Historias de Ensinar

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Histórias de Ensinar Coletânea de histórias contadas por professores

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  • Histriasde Ensinar

    Coletnea de histriascontadas por professores

  • A Raiz Editora uma marcaregistada da Lisboa Editora, S. A.

    Rua Professor Jorge da Silva Horta, 11500-499 LisboaTel.: 21 843 09 10Fax: 21 843 09 11e-mail: [email protected]

    TtuloHistrias de Ensinar

    Criao conceptualOnSpot Marketing

    DesignGranu Azul

    Este livro respeita as regras do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Ana Carvalho

    Ana Mafalda Damio

    Anabela Nunes

    Aurora Fernandes

    Carla Alexandre

    Clementina Marques

    Dlia Botinas

    Ftima Pedro

    Fernanda Costa

    Fernanda Santos

    Gil Santos

    Isabel Sousa

    Joo Alberto Roque

    Joaquim Gil

    Jos Carlos Silva

    Lus Silva

    Manuela Ortigo

    Maria Castro

    Maria de Ftima Esteves

    Maria Gonalves

    Maria Jesus Rocha Costa de Sousa

    Maria Marujo

    Maria Natlia Batista

    Nuno Frazo

    Paula Porto

    Paula Rocha

    Paula Sousa

    Saudade Roxo

    Susana Costa

    Teresa Guerreiro

    Vivncia Magalhes

    A Raiz Editora agradece a todos os professores que partici-param no passatempo Histrias de Ensinar e d os para-bns aos 31 docentes cujas histrias foram eleitas para constar nesta edio:

  • 3Histriasde Ensinar

  • ndice

    I. Trabalho de equipa 6 II. Interaes 8 III. Uma questo de imaginao 10 VI. O str Many Mozinhas 12 V. Rebuados 16 VI. No apagues a minha me 19 VII. Velhos hbitos 21 VIII. Memrias de uma professora 25 IX. Problemas, quem os no tem? 27 X. O valor do Natal 31 XI. Uma lio 35 XII. Improviso 39 XIII. A partida 41 XIV. O sonho da Constana 44 XV. Pais e filhos 46

  • XVI. Mulher prevenida 50 XVII. Persistncia 54 XVIII. Jogo de cintura 58 XIX. Professor solidrio 61 XX. Na aldeia 63 XXI. Carla, professora de Portugus 67 XXII. Tragdia no Douro 69 XXIII. Dona Mariana 71 XXIV. A grandeza da diferena 73 XXV. Lus Pedro (o Grande...) 75 XXVI. Joaquim Calhau 78 XXVII. Canivete suo 80 XXVIII. O segredo 82 XXIX. Plano C 84 XXX. Folhas cadas 86 XXXI. Pastor por castigo 88

  • 6I

    Trabalho de equipaDecorria o longnquo ano de 1988.

    Formada educadora dois anos antes, tinha exercido num jardim de infncia privado quando, numa sexta-feira, fui chamada a concurso: existia a possibilidade de lecionar num jardim de infncia pblico, o que desde sempre fora meu objetivo.

    Aturdida pelo inesperado da situao, tive de escolher entre trs lugares, sem saber o que me esperava, e, no espao-tempo de um fim de semana, despedi-me dos 22 meninos e meninas que comigo tinham partilhado o ltimo ano, entre lgrimas e abraos, como s quem se rodeia de afetos saber.

    Na segunda-feira aterrei literalmente num jardim de infncia de uma freguesia de Ponte de Lima, a cerca de 25 km de casa. Sem carro e sem meios para l chegar Quem me levou partiu logo, dei-xando-me lgrimas a rolar pela cara, quando vi a minha escola: um barraco pr-fabricado, provisrio h mais de 20 anos, com tbuas e janelas partidas, cortinas rotas e ratos a passearem l dentro...

    Entrei e dei com quatro criancinhas de olhos esbugalhados, sen-tadas no cho de madeira como de madeira era tudo o resto a olharem para mim com o mesmo espanto com que eu as olhava. Valeu-me uma auxiliar, um verdadeiro anjo da guarda, que me aju-dou nesta viagem no tempo, um regresso ao passado sem nunca l

  • 7ter estado Resolvi, naquela mesma hora, fazer o que pudesse para que aquele jardim recebesse mais crianas e que pudessem ter mais condies. E cada dia passou a ser uma aventura, comeando logo pela viagem, uma misso impossvel

    Quando a primavera chegou, comemos a sair, procura dos me-ninos e meninas que deveriam andar naquela escola. Onde esta-vam? Porque no vinham? Por carreiros e caminhos de cabras fomos descobrindo, uma a uma, as crianas que faltavam e perguntando porqu. No era difcil perceber: com tal dificuldade de acessos e a falta de uma cantina que lhes desse a refeio, era invivel frequen-tarem a escola.

    Tentmos resolver a questo, eu e o meu anjo da guarda, inven-tando uma cantina naquele barraco! De casa da auxiliar, vieram um fogozinho eltrico e as panelas. De casa dos meninos, vieram as louas necessrias a cada um. Da minha casa, foi uma toalha de plstico, pois quando chovia tnhamos de distribuir bacias pela sala, para apararem as pingas de chuva que caam como na rua.

    E assim comemos a nossa cantina! O quadro de tarefas con-tinha os alimentos a trazer por cada um em cada dia: quem trazia as batatas, as cenouras, a couve, a garrafinha (de cerveja) cheia de azeite. E todos os dias passou a haver sopa quentinha para todos! E os meninos vieram, gostaram e ficaram.

    Da sopa diria, aventurmo-nos a experimentar cozinhar algo mais. As compras eram feitas na venda do lado e um frango chega-va para todos! Cada refeio custava 30$00.

    Terminei o ano letivo nesse jardim com 12 crianas a frequenta-rem regularmente e com uma cantina a funcionar na sede da Junta de Freguesia, onde era servida uma refeio completa. E, apesar das dificuldades, de corao cheio!

    Maria Jesus Rocha Costa de Sousa (Educadora de Infncia)

  • 8II

    Interaes

    A primeira vez que dei aulas foi em 1995, na Escola Bsica Inte-grada de Portagem, concelho de Marvo. A particularidade deste incio de carreira prende-se com o facto de eu ser filha da terra. Nasci neste concelho e dei por mim a desempenhar um papel que me possibilitou conhecer, sob outra perspetiva, muitos dos que cres-ceram comigo ou que me viram crescer.

    A escola est integrada no Parque Natural da Serra de So Ma-mede, num meio rural desenvolvido. De repente, se tivesse de des-crever as minhas turmas, diria que eram meus alunos o filho da co-zinheira da escola, o filho do senhor motorista da Cmara, do pastor da herdade dos V., da dona do restaurante S., o neto do Ti Jaquim, enfim, um concelho de gente na minha sala! E eu, a filha da menina Glria, agora com o ttulo de stora, antes do nome. Aprendi tanto com eles!

    A gramtica era o fastio destes midos, mas a leitura e a explora-o do texto davam-lhes asas para inquirirem sobre outros lugares, outras realidades alm da sua. Um dia, pedi-lhes um texto sobre a ocupao dos tempos livres. Lembro-me de dois deles como se fosse hoje. Um descrevia o levar e o trazer das ovelhas, como um

  • 9momento livre para andar no campo, brincar com os animais sem esquecer que quem conduz responsvel pelo rebanho. O outro ex-plicava os cuidados a ter na criao de ces de raa para venda e de como era engraado ter tantos canitos, brincar com eles, am-los muito e aprender a deix-los ir, porque o dinheiro faz falta.

    Esta responsabilidade prematura e a curiosidade que mostravam nos conceitos desbravados ao longo das temticas transformavam--se em alegria e em entusiasmo a cada regresso a casa. Digo isto, porque viajava com eles no autocarro da Cmara que recolhia e dis-tribua os alunos no concelho, subindo e descendo a serra, entrando em cada lugar, em cada caminho por asfaltar. E ali, de forma indis-creta, mas no intencional, passei a conhec-los muito melhor.

    Por isso, no ano letivo seguinte, quando fui colocada na Escola Se-cundria do Monte de Caparica, tratei de criar um projeto epistolar para pr os meus alentejaninhos em contacto com uma turma de 9. ano, meio tresmalhada e a precisar de um pastor responsvel, como o meu aluno de Portagem. Foi uma combinao feliz, que me possibilitou negociar com estes citadinos toda uma interao fan-tstica, que culminou numa visita escola de Portagem.

    Esse encontro a melhor experincia que guardo da docncia e que me faz acreditar que h uma essncia comum em toda a adoles-cncia e pr-adolescncia. Quase sempre est mascarada de adere-os em exagero. Adereos de todos os gneros. Tir-los, modific-los e at mesmo traz-los ao nvel da conscincia sem causar conflito, ofensa ou sensao de seminudez obra para vrias empreitadas.

    As minhas terminaram. J no dou aulas h algum tempo. Estou desempregada.

    Maria Natlia Batista (Professora de Portugus)

  • 10

    III

    Uma questo de imaginao

    Esta uma pequena histria que nos mostra como uma criana de cinco anos consegue resolver situaes e problemas que, por vezes, aos olhos de um adulto, parecem incontornveis.

    L pelo incio dos anos 90, fui colocada num jardim de infncia do concelho de Almodvar, Baixo Alentejo, numa aldeia chamada Semblana. Aguardava por mim um grupinho de 12 crianas, onde uma menina de cinco anos, chamada Laura, se destacava de todos os outros pelo facto de ter uns cabelos to loiros que pareciam refle-tir o sol.

    A Laura era possuidora de uma imaginao incrvel e mostrou-me que, por vezes, no somos ns que os ensinamos/educamos a eles, mas sim eles a ns.

    Organizado o espao e definidas algumas regras de funcionamento na sala, foi decidido pelo grupo que, no local da chamada casinha das bonecas, apenas poderiam brincar cinco crianas de cada vez.

    A Laura era f acrrima deste espao e no havia um dia em que no fosse para l dar largas sua imaginao. Mas houve um dia em que se descuidou e quando se apercebeu, tarde demais! J no podia ir para a casinha, teria de esperar que algum colega sasse.

  • 11

    No tardou muito que visse a Laura em grande azfama, na casi-nha das bonecas. Chamei-a e disse-lhe que no podia estar ali, pois tnhamos combinado essa regra. A Laura saiu cabisbaixa, mas no demorou mais de dois minutos para l voltar novamente. Mais uma vez a chamei e lhe relembrei a nossa conversa. Voltou a Laura a sair e, mais uma vez, dois minutos depois, l estava ela outra vez. Logo que a chamei, prontamente me disse:

    Saudade, eu agora sou s a tia que veio visitar a famlia!

    Fiquei quase sem palavras, mas achei que no devia abrir, por enquanto, excees e l saiu novamente a Laura da casinha das bo-necas.

    Passaram uns cinco minutos e vi a nossa menina, deitada porta da casinha, toda enroladinha e muito sossegada com um prato ao lado dela. Perguntei-lhe:

    Ento Laura, que ests a fazer a no cho?

