutos. Inscrevi-me. Eu vinha me preparando, estudando, vivenciando aquele ambiente, de forma que não foi difícil conquistar a aprovação.

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Memória MPM – No que consistia o concurso?

João Ferreira de Araújo – Havia a prova escrita e a oral. A matéria era reduzida: Direito Penal Militar, Processo Penal Militar, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Regulamentos Militares... Não era muita coisa. A prova escrita, no meu caso, foi uma denúncia. Era um caso meio complexo. E depois vinham as perguntas, porque na denúncia o cara tem que entender Direito Penal. Nas provas orais, os pontos eram sorteados. Mas houve um problema comigo, porque sortearam o ponto 10, para mim, mas, quando me chamaram, o avaliador se enganou e me inquiriu sobre outro ponto; de nada me valendo, portanto, os minutinhos anteriores à prova que temos para preparar o ponto. Tive de improvisar. Por sorte, havia me preparado bem e soube responder. Era o Dr. Milton, o procurador-geral. Ele se apercebeu do equívoco quando chamou o próximo candidato. Ao final da avaliação, reconheceu a falha e me perguntou, em nome da banca, se eu gostaria de ser reavaliado no ponto que me fora originalmente sorteado. Perguntei se aquela situação prejudicava alguém, ele me respondeu que não. Assim, decidi ficar com o ponto com o qual tinha sido examinado. Afinal, estava seguro do meu desempenho. De fato, depois, verificando as notas, constatei que haviam me dado uma avaliação boa.

Memória MPM – Quer dizer, acabou saindo tudo bem.

João Ferreira de Araújo – Saiu tudo bem. Mas houve uma matéria em que fui mal no exame oral, porque fui arrogante, me julguei professor do assunto. Entrei em discussão com um membro da banca, a Doutora Marly [Gueiros Leite]. Ela entrara no Ministério Público junto com o Dr. Milton, em 1963: ambos haviam passado no mesmo concurso. Eu fui deselegante

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porque ela discordou de uma posição minha: “Essa teoria, onde o senhor leu?”, me perguntou. Eu respondi que tinha sido na livre-docência da Esther de Figueiredo Ferraz. Ela insistiu: “Discordo.”. Aí retruquei: “Entre a Esther de Figueiredo Ferraz e a senhora, fico com Esther de Figueiredo Ferraz.”. Foi um comportamento ignorante, do qual me arrependi. Talvez, se tivesse sido mais educado, minha nota teria sido um pouco melhor nessa matéria. Quando todo mundo terminava a prova, eles se retiravam; reuniam-se reservadamente e, então, colocavam o resultado num quadro-negro. Foi, claro, uma decepção quando vi minha nota baixa em Direito Penal. Mas a culpa foi minha. Eu era meio vaidosinho, achava que sabia muita matéria. Num curso de Pedagogia que tentei fazer na Cândido Mendes, esculhambei um cara que me fizera uma pergunta. Era, na verdade, um avaliador, que estava justamente observando como eu reagiria diante de um questionamento de um aluno. Quando me dei conta, antes de ser reprovado no curso, desisti de terminá-lo. Devia ter aprendido a lição ali, mas repeti o erro no concurso.

Memória MPM – O senhor fez também um curso de Medicina Legal, não é?

João Ferreira de Araújo – Talvez alguma especialização, ou aperfeiçoamento, porque esse assunto estudávamos já no curso de Direito. Nosso professor era um baiano, psiquiatra, Jurandir Manfredini.

Memória MPM – Qual foi a Promotoria que o senhor assumiu?

João Ferreira de Araújo – A de Manaus. A Auditoria era boa. Jurisdicionava o Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre. Havia dois procuradores e dois juízes, o [Antonio da Silveira Pereira] Rosas, o titular; e o Roberto Lima e Silva, que era o substituto dele.

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Memória MPM – Algum caso que tenha lhe chamado mais a atenção?

João Ferreira de Araújo – Atuei em um processo envolvendo o depois presidente Lula. Um discurso que ele pronunciara em 1980, num comício em uma cidade do Acre, que ainda era território, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Quando lá cheguei, ele já havia sido denunciado. Faltava fazer o julgamento. Li o processo. Não era nada demais. O Lula dissera lá uma coisinha à toa, que terminou sendo interpretada como um incitamento à sublevação: “Está na hora da onça beber água!”. Interpretaram isso como se estivesse querendo dizer: “Está na hora de tomar o poder!”. O Lula, naquela época, era um cara de pouco estudo e que não analisava muito o que dizia. Eu falei para o Rosas, um cara mão-pesada, que ele teria uma surpresa, porque eu não via nada demais no processo para sustentar a denúncia. Disse-lhe que não pediria a condenação do Lula e que terminaria fazendo a sua defesa. O Rosas retrucou: “Você não é doido! Ele quer tomar o poder!”. Respondi: “Não! Essa Lei de Segurança é muito rígida e o Lula não tem esses conhecimentos todos. Na hora que ele está falando, assim, diz bobagem. Não acho que seja tão grave o que ele está dizendo. Não vai tomar o poder, porque não tem condições para isso.”. Antes do julgamento, o advogado do Lula, o [Luiz Eduardo] Greenhalgh, entrou com um recurso qualquer e o processo trancou; acho que foi para Brasília e não tive mais notícias. Não sei o que aconteceu, se acabou sendo julgado ou arquivado. Fiquei exatamente seis meses lá. No início de 1982, consegui a minha remoção para o Rio de Janeiro.

Memória MPM – Assumiu em qual Auditoria?

João Ferreira de Araújo – No Rio fiquei na 2ª Auditoria da Marinha, até fins de 1991, princípios de 1992, quando aceitei promoção para Brasília.

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Nessa época, passamos de cinco para treze subprocuradores-gerais. Pedi a minha aposentadoria três anos depois da promoção, mas acabei ficando em Brasília, onde moro. Minha esposa gostou de Brasília e não quis mais voltar para o Rio.

Memória MPM – E na Auditoria da Marinha no Rio de Janeiro, como foi?

João Ferreira de Araújo – Uma turma muito boa. Os colegas eram o [Roberto] Moutinho e o Sérgio Luiz Chamme, ambos não concursados, mas muito bacanas e competentes. O juiz substituto era o Dr. Carlos Alberto Marques [Soares], que foi a ministro do Tribunal. Está aposentado. Dava-me muito bem com o Marques. Ele tem um irmão subprocurador-geral, o Dr. [Mário] Sérgio Marques [Soares].

Memória MPM – E o senhor recorda algum caso que tenha lhe chamado a atenção nesse período? Teve um IPM para o qual o senhor foi designado a atuar no Hospital Naval, não foi?

João Ferreira de Araújo – Sim, sim. Lembro-me. Um processo com um cabo, parece que a denúncia foi minha. O cabo era encarregado de fazer o pagamento, mas embolsava o dinheiro e enganava a turma. Teve outro processo envolvendo um furto e o oficial não comunicou ao diretor do Hospital. Eram coisas corriqueiras.

Memória MPM – Qual era a natureza mais frequente dos feitos? Furto, indisciplina?

João Ferreira de Araújo – Indisciplina, furto, deserção. O mais comum era deserção. Não houve nenhum processo que chamasse a atenção.

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Memória MPM – E em Brasília?

João Ferreira de Araújo – A Procuradoria ainda funcionava no prédio do Superior Tribunal Militar. Os gabinetes não eram privativos; três procuradores partilhavam uma sala.

Memória MPM – O senhor chegou a acompanhar, em 1993, a edição da nova Lei Orgânica?

João Ferreira de Araújo – Não. Eu estava por dentro do que estava acontecendo, mas não me lembro de ter dado algum palpite; não participei.

Memória MPM – Como tem sido a vida de aposentado depois de 1995?

João Ferreira de Araújo – Normal, boa. Eu pensava advogar, mas desisti. Nossa aposentadoria não é ruim, dá para viver. O Ministério Público tornou-se uma boa carreira. Hoje, acho até mais vantagem fazer concurso para o Ministério Público do que para juiz. Porque nós chegamos a subprocurador--geral, e, quando nos aposentamos, temos o mesmo vencimento dos ministros dos Tribunais Superiores. O juiz, dificilmente chega ao Superior Tribunal Militar. Então, sem mencionar a questão da vocação, em termos de salário, acho que é melhor o Ministério Público do que a Justiça Militar.

Memória MPM – Há mais alguma coisa que o senhor gostaria de deixar registrada?

João Ferreira de Araújo – Servi na Marinha por 18 anos, período no qual fiz muitos amigos. Nunca fiz inimizades. Fui muito feliz lá, assim como na Justiça Militar e no Ministério Público. Não me arrependo de nada do que fiz e me considero um vitorioso, pois o espaço que conquistei foi graças ao

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meu próprio esforço. Saí do interior de um Estado pequeno e pobre e cheguei a subprocurador-geral na Capital Federal. Na mocidade, temos mais tempo e oportunidades surgem, mas, em muitos casos, depende da gente, mesmo, aproveitar essas possibilidades que a vida nos reserva. Eu vejo que as pessoas desperdiçam chances, não aplicam bem o seu próprio tempo e complicam demais. Acho que a vida é essencialmente boa. Procuro viver com otimismo e sem complicação.

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Entrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar, em Brasília, em 5 de março de 2015, por Gunter Axt.

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Marco Antonio Pinto Bittar nasceu em 12 de julho de 1946, no antigo Distrito Federal, hoje município do Rio de Janeiro. É filho de Antonio José Bittar e Maria Pinto Bittar. Casou-se com Lúcia Maria Alvim Souza Bittar. Bacharelou-se em Direito, pela Universidade Federal Fluminense, em 1972, além de ter concluído o curso de Administração de Empresas. Foi delegado da Polícia Federal entre 1977 e 1981, ano em que ingressou, por concurso público, na carreira do Ministério Público Militar como procurador militar de segunda categoria, cargo inicial, hoje denominado promotor de Justiça Militar. Exerceu, inicialmente, suas atividades na Procuradoria da Justiça Militar da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, em São Paulo. No ano seguinte, passou a funcionar junto à 11ª Circunscrição Judiciária Militar, em Brasília. No período de 1984 a 1985, exerceu o cargo comissionado de chefe de gabinete do procurador-geral da Justiça Militar. Em 1984, foi nomeado ao cargo de procurador militar de primeira categoria, regressando, no entanto, à situação anterior no ano seguinte. Em 1987, foi novamente promovido a procurador militar de primeira categoria. Em 1992, foi nomeado subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 1993, foi nomeado corregedor-geral do Ministério Público Militar e eleito vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Militar. Foi eleito, além disso, em 1991 e, novamente, em 1993, presidente da Associação Nacional do Ministério Público Militar. Em 1994, foi nomeado procurador-geral da Justiça Militar. Em 1995, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor é natural do Estado do Rio de Janeiro?

Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, da época em que era Distrito Federal. Minha certidão de nascimento descreve: “natural do Distrito Federal” [risos]. Depois, passou a ser o Estado da Guanabara e, finalmente, Estado do Rio de Janeiro.

Memória MPM – Pois é [risos]. Me parece que a integração deixou algumas sequelas...

Marco Antonio Pinto Bittar – Sem dúvida. Foi uma situação que eu vivi. A fusão pretendeu apagar os traços do Estado da Guanabara. Não há como negar que era mais próspero, intelectualmente mais exuberante, enquanto que o Estado do Rio sempre foi mais atrasado. Na minha impressão, o atrasado engoliu o próspero. Na época, eu era funcionário do Estado da Guanabara e trabalhava na assessoria parlamentar do governador no Palácio. O meu chefe era um intelectual, um jurista. Cada setor tinha sua própria biblioteca, mas a melhor do Palácio Guanabara era a da assessoria parlamentar, com livros novíssimos, adquiridos na semana ou no mês. Apesar de não existir bibliotecário, as consultas eram constantes, em ordem de fornecer elementos para os pareceres da assessoria. Infelizmente, eu vi aquilo tudo ser despejado, as prateleiras serem forçadas abaixo e os livros serem recolhidos com carrinhos de mão, como se fosse entulho. Isso me marcou. As pessoas chegaram com a imagem de quem ou o que era da Guanabara, não prestava. O Estado da Guanabara era muito bem-integrado às novas teorias e práticas administrativas, na pragmática científica, e o que veio do Rio era atrasado. Se usávamos uma determinada ficha, de repente ela não mais importava, não interessava, tínhamos que usar as do outro lado da Baía.

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Memória MPM – Eu sinto que algumas instituições do Rio de Ja-neiro ficaram fraturadas, cindidas, até quase recentemente. O caso do Minis-tério Público do Rio de Janeiro talvez seja um, de uma instituição que demo-rou muito até conseguir essa união, justamente pelas culturas administrativas serem tão diferentes.

Marco Antonio Pinto Bittar – A verdade é que não houve integração na prática. Bem, meu chefe conseguiu um cargo na Alta Administração da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e me convidou para acompanhá-lo. Claro que aceitei! [risos]. Ainda mais depois que vi como estava ficando o Palácio Guanabara. Permaneci talvez um mês no limbo antes disso. Nós, que éramos da administração anterior, sofríamos uma espécie de assédio emocional. Todo dia, no fim da tarde, havia uma reunião para decidir quem ficaria e quem iria embora. Enquanto não se soubesse quem ficaria, onde seria realocado, a situação era horrível, de pressão diária. Com este quadro em andamento, fui então para a Prefeitura do Rio, e lá exerci o primeiro cargo de maior importância, algo como: diretor da Divisão de Documentação do Departamento de Registro da Superintendência... O nome era tão grande que não cabia no carimbo! [risos]. Eu atuava sozinho na Divisão, somente eu mesmo! [risos]. Então, passei um mês ou dois naquele sofrimento de indefinição, mas, em compensação, os seguintes seis ou oito meses na Prefeitura do Rio, num momento muito bom. Isso porque a Prefeitura assimilou tudo que provinha do Estado da Guanabara. Em seguida, porém, depois desses poucos meses, fui chamado por um concurso de delegado de Polícia, ao qual eu havia me inscrito pouco antes, e fui para Brasília fazer a Academia Nacional de Polícia. Se não me engano, esse curso da Academia foi em 1976. Em 1977, fiquei em Brasília já como delegado da Polícia Federal.

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Memória MPM – E a opção pelo Direito, como surgiu em sua vida? Havia tradição na família?

Marco Antonio Pinto Bittar – Não havia. Meu pai ficou viúvo com quarenta anos, estando eu com doze. Um amigo dele levou as apostilas do vestibular e disse-lhe: “Olha, você vai parar de ficar nessa tristeza permanente, lembrar que tem um filho e que tem apenas quarenta anos – trouxe aqui as apostilas para você estudar e tentar fazer vestibular no que quiser, mas eu, em particular, fiz para Direito.”. Meu pai aceitou a proposta e leu as apostilas nos meses seguintes à morte de minha mãe; prestou vestibular e fez Direito, aos quarenta anos. Quando era jovem, ele havia tentado o curso de Odontologia, mas acabou não concluindo, pela incompatibilidade de sustentar o emprego e a faculdade.

Memória MPM – Seu pai trabalhava em que nesse período?

Marco Antonio Pinto Bittar – Ele era sargento-enfermeiro do Exército. Durante a Segunda Guerra Mundial participou da evacuação de feridos dos Estados Unidos para o Brasil numa operação conjunta com os norte-americanos. Durante um ano foi de avião para Nova York e/ou Miami, retornando em navio-hospital americano com os brasileiros feridos, no último ano da Guerra.

Trabalhava no Hospital Central do Exército, mas era vendedor pracista também, nas horas vagas. O acúmulo de tarefas o fatigava. Com o falecimento da minha mãe, ele acabou mudando de rumo, se formando em Direito aos quarenta e cinco anos, e se formando aos sessenta em Administração. Estou contando a história dele, porque é importante para minha própria vida, visto que sou filho único e que fui criado praticamente

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apenas pelo meu pai. Quando terminei o Colégio Pedro II, eu fiz vestibular para Medicina. Naquela época, havia uma nota mínima acima da qual você estava aprovado, mas nem sempre havia vagas. Então, eu fui excedente de Medicina em 1966 ou 1967. Esta turma de excedentes da qual eu fazia parte conseguiu, com dona Iolanda da Costa e Silva, ser a primeira turma de Medicina de Manaus. Mas, naquele período, eu considerava que sair do Rio de Janeiro para ir a Manaus seria uma excursão à selva [risos]. Era a visão que se tinha no período: não muito aprazível em relação ao Norte. Acabei não aceitando. Fiz, no lugar disso, vestibular para Medicina mais uma vez; porém, fui pior no exame. Resolvi então – talvez seguindo os passos de meu pai – tentar o Direito. Após dois meses estudando, consegui passar em cinco Faculdades, escolhendo a Federal Fluminense para cursar.

Memória MPM – E como foi esse tempo na Faculdade? Muito agitado?

Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, porque foi em 1968... A minha turma era interessante. Nós éramos 100 alunos, salvo engano, sendo a metade no turno da manhã e a outra parte, à noite. Nós tínhamos vários colegas agitadores, e havia também muitos policiais infiltrados: não sei se eles eram policiais e por isso estavam como alunos, ou se eram alunos porque eram policiais [risos]. Mas havia muitos entre a turma. Os agitadores, especialmente aqueles vinculados ao Centro Acadêmico, faziam todo o tipo de movimentos. No primeiro ano, em particular, houve bastante movimentação, depois foram ficando mais calmos, ou foram acalmados. Muitos dos policiais não escondiam sua origem. Talvez, alguns, cuja identidade nós nunca tenhamos sabido. Eu sempre fui quieto, nunca fui de me envolver nas manifestações. Fui criado numa família lacerdista, contra a ditadura, mas uma que eu não vivi, da qual ouvi muito falar: a ditadura do Getúlio. O que eu ouvi em casa sempre foi

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contra o Jango e o Brizola, que encarnavam a herança getulista. Mas a maior parte dos estudantes era como eu e não se imiscuía com política.

Memória MPM – Recorda-se de algum colega que foi cassado, ou professor?...

Marco Antonio Pinto Bittar – Houve um caso famosíssimo. Numa época em que os professores ministravam suas aulas de terno e gravata, o professor [ João Luiz Duboc] Pinaud ia de pulôver vermelho. Era juiz do Estado do Rio, tendo sido cassado na esteira do AI-5 justamente como tal, mas não como professor. Ainda há pouco ele frequentava os noticiários. É um advogado atuante. Para nós, naqueles tempos, parecia realmente revolucionário e contrário ao regime militar. Fugia ao padrão do professor circunspecto. As aulas dele eram muito boas. Era preparado e eloquente. Tinha o orgulho de haver passado em primeiro lugar nos concursos para juiz e para professor. A meninada ficava encantada.

Já sobre colegas atingidos pelo regime, creio que houve um. A gente não sabe realmente, porque essas coisas eram feitas às escondidas, mas me parece que foi um colega que veio do Mato Grosso para estudar no Rio, de família abastada. A história que ele contou quando reapareceu foi que, durante uma visita ao Maracanã, em companhia de um colega do Mato Grosso que estava hospedado com ele, foram presos na saída. Ele passou uma semana sem aparecer na Faculdade e ninguém sabia o porquê. Quando voltou, afirmou que esse tal camarada do Mato Grosso veio ao Rio para manter encontros clandestinos, coisa que ele não sabia. O outro rapaz já estava sendo vigiado e ele acabou sendo capturado junto. Esse meu colega levou, pela minha memória, pelo menos uma semana para conseguir provar que não tinha nada a ver com o caso.

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Afora isso, mal me recordo de outros casos. Não consigo lembrar os nomes dos colegas mais agitadores. Mas lembro-me de dois irmãos, um rapaz da minha classe e sua irmã, do período da manhã, que se revezavam entre as turmas para levar mensagens de encontros, de protestos. Mas, de maneira geral, a Universidade Federal Fluminense, pelo menos na minha turma da noite, não se envolvia muito. À noite, todo mundo trabalhava. As pessoas estavam na Faculdade para melhorar de vida e tudo era feito com sacrifício...

Memória MPM – Debatia-se o regime nas salas de aula? O que o professor dizia, por exemplo, quando ensinava Direito Constitucional?

Marco Antonio Pinto Bittar – Não, não era debatido, de fato. A aula do Pinoud era a única que permitia elucubrações... Acho que era a disciplina de Teoria Geral do Estado.

Memória MPM – E a formatura?

Marco Antonio Pinto Bittar – Formei-me em 1972. Não havia a necessidade de um período de prática antes de prestar algum concurso. Bastava o diploma, o título.

Memória MPM – Mas não havia um tempo de trabalho como solicitador, quintanista?

Marco Antonio Pinto Bittar – Havia, de fato. Eu utilizei aquela famosa “carteirinha azul”. Creio que desde o quarto ano... No ano da minha formatura surgiu o exame da Ordem. O alcance ainda era local; hoje, vale em todo o território nacional. Como a Faculdade era em Niterói, fiz o exame nesta cidade. Quando fui me inscrever na OAB do Rio de Janeiro, precisei prestar outro. Felizmente fui aprovado nos dois [risos]. Em seguida, me inscrevi para

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um concurso para promotor no Estado do Espírito Santo. Fui reprovado em primeiro lugar! [risos].

Memória MPM – Como assim?! [risos].

Marco Antonio Pinto Bittar – [risos] Íamos para o Espírito Santo num final de semana: no domingo, se fazia a primeira prova, que era corrigida e tinha os resultados divulgados na terça-feira. Depois, havia a segunda, a terceira e a quarta, todas eliminatórias. A última prova, a quinta, seria a classificatória. Talvez eu esteja me enganando apenas em relação ao número de provas, mas era assim a organização. Na primeira, que tinha peso três, eu tirei dez; na segunda, que tinha peso dois, eu tirei nove; enfim, todas ótimas notas que me permitiram abrir boa distância dos demais candidatos. Quando eu já estava com quase vinte pontos de diferença pela soma de notas, fui apresentado, na Praça Jerônimo Monteiro, a praça do Fórum em Vitória, pelo procurador-geral em pessoa, como “o seu mais novo colega”... Eu estufei o peito de um jeito que nem cabia mais em mim [risos]. Com vinte e tantos anos e já promotor do Espírito Santo! Já imaginava até a carreira feita: eu seria nomeado promotor de uma entrância bem no interior, mas sequer precisaria ir até lá, pois no dia seguinte seria promovido na entrância mais próxima e no terceiro dia, já estaria transferido para Vitória! [risos].

Memória MPM – Como isso seria possível?!

Marco Antonio Pinto Bittar – Havia muitas vagas ainda em Vitória... Mas, enfim, enquanto eu sonhava, tudo mudou. A quinta prova era no domingo seguinte, uma semana depois da primeira. A nota mínima era quatro, sendo o tema optativo, em Processo Civil ou Processo do Trabalho. O presidente da banca era o titular de Processo Civil da Universidade Federal

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do Espírito Santo. Da questão de Direito Civil eu não me recordo ao certo, mas a de Direito do Trabalho era simplesmente um “Disserte sobre o Processo do Trabalho”. Fiz o seguinte raciocínio: “não estou muito preparado para a Área Cível, tenho meus medos e temores, visto haver focado meus estudos na Área Penal. Esse presidente da banca, pensei, deve ser muito bom em Processo Civil, e em qualquer coisa que eu resvale ele certamente me pega; já Processo do Trabalho, a CLT dá toda a sequência, e é só eu seguir o guia que não tem erro”. Escolhi então fazer Processo do Trabalho, eu e mais dois candidatos. Todos os que fizeram essa opção foram reprovados, e todos os que escolheram Processo Civil, aprovados. Não sei se é lenda ou se é verdade, mas dizem que o professor se sentiu desprestigiado na matéria dele pelos que selecionaram Processo Trabalhista. Minha nota foi três com esse presidente da banca, sendo que um dos demais membros seguiu a nota dele e o terceiro me deu uma nota quatro, média final de 3,33: foi numa divisão com dízima eterna na minha vida, pois me rendeu a reprovação, sem a nota mínima [risos]. A minha carreira no Ministério Público do Espírito Santo acabou ali, antes de começar [risos]. E não é falsa modéstia: eu preparara um material de estudos e tirara dúvidas de vários colegas, pois estávamos todos no mesmo hotel no aguardo do concurso; solucionara dúvidas de pessoas que viriam a passar no concurso, mas as minhas dúvidas, de certa forma, eu não tirei [risos]. Essa experiência, de alguma maneira, me traumatizou. Eu só fui conseguir me reerguer em 1975, ocasião em que me inscrevi em vários concursos e passei em alguns, reprovando em outros. Para a área de Direito, passei para inspetor do Trabalho, inspetor da SUNAB, e inspetor da Polícia Federal, entre outros.

Havia apenas uns cinco ou seis delegados de Polícia Federal: o pessoal os chamava de “cardeais”. Todo mundo era, assim, inspetor de Polícia

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Federal. Quem fazia as funções do delegado eram justamente os inspetores de Polícia Federal. O primeiro concurso em que fui chamado foi esse de inspetor de Polícia Federal. Ao mesmo tempo, foram convocados dois mil aprovados para fazerem curso de preparação em Brasília. Foi um período, sem dúvida, de renovação, de “sangue novo”. Durante o curso de inspetor, uma legislação alterou o cargo, de inspetor para delegado de Polícia Federal. Por isso, a minha turma foi a primeira de delegados de Polícia Federal. Não cheguei a verificar minha situação em relação aos demais concursos, uma vez integrado ao curso de delegado. A Polícia Federal, nessa época, estava com um quadro muito bom. Hoje parece que estão ainda bem-preparados, pelas apresentações e atuações que percebemos pela televisão. Mas essa época de renovação também era boa. Houve quem não tenha conseguido concluir o curso, por ter sido chamado para trabalhar em áreas como a Receita ou como a Advocacia do Banco Central, ou os Ministérios Públicos dos Estados. Eu fiquei na Polícia Federal de 1977 a 1981. O curso durava seis meses, mas só fomos nomeados em início de 1977.

Memória MPM – Teve algum episódio que lhe chamou a atenção nesse período? Algum caso interessante na Polícia Federal?...

Marco Antonio Pinto Bittar – Eu praticamente não tive atuação policial. Fui assessor, ora da Direção-Geral, ora da Coordenação Central Policial, que era o substituto eventual da Direção-Geral. Fui praticamente assessor de gabinete o tempo todo. Apenas uma vez, por cerca de um mês, estive numa operação de combate ao contrabando de café, desenvolvida pela Polícia Federal e custeada pelo IBC (Instituto Brasileiro do Café). Essa operação foi realizada em Mato Grosso do Sul, desde a fronteira do São Paulo até o Paraguai, numa tentativa de cortar esse fornecimento. Era curioso que o Paraguai não plantava uma saca de café, mas exportava o produto em

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grande quantidade. Assim, a operação buscava fiscalizar as carretas ilegais de contrabando de café. Durou anos...

Memória MPM – Aí apareceu o concurso para o Ministério Público Militar...

Marco Antonio Pinto Bittar – O concurso foi em 1980. Note que era o primeiro em vinte anos. No anterior, em 1960, haviam sido aprovados o Dr. Milton Menezes, a Dra. Marly Gueiros, o Dr. Ruy de Lima Pessôa, entre outros. Embora não apareça nas menções, creio que há um colega, o Flávio [Benjamim Correia de Andrade], também aprovado nessa oportunidade. Alguns dos aprovados no concurso já trabalhavam no Ministério Público Militar, nomeados. Creio que houve quem tenha continuado ligado à instituição mesmo sem ter prestado esse concurso. Houve, também, emendas constitucionais que efetivavam vários promotores. Mas, enfim, eu me inscrevi no concurso em segredo, sem mencionar a ninguém.

Memória MPM – Nessa época já estava casado?

Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, tinha já um filho, o mais velho, Bruno Marco Alvim Souza Bittar. Minha esposa se chama Lúcia Maria Alvim Souza Bittar. A nomeação foi em 1981. Fiz o concurso escondido porque tinha receio de ser eventualmente reprovado e sofrer com as piadas em torno disso, num período em que a rivalidade era muito grande, dentro do próprio Ministério Público da União e também na Polícia. O sonho da Polícia era a paridade salarial com o procurador do Trabalho, cuja pretensão, por sua vez, era ganhar igual ao procurador da Justiça Militar e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, que, por seu turno, sonhava em ter os mesmos benefícios do procurador da República. Vim para o Ministério Público Militar

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ganhando, num primeiro momento, menos do que como delegado de Polícia Federal. Foi durante um período em que devido a aumentos diversos que beneficiaram a Polícia, eu ganharia o dobro se lá tivesse permanecido. Foi assim até princípios de 1985, quando o presidente Figueiredo reagiu a uma paralisação ou greve do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, que estava gerando o caos no Judiciário local. O aumento autorizado foi tão substancial que a carreira ficou interessante.

Memória MPM – Mas isso foi no Ministério Público do Distrito Federal?

Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, mas o Ministério Público do Trabalho e o Militar acabaram sendo um parágrafo na lei. Eu brincava: “Não me importa se nós somos um parágrafo do artigo de vocês, o que me importa é que vocês conseguiram, e levaram todos junto” [risos]. Foi quando a gente passou a receber melhor. Então, de 1981 a 1985 eu ganhei menos no Ministério Público do que perceberia na Polícia Federal...

Memória MPM – E por que a opção pelo Ministério Público?

Marco Antonio Pinto Bittar – Bem, nós tínhamos um lema na Polícia Federal que era: “O Brasil como fronteira”. Ou seja, você poderia ir a qualquer lugar a qualquer momento, dentro do Brasil. E se acontecesse isso, inclusive, era porque você tinha prestígio para tanto, isto é, para ocupar um cargo de chefia no departamento. Mas eu não gostava muito desse prestígio, não [risos]. Quando eu passei no concurso do Ministério Público Militar, meu antigo chefe ficou sabendo pelo Diário Oficial, me chamou e perguntou se eu iria assumir mesmo. Respondi que estava pensando ainda sobre o que fazer. Ele rebateu falando que estava na época de remoções e que precisava de gente boa no Acre. Foi quando dei a resposta mais rápida de minha vida, dizendo: “Não,

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não, eu estou pensando é em tomar posse!” [risos]. Assim, ele me retirou desse planejamento das remoções. Optei pelo Ministério Público porque apesar de ter me adaptado bem às funções que me eram submetidas na Polícia, outras que eu poderia vir a exercer a partir dali não pareciam se coadunar com o meu perfil. Precisava-se de toda uma estrutura emocional, posturas e necessidades de atuação que eu considerava que não possuía, e nem possuo hoje em dia! Identificava-me, também, mais com a área de atuação no Ministério Público, visto que até mesmo os cursos preparatórios que fiz no início da década de 1970 foram para juiz e para o Ministério Público...

Memória MPM – Mas quais cursos eram estes?

Marco Antonio Pinto Bittar – Eram cursos muito bons, no Rio de Janeiro, tidos como os melhores preparatórios. Não sei se eles tinham algum nome específico, mas eram os “cursos da Lagoa”. Noturnos, eles começavam depois das sete horas e se estendiam, às vezes, até a meia-noite. Foi próximo de 1973 ou 1975, quando havia vários cursos preparatórios para concursos para juízes e promotores. Havia um juiz de Brasília que passou em primeiro lugar no concurso: quando ia visitar o Rio, todos o admiravam, querendo seguir o exemplo dele. Estes cursos eram ali na Rua Fonte da Saudade, na beira da Lagoa. Havia feito, anteriormente, outro curso no Colégio São Bento, mas esse da Fonte da Saudade era um exemplo de preparatório. Eu praticamente só assistia às aulas, porque trabalhava o dia inteiro.

Memória MPM – Como foi sua atuação no MPM?

Marco Antonio Pinto Bittar – Bem, no MPM, eu, o [ José Carlos] Couto de Carvalho e o Hélio [Silva da Costa] fomos designados para trabalhar em São Paulo. Muita gente queria ir para o Rio, pois de lá eram originários.

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Mas não havia vaga. O mais perto do Rio era São Paulo. Eu nunca quis ir para o Rio, que estava muito tumultuado com a tal fusão dos Estados: queria voltar para Brasília. Assim que tomamos posse, ainda no mesmo dia, fomos para São Paulo. A posse era em Brasília, mas o exercício era assumido nos devidos lugares, transmitido por telex, o aparelho de comunicação da época. Fomos todos no mesmo voo. O único que viajou com a esposa fui eu, com vistas a arrumar a moradia. Ao chegar a São Paulo, tínhamos que fazer duas coisas de pronto: ir ao Banco do Brasil abrir uma conta para o pagamento, e mandar um telex, comunicando que nos encontrávamos em exercício, anexando também aí o número da tal conta-corrente. Seguimos para a 1ª, 2ª e 3ª Auditoria; salvo engano, assumi a segunda.

Memória MPM – A posse então era em dois tempos, em Brasília e na Auditoria de designação? Podia ser por procuração?

Marco Antonio Pinto Bittar – A posse acontecia na Procuradoria, que ficava no sétimo andar do STM. Poderia se dar pessoalmente ou por procuração, forma pela qual as pessoas que assumiriam o exercício em lugares muito distantes geralmente optavam. A Procuradoria inteira funcionava naquele andar. Era a última sala no extremo do corredor, sendo toda a parte esquerda o setor administrativo e a parte direita, destinada à atividade-fim. Os três subprocuradores-gerais, cargos em comissão, tinham o gabinete junto à parte administrativa. Este último gabinete era do procurador-geral. Tinha, também, a galeria dos procuradores-gerais. Em 1980, o procurador-geral era o Dr. Milton Menezes da Costa Filho, que organizou o concurso, presidiu a banca, deu posse, tendo proferido o discurso de boas-vindas e últimas instruções aos novatos. Assistindo àquela liturgia, com a galeria de retratos dos procuradores-gerais ao fundo, tive o sonho de um dia ser procurador-

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-geral, mesmo considerando que muitas das imagens eram de pessoas que eu jamais havia ouvido falar. De qualquer forma, eles estavam ali perpetuados. Da posse em si, me lembro pouco além desse sonho...

Fomos para São Paulo e lá havia muito movimento! Alguém descreveu que em Brasília era conturbado, mas posso afirmar que as Procuradorias de lá eram piores. Imagine um cubículo minúsculo de quatro metros quadrados, com três mesas, todas grudadas umas nas outras, e nós chegando para trabalhar e, por vezes, tendo que passar por cima de mesas para circular. Era num local assim que funcionavam as Procuradorias, e por gentil concessão do juiz-auditor. Realmente, não cabiam os três ao mesmo tempo na saleta. Era um titular e dois substitutos. Tínhamos de nos revezar. Além disso, nós não recebíamos material, não havia comunicação: não tínhamos nada! O órgão era paupérrimo. Era o filhinho rejeitado, o patinho feio do Ministério da Justiça. Era terrível! Funcionava na avenida Brigadeiro Luís Antônio, num prédio da Justiça Militar, em que estavam instaladas as três Auditorias.

Memória MPM – E eram todas mistas? Ou uma da Aeronáutica, uma da Marinha e outra do Exército?

Marco Antonio Pinto Bittar – Todas mistas. Eu morei um ano em São Paulo e a minha maior lembrança é de uma grande demanda de trabalho, em condições terríveis.

Memória MPM – O senhor chegou a se arrepender em algum momento? Porque além da perspectiva de redução de salário, houve também essa mudança para condições de trabalho muito ruins...

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Marco Antonio Pinto Bittar – Não. Apesar de a Polícia Federal estar inaugurando seu edifício-sede, ainda hoje no Setor de Autarquias do Distrito Federal, com todo o conforto. O prestígio da Polícia Federal era grande. Mas mesmo assim não me arrependi. E olha que nem consegui conhecer São Paulo. Minha mulher tinha um pouco mais de disponibilidade de tempo e pôde conhecer melhor São Paulo, junto com meu filho mais velho, que naquela época tinha três anos. Minha rotina era: de casa para a Procuradoria, da Procuradoria para casa. Um percurso até curto, que eu fazia a pé: morava no Bairro Paraíso, pertinho da avenida Brigadeiro Luís Antônio. Quando estava chovendo, minha esposa ia me buscar no trabalho de carro.

Nessa época, não havia casos envolvendo a Lei de Segurança, mas havia a execução de sentença.

Memória MPM – Apesar da Anistia de 1979?

Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, porque havia ainda execuções de sentenças declaradas antes da Lei da Anistia. Nós tínhamos que oficiar em execuções, simplesmente. Oficiei no caso do Airton Soares, advogado e ex-deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, entre outros. O advogado de quase todos era o [Luiz Eduardo] Greenhalgh. Em São Paulo, ele assumia a maioria dos casos.