    Olha, Saudade, eu agora sou s o co, estou aqui porta e eles vm dar-me comer.

    Apenas sorri e as palavras foram-se Afinal, h sempre uma for-ma de contornar situaes.

    Saudade Roxo (Educadora de Infncia)

  • 12

    IV

    O str ManyMozinhas

    O str Alvarenga era o mais castio dos professores de toda a es-cola. Branquinho e pequenino, corria os corredores em passinhos curtos e frgeis. Varria a alma de todos os alunos com um olhar in-tenso que brotava de uns olhinhos negros e pequeninos, que pare-ciam ter o alcance do olhar de uma guia-real e aos quais poucas coisas escapavam. Poucas, exceo do motivo da sua alcunha (da qual ele tinha muito bem conhecimento), embora pensasse que esta se devia ao programa que passava na televiso, em que um artista plstico realizava trabalhos extraordinrios, com os mais variados e impensados materiais.

    Pois , mas no era por isso. O Many Mozinhas vinha, na rea-lidade, das suas mozinhas sempre suadas, sempre a esfregarem-se uma na outra. E, como se no bastasse, comentava constantemente:

    Vamos l, menino! Mexa as mozinhas! J viu o que fez? Acha que isso est bonito? Valha-me Deus! preciso ter mozinhas.

    Mas o str Many at era fixe e, na verdade, um grande artista, pois todas as coisas que fazia eram verdadeiras obras de arte.

    Um dia, o Necas decidiu que havia de construir um drago em madeira, para oferecer ao pai no dia do seu aniversrio. O pai do

  • 13

    Necas era adepto do Futebol Clube do Porto e, j se v, no haveria prenda mais adequada para um portista do que um dragozinho, todo maneira. O pior era que o trabalho que se estava a elabo-rar tinha como tema o Natal Ora, um drago tem pouco a ver com o Natal, no ? Ainda se fosse uma rena, ou uma vaca, ou at um burrinho, agora um drago era complicado, l isso era!

    No te metas a faz-lo, Necas. Vai dar bronca. Tu j sabes que o Many fica furioso quando a gente no respeita o tema, meu

    Tem de ser, tem de ser repetia o Necas com um ar meio obce-cado. Tenho de dar uma prenda ao meu pai e no tenho dinheiro, meu. O velhote vai adorar e o Many nem vai dar conta, vocs vo ver. Hei de arranjar uma maneira de ele aceitar a coisa

    A verdade, verdadinha, que o Necas tinha umas mos fantsti-cas e era capaz de coisas verdadeiramente excecionais! A verdade, tambm, que o Many tinha at uma secreta predileo por aquele aluno rebelde e contestatrio, mas com umas mozinhas de oiro!

    Aproximava-se a data de entrega dos trabalhos e todo o pessoal estava ansioso por ver como iria o Necas sair de semelhante alha-da O Necas, esse, estava nervoso embora no o demonstrasse, por uma espcie de orgulho moda de macho mafioso. Ainda nin-gum tinha realmente posto a vista em cima do tal drago e corriam j apostas pela sala em como o Necas se tinha acobardado e no haveria drago algum.

    No dia 14 de dezembro, dia de apresentao dos trabalhos e res-petiva avaliao, o Many entrou na sala com ar atarefado, os braos carregados de pastas e papis para a autoavaliao.

    Vamos l, meus amigos. Hoje dia de entrega de trabalhos e avaliao. J sabem como funciona. Venham mostrar os vossos tra-balhos, um a um, para eu poder avaliar.

  • 14

    A turma estava ansiosa. Todos desfilaram perante o Many. Chove-ram prespios, pais natais, bolas e sinos. Quando chegou a vez do Necas, toda a turma ficou em suspenso Quase se acotovelavam para ver a reao do str Many obra do Necas, alm de que todos ansiavam por, finalmente, ver o dito drago.

    O Necas caminhou bamboleante, corredor fora, com a obra co-locada sobre um tabuleiro e coberta com um paninho branco. J na secretria do str, pousou o tabuleiro e respirou fundo duas vezes.

    Ento, Necas? No tenho o dia todo, ou tenho?

    Tem razo, str, aqui vai respirou fundo outra vez e destapou a obra.

    No meio do tabuleiro, erguia-se imponente um fabuloso drago de madeira, magistralmente bem executado e com um barretinho vermelho enfiado na cabea laia de Pai Natal! Foi gargalhada ge-ral! Um Drago Natal!

    O Many parou tudo. Fitou o dragozinho natalcio, fitou o Necas e mais uma ou duas vezes o dragozinho. O Necas encolheu-se, preparado para o sermo do professor, e engasgava j na garganta meia dzia de desculpas esfarrapadas para, ao menos, evitar a ne-gativa.

    Necas, isto est fantstico, homem! uma ideia de gnio! Se calhar at o clube te pagava bem por isto, rapaz! Sim senhor, sim senhor repetia sem tirar os olhos do dragozinho. O bicho est perfeito! Perfeito, rapaz. Olha, vais ter cinco e vou pr o trabalho em exposio no trio da escola at janeiro!

    O Necas nem queria acreditar! Ento e o pai? Fazia anos dia 19!

    Mas, str ainda tentou. O professor j no ouvia nada. Desa-pareceu porta fora, louco de orgulho com a obra do seu pupilo para

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    mostrar aos colegas (na verdade, ele prprio era portista e aquele Drago Natal era realmente uma beleza!).

    Quanto ao pai do Necas, no lhe restou seno esperar at janeiro. Mas o presente maior foi ir escola onde normalmente s era cha-mado devido s asneiras do Necas e ver o seu drago fantstico, exposto no meio do trio!

    Fernanda Costa (Professora de Histria)

  • 16

    V

    Rebuados

    Mais um desafio colossal. Noite quente de setembro. Primeira aula. Entro na sala com o dossi vermelho na mo, na lombada pode ler--se Formao em Lngua Portuguesa para Estrangeiros. Est pinha, cheia de gente grada, emigrantes que procuram na escola uma oportunidade para aprender a falar e a escrever portugus. Se tiverem sucesso, abrir-se-, ainda mais, a porta da integrao, no s porque tero a sua vida mais facilitada, a todos os nveis, neste pas que os acolheu, mas tambm porque o certificado condio exigida para adquirirem a nacionalidade portuguesa. So 35 alunos que vm de terras longnquas. Nas aulas seguintes, havamos de as identificar no Google Maps: das antigas repblicas da extinta Unio Sovitica (Rssia, Ucrnia, Gergia, Usbequisto e Moldvia), da China, da Arglia, da Bulgria e da ndia. A Concha a nica que vem de mais perto: da vizinha Espanha. Falam lnguas exticas, com alfabetos que apresentam letras curiosas e bizarras. Tudo novo para eles e para mim. Esboo um sorriso to amplo e generoso quanto sou capaz. Sinto aquele nervoso miudinho que resulta na sensao de mltiplas borboletas a esvoaarem no estmago.

    Do outro lado, desde o primeiro momento e sempre: caras sorri-

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    dentes e expectantes, olhos vidos de saber. Aps o Boa noite inicial, rapidamente fica a nu que a comunicao vai ser difcil, pois alguns chegaram h cinco meses e outros h vrios anos, uns sabem s palavras soltas, outros conseguem produzir frases simples, mas coerentes. H casos verdadeiramente difceis como a jovem Guo (chinesa) e o sr. Kumar (indiano), cujas lnguas apresentam cdigos muito diferentes do portugus, mesmo a nvel grfico. Que mtodo seguir perante esta heterogeneidade? Socorro-me do meu bom sen-so e rentabilizo a linguagem gestual, o bom domnio do ingls, umas breves e arranhadas incurses pelo francs e, acima de tudo, uma quase milagrosa diviso da turma em grupos, conseguindo com que os mais proficientes auxiliem os que menos sabem.

    esgotante. Recorro a vdeos e imagens da internet, principal-mente para ensinar realidades ou conceitos muito nossos, porm completamente desconhecidos das suas culturas. Tenho de saltitar, constantemente, entre os grupos para esclarecer dvidas, mas um orgulho v-los a trabalhar com enorme motivao, apesar do cansa-o do dia de trabalho e/ou das longas viagens que alguns tm de fa-zer para chegar escola: a Concha com o sr. Kumar e o Andaleb, os vrios membros de uma famlia ucraniana (me, dois filhos e duas noras) que adotara o jovem casal russo Denis e Roza (com z), o casal de blgaros com a chinesa e as duas ucranianas mais empe-nhadas, a Maria e a Olga, sempre disponveis para traduzir quando, esgotadas todas as estratgias, algum no me entende. Por vezes, ainda h trs convidadas muito especiais: crianas, filhas de alu-nas, que vm aula porque as mes no tm com quem as deixar noite. Estando no primeiro ciclo, tambm elas ajudam os outros nas tarefas que eu marco e fazem desenhos muito coloridos, nos quais escrevem o meu nome, copiado das fichas das mes. So marcas de carinho, raios de sol que guardo numa caixa e no corao. Um deles

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    est pendurado na minha rvore de Natal. O sr. Kumar destaca-se pela sua bonomia oriental. Vem de bicicleta para as aulas. Faz quase uma dezena de quilmetros, de noite, esteja calor ou frio. S fal-ta quando chove torrencialmente. A todos conquista com a postura hindu, serena e otimista. Cumprimenta-me com uma longa vnia, de mos erguidas, que sempre faz ao entrar na sala. Traz rebuados Dr. Bayard que tira da mochila azul e distribui por todos, no final da aula. Tendo estudado num colgio ingls, a expresso No pro-blem baila-lhe sempre nos lbios, mesmo quando alguma dificul-dade maior surge.

    Sete meses passaram. Muitas fichas resolvidas. Muitos marcado-res gastos por tantos exerccios corrigidos no quadro branco. Muitas gargalhadas partilhadas. Todos conseguiram concluir com sucesso, mesmo que com a classificao mnima. Noite amena de abril de 2013. ltima aula. Entro na sala com o dossi vermelho numa mo e uma travessa de arroz doce na outra. Unimos as mesas. Estende-se uma toalha. Cada um coloca sobre ela um prato, uma taa ou uma travessa com especialidades do seu pas de origem. Doces e salga-dos. Profuso de formas, cores e odores. O mapa mundi. Um hino tolerncia e multiculturalidade. Um ramo de flores para mim. Abraos apertados de todos. Dos alunos e das famlias. Da profes-sora e da sua famlia. Fim de festa. Desunimos as mesas, mas nunca os coraes. Classificao: 20 valores.

    Maria Gonalves (Professora de Portugus)

  • 19

    VI

    No apagues a minha me

    A manh estava chuvosa, tristonha, e nem o soar da campainha que anunciava o recreio os fez apressarem-se para a sada.

    No. Pelo contrrio. Um a um, foram-se deixando ficar na sala, o dia no convidava a passeios, muito menos a correrias e, em dias como aquele, o recreio era tudo menos atrativo.

    Professora, podemos ir escrever para o quadro?

    Podem, claro. Mas com juzo

    Num pice, o quadro tornou-se num grafiti s, entre jogos do galo, palavras soltas, acrsticos e desenhos, acotovelavam-se uns aos ou-tros para todos conseguirem deixar a sua marca.

    Entre eles estava o Rui, rapaz baixinho, franzino, muito tmido e pouco apreciador da escola. O Rui gostava era de trabalhar com o pai, ajudar a fazer o po e participar na sua distribuio pela vila. Isso que o fazia vibrar! E falava do ofcio como ningum!

    Poucas vezes falava da me mulher marcada pelas maleitas da vida, de sade frgil, muitas vezes adoentada e, nessa semana, hos-pitalizada.

    Na semana anterior, o Rui apressava-se para a sada:

  • 20

    Adeus, professora! Vou fazer o ch para a minha me! Ela gosta! Tu gostas?

    Se gosto! Que bem me sabia agora um

    Despedia-se com um sorriso e corria como uma flecha porta fora.

    A campainha tocou outra vez. Voltaram, sem vontade, para as se-cretrias e eu comecei a apagar energeticamente aquela confuso do quadro. O Rui ergueu o brao e, quase num sussurro, pediu:

    Professora, no apagues a minha me

    Fui atingida por um raio gelado e esforcei-me para conter as l-grimas perante tal splica, olhei desconcertada para a confuso do quadro e no consigui distinguir, no meio dos gatafunhos, a me do Rui.

    Onde est, Rui? Levantou-se e apontou para um desenho, no meio de tantos. Rodeei o desenho com um corao. No, Rui, no apago a tua me

    O resto do dia foi trabalhado volta da me do Rui que, entre n-meros e letras, sorria. L atrs, a Mariana levantou o dedo:

    Professora, podemos tambm passar a me do Rui para o cader-no?

    Sorri. No precisaram de outra resposta.

    Naquele dia tristonho de dezembro, as pginas dos cadernos dos meus alunos emanavam amor E haver lio ou matria mais im-portante?

    Fernanda Santos (Professora de 1. Ciclo)

  • 21

    VII

    Velhos hbitos

    Chegou atrasada, stra!

    Foi assim que os alunos do 8. ano me saudaram entrada da sala. Para eles, no existia o Bom dia. Todos os dias era um suplcio aparecer entrada da sala de aula de Portugus, exceto sexta quando traziam algum nimo, talvez por se avizinhar o fim de se-mana.

    Era a minha primeira aula com a turma. Os alunos estavam agita-dos por conhecerem aquela que seria a diretora de turma. Quase no final do 1. perodo diziam eles. Sim, tinham razo. Apenas fora colocada a 26 de novembro, devido burocracia desesperante do nosso sistema de ensino.

    A stra j deu aulas? perguntavam, curiosos. Sim, j dera. J ensinara Portugus e levara turmas a palco no mbito da discipli-na de Oficina de Teatro. Sabia bem o que era representar e o que eles pretendiam com todas as perguntas que me colocavam. Aquela pea de teatro que tentavam construir j no me era desconhecida.

    Aps a apresentao e de me terem ficado a conhecer melhor, at porque a minha pronncia me precedera, inicimos o estudo da matria, sob um amontoado de protestos, reclamaes e vozes de desnimo. Era tarde, mas nunca tarde demais, pensei eu.

  • 22

    Ao longo da aula, pude ir percebendo como os alunos eram de-sunidos. Troavam uns dos outros, competiam, eram muito pouco generosos e amigos. Algo que teria de mudar rapidamente. Como era possvel trabalhar no seio de uma turma to heterognea e to pouco cooperante?

    Todos os dias de manhzinha, ao chegar escola, tinha no en-velope do livro de ponto uma catrozada de participaes. A turma habituara-se ausncia de controlo por parte do diretor de turma que at a no existira. Chegaram as reunies e, apesar do curto espao de tempo para conhecer os alunos, tive de presidir s mes-mas. Com elas, surgiu uma panplia de reclamaes: os alunos falam incessantemente, no se ouvem, no se sabem compor-tar, so maus uns para os outros, diziam. Apenas os pude ouvir. Eu prpria ainda nem tivera tempo para os conhecer, quanto mais para me aproximar deles. Essa seria a prxima etapa!

    Retorno rotina escolar, aps as frias de Natal. Os alunos excita-dssimos, felizes por se reencontrarem e no por voltarem aos estu-dos. Queriam partilhar todas as novidades. As participaes dispa-raram.

    Final de janeiro. Novo problema. Um aluno foi vtima de bullying por parte dos colegas da mesma turma, por ser mais educado e sen-svel do que os demais. Como o processo disciplinar era a resposta mais evidente para a situao, avancei para a redao de uma carta dirigida turma. E, na aula de Formao Cvica, li:

    Benavente, 5 de fevereiro de 2009

    Meus queridos alunos,

    Apesar de ter chegado recentemente, pude perceber que esta

    turma muito pouco unida, o que me entristeceu, tendo em con-

  • 23

    ta que so jovens muito empenhados e trabalhadores, quando

    assim o desejam. So pequenos adultos que estou a gostar de

    conhecer.

    No imaginam a minha deceo quando recebi uma queixa

    contra alunos desta turma. Sim, mais uma. Mas esta deixou-me

    magoada, porque senti que o trabalho que eu e os outros profes-

    sores temos vindo a desenvolver foi em vo. Nada valeu a pena

    e afinal no so assim to adultos quanto aparentavam ser.

    O Nuno apresentou uma participao de alguns colegas da

    turma. Qual foi o motivo que me deixou to triste? Trata-se de

    bullying! E foi quando percebi que estas aulas no valeram de

    nada e as notas afinal tinham sido fictcias, porque, na realidade,

    no tinham aprendido nada. A participao era essencialmente

    dirigida ao Manuel, mas, pelo que li, no s contra o Manuel.

    Ele era o agressor fsico sim, mas existem os outros: os psicol-

    gicos. Se bem se lembram de quando elaboraram vdeos e Po-

    werPoint sobre este tema, bullying no s agredir fisicamente,

    mas tambm espalhar e instigar comentrios negativos sobre co-

    legas, ridicularizar e ser conivente quando algum o faz, rindo e

    apoiando o agressor.

    Se esta situao permanecer, ir ser iniciado um processo dis-

    ciplinar, no s contra o Manuel, mas tambm contra todos os

    seus cmplices. Fico triste por sentir que apenas se unem por

    motivos aviltantes.

    Aguardo a resposta a esta carta por parte de todos vs.

    A professora, Susana Costa

    Fez-se silncio total, pela primeira vez em muito tempo. Alguns sussurravam, alertando o Manuel para o trmino das brincadeiras que estavam a ir longe demais. No final da aula, todos se reuniram sada.

  • 24

    Na aula seguinte, recebi vrias cartas. Quase todos tinham feito os trabalhos de casa. Algo raro! Gostei de as ler. Deliciei-me com as respostas que recebi, a ingenuidade das palavras eternizadas na-quelas folhas de papel.

    Os alunos conversaram com o Nuno e pediram desculpa. Aos pou-cos, foram-se aproximando. E, no final de maio, durante uma visita de estudo de todas as turmas de 8. ano, aquela turma era visivel-mente inseparvel.

    Na festa de final de ano, saudaram-me com um Chegou atrasa-da, stra!. Porque h hbitos que nunca mudam!

    Susana Costa (Professora de Portugus)

  • 25

    VIII

    Memrias de uma professora

    A sala era pequena, mas muito acolhedora. O grupo de alunos era proporcional ao tamanho da sala. Era um grupo agradvel, bem--disposto e muito conversador.

    O Rafael, apesar de ser o mais novo, era um aluno bem integrado no grupo, mas pouco participativo. De cada vez que eu o interpe-lava, ele ficava nervoso, falava baixo, tropeava nas palavras e eu tinha dificuldade em entender o que ele dizia.

    Quando lhe pedia para ler, ainda antes de ele comear, j se ou-viam risinhos. Durante a leitura, engasgava-se e dizia, vezes sem conta, ai, h

    Era uma risada pegada entre os colegas. E o resultado era que ningum conseguia reter nada do pouco que se percebia porque ele no lia duas palavras seguidas de forma correta. O prprio Rafael tambm se ria, mas era um riso nervoso e acabava por se justificar:

    Tenho dificuldade em ler os eles e os erres.

    Um dia, perguntei aos colegas se eles eram amigos do Rafael. To-dos se sentiram ofendidos com a pergunta e a resposta no deixou dvidas:

  • 26

    Claro, gostamos muito do Rafael.

    estranho respondi, porque eu no me costumo rir dos meus amigos quando eles esto em dificuldades. Sou solidria com eles, e se no puder ajudar fico em silncio e no atrapalho.

    E silncio foi o que se fez na sala, quando eu voltei a pedir ao Ra-fael para ler. Disse-lhe para ler com calma e ele leu, devagar, e no se enganou nem se engasgou e ningum se riu.

    No se voltaram a rir do Rafael, mas ele voltou a ler e a ler cada vez melhor porque afinal no tinha problemas com os eles e os erres e porque os colegas eram mesmo seus amigos.

    No ltimo dia, na hora da despedida, disse-me:

    Obrigado, professora, por me ter ensinado a ler bem, outra vez! Maria de Ftima Esteves (Professora de Portugus)

  • 27

    IX

    Problemas, quem os no tem?

    As faltas, principalmente disciplinares, eram a rotina do Valente. Chegou tarde, como sempre, e a turma estava silenciosamente a fa-zer teste. Ento, o seu dia comeou:

    Qu isso? Foi promessa? Parecem ratinhos amestrados!

    Est a perturbar a turma e a ser incorreto. Tem aqui o teste. D o seu melhor, pois sei que consegue.

    Sabe que no vou escrever nada. Deixe-me sair sem falta, seno vou chatear todos.

    o costume. V l se te calas que ns queremos fazer qualquer coisa. J que tu no queres...

    a ltima vez que peo que se cale. Est a desrespeitar-nos.

    Psss! Respeito. Essa boa! Respeitinho, meninos lindos, e faam o teste, fofinhos!

    Saia, Valente.

    J?! Assim nem d para aquecer! Agora vejo, est preta!

    Rindo esfuziantemente, olhava em redor, esperando companhia. Ningum se riu. Embora longe de serem alunos exemplares, quer

  • 28

    no comportamento, quer nos resultados escolares, era o ltimo teste do 2. perodo e tentavam realmente fazer qualquer coisa.

    Est feia! Est de luto pelo gato? O Valente saiu a sorrir. Tchau! Divirtam-se, idiotas! Adeus, stra. Est mesmo feia. Senti-mentos pelo gato!

    Na aula seguinte, havia visita de estudo e o Valente no foi. Apro-veitei e pedi-lhe para falar comigo.