Quando cheguei a São Paulo, meus colegas disseram: “Veja, tem um processo aí pra você”. Era o processo dos sindicalistas do ABC, nos quais pontificavam o Lula, o Alemão, dentre outros. O primeiro julgamento havia sido anulado pelo STM, que também reconhecera a denúncia como inepta. Voltou então para ser submetido a novo julgamento, que aconteceria poucos dias depois de eu ter assumido! Não havia tempo hábil para me preparar

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adequadamente. Solicitei ao colega José Garcia de Freitas Júnior, que havia feito o primeiro julgamento, em fevereiro de 1981, que assumisse o segundo, marcado para o dia 19 de novembro. Fui atendido. Começou cedo, e com o clero todo presente, devidamente trajado, acomodado nas primeiras filas do auditório lotado. Eram 13 réus acusados de incitar greves. Foram defendidos por sete advogados, dentre os quais o [ José Paulo] Sepúlveda Pertence. Ele havia sido promotor do Ministério Público do Distrito Federal e fora cassado na esteira do AI-5... Chegou a procurador-geral da República em 1985 e, em 1989, a ministro do Supremo Tribunal Federal. Nessa época era advogado – e brilhante! Os riscos que nós corríamos nessa profissão, com uma lei tão difícil de aplicar como era a Lei de Segurança... Veja esse caso, por exemplo, onde uma denúncia de um promotor competentíssimo como o Dacio [Antonio Gomes de Araújo] foi considerada inepta. O Dacio era muito cuidadoso e agia com esmero. Acho que para o promotor não existe coisa que doa mais do que uma denúncia considerada inepta.

O julgamento começou por volta das nove ou dez da manhã e foi até uma ou duas da madrugada, correndo direto. Aquela avenida Brigadeiro Luís Antônio, mais o pátio da Auditoria, estavam concorridos, com batuques e bumbos. O barulho chegava lá dentro. O Exército por vezes intervinha, não pedindo exatamente para o pessoal sair, mas para reduzir o volume, visto que o barulho interferia nos debates. Chamou-me a atenção que precisamos sair do prédio nos carros da Polícia. Foi o julgamento mais emblemático da época. O resultado foi proclamado com a absolvição de três réus e a condenação dos outros dez, com penas que variavam de dois anos a três anos e seis meses de reclusão.

Memória MPM – E Brasília?

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Marco Antonio Pinto Bittar – Finalmente, surgiu uma vaga em Brasília e eu fui consultado pelo diretor de pessoal, por delegação do procurador-geral, se eu aceitaria. Aceitei.

Memória MPM – Na Auditoria?

Marco Antonio Pinto Bittar – Na Auditoria da 11ª Circunscrição Judiciária Militar que, na época, por força de decreto-lei, atuava com Exército, Aeronáutica, Marinha, Polícia Militar e Corpo dos Bombeiros do Distrito Federal. Aliás, esse decreto-lei era interessante, porque a redação era algo assim: “enquanto não for criada a Auditoria para a Polícia Militar e do Corpo dos Bombeiros...”. E nunca era criada... Nós tínhamos um movimento enorme! Essa chamada para a vaga foi em 1982. No duro, eu fiquei em São Paulo um ano. Aliás, chegou um momento em que meu salário só pagava o aluguel do apartamento. Minha esposa era funcionária do Estado de Goiás e me ajudava financeiramente com as despesas. Um fato engraçado é que a minha mudança de Brasília para São Paulo custou 100 “dinheiros” e a mesma mudança de São Paulo para Brasília, um ano depois, custou 1.000 “dinheiros”. Eram os tempos de inflação...

Memória MPM – E o reajuste do salário?

Marco Antonio Pinto Bittar – E o salário!? [risos]. Nada de reajuste! Mas viemos para Brasília, onde assumi a 11ª CJM. Era uma Auditoria movimentada, com bastante gente. Mas, a rigor, funcionavam somente eu e a colega Vera [Regina da Mota Coelho Americano Alves de Brito]. Tínhamos outros colegas, dois ou três, mas que estavam convocados como pareceristas, em substituição aos procuradores de primeira categoria na Procuradoria-Geral. O volume de trabalho na Auditoria, assim, era grande, principalmente com a

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Polícia Militar. Em segundo lugar, vinha o Exército; em terceiro, a Marinha, e por último, bem distantes, os Bombeiros e a Aeronáutica, que quase não tinham nenhum processo tramitando. Trabalhávamos no oitavo andar do prédio do STM, com uma sala até razoavelmente grande.

Em matéria de família, nessa época, nasceu a minha segunda filha, a Maria Raquel. Em 1985, veio nossa terceira filha, minha caçula, que este ano faz 30 anos. Hoje tenho um netinho dela e dois do meu filho mais velho.

Memória MPM – Algum processo da Auditoria que tenha lhe marcado?

Marco Antonio Pinto Bittar – Houve, sim, um, em especial, cujos nomes, dos envolvidos, prefiro não citar. Alcançou de certa forma um coronel do Exército que foi comandante da PM. Em Brasília havia uma personagem que muitas vezes frequentou as manchetes de jornais, um sargento da PM alcunhado de “Sargento Papa-Anjo”... Ele era acusado de seduzir umas trinta ou quarenta mulheres. Dessas seduzidas, algumas se diziam estupradas. Acho que o cara era sedutor mesmo. Não o conheci, não sei quem é. O Sargento Papa--Anjo esteve sob o comando desse coronel. Quando surgiram as manchetes, ele foi preso administrativamente, num quartel de uma cidade satélite. Uma advogada impetrou um habeas corpus em favor dele, junto ao Judiciário do Distrito Federal, que não foi adiante. O comandante da PM informou que a prisão era administrativa e a peça teve a seguinte manifestação, perdoando aí qualquer erro de memória: “Incompetente essa Justiça para examinar o pleito, todavia, a petição noticia eventual cárcere privado em prisão não comunicada; arquive-se após o pagamento das custas.”. E esse processo ficou num escaninho em algum lugar. Dois ou três anos depois, não sei exatamente a data exata...

Memória MPM – Mas com o sargento ainda preso?

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Marco Antonio Pinto Bittar – Não, o rapaz foi solto... Também não sei exatamente quanto tempo após a prisão, mas logo em seguida. A questão é que cerca de três anos depois, esse coronel seria o primeiro na lista de promoções para o generalato, já estando fora do comando da PM. Mas foi subitamente denunciado na 11ª CJM. A denúncia continha algo do texto do habeas corpus que acabei de mencionar. Os ministros do Tribunal estavam viajando, envolvidos em uma inspeção no Sul, sendo que antes de ser protocolada, ou no ato do protocolo dessa denúncia, já havia artigos no Estado de São Paulo e na Folha de São Paulo com a publicação do caso na íntegra. Esse coronel, primeiro da lista, ficou então para trás. Isso foi nos primeiros dias em que assumi na Auditoria. A PM mandou o Boletim que publicou a prisão. Mandaram também cópia do Livro de Registro da Unidade em que o sargento foi preso. O habeas corpus andou porque alguém – que ninguém sabe quem – pagou as custas. Porém, o sargento já nem estava preso. O juiz abriu vista para eu complementar a denúncia e informei que não havia elementos para completá-la, uma vez que havia aquelas informações de que não houve cárcere privado, pois na instituição militar isso só ocorreria se o fato não tivesse constado no Livro de Registro de Presos, nem publicado em Boletim da época.

Memória MPM – Então não houve cárcere privado?

Marco Antonio Pinto Bittar – Não houve. Mas esse é um caso que a memória não esquece. Bom, em 1985 o Dr. Milton Menezes me convidou para ser chefe de gabinete dele. Aceitei. Ele era – na verdade sempre foi – muito centralizador. Não costumava delegar, a exceção (e isso porque não tinha jeito) dos pareceres de procurador de primeira categoria, porque eram os pareceres do expediente no STM. Nessa época, eu fazia toda a parte administrativa do gabinete, filtrando o que chegava para ele. Ficamos juntos por cerca de

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um ano. Foi quando veio a Nova República. O primeiro procurador-geral da Nova República foi o Dr. George Tavares, um advogado do Rio de Janeiro bem-conhecido, quem convidou para chefe de gabinete o Dr. Rutílio [Tôrres Augusto], um dos colegas mais competentes e preparados que temos. O George Tavares tinha uma política de delegação mais forte. Mas veio para cá – e não escondeu isso, que foi dito inclusive em plenário do STM – dizendo que a intenção dele era ser ministro, que estaria, enfim, de passagem. E pelas conjunturas políticas, no momento em que ele percebeu que não conseguiria, preferiu voltar aos afazeres dele no Rio.

Memória MPM – Como foi durante a gestão do Dr. Milton? O senhor chegou a acompanhar os inquéritos da época?

Marco Antonio Pinto Bittar – Assessorei vários inquéritos naquela possibilidade que existe no Código de Processo Penal Militar, de o encarregado do inquérito pedir assessoramento ao Ministério Público. O Dr. Milton é quem me dizia onde funcionar, vez que era ele quem recebia as solicitações. Foram inquéritos importantes em Brasília. Dois ocorreram no HFA (Hospital das Forças Armadas). Outros dois que reputo relevantes ocorreram no Comando Militar do Planalto: o primeiro envolvendo as Intendências e outro a respeito de um crime ocorrido em Goiás, mas cuja repercussão foi em Brasília. Sobre esse último caso, um jornalista foi morto na porta de uma estação de rádio, na qual mantinha um programa policial. A imprensa associou a morte a uma notícia que ele publicara acerca de um homicídio que ocorrera dias antes em Luziânia, e que supostamente teria sido perpetrado por forças paramilitares. A imprensa alegava que havia sido morto por estar chegando próximo de descobrir os autores deste crime. Isso foi uma confusão tão grande, que muita gente perdeu cargos e postos. Houve também o caso da Base Aérea de

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Anápolis, com um recruta que morreu afogado atravessando uma das lagoas de lá, sendo encontrado um ou dois dias depois.

Memória MPM – Morreu afogado durante o treinamento?

Marco Antonio Pinto Bittar – Sim, e ninguém viu, apesar de muitos estarem treinando junto. O fato de ele não ter sido notado foi terrível. Aparentemente o fardamento e os equipamentos pesaram muito ao se molharem e ele não conseguiu mais subir.

Memória MPM – E as investigações acerca dessas forças paramilitares em Goiás?

Marco Antonio Pinto Bittar – Não eram paramilitares, mas sim militares mesmo! Esse inquérito foi interessante. Na gestão do George Tavares, eu tive de assessorar, juridicamente falando. A todo o momento o encarregado de inquérito, que era elétrico, ativo, estabelecia demandas e perguntava o que podia ou não fazer. Por exemplo: nós prendemos, num determinado dia, onze militares da ativa e da reserva, em cinco ou seis Estados diferentes, na mesma hora. Foi tudo articulado. Ele era empolgado em dar cabo ao inquérito, porque exatamente a investigação transcorria em torno dessa incursão de forças paramilitares que resultou num homicídio. Esse inquérito deve estar hoje perdido em algum arquivo. O caso ficou conhecido como o “Crime de Três Vendas”. Era o nome de um local em Luziânia onde o camarada foi morto, por estar no lugar errado, na hora errada, de forma totalmente gratuita. Faz trinta anos... Olha que fazer tantas prisões no mesmo dia e na mesma hora, demandou um enorme esforço logístico para que não houvesse comunicação entre eles, e alguns dos envolvidos deixasse de ser preso. Todas as prisões foram devidamente

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justificadas pelo encarregado do IPM nos termos do Código de Processo Penal Militar.

Memória MPM – Foram condenados?

Marco Antonio Pinto Bittar – Não acompanhei a tramitação do inquérito, mas fiquei muito aborrecido com a liberação, pela Auditoria, dos detidos durante o inquérito, sem um exame profundo daquelas justificativas que fundamentaram as prisões.

Memória MPM – Em 1985 houve uma promoção que não se concretizou, não é verdade? O senhor se recorda de algo sobre isso? Em 29 de novembro de 1984, saiu promoção para procurador militar de primeira categoria, mas em 6 de dezembro de 1985 retrocedeu tudo à situação anterior em razão de uma lei que não havia sido votada no Congresso...

Marco Antonio Pinto Bittar – Não havia vagas. Mas não me lembro ao certo da situação...

Memória MPM – Em 13 de dezembro de 1987 a promoção foi reafirmada.

Marco Antonio Pinto Bittar – Pois é... Entre 1985 ou 1986 eu reivindiquei algo, que dependia de ato puramente discricionário do procurador--geral, pois ele convocava membros para dar pareceres nos processos do Tribunal. Havia colegas, inclusive da 11ª CJM, que eram pareceristas. E eu disse para mim mesmo que fazia meu trabalho exemplarmente, sem nunca ter reclamado, tranquilo. Decidi que também gostaria de ser parecerista e passei a sê-lo nos processos junto ao Tribunal. Mas só fui promovido a procurador de primeira categoria mais tarde. Foi interessante... Disputávamos essa promoção eu e um colega. A Comissão se reuniu perto das duas ou três

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horas da tarde, para um tipo de encontro que costumava ser rápido, visto que os papéis e as discussões já estavam preparados. Mas esta promoção levou muito tempo para ser definida: a tarde inteira! Um colega da banca queria que o outro candidato fosse promovido, e os outros dois queriam que eu fosse promovido. E esse colega da banca teimou em convencer os outros dois. Estendeu-se até as seis horas da tarde a discussão [risos]. Depois, com o advento da Lei Complementar 75, ocorreram mais alguns movimentos e fui promovido a subprocurador-geral. Acho que aí passou a ser atribuição do Conselho Superior do Ministério Público. Em determinado momento, eu ocupei todos os cargos da Procuradoria, mas claro, cada um por sua vez [risos]. Fui substituto do procurador-geral em impedimento, não recordo em que ano, quando o procurador-geral – que já estava em substituição – enfartou. E não tinha ninguém para suprir, somente eu e ele; então, fui designado em substituição. Eu era dos mais modernos e fui procurador-geral nesse momento, por cerca de cinco dias. Aquele sonho do gabinete, da época da posse, foi, então, de certa forma realizado, nesse curto período [risos]. Após a Lei 75, porém, assumi, num dado momento, tanto a Vice-Procuradoria- -Geral – que era um substituto eventual –, quanto a presidência do Conselho, que é o cargo substituto numa hipótese de afastamento permanente, caso, por exemplo, da aposentadoria do Dr. Milton, quando assumi a Procuradoria--Geral até se desencadear o processo de eleição e eu me afastar para ser candidato. Fui corregedor, fui presidente da Comissão de Arquivamentos, de Coordenação e Revisão; estive, enfim, praticamente em todos os cargos, mas nem sempre por opção: foi porque não existia um quadro de funcionários. Então, eu ia cobrindo as necessidades até que as promoções fossem feitas e existissem colegas em número suficiente para ocupar todas as funções. Foi uma época desgastante, porque passávamos o tempo todo por essa dinâmica

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de recebimento de propostas e aceitação – porque para toda movimentação ou promoção era indispensável a aceitação. E friso: muitos colegas não aceitavam promoções, para não serem obrigados a ir para Brasília.

Paralelamente, me envolvi na atividade associativa. Em 30 de dezembro de 1990, assumi a presidência da Associação de classe, sendo reconduzido para a função em dezembro de 1992. Foi quando iniciamos uma campanha para a mudança da sede da Associação do Rio de Janeiro para Brasília, onde de fato aconteciam já todos os contatos pertinentes. Também nesse período, me dei conta de que as pensionistas estavam com as pensões muito defasadas, de modo que pedi a cada uma delas que requeresse a atualização dos valores junto à Procuradoria-Geral da Justiça Militar, o que efetivamente foi feito, havendo uma sensível melhora nos rendimentos daquelas senhoras. Tenho a alegria de haver ajudado as viúvas a saírem de uma condição dramática de penúria, pois a atualização não era feita de ofício.

Tenho, também, certa ponta de orgulho por haver inaugurado o prédio-sede da Procuradoria-Geral. Se durante 75 anos a Procuradoria teve que conviver com empréstimos de espaço, no ano de aniversário de 75 anos houve a inauguração desse prédio, no Setor de Autarquias, como nova sede da Procuradoria-Geral. Ele foi planejado, arquitetado e contratado na gestão do Dr. Milton, mas logo nos primeiros meses de construção ele se aposentou e quem assumiu a construção do prédio fui eu. Salvo engano, inaugurei o prédio no dia 18 ou 19 de dezembro de 1995, me aposentando no dia seguinte, ainda tendo um curto período de mandato pela frente. Mas por opção minha, me aposentei no dia seguinte.

Memória MPM – Mas por que antecipar a aposentadoria?

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Marco Antonio Pinto Bittar – Havia uma perspectiva de perder várias oportunidades de aposentaria: era aquele momento em que estava se falando de reforma da Previdência, em aumento de limite de idade, entre outros fatores; e de repente eu, que já tinha implantado todas as condições para me aposentar teria de ficar mais cinco ou dez anos. E isso me assustou um pouco. Em segundo lugar, o exercício da Procuradoria-Geral, aquele sonho de 1981, foi, na verdade, pesado, complicado. A cada período de calmaria se seguem tempestades intensas e desgastantes. É difícil a gente agradar a todos. Por mais que se tente, acabamos deixando descontentes pretensões de colegas, e isso não é bom. O convívio cordial é melhor do que tudo, e nós, quando estamos na chefia, temos que tomar decisões, dizer alguns “não”. Algumas decisões não são compreendidas pelos colegas, que alegam arbitrariedade. Pessoalmente, não acredito que eu seja arbitrário, mas cheguei a ouvir mais de uma vez que era. Tinha dúvidas, se era ou não, na época... Mas foram situações que, com o passar do tempo, mostraram que estava tentando o caminho mais próprio, apesar de errar – não há quem não erre. Procurei sempre fazer o melhor e cultivar as amizades, muito embora não seja a pessoa mais calma do mundo. Penso que hoje sou mais agregador do que fui à época.

Memória MPM – E o fato de ter sido, no processo eleitoral interno, o segundo lugar na lista tríplice, complicou a sua gestão depois?

Marco Antonio Pinto Bittar – Complicou sim. Eu vi um depoimento do Dr. Milton Menezes dizendo que na eleição ele alcançou 80% ou 90% de aprovação. Isso mostrava, embora ele tivesse sido procurador-geral por 25 anos na base da nomeação, que foi aprovado pelos colegas. Achei lindo, achei ótimo! Mas quando chegou a minha vez, não me senti desaprovado pelos colegas por não ter alcançado igual sufrágio – recebi cerca de vinte por cento dos votos.

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Não me senti desaprovado por 80%. Entendi isso como a aprovação e o apreço pelo colega José Carlos Couto de Carvalho, primeiro eleito da lista tríplice. Não sei se me fiz entender: numa disputa entre os dois, ele foi aprovado. E quero lhe dizer, é histórico isso, que na hora que a contagem de votos terminou eu disse publicamente: “Parabéns Couto, me diga quando vai ser sua posse!”. Desse momento em diante, porém, o procurador-geral da República houve por bem me nomear. Muitos colegas não aceitaram. Poucos demonstraram isso, mas não aceitaram. E até colegas que eu nunca imaginei que me hostilizariam, acabaram por fazê-lo. Quero dizer que tive no Couto um excelente colega sempre, e mesmo considerando que ninguém tinha mais razão do que ele para ficar magoado e triste, ele superou. Mas tive colegas que não superaram, que decididamente não facilitaram em nada minha gestão. Muito incisivos em sua recusa. Atrapalhou? Não exatamente, mas não colaborou. É duro pensarmos que aquele convívio amistoso de até ontem, hoje deixa de existir por uma razão de política. Eu não movi uma palha – depois da eleição ocorrida – para ser nomeado. Mas o procurador-geral era meu amigo, o Aristides Junqueira. Ele disse: “Eu trabalhei com você esse tempo todo, e te conheço, mas não conheço o colega. Então, entre os dois, vou nomear você!”. Eu ia responder que não? Mas não movi uma palha para tanto. Fui comunicado da minha nomeação na cerimônia de posse no gabinete dele. Foi um mal-estar? Sem dúvida. Atrapalhou um pouco. Se eu não tivesse aceitado, inclusive, estaria ganhando bem mais hoje; aposentei-me não pagando Previdência, não ganhando os 20% do topo de carreira e só aí, numa conta rápida, são 11% mais 20%, a menos.

Memória MPM – Sem contar o auxílio-moradia, entre outros...

Marco Antonio Pinto Bittar – Houve uma inversão tão grande que o aposentado parava de pagar a Previdência; hoje, quem não se aposenta é que

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não contribui. De qualquer forma, se está favorecendo os colegas, ótimo. A aposentadoria sempre se dava como uma promoção ao cargo seguinte; no topo de carreira, tem os 20%, que também não recebi. Mas naquele momento não havia isso para o procurador-geral.

Memória MPM – E quem lhe sucedeu?

Marco Antonio Pinto Bittar – Quem me sucedeu foi o Dr. Kleber de Carvalho Coêlho.

Memória MPM – E no período de interinidade?

Marco Antonio Pinto Bittar – Eu creio que foi o Dr. Péricles Aurélio Lima de Queiroz. O Dr. Kleber em seguida se elegeu e, depois, se reelegeu. Mas, repito, de coração: não tenho mágoa de nenhum colega, nem daqueles que mais belicosamente me hostilizaram. O Dr. Couto prestou a colaboração dele durante um período, mas se aposentou logo em seguida. E eu e o Couto sempre fomos muito amigos, contemporâneos de colégio, embora sem sabermos disso. E pela vida afora estivemos muito próximos, também sem conhecimento. Fomos companheiros de concurso e da ida para São Paulo... Eu tenho a maior consideração e a maior admiração pelo Couto. Acredito que ele me tem em muito boa conta. Embora eu possa entender caso ele tenha guardado alguma mágoa em relação a essa questão eleitoral, porque veja: se alguém foi votado esmagadoramente, fica difícil compreender por que outro foi nomeado...

Memória MPM – Mas até aí, faz parte das regras do jogo...

Marco Antonio Pinto Bittar – Certamente.

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Memória MPM – Houve algum acordo entre os candidatos durante a campanha, no sentido de que os outros abririam mão da indicação em favor do melhor votado?

Marco Antonio Pinto Bittar – Não, de maneira nenhuma. Eu acreditava, intimamente, que seria ele o nomeado. E achava também, que eu e ele chegaríamos mais próximos do empate na votação da tríplice. Eu tinha essa doce ilusão. Mas os colegas provaram o contrário. Essa lista é interessantíssima porque se poderia votar em dois. Então, em minhas sondagens, eu percebia aqueles claramente fiéis ao Couto, mas muita gente ia votar nos dois ou em mim. Na apuração foi diferente... [risos]. Não recordo qual político que dizia que na hora de votar... dá uma vontade de trair!... [risos]. Um momento de tortura meu, contudo, foi a apuração dos votos.

Memória MPM – Pela quebra de expectativas? Gerou decepção?...

Marco Antonio Pinto Bittar – Certamente. Quando eu falava com as pessoas, acreditei convencer várias a votar em mim, ou em mim e no Couto, ao menos. Quando afirmavam que iriam votar no Couto, eu ainda assim dizia que era um bom voto. Mas eu não tinha experiência eleitoral e acalentei uma confiança que não existia, afinal, não sabia como eram essas coisas.

Memória MPM – E desse período como procurador-geral, quais foram as maiores realizações e lembranças, as atividades, além dessa inauguração do prédio já mencionada? Algum processo muito espinhoso?

Marco Antonio Pinto Bittar – Pensas naquele do submarino?

Memória MPM – De tempos em tempos, a imprensa volta a essa história do submarino, mas é um processo confidencial...

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Marco Antonio Pinto Bittar – O que eu recebi marcado como secreto, fica secreto. Mas sobre o que reverberou, posso dizer que o presidente do Tribunal endossou a ideia de que tinha que haver denúncia do almirante por parte do Ministério Público.

Memória MPM – Do almirante responsável pela gestão do projeto?

Marco Antonio Pinto Bittar – Exatamente. E eu disse que não. O presidente do Tribunal, porém, alegou que não iria aceitar o meu pedido de arquivamento. E voltou para cá o processo. Como dominus litis, deitei um pouquinho de doutrina sobre o tema, e requeri não apenas o arquivamento, como a impossibilidade de qualquer outra manifestação nos autos uma vez que o Ministério Público se colocava pelo arquivamento.

Memória MPM – Se utilizou de uma prerrogativa do procurador-geral, então? Essa é realmente uma parcela de soberania que o procurador-geral encerra. É uma decisão que ele pode tomar e para a qual não cabe recurso; cada chefe de Poder tem suas prerrogativas...

Marco Antonio Pinto Bittar – Mas estive com esta bomba na minha mão, embora tenha sido rápido em lidar com o fato. Eu nunca soube nem quem era o almirante, nunca recebi qualquer contato de quem quer que fosse em favor desse processo. Chegaram a me dizer que ele era uma pessoa com um trato mais difícil, mas não sei se é verdade. Eu, porém, me convenci de que não havia motivação para denúncia.

Memória MPM – Até onde eu sei, tinha relação com carros de segurança...

Marco Antonio Pinto Bittar – Eu lhe pergunto: alguém lidando com milhões e milhões vai checar coisas ínfimas como, por exemplo, se esse

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copo está ou não com o emblema de uma instituição, e se não tiver, significaria que você está querendo este copo para si? É a mesma história dos carros. Administrativamente, poderia ser até bobagem, mas os carros eram comprados em nome deles para driblar a espionagem internacional da qual eram alvo. Já viu filme de espionagem americano? Os carros não são sempre aquela Chevrolet GM preta com vidros fumês? Todos os carros da CIA são aqueles. Eles aqui tinham o Opala de serviço, mais o Monza era comprado em nome particular, com as devidas assinaturas e entregas de volta. Era isso. Um projeto que lidava com milhões! E os caras ficavam em cima de um Monza que não estava regulamentado?

Memória MPM – E as medalhas e condecorações?

Marco Antonio Pinto Bittar – Parece que eu tenho muitas medalhas. Mas a verdade era que as medalhas se tornavam quase que inerentes ao cargo ocupado. Achei interessante gente que me pedia medalhas, mas que nunca havia feito realmente nada para merecê-las.

Memória MPM – O senhor gostaria de deixar algo mais registrado?

Marco Antonio Pinto Bittar – Dois registros interessantes. O primeiro é que eu e o colega Couto estivemos juntos na nossa Associação em um momento muito feliz. Conseguimos muitas realizações excelentes: 100% de associados, vários pleitos administrativos e judiciais atendidos em favor dos colegas, as pensões das viúvas (como já mencionei), enfim, a presidência da Associação foi um tempo de muitas alegrias e realizações.

O segundo, não logrei êxito, mas gosto muito de trazer o tema ao debate, em função de estar prescrito em lei e não ser cumprido. Há um artigo

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da Lei Complementar nº 75 que estabelece que os membros do MP recebam o tratamento que é dispensado aos membros do Judiciário junto aos quais ele oficia. É o procedimento desde 1993. Porém, nunca foi incluído no decreto de cerimonial. Já vi solenidades em que o prefeito daquelas cidadelas de 500 habitantes sempre diz “vossa excelência” para os juízes, mas para o promotor sempre guarda um “vossa senhoria” ou outra coisa que o valha. Eu digo sempre que não sou, que não preciso e que nem quero ser chamado de “vossa excelência”. Mas acho que se é devido, tem que ser usado. E não é assimilado. Eu vejo que há lugares, inclusive, que fazem questão de puxar o termo “você” para evitar o “vossa excelência”. Não acho que é por mal, mas creio que é uma forma de demonstrar que não nos reconhecem como tal. Disse isso aqui e em outros lugares, e já foi interpretado como um desejo de polir o ego, mas não se trata disso.

Por fim, eu gostaria de agradecer a oportunidade de registrar este depoimento junto ao Centro de Memória.

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JOSÉ

CAR

LOS

COUT

O DE

CAR

VALH

OEntrevista realizada na Procuradoria-Geral de Justiça Militar, em Brasília, em 6 de março de 2015, por Gunter Axt.

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José Carlos Couto de Carvalho nasceu em 28 de outubro de 1946. É filho de Francisco Alves de Carvalho e Myrian do Couto Carvalho. Casou-se com Marilena Ferreira C. Carvalho. Graduou-se em Direito pela Universidade Gama Filho, Faculdade de Ciências Jurídicas. Fez o curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE) da Escola Superior de Guerra (ESG). Aprovado em concurso público em 1966, ingressou na Justiça Militar como auxiliar de escrevente juramentado. Prestou concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público Militar em 1981, sendo nomeado, em 20 de agosto, procurador militar de segunda categoria da 2ª CJM. Em 15 de fevereiro de 1982, passou a atuar junto à 1ª Auditoria da 1ª CJM. Em 15 de dezembro de 1983, passou a atuar junto à 2ª Auditoria da mesma Circunscrição. Foi promovido a procurador militar de primeira categoria em 30 de novembro de 1984. Em 27 de novembro de 1987, foi convocado para atuar na Procuradoria--Geral de Justiça Militar, em Brasília. Em 2 de dezembro de 1992, foi promovido a subprocurador-geral da Justiça Militar. Aposentou-se em 1995. Dois meses depois de aposentado, em 28 de setembro, assumiu a presidência da Associação do Ministério Público Militar, cargo no qual permaneceu até julho de 2001. Mantém, em Brasília, há muitos anos, um reconhecido curso preparatório para o concurso de ingresso na carreira.

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Memória MPM – O senhor é natural de onde?

José Carlos Couto de Carvalho – Sou natural do Rio de Janeiro.

Memória MPM – E como foi sua opção pelo Direito? Existia essa tradição na sua família?

José Carlos Couto de Carvalho – Existia, sim. Meu pai veio da Bahia para o Rio de Janeiro e formou-se farmacêutico. Aliás, um grande feito, pois saiu sozinho da Bahia, chegou ao Rio de Janeiro entre os anos 1920 e 1930 e conseguiu se formar em Farmácia na Universidade do Brasil. Mas era a minha família, por parte de mãe, que tinha tradição jurídica. Meu tio-avô era juiz-auditor da Justiça Militar, daí veio a herança do Direito e da própria Justiça Militar.

Memória MPM – Em qual Faculdade o senhor se formou?

José Carlos Couto de Carvalho – Foi na Faculdade de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro.

Memória MPM – O senhor se lembra desse período de Faculdade?

José Carlos Couto de Carvalho – Praticamente um ano depois de entrar na Faculdade, eu ingressei na Justiça Militar, no cargo de auxiliar de escrevente juramentado. O concurso foi no ano de 1966 e foi muito difícil, porque eram três vagas para mais de mil candidatos, mas eu tinha como vantagem ter estudado no Colégio Pedro II, então considerado de alto padrão. As provas para auxiliar de escrevente eram eliminatórias e começavam com português, que já cortava uma boa parte dos pretendentes, e depois com matemática, que eliminava outro grande grupo. Quando o concurso entrou na

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fase de matérias básicas, já eram poucos candidatos e fui aprovado em terceiro lugar. O interessante é que desses três colocados, posteriormente, dois foram para a magistratura. Eu fui para o Ministério Público. Assim, ingressei na Justiça Militar no ano de 1967.

Memória MPM – Como foi sua experiência nesse período de auxiliar? Como a Justiça Militar funcionava nessa época?

José Carlos Couto de Carvalho – Inicialmente fui para a Segunda Auditoria da Aeronáutica e, posteriormente, fui promovido a escrevente juramentado para a Auditoria de Marinha. Foi depois do meu período na Auditoria de Marinha que fiz o concurso, em 1980, para o Ministério Público, no qual ingressei no ano seguinte. Então fui para a 3ª Auditoria, em São Paulo, já extinta, e passei pela Auditoria do Exército, até retornar para a Auditoria da Aeronáutica, na qual eu havia iniciado a carreira.

Memória MPM – Quantas Auditorias existiam então no Rio de Janeiro?

José Carlos Couto de Carvalho – Eram sete. Duas da Aeronáutica, duas da Marinha e três do Exército. Atualmente são apenas quatro e todas elas são mistas.

Memória MPM – O senhor se lembra dos juízes e promotores que estavam nessas Auditorias naquela época?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim. Conheci figuras extraordinárias! Foi um aprendizado maravilhoso. Recordo-me de uma audiência na Auditoria da Marinha, presidida pelo Dr. Fernando Przewodowski Nogueira. Eu tinha 20 e poucos anos, recém-nomeado, e a atriz Tônia Carrero foi prestar depoimento. Eu preparava a qualificação das testemunhas, anotando o nome, a idade, a filiação,

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etc. Mas como era a Tônia Carrero, o Fernando Nogueira quis conduzir a qualificação. Ele começou a fazer as perguntas e, dentre elas, faltou a data de nascimento. Como o Código pedia essa informação, eu, muito jovem, disse: “Excelência, está faltando a data de nascimento da testemunha.”. Naquela época as senhoras quarentonas não informavam a idade de jeito nenhum. Hoje elas fazem questão de indicá-la, até em reportagens. O auditório estava cheio, porque era uma audiência relativa à famosa “Passeata dos Cem Mil”, umas das manifestações que, inclusive, ensejaram o AI-5. O juiz-auditor, muito inteligente, disse-lhe: “O meu escrivão é muito curioso... (enquanto ele ganhava tempo para decidir o que faria), ele está querendo saber a sua idade...”. Então voltou-se para mim, delicadamente e disse: “Coloque aí: maior de idade!”. Que saída genial, não é?1 [risos].

Outra pessoa notável, quem muito me ensinou, faleceu há pouco, com 90 e tantos anos, foi o Paulo Jorge Simões Corrêa, de grande independência funcional. Em razão disso, posteriormente, o SNI – Serviço Nacional de Informações, pediu sua aposentadoria, alegando que não havia prestado o concurso, que era genro de um general e graças a essa relação teria ingressado na Justiça... Uma série de inverdades. E, no final, acusando-o de esquerdista, por ter absolvido o deputado Márcio Moreira Alves (aquele que fez um discurso que também ensejou o AI-5), pois o governo queria a sua cassação e o Congresso não a autorizara. Em função dessa recusa, houve o fechamento do Congresso, em 1968, como se sabe. O Márcio Moreira Alves

1. A atriz Tônia Carrero e o vice-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor Clementino Fraga, prestaram depoimento na Auditoria da Marinha em 22 de maio de 1969 como testemunhas de defesa do estudante Vladimir Palmeira, que se encontrava preso desde dezembro, acusado de liderar a “Passeata dos Cem Mil”. (CORREIO DA MA-NHÃ, 23 de maio de 1969).

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acabou cassado e enquadrando na Lei de Segurança Nacional2, porque nesse discurso conclamava as moças a não dançarem com militares nas festividades de comemoração da Independência do Brasil. O caso caiu na Auditoria da Marinha e ele foi absolvido, sendo o Dr. Paulo por isso responsabilizado. Mas ele não decidiu sozinho, pois havia um Conselho Permanente de quatro militares da Marinha sorteados, além do juiz-auditor. O Dr. Paulo me mostrou um documento no qual o general Ernesto Geisel, então presidente da República, de próprio punho, fez objeções ao encaminhamento do SNI, pedindo a aposentadoria compulsória do Dr. Paulo, que na prática era uma forma de cassação, já que o sujeito era aposentado proporcionalmente ao tempo de serviço. O Geisel perguntava se haveria mesmo provas para condenar o Márcio Moreira Alves, como sustentava o SNI, registrando que, inclusive, alguns dos oficiais da Marinha, membros do Conselho, haviam votado pela absolvição. Enfim, o caso do Márcio não foi reaberto e o Dr. Paulo não foi aposentado compulsoriamente.

A propósito, a recente Comissão da Verdade não registra o desempenho de juízes, tanto na Justiça Militar quanto no Superior Tribunal Militar, que, de certa forma, contribuiu para o processo de redemocratização, na medida em que estes se insurgiram contra certas arbitrariedades, eventualmente até colocando o cargo à disposição. Eles tentaram barrar exageros e, em razão disso, o governo endureceu a legislação, suspendendo o habeas corpus, por exemplo. A Justiça Militar teve a sua cota de resistência e eu acredito que isto foi importante para conter

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2. Márcio Moreira Alves encabeçava a primeira lista de cassados, publicada em 30 de dezembro de 1968. Nessa oportunidade, entretanto, já havia se refugiado no Chile, de modo que o processo na jurisdição militar correu a sua revelia.

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barbaridades que se verificaram em outros regimes da época no Continente Americano, como aqueles que existiam no Chile e na Argentina, algo que é, inclusive, internacionalmente reconhecido.