    Sabe, no creio que a sua atitude prove nada nem o leve a lado nenhum. Est a queimar o seu tempo e a gastar o dinheiro dos seus pais e da sociedade trabalhadora que desconta para, entre outras coisas, pagar os seus estudos. Tem alguma razo para um compor-tamento to disparatado?

    Eu sei que tem razo, mas no consigo mudar. Eu tinha tudo, mas o meu pai perdeu o emprego e agora nem posso ir porcaria de uma visita de estudo!

    Acredita que os seus pais ficam felizes ao verem o filho reagir dessa forma? Ter um comportamento correto e ajudar os pais, na medida do possvel, no seria mais digno e acertado? Eles no me-recem, ao menos, ter um filho ajuizado que lute pelo seu futuro?

    Sim, stra, mas eu no consigo. E agora tenho a namorada nou-tra turma. Quero reprovar para ficar na turma dela.

    Compreendo, mas no aceito. Insultar constantemente professo-res, auxiliares e colegas resolve tudo? As outras pessoas tm culpa dos seus problemas? Ser que no tm tambm problemas?

    Pois, mas eu sou assim e no consigo mudar. Sei que estou erra-do, mas tenho problemas...

    Se reconhece, consegue. s querer.

  • 29

    Eu no estava preparado para isto, porra. Tinha tudo o que que-ria.

    J cansada das respostas se repetirem, no resisti: Na aula do teste disse-me que eu estava feia, perguntou-me se estava de luto... Diz-me que no estava preparado para o que a vida lhe trouxe. Pois, isso crescer, por muito que doa. Alm disso, h males piores do que no ter tudo. De facto, estou de luto: a minha me acabou de morrer, o meu irmo ficou paraplgico, eu estou com uma depresso ps-parto e a minha casa foi assaltada. No tenho nada a no ser o trabalho, os filhos para sustentar, um irmo deficiente e no estava preparada para isto. Alguma vez fui incorreta consigo ou com al-gum da turma? Tenho o direito de insultar e maltratar os que me rodeiam? Acredita que s a si lhe acontecem coisas ms e o resto do mundo feliz? Surpresa! Esta a realidade.

    O silncio foi avassalador, no obstante o tambor incessante do meu corao a explodir de dor, mas tambm de libertao.

    No, stra, desculpe. Nunca nos tratou mal. Eu no sabia... Os olhos baixos, a voz sussurrante. Eu vou tentar... Eu no sabia que estava mesmo de luto. Eu no sabia que tinha problemas.

    Problemas graves, no lhe parece? Os seus colegas no tero problemas? Se calhar, os que mais calam so os que mais sofrem e nem por isso o desrespeitam. Estude, seja algum. O que est a fa-zer indigno e no tem qualquer desculpa. No criana, no ho-mem; no entanto, est a caminhar rapidamente para a idade adulta. Mostre que sabe fazer essa caminhada com dignidade.

    Eu vou tentar.

    Durante o que restava do ano letivo, continuou a somar faltas e a ser chamado direo. Mas algo mudara. J no insultava, embora brincasse, interrompesse...

  • 30

    Nas minhas aulas, s pedia:

    Por favor, stra, deixe-me sair sem falta, v l.

    Dizia que lhe doa a cabea, que precisava mesmo de ir ao WC e no regressava. s vezes perturbava, mas no voltou a insultar-me ou a provocar-me.

    Reprovou, no teve nenhuma positiva, conseguiu ficar na turma da namorada. Est a tentar mudar. Quando passa pelos professores, no lhes fala, finge que nem os v. Quando passa por mim, fica a olhar, incapaz de dizer algo. s vezes sorrio e ele baixa a cabea. Ser que cresceu?

    Eu cresci e ultrapassei mais um desaire da vida com a ajuda deste alu-no rebelde que me ouviu falar tambm dos meus problemas. Desabo-toei-me do crcere insuportvel da dor e sobrevivi-lhe. Sou feliz, porque a felicidade a descoberta da nossa fora e de cada momento a que sabemos dar valor. tambm ddiva e integrar um mundo que pode melhorar... Se no acreditar, nada vale a pena... mas a alma grande e, por isso, estou no ensino.

    Obrigada, Valente.Ana Carvalho (Professora de Portugus)

  • 31

    X

    O valor do Natal

    Pedi para os meus alunos escreverem uma composio sob o tema O que significa para ti o Natal? e recebi respostas materialistas da maioria dos alunos: Adoro o Natal porque vou ter muitas prendas: Playstation, telemveis...

    Na semana seguinte, eles tinham teste de Portugus e decidi inven-tar eu prpria o texto do teste para ser interpretado, tentando toc--los um pouco com uma das muitas histrias da vida real. A mesma composio foi-lhes pedida no teste e, com emoo, verifiquei que as respostas em nada eram iguais s anteriores. Diferentes emoes nos mesmos coraes deram frases como esta: O Natal a festa da famlia e muitas vezes somos to egostas que s pensamos nas coi-sas que queremos receber. S quando nos acontece como Lili que percebemos. ou Vou passar o Natal s com o meu pai, que j tem outra famlia. J me habituei a isto, mas consigo perceber a tristeza da Lili... Somos tolos em s pensar nos presentes que recebemos. O mais importante a famlia junta, este o esprito de Natal que o Me-nino Jesus nos quer mostrar para um mundo melhor.

    Escrevi a histria, confesso, marcada por um pai que me procurou, para saber da vida escolar da sua menina, dizendo que, devido

  • 32

    sua doena, no chegaria a passar o Natal com ela. Em janeiro, este pai elevou-se s estrelas.

    O valor do Natal

    A neve caa, dezembro era o ms do frio e dos brancos man-

    tos de neve. Lili olhava mais uma vez para o porto de sua casa,

    adorava viver no campo, mas naquele dia sentia-se gelar por

    dentro, apesar do calor que se fazia sentir no seu quarto. Hoje,

    era noite de consoada e nem sinal do pai.

    Pegou numa caneta e num papel e comeou a desabafar com

    palavras Pai, h trs meses que trocaste este lindo Portugal por

    esse gelado pas. Sei que a, na Sua, se ganha mais dinheiro,

    mas preferia que estivesses sempre perto de mim. Disseste que

    talvez viesses passar o Natal connosco e nem sinal de ti! Porque

    no apareces? A me est descontrolada, l em baixo; o teu tele-

    mvel no d sinal! Ser que consegues imaginar como me sinto

    neste momento?

    A me chamou-a:

    Lili, vem para baixo, est a ficar escuro! Quero que me ajudes

    com a ceia de consoada. O teu pai j no vem! No estejas es-

    pera de um milagre de Natal!

    A me da Lili estava muito nervosa e chateada, esperava que o

    marido viesse passar o Natal com a famlia, mas comeava a con-

    cluir que ele no viria. Lembrou-se do que o marido lhe dissera,

    na semana anterior:

    O meu patro quer que eu trabalhe na semana do Natal e

    disse que me pagaria o dobro, talvez eu prefira ficar para ganhar

    mais dinheiro, ainda vou decidir, mas se eu for para a, chegarei

    de surpresa.

  • 33

    Algumas horas mais tarde, sentaram-se ambas mesa. A mesa

    estava repleta de iguarias: rabanadas, bolo-rei, po de l... Nada

    faltava da tradicional ceia de consoada. A rvore de Natal pis-

    cava orgulhosa, deixando revelar os maravilhosos adornos que

    a vestiam. Lili dirigiu o olhar para a janela, viu duas estrelinhas

    a brilhar, lembrou-se dos avs que tinham ido para o cu e que

    sempre recordava com muito amor. Foi buscar duas estrelinhas,

    guardadas numa caixinha de veludo, que lhe faziam lembrar os

    avs, brilhavam como diamantes lapidados. Beijou-as e pendu-

    rou-as na rvore.

    Feliz Natal, avs.

    Olhou novamente para aquela rvore e para o prespio, dese-

    jou um milagre. A tristeza era imensa. Olhava para todos aque-

    les presentes que tinha exigido me e, entre lgrimas, mur-

    murou:

    Me!

    Diz, filha!

    Sabes, agora consigo ver o verdadeiro valor do Natal. Afinal,

    no so os presentes, nem a mesa cheia de boa comida que nos

    fazem verdadeiramente felizes. Agora percebo porque dizem

    que o Natal a festa da famlia! Descobri que Natal porque

    estou contigo mesa, sinto a presena de duas estrelinhas que

    sempre me acompanham e guardam, mas falta-me a presena

    de algum que podia estar sentado nesta mesa, mas no est,

    talvez no goste de mim. Tambm no est guardado, na forma

    de estrelinha, na minha caixinha de veludo, para eu pendurar

    na nossa rvore e para me guardar l do cu. noite de Natal,

    descobri o significado desta quadra, mas sinto muita tristeza no

    meu corao!

  • 34

    A me no conseguiu dizer nada. As lgrimas escorriam-lhe

    pela cara.

    Nesse preciso momento, a campainha tocou, ambas saltaram

    das cadeiras e se dirigiram para a porta de entrada. O corao

    desta doce menina de oito anos batia apressadamente e ela, com

    a mo trmula, abriu a porta.

    Ah! Pa... pa pai!!! Vieste! Lili gritou descontrolada.

    Claro que eu vinha, filha, gosto muito de ti, o dinheiro no

    tudo na vida, a famlia o mais importante!

    Foi assim que esta doce menina descobriu o valor do Natal.

    Lili olhou para as duas estrelinhas da sua rvore de natal, bei-

    jou o Menino Jesus e pensou nos avs. Olhou novamente para o

    cu e sorriu para as duas estrelinhas que sempre a ajudavam e

    que, felizes, lhe piscaram o olho.

    Aurora Fernandes (Professora de Portugus e de Ingls)

  • 35

    XI

    Uma lio

    Tratava-se de uma turma de 5. ano que tinha na sua constituio um quarteto muito complicado, mas que, por aquela altura, tinha ainda naqueles midos um misto de ingenuidade e apetncia clara para o disparate, salpicado por alguma agressividade e dificuldade no reconhecimento da autoridade do adulto.

    A auxiliar bateu porta do Conselho Executivo.

    Sim? respondi do lado de dentro.

    Estes midos estavam aos pontaps a este mapa no corredor.

    Os midos estavam indiferentes descrio do sucedido, pelo que optei por abordar o tema de uma forma, inicialmente, despreocu-pada, pois sabia que tinha de encontrar rapidamente forma de os preocupar verdadeiramente com as consequncias do que tinham feito.

    Abri o mapa, um mapa-mundo colorido, um pouco maior do que uma cartolina, e verifiquei que, para alm de amarrotado, faltavam--lhe alguns bocados. A minha tranquilidade alterou-se bruscamente e passei ao ataque naquilo que eles menos esperavam: o porqu do desaparecimento no mapa de determinados pases. Porqu aqueles e no outros?

  • 36

    Isto muito grave! disse, debruando-me sobre uma das reas em falta do mapa com preocupao. Vocs fizeram desaparecer alguns pases do norte da Europa. Isto muito grave. Ainda se fos-sem os do Sul, a coisa escapava, agora os do Norte

    Comearam a olhar uns para os outros e a demonstrar preocupa-o por no perceberem nada do que se estava a passar. Tinham desafiado a Escola com um comportamento agressivo e a Escola no respondia a essa provocao mas, pelo contrrio, demonstrava era estar preocupada com eles pelo desaparecimento de certos pases de um mapa.

    Vou ter de ligar para as embaixadas. Vocs esto desgraados. Nem eu vos vou conseguir ajudar.

    Comearam a ficar plidos e a discutir uns com os outros.

    Eu no chutei.

    Eu s tirei do armrio, ele que estragou.

    Eu bem disse que isto ia dar

    Resolvi comear a falar mais alto a olh-los nos olhos um de cada vez PARA QUE QUE QUEREM A NORUEGA? HUM. PARA QU? E A DINAMARCA? E A SUCIA?

    Voltei a mostrar-me muito calmo e preocupado em ajud-los. Foi ento que um deles disse: Professor, ns vimos j! E saram a correr.

    Voltaram passados breves instantes com vrios bocadinhos de pa-pel. Eram bocados do mapa que tinham deitado no lixo. Professor, ajude-nos.

    Eu bem queria, mas isto est muito complicado para o vosso lado. Se no se tivessem metido nisto E aproveitei esta fase em

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    que todos j estvamos numa onda cooperante para falar de como no havia necessidade de estragar o material da escola, que at s existia para os ajudar a aprender, que quando fazemos disparates raramente temos noo das implicaes Enfim, era o momento da ao educativa.

    Engraado como estes mesmos midos tinham alterado o seu re-gisto. A cara menos rude, a voz menos jocosa e os olhos tinham ago-ra um brilho diferente, meio de lgrima, meio de afetividade.

    Vamos l ver o que se consegue fazer.

    Comemos a construir o puzzle fixando-o com fita-cola por trs. Passados alguns minutos tnhamos o mapa pronto com os bocados que recuperaram mas ainda faltavam alguns bocados. O norte da Europa estava ainda incompleto e, do lado dos Estados Unidos, ha-via uma grande falha tambm.

    Com tudo j calminho, voltei carga.

    Vocs foram s buscar os pases que no vos interessavam. PORQU OS ESTADOS UNIDOS? PORQU? Os americanos no brincam com estas coisas. Vocs meteram-se num grande sarilho. Entrou na sala a Cristina. Olha, nem de propsito, a professora Cristina ainda o ano passado teve um problema parecido com uns alunos dela. A embaixada dos Estados Unidos foi terrvel. No foi, Cristina? Conta-lhes tu que eu nem sou capaz.

    A Cristina virou costas e saiu, pois no conseguia segurar a von-tade de rir. Nesta altura, j a rapaziada prometia nunca mais fazer disparates, se os conseguisse ajudar a sair desta. Voltei a fazer uma pausa.

    J sei! disse, com uma expresso triunfal que logo estampou um sorriso de alvio nos midos que se debruaram sobre a minha

  • 38

    secretria. Fui buscar umas folhas brancas e colei-as por trs do mapa. Agora s precisam de desenhar e pintar o mapa que falta. Talvez assim no seja necessrio ligar para as embaixadas.

    Mas ns no sabemos como fazer disseram, outra vez com ar desanimado.

    Simples. Vo para a biblioteca na hora de almoo, abrem o atlas e copiam o melhor que der.

    Biblioteca? Nem sabiam que espao era esse e muito menos onde ficava.

    Ou conseguem at ao final do dia, ou tenho de ligar para as em-baixadas e eles logo tratam de tudo sua maneira.

    Ns temos de conseguir. disse um deles, puxando os outros.

    Ao final do dia, o mapa l apareceu, com os pases todos, bem pintados e delimitados (com ajuda da professora da biblioteca) e, depois de entregue, o alvio de um dia vivido com alguma angstia que chegava finalmente ao fim para os quatro.

    Uma ltima passagem pelo reforo positivo e fim da histria. Nuno Frazo (Professor de Educao Fsica)

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    XII

    Improviso

    Estvamos no final do ano letivo 2011/2012 e fui com uma colega de Cincias Naturais acompanhar os alunos de 9. ano na apresen-tao de um projeto desenvolvido no mbito do prmio da Funda-o Ildio Pinho Cincia na Escola. Cada projeto participante dis-punha de um stand destinado sua divulgao. Os alunos tinham desenvolvido o tema Energia, tendo construdo uma maqueta da escola e procedido respetiva eletrificao, utilizando, para tal, um minipainel solar. Uma vez que a maqueta era muito grande, optou--se por levar uma apresentao em Prezi que permitisse dar a co-nhecer o projeto.

    Chegados Exponor, os alunos montaram o equipamento e a apre-sentao foi sendo passada aos visitantes ao longo da manh, ten-do sido projetada numa tela de madeira pintada de branco. A certa altura, e aps uma visita aos restantes stands, os alunos j estavam um bocado cansados e resolveram entreter-se...

    Assim, continuaram a passar a apresentao, mas com uma ino-vao: o aluno que apresentava ia fazendo os movimentos com as mos e com os braos em frente tela, dando a impresso aos vi-sitantes de que se tratava de um quadro interativo. Os alunos trei-

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    naram to bem as transies da apresentao que se podia pr em dvida a presena do dito quadro naquele espao.

    Algumas pessoas que iam passando assistiam apresentao mui-to srias e no final iam espreitar a tela para se certificarem da exis-tncia ou no de um quadro interativo. Outras apercebiam-se da inovao dos alunos e riam-se, voltando em seguida com outras, para lhes mostrar a peripcia. A certa altura tive de me afastar um pouco do stand, uma vez que aquela situao era to inslita que no conseguia parar de rir!

    Chegada a hora do almoo, e perante a ausncia de monitores no stand, os alunos deixaram o seguinte aviso projetado na tela: Por motivos de sade mental, fsica e psicolgica, os responsveis pelo projeto foram almoar. Para mais informaes, sente-se na cadeira e espere pacientemente por ns!

    E assim se passou um dia diferente com as peripcias dos nossos alunos que tornaram a convivncia e a cumplicidade entre professo-res e alunos muito especial! Obrigada ao 9. B por estes momentos!

    Manuela Ortigo (Professora de Fsico-Qumica)

  • 41

    XIII

    A partida

    Por norma, desenvolvo relaes empticas com os alunos, embora saibamos que no possvel agradar a gregos e a troianos. Mais: nem me esforo para tal.

    H alguns anos, na semana antecedente do incio da interrupo das atividades letivas da Pscoa, em plena Quaresma, ocorreu uma situao inaudita.

    s 8h15, entro na sala de aula, pavilho das Artes, 12. ano de Ar-tes e, na secretria, alinho os materiais necessrios aula. Enquan-to esta operao decorre, percorro com o olhar a sala e apercebo-me de um aluno com a cabea encostada parede, com a pele muito branca e penso: Meu Deus! Este andou toda a noite na giraldina, tomou alguma coisa e est aqui a ressacar! Esperemos e vejamos o que vai acontecer!

    Acabada esta confidncia aos meus botes, aproxima-se de mim o aluno mais pacato, mais bem comportado e inofensivo da turma, com um ar muito srio. Pergunto-lhe:

    Ento, o que foi?

    Ao que me responde, quase em surdina:

  • 42

    Professora, o D. no est a sentir-se bem Acho melhor chamar uma ambulncia. Estamos muito preocupados com ele!

    Digo-lhe que j me tinha apercebido e peo-lhe que no diga nada, que eu vou tomar medidas. Aparentando uma calma que no tenho, olho para o aluno e fico aterrorizada: escorre-lhe sangue pela boca e j alcana o pescoo. Penso: Rpido, seno ainda me morre aqui!

    Volto-me para a turma e digo-lhes, com a calma que consigo en-contrar: Faam o exerccio do livro que eu preciso de ir l fora.

    A turma mantm-se em silncio e sria. Saio e peo funcionria que mande vir uma ambulncia, que pea os documentos do aluno D. ao SASE e que solicite a duas funcionrias que desam at ao pa-vilho, sem dar mais explicaes, dizendo-lhe apenas que aja com a maior urgncia possvel.

    Respiro fundo e retorno sala: receo com gargalhada geral, in-cluindo o aluno D., que quase parece um vampiro. No percebo nada, volto a sair da sala e a risada continua. Dirijo-me de novo funcionria e digo-lhe para anular todos os pedidos que lhe fiz, pois darei conta da situao.

    Retorno sala e pergunto-lhes o que se passa e a resposta ime-diata:

    Como a stra brincalhona, achmos que devamos pregar-lhe uma partida!

    No Carnaval e foi uma brincadeira irresponsvel: eu poderia ter tido um ataque cardaco, cado e morrido. Ningum pensou nas consequncias e as brincadeiras devem ser ajustadas s situaes; aquela foi inadequada. Ordeno-lhes que saiam e vou ao Conselho Diretivo. Exponho a situao e riem-se tambm; foi merecida a brin-cadeira.

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    Por causa do esforo fico completamente de rastos. No dou mais aula nenhuma. Vou para casa e paro a meio do caminho por no ser capaz de conduzir: choro at aliviar toda a tenso. E l vou para casa.

    Apesar de os castigar com disciplina militar durante mais de um ms, mesmo depois de acabadas as frias da Pscoa, reconheo que foram criativos e espontneos. Continuo a considerar este episdio um dos mais interessantes da minha carreira.

    Dlia Botinas (Professora de Filosofia e de Psicologia)

  • 44

    XIV

    O sonho da Constana

    A Constana tem um sonho.

    Um sonho que nasceu assim, pequenino e silencioso, como nas-cem os sonhos das crianas.

    Todos os dias cresceu um bocadinho. Cresceu na sala de aula, quando o Diogo escrevia o O do nome na ponta da folha. Cresceu quando a Joana dizia que o Diogo no sabia fazer nada. Cresceu quando os desenhos do Diogo saam da folha e se estendiam pela mesa fora. Cresceu no recreio, em todos os recreios, quando o Diogo passeava sozinho pelo ptio, alheio a tudo e a todos.

    Quando chegava a casa, a Constana enroscava-se no sof com a Francisca, a sua boneca preferida, ligava o Canal Panda e punha-se a sonhar. A mam desconfiava que no eram os desenhos animados que bailavam nos olhos da Constana e perguntava:

    Sentes-te bem, filha?

    Sim, mam respondia ela, sem desviar os olhos das imagens imaginadas.