Havia juízes que atuavam de acordo com o Direito, sem mencionar o próprio Tribunal. O advogado Heleno Fragoso relaciona, em um livro de sua lavra, vários julgados do Tribunal que questionam judicialmente certas decisões condenatórias, estabelecendo revisões. Lista, por exemplo, onze atentados de sequestro de aviões civis, que eram levados em geral para Cuba. Embora se tratando de crimes evidentes, o Tribunal mantinha o exame da prova, pondo em dúvida o peso do testemunho, e muita gente foi absolvida, o que, pelo que se sabe, não aconteceu no Tribunal de Segurança Nacional do período Getúlio Vargas, que era realmente um tribunal de exceção.

Memória MPM – De fato, um tribunal cuja composição em grande parte era de leigos, que julgavam ao arrepio do Processo Penal. Como os advogados entendiam os crimes contra a Segurança Nacional na jurisdição militar especializada?

José Carlos Couto de Carvalho – Se questionava, com efeito, que estes processos estivessem no âmbito da jurisdição militar especializada. Entretanto, considerando o contexto adverso, muitos advogados, com os quais convivi, até preferiam a Justiça Militar à Comum, porque alguns militares que integravam os Conselhos resistiam. Eu acredito que existia independência para julgar, tanto que um general, ministro do Tribunal, foi aposentado com o Ato Institucional nº 53. Antes do AI-5, o Tribunal concedia habeas corpus. Um dos primeiros beneficiados por esse remédio foi o deputado federal baiano Fernando [dos

3. Refere-se ao general Pery Constant Bevilacqua, cassado em janeiro de 1969.

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Reis] Sant’Anna, comunista histórico. Eu conhecia a família. Depois do AI-5, o regime endureceu, mas mesmo assim o Tribunal concedia liberdade provisória quando havia excesso de prazo da prisão do indivíduo. Portanto, acredito que a Justiça Militar foi importante para conter excessos, dessa forma, colaborando também para pavimentar o caminho para a redemocratização.

Memória MPM – Ainda com respeito ao caso Moreira Alves, por que o processo caiu na Auditoria da Marinha?

José Carlos Couto de Carvalho – Havia uma Corregedoria que sorteava entre as sete Auditorias os crimes de Lei de Segurança Nacional. Era aleatório.

Memória MPM – Havia diferenças de orientação de uma Auditoria para outra, ou não?

José Carlos Couto de Carvalho – Não havia. Era o mesmo padrão. Os juízes da época eram de grande valor e não há, em geral, nada pesando contra eles. Mencionei esses dois porque foram aqueles com os quais mais convivi.

Memória MPM – O senhor recorda outros processos dessa época agitada?

José Carlos Couto de Carvalho – Além do caso do Márcio Moreira Alves, lembro-me do chamado “Processo dos Intelectuais”, orientado pelo Paulo Jorge Simões Corrêa, no qual vários jornalistas foram processados, mas também absolvidos. Havia um da UNE – União Nacional dos Estudantes, que acabou não sendo julgado. Em protesto, manifestantes haviam estendido uma faixa com os espirituosos dizeres “Abaixo a dentadura!”: eram estudantes de odontologia [risos]. Foi uma época de criatividade. Isto é, naquele contexto de compressão, era preciso encontrar meios criativos para protestar. Fui saber há

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pouco tempo, por exemplo, que a música Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, do Roberto Carlos, foi uma homenagem ao Caetano Veloso, que estava em exílio voluntário em Londres. A música parecia se remeter a uma mulher, mas era ao Caetano: “tanta história para contar...”.

Noutro processo interessante, nos anos 1970, o ex-senador Mourão Filho (não o general, mas o senador) foi envolvido numa tentativa de reorganização do Partido Comunista por ter emprestado um sítio para uma reunião. Apesar da Lei de Segurança Nacional, existia um entendimento, entre alguns juízes, de que ser comunista não era crime. Muitos não concordavam em prender pessoas apenas por serem comunistas, sem terem cometido nenhum ato ilícito, como por exemplo, o proselitismo, que seria uma tentativa de mudar o regime, algo que até hoje continua vigente na Lei 7.170, de 1983, apenas não mais de competência da Justiça Militar.

Alguns dos acusados, por sua vez, não estavam lutando pela democracia, mas pela instalação de um regime comunista, autoritário também, o que nem sempre é registrado hoje em dia. Eu não cheguei a atuar como promotor em processos de Lei de Segurança Nacional (embora tenha atuado, sim, em processos de ofensa às Forças Armadas). Mas, enfim, esse era o quadro geral que era possível observar.

Memória MPM – Acompanhando a dinâmica da Justiça Militar, o senhor acha que a luta armada contribuiu mais para a distensão progressiva do regime ou para o seu fechamento?

José Carlos Couto de Carvalho – Eu acho que a luta armada foi um erro, pois era impossível enfrentar um Exército inteiro com meia dúzia de guerrilheiros. Sem dúvida, contribuiu mais para o fechamento do regime,

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porque passou a justificar o fechamento do regime. Eu era filiado ao MDB e cheguei a me candidatar para um cargo eletivo. Éramos contrários ao regime, vivíamos o dilema de uma oposição consentida, mas não acreditávamos na adesão à luta armada como forma de enfrentamento eficaz. Lideranças como Ulysses Guimarães, Teotônio Vilella e Tancredo Neves foram fundamentais na construção de uma saída rumo ao processo de democratização. Por sua vez, foi graças à luta armada que se configurou, com tanta extensão, a figura do preso político, o que foi importante para sensibilizar a opinião pública. Na verdade, foi uma guerra na qual muitos pereceram, em ambos os lados.

Memória MPM – E o concurso para procurador?

José Carlos Couto de Carvalho – O último havia sido realizado no início dos anos 1960 e, com a Revolução de 1964, os substitutos, indicados iam sendo aproveitados: não se fazia concurso. Então, depois de vinte anos foi promovido um, pelo procurador-geral Milton Menezes. Os aprovados tomaram posse em 1981.

Memória MPM – E o senhor continuou nas Auditorias do Rio de Janeiro?

José Carlos Couto de Carvalho – Não. Assumi o cargo em São Paulo para não perder a antiguidade e passei seis meses lá. Depois, voltei para o Rio de Janeiro, à 1ª Auditoria do Exército.

Memória MPM – E na década de 1980, como foi perceber essa transição do regime civil-militar, mais fechado e ditatorial, para o regime democrático, já com a vigência da Lei da Anistia?

José Carlos Couto de Carvalho – A Lei da Anistia acabou alcançando a todos. No início, achava-se que ela não seria ampla e irrestrita,

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porque excetuava, como beneficiados, aqueles que haviam sido condenados por crimes de sequestro, de terrorismo (como o atentado à bomba em Recife)... Mas em linguagem jurídica, condenação significa trânsito em julgado, e como muitos casos não tinham essa condição, pois haviam sido apenas condenados em primeira instância, o pessoal acabou contemplado mesmo aqueles sobre os quais, por exemplo, pesavam provas concretas de protagonismo em sequestro de aviões de carreira.

De modo geral, meu grupo de concurso entrou com cautela, com um certo “pé atrás”. Mas nossos posicionamentos acabaram sendo acolhidos. O Código de Processo, por exemplo, determinava que o encarregado do processo podia deter o indiciado sem autorização judicial, sem nada, nem ao menos a motivação da prisão. No primeiro caso que chegou às minhas mãos, solicitei ao juiz que perguntasse ao encarregado o motivo da prisão. O seu retorno foi dizer que já havia soltado a pessoa. Isso mostra como as coisas estavam mudando.

Em São Paulo, um sujeito ingressou clandestinamente em um quartel. Ele até tinha prestado o serviço militar e se passava por militar. Quando a sentinela o mandou parar, ele não obedeceu, então levou um tiro na perna. Os movimentos sociais de São Paulo, pelos jornais, denunciaram que um militar havia alvejado um civil. Mas a sentinela tinha a vantagem do estrito cumprimento de dever legal e da legítima defesa. Aliás, fala-se muito no estrito cumprimento do dever legal, mas tecnicamente o militar só pode atirar mesmo em legítima defesa – dele, do patrimônio, da unidade... Não é estrito cumprimento do dever legal, porque o único que tem essa prerrogativa é o carrasco em tempo de guerra, atuando num Pelotão de Fuzilamento, por exemplo. Enfim, fui convidado a assessorar o encarregado do inquérito, um

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engenheiro, neófito em Direito. O comandante da unidade queria que eu indiciasse o réu desde logo, mas eu achei que não seria bom, porque estava todo mundo falando... O Código não exige a obrigatoriedade do indiciamento de fulano ou beltrano, só diz que há indício de crime. Recomendei ao engenheiro enviar o inquérito para a Procuradoria, que denunciaria quem achasse por bem, o que o livraria de toda aquela pressão que lhe pesava sobre os ombros. Temeroso, contudo, pediu-me para falar com o seu comandante, que muito embora tenha insistido num primeiro momento na posição, acabou acatando a orientação do Ministério Público. Dessa forma, fomos fortalecendo o respeito pela instituição. Na prática, nunca enfrentei problema no sentido de sofrer interferência externa sobre o exercício da atividade ministerial.

Memória MPM – Como procurador, o senhor visitava as prisões?

José Carlos Couto de Carvalho – Normalmente, não. Só quando havia alguma denúncia. Atualmente existe a inspeção carcerária, mas naquela época, não. Quando ingressei como procurador, também já não existiam mais presos políticos.

Memória MPM – Dos casos dos anos 1980, teve algum que lhe chamou mais a atenção?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim. Existem indícios que demonstram o respeito da criminalidade pela Justiça Militar. Havia uma disposição de que qualquer assalto a banco era enquadrado na Lei de Segurança Nacional, o que zerou esse tipo de crime no Brasil. Porque estes assaltos foram acolhidos como estratégia para mobilizar fundos para a luta armada, mas os bandidos comuns também passaram a ser julgados pela Justiça Militar. Na distensão, no período de abertura política, no governo João Batista Figueiredo,

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quando se mudou o entendimento da lei, o assalto a banco recrudesceu. Já no dia seguinte houve um assalto.

Houve também um caso de furto de armamento num depósito central, na Vila Militar do Rio de Janeiro, cujo inquérito assessorei. Um oficial R/2, que iria embora em função do tempo de serviço, resolveu fazer um “pé de meia”. Ele subtraiu armas e, para conseguir vendê-las, as levava no seu VW Brasília para um quartel ao lado, para descaracterizá-las, tirando os emblemas da República, porque ninguém compraria armamento oficial, nem bandidos, o que demonstrava o grande respeito que se tinha então pelas Forças Armadas. Normalmente, quando some uma arma de determinado quartel, as Forças Armadas sabem, porque o furto é logo indicado. Quando uma arma subtraída aparece, a origem é identificada. Já vi casos, no Tribunal, de armas aparecerem vinte anos depois. Mas como ele conseguia remover as características das armas, as vendia aos bandidos indicando se tratar de contrabando.

Veja: o pai de um cidadão, dono de uma joalheria em Curitiba, comprou sem saber uma arma furtada das Forças Armadas. Numa oportunidade em que o estabelecimento foi assaltado, os ladrões, além das joias, levaram essa arma. Ao serem presos, a arma foi aprendida. O dono da joalheria teve que responder um processo na Justiça Militar, por estar de posse de armamento desviado das Forças Armadas. Mas foi absolvido.

Enfim, aquele caso do R/2 estava sendo difícil, porque não aparecia a indicação de furto na Unidade. O investigador me disse acreditar que as armas que estavam aparecendo só poderiam ser originárias de um lugar: o depósito central de armamentos, subordinado à Brasília e não ao Comando do Rio. Quando as investigações avançaram, não deu outra! Descobriu-se o esquema.

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Memória MPM – Nos anos 1980, qual era a natureza mais frequente dos delitos julgados? Era problema de disciplina? Furto? Consumo de bebidas alcoólicas em serviço?

José Carlos Couto de Carvalho – O furto, que parece ser algo inerente ao ser humano. Houve episódios pitorescos. Funcionei em um processo onde o sujeito fez uma engenharia danada para roubar um cofre do quartel, mas se deu mal, pois dentro só havia documentos administrativos [risos]. Um ou outro homicídio também acontecia. Mas isso é raro entre militares.

No pouco tempo em que trabalhei em São Paulo peguei alguns processos envolvendo indivíduos da Prefeitura querendo levar vantagem junto ao serviço militar. Um processo de grande porte envolveu o DETRAN – Departamento Estadual de Trânsito, do Rio de Janeiro. Para facilitar, alguém do DETRAN ia ao quartel fazer exames de motorista e, nesse esquema, algumas carteiras começaram a ser vendidas. De repente, foi preso um assaltante com uma carteira fraudada. Essa situação é um exemplo do porquê sou contra as Forças Armadas assumirem funções policiais, porque acompanham os vícios. Como a Justiça Militar não tem uma especificidade, trabalhamos com crimes de todo o tipo e muitos deles até bobos, sem organização criminosa nenhuma. Nessa época, a única coisa mais organizada que vi foi a daquele oficial R/2 que furtava as armas do depósito central e as revendia.

Memória MPM – E existiram casos de quebra de disciplina?

José Carlos Couto de Carvalho – Pouca coisa. Algumas besteiras, ou fatos pitorescos, como por exemplo, uma vez um fulano passou com uma vassoura e outro perguntou aonde ele ia, recebendo por resposta que iria enfiar

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na sua mãe, diante do que o indivíduo que fez a pergunta pegou um facão e jogou-o no fulano com a vassoura. Outro caso aconteceu no Maracanã, onde um sujeito pediu fogo para acender o cigarro a outro, que mostrou o órgão genital dizendo que só tinha um palito para oferecer. O que pediu o fogo voltou com uma metralhadora: “Ó, toma fogo aí nesse teu palito!”.

Esses casos às vezes servem de ilustração para minhas aulas, porque sou professor. Quando estava prestando o concurso, participei, com o juiz--auditor Mauro Seixas Telles e outro auditor aposentado, de um curso de aperfeiçoamento, do qual acabei como monitor, pois havia feito Magistério Profissionalizante na Universidade do Rio de Janeiro, de modo que estava habilitado em didática, com o título de licenciado. Desde então, tenho atuado como professor em cursos preparatórios para os concursos de ingresso na carreira. Cerca de 80% dos hoje juízes e promotores da Justiça Militar, além de advogados e assessores de ministros, foram meus alunos.

Aposentei-me em 1995 e dois meses depois assumi a presidência da Associação do Ministério Público Militar. Em 1994, fui eleito para ser procurador-geral, com quase 80% dos votos da categoria, uma das maiores votações já recebidas, mas acabei não sendo nomeado. O ungido foi um querido amigo, Marco Antonio Bittar, nomeado politicamente pelo procurador-geral da República, Aristides Junqueira. No Brasil, o procurador-geral da República tem a prerrogativa de escolher qualquer um dos nomes da lista tríplice e o Junqueira optou pelo segundo mais votado.

Memória MPM – Essa situação precipitou sua aposentadoria?

José Carlos Couto de Carvalho – Eu havia exercido todos os cargos, inclusive o de vice-procurador-geral. Fui também corregedor e coordenador

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da Câmara de Revisão. Fui candidato a procurador-geral, mais por uma questão de apoio, porque as pessoas me pediram para sê-lo. Sempre, contudo, gostei do Magistério. Nunca deixei de lecionar, algo que seria inviabilizado pelo exercício do cargo de procurador-geral. Parei para pensar: se continuasse, possivelmente me tornaria procurador-geral noutra oportunidade, tanto que, meses depois da minha aposentadoria, fui eleito presidente da Associação. Ou seja, não exerci o cargo, mas fiquei atuando ainda por seis anos, isto é, três mandatos, sempre eleito por chapa única. Os colegas até se impressionavam por eu estar aposentado e continuar atuando. Gosto da instituição. Então, não era uma paixão pelo cargo de procurador-geral, mas desejo de contribuir para o engrandecimento da instituição.

Ajudei a constituir a Associação, que recebia pouco dinheiro em função do salário baixo dos membros, o que permitia uma contribuição pouco expressiva por parte dos associados. Nos três primeiros anos, consegui economizar recursos da Associação, usando verba do meu próprio bolso para a representação. Investi esta poupança na compra de um imóvel. Hoje nossa Associação está instalada numa bela sala, que até foi batizada com meu nome, numa homenagem em reconhecimento pelo esforço em prol da constituição de uma sede própria. Consegui deixar recursos para obras ao meu sucessor, o Dr. Giovanni Rattacaso, que terminou de equipar a sala. Para mim, acabou sendo bom não ter sido escolhido como procurador-geral, em função dessa grande quantidade de alunos que eu tinha e da contribuição que pude fazer em prol da Associação. Alguns colegas reclamaram por eu ter aceitado o resultado. Mas não havia como ser diferente. E, pessoalmente, penso que para mim foi positivo.

Já são vinte anos de aposentadoria e, até hoje, mantenho um vínculo com a Associação. Faço parte de todos os conselhos. Inclusive, algo inédito,

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mesmo aposentado, na gestão da Dra. Cláudia Márcia Ramalho, fui convidado a presidir o Colégio de Procuradores, que reúne os procuradores da ativa. Junto a essa administração eu nem tinha grandes amizades, como tenho com a gestão do Dr. Marcelo Weitzel de Souza, atual procurador-geral da Justiça Militar, que foi meu auxiliar direto na Associação, tanto que no seu discurso de posse ele disse que eu fora seu mentor político. Ele se tornou presidente da Associação em 2003, permanecendo na função até 2012, quando foi empossado procurador-geral.

Memória MPM – Qual a dinâmica do curso preparatório?

José Carlos Couto de Carvalho – O curso é permanente. Funciona em Brasília e é presencial, mas utilizamos correspondências convencionais, porque meu sistema de aulas é baseado no envio de questões, respostas, doutrina e jurisprudência pertinente. Quase como uma apostila. Mando para o pessoal de fora as aulas que ministro em Brasília. Na verdade, prefiro chamar de grupo de estudos, pois várias pessoas frequentam e recebem minhas correspondências, como juízes e promotores, no exercício da função, que gostam de se manterem atualizados. E isso me mantém atualizado também, porque uma das melhores formas de aprender é lecionar. Principalmente aqui no Brasil, onde a legislação está sempre mudando, especialmente a parte processual.

Memória MPM – O senhor participou da comissão para o projeto de atualização do Código Penal Militar? Quais foram as alterações propostas? Quais reflexões foram feitas pela Comissão?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, uma comissão mista de juízes, advogados, promotores, constituída pelo Superior Tribunal Militar. Chegamos à conclusão de que não iríamos mudar a filosofia da nossa legislação, que é

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causalista, e não finalista, como ocorreu com a legislação comum. Procuramos consertar ou aprimorar o Código de 1969, porque a nossa legislação é uma cópia do Código Penal Comum desse mesmo ano, que foi feita por Nelson Hungria e por Heleno Fragoso. Esse Código trouxe uma série de inovações, estando, inclusive, à frente da legislação comum, como, por exemplo, o problema da inimputabilidade. O sujeito inimputável é igual na legislação comum, mas na inimputabilidade da legislação militar o legislador exige, para aplicação de medida de segurança, que ele apresente periculosidade. Temos a chamada “periculosidade real”, ou seja, o juiz verifica para aplicar a medida de segurança. Na legislação comum, a medida de segurança é presumida, se o indivíduo é inimputável já se aplica a medida de segurança. A vantagem no CPM, que de maneira geral as pessoas acreditam ser mais duro, é que a medida de segurança pode ser aplicada desde que o indivíduo apresente real periculosidade. No Código Comum, o inimputável recebe a medida de segurança mesmo que não seja perigoso.

Nós adequamos também a questão do crime continuado, que no Código Penal Militar sancionava o indivíduo com a soma dos crimes. O instituto do crime continuado objetiva aplicar uma pena menor para o indivíduo que pratica pequenos delitos, como furtos menores, por exemplo. A intenção é evitar que com a aplicação de uma pena para dez, vinte furtos, um sujeito possa receber pena equivalente à de um homicida... Tanto que se diz que foi adotada a Teoria da Ficção Jurídica. Essa mudança foi proposta no nosso projeto, até mesmo porque a jurisprudência do Tribunal já assinalava nesse sentido.

Enfim, as mudanças propostas foram pontuais, até para poder facilitar a aprovação, porque se não for assim, não se consegue avançar. A reforma do Código Penal Comum, por exemplo, está há anos em discussão. A Parte

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Geral ainda é datada da década de 1940. A parte de 1969 não teve vigência e, em 1984, houve uma reforma e foram adicionados alguns dispositivos em relação ao finalismo na Parte Geral. A Parte Especial continuou a mesma. Teve algumas mudanças pontuais, como na receptação de furto por empresas. Mas o Código ainda é essencialmente o mesmo da época do Getúlio Vargas. Assim como o Código de Processo Penal.

Memória MPM – A reforma do Código de Processo Penal Militar está em andamento ainda?

José Carlos Couto de Carvalho – Ainda está em andamento, sim. Agora, depende do Congresso Nacional.

Memória MPM – O senhor tem acompanhado a discussão no Congresso Nacional a partir da proposta do anteprojeto de vocês?

José Carlos Couto de Carvalho – O anteprojeto até agora não foi apresentado por não ter ainda a aprovação do Tribunal. Fizemos uma reunião com o Plenário do Tribunal e se discutiram apenas os primeiros artigos, mas era uma questão complicada, é difícil mudar a lei. O Tribunal encaminhou um projeto em relação à Lei de Organização Judiciária, alterando alguns pontos, como, por exemplo, permitindo que o juiz-auditor presida a sessão, dando a ele mais atribuições. E, inclusive, na Justiça Militar Estadual já houve uma alteração pela qual juízes de lá passaram a se chamar juízes de Direito e julgam algumas questões singularmente. A própria Constituição, no artigo nº 109, estabeleceu que compete aos juízes federais julgar os crimes contra bens, serviços e interesses da União, ressalvada a competência da Justiça Militar, porque o crime militar é contra a União. Então, nada impediria que um juiz da Justiça Militar julgasse esses crimes considerados militares.

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Recentemente eu dei pequena contribuição na redação de um artigo, em parceria com o conselheiro Antônio Pereira Duarte, intitulado A reinvenção da Justiça Militar, no qual propomos a necessidade de uma série de alterações. Afinal, lidamos com Forças Armadas e se não tivermos regras rígidas, vira milícia. O mesmo vale para a jurisdição estadual. Por essa razão é que o Código pune o duelo, que na legislação comum foi abolido, isso em função da própria atividade, que pressupõe o porte de armas. Uma briga de funcionários de uma repartição é uma coisa, uma discussão entre dois militares é algo bem diferente. O próprio legislador constitucional entendeu essa especificidade, algo que vem sendo olvidado pela legislação ordinária, como no caso da criação do Conselho Nacional de Justiça, que não contempla a inserção da Justiça Militar.

Memória MPM – Por que a Justiça Militar não está representada no Conselho? Ela não quis ou não quiseram?

José Carlos Couto de Carvalho – Não quiseram, com certeza... Nos anos 1990, quando presidi a Associação, era possível perceber certa má vontade em relação à Justiça Militar. Creio que era ainda um tipo de rescaldo decorrente do regime militar. Outros se agarravam ao argumento da onerosidade da Justiça Militar para criticar a jurisdição. Nada disso se sustenta, sabemo-lo. A jurisdição militar especializada, antes de favorecer o corporativismo, combate-o. A ministra Maria Elizabeth Rocha, que presidiu o STM, demonstrou em uma conferência no Conselho Nacional de Justiça, que o orçamento da Justiça Militar em todo o país é semelhante ou até menor ao do Conselho Nacional de Justiça. Também mostrou que alguns Tribunais Eleitorais, embora menores que o STM, têm orçamentos maiores, e nem por isso se fala na sua extinção, justamente porque cumprem um papel constitucional essencial para a estabilidade democrática.

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Essa má vontade se dirigia também ao Ministério Público. Foi necessário um trabalho árduo para essa reversão. Consegui nossa filiação à CONAMP – Confederação Nacional do Ministério Público, e a partir daí foi melhorando a nossa relação com os outros ramos e com os demais colegas. Graças a isso, quando cheguei a uma reunião, com um colega, o Jorge Augusto Lima Melgaço, verificou-se que não estávamos no projeto de criação do Conselho Nacional do Ministério Público também. Nesse momento, protestamos. Fui conversar com o Fernando Grella [Vieira], um cavalheiro, era relator pela CONAMP das sugestões ao projeto inicial do governo. Ele concordou imediatamente. Dessa forma, o MPM tem assento no CNMP. Atualmente, essa cadeira está sendo abrilhantada pelo colega Antônio Duarte.

No artigo que mencionei, A reinvenção da Justiça Militar, há um protesto em relação a isso, porque o legislador constitucional quis realmente prestigiar a Justiça Militar, tanto que pessoas de boa vontade sabem que se a jurisdição foi importante no regime militar, segue sendo atualmente, porque senão vira milícia.

Memória MPM – Nos Estados Unidos, país com o maior exército do mundo, a Justiça Militar é Corte Marcial, não existe uma jurisdição especializada. Vocês têm algum tipo de diálogo com os Estados Unidos? Uma reflexão para entender as diferenças desses sistemas? Quais as vantagens e desvantagens do sistema americano?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, temos diálogo com os Estados Unidos, e também acho que o sistema americano tem suas desvantagens. De vez em quando alguns interlocutores vêm para cá e se interessam pelo nosso sistema. Pessoas ligadas a essa Justiça, a essa Corte Marcial. Nossa Justiça é

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um exemplo às do exterior, porque é judiciária, tem juiz togado, concursado, independente. Tem um Ministério Público. Portanto, é exemplo. Além disso, nossa realidade é diferente da de outros países, por exemplo, não temos Guarda Costeira e quem faz a patrulha das costas brasileiras é a Marinha, o Exército ou a Aeronáutica. Hoje no Brasil, as Forças Armadas são chamadas para resolver tudo o que fracassa, como a questão no Rio de Janeiro.

Memória MPM – O senhor tem acompanhado, do ponto de vista jurídico, as intervenções das Forças Armadas nessas áreas civis conflagradas do Rio de Janeiro? Que tipo de consequências isso tem produzido do ponto de vista jurídico?

José Carlos Couto de Carvalho – Têm aparecido alguns problemas porque se instalou já conflito de competências entre a Justiça Militar e a Justiça Comum em torno dos crimes propriamente militares. Há interpretações, inclusive do Supremo Tribunal Federal, descaracterizando o crime como militar em certas situações, porque não se trataria de uma atividade própria das Forças Armadas. Portanto, há insegurança jurídica para as Forças. Essa disputa de jurisdição é uma das piores coisas que existe, porque acaba se discutindo competência. No Brasil, processo de arguição de competência, não só na Justiça Militar, acaba não sendo julgado, porque os conflitos são permanentes. Inclusive, na atual conjuntura, há possibilidade de um único caso trazer conflitos entre a Justiça Comum, a Federal, a Militar Federal e a Militar Estadual.

Memória MPM – O Rio de Janeiro não tem Tribunal Militar Estadual, correto?

José Carlos Couto de Carvalho – Não, tem apenas a Auditoria da Polícia Militar.

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Memória MPM – Funciona bem?

José Carlos Couto de Carvalho – Não conheço muito a do Rio de Janeiro, mas sei que a de São Paulo funciona bem.

Memória MPM – O grande problema de São Paulo foi o Carandiru, não é mesmo? Porque o Tribunal Militar se declarou incompetente para julgar, dizendo que não havia sido crime militar e que o comando cabia ao governador.

José Carlos Couto de Carvalho – Quanto à história do Carandiru, não posso opinar, porque não a conheço. Mas aconteceu um caso pior na jurisdição militar de São Paulo: a Favela Naval. Lembra-se de um tal “Rambo”, o Otávio Lourenço Gambra? Mas a questão foi resolvida, porque a revisão da Constituição estabeleceu, e eles estão felizes com isso, que crime praticado contra civil é um crime comum, então é competência do Tribunal do Júri.

Memória MPM – O senhor acha isso bom?

José Carlos Couto de Carvalho – Em âmbito da Justiça Militar Estadual se acredita que esta fórmula está dando certo, mas na Federal eu acho que não.

Memória MPM – E se nós tivermos a figura do policial militar justiceiro, que acredita que bandido bom é bandido morto? Porque se ele for para o Tribunal do Júri Comum, tende a ser inocentado e festejado, não é?

José Carlos Couto de Carvalho – Exatamente. Isso não é bom. A Polícia Militar Estadual está satisfeita porque está sendo absolvida, mas para a sociedade isso não é bom.

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Memória MPM – No caso da Favela Naval, o senhor teve alguma participação no processo?

José Carlos Couto de Carvalho – Feito um projeto de lei pelo governo para mudar a competência dos crimes de militares contra civis para o Tribunal do Júri, fui convidado por um tenente, que agora é tenente-coronel, para uma reunião – na época ainda era o chamado Estado-Maior das Forças Armadas –, para discutir o ponto. Ele me pediu para que eu fosse, pois, sendo tenente, se demonstrasse opinião, poderia levar uma “chave de galão”. Lá chegando, argumentei contra a proposta, por vários motivos, sendo um deles justamente o de que grande parte do povo acredita que “bandido bom é bandido morto”. Tratei inclusive da questão dos crimes dolosos contra a vida, que está em discussão até hoje na Justiça de São Paulo. Nisso existe um problema seríssimo, que é a figura do dolo eventual e da culpa consciente. Um caso emblemático foi o do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, em que a promotora Maria José Miranda denunciou os envolvidos por dolo eventual e a juíza Sandra de Santis Mendes de Faria Mello, esposa do ministro Marco Aurélio Mello, entendeu que era culpa consciente, o que é uma fronteira tênue. Então foi para o Tribunal de Justiça, no qual foi considerado culpa consciente, mas a promotora Maria José recorreu para o STJ e assim conseguiu que o réu fosse condenado por crime doloso contra a vida. Enfim, como vamos saber se é dolo eventual antes do julgamento? Porque nosso Código adotou a chamada Teoria do Consentimento, pela qual o dolo eventual só é considerado se o indivíduo consentir no resultado. Porém, isso é muito íntimo, é difícil de ser provado. O que alguns juízes estão aplicando hoje, em acidente de trânsito, por exemplo, não é a Teoria do Consentimento que está no Código, mas a Teoria Sintomática, a da Probabilidade. Coloquei todas essas objeções e o

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Estado-Maior das Forças Armadas encaminhou ao presidente. Por fim, eles sancionaram o projeto e, imediatamente, o encaminharam com disposições e motivos do ministro Nelson Jobim, adicionadas as nossas objeções, e assim foi assinado em função do problema de São Paulo. Mas para as Forças Armadas e a Justiça Militar da União foi feito outro projeto sem essa previsão.

Memória MPM – No caso de um militar da União que comete crime doloso contra a vida de um civil, ainda hoje isso é competência da Justiça Militar?

José Carlos Couto de Carvalho – Nesse caso existe o Acórdão do Tribunal estabelecendo a inconstitucionalidade, já que em nível federal não teve a Emenda Constitucional feita para as Polícias Estaduais. Já o Supremo entende que não. Recentemente foi morto um civil por um cabo da Marinha, em uma das ocupações no Rio de Janeiro, e o assunto está dando discussão. Nosso promotor mesmo entendeu que não era crime militar.

Memória MPM – E os crimes da Guarda Nacional são de competência da Justiça Militar?

José Carlos Couto de Carvalho – A princípio, não, porque esta Guarda é formada por policiais militares. Não temos amparo legal para que haja essa competência por parte da Justiça Militar da União.

Memória MPM – Eles têm quartéis também, não é?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, mas não é da Força e nem da Polícia Militar, a Guarda Nacional é um tipo de limbo.

Memória MPM – Caso haja desvio de verba ou armamento, ou algum tipo de crime administrativo no quartel, como fica?

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José Carlos Couto de Carvalho – Aí, não existe amparo. Só vejo possibilidades de julgamento nessas questões que se enquadram no artigo 9º, se eles praticarem um crime contra o patrimônio da sua administração, aí teria que ser da administração da Polícia Militar.

Memória MPM – Eventualmente, não poderia existir uma Auditoria da Força Nacional?

José Carlos Couto de Carvalho – Me parece que não, porque na Constituição fala das duas Justiças: a Federal e a Estadual.

Memória MPM – Daí cria uma Força Pública Nacional, que se comporta como Polícia Militar, com funções específicas de Polícia Militar, mas é Federal, da União. É uma figura estranha...

José Carlos Couto de Carvalho – No Brasil há uma série de problemas a serem resolvidos. Uma das primeiras coisas que seriam necessárias é acabar com esse problema de competência, porque isso leva à impunidade. Essa questão nossa não está bem-resolvida, porque o Supremo não entende como o STM. Esse é um problema muito sério para as Forças, porque eles estão no Brasil inteiro, com o policiamento naval, o policiamento de fronteiras, por exemplo.

Memória MPM – Qual é o entendimento que se tem em relação às missões militares do Brasil no exterior, como no Haiti e na base da Marinha na Antártida?

José Carlos Couto de Carvalho – Temos um fato interessante, que o processo comum desconhece: a extraterritorialidade da Lei Processual Penal Militar, a qual pode alcançar fatos praticados no exterior se a Força estiver fora

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do território nacional. Então, por exemplo, não se faz julgamento lá, a não ser em tempo de guerra. Inclusive trabalhei em uma máquina que acompanhou a Justiça Militar na Segunda Guerra Mundial. A guerra acabou em 1945 e eu entrei em 1967 e, na Auditoria da Aeronáutica tinha uma dessas máquinas que havia pertencido às Forças Expedicionárias. Há uma previsão no Código para que uma Auditoria acompanhe cada Força quando houver uma expedição no exterior, e uma acompanhou a da Segunda Guerra Mundial. Porém, atualmente não existe uma Auditoria no Haiti, o processo que se aplica hoje nas expedições do Brasil no exterior, não sendo em tempo de guerra, é apenas a parte de inquérito, ou do flagrante. A competência pelo julgamento é de uma Auditoria da Capital da União, no Distrito Federal. Ou seja, o flagrante e o inquérito do crime praticado no exterior são lavrados e feitos no local e depois vêm para o julgamento no Brasil.

Memória MPM – E como se dá a relação com a ONU?

José Carlos Couto de Carvalho – Há protocolos. Uma das cláusulas estabelece que cada um seja julgado conforme sua nacionalidade. Por exemplo, se houver um problema no Haiti, o haitiano é julgado pela Justiça do país dele e o brasileiro pela Justiça do Brasil. Mas a extraterritorialidade é apenas para questões anteriores ao juízo, como a abertura de inquérito e o flagrante. Na Justiça Comum não se pode fazer isso, não se pode prender alguém em flagrante fora do território nacional.

Memória MPM – Se houvesse algum caso sendo investigado em relação às Forças Armadas no Haiti, seria enviado um investigador para lá?

José Carlos Couto de Carvalho – Inicialmente seria instaurado o inquérito pelo comandante da Força, mas como o Código prevê várias

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hierarquias, se fosse um caso em que abrangesse até o comandante, aí sim poderia ser encaminhada outra autoridade, superior a ele. Porque na nossa Justiça não existe a Polícia Judiciária constituída. Quem é da Polícia Judiciária Militar? Os comandantes, até os da Unidade, que são dotados de poder de Polícia Judiciária. Não existe uma Polícia. Mas pode ser nomeado um general, por exemplo, para instaurar o inquérito. Nosso Código ainda tem disposições severas para o tempo de guerra, inclusive o rapto, que já foi revogado na legislação comum. E essas disposições não foram revogadas na Justiça Militar, porque o tempo de guerra é muito sério. Redigi um artigo com a minha filha, para o Ministério da Justiça, em que fizemos um levantamento do tempo de guerra e constatei um fato interessante: um soldado brasileiro estuprou uma nonagenária; ela resistiu e ele a agrediu. Noutro caso rumoroso, dois soldados embriagados estupraram uma menina de 14 anos e mataram o tio, que chegou no momento e tentou defendê-la. A Justiça Militar cumpriu seu dever condenando à morte os acusados. Houve posteriormente anistia para os que cometeram crimes em tempo de guerra, excluída essa condenação. Os dois acabaram indultados no Brasil pelo Getúlio Vargas, com base em um parecer do Roberto Lira, que de jurídico não tinha nada, pois sustentava que os dois teriam matado por serem “mulatos rejeitados”. De modo geral, os brasileiros eram muito queridos na Itália, mas havia esses casos, sexuais, pontuais, que deviam ser fortemente reprimidos.

Memória MPM – O senhor participou do processo de confecção da Lei Orgânica do Ministério Público da União?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim. Foi uma experiência muito interessante, porque tínhamos certa desvinculação com o Ministério Público Federal. Foi uma luta! Tivemos de lutar pelo direito de atuar junto

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ao Supremo, como o MPF, pois a Constituição prevê caber recurso ao Supremo das decisões de única instância do STM, como, por exemplo, um habeas corpus – na Justiça Militar é o STF que os julga. O projeto em si, do Ministério Público da União, na verdade, foi aprovado sem muita noção do que se estava aprovando. Quando descobri que a nossa Lei Orgânica estava para sair, fui conversar com o deputado Roberto Freire, líder do governo, que me disse que ela não entraria para discussão tão cedo. Porém, no dia seguinte, foi votada. Então eu e o Marco Antonio Pinto Bittar lutamos juntos para conseguir o melhor posicionamento do Ministério Público Militar, em termos de identificação com a estrutura do Ministério Público da União, como o cargo de sub-procurador-geral. Nossa luta foi realmente para que ficássemos prestigiados. Eu era representante de entidade de classe nesse momento. Ainda temos o problema do inquérito civil público. O Ministério Público Militar muitas vezes constata questões, como as ambientais, mas não tem atribuição competente para instaurar ações. Essa fronteira é suscetível de discussões. Há casos de inquéritos civis propostos pelo Ministério Público Militar, porém, ação civil não pode. Por esse motivo até pensamos na questão da transação e na possibilidade de um Termo de Ajustamento de Conduta, que caberia não somente nas questões ambientais em áreas militares, mas na saúde, no patrimônio histórico. Há um ofício de um procurador-geral da República, determinando que as Forças não atendam aos pedidos do Ministério Público. Mas foi um caso isolado, pois, em geral, os pedidos têm sido admitidos. Para evitar o conflito de atribuições acredito que tais questões deveriam ser melhor delineadas.

Memória MPM – E o trabalho com a Defensoria Militar? O senhor atuou junto a ela?

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José Carlos Couto de Carvalho – Sim, atuei. Quando comecei, existia o cargo de advogado de ofício, cujos titulares sempre se desempenharam muito bem. Diversos alunos meus ingressaram depois na Defensoria. O advogado de ofício é o embrião da Defensoria no Brasil. Os defensores são importantes, em vários sentidos, até porque eles têm levado questões relevantes ao Supremo.

Memória MPM – Em relação à sociedade em geral e à imprensa, como o senhor pensa a percepção sobre a jurisdição militar e sobre o Ministério Público Militar, especificamente?

José Carlos Couto de Carvalho – Por mais que os esforços tenham sido desenvolvidos, persiste um desconhecimento problemático. Eu fiz a Escola Superior de Guerra e, na própria ESG, os militares não têm uma noção correta do que seja a Justiça Militar ou o Ministério Público Militar, até mesmo do que é o Ministério Público em modo geral. É comum as pessoas acreditarem que o promotor está às ordens do juiz, ou do governo. Até entre jornalistas há opiniões que revelam falta de conhecimento sobre a competência e o funcionamento da Justiça Militar, nos chamando de “generais de pijamas”. Personagens assim até existiram naquele Tribunal Marítimo, um órgão administrativo que julga acidentes de navio, que existe ainda hoje. Mas na Justiça Militar não é assim. As pessoas não sabem que existem civis no Ministério Público Militar. Há, sim, um desconhecimento enorme. Um fato interessante é que embora as Forças Armadas tenham prestígio junto à população, a Justiça Militar segue desconhecida, e muitas vezes desconsiderada, inclusive nas próprias Faculdades de Direito. Já participei de programas que procuravam reverter esse quadro. No Rio de Janeiro, o Comando do Exército promovia palestras para os alunos dos cursos de Direito, no mês de julho. Muitos daqueles ouvintes vieram estudar comigo e se encantaram com o Direito Penal Militar. Fui professor na

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Universidade Gama Filho também, instituição que, aliás, não é mais o que foi. Houve lá má gestão. Professores e funcionários foram lesados.

Memória MPM – De vez em quando ainda ouvimos discursos por aí pelo fim da jurisdição militar...

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, inclusive dizendo que nosso Código é um decreto-lei. Mas não sabem que o Código Comum também é. Ambos são do período de Getúlio Vargas. No caso da Justiça Militar da União, é preciso lutar contra o esvaziamento da jurisdição. Há uma tendência, por exemplo, para retirar os civis da competência da Justiça Militar da União. Na estadual, essa competência já não existe. Mas na jurisdição federal, o reflexo é muito grande em termos de civis. Por exemplo: existe furto em unidades militares porque há receptadores, que são civis. Então, o crime é conexo. Nós não podemos separar quem vendeu de quem comprou. Outro exemplo é a questão das pensões militares: quando um sujeito morre, um familiar, na maioria das vezes civil, pode conseguir enganar a administração e se apropriar da pensão. Existiam os crimes culposos cometidos por civis contra o patrimônio militar, como viaturas, os quais hoje o Supremo já tirou da competência da Justiça Militar, porque na legislação comum também não existem mais.

Memória MPM – Como as coisas funcionam na base da Marinha na Antártida? O que ali acontece é ou não atribuição da Justiça e do Ministério Público Militar? E como é o tratamento aos civis que estão lá?

José Carlos Couto de Carvalho – Pelo sistema atual, qualquer crime praticado lá, que atente contra as instituições ou contra os militares, é considerado crime militar, como, por exemplo, aquele incêndio que destruiu a base. O artigo 9º tem duas vertentes: a dos crimes praticados

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por militares e a dos crimes praticados por civis, contra militar em serviço, contra o patrimônio sob administração militar, sendo coautor, como em peculato, por exemplo. Esse artigo é bem delineado. No inciso I, são crimes previstos apenas na Legislação Militar, como a deserção e a insubmissão e, os crimes definidos de modo diverso, porque temos alguns crimes definidos como “diversos” tanto na Lei Penal Comum, quanto na Militar, como “falso testemunho”. Na Lei Penal Comum é falso testemunho, no nosso Código é “falsear a verdade em processo militar”, etc. Por isso tem a definição diversa, o legislador coloca um plus. Outro exemplo é dar ensejo à instauração de processo, um tipo de denunciação caluniosa. A autoacusação falsa de um crime militar também se encaixa em crimes diversos. A autoacusação falsa tem na legislação comum? Sim. Mas na nossa é diferente, a definição é diversa, porque ele se acusa da prática de um crime militar, o que às vezes acontece. O ator Tarcísio Meira Filho foi vítima de um atentado cometido por um contraventor chamado Waldemir Paes Garcia, mais conhecido como “Maninho”, assassinado posteriormente. Na ocasião, a namorada desse sujeito começou a olhar para o Tarcísio, por isso o Maninho disparou contra ele com arma de fogo, mas acabou acertando um amigo do rapaz, que estava com ele e ficou paraplégico. Um tempo depois um sujeito apareceu, dizendo ser o responsável pelos disparos, mas quando foram fazer a reconstituição ele não sabia nem como segurar a arma. Ou seja, era uma autoacusação falsa para proteger o tal de Maninho. Esse caso foi um crime comum, mas se fosse cometido por um militar e, o sujeito se autoacusasse indevidamente, seria crime militar. O delineamento pelo Código é fácil, o problema é que existem algumas interpretações do Supremo que afirmam não haver crime militar se não houve atentado contra as instituições militares.

JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO

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Memória MPM – No caso da base da Antártida, digamos que um pesquisador civil de uma Universidade cometa um crime qualquer contra outro civil, mas dentro da base. Como fica?

José Carlos Couto de Carvalho – Nesse caso é crime comum. Mas mesmo aqui no Brasil, em tempo de paz, pelo artigo 9º, é considerado comum, pois diz que crimes praticados em lugares sujeitos à administração militar só são de competência da Justiça Militar se o civil o cometer contra militar em serviço, entre outras situações. Civil contra civil, mesmo dentro da base militar, é crime comum.

Memória MPM – Mas, nesse caso, com o crime tendo sido cometido em área de administração militar, o inquérito seria feito pelo comandante da unidade?

José Carlos Couto de Carvalho – O comandante da base pode até abrir inquérito para investigação, porque isso não gera nulidade. Se um inquérito militar for feito até o final, serve para o promotor comum oferecer a denúncia. Porém, se a pessoa que está sendo submetida ao inquérito entender que não foi crime militar e alegar estar sofrendo constrangimento, pode entrar com um habeas corpus e trancá-lo. O artigo 9º tem muitas nuances; digo para os meus alunos que ele é um jogo de xadrez, pois uma única circunstância pode mudar tudo. Por exemplo, um sujeito em um guichê de unidade militar, sendo funcionário civil, se ele ficar intencionalmente com parte do dinheiro de uma pensionista que foi até lá receber o seu pecúlio pessoalmente, seria estelionato, praticado por um civil contra um civil, um crime de jurisdição comum. Porém, se a senhora se engana e entrega o dinheiro a mais para ele, que permanece em silêncio, sendo funcionário civil da administração, ele está praticando crime

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de peculato contra a administração, mediante erro de outrem e, dessa forma, se caracteriza como crime militar. Ou seja, essa nuance, até na tipificação do crime, pode se transformar em comum ou em militar.

Memória MPM – O senhor ajudou a instalar a Câmara de Revisão, não é? Como foi essa experiência?

José Carlos Couto de Carvalho – Foi muito boa. Na verdade, fizemos o primeiro regimento e, inclusive, os outros ramos pediram cópia. Nós fomos pioneiros.

Memória MPM – Existe alguma especificidade em relação à Câmara daqui com a dos outros ramos do Ministério Público?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim: o nosso MP é só criminal e os outros ramos têm questões não criminais.

Memória MPM – Possíveis inquéritos cíveis podem chegar à apreciação da Câmara?

José Carlos Couto de Carvalho – A princípio, não. Nosso processo se limita à parte criminal. O que é previsto para nosso alcance é o arquivamento de inquérito, mas por essa questão de conflito de atribuições, até poderia, dependendo do caso, pois é de competência da Câmara decidir conflitos de atribuições entre membros. No Direito nunca podemos dizer não, sempre há um contorno. Meus alunos às vezes me perguntam se algum caso é possível e eu digo que por enquanto não sei, mas podemos descobrir um dia. Por isso que os advogados têm sucesso, porque quanto mais conhecimento adquirem, mais brechas encontram.

JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO

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Memória MPM – A Câmara foi uma concepção da nova Lei Orgânica de 1993?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, foi baseada nela. Um aspecto interessante foi que havia a possibilidade de eleição para procurador-geral, que poderia ser até o membro mais antigo. Há uma restrição para esses cargos de subprocuradores-gerais, como, por exemplo, o vice-procurador-geral de Justiça tem que ser subprocurador de Justiça, assim como o diretor da Câmara de Revisão. Todavia, um promotor pode ser procurador-geral de Justiça. De tal maneira que a Câmara de Revisão previu inicialmente um instrumento de controle com possibilidade de rever inclusive atos do procurador-geral, mas esse dispositivo acabou não sendo aprovado dessa forma. Hoje, se o procurador- -geral arquiva, independentemente do pensamento da Câmara, o caso continua arquivado. Ela tem poder apenas opinativo, não de decisão nessa questão. Mas, no projeto inicial, a Câmara faria revisão até nos atos do procurador-geral.

Memória MPM – E o Conselho Superior?

José Carlos Couto de Carvalho – Nos outros ramos do Ministério Púbico da União o Conselho Superior é eleito, no nosso não. Porque quando saiu a Lei Orgânica nós éramos apenas cinco subprocuradores, não tinha como eleger. Posteriormente é que aumentou para treze.

Memória MPM – O senhor chegou a conhecer alguns dos antigos ministros do STM?

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, conheci alguns e eram pessoas extraordinárias. O Alcides Vieira Carneiro foi considerado um dos maiores oradores do Brasil. Conheci também o Georgenor Acylino de

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Lima Torres, o João Romeiro Neto, que foi um dos nossos maiores juristas. O Heleno Fragoso traz, nesse livro que citei anteriormente, vários acórdãos desses ministros, de forma bem judiciosa, em termos até de problemas de Segurança Nacional, pois, por incrível que pareça, o índice de absolvição do Tribunal era grande.

Memória MPM – Os réus de crime de Segurança Nacional quando ouvidos em audiência diziam que não reconheciam a jurisdição militar...

José Carlos Couto de Carvalho – Sim, essa era uma questão até de defesa mesmo. Os advogados diziam: “Onde já se viu o Estado ser complacente com seu próprio ofensor?”. Eles reconheciam o próprio crime, pois estavam atentando contra o Estado. Mas teve muitas decisões e absolvições; quem tiver boa vontade vai encontrar.

Antes do período revolucionário, um que foi um grande conciliador foi o Juscelino Kubitscheck. Porque o processo de deserção fica arquivado até a captura do desertor, mas havia poucos quando cheguei à Auditoria, pois ele dera anistia, inclusive aos que haviam conspirado contra ele naquele episódio de Jacareacanga, de Aragarças. Ao contrário do Leonel Brizola, que colocava fogo na coisa. Conheci uma senhora que participava do “Grupo dos Onze”. Era uma conversa fiada! Eles pegaram uns pobres coitados para assinar e integrar os tais grupos. O Brizola levava essa conversa muito a sério, mas as pessoas do Rio de Janeiro que conheci desse Grupo eram sem importância, sem conhecimento de guerrilha. Eu gostava de ouvir o Brizola falar, porque ele empolgava.

Memória MPM – Há algo mais que o senhor gostaria de registrar?

JOSÉ CARLOS COUTO DE CARVALHO

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José Carlos Couto de Carvalho – É muita coisa para ser lembrada... Bom seria se pudéssemos registrar aos poucos, como o Getúlio Vargas fez com o diário e assim as coisas não se perdem. Quando a gente começa a rememorar na entrevista, mais coisas vão aparecendo na memória.

Mas há uma história pitoresca para a qual cabe algum registro. Eu costumava ir até o STM para pegar carona de volta do trabalho com o meu tio. Lá conheci o João Ferreira de Araújo, que fora sargento da Marinha. Meu tio me contava uma história sobre o general Olympio Mourão Filho, que tinha de receber uma injeção nas nádegas regularmente. No dia em que teve a Passeata dos Cem Mil, com protestos e gritaria, o Tribunal foi cercado. Diante disso, o general Mourão Filho teria dito que não queria receber a injeção, porque se acabasse morrendo naquele dia, não iria querer morrer com as nádegas furadas [risos]. Muitos anos depois, descobri que o enfermeiro que iria aplicar a injeção era justamente o nosso colega Ferreira [risos]. O Ferreira formou-se em Direito e foi nosso colega durante o concurso; foi colega do Oscar Lorenzo Jacinto, que era da Maçonaria. Ele tem histórias sensacionais.

Memória MPM – Muito obrigado pelo seu depoimento.

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MAR

ISA

TERE

ZINHA

CAU

DURO

DA

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AEntrevista realizada na residência da entrevistada, em Canela, no dia 29 de março de 2015, por Gunter Axt.

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Marisa Terezinha Cauduro da Silva nasceu em Porto Alegre no dia 20 de julho de 1943. Filha de Guaracy Cauduro da Silva e de Nely Silveira da Silva. De seu primeiro casamento, com Gilson Silva da Fonseca, teve três filhos. Casou-se, em 2004, com o subprocurador-geral de Justiça Militar Péricles Aurélio Lima de Queiroz. Começou o curso de Direito em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, e o concluiu na Universidade Federal do Amazonas, em 1978. Advogou em Manaus e foi, em seguida, aprovada em concurso para técnica judiciária da Justiça Militar, ajudando a instalar, em 1979, a secretaria da Auditoria da 12ª CJM, em Manaus. Em 1984, prestou concurso público para ingresso no Ministério Público Militar, assumindo como procuradora militar de segunda categoria, na 1ª Auditoria da Procuradoria de Justiça Militar da 3ª CJM, em Porto Alegre, em 12 de fevereiro de 1985, onde permaneceu por oito anos. Exerceu, ainda, o cargo de promotora de Justiça Militar em Juiz de Fora. Foi promovida, em 21 de fevereiro de 1995, por antiguidade, a procuradora de Justiça Militar, sendo transferida para o Rio de Janeiro. Em 8 de fevereiro de 1996, também por antiguidade, foi promovida a subprocuradora-geral de Justiça Militar. Em 30 de abril de 1997, foi nomeada para o exercício das atribuições de corregedor-geral do Ministério Público Militar, para mandato de dois anos. Em 26 de junho de 2000, foi eleita, pelo Conselho Superior do Ministério Público Militar, para exercer o cargo de vice-presidente, com mandato de dois anos. Em 9 de maio de 2000, foi designada membro da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar, também para o mandato de dois anos. Em 26 de março de 2002, depois de figurar em lista tríplice constituída a partir de eleição interna, foi nomeada procuradora--geral de Justiça Militar, tomando posse no dia 8 de abril de 2002. Em 18 de junho de 2010, aposentou-se voluntariamente.

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Memória MPM – A senhora é natural de onde?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – De Porto Alegre.

Memória MPM – Onde a senhora estudou?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Em Porto Alegre. Fiz o primário no Colégio Venezuela e no Colégio Inácio Montanha. No 2º grau, fui interna em Canoas, por cinco anos, no Maria Auxiliadora, um colégio só para meninas. A minha mãe ficara viúva muito cedo, de modo que ela precisou batalhar para manter a família. Foi trabalhar e obteve bolsa de estudos para as cinco filhas, contando com minha irmã de criação. Todas estudaram como bolsistas. Naquela época, esse benefício escolar ajudava a preencher, em parte, a lacuna causada por insuficiência de vagas na rede de ensino público, essencial para quem não dispunha de recursos para custear escolas privadas para os filhos.

Quando meu pai faleceu, eu tinha treze anos. Ele faleceu ao meu lado. Era um domingo de Grenal – o Grêmio Porto Alegrense tinha se sagrado campeão estadual e ele era gremista “doente”. Minha irmã mais nova, a Clarice, tinha três anos. E nós íamos a um aniversário. Ele mandou a gente ir se arrumando e disse para avisá-lo quando estivéssemos prontas. Mencionou estar com um pouco de dor de cabeça e achava que podia estar com febre. Deu um problema e em segundos ele estava morto. Foi algo bem chocante. Segundo os médicos, foi um edema pulmonar. Esse fato marcou minha vida.

Meu pai sempre fora um homem saudável. Era inspetor de Polícia, instrutor de voo. Ele adorava voar. A gente voava muito com ele, naqueles monomotores de instrução, teco-tecos. Foi algo tão marcante que, daquele dia em diante, eu acredito que as pessoas têm uma missão para cumprir aqui, nesse

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plano terreno. Quando Deus chama, vai na hora. Ninguém é mais importante que ninguém. A vida é frágil e pode ser efêmera. Cada um tem a sua hora.

Memória MPM – Ele que era Cauduro?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, meu pai era Cauduro. Meus bisavôs, avôs dele, vieram do norte da Itália, num navio, com os oito filhos, em torno de 1880. Era uma família numerosa. Acho que os Cauduro são todos parentes, porque vieram da mesma região. Mas a família se espalhou.

Memória MPM – E a sua mãe, tinha profissão?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A minha mãe costurava em casa. Quando meu pai faleceu, minha avó tinha ficado viúva e morava conosco. Era a casa das sete mulheres: cinco filhas, a minha avó e minha mãe. O padre Emílio, do Colégio Anchieta e do Círculo Operário, arranjou serviço para a minha mãe, um trabalho em um escritório. Depois, ela fez concurso para agente penitenciária e foi trabalhar no Manicômio Judiciário de mulheres em Porto Alegre. Ela falava para as senhoras: “As minhas filhas vêm aqui no domingo.”, quando ficava de plantão. Daí, elas preparavam um bolo. Aquelas senhoras de cabelo branco pediam bênção para nós. A gente achava meio estranho. As perigosas, mesmo, ficavam dentro das celas. Todas ali tinham matado alguém.

Bem, mas voltando aos estudos, achei fantástico o internato! Aprendi a comer banana com garfo e faca...[risos]. Tirando esses exageros, me dei muito bem com as freiras. Na verdade, aprendi logo que tinha que ser bem amiguinha delas, porque se não...

Depois de finalizado o 2º grau, me casei, com um militar, recém--saído da Academia. Fomos morar em Santa Maria, onde nasceram meus

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dois primeiros filhos. Depois, fomos para Foz do Iguaçu, Francisco Beltrão e voltamos a Porto Alegre, em uma rápida passagem, donde nos transferimos para o Rio de Janeiro. De lá, para Manaus e de volta para o Rio, onde nos divorciamos, depois de dezessete anos de casamento. Ele sempre foi um pai zeloso para meus filhos. No Rio de Janeiro tivemos nossa terceira filha, dez anos depois de casados. Ela mora em Brasília.

No Rio de Janeiro, comecei a me questionar se a vida seria só isso: uma casa, cuidar dos filhos... Aquilo me incomodava. Eu dependia integralmente do meu marido. Tínhamos ido para o Rio de Janeiro porque ele foi cursar a Escola de Educação Física. Eu desejava voltar a estudar. Quando fôramos morar em Cruz Alta, retomara os estudos. Passei um ano inteiro estudando para o vestibular. Conquistei o oitavo lugar depois de ter parado bastante tempo.

Memória MPM – Fez vestibular onde? Em qual Universidade?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fiz em Cruz Alta.

Memória MPM – Vocês ainda estavam casados, então?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Eu estava com trinta e dois anos. No segundo ano do curso, fiquei grávida. Mas ela nasceu no Rio de Janeiro, para onde retornamos para ele cursar a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Eu fui até a Universidade Gama Filho para me matricular, mas já estava com cinco meses de gravidez, com uma barriguinha. Para ir de carro, era impossível, tinha que chegar às 4h30 para conseguir uma vaga no estacionamento. Fui duas vezes de ônibus, mas era difícil. Decidi que não dava e tranquei a Faculdade.

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Quando meu marido concluiu a EsAO no Rio, fomos para Manaus. Matriculei-me na Universidade Federal do Amazonas e terminei o curso, mas corri atrás do tempo perdido. Cursei minha Faculdade em quatro anos e meio. Quando me formei, já trabalhava com um advogado, meu professor, Dr. Ralf Proença; ele tinha um bom escritório. Para os clientes pobres que chegavam lá, ele dizia: “Sou um advogado que cobro bem, agora, a minha colega ali, não.”. Daí, me encaminhava os mais pobres. Era um jeito que ele tinha de atender, também, aos mais pobres. Para mim foi bem gratificante. Trabalhei muito na Justiça do Trabalho, para pessoas que precisavam mesmo.

Memória MPM – Essa advocacia foi em Manaus?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Isso, em Manaus. Quando me formei, o Dr. Ralf começou a me incumbir de audiências judiciais. Ele tinha horror de avião, então fui a uma audiência em Rio Branco, no Acre, no lugar dele. Foi minha primeira audiência. Estranhei a diferença de fuso horário em relação a Manaus. A cidade era muito simples, organizada em torno de uma praça central. Tinha mais buraco do que asfalto. No restaurante do hotel, considerado o melhor da cidade, havia apenas uma opção, e tudo o mais, que constava no cardápio, não tinha na prática. Havia muitas moscas, por tudo! Depois do almoço, fui descansar. Acordei perto das 16 horas, olhei pela janela e não enxergava mais a praça, tanto era o pó! Os carros iam passando e levantando poeira. Era domingo e o pessoal ia passear de carro no entorno da praça. Eu me formei em Manaus e minha primeira audiência foi no Acre.

Quando cheguei à audiência, estranharam, pois estavam esperando um advogado e, de repente, chegava “uma fada” – eu aparentava ser mais jovem do que era. Eu comentei: “Olha, sou tão advogada quanto o senhor, não sou

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fada, sou uma advogada.”. O juiz era tão neófito, na condução do processo, que praticamente conduzi a audiência. Sem exagero. A sentença saiu um ano depois, favorável à “fadinha”.

Logo em seguida abri um escritório, em Manaus, com uma colega, muito próxima. Íamos aos maiores escritórios da cidade, a maioria pertencentes a ex-professores, e dizíamos que estávamos aceitando clientes que eles não podiam atender, que mandassem para nós, pois estávamos iniciando nosso escritório, que estava muito bem-instalado. Para diferenciarmos, passamos a utilizar papel rosa. Em uma audiência, na Justiça do Trabalho, um advogado reclamou do nosso papel cor-de-rosa. Então, o juiz perguntou: “O senhor está conseguindo ler? Porque isso é o que interessa e não a cor do papel.”. O juiz tinha sido nosso professor e nos defendeu, já que o papel rosa não era proibido. Isso marcava nossa atuação!

Nessa época, abriu concurso para técnico judiciário da Justiça Militar. Como eu era casada com um militar que estava sempre na iminência de uma transferência, achei que seria uma boa opção. A Auditoria Militar da 12ª Circunscrição estava sendo instalada em Manaus e eles queriam servidores da região. Tirei o primeiro lugar no concurso. Assim, ajudei a instalar a Auditoria. Um ano depois, assumi a direção da secretaria. Foi bem interessante. Permaneci cinco anos atuando como servidora da Justiça Militar.

Memória MPM – Como era a rotina da Auditoria? Algum caso que tenha lhe chamado mais a atenção?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, um julgamento em que Luiz Inácio “Lula” da Silva, então sindicalista, mais tarde presidente da República, era réu. Lula fora enquadrado na Lei de Segurança Nacional

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por uma frase proferida em um comício em Brasiléia, no Acre, em 1980. O comício era em protesto pelo assassinato do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município. Pouco depois, um capataz, acusado dessa morte, foi linchado por sindicalistas. Lula foi acusado de incitamento à violência. O julgamento aconteceu em março de 1984. Muitos famosos compareceram, como a cantora Fafá de Belém, então no auge do sucesso, e a atriz Dina Sfat. Também estava lá o deputado federal Miguel Arraes. Os réus foram defendidos por Eduardo Greenhalgh, Sepúlveda Pertence e Heleno Fragoso, grandes advogados. Foi um acontecimento! Havia muito interesse da imprensa. Os réus foram absolvidos.

Memória MPM – E o ingresso no Ministério Público?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Durante esse período na Justiça Militar eu já focava o Ministério Público. Os concursos haviam sido retomados, depois de longo período, mas se exigia quatro anos de prática forense. Por coincidência, quando consegui fechar o tempo necessário, abriram os concursos para a Advocacia de Ofício – atual Defensoria Pública da União, e o MPM. Fiz os dois concursos. Depois de cinco anos atuando na função de diretora da secretaria da Auditoria, eu estava muito experiente e julguei que esse seria o caminho. Obtive o 2º lugar no concurso nacional para advogado de ofício, e 4º lugar no Ministério Público Militar. Na época, os cargos da carreira do MPM eram denominados procurador militar de segunda e primeira categoria, sendo que o cargo dos subprocuradores-gerais era comissionado. Essa nomenclatura, diziam, atendia à paridade de cargos com os procuradores da República e procuradores do Trabalho. Fui chamada para assumir a vaga de advogado de ofício titular na Auditoria da 5ª CJM, em Curitiba, antes do previsto, pois o candidato, um juiz de Pernambuco, que

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passara em primeiro lugar, desistira. Um parêntese: naquela época, os cargos de advogado de ofício eram providos pelo Superior Tribunal Militar, porque ainda não havia sido criada a Defensoria Pública da União. Era um quadro pequeno, com um advogado titular e dois substitutos em cada Auditoria, cumprindo-lhes a defesa dos praças e dos necessitados. Embora inseridos no organograma do STM, possuíam completa independência na função, e não tinham chefia institucional, apenas relação administrativa com o Tribunal. Fui lá para conhecer a Auditoria, o juiz, o representante do Ministério Público, todos muito solícitos. Mas como pretendia tomar posse em seguida no MPM, abri mão da posição no certame. Assim, fui deslocada para o último lugar da lista de aprovados. Logo em seguida, saiu a nomeação dos aprovados do concurso do Ministério Público e escolhi a lotação em Porto Alegre, minha cidade natal! Assim, ingressei efetivamente no Ministério Público Militar.

Quando assumi na capital gaúcha, fui morar com minha mãe, na casa dela na Glória, um bairro de classe média, tipicamente familiar. No primeiro dia chamei um táxi, para ir à Procuradoria; saí de casa, com minha beca de promotora dobrada sobre o braço, e uma pasta. Minha mãe me levou até o portão. Como as vizinhas ficaram todas olhando, ela, que lutara tanto para estudarmos, falou, orgulhosa: “Minha filha é procuradora!”. A satisfação e o orgulho da minha mãe retribuíram todo o esforço que eu fizera para chegar ali. Afinal, ela se sacrificara tanto por nós. Estava radiante!

Memória MPM – Qual foi o ano da sua posse?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Foi em 1985, em 12 de fevereiro.

Memória MPM – E como era a dinâmica do trabalho na Procuradoria?

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Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A infraestrutura era precária, quase inexistente. Nós trabalhávamos em uma sala muito pequena, nem posso chamar de gabinete. O procurador João Jayme de Araújo, já antigo na Procuradoria, me recebeu muito bem, só que eu não tinha mesa para trabalhar! Os móveis que existiam, mesa e cadeiras, foram instalados lá pelo próprio Jayme, às expensas dele mesmo. Quando cheguei, gentilmente, como é do seu feitio, me ofereceu o lugar, mas recusei. Assim, sentei no sofá. Como fazia dois anos que ele não parava, resolveu tirar merecidas férias. Na ausência dele, ocupei a sua mesa e cadeira. Como eu era concursada e ele não, passei a ser a mais antiga, devido à lei. Conhecimento e experiência, tenho certeza, ele tinha muito mais do que eu. Não tínhamos telefone, nem secretária, nem papel. Somente uma máquina de escrever manual. Acabava o papel, tínhamos que pedir o favor à Auditoria de nos emprestar.

Memória MPM – Onde funcionava a Auditoria?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A Auditoria funcionava na rua General Portinho com a rua Duque de Caxias, onde ainda está. O Jayme ficou dois meses de férias e me deixou os seus contatos em caso de urgência. Eu não tinha experiência nenhuma de Ministério Público. Não precisei recorrer a ele, afinal, porque, quando encontrava dificuldades, consultava os livros. Acho que, para mim, foi até bom o Jayme ter entrado em férias, pois isso me obrigou a tomar decisões. Se ele estivesse lá, eu ficaria perguntando. Estudando, a gente aprende melhor.

O primeiro caso que me marcou no início da carreira foi um acidente aéreo, acontecido próximo a Porto Alegre, em dezembro de 1984, uns dois meses, portanto, antes de eu assumir. Uma colisão em pleno ar entre uma

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aeronave de caça F-5, da Força Aérea Brasileira e um bimotor civil pilotado por um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul. O F-5 atingiu o avião privado, causando-lhe danos que levaram a sua queda, com a consequente morte do piloto civil. Com muita habilidade e perícia, o aviador militar conseguiu pousar na Base Aérea de Canoas. O fato repercutiu muito, alcançando destaque na primeira página do jornal Zero Hora. Uns quinze dias depois de ter assumido a Procuradoria, recebi uma comitiva da Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que foi lá questionar o andamento do inquérito policial militar sobre o acidente. Constatei que não havia inquérito nenhum. Prometi tomar providências. Em função desse episódio, aliás, acabei sendo posteriormente convidada para me associar à Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul e até hoje tenho uma ótima relação com os promotores e procuradores de Justiça deste Estado.

Oficiei ao comandante do Comando Aéreo Regional da FAB em Canoas, requisitando a abertura do inquérito e o comandante-brigadeiro me respondeu que não havia necessidade de abrir um inquérito. Oficiei novamente, e reiterei o pedido da necessidade do andamento legal. Ele me mandou, como resposta, um ofício de conteúdo arrogante. Liguei para o procurador-geral, Dr. Milton Menezes e relatei o que estava acontecendo. Ele recomendou que tentasse mais uma vez, e, caso não obtivesse o resultado desejado, deveria representar contra o oficial-general. Oficiei mais uma vez; ele não respondeu, mas enviou um coronel ao meu gabinete para esclarecer sua negativa. O coronel era formado em Direito e tinha a incumbência de me convencer a não abrir o inquérito policial. Argumentou que o piloto da aeronave militar não era culpado. Nessa circunstância, eu disse: “Coronel, vou lhe falar francamente, se esse inquérito não for aberto imediatamente, vou

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representar contra o comandante”. Ele solicitou usar o telefone da Auditoria, eu autorizei. Ele foi enfático com o brigadeiro, no sentido da abertura e de que eu estava correta. Disse-me, depois, que o brigadeiro me convidava para um jantar na residência oficial do comandante do COMAR, naturalmente para insistir na sua posição. Aceitei esse desafio. Marcaram dia e horário. O pessoal falava que eu não deveria ir, que seria constrangedor. Perguntei: “Gente, o que ele vai fazer? Ele não vai tirar minha convicção!”. Chegou o dia combinado, o coronel e a esposa passaram na minha residência e fomos juntos. Fui bem-recebida. Estava lá a esposa do brigadeiro, uma filha e a neta, e esse coronel com a esposa. Conversamos sobre vários assuntos, menos o inquérito do acidente. Foi servido um jantar ótimo, ele sentado em uma cabeceira e eu na outra. Jantamos, cafezinho; no final, ele falou: “Doutora, segunda-feira abrirei o inquérito.”. Isso era uma sexta-feira. Quer dizer, primeiro ele relutou, depois, acho que se convenceu de que minha requisição estava perfeitamente correta. E realmente, o inquérito foi muito bem-conduzido, pelo coronel que ele enviou para me convencer.

Com aquele inquérito aprendi muitas coisas, como que “vento tem perna”: são dados técnicos que desconhecia, pois, minha área é jurídica. A transcrição da gravação da conversa da torre de controle demonstrou que o promotor que pilotava o bimotor não revelara sua correta posição de voo, porque a torre reportou-lhe que deveria voar a 2.500 pés, em função de manobras dos caças, posição que ele confirmou minutos depois. O acidente ocorreu justamente na rota dos jatos, no chamado “corredor de Butiá”, num espaço aéreo privativo para o voo dos caças da Base Aérea de Canoas, que naquele dia realizavam manobras. Depois foi explicado que ele voava abaixo da altitude solicitada porque isso reduzia o consumo de combustível, e estava

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indo para uma cidade próxima a Porto Alegre. O inquérito foi feito, arquivado, depois a família entrou na Justiça para ser indenizada pela Força Aérea, mas não obteve sucesso, sendo o IPM considerado uma peça jurídica importante para o deslinde da causa, em face das perícias e exames técnicos. Anos mais tarde, eu já não estava mais em Porto Alegre, pediram para ser reaberto o inquérito, pois haviam localizado novas testemunhas que teriam visto o choque dos aviões. Mas, realmente, foi só abrir e encerrar novamente, pois a ilusão de ótica nesse caso é fantástica. Não seria possível acolher um depoimento de alguém que estava em solo e pudesse contribuir com informações de um fato ocorrido a mais de 3.000 pés de altitude. Esse processo foi marcante.

Em dezembro, eu estava de férias em Porto Alegre, e nunca pensei que a notícia que lera na capa da Zero Hora seria meu primeiro caso. Mas, a despeito de toda a tragédia, o Ministério Público Militar começou a se relacionar com o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, e isso foi um desdobramento positivo. O Ministério Público Militar em Porto Alegre era pequeno, três membros apenas. Não tínhamos solenidades ou eventos. A partir do inquérito, passamos a ser convidados para as solenidades do Ministério Público do Estado.

Memória MPM – Em 1985, entrando no Ministério Público, promotora, jovem, na área militar, chegou a sentir algum tipo de estranhamento pelo fato de ser mulher?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Existiam, já, algumas procuradoras militares, mas poucas. No Rio Grande do Sul, tinha passado uma colega cujo marido era de Bagé, para onde então ela foi. Em Porto Alegre, contudo, quando cheguei, houve certo estranhamento. Não do Jayme,

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com certeza. Mas eu senti que havia quem achasse que mulher poderia ser mais maleável, menos firme. Eu nunca fui assim, pelo contrário! O ministro Eduardo Pires Gonçalves, nosso procurador-geral no final dos anos 1980, dizia que eu era uma procuradora “carne de pescoço”. Acho que denunciar alguém no âmbito de um processo criminal é uma carga muito pesada, que, às vezes, pode ser carregada ao longo de toda uma vida, de modo que eu sempre examinava os processos procurando elementos que me permitissem ter a convicção sobre meu posicionamento, em especial para oferecer a denúncia. Convencida da necessidade de denunciar, ia até o fim. Se o juiz optasse pela absolvição, recorria até a última instância. Não desistia.

Memória MPM – Talvez haja uma imagem de que a juíza ou a promotora sejam mais sensíveis, mais tolerantes. A senhora acredita que há um olhar feminino sobre o exercício da profissão, diferente do masculino?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Acho que pode haver, sim, mais sensibilidade para examinar uma questão, mas não tolerância. Porque, sensibilidade, acho que faz parte também do gênero feminino. Mas, creio que aplicar a lei e ir a fundo naquilo em que se acredita, não compromete a sensibilidade. As mulheres podem demorar mais para formar o seu convencimento, porque avaliam uma questão sob múltiplos ângulos. Mas, ao fazê-lo, podem se revelar bastante firmes na defesa de suas convicções.