    Um dia, o Sim, mam veio acompanhado de duas lgrimas tei-mosas. A mam deixou a Constana chorar, afagando-lhe o cabelo

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    e sussurrando-lhe carinhos. Com as lgrimas saram as palavras, aquelas palavras que se foram formando no crescer do seu sonho: que o Diogo fosse igual a todos os outros meninos, que o O do seu nome fosse para perto do g, que os seus desenhos ficassem bonitos e coloridos dentro do seu caderno, que no recreio no houvesse mais passeios solitrios A mam explicou Constana que o Diogo um menino autista, diferente, como diferentes so todos os meninos e meninas, porque todos so nicos. nicos no seu crescer e sentir, nicos no seu aprender, nicos no corao dos outros A Constan-a entendeu e, limpando as lgrimas, disse:

    Sabes mam, eu gostava que o Diogo tivesse um caderno bonito, assim como o meu. Ele gosta muito do meu caderno, pega sempre nele e acaricia as folhas. s vezes, dizem que o caderno do Diogo no est bem e eu sei porqu. que o Diogo no cabe dentro dele.

    A mam sorriu e, abraando-a, props-lhe fazerem dois cadernos grandes: um para ela, outro para o Diogo.

    O Diogo adora animais e a capa do seu caderno um oceano de golfinhos e peixinhos, tartarugas e corais, uma savana onde os lees correm atrs das zebras, uma montanha onde as guias fazem os ni-nhos, uma plancie onde as borboletas pousam nas espigas do trigo.

    A Constana tambm adora animais, mas o seu caderno dife-rente. rosa como os sonhos, amarelo como o Sol e tem a Polly e os amigos, um castelo e muitas fadas.

    Agora, no recreio, sentados no cho, tocam nas capas dos cader-nos. A Constana abre os portes do seu castelo encantado, pega na mo do Diogo e, juntos, correm pelos jardins e voam nas asas das borboletas.

    Ana Mafalda Damio (Professora de Portugus e de HGP)

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    XV

    Pais e filhos

    Sou professor. Trabalho com uma matria-prima complexa: deli-cada e resistente. Cada aula uma sucesso de situaes a exigir, ao mesmo tempo, calma e rapidez de resposta. Alm disso, no se professor s na sala de aula, nem sequer s na escola.

    Ao longo de quase trinta anos de servio, aconteceram situaes muito diversas: umas dramticas, outras caricatas; umas memor-veis, outras que apeteceria esquecer. Muitas mereceriam refern-cia, mas deixem-me falar-vos de apenas trs alunos e de trs coisas que talvez no devesse ter feito, mas fiz.

    1) A Mafalda foi minha aluna de Biologia no 12. ano. No ano letivo 1988/1989, decorreu no Museu de Etnologia de Lisboa, no Restelo, A Aventura Humana, uma exposio sobre a evoluo da nossa espcie. Seria por volta do meio-dia quando chegmos s imedia-es do museu e deixmos o autocarro que a ficou estacionado. A aluna pediu-me autorizao para ir almoar com o namorado que estava em Lisboa e eu dei-lha, lembrando-a da hora marcada para o reencontro e a hora de incio da visita exposio. Fomos todos almoar e, hora marcada, reunimo-nos porta do museu, mas faltava a Mafalda. Espermos at hora de visitar a exposio e

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    nada de a menina aparecer. No final da visita continuava a no ha-ver sinais da Mafalda. Espermos o mais que nos foi possvel, com as turmas dentro do autocarro, que continuava exatamente no mes-mo stio desde a chegada, e decidimos partir, pois ainda tnhamos de fazer uma viagem de algumas horas. H que salientar que, na-quela altura, no havia os telemveis que to teis podem ser neste tipo de situaes. Com o grupo de professores, tomei aquela deciso pois considerei a aluna, j com 18 anos, nica responsvel pela falta que estava a colocar os colegas numa situao delicada. Chegmos escola a horas imprprias.

    Coube-me a mim a ingrata tarefa de comunicar o sucedido en-carregada de educao. Imaginem como se sentia um jovem profes-sor de vinte e seis anos ao ir casa da me dela, minha conterrnea, mas que eu no conhecia, explicar-lhe que tinha deixado a filha em Lisboa. Resposta pronta da me, algo transtornada:

    J estava espera duma coisa dessas.

    Na segunda-feira seguinte, l estava a Mafalda, como se nada ti-vesse acontecido.

    2) No ano letivo seguinte, j na escola onde ainda hoje trabalho, calharam-me umas turmas do 8. ano nada fceis. Numa aula, os alunos entraram particularmente agitados e no havia jeito de acal-marem para se fazer um trabalho produtivo. Havia sempre algum a relanar a confuso. Fui comeando a aperceber-me de que um certo aluno, um dos grandalhes da turma, estava a escrever papis e a colar nas costas dos colegas, com dizeres nada agradveis. Fui falando e andando at ao fundo da sala. Quando me aproximei do Paulo, sem que se apercebesse da minha presena, ele estava a es-crever um dos tais bilhetes. Fiz-lhe a vontade e dei-lhe um cachao bem assente. A turma ficou espantada com a situao e eu fiquei

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    assustado. Aquilo sara-me sem pensar. O aluno, que j na altura era maior do que eu, ficou indignado e ameaava queixar-se dire-tora de turma e ao Conselho Diretivo. Aparentando estar cheio de calma, disse:

    Foi pedido por escrito. Mostrei o papel onde se lia D-me um cachao e continuei a aula.

    Poderia ter reagido de outra maneira? Poderia mas no seria a mesma coisa. Acho que se deu um clique naquele dia: ganhei a tur-ma e ganhei um amigo para a vida.

    3) Este ano seria, de novo, diretor de turma do Simo, um aluno desmotivado e que iniciava o 11. ano coxo das duas pernas: duas disciplinas com negativa no ano anterior. Numa delas, tinha tido oito para se poder matricular e, na outra, nem isso. Sempre usou como justificao para os seis a matemtica, que teve nos trs pe-rodos do dcimo ano, o facto de a prpria me ter sido m aluna na disciplina. Alm disso, sabia de uma situao da qual nunca teria tido conhecimento por mim A me tinha-lhe contado como eu a tinha deixado, h anos, em Lisboa.

    Procurei-os no restaurante da famlia. A Mafalda e o Simo acaba-ram por concordar que seria melhor ele mudar de curso. Terei feito bem em aconselhar a mudana de curso a um aluno que transitara e assim voltava um ano para trs? Os poucos meses passados fazem--me acreditar que sim. O Simo est a mostrar uma motivao que no ano anterior nunca lhe conhecemos.

    Agora a minha filha est preocupada com a Ana. Elas so muito amigas, colegas na ginstica, nos escuteiros e colegas de carteira. A Joana vai-me contando das classificaes negativas da Ana nas provas de avaliao em vrias disciplinas. Falei com ela e espero que a conversa que tivemos a motive, seno ainda leva! Imaginasse

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    eu que fazia maravilhas como fez ao pai dela mas no. Nem ela tem fsico para isso, nem o pediu por escrito. Alm disso, s apliquei a receita uma vez em quase trinta anos de aulas e a Ana nem mi-nha aluna, s a filha de um amigo.

    Joo Alberto Roque (Professor de Biologia e Geologia)

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    XVI

    Mulher prevenida

    Vou contar dois casos passados em eras diferentes, mas que me marcaram. J l vo alguns anos desde que isto me aconteceu, nos primeiros anos em que dei aulas. Foi demasiado importante, por isso lembro-me vrias vezes.

    No primeiro caso, dava aulas de Matemtica de 5. ano. Verifiquei que, comparando com os anos anteriores, os alunos eram muito pe-queninos, to queridos, vinham a correr assim que me viam e en-chiam-me de beijinhos e abracinhos. Quase me derretia ou reben-tava de to cheia daquela animao.

    Os alunos entraram na sala, acalmaram-se um pouco e eu a ob-servar como eles eram pequenos, sentados nas cadeiras com os ps no ar, a fazerem um esforo para estarem direitos e os materiais ar-rumadinhos, de olhos muito abertos, espera que eu comeasse a falar. Comecei por orientar o trabalho que iriam fazer, depois, em pouco tempo, expliquei como se fazia e dei exemplos.

    Enquanto fazia isto, fui escrevendo no quadro e pedi para os alu-nos passarem para o caderno. Como o quadro era muito grande, divi-di-o em quatro partes, separando-as com um risco, e fui escrevendo. No final perguntei se j todos tinham passado para o caderno, mas

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    como havia alguns mais atrasados, esperei um pouquinho mais.

    Depois perguntei se tinham dvidas. Como no tinham, os alunos comearam a trabalhar em grupos de dois para resolverem proble-mas relacionados com o tema de que tinha falado. Mas havia uma menina (ser que se chamava Rosa?) que estava na mesa mesmo minha frente e que olhou para mim com os olhos cheios de lgrimas que teimavam em ficar nos olhos e no caam nem por nada. claro que me assustei Pensei logo que ou ela estava doente ou eu tinha dito alguma coisa que a fizera ficar naquele estado.

    Aproximei-me dela com cuidado e perguntei-lhe: Ento, queri-da, o que se passa?

    E ela respondeu-me, saltando lgrimas por todo lado: Oh! Pro-fessora, aquilo no cabe aqui.

    Foi ento que eu vi o caderno dela, a folha A4, repito, uma folha do dossi estava dividida em quatro partes tal como estava dividido o quadro e ela estava a passar com uma letra muito pequenina para caber tudo Fiquei sem saber o que dizer Como me senti culpada por no ter reparado logo no incio, teria evitado aquele sofrimento.

    A partir desta situao, tento sempre ver os cadernos dirios dos alunos e ver o que esto fazendo. Hoje, o problema que muitos no tm caderno, pedem folhas emprestadas e deitam-nas no lixo antes de sair da sala, outros tm o caderno como se fosse uma coleo de sumrios e outros ainda no querem saber de nada Que saudades tenho dos abracinhos e beijinhos e da espera que os alunos faziam para me ouvirem.

    Agora falemos do segundo caso, quando dava aulas noite, Cin-cias e Matemtica. As idades dos alunos variavam entre os 14 anos e os 50 e tal, ou mais. Nesse ano tentei animar os alunos do curso

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    noturno, fizemos muitas atividades, jogmos futebol, fizemos espe-tculos, um grupo de rock compareceu e uma colega, que fez parte das Doce, participou tambm, como a voz dela era bonita! Uma alu-na, que fazia parte do grupo coral do Centro Cultural e Desportivo dos Trabalhadores do Metropolitano de Lisboa, conseguiu trazer o grupo e foi uma noite de pura magia.

    Nas aulas de Cincias, fiz experincias, trabalhos em cartazes e, entre tantas atividades, aconteceu o inesperado. Para comemorar o Dia Mundial do Ambiente pensei em mostrar um vdeo interessan-te, nem imaginava como aquilo funcionava, mas perguntei dele-gada de grupo disciplinar:

    H aqui na escola alguma coisa interessante para mostrar no Dia Mundial do Ambiente?

    E ela disse-me: Ai! Filha, tenho uma cassete de vdeo muito gira, garanto-te que muito boa. (Filha porque eu era mesmo mida e ela era muito senhora.)

    Acreditei na delegada, pensei que no ia haver problema e nem cheguei a ver o contedo da cassete.