Memória MPM – A senhora seria um exemplo nesse sentido?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Recordo-me de um episódio em que dois rapazes de uns dezoito anos (não estavam servindo no Exército ainda) foram presos fumando maconha em área militar, no Morro Teresópolis, em Porto Alegre, onde havia um quartel. Eram moradores das imediações

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do morro. Foram presos em flagrante: dois jovens da periferia, sem trabalho, de família pobre. O crime seria configurável, numa perspectiva formalista. Há juízes que não hesitariam em condená-los. A juíza negou o pedido de relaxamento da prisão. Entrevistei os rapazes no meu gabinete, em companhia das mães. Era gente simples. Disse-lhes: “Arranjem um trabalho, agora, hoje! Jardineiro, cortador de grama, enfim, porque o advogado vai entrar com um habeas corpus para vocês serem libertados.”. Eles prometeram e assim o fizeram. O Tribunal concedeu o habeas corpus. O Ministério Público tem de defender a lei, a justiça e não se comportar como um carrasco. A lei precisa ser cumprida, mas não é possível que seja aplicada sem que se leve em consideração o contexto humano. É assim que caracterizo a sensibilidade à qual me refiro. Condenar dois coitados, que mal tiveram acesso à educação, que estavam começando as suas vidas?...

Mas a juíza ficou inabalável e designou uma inspeção, no local do fato, para se certificar que estavam efetivamente em uma área militar. Subimos o morro, a juíza, os membros do Conselho, eu, a defensora, para ver se realmente era área sob administração do Exército. Um dia frio de agosto, em meio a um inverno rigoroso. Precisamos subir a pé. Nem demarcação explícita do terreno havia: eram mato, grama, árvores... Concluímos a diligência e apreciamos uma vista linda de Porto Alegre. Hoje recordo como um episódio pitoresco...

Memória MPM – Havia algum processo relativo à Lei de Segurança Nacional?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, nenhum. Acho que a competência já estava saindo da Justiça Militar nesse momento. Estávamos nos encaminhando para a reconstitucionalização do país.

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Memória MPM – Qual era a rotina do trabalho na Procuradoria?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Havia muita incidência de deserção, principalmente no quartel de Cavalaria. Os jovens iam servir na Cavalaria sonhando em cavalgar, mas a rotina no dia a dia com a qual se defrontavam era bem mais dura. O serviço de limpeza de baias, escovar cavalos, limpar os cascos, em seu conjunto, é pesado.

Também encontrei alguns casos de peculato, coisas bem graves até, de desvio de verba e mercadoria, envolvendo oficiais. Nesses casos, fui bastante dura, porque se tratava de desvio de verbas públicas cometido por oficiais encarregados de administrar bens das Forças Armadas. Inaceitável!

Outro caso que me marcou bastante foi um erro médico, cometido por um tenente, ou capitão, anestesista, em uma cirurgia. Na hora de entubar uma paciente, ao invés de colocar na traqueia, colocou o oxigênio no esôfago. O cirurgião começou a fazer a incisão e percebeu que o sangue dela estava muito escuro, identificando a falha. Ela teve sequelas: seis meses em coma, tomou cortisona e engordou, ficou toda trêmula. Nos autos, estavam os desenhos que ela fazia à nanquim e aquarelas lindas! Ela cantava em um coro e tinha uma voz belíssima. Havia as fotos dela, antes e depois. Deixou de pintar, de cantar. Uma coisa absurda!

Memória MPM – Ela era militar? Esposa de um militar?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Era esposa de um subtenente, se não estou enganada. O advogado do réu, muito experiente, um juiz aposentado, o Dr. Dariano, já falecido, era uma figura fantástica! Eu o admirava muito. Eloquente, conseguiu absolvê-lo. Claro, eu recorri! Depois, o

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Tribunal transformou a decisão e o réu foi condenado, perdendo a função. Foi um erro muito crasso. Quando acabou o julgamento (o Dr. Dariano em uma semana faria uma cirurgia), disse-lhe: “Ah, já que esse anestesista lhe pareceu tão bom, contrate-o.”. Ele falou “Você está louca! Você é minha amiga ou o quê?”.

Memória MPM – Qual era a área jurisdicionada pela Procuradoria em Porto Alegre?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A Grande Porto Alegre, incluindo a Base Aérea de Canoas e a Capitania dos Portos, em Porto Alegre, onde havia muito problema com a falsificação de Carteira de arrais amador.

Memória MPM – E de Porto Alegre, para onde a senhora foi?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fiquei oito anos em Porto Alegre e foi gratificante, porque tinha minha mãe, minhas irmãs, meus filhos. Estava sempre com os filhos e isso me deixava muito satisfeita. Mas sentia que a carreira precisava andar. Queria ir para o Rio de Janeiro. Aí o procurador-geral falou: “Vá para Juiz de Fora, que depois você consegue ir para o Rio.”. Fui para Juiz de Fora, onde fiquei dois anos e meio.

Lá também não tinha uma Procuradoria instalada. Havia uma sala no Juízo com uma escrivaninha, e só. Em Porto Alegre, eu tinha conseguido uma mesa de trabalho com o juiz, que a retirara do depósito. Era uma mesa de madeira compensada; saíam lascas inteiras dela. Então, em Juiz de Fora, dividia a mesa com o hoje ministro Olympio [Pereira da Silva Junior]. Eu já o conhecia, pois quando fui diretora de secretaria em Manaus, ele substituiu um membro, justamente naquele julgamento do Lula e a gente lhe deu apoio.

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Então, ele sentava de um lado e eu, do outro da mesa. Hoje, a gente conta isso e ninguém acredita.

Depois, o Olympio conseguiu um imóvel para instalar a Procuradoria. Foi a primeira sede da Procuradoria em Juiz de Fora. Ficava imediatamente ao lado da estrada de ferro. Quando o trem passava, aquilo tudo tremia. Não conseguíamos nem falar com aquele barulho. Eram aqueles trens de carga, com muitos vagões. Ao final do dia, nosso cabelo ficava cheio de pó de cupim, que caía da cobertura interna. Pela manhã, encontrávamos as mesas cobertas desse resíduo dos cupins. Mas para nós era gratificante ter um espaço nosso. Tínhamos telefone, nosso papel, e até um secretário administrativo. Brasília enviara-nos um servidor para o apoio de secretaria.

Memória MPM – E mudou a natureza dos feitos em relação a Porto Alegre?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Olha, lá era bem mais tranquilo. Verificava-se, também, a incidência de deserção. Mas, em geral, era tudo muito pacato, devagar quase parando. Se bem que houve um caso rumoroso de um subtenente que assassinou um tenente. O subtenente se separou da mulher – em Brasília – e ela foi morar em Sete Lagoas, onde começou a namorar esse tenente. O subtenente saiu de Brasília, foi direto para Sete Lagoas, à casa da mãe dessa mulher, onde, perguntando por ela, descobriu que fora a um baile com o tenente, que estava hospedado no hotel militar. O subtenente foi ao hotel, lá pelas duas horas da madrugada, e mentiu para o guarda, dizendo que estava hospedado; se escondeu nos arbustos e matou o tenente quando ele chegou... É difícil de acontecer um homicídio passional dentro das Forças Armadas.

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Memória MPM – E no Rio de Janeiro?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fui para o Rio em 1995, mas, um ano depois, em fevereiro de 1996, aceitei a promoção a subprocuradora- -geral, indo para Brasília. No Rio, foi gratificante o convívio com vários colegas que lá estavam... Eu promovia jantares em minha casa. Os juízes também participavam desse convívio agradável, afinal, a Procuradoria ainda se abrigava dentro da Auditoria. Mas foi uma passagem breve.

Após várias consultas, sobre o desejo de ser promovida, aceitei. Mas, no início de 1996, achei que tinha finalmente chegado o momento. Fui para Brasília num contexto peculiar, já como candidata a procuradora- -geral no pleito de março de 1996. Vê que ousadia! Mas foi porque os colegas do Rio queriam um candidato que fosse de lá. Eu me relacionava bem com todos e aceitei concorrer. Em Brasília, foi uma decepção grande, porque no primeiro grau há sempre muita comunhão entre os colegas. Há amizade, entrosamento. E achei que em Brasília também seria assim. Na realidade, não era. Parecia que sempre alguém queria sobrepujar os demais. Eu fui, vamos dizer, de “sangue doce”. Achando que se fosse eleita o pessoal iria ajudar. Mas era ingenuidade e entrei de gaiata nessa eleição. Naturalmente, elegeu-se colega que já estava em Brasília havia muito tempo, bastante político, o Kleber [de Carvalho Coêlho]. Quem me recebeu em Brasília foi o Péricles [Aurélio Lima de Queiroz], pois ele estava na condição de procurador-geral interino. O anterior, Marco Antonio Pinto Bittar, renunciou ao cargo em dezembro de 1995, aposentando-se antes do final do mandato, de sorte que ele assumira interinamente; promoveu a eleição e ficou até a posse de Kleber, no início de abril de 1996, quando foi escolhido vice-procurador-geral. Em abril de 1997, fui nomeada corregedora-geral.

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Memória MPM – Como foi essa nomeação?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – O titular renunciou. Primeiro assumi na condição de primeiro suplente de corregedor-geral, mas, em seguida, fui eleita pelo Conselho Superior por unanimidade, que me confirmou no cargo por dois anos. Os que pretendem ocupar a vaga candidatam-se e a votação acontece no Conselho Superior, que elabora uma lista tríplice, a partir da qual o procurador-geral faz sua escolha. Ele me chamou ao gabinete para me comunicar a sua decisão. Eu disse que aceitaria, se pudesse implantar as correições nas Procuradorias, que, até então, não eram feitas. Nesse sentido, estávamos atrasados em relação aos outros Ministérios Públicos, nos quais o corregedor fazia inspeções, cobrava relatórios, orientava sobre como proceder. Não existia nada disso no MPM. Quando assumi, uma turma de promotores que já estava no quarto mês do estágio probatório não tinha passado por nenhuma inspeção. Não havia nem pastas individuais para eles! Comecei a fazer as visitas e instalei as correições, que hoje são um procedimento plenamente incorporado. Passei, também, a integrar o Conselho Nacional de Corregedores, órgão no qual atuei como secretária. Foi uma experiência estimulante perceber a dinâmica ministerial numa perspectiva nacional e em todas as suas variantes.

Memória MPM – Não foi reconduzida ao cargo de corregedora-geral?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, por questões políticas, suponho. O procurador-geral da época tinha as suas preferências. A maioria das sessões de Tribunal quem fazia era o vice-procurador-geral, que era o Péricles. Então, ele tinha tempo para se dedicar à política institucional. Tenho a impressão que ele achava que, nas minhas correições, eu fazia alguma

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articulação com vistas a uma futura eleição. Mas o meu trabalho sempre foi em prol da correição, eminentemente técnico. Embora já tivesse me candidatado uma vez, não tinha como projeto de vida ser procuradora-geral. Eu apenas aceitara uma indicação dos colegas, naquela oportunidade. Enfim, se eu fosse reconduzida, continuaria visitando as Procuradorias e teria um contato mais estreito com todos os colegas.

Memória MPM – Mas por quê? O mandato de um procurador-geral é de dois anos, renovável por mais dois: quatro anos é o tempo máximo de permanência. Se ele fora eleito em 1996 e reeleito em 1998, seu mandato se encerraria em 2000. É isso? Por acaso, ele queria mudar a lei para conseguir uma segunda recondução? Ou estava comprometido com um candidato?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Pois é, talvez você tenha “matado a charada”... Se na Lei Orgânica fosse inserido o “podendo ser reconduzido”, não importaria mais por quantos anos: alguém poderia permanecer ad aeternum na posição. Sempre fica um colega durante as férias, de plantão. Em 2000, casualmente, em janeiro, eu estava em Brasília. E soube, também casualmente, que o presidente da República havia enviado ao Congresso um projeto para mudar nossa Lei Orgânica, de modo a permitir eleição sucessiva sem limite para o procurador-geral. O procurador-geral Kleber havia feito gestões políticas junto ao Executivo e havia logrado êxito. Não recordo quem me alertou para isso: “Marisa, te vira aí.”. Consegui me reunir, no início da manhã, com um grão-mestre da Maçonaria, e relatei o assunto. Ele me pegou pelo braço e me levou, naquele momento, diretamente para o Congresso, porque o projeto seria votado à tarde. Falamos com o deputado Antônio Carlos Biscaia, do Partido dos Trabalhadores, que fora procurador--geral do Rio de Janeiro. Ele mobilizou os colegas. Também conversamos

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com o Agnelo Queiroz, do PCdoB, que foi governador do Distrito Federal. Em outubro, tinha havido um congresso da CONAMP, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, em Curitiba, e uma das conclusões era que não se proporiam mudanças na Lei Orgânica do MP sem prévia e ampla discussão sobre o assunto. E, neste caso, estava havendo articulação dissimulada.

Memória MPM – Uma alteração na Lei Orgânica afetaria todos os ramos do Ministério Público da União.

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Eu tinha essa resolução em mãos. Ao vê-la, o então deputado Agnelo Queiroz se inscreveu imediatamente para debater o assunto na tribuna. Estavam em andamento sessões extraordinárias. Iria “passar batido”, em pleno recesso. Corríamos o risco de “fujimorização” do Ministério Público. Disse-lhe isso. Por volta das seis horas da tarde, o deputado Antônio Carlos Biscaia me telefonou dizendo: “Doutora, a senhora venceu!”. Respondi: “Não, não fui eu, mas o Ministério Público quem venceu”. Diz-se que o deputado Agnelo foi para plenário com uma folha enorme que brandia: “Querem a ‘fujimorização’ do Ministério Público!”, usando exatamente minha expressão. Bom, quando eu saí da Procuradoria naquele dia, pela garagem, os motoristas me felicitaram: “Parabéns, doutora!”, porque não havia concordância com essa mudança.

Memória MPM – Bem, ele era conhecido por ser dado a arroubos.

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Contam-se muitas estórias! Principalmente dos acessos de impulsividade!

Memória MPM – Mas vocês chegaram a fazer uma viagem oficial juntos, não é?

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Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, em 1998, quando eu ainda estava na Corregedoria-Geral fomos convidados para visitar oficialmente a República de Angola; o país ainda estava em guerra civil.

Memória MPM – Por que Angola?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Em Brasília, os adidos militares das Embaixadas visitam a Procuradoria-Geral de Justiça Militar e a partir daí se fomenta uma interlocução. Em Angola, queriam entender como funcionava o nosso processo penal militar e a nossa Justiça Militar, porque estavam empenhados em encontrar caminhos institucionais para o pós-guerra, e, dar tratamento correto aos crimes militares, era algo que adquiria centralidade nessa dinâmica. Estabeleceu-se um intercâmbio.

O país estava semidestruído. Não podíamos colocar o pé fora do hotel sem um forte aparato de segurança nos acompanhando. Fomos a Namíbia visitar uma base de mísseis, e à Lubango, duas províncias distantes da capital, Luanda. Viajamos pelo interior. A experiência foi interessante, instrutiva. Compensava, o ambiente de tensão decorrente do quadro de guerra, a gentileza dos militares e do pessoal do Governo, que se esforçavam para que nos sentíssemos confortáveis. E foi uma oportunidade única, porque pudemos conhecer, também, o interior do país e a aplicação da Justiça Militar em operações de guerra.

Mas esse esforço era em parte neutralizado porque, de certa forma, estávamos sempre em sobressalto em função das reações do chefe da comitiva. Ele se apegava a detalhes, de imagem, status e protocolos, e se comportava com arrogância, especialmente com funcionários e prestadores de serviços, como se todos lhe devessem obediência e submissão. Esse clima já começou

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no aeroporto, no Rio de Janeiro. Eram pequenas coisas, que acabavam incomodando, gerando uma tensão desnecessária.

Mais tarde, em outubro de 2002, quando então eu já era procuradora--geral, fomos novamente a Angola. O país já estava pacificado. Luanda estava reconstruída, com viadutos, avenidas, inúmeros prédios públicos e privados. Foi uma experiência bem interessante e foi gratificante ver o país se refazendo.

Houve um episódio pitoresco. Como costumava acontecer nessas ocasiões, ofereceram um jantar para nós. Creio que era no Hotel Sheraton, na orla, um lugar lindo! Havia diversos convidados ilustres. O procurador-geral da República e o ministro da Justiça de Angola se posicionaram na entrada, recepcionando os convivas. O procurador-geral me apresentou, só que, nessas apresentações rápidas, geralmente não se grava o nome. Ficou meio nebuloso quem eu era. Logo em seguida, o ministro da Justiça vira para o procurador--geral e pergunta: “Escuta, o procurador-geral não vai vir?”. “Mas chegou há muito tempo, é a Dra. Marisa!”. “Como? Uma mulher?”. “Sim, senhor!”. Ele levou um susto! Como uma mulher?... Depois, nos outros dias em que a gente se encontrava, ele passava por mim e falava, mexendo a cabeça: “Sim, senhor. Sim, senhor.”. Ficou muito impressionado que o procurador-geral de Justiça Militar do Brasil fosse uma mulher [risos].

Voltamos a Angola no ano retrasado. Dessa vez, fui acompanhando o Péricles, porque ele foi convidado para ministrar uma palestra. Portanto, fui três vezes a Angola.

Memória MPM – Chegou a haver a eleição para a recondução da Corregedoria?

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Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Houve. Eu me candidatei. O procurador-geral queria que formasse uma lista tríplice. Mas os colegas já sabiam que ele não queria me nomear. Então, ninguém entrava na lista, só eu. Tomou uma decisão em desacordo com a lei: nomeou-me, interinamente, para não ter de me nomear definitivamente. Não existe essa figura. Então, fiquei respondendo interinamente. Depois de um ano nessa interinidade, outro colega foi nomeado. Ser corregedor é uma enorme responsabilidade! Tive casos em que colegas me ligavam às 5 h 30 min da manhã, 6 h da manhã. E você tem que ouvir o colega, tem que orientar.

Recordo-me de um episódio envolvendo uma colega no Rio, que tinha dificuldades de relacionamento funcional com os servidores. Abrimos uma sindicância. Ouvi dezesseis pessoas, todas desfavoráveis à colega. Ela estava desajustada dentro daquele sistema. Ser corregedor não é brincadeira. Você tem que orientar e se for o caso, promover a correição e punir.

Memória MPM – Chegou a aplicar alguma punição como corregedora?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não exatamente, porque os casos são levados ao Conselho Superior, que abre um inquérito administrativo, uma sindicância. Mas é o corregedor quem leva o fato ao Conselho.

Numa oportunidade, fui a Manaus, fazer uma correição. Em Manaus, o trabalho é fatigante, porque lá jurisdiciona Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. É um mundo! Há muitos locais em que só se chega de barco. Tínhamos audiência de manhã e de tarde, todos os dias. Eu conhecia a Procuradoria não apenas da época em que fui secretária da Auditoria, mas, também, em 1991, quando ainda estava em Porto Alegre, tinha ido lá fazer uma substituição. Bem, quando fiz a correição, toda aquela montanha de

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trabalho era enfrentada por uma única procuradora, a Dra. Maria de Nazaré [Guimarães de Moraes]. Fiz um elogio ao trabalho dela, porque mantinha tudo em dia e em perfeita ordem. Então, o corregedor não é só aquele que fiscaliza e pune, mas também quem realça os bons exemplos. É preciso muita responsabilidade no desempenho da função.

O clima realmente estava se deteriorando na relação com o procurador-geral. Antes de ser afastada da interinidade, eu já nem queria ir a cerimônias oficiais, porque ele partia do princípio de que o procurador-geral tinha de ir num carro oficial somente para ele, bem mais à frente, que tomasse distância dos demais. À corregedora-geral cabia um segundo veículo, que era então um Opala velho, em más condições mecânicas, que ia pelo caminho engasgando, cuspindo fumaça, fazendo um barulho desagradável. Chegou a um ponto em que me recusei a me submeter àquela cena.

Memória MPM – E como foi a campanha para procuradora-geral?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Fui dispensada do exercício das funções de corregedora interina em setembro de 1999. Em março de 2000, me inscrevi para a eleição de procurador-geral. Era uma forma de protesto, mas, também, uma proposta de renovação. Contudo, não logrei sucesso. Logo depois das eleições, em maio de 2000, fui designada membro da Câmara de Coordenação e Revisão, para um mandato de dois anos, uma experiência bastante enriquecedora.

No verão de 2002, durante o período de férias, eu chegara à conclusão de que não iria me candidatar novamente. O processo eleitoral todo é muito desgastante. Depois da Lei Orgânica, a eleição no Ministério Público ficou muito politizada. Estabeleceram-se grupos políticos informais

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dentro do órgão: uns são a favor, outros, contra... naturalmente. E é tudo mais pessoalizado do que programático ou conceitual. Se você contribuiu num determinado momento com a gestão de um colega, ou apoiou outro em alguma pretensão, ficou vinculado para sempre, como se pertencesse àquele grupo.

Eu acho isso complicado. Não consigo funcionar nessa lógica. É claro que a eleição traz suas vantagens, pois ativa o processo democrático. Mas nos joga nesse torvelinho de disputas. Além disso, as pessoas em final de carreira teriam, em tese, mais experiência do que os promotores, que são a maioria dos membros e, hoje, podem se candidatar ao cargo de procurador--geral. Portanto, o processo eleitoral hoje promove a possibilidade de uma inversão hierárquica ao permitir a eleição de promotor. Então, tenho as minhas dúvidas sobre a conveniência do modelo que aí está.

Memória MPM – Antes de comentarmos a campanha de 2002, posso lhe perguntar sobre as eleições de 2000?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Após os quatro anos de gestão [de Kleber de Carvalho Coêlho] surgiram algumas candidaturas. Eu me candidatei. O Péricles também o fez. Visitei todas as Procuradorias pelo país, arcando integralmente com as despesas da viagem e da hospedagem. Fui visitar todas as Procuradorias, conversar pessoalmente com cada colega, para apresentar minhas propostas. Nessas oportunidades, levava o meu programa e dizia que se o achassem deficiente, por algum motivo, havia outra ótima opção, que recairia sobre o Dr. Péricles. Eu dizia isso por respeitá-lo, por entender que ele realmente era um intelectual atuante no coração do Ministério Público, que tinha propostas inovadoras.

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Nós, efetivamente, já desenvolvíamos conceitos em conjunto. Em maio de 1999, por exemplo, eu, como corregedora-geral, o Péricles, como vice-procurador-geral, o Nelson [Luiz Arruda] Senra, como coordenador da Câmara de Coordenação e de Revisão, e o Carlos Frederico [de Oliveira Pereira], subprocurador-geral, encaminhamos ao procurador-geral Kleber de Carvalho um projeto de resolução disciplinando o inquérito civil público e o procedimento de investigação preliminar no âmbito do Ministério Público Militar. A ideia era essencialmente do Péricles. A atribuição fora detalhada na Lei Complementar nº 75, de 1993, mas, sem a regulamentação, os procedimentos dos membros não eram uniformes. O Conselho Nacional do Ministério Público não existia ainda e disciplinou a matéria seis anos mais tarde. Nesse sentido, a iniciativa do MPM foi pioneira no âmbito do Ministério Público da União. O Dr. [Alexandre Carlos Umberto] Concesi relatou pertinentemente a nossa proposta junto ao Conselho Superior, que a aprovou por unanimidade.

Bem, voltando à campanha de 2000, como nunca consegui pensar nessa lógica de partido político, eu separava o Péricles do procurador-geral. Isto é, porque ele fora vice, naquela gestão, não significava que comungava com o modo de agir e pensar do procurador-geral. Eram pessoas diferentes. Ademais, nossa eleição se faz por meio de uma votação em três nomes. Os três mais votados formam a lista tríplice, que é submetida ao procurador-geral da República, chefe do Ministério Público da União, quem pode ou não escolher o mais votado.

Enfim, peregrinei por todo o Brasil. O Péricles não fez isso, optou por uma campanha diferente, editando um belo folder e um site, com as suas propostas. Foi uma campanha mais em gabinete, mas com propostas sólidas

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e também inovadora na forma, porque ninguém nunca tinha feito um folder e um site. De todo jeito, era um momento de renovação no Ministério Público e nós dois tínhamos em comum o fato de estarmos assumindo a campanha baseada em propostas claras e modernas para a instituição.

A verdade é que, no dia seguinte, ao visitar uma Procuradoria, aparecia lá o procurador-geral e procurava desfazer minha campanha. Eu tinha a presunção e a ingenuidade de estar fazendo uma campanha baseada em ideias e propostas, mas, na prática, as coisas não estavam acontecendo assim. O detalhe é que ele fazia todas essas visitas financiado pelo erário, porque ocupava o cargo de procurador-geral e dava um jeito de imprimir um caráter oficial a esses deslocamentos.

Certa feita, para que se tenha uma ideia de como as coisas eram conduzidas, com dois pesos e duas medidas, fui visitar os colegas em São Paulo. O trânsito de São Paulo me deixava um pouco atordoada, amedrontada até, então perguntei ao colega se podia, excepcionalmente, mandar um carro me apanhar no aeroporto. Naquela época, carro oficial não existia. Havia apenas um veículo de serviço geral, tanto para transportar o procurador quanto para as tarefas administrativas. O colega prontamente se disponibilizou. Contudo, na véspera da minha chegada a São Paulo, ele me ligou se desculpando, porque haviam lhe telefonado de Brasília e o ameaçado com uma punição por improbidade administrativa se o carro fosse utilizado para me buscar no aeroporto. Foi uma mesquinharia!

Fiquei tão chateada que liguei para um amigo, procurador de Justiça de São Paulo, Epaminondas Barra, que na época presidia a Associação do Ministério Público Paulista e também integrava a direção da CONAMP.

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O Barra, sempre gentil e brincalhão, ao invés de pedir para me buscarem, resolveu ir pessoalmente me esperar no aeroporto. Foi uma grata surpresa. Ele me levou para almoçar no Sheraton Mofarrej, que na época tinha um ótimo restaurante. Até hoje sou agradecida a esse querido amigo e colega.

Memória MPM – E como foi a eleição?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Foi estranha. Belém foi a última Procuradoria que visitei. De volta a Brasília, no último dia aprazado para as inscrições, uma colega, que havia previamente declarado me apoiar, dizendo, inclusive, que não se candidataria por problemas pessoais que estaria enfrentando, me encontrou e falou: “Sabe da novidade? Inscrevi-me, vou me candidatar!”. Bem, é um direito que ela tinha. Mas a mudança de posição acontecia a uma semana das eleições, que campanha ela faria em uma semana? Ela não visitou nenhuma Procuradoria, não conversou com os colegas, não fez um folder, como o Péricles. Não tinha propostas. Nada! Dois dias depois, uma servidora da direção-geral, que era minha amiga, me disse: “Ah, Marisa, eu acho que você não vai nem entrar na lista.”. “Como!?”. “Porque eu estava falando com o doutor fulano, comentando que você voltara tão contente, eufórica até, de Belém e ele exclamou: ‘Ah, coitada, tenho pena da Dra. Marisa, porque ela não vai entrar nem na lista’.”. E, baseado em seu “feeling político”, ele teria feito uma previsão: em primeiro lugar, a colega que se inscrevera no último dia, em segundo, um colega promotor, do Rio de Janeiro; em terceiro, ou o Dr. Péricles ou a Dra. fulana, pois havia outra colega que também se candidatara. Foi exatamente esse o resultado, com o Péricles chegando em terceiro.

Memória MPM – Eram quantos votos?

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Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Eram 75 membros. Foi estranho. Os votos em que eu aparecia, estava também o Péricles e o colega do Rio. Eu até pedia votos para o Péricles, mas o colega do Rio não tinha nada a ver conosco. Após a votação, as cédulas eram remetidas por malote para a Procuradoria-Geral, guardadas num cofre, à espera da contagem.

Memória MPM – E depois?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Evidentemente, eu tinha feito movimentações prévias para o caso de entrar em lista. Um ministro do Superior Tribunal Militar tinha marcado, para mim, uma audiência com o vice-presidente da República, Marco Maciel, de quem era muito amigo. Como não entrei em lista, falei para esse ministro que cancelaria a audiência; o que eu faria lá? E ele: “Marisa, você marcou uma audiência com o vice-presidente da República! Você vai, porque não se desmarca uma audiência com o vice--presidente!”. Ele até me buscou na Procuradoria-Geral e me deu carona no seu carro oficial. No caminho, me perguntou: “Marisa, o que você acha de a gente pedir pelo Péricles?”. Ele também gostava do trabalho do Péricles. “Ah, eu acho uma ótima ideia!”. Sim, era coerente com o que eu havia pregado durante a campanha. O vice-presidente Marco Maciel nos recebeu muito bem, simpático, me deu o maior apoio moral, explicando que ele mesmo se candidatara algumas vezes sem êxito. Falamos o nome do Péricles. O Marco Maciel sempre fora muito solícito com o Ministério Público e era parente do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, quem nomearia o nosso procurador-geral.

No dia seguinte, a candidata que saiu em primeiro lugar estava de “cara amarrada” porque eu tinha ido pedir em favor do Péricles. E daí?

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Eu não tinha nenhum compromisso com ela. E tinha dito, durante toda a minha campanha, que se não quisessem o meu programa havia o dele, que era excelente. Mas gerou muita fofoca interna e foi um divisor de águas; a turma dela começou a me olhar atravessado, porque eu teria ido pedir pelo Péricles para o vice-presidente da República e não por ela. Porque ela seria a primeira mulher e as mulheres deveriam se apoiar mutuamente, coisa que eu não estaria fazendo... Um monte de coisas bobas! É por isso que não gosto da forma como se dá o nosso processo eleitoral interno.

Memória MPM – E ela acabou sendo nomeada?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. O procurador-geral empenhou todo o seu prestígio na sua nomeação.

Memória MPM – Ou seja, era a candidata dele.

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não sei se ele tinha efetivamente um candidato. Ele queria permanecer ligado à administração. Se alguém lhe tivesse oferecido o cargo de vice-procurador-geral, talvez o apoiaria. Acho que, nesse contexto, a colega lhe pareceu a opção menos ruim, mais manejável. Se ele não podia permanecer como procurador-geral, ou vice, tentaria se firmar como eminência parda. No dia em que saiu a lista tríplice, ele andava pelos corredores, falando alto para quem quisesse ouvir, em tom irônico e desafiador: “Nadaram, nadaram e morreram na praia!”. Enfim, um comportamento que não estava à altura do cargo, muito menos de alguém que presidira o processo eleitoral, porque é uma coisa deselegante de se fazer, não é?

Memória MPM – Como as coisas se desenrolaram nos dois anos seguintes?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Pois é, também foi estranho.

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Nós éramos assíduos, íamos todo dia à Procuradoria. A colega começou a se distanciar dos subprocuradores-gerais, pois creditava sua eleição apenas aos membros do primeiro grau.

Bem, ela não gostou de algumas intervenções que fiz no Conselho Superior e começou a dizer que eu estaria magoada, porque eu queria ter a honra de ser a primeira mulher na chefia da instituição e não lograra êxito. Sinceramente, nunca me passou isso pela cabeça! Jamais faria oposição gratuitamente, por despeito, pois acho que isso é irresponsabilidade institucional. Na política, temos de nos pautar por propostas, conceitos, valores. É isso o que determina o enunciado da crítica ou a construção de uma aliança. Eu jamais comunguei dessa visão estreita, que fixa a questão de gênero acima do debate programático e de seus resultados. Ninguém se torna uma candidata ou uma administradora espetacular só porque é mulher! Da mesma forma, ser a primeira mulher a chefiar uma instituição não é garantia alguma de que o desempenho administrativo seja louvável. Não acredito nessa solidariedade feminina que nivela por baixo.

Ademais, acho que o cargo de chefia institucional tem uma liturgia. O Kleber, inobstante as restrições que fazemos a aspectos do seu desempenho como procurador-geral, tinha, de positivo, uma grande preocupação com a liturgia do cargo. Nisso, ele estava certo. E creio, inclusive, que ele contribuiu muito nesse sentido para a valorização da instituição junto aos outros entes. Porque o Ministério Público Militar mal era lembrado pelos cerimoniais. A instituição mal aparecia. O Kleber deu-lhe mais visibilidade.

A propósito, acho que ninguém é 100% ruim ou totalmente bom. Não existem unanimidades. E se existirem, dificilmente seriam sinceras. Faço

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minhas observações à ação de alguns colegas, no que se refere ao exercício das funções públicas que eles ocuparam, mas também reconheço o que eles agregaram de positivo. Pode parecer, para alguns, algo estranho criticar alguém que não pode contar a sua versão dos fatos. Mas quando se ocupa uma função pública, as pessoas fazem suas avaliações, porque as ações repercutem na memória e já passaram a fazer parte do público. Ademais, uma característica intrínseca do Ministério Público é, precisamente, a do debate livre de ideias. Imagino que outros entrevistados possam celebrar as pessoas cujas ações eu aqui questiono, bem como imagino que muitos critiquem a minha administração.

Então, como dizia, o cargo tem uma liturgia. O Ministério Público do Trabalho promovia, na época, umas cerimônias muito alinhadas, com arranjos de flores, ótimos jantares, mesa decorada. Todos elegantes, bem-trajados. Chegava a nossa representante, de sandálias, sem meias, cabelinho lavado e molhado. Acho que é falta de respeito com aquele que está oferecendo a festa. E tinha entrevista com a imprensa, o beija-mão do presidente da República no final do ano, uma série de situações nas quais era preciso estar apresentável. Mas era eu a criticada, por ser, como se dizia “muito glamorosa”.

Quando assumi como corregedora, reuni os membros que estavam tomando posse e já fui logo dizendo para as moças: “De hoje em diante, esqueçam minissaia, “tomara que caia”, decotes acentuados...”. Deixei-lhes bem claro que a Corregedoria nada tinha a ver com a vida e as opções pessoais de cada um. Se quisessem sair para dançar à noite, se vestir assim ou assado, seria da escolha de cada uma. Mas, no ambiente de trabalho, há uma postura a ser seguida. Isso tem a ver com aquilo que a própria sociedade espera da gente. Não vale apenas para as mulheres, mas para os homens também. Enfim, nesse aspecto eu e o Kleber concordávamos.

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Memória MPM – O Kleber foi vice da Adriana?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, ela não o nomeou para nada. Pelo contrário, depois que assumiu, deu uma sossegada nele. Acho que aquilo tudo que ele tinha feito, voltou. A aproximação dos dois tinha sido circunstancial. E, uma vez firmada no cargo, a colega não se sentiu mais compromissada com ele. Paradoxalmente, ele tinha muita articulação, muito trânsito político, dentro e fora da instituição, mas não era uma figura amada ou admirada, a não ser, talvez, por alguns poucos. De forma que, de repente, se viu isolado.

Depois de dois anos, ela tentou a reeleição. O Kleber também se inscreveu. Como disse, eu hesitei, decidi que estava farta daquilo, pois fora uma tremenda decepção aquele resultado depois de ter visitado todas as Procuradorias. Mas ninguém se apresentava. Ninguém queria. O próprio Péricles não quis se candidatar. Acabei cedendo à pressão dos colegas para que reapresentasse minha candidatura. O Kleber tinha, naturalmente, seus apoiadores, mas também enfrentava muita resistência na classe. Quanto à procuradora-geral, a tendência de quem está no posto é pleitear a reeleição. São raros os casos em que isso não acontece.

O resultado sagrou-a em primeiro lugar na lista. Fiquei em segundo e o Kleber em terceiro. Bem, aí veio o segundo tempo da nossa eleição. Havia uma indisposição grande da procuradora-geral com os comandos militares, porque não basta administrar a própria instituição, é preciso cultivar uma política institucional séria – que nada tem a ver com subserviência; isso nunca! Mas as relações com as Forças Armadas, com outros ramos do Ministério Público, com a magistratura, com os Tribunais, com a sociedade,

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precisam ser amistosas, cordiais, com diálogo permanente. Não é preciso ter atitude submissa ao Tribunal, mas é necessário respeitar a instituição e seus membros, os ministros. O Kleber, por sua vez, estava enrolado com alguma pendência administrativa, pois respondeu a uma sindicância determinada pela procuradora-geral. O corregedor era o Dr. Péricles, que se pautou pela grande imparcialidade e correção. A sindicância restou arquivada, mas o Kleber sentiu o pulso da administração. De forma que o Dr. Geraldo Brindeiro me chamou e disse que iria me nomear. Dessa vez, eu não tinha pedido a ninguém. Alguns ministros do STM haviam revelado, para autoridades da República, que me preferiam. O Brindeiro achou por bem me nomear. Ele mesmo me disse que tinha se arrependido por, dois anos antes, não ter escolhido o Péricles. Ora, o procurador-geral da República não interfere na administração dos ramos do Ministério Público da União, mas se o chefe de um dos ramos produz atritos ou não consegue liderar seu ramo, resulta em dificuldades. O procurador-geral da República não quer problemas, não quer se incomodar com a rotina dos outros. Cada instituição tem de andar por si.

Bem, uma vez nomeada, declarei a todos que assumiria por um mandato de dois anos e não tentaria a reeleição: não ficaria nem um dia a mais. Estava convicta da procedência de algumas reformas que eu prometera em campanha e acreditava que, para implantá-las, seria preciso enfrentar desgastes. E sei bem que a recondução acarretaria em tergiversar diante de desafios, ou fazer vistas grossas para certos problemas. Até acho que um mandato de dois anos é pouco para se avançar em tudo o que se deseja; deveriam ser três. Mas recondução, de jeito nenhum!

Portanto, eu não estava perseguindo popularidade. Desejava, apenas, dar minha contribuição para o engrandecimento institucional, com base

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naquilo em que eu acreditava, assim como aquelas pessoas que haviam votado em mim. Ora, o primeiro princípio é que no Ministério Público tudo tem de estar perfeitamente de acordo com a lei. A lei tem que ser cumprida à risca. Isto é, se vamos cobrar algo dos outros, lá fora, é preciso começar a respeitar a lei aqui dentro. Nós somos os fiscais da lei para nós, mesmo antes do que para os outros.

Pouco a pouco, fui colocando a casa em ordem. Mas isso me custou caro! Fui quase “excomungada” por alguns membros descontentes com medidas que adotei para sanar problemas administrativos do Ministério Público Militar.

Memória MPM – Esses conflitos foram internos ou externos? Podemos falar um pouco deles?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Bem, ambos. Mas, internamente, acho que o desgaste foi maior. No início do meu mandato, teve o problema com o auxílio-moradia. Hoje é algo universalizado, todos recebem auxílio-moradia, legal e indistintamente. Mas, naquela época, exigiam-se certos pré-requisitos para a concessão do benefício, tais como não ter imóvel no local. Todo ano o procurador-geral deveria oficiar aqueles que recebiam o auxílio- -moradia, no sentido de confirmar se realmente teriam ainda direito a recebê-lo. Minha surpresa foi que recebi alguns retornos insistindo na preservação do benefício mediante argumentos insólitos, tais como a casa adquirida pelo membro não estaria escriturada em seu nome, mas no da esposa. Ora, mas eles eram casados, moravam juntos! Outra argumentava que morava em um imóvel na Vila Militar, porque o esposo era militar. E daí? Era um imóvel da União, ela estava tendo o direito de utilizá-lo. Outro insistia em que morava no imóvel que pertencia aos filhos; um pequeno detalhe omitido é que os filhos eram

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menores. Evidentemente que era uma forma de burlar o que a lei determinava para continuar recebendo o benefício. Outros colegas recebiam o auxílio, depois eram transferidos para outra localidade na qual tinham um imóvel, mas continuavam recebendo. Determinei a suspensão e a devolução dos benefícios auferidos indevidamente. É claro que foi um inferno e alguns passaram a me odiar. Eu achava que deveríamos zelar pela correta aplicação da lei, de forma que fui inflexível. Afinal, alguns anos depois, o auxílio-moradia foi estendido a todos os juízes e membros do Ministério Público, independentemente de posse ou não de imóvel no município de atuação.

Outro ponto de atrito teve relação com o período de férias. Eu fixei um período de férias padrão para todos, que convergia com o recesso do Tribunal. Me parecia uma coisa lógica que todos gozassem suas férias nessa época, em que o volume de trabalho é naturalmente menor. Mas isso gerou desconforto, porque alguns estavam acostumados a gozar suas férias em meses como abril, maio, enfim, quando havia muito mais serviço.

No final de minha gestão, houve, ainda, um conflito envolvendo a nomeação de uma colega. Ela havia sido aprovada no concurso em 1999, cuja validade estava para expirar. Como havia outro colega prometendo se aposentar, pediram-me para nomeá-la, deixando para lhe dar posse quando a vaga efetivamente surgisse, em função da referida aposentadoria. Entretanto, independentemente de seu mérito pessoal, que para mim não estava em questão, achei que não poderia agir dessa forma, porque a vaga não existia de fato.

Memória MPM – Essa história repercutiu na imprensa da época. Houve um mandado de segurança que chegou ao STF e uma ação popular contra o procurador-geral da República, não é?

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Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim. Os pedidos em favor da nomeação da colega tinham vindo até do procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, e o advogado de defesa dela era o ex-procurador-geral Aristides Junqueira. A colega entrara com um mandado de segurança para conseguir a nomeação, sustentando que o veto ao Art. 2º da Lei nº 8.975/1995 não alcançara o Art. 3º da mesma lei, o que faria o número de vagas para promotores passar para 42; mas a liminar havia sido indeferida pela ministra Ellen Gracie em setembro de 2003. Segui o entendimento da ministra. Não a nomeei, o que descontentou muita gente.

Logo depois de me afastar da chefia institucional, em abril de 2004, a nomeação saiu, só que o prazo de validade do concurso já tinha expirado havia sete meses. Achei que, por coerência, deveria questionar o ato e acabei interpondo uma ação popular contra o procurador-geral da República na Justiça Federal de Brasília. Foi concedida uma liminar suspendendo os efeitos da portaria de nomeação. Mas, depois de doze dias, a liminar caiu.

No STF, o julgamento do mandado de segurança foi suspenso com a nomeação, pois se entendeu que o mérito estaria prejudicado. Mas a defesa interpôs agravo regimental e o julgamento prosseguiu. Soube que, em 2011, o STF, contrariando a relatora ministra Gracie, entendeu que havia evidência da existência de um cargo vago, concedendo, portanto, a segurança, e, até onde sei, encerrando a questão.

Memória MPM – E como f icaram as relações externas, com as outras instituições?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – De um modo geral, penso que melhoraram. Eu me preocupava bastante com a qualidade da nossa

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comunicação institucional, de modo que criei a Assessoria de Comunicação, ASCOM. Contratei uma jornalista, passamos a editar folders e um boletim mensal informativo. As Procuradorias mandavam subsídios e todos ficavam sabendo, com fotos e artigos, o que os colegas estavam fazendo de norte a sul. A ASCOM foi uma iniciativa da minha gestão que muito me orgulha. Em 2002, ainda, lançamos um selo dos Correios em comemoração aos 82 anos de criação do Ministério Público Militar, uma ação que ajudava a projetar a instituição e sublinhava a sua tradição. Também articulamos um convênio com a TV Justiça e passamos a estar muito mais presentes na mídia, de forma propositiva, o que é importante, porque o nosso Ministério Público é pequeno, com uma atribuição específica e altamente especializada, o que o torna pouco conhecido.

E havia, na época, questões candentes e polêmicas, como o início da atuação do Exército nas favelas do Rio de Janeiro. Em princípios de 2003, determinei a instalação de uma investigação sobre a infiltração do crime organizado nos quartéis no Rio de Janeiro. Havia denúncias de desvios de armas dos quartéis. A procuradora Maria Ester Henriques Tavares e os promotores Ailton José da Silva e Ione de Souza Cruz, da Procuradoria do Rio de Janeiro, trabalharam seis meses nessa investigação.

Outro debate muito rumoroso, na época, era sobre o destino que se deveria dar ao célebre traficante apenado Fernandinho Beira-Mar: por uma questão de segurança, havia quem defendesse que ele fosse encarcerado em uma prisão militar, algo com o que não concordávamos. Havia, também, uma discussão sobre a lei de abate de aeronaves ilegais pelas Forças Armadas. Discutia-se, ainda, o assim chamado Estatuto do Desarmamento, que tinha impacto direto sobre a indústria bélica no Brasil. Temas, enfim, que

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frequentavam a ordem do dia e eram muito debatidos nos meios jurídicos, pela imprensa e no Congresso Nacional.

Memória MPM – Nesse caso específico do Estatuto do Desarmamento, salvo engano, havia um artigo que beneficiaria a indústria nacional. Falava-se em lobby organizado. A figura de um general, que chefiara durante seis anos a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados, do Ministério da Defesa, gerava comentários na mídia, por ter sido empregado como consultor de uma empresa da área de armamentos depois de passar para a reserva...

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Nesse caso específico, dois generais chegaram a ser investigados, mas a notícia-crime foi arquivada por falta de lastros probatórios.

Logo depois de assumir, recebi uma visita inusitada, do comandante do Exército, general Gleuber Vieira, um homem preparado, que assina, por exemplo, traduções de livros do inglês para o português. Tomamos um chá e conversamos no gabinete. Ele não me pediu nada, mas lhe deixei bem claro que não pararia de atuar onde fosse necessário, pois se não cumprisse bem com minhas atribuições, nem mesmo o respeito das Forças Armadas eu teria. Durante minha gestão, ofereci denúncia contra dois oficiais-generais, instaurando os respectivos processos de ação penal originária. Havia muitos anos que não existiam processos dessa natureza.

Memória MPM – Houve processo? Eles foram condenados?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, o primeiro foi condenado, depois o Supremo Tribunal Federal acolheu recurso da defesa e o absolveu. Mas, a minha missão, eu cumpri. É aquilo que sempre falo: eu

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não quero nem saber como vai terminar, eu quero saber é se cumpri a minha obrigação, o meu dever. Depois, cada um sabe o que tem que fazer, não sou eu que vou criticar. Já estava aposentada quando saiu a decisão de absolver, mal tomei conhecimento. Sobre o outro que denunciei, acompanhei algumas sessões no Tribunal, mas depois perdi o rastro do processo.

Memória MPM – Eram o quê? Casos de peculato?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Um, era estelionato e o outro, peculato. O generalato e o alto comando das Forças Armadas é um funil. Quem chega lá é porque realmente tem lastro moral e conteúdo, isto é, tem honradez e conhecimento, além de usufruir de reconhecimento entre os superiores. Então, é muito difícil um alto oficial se envolver em algum delito. Na minha gestão, por coincidência, aconteceu isto duas vezes. Talvez leve anos para que um novo caso apareça. É raro. Nossos oficiais são, em geral, muito honrados.

Memória MPM – E a rotina de trabalho, como era?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Às vezes, realmente era exaustiva. Chegava sexta-feira e eu falava: “Vou embora cedo para casa hoje, vou descansar”. Mas davam 18 horas, 19 horas e o telefone não parava. Surgia alguma urgência. Lá ficava eu até mais tarde. Dia sim, outro também. Foi trabalhoso, mas gratificante.

Uma face agradável eram os eventos e recepções nas Embaixadas, para as quais volta e meia éramos convidados. Certa vez, fui convidada para um jantar na residência do embaixador da China. Até comentei com o Péricles, que então era o corregedor-geral, que iria desistir de ir, porque, afinal, eu estava

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tão cansada... Enfim, apesar de tentada, achei que seria deselegante declinar do convite na última hora. Ao lá chegar, estava escrito no cartão que informava o cardápio: “Jantar em homenagem a Dra. Marisa Cauduro, procuradora-geral de Justiça Militar”. Ninguém me dissera que seria em minha homenagem. Foi uma surpresa. Imagina se eu não vou!? As festas na Embaixada da França eram ótimas, assim como as recepções na Embaixada da Rússia. Com o pessoal da Hungria, nós tínhamos um excelente relacionamento. Inclusive, participei de um Congresso em Budapeste, de Justiças Militares, que reuniu representantes de 29 países. Foi uma viagem magnífica.

Memória MPM – Existe algum outro país que tenha um Ministério Público parecido com o que atua no Brasil na área militar?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Penso que não, porque a maioria dos integrantes é composta por membros das Forças Armadas. A propósito, em minha gestão nós instituímos, também, um sistema de sorteio para definir quem teria a prerrogativa de integrar comitivas em viagens internacionais.

Memória MPM – Como foi a eleição para a sua sucessão?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não me candidatei, como prometera. Também não fiz campanha para nenhum pretendente. Simplesmente, saí do cenário político.

Memória MPM – Quem compôs a lista tríplice?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – A Maria Ester Henriques Tavares, que foi nomeada; um colega de Recife... Mas não lembro mais, faz algum tempo...

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Memória MPM – Todos do primeiro grau?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, eles fecharam a lista tríplice.

Memória MPM – Houve campanha para fechar a lista tríplice?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Houve. A Maria Ester ficou quatro anos, sucedida pela Cláudia [Márcia Ramalho Moreira Luz], promotora de Justiça, que também permaneceu quatro anos. Finalmente, o Marcelo [Weitzel Rabello de Souza], que havia sido presidente da Associação, já nomeado subprocurador, conseguiu romper esse cerco do primeiro grau.

Memória MPM – A senhora teve alguma vivência ou passagem pela Associação?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não. Cheguei, uma vez, a me candidatar a vice-presidente, mas a chapa foi derrotada, isso antes de ser procuradora-geral.

Memória MPM – E como foi a relação da sua gestão, de procuradora- -geral, com a Associação? Foi construtiva?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Podia ter sido melhor. Logo no início do meu mandato, já se instalou um episódio peculiar. Em 2001, o Péricles apresentara, à então procuradora-geral Adriana Lorandi, um projeto de resolução que melhorava o texto que regulamentava o procedimento de diligência investigatória criminal, que havia sido aprovado em 1999, como comentei. Mas o assunto não avançou. Quando assumi a Procuradoria-Geral, em 2002, encontrei aquilo lá parado e resolvi dar andamento. Novamente, a

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matéria foi aprovada por unanimidade no Conselho Superior. Dessa vez, entretanto, houve resistência de setores da classe. Alguns membros entenderam ser inconstitucional a revisão, pela Câmara de Coordenação e Revisão, do arquivamento eventualmente praticado no primeiro grau. Em razão disso, a Associação Nacional do Ministério Público Militar patrocinou um mandado de segurança no foro federal, perdendo, como não poderia deixar de ser, a causa. O juiz disse que a regra era indispensável para o interesse social, além de fundamental para garantir a transparência da instituição. Hoje, isso é considerado óbvio e plenamente assentado, mas, na época, foi um grande debate.

Não foi o único episódio em que se verificou oposição da Associação. Em 22 de agosto de 2003, um enorme incêndio, seguido de explosões, destruiu o foguete brasileiro que seria lançado três dias depois na base de Alcântara, no Maranhão. O objetivo da missão era colocar em órbita um microssatélite meteorológico do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Morreram, no sinistro, 21 técnicos e cientistas brasileiros altamente capacitados. É evidente que isso atrasou o programa espacial do país em uma década, pelo menos. Uma semana depois do acontecido já surgiam, nos jornais, algumas notinhas sugerindo que poderia haver algo mais por trás daquele acidente, como uma sabotagem. A base de Alcântara é considerada o melhor espaçoporto do mundo, pela proximidade geográfica à linha do Equador, o que garante economia de 30% no combustível necessário para o lançamento de foguetes. Os Estados Unidos haviam tentado um tipo de arrendamento da base três anos antes, sem sucesso, pois as cláusulas de salvaguardas tecnológicas foram consideradas ofensivas à soberania nacional pelo Senado Federal, depois de aprovadas pelo Executivo. Além disso, é restrito o clube de países capazes de lançar satélites no espaço: a questão é econômica e estratégica.

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Enfim, pertinentes ou não os rumores, justamente em função da gravidade dos fatos e da proporção do acidente, a Aeronáutica havia designado um general para promover o IPM e solicitou que indicássemos um membro para assessorá-lo. Por se tratar de um general, concluí que deveria indicar um subprocurador-geral. Indiquei dois: o Péricles e o Carlos Frederico. A Associação, que, no meu entendimento, deveria nos apoiar num momento tão delicado, promoveu manifestação de repúdio à designação, alegando se tratar de uma usurpação da competência do primeiro grau. Não era, porque, afinal, o encarregado do inquérito não era um coronel, mas um general.

De qualquer sorte, criou-se uma situação constrangedora, de forma que tanto o Péricles, quanto o Carlos Frederico pediram para serem afastados da atribuição. Não lembro quem assumiu o assessoramento – acho que alguém de uma das Procuradorias do Rio de Janeiro. Afinal, o inquérito concluiu que tudo não teria passado mesmo de um infeliz acidente causado por uma falha elétrica. Mas isso nunca convenceu todo mundo. Por exemplo, aquele jornalista norte-americano, correspondente do New York Times no Brasil, Larry Rohter, que ficou célebre por provocar uma nota de repúdio da Secretaria de Imprensa da Presidência da República em 2004, escreveu não entender como os brasileiros aceitaram uma conclusão, que resultou de investigação interna da Aeronáutica, sem ter constituído uma comissão independente. Sem nenhum demérito ao trabalho então realizado pelo colega do primeiro grau, mas foi mais ou menos isso que eu estava pensando quando indiquei dois subprocuradores-gerais: uma comissão composta por membros do segundo grau.

Durante minha gestão, a propósito, houve outro episódio envolvendo o Centro Tecnológico Aeroespacial. Recebi uma denúncia anônima que sugeria que se admitia ter, de fato, havido um arrombamento da porta de

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acesso à dependência específica, na qual se simulava o lançamento de foguetes, oportunidade na qual supercomputadores foram destruídos, gerando prejuízo e atrasando o programa espacial brasileiro. O brigadeiro-comandante não tomou as providências policiais cabíveis diante de danos de monta. Por requisição nossa, um inquérito acabou sendo aberto. Designei o Péricles para assessorá-lo. Afinal, não se identificou autoria. Mas a tese de sabotagem era plausível, porque havia indícios efetivos de arrombamento.

Enfim, posso dizer que precisei enfrentar a oposição da nossa Associação de classe em mais de uma oportunidade. O que, aliás, foi incomum, pois, em geral, a Associação se alinha à Procuradoria-Geral.

Memória MPM – Quem eram os membros de sua equipe de trabalho?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – O Dr. Edmar Jorge de Almeida foi vice-procurador-geral, um colega culto, espiritualizado e idealista. O Péricles Queiroz foi corregedor-geral no período, dando sequência a iniciativas importantes, como as correições e os estágios probatórios, e instituindo outras, como as vistorias às prisões. A minha gestão preocupou-se muito em apoiar as iniciativas da Corregedoria-Geral e em fortalecer o órgão. O coronel-aviador Pedro Alvarenga, que havia sido secretário nacional de Segurança Pública, foi um diretor-geral competente, honesto e ágil, garantindo nossa tranquilidade administrativa. A chefe de gabinete se chamava Berta, mas ela não chegou ao final da gestão.

Memória MPM – Chegou a presidir a Câmara de Coordenação e Revisão?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Não, fui apenas membro.

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Memória MPM – O que lhe parece fundamental para conseguir constituir uma candidatura viável a procurador-geral dentro do sistema que existe hoje? Passar pela Associação, por exemplo?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, hoje em dia é bem importante, porque o presidente da Associação tem muita comunicação com todos os membros. Nos outros Ministérios Públicos, a maioria dos procuradores-gerais foi presidente de Associação.

Memória MPM – No Ministério Público Militar, as mulheres ficaram doze anos consecutivos no comando da instituição. Isso confirmaria que, diferentemente de outras instituições, no MPM não há nenhum tipo de barreira para as mulheres se alçarem à Alta Administração?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, não há barreira alguma. O que lamento é que, algumas mulheres, poderiam se empenhar mais em prol do trabalho e da instituição. Mas isso também vale para os homens: há aqueles que são mais engajados, outros que são menos.

Memória MPM – Como foi a aposentadoria?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Depois que saí da chefia institucional, continuei com minha rotina de trabalho, normalmente. Aí eu e o Péricles resolvemos assumir nosso relacionamento. Fomos ao cartório e as-sinamos um contrato de união estável. Em 2006, precisei me afastar, porque me diagnosticaram com câncer. Foi um período bastante difícil. O Péricles foi muito parceiro, um grande companheiro, me ajudou muito. Não saiu do meu lado e, ainda assim, não descurou de suas atividades profissionais. O Péricles é muito dinâmico: hoje se envolve em várias atividades, como a Câmara

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de Coordenação e Revisão, a curadoria acadêmica dos cursos da Escola Superior do Ministério Público e, agora, o Projeto Memória. Muitas das ideias que ele imprimiu naquele folder seguem atuais e sendo revisitadas pelos candidatos na atualidade.

Eu retornei ao trabalho em 2007, mas em 2009 veio outro câncer. Não foi metástase, foi um novo. Foi um baque. Afastei-me novamente. Como nós, em Brasília, somos poucos membros, quando um se afasta por longo período, os outros ficam sobrecarregados. Por isso, decidi me aposentar em 2010.

Memória MPM – E quanto às medalhas, a senhora recebeu alguma?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Sim, certamente. Fui admitida ao Grau de Alta Distinção pela Ordem do Mérito Judiciário Militar, em 11 de fevereiro de 1998 e admitida na Ordem no Grau de Grã-Cruz em 1999, também pela Ordem do Mérito Judiciário Militar. Fui, ainda, admitida no Corpo de Graduados Especiais, da Ordem do Mérito Aeronáutico. Sou muito grata a essas honrarias.

Memória MPM – Mais alguma coisa que a senhora gostaria de dei-xar registrada?

Marisa Terezinha Cauduro da Silva – Apenas agradecer pela oportunidade e pela tarde agradável, além de parabenizá-los pela iniciativa do Projeto Memória.

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RAEntrevista realizada na Procuradoria de Justiça Militar em São Paulo, em 25 de junho de 2015, por Gunter Axt.

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Nelson Luiz Arruda Senra nasceu em 27 de agosto de 1949, no Rio de Janeiro. É filho de Nelson de Carvalho Senra e Lúcia Arruda Senra. Casou-se com Magali Leite Dias. Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em 1974. Atuou como advogado no quadro complementar da Marinha, entre 1976 e 1978. Foi aprovado em concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público Militar em 1984, sendo nomeado em fevereiro de 1985, no cargo inicial de procurador militar de segunda categoria, hoje denominado promotor de Justiça Militar, junto à Auditoria da 10ª Circunscrição Judiciária Militar, em Fortaleza, no Ceará. Em 20 de fevereiro de 1995, foi promovido ao cargo de procurador da Justiça Militar e, em razão disso, removido para a Procuradoria da Justiça Militar de Campo Grande (MS), da 9ª Circunscrição Judiciária Militar. Em 22 de março do mesmo ano, foi nomeado subprocurador-geral da Justiça Militar. Em 1996, foi nomeado coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar. Em maio de 1997, foi renomeado para a mesma função, depois, novamente, em maio de 1999, exercendo-a até 2001. Em 25 de abril de 2006, foi designado corregedor-geral do Ministério Público Militar, afastando-se da função em outubro de 2007. Em 25 de fevereiro do ano seguinte, aposentou-se.

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Memória MPM – O senhor é natural de onde?

Nelson Luiz Arruda Senra – Sou natural da cidade do Rio de Janeiro, sou carioca.

Memória MPM – Como o senhor chegou ao Direito? Havia alguma tradição de família?

Nelson Luiz Arruda Senra – A irmã de minha mãe casou-se com um jurista que chegou a desembargador no Rio de Janeiro, o doutrinador Alyrio Cavallieri, reconhecido por sua atuação junto a crianças e adolescentes infratores e desabrigados. Foi um expoente do chamado Direito do Menor, hoje baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente. O Dr. Alyrio sempre foi um referencial para nós todos.

Eu, particularmente, queria fazer o Instituto Rio Branco. O meu sonho era ser diplomata. Tinha duas vertentes na época: Economia ou Direito. Economia tinha muita matemática, com a qual não me dava muito bem, então escolhi o Direito.

Memória MPM – A faculdade cursada foi no Rio de Janeiro?

Nelson Luiz Arruda Senra – Foi a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ainda estávamos no regime militar, nos idos de 1970.

Memória MPM – Como foi o período de faculdade? O senhor tem lembranças dessa época, dos professores, da ambiência do curso?

Nelson Luiz Arruda Senra – Havia muitos professores notáveis, como o Celso [Renato] Duvivier de [Albuquerque] Mello, autor de livros sobre Direito Internacional. Havia o professor João Mestieri, também jurista

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de nomeada, com publicações em Direito Penal. O professor Alfredo [de Vilhena] Valladão, de Direito Internacional Privado, era uma figura adorável. Ficaram gravadas na minha mente as aulas sensacionais desses professores.

Depois, a lembrança de Chico Buarque, que morava na Gávea e cantava na PUC. Ele ia para lá e juntava aquela quantidade de moças e rapazes para assisti-lo. Eu não sabia quem eram os cantores que de vez em quando faziam show lá, mas depois me dei conta de que se tratava do Chico. Como era uma Faculdade rica, os diretórios de estudantes tinham recursos, para, por exemplo, imprimir material de protesto contra o regime. Acompanhei isso muito ao largo, sem maiores contatos, porque eu trabalhava, e quando chegava à Faculdade, estava cansado. Não tinha tempo para me envolver com a política estudantil. Minha esposa também trabalhava e estudava.

Memória MPM – Vocês já eram casados?

Nelson Luiz Arruda Senra – Nos casamos cedo, eu tinha entre 21 e 22 anos. Quando entrei na PUC, passava-se do regime seriado para o de crédito e isso foi bastante confuso para nós. Eram seis anos de Direito. Quando cheguei tinha um tal de Ciclo Básico, que ninguém sabia o que era. Tinha Ciência Política, Sociologia, matérias do departamento ministradas fora do departamento...

Memória MPM – O senhor chegou a pegar latim no vestibular?

Nelson Luiz Arruda Senra – Eu estudei em um colégio formidável chamado Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Escolhi o Clássico – fugindo de física, matemática e química. Estudei latim, grego, filosofia, matérias mais agradáveis. O professor Alfredo Valladão dava aulas muito boas e muita coisa

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em latim, porque ministrava Direito Internacional Privado, matéria na qual o latim e o Direito Romano tinham importância.

Memória MPM – O senhor já trabalhava com o Direito?

Nelson Luiz Arruda Senra – Não. Eu era o filho mais velho de quatro. O pai era comerciante e achava que o filho mais velho deveria ajudá-lo a ganhar dinheiro. Então, me levou para trabalhar com ele. Ele migrara do setor de estamparia, industrial, para o de transporte. Comecei a trabalhar na transportadora antes de tirar minha carteira de motorista, pois não tinha 18 anos. Então, chegava muitas vezes na Faculdade, de manhã cedo, depois de ter ficado a noite inteira vendo os caminhões, acompanhando o movimento de motorista e tal.

Memória MPM – E o senhor se formou em que ano?

Nelson Luiz Arruda Senra – O meu período de Universidade foi de 1969 a 1974.

Memória MPM – Como teve início o exercício profissional no Direito?

Nelson Luiz Arruda Senra – Uma pessoa amiga da família me falou de um concurso para o quadro complementar da Marinha do Brasil, a primeira Arma a importar dos Estados Unidos a ideia do quadro complementar. Ela mandara construir fragatas na Inglaterra e estava carente de pessoal treinado, porque os oficiais que saíam da Escola Naval nem sempre reuniam a qualificação necessária para atividades específicas. Eram fragatas já com uma série de inovações para a época e exigiam verdadeiros engenheiros no seu comando. Abriram-se novas oportunidades para os jovens, nas mais diversas áreas. A terceira ou quarta chamada, salvo engano, foi para bacharéis em

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Direito. Vários colegas advogados entraram para os fuzileiros, a Intendência e o corpo da Armada.

Memória MPM – Qual era a função do advogado?

Nelson Luiz Arruda Senra – Na Intendência, onde eu fiquei, era mais administrativa. Nós ficávamos com a folha de pagamento do pessoal, com o estoque. Na Armada, depois eu descobri, era mais interessante, pois havia jogos de guerra e assessoramento aos comandantes de navio. Eu tinha um pensamento que a Marinha iria nos recolocar nas Auditorias, mas ela nos capacitou como oficiais. Os que foram para os fuzileiros navais tiveram um treinamento bastante militar-operacional, mas também sempre assessorando os seus comandos. Fui, no caso, assessorar a antiga diretoria de Intendência da Marinha. Seis meses depois de ter feito as provas, passei de guarda-marinha a segundo-tenente. Isso irritou muito os alunos de Escola Naval, que levavam praticamente toda a juventude para chegarem a ser tenentes. Só que o nosso quadro era diferente do deles. Era um quadro limitado. Em princípio, nós ficaríamos três anos só. Se a Marinha quisesse, escolheria aqueles que poderiam ir um pouco além. Talvez chegássemos a capitão de Mar e Guerra, algo equivalente a um coronel, mas só depois seríamos licenciados, porque nós já entrávamos na Reserva. Era um trabalho remunerado, mas na Reserva. Tempos depois, descobri que o Exército tinha isso também. Mas era mais para um corpo de saúde, pois já recebia médicos. Havia oficiais temporários também.

Entrei na Marinha em 1976, onde fiquei dois anos. Antes de completar três anos, saí para voltar a estudar, porque eu ainda pensava no “Rio Branco”, mas acabei passando em um concurso para o Ministério Público da

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União, na vertente do Ministério Público Militar, que naquela época ainda estava constitucionalmente um pouco solto. Foi com a Lei Orgânica que realmente se estruturou o Ministério Público da União.

Memória MPM – Foi o concurso de 1981?

Nelson Luiz Arruda Senra – Não, o de 1981 foi anterior ao meu, que foi o de 1984. O Ministério Público e juízes federais ficaram sem concurso durante o regime militar. Os substitutos eram indicados e não tinham estabilidade. Os militares ficaram com medo de abrir inscrições para concurso público, porque pessoas muito preparadas poderiam ser subversivas e eles não queriam correr esse risco. Então, eles preferiam fazer toda uma investigação na vida da pessoa, aplicavam uns testes, umas provas e uma seleção para os juízes federais.

Quando passei para o Ministério Público da União, não sabia que os ramos seriam estanques, isto é, antes da Lei Orgânica, havia, em tese, a possibilidade de assumirmos funções nos diferentes ramos. De qualquer forma, foi interessante me reencontrar com a experiência de vida que eu havia tido na Marinha. O que vivi lá, por estar no quadro complementar, acabou me sendo útil na jurisdição militar. Sou muito grato à Marinha, por tudo o que aprendi e pelo extraordinário ambiente de trabalho e de convivência com as pessoas que lá encontrei.

Memória MPM – O senhor chegou a servir em algum navio?

Nelson Luiz Arruda Senra – Sim, como no porta-aviões Minas Gerais, o nosso primeiro. Estava docado, na época, porque precisava de muitos reparos. Fiz lá uma besteira que ficou famosa; meus colegas não me permitiram

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esquecer. Eu estava já como tenente, dando ordem unida ao pelotão, e o convés do porta-aviões é grande, mas acaba, e eu, naquela empolgação, esqueci de dar meia-volta: eles iam ter que se jogar lá de cima. Aí todo mundo começou a marcar passo, quando eu me lembrei do “meia-volta, volver”. Não me esqueço mais, porque virou uma piada: o tenente que não deu “meia-volta, volver”. Me falavam que, em uma guerra, ia rasgar tudo, seria fantástico, avançar sempre sobre o inimigo, não ia regredir nunca [risos]. Essas coisas foram interessantes na Marinha e úteis depois no Ministério Público da União.

Eu era advogado, e ao passar no concurso, em questão de dias tinha que pensar como promotor, investigar. Tivemos vários colegas oficiais das Polícias Militares que ingressaram no Ministério Público Militar. Alguns colegas meus já foram também oficiais desses quadros complementares e ganharam uma experiência muito rica.

Memória MPM – Como foi o concurso de 1984, tinha muitos inscritos?

Nelson Luiz Arruda Senra – Havia uma disposição que impedia maiores de 35 anos de se inscreverem em concursos. A legislação presumia que você tinha que ficar 35 anos atuando, pois outro artigo dizia que a aposentadoria seria compulsória aos 70 anos. E eu já estava com uns 33 anos e não sabia quando apareceria outra oportunidade de concurso.

Eu trabalhava num escritório de um advogado, José Francisco da Costa Neto, na Cinelândia, e entre os clientes tinha um que era sargento do Exército, que estava com um processo na Justiça Militar. Novato, era eu quem fazia o Fórum, via o andamento dos processos, um serviço no qual se perdia muito tempo. Ele ficava fazendo as petições. Foi a minha sorte, porque tive o primeiro contato com uma Auditoria. Fui muito bem atendido pelo

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escrivão, que era o diretor da Secretaria, um futuro professor meu, o Dr. Nelson Coldibelli. Vi na parede um cartaz simples: concurso para defensor público e para promotor público da Justiça Militar. Aquilo chamou minha atenção, porque eu já tinha sido militar e outra coincidência muito feliz: estava trabalhando neste escritório do Dr. Costa Neto, na Cinelândia, onde ficava o curso do professor [ José Carlos] Couto [de Carvalho]. Era pertinho, então eu saía do meu trabalho e ia ter aula com ele à noite. O professor Couto fora diretor da Secretaria e tinha recém entrado para o Ministério Público. Pessoa notável! Até hoje agradeço muito ao Dr. Coldibelli e ao Dr. Couto, porque foram os dois mágicos que conseguiram me ensinar rapidamente toda uma estrutura que eu desconhecia do Direito, porque não era ensinada nas faculdades.

Memória MPM – Ainda não é...

Nelson Luiz Arruda Senra – Veio a ser o grande divisor de águas da minha vida.

Memória MPM – O concurso era para ambos os postos?

Nelson Luiz Arruda Senra – Não, foram dois concursos. É que eles saíram em épocas muito próximas, mas por sorte minha, um não atrapalhou as provas do outro, não houve coincidência. Tive o prazer de ter passado para defensor e para promotor. O de promotor foi mais sofrido, porque logo depois daquele provão nós ficamos sabendo que tinha uma segunda fase em Brasília: quem não passava já não tinha comunicação com os outros. Mas na prova oral era sofrido ver colegas chorando e outros gritando de alegria. Porque realmente muitos ficaram...

Memória MPM – Ficaram pelo caminho... E em Brasília era a prova oral?

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Nelson Luiz Arruda Senra – As provas orais foram todas em Brasília.

Memória MPM – Uma banca presidida pelo Dr. Milton [Menezes da Costa Filho]?

Nelson Luiz Arruda Senra – Creio que sim, pois era ele o procurador-geral. Mas o nervosismo daqueles dias não me deixa recordar hoje esse aspecto. Nos hospedamos numa pensão e quando nos descobrimos todos lá, começamos a estudar juntos, um falava para o outro. Isso foi um incentivo nos dias que ficamos em Brasília, porque era estudar dia e noite. Ainda causamos um problema para a pensão: a dona falou que era proibido homem ir para o lado feminino e mulher ir para o lado masculino, mas nós falamos que estávamos em um concurso, ficávamos acordados a noite inteira estudando, e ela dizia que não dava, que não podia. Nós tínhamos que estudar e acabávamos atrapalhando as pessoas, porque estávamos nervosos. Era minha cartada final, pela minha idade.

Memória MPM – O senhor acabou não tentando o Rio Branco?

Nelson Luiz Arruda Senra – Não tentei. Eu teria que me preparar muito para a carreira diplomática, cursos complexos e demorados. É um concurso dificílimo, sendo necessário domínio perfeito de línguas e de muitas matérias. Tem gente que estuda durante anos.

Memória MPM – O senhor recorda quantas vagas tinha e quantos foram os aprovados no concurso de 84?

Nelson Luiz Arruda Senra – Eu fui o sétimo. Acredito que não chegou a quinze, acho que foi por aí, um número pequeno. Passei também no concurso para advogado de ofício. Um presidente do STM havia dispensado

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todos os substitutos não concursados, o que entorpecera o andamento da Justiça Militar. Então, era um concurso com bom número de vagas e havia grande expectativa do Tribunal para a nossa posse. Fomos recebidos no STM pelo presidente Júlio de Sá Bierrenbach, um homem formidável, cultíssimo. Foi muito cordial e solícito. Os ministros ficaram impressionados com o número de aprovados. Como os futuros defensores da Justiça Militar, fomos recebidos com carinho e distinção. Nos causou uma impressão muito boa.

Vários ali, como no concurso para o Ministério Público, haviam passado pelo professor Couto, alguém que teve a característica singular de ser formador de uma inteligência jurídica na Justiça Militar: ele formou juízes- -auditores, promotores da Justiça Militar, defensores. Nós o chamávamos de “o grande mago”, pois fazia uma magia nos introduzindo numa seara quase hermética. Até hoje, tenho por ele grande admiração.