    Um aluno arranjou a televiso, fez as ligaes e comemos a ver a cassete. A imagem era tima, o tema tambm tinha relao com o ambiente, uma vez que estudava uma comunidade de chimpanzs no meio selvagem e como as alteraes do meio se refletiam nestes animais.

    Tudo isto seria um filme srio, mas passou a ser uma comdia quan-do descobrimos que um dos chimpanzs, que era o mais irrequieto, vivao, brincalho, de excitao contagiante e desobediente, tinha o nome de Clementine. Infelizmente, eu tambm me chamo Clemen-tina Foi uma noite divertida e, como os alunos tambm tinham

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    algum sentido de humor, a situao no foi problemtica, consegui-mos no final fazer um debate sobre o que se tinha visto.

    Com esta experincia aprendi que nunca se deve apresentar nada aos alunos, nem que seja a melhor coisa do mundo, sem antes a ver previamente.

    Clementina Marques (Professora de Matemtica e de Cincias Naturais)

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    XVII

    Persistncia

    H doze anos, por erro meu no concurso de colocao de profes-sores, a minha vida deu uma volta inesperada: fui colocada em B., no Norte montanhoso, a centenas de quilmetros de distncia de casa. Aps lgrimas de raiva e desespero, por interromper estudos e projetos de vida que iniciara pouco tempo antes, l fui at nova escola, nova terra, novo tudo.

    Encontrei uma escola desorganizada devido mobilidade docen-te: todos os anos, mais de 90% dos professores a colocados eram novos, contratados e vindos de todo o pas. Todos os anos, era preci-so comear tudo de novo. Um caos? No! Curiosamente, o ambiente era to bom que todos trabalhavam da melhor forma para resolver os problemas que surgissem. s vezes, tenho saudades...

    De entre os muitos alunos que me passaram pelas mos, lembro com ternura duas irms gmeas, a A. e a O., alunas de Francs n-vel 3, numa turma de 7. ano. Neste nvel de estudos, havia poucos alunos inscritos, pelo que o grupo-turma era agradavelmente pe-queno. Eram razoavelmente tmidas e sossegadas. Aos poucos, e porque a matria flua bem, passei a conhec-las melhor. Viviam numa pequenssima aldeia entalada entre montanhas, nesse Norte

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    a espreitar Trs-os-Montes, onde eram as nicas crianas. Estar na escola foi, para elas, uma luta imensa: alunas da telescola at ao 6. ano, para poderem continuar a estudar precisariam de um trans-porte que, pura e simplesmente, no havia. No se acomodaram e escreveram uma carta ao Presidente da Repblica, o Dr. Jorge Sam-paio, que a leu e se comoveu com o desejo das duas irms em conti-nuar a estudar. Estabeleceu os necessrios contactos e conseguiram obter transporte que as levasse at B. a elas e a mais cinco ou seis midos da escola, tambm oriundos de outras aldeias to isoladas como a delas.

    medida que os meses passavam, fui conhecendo um pouco me-lhor os gostos, sonhos e vivncias destas adolescentes. Percebi que gostavam muito de estudar e tinham a ambio de prosseguir estu-dos, embora o futuro fosse uma incgnita: no sabiam se consegui-riam manter o transporte escolar aps o trmino do 9. ano.

    Houve dois acontecimentos que me ligaram mais fortemente A. e O. Um dia, aps terminarem as aulas, teriam de esperar mais trs horas at que o jipe as fosse buscar. A A. estava cheia de fe-bre, com uma gripe que tolhia aquele corpito alto e magro. A O. procurava ajudar a irm o melhor que podia. Nem uma nem outra se queixaram ou pediram ajuda. Estavam habituadas a passar por dificuldades e privaes e no seria um resfriado que as privaria de ir escola. Tiveram aula comigo, a nossa ltima aula do dia. Ao ver a mida to doente, ofereci-me para as levar a casa. Disseram logo que no, que era muito longe e as estradas, pssimas. Eu estava mortinha por chegar a casa, aps um percurso de 45 longos e sinuo-sos minutos e ainda pensei duas vezes, mas o lado bom venceu e levei-as mesmo a casa.

    O caminho era, tal como me tinham dito, difcil, sem alcatro nem

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    sequer um saibrozito para dar alguma consistncia ao percurso. Alm disso, tinha chovido havia poucos dias e a lama abundava. A dado momento, tivemos mesmo de parar para dar passagem a um rebanho de ovelhas! Estas, nada intimidadas com o automvel, pas-saram tranquilamente por ns, contornando-nos e observando-nos com curiosidade. Foi hilariante: comecei a cumprimentar as ovelhas e a saud-las com as mos, o que as fez rir e acalmou a preocupao que sentiam por me estarem a causar transtorno.

    A partir de dado quilmetro, no foi possvel continuar mais: a es-trada estava completamente intransitvel. A sua aldeia ficava a uns cem metros e, ao v-la, tive um deslumbramento: era lindssima, com meia dzia de casinhas baixas, rvores e campos cuidadosa-mente cultivados e um ribeirinho que passava pelo meio!

    As irms saram do carro rapidamente, agradeceram-me com pa-lavras simples e gestos contidos e fiquei a v-las correr at entrarem em casa. O regresso foi feito com cuidado, para no me perder e no cair em algum buraco. Nos dias que se seguiram, a A. ficou em casa, mas recuperou bem e logo regressou.

    Passadas semanas, a televiso que, anos antes, noticiara a carta e o desfecho da mesma eram famosas, as minhas alunas! quis voltar a saber delas. Foram escola e quiseram entrevist-las mais a algum dos seus professores. O presidente do Conselho Diretivo convenceu-me a ser eu a dar a cara, pois at j sabia onde moravam e bl-bl-bl. Acabei por aceder e falei com o jornalista presente. Tive a minha estreia na televiso, vista por parentes e amigos, me-nos eu. Nunca me vi!

    No final do ano, parti rumo a outra terra, outra dimenso, bem no sul do pas. Continumos, com maior ou menor regularidade, a es-crever-nos. Que foi feito delas? Voltei a encontr-las atravs do Fa-

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    cebook! Obtiveram bolsas de estudo e cursaram em Coimbra. So hoje duas mulheres bonitas e inteligentes e com orgulho e emoo que as vejo acredito que o futuro do nosso pas estar sempre as-segurado enquanto houver pessoas como elas.

    Teresa Guerreiro (Professora de Portugus e Francs e Professora Bibliotecria)

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    XVIII

    Jogo de cintura

    Sou professora de Educao Fsica e iniciei o meu percurso no ca-minho do ensino em 1992. Esse ano vai ficar para sempre gravado na minha memria, no s porque foi a primeira vez que abracei in-tegralmente o meu desejo de toda a infncia e juventude, mas tam-bm pelo episdio que aqui vou narrar, que me fez repensar toda uma lgica vincada sobre o que seria o processo de ensino-aprendi-zagem e romper com uma tendncia tradicional e autoritria qual estava acostumada.

    Em 1992, e por opo, pedi para fazer estgio numa escola da Covilh. Devo dizer que nunca tinha estado nessa cidade e a nica informao relevante que possua era que a Covilh era a porta de entrada para uma serra maravilhosa e que era uma cidade ainda muito rural. No fundo, desconhecia por completo a realidade que me esperava. Vivi sempre em cidades grandes e convivi com as rea-lidades prprias e especficas dos meios mais urbanos, por isso en-carei o iniciar de mais uma etapa na minha vida, longe daquilo que conhecia, como uma grande aventura, na qual teria de ter o mxi-mo poder de encaixe e de jogo de cintura. E foi assim que come-cei. E que me apercebi das grandes diferenas e obstculos: meio fechado, dificuldade em me aceitarem, desconfiana porque vinha

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    da capital e devia ter a mania, algumas dificuldades em entender o dialeto local... Mas eu fui pouco a pouco diluindo a desconfiana com trabalho, com rigor, com amizade, com sinceridade e notava a cada dia que passava mais aceitao e mais valorizao por parte das pessoas.

    Estando em estgio, era responsvel por lecionar duas turmas, uma do 7. ano e outra do 10.. A turma do 10. ano era semelhante qui-lo que hoje uma turma do ensino profissional. Hoje em dia estaria mais do que acostumada ao perfil usual (mas no nico) dessas tur-mas, mas naquela altura, sendo uma rapariguita de 22 anos, acaba-dinha de sair da faculdade com todas as teorias e certezas, tive logo uma vacina que me curou de qualquer futura maleita. Eram todos rapazes, quero dizer homens, pois tinham todos mais de 18 anos e alguns eram at mais velhos do que eu, a grande maioria no queria estudar; viviam em vilas e aldeias da zona, gostavam de rua, de ter-ra, eram brutos, e por vezes agressivos, na socializao. No que eu tivesse algum problema com o sexo oposto, at porque sempre fui maria-rapaz, mas a verdade que senti logo no primeiro dia que ti-nha de conseguir impor respeito mximo para que uma experincia de sucesso expectvel no se transformasse num desastre traumti-co para mim. A verdade que, como tinha acontecido com a cidade, tambm com a escola e com as aulas a adaptao aconteceu.

    Tudo corria bem at que um dia um aluno que nunca me tinha causado problemas chegou cansado e sem vontade de trabalhar. Aps muita insistncia da minha parte, o aluno foi vestir o equipa-mento, mas passou grande parte da aula sentado, sem demonstrar o mnimo interesse na aula. Depois de ter passado a aula quase toda atrs dele (Mexe-te... faz l isso... ests mesmo preguioso... olha que as aulas no so para dormir...), a situao chegou a um ponto

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    de rutura em que o meu cansao, as minhas crenas, o meu autori-tarismo e a minha inexperincia se juntaram e me fizeram vomitar uma srie de gritos e palavras agressivas contra o aluno. Em segun-dos, ele olhou para mim, com os olhos cheios de raiva, levantou-se e com o punho erguido dirigiu-se na minha direo. Instintivamente, desloquei-me para trs e acabei por ficar encostada parede com o punho do aluno bem perto da minha cara. Por sorte, no costumo ser de ficar perdida em momentos de aflio e, com a maior calma que pude, perguntei ao aluno se era mesmo isso que ele queria fa-zer. Se queria estragar a vida dele daquela maneira.

    Entre a minha reao, os colegas e o cair nele mesmo, o aluno afastou-se e comeou a chorar. Eu tambm acalmei e quis saber por que razo um bom aluno, que nunca tinha feito nada e era um bom colega, tinha tido uma reao assim. Ele acabou por me dizer que vivia bastante longe da Covilh e que tinha de apanhar o autocarro s 6h30. Durante o ltimo ms tinha estado a ajudar o pai na quin-ta e trabalhava das 4h30 s 6h00. Chegava a casa s 20h30 e tinha ainda de estudar. Andava extremamente cansado e sem energia. Pediu-me desculpas sinceras.