A nossa Justiça Militar é civil, os magistrados e promotores têm estabilidade e a instituição tem independência. Eu percebi o enorme acerto de o Brasil ter organizado sua Justiça Militar no Poder Judiciário e não no Executivo, como uma jurisdição administrativa, quando fui, a convite da então procuradora-geral de Justiça, Dra. Adriana Lorandi, a um congresso na Europa que reunia Justiças Militares do mundo inteiro. Todos ficaram espantados, inclusive que a chefe do Ministério Público Militar brasileiro fosse, além de civil, uma mulher. Os representantes de várias nações, muitas da Europa, não conseguiam entender isso.

Memória MPM – Como foi assumir? O senhor assumiu em 1985, não é?

Nelson Luiz Arruda Senra – Em fevereiro de 1985.

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Memória MPM – E sob a chefia de um novo procurador-geral da Justiça? Era o Dr. Milton ainda ou já era o Dr. George [Francisco] Tavares?

Nelson Luiz Arruda Senra – Eu peguei essa época de transição.

Memória MPM – Foi um momento específico, especial do Ministério Público Militar do Brasil, porque o Dr. George Tavares não era da carreira, tinha tido toda a sua trajetória como advogado, se destacando na defesa inclusive de presos políticos, que foram julgados sob a égide da Lei de Segurança Nacional.

Nelson Luiz Arruda Senra – Mas todo o Ministério Público das áreas federais estava numa situação incômoda, porque a antiga normatividade constitucional e federal ordinária não contemplava o que só surgiu depois com a Lei Orgânica. Apenas então tivemos uma corporificação clara. Antes nós navegávamos com o “Brasil da Abertura”.

Nossos colegas tiveram que trabalhar muito no Poder Legislativo para conseguirem um capítulo inteiro para o Ministério Público na Constituição. Tivemos tratamento constitucional, mas por outro lado também ficamos sempre numa dúvida, porque se a Constituição nos deu guarida, ela não nos inseriu em Poder nenhum. Nós não éramos do Executivo, nem do Judiciário, nem do Legislativo. Então veja, nós estávamos como a OAB, orbitávamos no Judiciário, mas com tratamento de Poder. Foi quando houve o engrandecimento. Imagina a dificuldade dos antigos promotores, procuradores e procuradores-gerais antes da Constituição, tanto os dos Estados, quanto os da União. Cheguei numa época feliz, quando o Ministério Público começou a melhorar.

A vida mudou com o concurso, porque aí dei estabilidade para a minha família. Por questão de vaga, tivemos que sair do Rio de Janeiro; fomos

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para Fortaleza. Podendo escolher, preferi o Nordeste, porque tem praia e sou carioca. Ficamos lá uns seis anos e fomos muito felizes. Gostamos demais dos cearenses e de Fortaleza!

Depois, seguindo a minha carreira e da minha esposa, nós fomos para Brasília. Ela era funcionária da Infraero. Então ela foi para a sede da Infraero e eu, para a sede do Ministério Público Militar, que ainda funcionava no prédio do Superior Tribunal Militar. Peguei essa transição do prédio: do 7º andar, mudamos para o prédio que construímos bem perto. Mas era um prédio apertado, pequeno. Não temos boa lembrança dele. Depois construímos a nossa sede atual, que é uma maravilha! Ainda guardo lembrança dos servidores. Sempre tive muito contato com eles, pela Câmara de Coordenação e depois pela Corregedoria.

Os anos 1990 e 2000 foram de afirmação de garantias e de organização interna. Era preciso operacionalizar tudo o que fora garantido na Constituição e na Lei Orgânica. Novos fluxos administrativos e gerenciais precisavam ser desenvolvidos. Havia um novo conceito de gestão emergindo.

Eu me envolvi bastante com a Divisão (antes Departamento) de Documentação Jurídica, que recebe e distribui os processos. Foi preciso desenvolver um sistema de acompanhamento processual para os promotores, procuradores e subprocuradores saberem a situação dos recursos. Depois, como corregedor, organizei o curso de treinamento para os novos promotores. Foi uma experiência espetacular, rapazes muito preparados. O tema escolhido foi improbidade administrativa. Conseguimos uma sala e professores na Escola Superior do Ministério Público da União em Brasília. Como corregedor, tive a oportunidade de conhecer mais o Ministério Público Militar, fazendo as

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correições nas diversas Procuradorias. Entre Manaus e Bagé há peculiaridades e especificidades.

Memória MPM – Muda muito de uma Procuradoria para outra a natureza dos feitos ou há um padrão? A ambiência das Procuradorias é mais ou menos a mesma?

Nelson Luiz Arruda Senra – Quanto à incidência de fatos-crimes e de imputações, eu acredito que eram bem parecidas. Dizer que há muita insubordinação, deserção, aqui ou ali, não posso, por falta de uma pesquisa. O que mais diferenciava era o contato com a sociedade local e a forma de ser recebido. Ou as implicações políticas, porque naquela época nós ainda estávamos à mercê de lutar para conseguirmos sedes próprias, saindo do aluguel. Disso dependiam questões simples, como o direito de, eventualmente, trabalhar até mais tarde, além das 19 horas. Mesmo no STM, às 19 horas vinha o aviso de que o prédio seria fechado e tínhamos de interromper o trabalho ou levá-lo para casa, ainda que estivéssemos embalados no estudo dos autos. Antes, nas Procuradorias, era um constrangimento até receber alguém para conversar, em um gabinete apertado, mal-instalado, enjambrado. Nossa infraestrutura melhorou muito.

Hoje nos acusam de termos poucos processos para uma estrutura tão confortável. Mas o que as pessoas querem? Mais crimes militares para trabalharmos mais? Mais crimes militares não gerariam uma intranquilidade enorme na sociedade? Querem que as organizações militares saiam por aí atirando em todo mundo, matando gente, malversando fundos e recursos, promovendo insubordinações e revoluções? Ora, uma das funções da Justiça Militar e do Ministério Público Militar é precisamente contribuir para a

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garantia da ordem e da disciplina. País feliz é aquele em que a Justiça tem pouco para fazer, porque isso significa que o índice de criminalidade é baixo, que os conflitos são dirimidos sem judicialização, que as pessoas se entendem. O sonho de sociedade perfeita é aquele em que os tribunais e os hospitais estejam vazios! Nós temos de ver o que é possível fazer para diminuir essa quantidade de feitos na Justiça Comum, porque isso é um sintoma claro de que alguma coisa não está bem no Brasil, nas áreas de competência da Justiça Comum: está todo mundo brigando contra todo mundo, é um pandemônio! Na área de competência da Justiça Militar, as coisas estão tranquilas. Mas isso se deve, também, ao fato de termos uma jurisdição especializada independente, bem-instalada, que funciona como uma espécie de horizonte dissuasório. Isto é, os militares sabem que se algo sair errado, será avaliado pela Justiça Militar.

Como o Brasil não tem hostilidade concreta, não temos inimigos tentando invadir nossas fronteiras, que são muito grandes, nem a nossa costa, que também é imensa, não damos importância às Forças Armadas, nem à Justiça Militar. Diferentemente, por exemplo, de Israel, que vive sob ataque de vários inimigos. Nesse país, a militarização, a mobilização militar é obrigatória para todos. Não desejamos um Brasil em guerra, tampouco Forças Armadas insurretas, indisciplinadas, corruptas, pois isso seria o caos. Assim, vamos aguentando as piadas que fazem ao nosso respeito. Mas, creia, o nosso papel é de fundamental importância para garantir a tranquilidade da nação, mesmo em tempo de paz.

Memória MPM – Nos anos 80, no momento em que o senhor ingressou na instituição, debatia-se intensamente a extinção da jurisdição, inclusive, na Constituinte de 1987, se propôs a extinção do Superior Tribunal Militar.

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Nelson Luiz Arruda Senra – Havia colegas que faziam o acompanhamento desse debate na Constituinte, mas eu não cheguei a colaborar nesse processo, porque era ingressante. Mas a ideia de extinção do STM era precária, sob todos os aspectos. Se fosse extinto, os ministros precisariam ser incorporados pelo STJ, que teria de constituir mais um braço especializado para dar conta da matéria. Penso que o cidadão tinha, e ainda tem, desconhecimento sobre a especificidade da jurisdição. O cidadão comum, às vezes, confunde militar com policiamento ostensivo nas ruas. Até porque talvez haja aí um erro de nomenclatura. As Polícias não deveriam mais se chamar “militares”. Volta e meia ressurgem essas ideias de extinção do Tribunal, alegando que o Tribunal trabalha pouco, não é necessário ao país. Mas essas pessoas não vão lá ver as grandes discussões, a densidade de julgamento, porque é um Tribunal diferente. Não é um Tribunal de Direito, é um Tribunal de fato. Diferentemente do Supremo, por exemplo, que não julga mais o fato, o STM julga o fato, e revê tudo, é uma outra instância, revisora, e aí está a grandeza da Justiça Militar: você tem que convencer até os ministros da seriedade dos seus argumentos, dos fatos, da prova, pois eles podem rever tudo. Muitos acham isso imperdoável, porque, como Tribunal Superior, imaginam que ele deveria ser somente de Direito, já que está na linha dos demais tribunais federais do país, uma vez esgotados os últimos recursos que possam servir de verificação fática. Então, nós temos tomado muito cuidado com essas investidas, no sentido de defendermos tecnicamente a Justiça Militar. A nação teve um ganho quando fomos para o Poder Judiciário: a segurança de uma Justiça franqueada, transparente, pública. Qualquer advogado pede, é ouvido, examina autos. Talvez houvesse mais dificuldades se ela funcionasse dentro do Exército, da Marinha, isto é, cada Força com o seu Tribunal ou coisa parecida.

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Memória MPM – O senhor se lembra de algum processo ou caso que tenha lhe chamado a atenção, seja no primeiro ou no segundo grau?

Nelson Luiz Arruda Senra – Sempre há alguns que marcam mais. Mas o que me doía era quando eu não tinha o mesmo ponto de vista dos colegas do primeiro grau, dos promotores e procuradores, porque recebia aquele feito por distribuição, aquele recurso, e tinha que opinar. Ao ver o processo e examiná-lo, até mais de uma vez, ficava incomodado porque o meu pensamento era divergente dos colegas, então isso criava um problema sério porque eu lançava dúvidas ao Tribunal e acredito que os colegas não gostavam nem um pouquinho dos meus pareceres.

Memória MPM – Tinha algum aspecto de interpretação do Direito Penal Militar que o senhor seguia?

Nelson Luiz Arruda Senra – Quando a dúvida era razoável, lançava isso no meu parecer, dizendo que os autos não estavam me dando elementos fáticos suficientes para manter o pedido de condenação em um artigo ou em outro, de uma pessoa ou de outra, simplesmente porque havia uma dúvida razoável. Isso eu aprendi com o Tribunal Penal Internacional, em que o promotor antes de lançar qualquer denúncia, faz uma investigação prévia, dentro do Tribunal, na qual procura ver todos os elementos: se são sustentáveis e se são cabíveis a uma ação penal. E muitas vezes, no Brasil, partimos de sindicâncias e inquéritos policias militares que veiculavam suspeitas, quase evidências, indicações de que a atuação de determinadas pessoas seria conduta criminosa e isso já era considerado o bastante para o promotor oferecer a sua denúncia. Cabia ao juiz-auditor recebê-la ou não e depois, se o promotor insistisse na denúncia, poderia recorrer ao Tribunal,

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que iria rever todo o ato, o fato. Daí a beleza da Justiça Militar da União. Muitas vezes eu, como subprocurador, concordava com o juiz.

Memória MPM – O senhor passava a ideia de vira-casaca ou de estar jogando no time oposto?

Nelson Luiz Arruda Senra – Eu não acessava nada por escrito. Não havia doutrinas sobre o segundo grau e isso me incomodou durante a minha atuação. Não sabia se tinha que defender mais a instituição, a denunciação dos colegas, para que deixasse a defesa fazer esse papel, ou se eu, vendo que o fato não se amoldava para todas aquelas pessoas e sim somente para algumas ou que aquelas imputações não eram cabíveis a todos, deveria suscitar a questão. Isto é, se a minha consciência jurídica poderia prevalecer e ir de encontro à instituição, se tinha liberdade de divergir do pensamento processual colocado nos autos pelos colegas de primeiro grau, que tiveram, inclusive contato com o fato, com as pessoas, com as testemunhas, coisa que eu não conhecia no segundo grau. Me baseava exclusivamente no que estava escrito nos autos. Mas eu declino de comentar qualquer fato em concreto, porque alguns criaram problemas e eu prefiro então só dizer que posso ter sido mal-avaliado pelos colegas, que não devem ter boas recordações dos meus pareceres. Se pensa num Ministério Público unido, coeso e não dividido ou com posições doutrinárias ou processuais divergentes. Acredito que é um anseio bastante razoável, mas ao mesmo tempo, os membros do Ministério Público são muito independentes e têm posições doutrinárias que nem sempre convergem. Essa diversidade pode parecer incômoda, mas ela é parte da essência da instituição. Então, talvez o desafio seja encontrar aí o ponto de equilíbrio.

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A Escola Superior do Ministério Público da União já tinha sido estabelecida e eu ia lá procurar colegas da República para saber como eles entendiam o Ministério Público de segundo grau. Mas não encontrava nada em especial. Não sei como está hoje, mas não havia uma doutrina estabelecida a esse respeito. Acho que a ideia de independência institucional e funcional ainda era muito jovem. Precisava amadurecer.

Memória MPM – É interessante, porque o Ministério Público muda de Estado para Estado e é diferente também no âmbito federal. Nos Estados hoje se discute uma refundação do papel do Ministério Público no segundo grau.

Nelson Luiz Arruda Senra – Em Brasília possuem sede estabelecida o Ministério Público do Distrito Federal, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Militar. Saindo do Distrito Federal, nas cidades-satélites, funciona outro Ministério Público, das Justiças Estaduais e que tem um promotor de Justiça daquela comarca. É confuso para quem se enreda nesse cipoal. Nós promovemos vários encontros na Câmara de Coordenação e Revisão no sentido de procurar, por meio das Câmaras, dar um pouco mais de coesão e uniformidade aos ramos do Ministério Público da União, porque eles eram estanques, separados.

Memória MPM – Eu acho que a única coisa que os une, efetivamente, são as regras de carreira e a figura do chefe da instituição, que é o procurador-geral da República.

Nelson Luiz Arruda Senra – Há uma discussão dizendo que a lei não determinava que o procurador-geral da República fosse do Ministério Público Federal, o que permitiria, por exemplo, que um procurador-geral do Ministério Público do Trabalho pudesse se candidatar para compor a lista

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tríplice a procurador-geral da República. Mas acabou vingando a interpretação de que apenas os membros do MPF pudessem concorrer à vaga, submetendo-se ao processo eleitoral interno. Houve quem defendesse a revisão da Lei Orgânica nesses pontos, considerados um pouco cinzentos, que podem gerar um entendimento algo opaco. Mas se decidiu, em um congresso da categoria, que evitaríamos propor alterações na Lei Orgânica, pois um movimento nesse sentido poderia ensejar um ataque de senadores e deputados a garantias e atribuições amplamente sedimentadas. Isto é, um projeto de lei nosso para mudar um pequeno aspecto na Lei Orgânica poderia abrir a porta para a passagem de outras pretensões. Assim, buscar no Parlamento uma melhoria sistêmica da nossa lei, poderia significar nos entregar aos lobos.

Um avanço importante que tivemos foi o surgimento desses órgãos de controle, como o Conselho Nacional do Ministério Público, que vem contribuindo no sentido de uma padronização de procedimentos basilares. A tal ponto que alguns colegas chegaram a pensar que os ramos do Ministério Público deveriam abdicar de seus corregedores para irem todos para a Corregedoria que funciona dentro do Conselho, e se tornaria, assim, numa espécie de agência reguladora. Mas se concluiu que isso seria um exagero, porque as Corregedorias são fundamentais para a fiscalização interna, para a orientação dos membros. Então, o Conselho se encarregaria daqueles casos que não estão sendo resolvidos pelas Corregedorias.

Mas eu também nunca entendi bem qual seria o peso político, legal ou normativo do Conselho Nacional do Ministério Público para com os ramos, porque quem presidia esse Conselho era o procurador-geral da Repú-blica, por ser o nosso grande chefe administrativo, e ficava complicado para ele, muitas vezes, quando a questão envolvia procuradores da Repúblicas ou

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fatos atribuídos ao Ministério Público Federal, ser ao mesmo tempo o presi-dente do Conselho, que poderia julgar contra os interesses dos procuradores da República, o procurador-geral do Ministério Público Federal e o procura-dor-geral da República. Muitos até deixavam toda a liberdade aos membros do Conselho, aos conselheiros, exatamente para não influenciar.

As discussões são em alto nível. Das vezes que fui ao Conselho Nacional, tanto da Justiça, quanto do Ministério Público, fiquei bem- -impressionado: discussões acaloradas, mas qualificadas e pertinentes. Hoje nós temos o colega Dr. [Antônio Pereira] Duarte lá, professor e doutrinador, um rapaz formidável, pessoa por quem tenho grande admiração. Os conselheiros têm funções quase que judicantes, podem dar ou acolher uma liminar para um determinado ramo do Ministério Público e até aquilo ser revisto por todo o Conselho. Um relator de um processo tem muita força na sua liminar.

Memória MPM – Há mais alguma coisa que o senhor gostaria de deixar registrada sobre a sua passagem pelo Ministério Público Militar?

Nelson Luiz Arruda Senra – Desejo expressar a minha profunda gratidão, por ter sido servidor público federal do Ministério Público Militar, que me engrandeceu muito e me trouxe segurança financeira. Depois, com os aumentos que recebemos, me proporcionou a melhor fase da minha vida, pois, uma vez aposentados, eu e minha esposa, temos feito viagens adoráveis pelo mundo. Isso tudo devo ao Ministério Público da União. Nunca esqueço a minha profunda gratidão a todos os colegas que me ajudaram e me ensinaram. Tenho muita gratidão pela instituição que servi com dedicação. Se não fiz melhor é porque não tive competência, nem capacidade, mas

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dentro das minhas limitações, procurei dar o melhor de mim, e hoje me aposento em paz e satisfeito por ter esse serviço.

Como percebo recursos que vêm da União, acredito ainda que é preciso oferecer algum tipo de retorno, de modo que faço atividades de trabalho voluntário. Tenho alegria em poder trabalhar voluntariamente para segmentos da população que estão mais prejudicados, como portadores de câncer, idosos ou doentes mentais, enfim, gente desassistida, que enfrenta a pobreza, necessita de ajuda. Ainda tenho saúde e energia, então, procuro ser útil à comunidade na qual resido, a cidade de Valinhos, nos arredores de Campinas, em São Paulo. Em Campinas, também ajudo o Hospital Infantil. É uma forma de retribuir tudo aquilo que eu recebi do Poder Público.

A minha atuação foi singela, não tem nada de excepcional, nunca fui uma pessoa destacada, de modo que não tenho o brilho de outros colegas, que provavelmente terão coisas notáveis a serem registradas. Mas disse o que eu tinha a dizer nesse diálogo tão agradável. Assim, concluo com esse meu preito de gratidão pelos colegas, pela instituição e pelo serviço federal.

Memória MPM – Muito obrigado, então, eu é que agradeço muito a oportunidade de conhecê-lo e por esta conversa.

NELSON LUIZ ARRUDA SENRA

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FRAN

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SEntrevista realizada em 6 de maio de 2015, no escritório do entrevistado em Brasília, por Gunter Axt.

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Francisco Leite Chaves nasceu em 7 de maio de 1929, em Itaporanga, na Paraíba. É filho de José Fiúza Chaves e de Maria Ernestina Chaves. Casou-se com Zélia Marinho Leite Chaves. Seu irmão, José Leite Chaves, foi deputado estadual; seu primo, José Gomes da Silva, governador da Paraíba. Bacharelou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, à época Universidade do Brasil, em 1956. Em 1958 concluiu, ainda, doutorado na mesma Universidade. Em novembro de 1974, pela legenda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), concorreu ao Senado, elegendo-se e assumindo o mandato em fevereiro do ano seguinte. Em 1982, filiando-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), foi eleito suplente do senador Álvaro Dias, pelo Estado do Paraná. Foi, novamente, entre 1987 e 1995, eleito senador pelo Paraná. Em 10 de abril de 1986, foi nomeado pelo presidente da República, José Sarney, procurador--geral da Justiça Militar, permanecendo no cargo até 18 de março de 1987. Advogado de carreira do Banco do Brasil, aposentou-se da Diretoria Jurídica. Integrou a delegação brasileira, na qualidade de observador parlamentar, à XXXII Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1977.

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Memória MPM – O senhor é natural de onde?

Francisco Leite Chaves – Itaporanga, Paraíba.

Memória MPM – O senhor estudou na Paraíba?

Francisco Leite Chaves – Sim. Comecei lá o curso de Direito, concluído no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Direito. Bacharelei-me em 1956 e finalizei o doutorado em 1958. Então, só existia doutorado no Rio de Janeiro. Para se matricular era preciso ter uma média alta no Bacharelado, ou um exame de suficiência aplicado a critério da Congregação. Havia professores excepcionais, como Francisco Campos, Nuno Lisboa, Haroldo Valadão, Hélio Tornaghi... Um ambiente, intelectual e jurídico, fantástico!

Memória MPM – Hélio Tornaghi fez o projeto do Código de Processo Civil a pedido do presidente Jango...

Francisco Leite Chaves – Um civilista de alto nível, mas como não apareceu concurso para a sua área, ele fez para Direito Penal, Processo Penal. Além deles, tive aulas também com o Santiago Dantas. O Pedro Calmon era catedrático de Direito Público Constitucional, mas não cheguei a ser aluno dele. Nossa cerimônia de formatura foi emocionante. O Teatro Nacional se engalanava de guirlandas vermelhas para receber as famílias dos formandos. Pedro Calmon foi o patrono, orador fluente e envolvente. Historiador que era, lastreou sua fala na história das becas, como forma de transmitir aos bacharelandos os valores do Direito e da vida cívica. Com analogias expressivas, relacionou o vermelho da pedra do anel do grau ao sangue dos mártires, remontando à morte de Santo Ivo, padroeiro dos advogados. Assassinado em Viena, conta a história, ele sangrava, e aquele sangue se avolumava na

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medida em que descia ladeiras e foi por essa razão que se introduziu no anel o vermelho do rubi, em homenagem ao sangue dos mártires, tendo como patrono Santo Ivo. Concluía emotivo, de modo eloquente: “Entre as galas da missa festiva, e as solenidades de colação de grau, está você, bacharel da pátria!”. Nesse momento, era ele reitor da Universidade do Brasil.

Memória MPM – O senhor recorda a temática do seu doutorado?

Francisco Leite Chaves – Foi em Direito Penal, sobre o crime estático, um tema raro e difícil. No meio do doutorado, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação mudou as regras da pós-graduação, considerando doutores aqueles que haviam concluído os créditos e entregado a tese, tornando dispensável a defesa que, por isso, não cheguei a fazer. Aliás, eu sempre desejei apanhar meu diploma de conclusão, mas os anos passaram... Havia tantos afazeres!

Nessa oportunidade, eu já era funcionário do Banco do Brasil, trabalhando como parecerista da SUBOP. Pegava o bonde 29 todo dia e ia para a Faculdade, na rua Moncorvo Filho. Às vezes não dava nem tempo de lanchar.

Eu tinha o propósito, nessa época, de ir para Brasília, pois a Capital Federal estava emergindo. Mas o Haroldo Valadão, professor de Direito Internacional Privado, falava de Londrina, no Paraná, e comecei a achar interessante a perspectiva de ficar uns dois anos lá, antes de ir para Brasília, o que aconteceu 16 anos depois, como senador pelo Paraná.

Memória MPM – Pelo Banco?

Francisco Leite Chaves – Como advogado do Banco. O chefe do Contencioso era o João Neves da Fontoura.

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Memória MPM – Isso mesmo, o João Neves da Fontoura atuou algum tempo no Banco. Como era a convivência com ele?

Francisco Leite Chaves – Grande orador, da geração de revolucionários de 1930. Um senhor muito cortês. Já estava com problemas auditivos nessa época. Era educado e inteligente, refinado e sério. Era um homem muito respeitado.

Memória MPM – E Londrina?

Francisco Leite Chaves – Um dia chegou um sujeito bem míope, perguntando pelo Chaves. Era Amaury Costa. Explicou que era advogado do Banco em Londrina, que a cidade era interessante, mas o excesso de pó vermelho provocava forte alergia na esposa, de forma que o casal estava querendo se mudar, mas somente o conseguiria se ele fizesse uma permuta. Bem, aquilo veio ao encontro do que eu estava imaginando. Ele me ofereceu a própria casa, que já estava mobiliada, de forma que eu nem precisaria procurar um imóvel para me instalar. Também falou que me repassaria os clientes que tinha no escritório de advocacia, tal como uma cervejaria grande que havia lá. Recusei, dizendo que poderia trazer a esposa para o Rio, indo eu, com a minha, para Londrina, dispensando as oferecidas vantagens, o que foi uma pena, pois, pelo vertiginoso crescimento foi difícil alugar casa na cidade, mesmo com a interferência do Banco. Convenci a direção da Casa que era importante que eu exercesse a advocacia, porque no instante em que eu tivesse apenas a defesa dos assuntos da instituição, seguramente viraria um funcionário público, o que me deixaria mais enclausurado, com menos capacidade de mobilização para vencer as causas em favor do Banco. Eu me empenhava nas rápidas soluções das causas do Banco para ter tempo para as

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minhas próprias. Quando fui eleito senador, em 1975, havia tido cerca de seis mil causas, contando com as do Banco.

Foram vários casos interessantes, com destaque, talvez, para os internacionais, como o do Gero von Gevernitz, na Alemanha, de Direito Internacional Privado, muito sugestivo por se tratar de um alemão, morando nos Estados Unidos, que deixou um testamento público em Berlim e um codicilo nas Ilhas Canárias, possessão espanhola. Deixou uma filha chamada Tanja Von Pascalle, com uma nobre alemã, condessa Valerie, com quem mantinha uma relação estável. Como testamenteiro nomeou o presidente da Suprema Corte Alemã e diversos outros magistrados e juristas em diversos países europeus para os bens aí localizados. De refinado gosto artístico, um desses testamenteiros ficou encarregado de distribuir, entre seus amigos, ao gosto de cada um, as inúmeras obras de arte que possuía, entre elas, ícones russos do século XIII, em ouro. Para que a filha e a companheira melhor se aquinhoassem, invoquei, como advogado, a lex rei sitae para os bens no Brasil (diversos deles, inclusive uma grande fazenda de café, em Apucarana/Paraná, dos quais era administrador o conde Janos Deseufy, de origem húngara. Gero Gevernitz havia tempo tinha se transferido para os EUA, em razão do nazismo. Milionário e muito culto, foi convidado por Fuster Dulles, então secretário de Estado, para com o irmão deste, Allen Dulles (primeiro diretor da CIA) participar de uma missão secreta, a fim de que obtivessem a rendição dos generais alemães não nazistas, no norte da Itália, o que aconteceu antecipadamente pelas reuniões mantidas na Suíça, em Castelo do Gero. Em razão do sucesso da operação, escreveram, em 1960, o livro Secret Surrender, publicado no Brasil com o título Rendição Secreta

Noutro caso, em 1988, falei na Suprema Corte de Israel, em defesa de uma criança, Bruna Vasconcellos, que fora raptada em 1986 em Curitiba,

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aos quatro meses de idade, pela babá, ligada a uma quadrilha internacional, e vendida para um casal, os Tourdjmane, ou Turgeman, de Israel. Em Jerusalém atuei como advogado da família, gente simples, a pedido da Assembleia Legislativa do Paraná. Levei para aquela Corte uma mensagem do presidente da República, Sarney, na época, para me habilitar junto à mesma. Com procuração da família, apresentei-a ao secretário e o problema que se criou foi em torno da língua, pois um tradutor para o hebraico precisaria ser agendado com dois dias de antecedência: a língua oficial na Corte é o hebraico, vedado qualquer outro idioma, inclusive o inglês. Pedi para falar com o presidente da Corte, que encontrou uma solução, indicando para a função de intérprete um advogado da televisão inglesa que estava lá – porque o caso repercutiu no mundo inteiro e os ingleses haviam feito um elaborado documentário –, tendo, até mesmo, custeado a viagem da mãe biológica da Bruna a Israel. Houve um momento em que a causa nos pareceu perdida diante de um empolgante discurso de um dos advogados da família que adotara a Bruna em Israel, sustentando que se ela retornasse ao Brasil correria o risco de se tornar uma criança malnutrida, vivendo em uma favela, sendo que em Israel ela estava crescendo com toda a assistência, frequentaria as melhores escolas, etc. Havia sido inclusive pré-alfabetizada em hebraico e a mãe biológica não entenderia nem mesmo quando ela pedisse um copo de água no voo de regresso ao Brasil.

O advogado da televisão inglesa era mais técnico, prático, e ficou desnorteado com essa linha de argumentação. Foi quando pedi a palavra, entendendo que minha cliente estava em risco. Reconheci que a criança estava sendo muito bem-tratada em Israel e que provavelmente teria um futuro assegurado naquele país, o que, no Brasil, talvez fosse incerto. E contei, então, a história de um menino judeu que, logo depois da criação do Estado de Israel,

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foi levado aos Estados Unidos pelo bem-aquinhoado avô, lá residente, que não concordava com a educação que o pai estaria dando ao seu neto. O pai, que ficara em Israel, recorrera àquela mesma Corte solicitando o direito de criar o filho em seu país, apesar de, nos Estados Unidos, o menino ser herdeiro de uma fortuna: “Vossas Excelências, retruquei, determinaram então a volta do menino, e numa situação muito difícil, pois Israel estava isolado, cercado de inimigos, tendo como único aliado internacional expressivo justamente os Estados Unidos”. Disse mais: “um país que em tais circunstância determina a volta da criança para Israel não poderia negar a de Bruna para o Brasil”. Registrei ainda que anos mais tarde, em 1967, na Guerra dos Seis Dias, quando a Força Aérea egípcia, apoiada pelos demais países árabes, ameaçava destruir Israel, alvitrou-se, como ousada estratégia de defesa, um ataque preventivo e arrasador contra as bases inimigas. Para isso, os aviadores de Israel precisaram voar baixo, a seis metros de altitude sobre o Mediterrâneo, para evitar os radares, numa empreitada arriscadíssima. Lograram êxito, destruindo a poderosa aviação egípcia ainda em terra. No comando da tropa estava Shumacker, a criança resgatada do solo americano. Corte qualificada, como jamais vira, recruta seus ministros dentro deste critério, na ocorrência de vagas: quem é o melhor do mundo nessa matéria jurídica? Às vezes é um ministro aposentado da Corte alemã, francesa, russa ou americana ou mesmo um grande jurista de fama internacional, conquanto judeu. Em minha defesa, ao sair da Corte, levei a impressão de que falara perante juízes sábios, dentre todos os que até então conhecera.

Ao repatriarem Bruna, os juízes da Suprema Corte de Israel repetiram o gesto de Salomão, na Antiguidade. Das centenas de crianças raptadas até então, foi ela a primeira a ser devolvida ao Brasil, sob a égide de um sentimento milenar de Justiça

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Outro caso, também em Israel, foi a libertação de Lâmia Maruf, ali condenada à pena de prisão perpétua. Essa jovem brasileira apaixonou-se por Tawfic Abdallah, um primo palestino em visita ao Brasil. Casaram-se, passando a morar em Jerusalém. Sem habilitação, ele lhe pediu para alugar um carro de que se serviu, em companhia de outrem, para dar carona a dois soldados israelenses, matando-os. Em 1986, dois anos depois do assassinato (um dos soldados chamava-se David Manos) o marido e o amigo foram presos e condenados à morte e Lâmia, à prisão perpétua por participação criminosa.

Visitei-a na prisão de Hamla, no deserto. Apareceu lívida, com os cabelos extremamente longos, quase arrastando-se no chão. A uma pergunta, respondeu que as presas judias se recusavam a cortá-lo. “Nem sequer me tocam”, acrescentou. A sua condenação era já definitiva, não me restando vez processual para defendê-la, como me pedia o Senado, por meio de seu presidente, o então senador Mauro Benevides.

De volta ao Brasil, dei início a uma gestão consular, convencendo o embaixador de Israel que o presidente da República, na época Fernando Henrique, jamais visitaria aquele país, enquanto ali estivesse presa, em prisão perpétua, uma brasileira, a primeira em toda nossa história.

Interessado na visita presidencial já marcada e, por isso, sistematicamente adiada, o governo de Israel, por meio das gestões de seu embaixador aqui, terminou por soltá-la. Recebi-a em Brasília em seu retorno ao país. Depois de onze anos de prisão e em razão de um acordo entre Binyamin Natanyahu e o líder palestino, Yasser Arafat, ela foi posta em liberdade, vivendo com a filha em São Paulo, onde moravam os pais.

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Pela singularidade de Londrina, cosmopolita, e por pertencer aos quadros da Inter-American Bar Association (Associação Interamericana de Advogados), diversos outros casos no Exterior tive de patrocinar, como no México e Estados Unidos, o que me ampliou a visão de senador-constituinte e procurador-geral da Justiça Militar.

Memória MPM – E o Sindicato dos Bancários? O senhor chegou a ser detido em 1964, não é?

Francisco Leite Chaves – Quando, vindo do Rio, cheguei a Londrina, como advogado do BB [Banco do Brasil], fui convidado para assumir a presidência do Sindicato dos Bancários, sob o argumento de que funcionários de outros estabelecimentos eram sempre demitidos quando aceitavam o encargo. Os do BB eram a exceção, o que me levou a aceitá-la.

Em razão disso veio a minha prisão em 1964, juntamente com prefeitos, deputados, professores e diversos profissionais. Fiquei no quartel por 15 dias, sendo solto pouco depois, sem inquérito e sem que me dissessem o motivo da prisão.

Memória MPM – Como foi a prisão?

Francisco Leite Chaves – Pois é, depois de algum tempo preso eu pedi para saber, afinal, o que havia contra mim. Qual era a denúncia? “Não existe nada contra o senhor, a não ser aquele discurso no aniversário do irmão do ministro Amaury Silva, no quartel, desapontando os oficiais.”.

Dias depois reivindiquei direito a parlatório. “O que é isso?”, indagou o major. “Sendo preso e casado tenho o direito de ficar com minha esposa, uma vez por semana.”. Depois que falou com o coronel, perguntou onde estava

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minha esposa. Disse que no Hotel Braz, em Curitiba. Soltaram-me para voltar em três dias. Findo o prazo, telefonei, para acerto da hora do retorno. Disseram-me para ir embora, pois o quartel já não tinha condições de manter a prisão porque o governador não estava pagando a “boia”.

Fui embora, mas na minha ausência vasculharam o Sindicato. Não sofri constrangimento maior pelo fato de os cheques emitidos trazerem no verso sua finalidade: “Cr$ 2,50, destinado à compra de uma vassoura para o banheiro do Sindicato” e, assim, em todos, sucessivamente.

Memória MPM – O senhor se tornou empreendedor mais tarde, não é?

Francisco Leite Chaves – Sim. O primeiro shopping center do país foi inaugurado em São Paulo, em 1966 – o Iguatemi. O segundo, por mim, em Londrina, em 1973, denominando-se Com-Tour Londrina Shopping Center. Foi um sucesso, por ser modalidade comercial até então desconhecida, no Paraná e no Brasil. Foi, também, o primeiro, na America Latina, a ter registro no Conselho Internacional de Shopping Centers (ICSC), nos Estados Unidos, onde apareceram e foram regulamentados.

Memória MPM – Como é que o senhor entrou na política e como surgiu a candidatura ao Senado?

Francisco Leite Chaves – O primeiro motivo foi aquela prisão, que me fez conhecido, marcando-me como opositor ao regime. O MDB, por sua vez, não tinha candidato ao Senado, carecendo de alguém que desse sentido e organicidade à campanha. Os líderes mais visíveis do partido, que não passavam de dois, tinham possibilidade de se elegerem deputados federais, não havendo necessidade de irem para o sacrifício, que sobrou para mim.

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Organizei a campanha de sorte a visitar todos os municípios, começando pelas estradas de terra. Quando as chuvas chegassem, entraria no asfalto e foi o que ocorreu, dando-me a possibilidade de visitar o Estado, na totalidade.

Ao tempo, a Arena, partido do governo, detinha a maioria esmagadora dos cargos eletivos no Paraná: 95% dos prefeitos e 90% dos vereadores, além do governador, por ele nomeado, e de todos os cargos do Executivo. O MDB era uma ilusão, uma oposição consentida. Sendo profissional liberal, poderia correr o risco, argumentavam. Todos me aceitaram, homologando-me na Convenção. No início, resisti à ideia, aceitando-a, depois, para mostrar na campanha o desastre da continuidade sem-fim de um regime ditatorial; a situação miserável dos boias-frias, mortos nos caminhões paus de arara, às vezes transfixados pelos seus próprios instrumentos de trabalho. A exploração sem-fim do consumidor, que às vezes se submetia ao logro de comprar o mesmo produto, com menor volume e mesmo rótulo, sem fiscalização do governo e, menos ainda, da Defesa ao Consumidor. Na TV cheguei a mostrar duas latas de azeite, iguais em tudo, menos no tamanho, pelo mesmo preço. A repercussão foi enorme.

Dessas discussões e sugestões populares foi que surgiu o meu primeiro projeto no Senado, protegendo de impenhorabilidade a casa própria (Projeto-Lei nº 41/75, publicado no DCN em 04.10.75, que deu ensejo à Lei 8.009/1990).

Falava, às vezes, ao longo das estradas e até mesmo dentro dos cafezais; bastava que houvesse gente.

Apesar das entrevistas, elas nunca eram publicadas, até que chegou um convite de uma TV em Curitiba para uma entrevista no programa Grandes

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Encontros. Foi um logro. Queriam que eu entrasse no programa com um papagaio no ombro pois não admitiam um candidato sem símbolos, dizendo: “O Janio tinha a vassoura; nos Estados Unidos, o Partido Democrata tinha o burro, o Republicano, o elefante...”. O estado-maior do partido opositor tinha preparado o ambiente para mostrar-me como um candidato ridículo. “O ‘homem do Papagaio’: dá cá o pé, meu louro.”.

Recusei-me a entrar no programa. Como já estava no ar, concordaram em retirar o papagaio, vindo a primeira pergunta: “O senhor já foi vereador, prefeito, deputado? Nem governador?” À minha negativa à provocação: “É muito ousado, não tendo sido nada, quer ser senador pelo Paraná?”, ao que respondi: “O que diz a Constituição? Para ser senador basta que o candidato seja brasileiro, maior de 35 anos, eleitor... aqui estão os meus documentos.”. Mostrei-os. Outras se seguiram nesse diapasão.

Aquele instante, que poderia ter sido a morte de minha candidatura, tornou-se o seu berço, eis que o sul do Estado, onde eu não era ainda conhecido, consolidou-se como base de entusiasmante apoio. Ao sair do programa, esperava-me uma multidão, e foi onde terminei por fazer o meu primeiro comício em Curitiba. A maquinação adversa terminou por consolidar a minha eleição.

Memória MPM – Sim, entrar com o papagaio ainda...

Francisco Leite Chaves – Papagaio! Onde anda o “papagaio”? [risos]. Bem, removeram o papagaio! Foi condição para a entrevista de cuja maldade ali me apercebera.

Memória MPM – O senhor assumiu em 1975?

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Francisco Leite Chaves – Sim, 1975. O meu primeiro projeto foi o de nº 41/75, que torna impenhorável a casa própria, convertido, anos depois, na Lei 8.009 por força de medida provisória. Explica-se. O Sarney, quando senador, era entusiasta do projeto, apoiando-o nas discussões. Em uma das visitas que lhe fiz, como presidente da República, perguntou-me: “Chaves, como vai o nosso projeto do ‘Home-stead’, ou seja, o ‘Bem de Família’?”. “Não passa, Sarney, os banqueiros não deixam, pois a garantia mais efetiva para eles é uma residência familiar sob ameaça de penhora. Por que você não edita uma medida provisória inspirada no projeto?”, retruquei, ao que ele indagou se era matéria urgente e relevante para ensejar a sua aprovação. Disse que, além de ser, teríamos o apoio do MDB e da parcela já convencida pelas sucessivas discussões do meu projeto.

Encaminhou a medida ao Congresso, que somente veio a ser aprovada depois que saiu da presidência, no governo do Collor, pela seguinte razão: em discórdia com ele, os banqueiros de São Paulo deixaram de fazer lobby, o que ensejou a aprovação da MP, sancionando-a o senador Nelson Carneiro, então presidente do Congresso, em 1990, com o nº 8009. Enviei para o Sarney, já no Maranhão, o Diário Oficial, com a publicação.

Memória MPM – Pode contar para a gente o episódio Herzog?

Francisco Leite Chaves – Nós estávamos em Plenário quando chegou a notícia da morte do Herzog, enforcado, num suposto ato de suicídio. Mas havia a denúncia de que ele fora torturado e, como gritara muito, teriam posto uma bola de pingue-pongue na sua boca, com a qual teria se engasgado e perecido, seguindo-se a simulação do suicídio. Pedi um aparte em meio aos debates. O aparte foi dado nesses termos: “A nosso ver, e dos homens

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de responsabilidade deste país, há uma coisa extremamente grave, além do desrespeito à vida e à liberdade: é a colocação do Exército Nacional nisto. É ele uma organização muito séria; tem que merecer o respeito do país, porque não pertence – como já dissemos aqui – nem à ARENA, nem ao governo, nem ao MDB, mas à pátria; ele tem que ser intocável. Não se pode colocar uma corporação de desígnios tão elevados, num movimento de repressão. Quando Hitler praticava seus ignominiosos crimes não usava o Exército; para tanto criou a “SS”, vestindo-a de negro, para não comprometer as suas corporações...”.

Alguém do Serviço Secreto, presente à sessão, levou-o ao general Sylvio Frota, então ministro do Exército, potencial candidato à sucessão do Geisel e com ele dissidente, deste exigindo a minha cassação. Por interferência de Petrônio Portela, líder do governo, e de Franco Montoro, do MDB, com a aquiescência de Geisel, conduzida por Armando Falcão, resolveu-se o caso mediante uma declaração minha em Plenário, que foi tomada como retratação.

O surpreendente é que, em razão da censura, nenhum jornal do país publicou o aparte, enquanto o fizeram com destaque os jornais americanos e alguns da Europa. A mídia do país desconhecia o affaire da cassação, enquanto que aqueles estavam sobre ele tão informados que foram os primeiros a me visitar, no gabinete. Buscavam informação quando, eu mesmo, de nada tinha conhecimento, ou seja, da articulação cassatória de meu mandato.

A linha dura – SNI e Sylvio Frota – queria o fechamento do Congresso. O meu caso não passava de um pretexto. Não fora a intervenção parlamentar das lideranças e, até certo ponto, a minha experiência nos embates forenses, o resultado poderia ser bem outro, como tantas vezes acontecido.

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O exercício do mandato, naqueles tempos, não era tarefa simples. Qualquer coisa dita e mal-interpretada poderia resultar em cassação. Mesmo com a votação excepcional que eu tivera, fazer política junto às bases eleitorais poderia sugerir liderança, tendo como consequência a cassação do mandado e interdição de direitos. Ficávamos meio isolados em Brasília. Os dezesseis senadores da bancada do MDB, por isso, se uniram, atuando harmonicamente. A mídia, censurada, só nos noticiava de fatos eleitoralmente negativos ou ultrajantes. Até mesmo sobre projetos de lei caía o silêncio, como naquele meu, da casa própria. E isto apesar de seu alcance e relevância sociais.

Foi com essa cautela inicial, com tantas cassações, que chegamos aos nossos objetivos de luta, que eram a revogação do Decreto 477 que tolhia estudantes; do AI-5, que amordaçava o país, chegando depois às “Diretas Já”, à eleição de Tancredo, à Constituinte, e à Constituição, na qual demos independência e poderes ao Ministério Público, sem o que não teríamos a limpeza do “Mensalão”, da “Lava a Jato”, do surgimento da opinião pública, hoje nas ruas do Brasil.

Memória MPM – Antes do senhor, o Dr. George Tavares assumiu a Procuradoria, entre abril e dezembro de 1985...

Francisco Leite Chaves – Sim, ilustre advogado do Rio de Janeiro...

Memória MPM – Como foi esse convite? O senador Paulo Brossard era o consultor-geral da República em 1985, não é?

Francisco Leite Chaves – Sim. Em fevereiro de 1986 ele foi nomeado ministro da Justiça. O Brossard é que me convidou. Disse que gostaria que eu aceitasse, porque era preciso alguém com independência

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naquela fase de transição. Eles achavam que, na época, o procurador-geral ficava muito sujeito à égide militar e que era preciso criar uma nova realidade, uma nova dinâmica institucional.

Memória MPM – Quais foram as suas realizações como procurador- -geral da Justiça Militar?

Francisco Leite Chaves – Havia uma rotina de condenações, acusações a que dei cumprimento, na medida de minha percepção de Justiça e com absoluto cumprimento dos prazos.

Memória MPM – Em 1986, o senhor organizou o Primeiro Encontro Nacional de Procuradores de Justiça Militar. Como foi? É interessante isso, porque o senhor não era de carreira, mas promoveu um evento que foi marcante para a organização da instituição.

Francisco Leite Chaves – O pessoal era de excelente qualidade, preparado, mas havia grande distanciamento entre o procurador-geral e os membros da instituição, inclusive entre eles mesmos (corpus constat). A Corte Militar é, por sua vez, organização de regras rígidas, e não poderia ser diferente, eis que além do Direito, cuida da hierarquia e disciplina da tropa. O seu exemplo, seja, a sua compostura, impõe-se tanto quanto as decisões que profere. Nestas colocam não apenas a lei militar, mas a experiência de toda uma vida de caserna. E não é por outra razão que ali chegam na ativa e no último grau da carreira. Ao chegarem à Corte, já tinham sido professores, comandantes da oficialidade e da tropa, adidos e observadores militares em outros países. É tanto o respeito que os ministros militares, quando existiam, miravam-se no seu exemplo e, às vezes, não fugiam ao padrão de comportamento e aprumo em suas decisões. Para atuar a esse nível, a Procuradoria da Justiça Militar não

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poderia fugir a esses padrões. Foi por isso que procuramos elevar a grau de excelência dos seus membros, sobretudo dos seus procuradores. Sendo o único Tribunal no país a aplicar, em tempos de guerra, a pena de morte, a Corte não poderia dar-se ao luxo de diferente conduta.

Ao voltar ao Senado, para cumprimento de meu segundo mandato, dei testemunho dessa realidade. Na Constituinte, defendi a Justiça Militar como instante alto de manutenção da ordem e da democracia. Alguns setores constituintes pretendiam eliminá-la na nova Constituição, sob a desculpa de constituir-se, ela, em fonte de privilégio no julgamento da oficialidade. Provei o contrário. Ali, quanto mais alto o posto, mais dura a pena. Os tribunais civis jamais teriam condições de, a contento, exercer tal múnus.

Para avaliar hierarquia e disciplina militares, é preciso vivenciá-las e, por anos, tanto como comandante quanto, sobretudo, como comandado. No front, não se sabe o que é mais difícil: cumprir o soldado a ordem de avançar para a morte ou, o ministro, a ela condená-lo. E tudo in loco, no fragor da luta. Ali, não observam apenas preceitos de julgamento, também modos sociais.

Um caso. Ao voltarem da presidência, de uma solenidade de entrega de espadas aos novos generais, os ministros indagaram-me sobre o Collor, então presidente. Estranharam que não os cumprimentasse, como de costume, limitando-se a um leve e distante aceno de cabeça. Postura imperial, arrogante, foi o que acharam.

Tenho certeza de que nisso ficou a observação, mas não tenho dúvida de que outros setores da ativa tomaram conhecimento do episódio, bem antes do impeachment. Dele não participaram, ao que sei, mas nada fariam para evitá-lo.

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Voltando à Procuradoria. Na solenidade de entrega das Carteiras, vestido com a Beca das Solenidades de Julgamento que me fora presenteada pelo Banco do Brasil, de cujo quadro sou advogado, hoje aposentado, fiz uma pequena saudação sobre as nossas responsabilidades, inclusive sobre o uso da Carteira de Procurador, a única que permite livre acesso a qualquer quartel militar, a qualquer hora, mediante simples apresentação.

Memória MPM – Sua gestão repercutiu muito na imprensa em função da iniciativa no sentido de reabrir o caso Rubens Paiva, não é?

Francisco Leite Chaves – Reabri o caso. Em setembro de 1986, após a afirmação do médico, Amílcar Lobo, de que o deputado morrera em função de torturas sofridas nas dependências do DOI-Codi, tomamos conhecimento de outra revelação esclarecedora.

Enquanto os militares negavam e repeliam a versão do médico, divulgavam a seguinte: “que no momento em que o Rubens Paiva estava sendo transferido de uma instalação para outra, a viatura havia sido abordada por um Volkswagen com três ocupantes armados que teriam rendido a escolta e com ele fugido, sem localização até o momento”.

Uma testemunha compareceu à Procuradoria do Rio, dizendo que o corpo de Rubens Paiva fora sepultado em uma praia, no Recreio dos Bandeirantes, depois de transportado em um camburão a partir de Jacarepaguá. O enterro ter-se-ia dado em 1970, em área desabitada daquela praia.

Bem, com esses elementos, eu poderia reabrir o inquérito. Afinal, para os militares, o Rubens teria desaparecido enquanto estava sob

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custódia de agentes do Poder Público e como os supostos sequestradores eram desconhecidos, o crime não se enquadraria na Lei de Anistia. O procurador do Rio temia reabrir o inquérito, com receio de represálias, tendo a Procuradoria-Geral de o fazer, como de fato aconteceu.

O Brizola, então governador do Rio, cedeu as máquinas para a escavação. Após tentativas, parte dos ossos foi encontrada e depositada no Instituto de Medicina Legal. Por longo e desnecessário tempo ali ficaram sem que a perícia fosse realizada.

Já estava de volta ao Senado, quando circulou a notícia de que os ossos eram de gaivota, causando choque aos que os viram depois de exumados, constatando a sua origem humana.

Antes da abertura do inquérito estive com Sarney, para lhe dar conhecimento do fato, embora, por dever de ofício, não necessitasse de autorização. Mas, por envolver explosiva questão política e por integrar o governo, em cargo de confiança, era recomendável essa providência. Também por lealdade, pertencendo ambos ao mesmo partido.

Na mesma ocasião dei-lhe conhecimento do processo que estava requisitando contra o Lula que, em flamejantes entrevistas lhe dirigira injúrias, as mais graves, incluindo os familiares. Disse-lhe que, pelo alcance e gravidade, o fato ultrapassara os limites da pessoa para alcançar a figura do presidente, deslocando-se a apuração criminal para nossa esfera, qual seja, da Procuradoria. Sarney pediu que deixasse de lado o caso Lula, mas que poderia prosseguir com o do Rubens Paiva. Fiquei surpreso. Jamais vira gesto de tamanha tolerância e leniência.

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Memória MPM – No dia 18 de março de 1987, quando o senhor voltou ao Senado, os jornais repercutiram que o senhor responsabilizou cinco militares pela tortura, morte e sepultamento ilegal de Paiva. Na oportunidade, o senhor também criticou o comandante do Leste por não responder ao inquérito reaberto.

Francisco Leite Chaves – Não chegou a haver denúncia, pelo que me recordo. Eu não acompanhei o desdobramento do inquérito.

Memória MPM – Pouco depois, o general Sylvio Frota representou contra o senhor.

Francisco Leite Chaves – Foi uma queixa no Supremo Tribunal Federal em maio de 1987. Ele negou responsabilidade no acobertamento da morte do Paiva durante seu comando no Leste, no Rio de Janeiro. O Supremo arquivou a queixa por falta de provas e fundamentos, sendo relator do caso o ministro Aldir Passarinho.

A birra do Frota foi outra e anterior, tendo relação com aquele aparte de 1975 que dei no Plenário do Senado, denunciando a morte do Herzog, em quartéis de São Paulo, por tortura.

Memória MPM – O senhor conseguiu contar com colaboração da classe durante o período em que atuou como procurador-geral ou encontrou resistências?

Francisco Leite Chaves – Nenhuma resistência. Tampouco de parte dos ministros, com os quais, a convite, sempre lanchava no intervalo das sessões. Não tive convivência mais próxima com eles, mas a relação era cordial. Inclusive, morávamos todos no mesmo prédio funcional de apartamentos. Trabalhávamos no mesmo prédio, pois a Procuradoria-Geral ocupava um andar na sede do Tribunal Militar. A independência, na prática,

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era grande. O clima ficou um pouco mais tenso depois que reabri o caso Rubens Paiva. Aí começamos a sentir certos sinais para que deixássemos o prédio e tivéssemos nossa própria sede, o que, aliás, foi mesmo uma medida adequada. O caso Rubens Paiva tomou outra conotação, o que não teria acontecido se antes de o requisitar lhes tivesse dado conhecimento como me propunha, mas, por falha, deixou de acontecer.

Memória MPM – O senhor foi substituído pelo Eduardo Pires Gonçalves, irmão do ministro Leônidas Pires Gonçalves, e que era da carreira. O Pires Gonçalves teria assumido com a missão de arquivar o caso?

Francisco Leite Chaves – Bem, o ministro Leônidas tinha muito prestígio com o Sarney, até porque ele fora agente-chave para a concretização da transição e para a garantia da posse do presidente, depois da doença e morte do Tancredo. Eu nada tinha contra o ministro Leônidas, mas não privávamos de nenhuma relação. De fato, me sondou sobre essa possível indicação do irmão para o meu lugar, não havendo entusiasmo de minha parte, sobretudo pelos boatos de que viria para arquivar o caso do Rubens Paiva

Memória MPM – O senhor acha que a sua passagem pela Procuradoria--Geral de Justiça Militar foi importante para ajudar a operar a transição do regime militar para a Nova República?

Francisco Leite Chaves – Sem dúvida. O Sarney tinha uma boa perspectiva do que precisava ser feito para que o país tivesse uma transição tranquila para a vida democrática, evitando exacerbar conflitos. E olha que ele foi bastante atacado e questionado, como no caso Lula, de que já falei.

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Memória MPM – Há um discurso seu no Senado, de 1981, que repercute na imprensa, no qual o senhor diz mais ou menos que seria necessário que a esquerda mais radical se acalmasse, não fosse tão afoita, porque a precipitação poderia gerar retrocesso e reação da extrema direita militar. Isso coincidia com o episódio do Riocentro. O senhor se recorda desse discurso?

Francisco Leite Chaves – Do discurso em si, não, mas da ideia, sim. A ameaça de retrocesso era permanente. Os militares saíram com a certeza de voltar. Então, determinados excessos e precipitações poderiam ser usados contra o processo de abertura e de afirmação da democracia. Era difícil, para todos, sabermos a justa medida do que podia ou não ser feito e tolerado. Contribuía para a construção desse caminho uma boa convivência entre os senadores. Não havia hostilidade. Sarney, Jarbas Passarinho, Petrônio Portela, conversávamos, havendo entendimento. Os senadores se preocupavam em não exacerbar as hostilidades que se verificavam na Câmara. O Senado desempenhou um papel fundamental na transição com a moderação que foi construída a partir dessa interlocução e dessa cordialidade.

Em 1978, realizou-se em Curitiba aquela importante Conferência Nacional dos Advogados, organizada pela OAB. Lá estiveram grandes nomes do mundo jurídico brasileiro como Pontes de Miranda – com quem eu conversei longamente –, o Seabra Fagundes. O Raymundo Faoro presidia o Congresso. O Petrônio foi incumbido pelo Geisel de conversar com os juristas. A iniciativa pessoal do Geisel, de fazer a abertura, foi muito importante. E acho que o caso do Herzog foi um divisor de águas, porque ali o Geisel se convenceu de que não era mais possível manter o arbítrio. As coisas teriam degringolado se tivéssemos, no comando, militares sem capacidade de contenção, como o Sylvio Frota. O próprio Castelo Branco, estou convencido, não desejava a montagem daquela

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engrenagem toda na qual se transformou o regime. O Geisel comissionou o Figueiredo para fazer a transição. Incumbiu-o de não deixar o processo de abertura e de transferência do poder aos civis naufragar. Escolheu a dedo. O Figueiredo cumpriu essa missão. Foi fiel ao Geisel. Mas isso tudo a gente pode dizer também olhando para o passado. No calor dos acontecimentos, não se tinha certeza. Temia-se que o Geisel não tivesse força, que uma nova onda de repressão viesse, como ocorreu na Argentina. Foi uma conquista chegar à Constituinte.

Memória MPM – Como foi a experiência da Constituinte?

Francisco Leite Chaves – Foi preocupante. Sem anteprojeto, partimos de uma discussão, como se fizéssemos um prédio sem andaimes. A participação popular foi enorme, todos querendo colocar na Constituição a solução de seus problemas. A um tempo, chegamos a desprezar os rigores dos princípios constitucionais para que a Carta fosse promulgada. A pressão das bancadas sindicais era por tal modo densa que, se uma matéria, mesmo de Direito Comum, não fosse acolhida, os trabalhos não andavam. Certa vez, às quatro horas da manhã, aprovada uma emenda, um constituinte levantou uma questão de ordem, indagando seu significando e alcance. Ulisses Guimarães, diuturnamente na presidência, a ela respondeu: “O senhor vá ao Supremo, eles que digam o que significa.”.

Ulisses, naquele afinco, parecia antever a morte, sendo a Constituição o seu único e essencial objetivo. De Fernando Pessoa, citava sempre o verso: “Navegar é preciso, viver não é preciso.”. Morreu no mar.

Tantos e tão vários foram os direitos criados, que pretendíamos transformar o Supremo em Corte Constitucional, ao que se opuseram, apesar de renovadas reuniões. Já próximo à finalização dos trabalhos percebemos, nós da

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Subcomissão do Judiciário, que muitos dos novos direitos criados, sobretudo os difusos, ficaram sem cobertura.

Foi aí que atribuímos ao Ministério Público a responsabilidade de sua defesa, dando-lhe independência e poderes como jamais teve no país. Sem isso, não teríamos nunca o “Mensalão” e, menos ainda, o “Lava a Jato”, renovando e fortalecendo a moralidade e consciência públicas, levando as multidões às ruas, o que está acontecendo, neste instante, em todo o país

Percebendo a heterogeneidade e, às vezes, inconstitucionalidade das normas aprovadas, introduzimos o poder de emendas, que têm salvado e aprimorado a Constituição. Sem isso, ela seguramente já não vigeria.

O importante foi pacificar a nação. Todos tinham de ser ouvidos e foram ouvidos Num congresso da OAB, aqui em Brasília, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, fez largados elogios à Constituinte, dizendo que ela merecia uma homenagem, o que “fazia na pessoa do senador Leite Chaves, aqui presente”; me surpreendeu por dois motivos: um, porque tendo participado da sabatina da maioria dos ministros no Senado, era ele um dos poucos que eu não conhecia, embora admirador de suas luzes; e dois, porque ainda estávamos no período de grandes críticas e ataques à Constituição. Só anos depois vim a agradecer sua deferência numa homenagem prestada ao senador Paulo Brossard, ainda vivo, mas, por doença, ausente.

A solenidade foi na IDP, da qual é professor o ministro. Saí com a impressão de que, entre todas, foi a mais organizada e brilhante a que já assistira; sobretudo por ter sido Brossard o conspícuo orador do século, tribuno que, ouvido, convencia e visto, deslumbrava. No período ditatorial três dos seus discursos, proferidos no Senado, em três sessões consecutivas, bastaram para

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convencer a nação da inviabilidade do regime e, a este, de que já lhe faltavam forças para a indefinida continuidade.

Memória MPM – Como o senhor recebeu, como senador, o capítulo sobre o Ministério Público? Essa foi uma das grandes novidades do texto constitucional, não foi?

Francisco Leite Chaves – Não tive surpresa, pois fui um dos redatores do Capítulo IV que o institui. Com Plínio de Arruda Sampaio, que foi o presidente da Subcomissão do Judiciário, desenvolvi grande esforço para que a instituição gozasse dos poderes e independência de que hoje desfruta.

Nisso contamos com a colaboração de dois promotores aposentados de São Paulo, que foram colegas do Plínio, e acabaram por dar equilíbrio e consistência jurídica àquele capítulo, hoje consubstanciado nos Art. 127 a 130-A, da Constituição, ao que me lembro.

Memória MPM – O capítulo do Ministério Público encontrou resistências na Assembleia Nacional Constituinte. Existiam setores organizados contra aspectos do capítulo? O senhor se recorda disso? Quais foram os principais obstáculos que o capítulo precisou vencer para ser aprovado?

Francisco Leite Chaves – Pois é, as comissões funcionavam independentemente, cada uma cuidando do seu mister. Como a do Judiciário era muito técnica, os seus trabalhos tinham pouca ressonância pública.

Alguma resistência dos flancos mais conservadores, numa antevisão do que está acontecendo hoje com o “Lava a Jato”. Jamais se poderia pensar na prisão de grandes empresários neste país. Não fosse essa independência concedida ao MP, isso jamais ocorreria. Somos um país flagelado pela

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corrupção desde a época das caravelas, havendo hoje a esperança de conserto, não só por isso, como sobretudo pelo levantar-se das multidões. Seja, a formação de opinião pública consciente que, a esse nível, governa a sociedade e o mundo.

Memória MPM – O Brossard foi ministro da Justiça entre fevereiro de 1986 e janeiro de 1989, quando então foi nomeado para o Supremo. Como foi a relação com ele durante a Constituinte?

Francisco Leite Chaves – A nomeação do Brossard para o Ministério foi uma sugestão minha ao Sarney, que se queixava da dificuldade de fazer as coisas andarem naquele momento no Senado. O Brossard tinha alta respeitabilidade nacional e dentro do partido. Tinha prestígio no Senado, tanto entre emedebistas e antigos oponentes do regime militar, quanto entre liberais. A origem política do Sarney estava na antiga UDN, que fazia oposição ao governo João Goulart, e em 1970 fora eleito senador do Maranhão pela Arena. Mas ele sempre cultivara o diálogo. O Sarney gostou da ideia e telefonou naquele momento mesmo para o Brossard, na minha frente. Passei-lhe o telefone. O Brossard não tinha conseguido se reeleger em 1982 e nesse momento ocupava a Consultoria-Geral da República. Ele disse que estaria em Brasília na seguinte quinta-feira para uma sustentação no Supremo e que iria conversar então pessoalmente com o Sarney. E foi, aceitando o convite.

Memória MPM – E tinha partido do Brossard a sua indicação para a Procuradoria-Geral de Justiça Militar, não é?

Francisco Leite Chaves – Sim, o Brossard, embora um liberal, não era de modo algum um reacionário. Ele estava preocupado em consolidar a transição para a democracia. E uma peça nesse processo era a contenção dos

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militares, para o que a Justiça Militar era estratégica. Do mesmo modo, como mencionei, ele entendia que a jurisdição militar deveria continuar existindo. Um pensamento também partilhado pelo Sarney. Então, eles acharam que um advogado na Procuradoria-Geral seria importante, porque imprimiria independência e havia, na época, a imagem de que a Justiça Militar jamais condenaria um reacionário identificado com o regime, haja vista o que acontecera com o caso do Herzog em 1975 e com o do Riocentro, em 1981, apenas para ficar nesses dois exemplos. Não que o Tribunal também não tivesse seus votos em discordância, ou não tivesse contribuído para aliviar a mão em alguns momentos, mas a imagem geral era essa. Eles tampouco se incomodaram com aquela história da minha prisão em 1964, isto é, não acharam que isto empanaria a minha biografia e o meu desempenho justamente na Procuradoria-Geral Militar, pois, afinal, a prisão não tinha sido por questões ideológicas, mas uma represália pela defesa que eu então fizera dos interesses trabalhistas dos bancários, em Londrina, no Paraná. Acabei aceitando a missão, muito embora do ponto de vista pessoal não houvesse vantagem. Pelo contrário, ganharia mais se tivesse me dedicado exclusivamente ao escritório.

Memória MPM – O senhor chegou a pegar algum caso de Lei de Segurança Nacional?

Francisco Leite Chaves – Poucos, se bem me lembro.

Memória MPM – O senhor chegou a abrir algum inquérito ou denunciar alguém pela Lei de Segurança Nacional?

Francisco Leite Chaves – Isso não. Já passara o tempo desses casos.

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Memória MPM – Voltando à Constituinte e ao presidente Sarney, ele podia ter interferido de forma mais decisiva no processo, mas não o fez, correto?

Francisco Leite Chaves – Sim, ele respeitou o Legislativo, num momento em que isso foi muito importante. Ele vinha do Legislativo. Mesmo sendo oriundo da Arena, soube entender a relevância do contexto. Muita gente o critica, mas o fato é que ele foi fundamental para a transição da ditadura para a democracia. O Sarney era incrivelmente tolerante, inclusive quanto aos ataques que recebia, como mencionei. O Lula foi muito violento contra ele na oportunidade e mesmo assim pediu-me para não o processar.

Memória MPM – Havia uma sucessão de escândalos explodindo na República, sem mencionar o fracasso sucessivo dos planos de contenção da inflação e de estabilização econômica...

Francisco Leite Chaves – Sim, havia de tudo! Tabelamento de preços... Prendia-se boi gordo em São Paulo! Foi uma época de experimentalismo. O país melhorou muito de lá para cá, na economia, na infraestrutura, na democracia. Mas algumas dessas conquistas parecem estar sendo postas à prova no contexto da atual crise. Eu acho que é preciso ter cautela. Não vejo, no momento, clima para impeachment da presidente Dilma Rousseff, como vem sendo exigido pelas manifestações de rua. Ela me parece bem-intencionada, sincera. Um impeachment atrasaria o país, geraria instabilidade institucional. Agora, além da complexa crise política e do desarranjo da economia, há uma grave crise no modelo de gestão, a começar pelo fato de o presidente Lula ter, em época de fartura, espalhado cabos eleitorais sem qualquer tradição, preparo ou qualificação em postos estratégicos da Administração. Há muitos casos que foram provocados por incompetência. Há extensões de projetos que

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não podem ser feitas porque falta quem as execute. Às vezes, nas instituições, não há nem mesmo quem possa receber qualificadamente um visitante. Houve um retrocesso grande em termos de modelos e qualidade de gestão. O nível de quem está administrando, especialmente nos escalões intermediários ou de base, me parece muito precário. Não vai ser fácil recuperar isso. Paralelamente, há questões éticas que são escancaradas aos olhos de todos, mas a tendência é fazer tudo para não se enxergar. A Petrobras pode ter sofrido achaques de esquemas de corrupção, que foram temporários, pontuais. Parece que a coisa veio se agravando nos últimos anos. Mas numa instituição financeira, essa indistinção entre público e privado é sistêmica, como se sabe, porque sempre foi assim. O Banco do Brasil, executor da política financeira de governo, está com cinco diretores presos por corrupção, um deles em prisões da Itália e nas manchetes do mundo, dificultando os investimentos externos, de que tanto carece. E não há uma comissão parlamentar de inquérito para investigar o que se passa. Um problema adicional no quadro atual é a falta de produção de novas lideranças na política. A gente não vê quase nada de novo, que seja consistente, aparecendo. Quem vai gerir o país nos próximos anos? A regra para o sucesso na Administração é que, de parte do candidato haja conhecimento, independência econômica e poder, nesta ordem, o que não acontece.

Mas esse vácuo cívico já era esperado. À queda de qualquer ditadura, seja civil ou militar, segue-se o vazio. Desaparecem os partidos, e as lideranças. As novas, sem cultura, sobretudo política, surgem corrompendo, como acontece, de que são prova os inquéritos e prisões ocorrentes.

Mas a alternativa é a democracia, uma máquina de lavar, que vai batendo e a sujeira, saindo. A constância democrática é que enseja o restabelecimento da normalidade constitucional. A sua imaturidade não

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suportaria agora um impeachment, sem partidos estruturados, sem lideranças, os corruptos presos, ainda não julgados, e as massas nas ruas, ainda sem objetivos para o day after, seja, o depois.

Memória MPM – Senador, muito obrigado pelo seu depoimento.

Francisco Leite Chaves – Eu é que agradeço a lembrança do Ministério Público Militar da União para este registro. Por último, quero registrar a agradável surpresa que me ocorreu no dia da posse. Na Galeria dos Procuradores-Gerais, deparei-me com a foto de João Pessoa, mártir da Revolução de 1930 e meu conterrâneo da Paraíba. Ignorava que ele tivesse ocupado o cargo, anteriormente. Fui o segundo do Estado a exercê-lo.

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COMPOSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR

Subprocuradores-Gerais de Justiça Militar

Mário Sérgio Marques SoaresCarlos Frederico de Oliveira PereiraRoberto CoutinhoEdmar Jorge de AlmeidaPéricles Aurélio Lima de QueirozAlexandre Carlos Umberto ConcesiArilma Cunha da SilvaMarcelo Weitzel Rabello de SouzaJosé Garcia de Freitas JuniorHerminia Celia RaymundoAnete Vasconcelos de BorboremaMaria de Nazaré Guimarães de MoraesGiovanni Rattacaso

Procuradores de Justiça Militar

Cezar Luís Rangel CoutinhoOsmar Machado FernandesSamuel PereiraMaria Ester Henriques TavaresMaria de Lourdes Souza Gouveia SansonAntonio Cerqueira

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HISTÓRIAS DE VIDA

Clauro Roberto de BortolliAntonio Pereira DuarteAntonio Antero dos SantosDimorvan Gonçalves LeiteRicardo de Brito Albuquerque Pontes FreitasRejane Batista de Souza BarbosaHevelize Jourdan Covas PereiraRonaldo Petis FernandesClementino Augusto Ruffeil RodriguesLuciano Moreira GorrilhasClaúdia Márcia Ramalho Moreira LuzAlexandre José de Barros Leal SaraivaAndrea Cristina Marangoni MunizJosé Luiz Pereira GomesUlysses da Silva Costa Filho

Promotores de Justiça Militar

Maria da Graça Oliveira de AlmeidaSelma Pereira de SantanaAilton José da SilvaOtávio Augusto de Castro BravoAdriana SantosAtaliba Chaves de Souza NetoAndré Luiz de Sá SantosJorge Augusto Lima MelgaçoEliane Costa de Azevedo

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COMPOSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR

Ana Cristina da SilvaMarcos José PintoNajla Nassif PalmaJaime de Cassio MirandaJorge Cesar de AssisAdriano Alves MarreirosAntonio Carlos Gomes FacuriSergio de Saldanha da Gama JúniorHelena Mercês Claret da MotaLuís Antonio GrigolettoIrabeni Nunes de OliveiraSandra Mara RegisAna Carolina Scultori Teles LeiroRenato Brasileiro de LimaSoel ArpiniGuilherme da Rocha RamosAlexandre Reis de CarvalhoEdnilson PiresMax Brito RepsoldClaudio MartinsAngela Montenegro TaveiraAdilson José GutierrezJorge Augusto Caetano de FariasAndréa Helena Blumm FerreiraCaroline de Paula Oliveira PiloniGiselle Carvalho Pereira CoelhoCícero Robson Coimbra Neves

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HISTÓRIAS DE VIDA

Mario André da Silva PortoRodrigo Ladeira de OliveiraAnna Beatriz Luz PodcameniNelson Lacava FilhoLuiz Felipe Carvalho SilvaMárcio Pereira da SilvaFernando Hugo Miranda TelesKarollyne Dias Gondim Neo

MEMBROS INATIVOS

Subprocuradores-Gerais de Justiça Militar

Dácio Antonio Gomes de AraujoFlávio Benjamin Correa de AndradeGilson Ribeiro GonçalvesHelio Silva da CostaJaime Pugliesi BrancoJanette Oliveira GuimarãesJoão Ferreira de AraujoJorge Luiz Dodaro José Carlos Couto de CarvalhoLúcia Beatriz Magalhaes de MattosLuiz Antonio Bueno XavierLuiz Sergio Chame

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COMPOSIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR

Marco Antonio Pinto BittarMaria José de Carvalho SalvadorMaria Lúcia WagnerMaria Luiza Monteiro de MeloMarisa Terezinha Cauduro da SilvaMarly Gueiros LeiteMilton Menezes da Costa FilhoNelson Luiz Arruda SenraPaulo Duarte FontesRenato da Cunha RibeiroRubem Gomes FerrazRuiz de Almeida PossinhasRutílio Torres AugustoSolange Augusto FerreiraVera Regina Coêlho Americano Alves de Brito

Procuradores de Justiça Militar

Claudia Rocha LamasDurval Ayrton Moura de AraújoIone de Souza Cruz Ivone Cerqueira de Carvalho Joao Alfredo da SilvaJoao Jayme AraújoMarcelo Melo Barreto de AraújoMaria Marli Crescêncio PereiraMario Elias Miguel

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HISTÓRIAS DE VIDA

Nadir Bispo MarquesPaulo Cesar de Siqueira CastroRenee Solange da Fonseca FrançaTeresa Cristina Leal Baraúna

Promotores de Justiça Militar

Julieta Dutra WeberMarly Amorim MonteiroZuleika Centeno Stone Jardim