    E eu, no fundo, queria pedir desculpa por no ter sabido ver e ou-vir uma histria, como muitas outras, que me ensinava que todos os alunos so diferentes; que os mesmos sintomas no so a mesma doena; que eu ensino melhor e eles aprendem mais se os souber ouvir; que a disciplina e o rigor se devem misturar com a sincerida-de e com a dedicao e acima de tudo que para eu exigir respeito tambm tenho de respeitar. Por estranho que parea no fiz queixado aluno e sempre que tenho outro momento de ebulio, lembro-me daquelas palavras mais duras e daquele punho fechado e tento utilizar outra estratgia.

    Paula Rocha (Professora de Educao Fsica e de Expresso Dramtica)

  • 61

    XIX

    Professor solidrio

    Era mais um ano como muitos outros em que era colocado em mais uma nova escola! Esta ficava perto da beira-mar, numa zona com alguns pescadores. Enfim, tudo recomeava com as mesmas dificuldades de adaptao, mas isso no era novidade para mim...

    Comecei a lecionar e tudo corria normalmente, quando um dia vejo um menino de cadeira de rodas a entrar para uma sala ao lado da minha. Questionei os meus alunos sobre o que tinha o meni-no e eles disseram-me que tinha espinha bfida e que estudava no 3. ano.

    Passou algum tempo e eu tentei saber mais alguma coisa sobre o menino. Acabei por descobrir que eu dava aulas ao seu irmo mais velho. Falei com ele e soube que o menino precisava de uma cadeira de rodas nova porque estava a crescer e a antiga j no se adaptava ao seu corpo, mas que os pais no tinham condies econmicas.

    Nessa altura, resolvi falar com a diretora sobre o caso, que ela tambm conhecia, e disse-lhe que tinha de se fazer alguma coisa! Sugeri-lhe que podamos fazer um peditrio de tampinhas em toda a escola e ela disse-me que j tinham colocado um recipiente no bar e que a me do menino tambm andava a juntar, mas que eram

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    precisos muitos quilos de tampinhas para adquirir a cadeira de que tanto precisava!

    No fiquei quieto e fui falar da situao ao senhor padre da po-voao. Ele ficou um pouco surpreendido porque conhecia a fam-lia, mas no sabia do problema que estavam a viver! Disse-me que tambm iria ajudar.

    Em casa, cortei alguns garrafes, colei-lhes um papel que dizia Tampinhas para ajudar e, com autorizao da direo, coloquei--os na sala de aula, na sala dos professores e no bar s colei o pa-pel. Nas aulas seguintes fui incentivando os meus alunos a trazerem tampinhas, ia-as recolhendo e entregava-as a uma pessoa que as dava me do menino.

    O tempo passou e eu fui colocado noutra escola em complemento de horrio. Nessa escola, depois de ter contado o que se passava com o menino, pedi direo autorizao para levar as tampinhas da cantina para a outra escola. Tentei saber preos para a cadeira mas o valor era muito elevado por causa do assento especial que se adaptava ao seu corpo, devido sua doena.

    O ano escolar terminou e eu fiquei inscrito numa ao de formao para o ano escolar seguinte. Nessa ao, soube pela diretora que o menino j tinha a cadeira que foi conseguida com as tampinhas que a me foi juntando!

    Lus Silva (Professor de Educao Tecnolgica)

  • 63

    XX

    Na aldeia

    No tempo em que eu era ainda uma jovem licenciada, cheia de sonhos e esperana no futuro e com a nica experincia que adquiri em dois anos de trabalho, julgava-me muito conhecedora e senhora da minha sapincia. Afinal, pertencia aos 20 por cento dos sortudos que conclura um curso superior e, tal como agora, 20 anos depois, fora desterrada para um concelho do qual nada sabia.

    Depois de passado o choque inicial, e de ter ultrapassado a hipte-se de desistir, l me meti no meu Fiat 500 com uma amiga, para me ir apresentar no ltimo dia do prazo.

    Com o porta-bagagens vazio de malas mas cheia de coragem, agarrei num mapa de estradas e parti de Vila Real s 10h em ponto. Disse minha colega: Vamos almoar a Vouzela com o meu pai e seguimos no final de almoo.

    Aps o almoo, voltmos ao carro e comemos a rumar em dire-o a Castelo Branco, numa altura em que havia apenas a IP5 at Guarda (a parte fcil do caminho!). Depois da, comeou a verda-deira caa ao tesouro por estradas mal sinalizadas, parcas de gente a quem perguntar, e sem outro GPS que no fosse a interpretao do mapa, provavelmente desatualizado. Encontrmos Penha de m cor, finalmente, s 5h da tarde.

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    Ainda o Sol ia alto, mas, dado o avanado da hora, j ningum no Conselho Executivo julgava ser possvel que eu ainda me fosse apresentar. E, quando me dirigi secretaria, as senhoras olharam para o relgio, deram-me uma quantidade de papis para preencher e informaram-me do servio j distribudo para a semana seguinte.

    Ao verificar que tinha de voltar na semana seguinte e que teria de pernoitar, decidimos sair da escola em busca de uma casa ou de um quarto, com o mnimo de privacidade e conforto a que estava habi-tuada. De desiluso em desiluso, l acabei por alugar uma espcie de garagem transformada em T1 com apenas uma porta e uma ja-nela. Ao voltar para Vila Real, a minha amiga comentou: Aquela gente meio esquisita; o sol deve ser uma coisa preciosa., fazendo aluso insistncia no sol como argumento em todas as casas que vi. Mas eu s o entendi quando chegou novembro e, com ele, o ven-to vindo ora da serra da Estrela ora da serra da Malcata e da Gata.

    Chegmos a Vila Real tarde, muito tarde, e senti vontade de me despedir de todos, prometendo que voltaria sempre que fosse poss-vel, tal era o meu sentimento de desterro. Choradeiras e bebedeiras parte, o facto que na semana seguinte l regressei a Penamacor para vigilncias de exames e para reunies de grupo. S pensava: Ainda faltam 9 meses, tenho de me habituar a isto.

    Quando as aulas comearam, muni-me do que julgava ser impor-tante e, com passos firmes, avancei para a minha primeira apre-sentao. Do alto da minha grande sapincia, e dando-me ares de segurana, apresentei-me aos meus novos alunos: Hello, students. Welcome to the English class. My name is Paula Sousa but as we live in a democracy you may call me by my first name which happens to be Teacher!

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    Olharam uns para os outros com ar de quem no tinha percebido nada do que eu dissera. E eu pensei, confesso que com desdm: Pobrezitos, so mesmo do interior. Mas isso no me demoveu e incentivei-os a apresentarem-se um a um em ingls, tambm para saber como se exprimiam. E eles, um a um, foram dizendo os nomes e de onde vinham. Frequentemente, utilizavam, no seu ingls muito pouco fluente, a palavra portuguesa aldeia que eu corrigia para village. Terminadas as apresentaes, e de forma eloquente, dis-se em portugus para que todos me entendessem: J percebi que a maior parte dos alunos desta turma vm da aldeia e os outros so da vila, mas ser da aldeia ou da vila, para mim, no significa nada. Todos tero as mesmas oportunidades de aprender o mais que vos puder ensinar. Alis, nem me interessa essa diviso o que quero saber o nome da aldeia.

    Para meu espanto, um dos alunos informou-me que o nome da al-deia era Aldeia a Aldeia do Bispo, para se distinguir da Aldeia de Joo Pires ou da Aldeia das Aranhas. Ter-me-ia atirado para um buraco se na sala houvesse algum, mas no perdi a pose. J na sala de professores, comentei com os colegas que pertenciam ao quadro da escola e senti nos olhos deles, abertos de espanto, o que pensa-vam de mim: Pobre menina sabichona que afinal no sabe nada. Ento, um dos meus colegas, maroto e a sorrir, disse-me: Pois ! Futuramente, faz os TPC.

    Quis o destino que eu permanecesse naquela escola vrios anos. No voltei a perguntar o nome da Aldeia! Mas, passados estes 20 anos, olho para essa grande lio que a vida me deu e, sempre que sou colocada num outro lugar, vou agarrar-me ao Sr. Google para ver quais so as freguesias do concelho para onde vou. Conto mui-tas vezes esta histria por onde tenho passado. Naquele dia aprendi

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    com aqueles alunos que eu tinha, ainda, muito para aprender, e s vezes dou comigo sozinha a rir-me do meu ridculo e das coisas que no se aprendem nas universidades.

    Paula Sousa (Professora de Ingls e Professora Bibliotecria)

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    XXI

    Carla, professora de Portugus

    Professor, palavra nobre que, diariamente, me faz enfrentar cada dia, por mais sombrio e vazio que seja, com a suavidade de uma pena e com os olhos cheios de estrelas.

    Caminho de casa para a escola, aparentemente montono... ouo a estao de rdio preferida, trauteando o refro de uma msica que insiste em no sair da memria, adivinhando-se o dia, feliz!

    Chegada ao colgio: sorrisos espalhados em cada recanto; vozes cmplices fundem-se com o acenar carinhoso entre pais e filhos; uma bola que voa sobre o recreio da pequenada; o Bom dia car-regado da pureza de quem criana, diretamente entoado pelo co-rao.

    A entrada na sala, qual palcio, qual castelo, transporta-me para a minha essncia, para aquilo que sou, para o que sempre desejei fazer acontecer.

    s 8h30, manh formada pelas lgrimas das rvores que beijam as folhas que caem, suavemente, nas folhas douradas do cho. Inicio a aula com um excerto de Antnio Mota, cuja Casa repleta de Bengalas e recordaes que nos fazem crescer e repensar o mundo que formamos. Uma forma verbal entra pela aula, trazida por uma Sementinha curiosa, semeada por Alves Redol, e imperativo clas-

  • 68

    sific-la, encontrar a sua classe, para que possa descansar no caderno dirio, vaidoso, organizado por temas, confidente de momentos, cra-vado de aparas de lpis que, por momentos, no seguiu o caminho correto. A dupla face do ensino-aprendizagem no ser isto?

    Um saboroso Chocolate anda, pela sala, Chuva, marcado em cada vidro da sala, que assiste partilha de momentos, de obs-tculos ultrapassados, de vitrias somadas, com dedicao e empe-nho. Passa o tempo...

    Nova sala, nova turma, novos desafios: um homem colocado numa ilha deserta, semelhana de Robinson Cruso, motivo para que os alunos se desprendam das mesas e das cadeiras e voem para o mundo da escrita criativa, sendo o que so e no so, sentindo, desenvolvendo a sua identidade literria. Comovem-me, essas via-gens, pensando que estive, um dia, ao leme das mesmas, a traar rotas, com um novelo de l... Todavia, pronta para os deixar voar...

    Hora de almoo! O som rtmico dos talheres, os sorrisos cmpli-ces... O jogo da macaca preenchido por saltos alegres; o campo de futebol, palco de dramas, de foras de jogo, de cantos... Tudo faz parte do crescimento, h que enfrentar os desafios, aprender com as derrotas e ajudar a arbitrar o jogo que a vida.

    Um aluno, num banco escondido, encolhe-se, feito acento circun-flexo. Vejo, observo, falo, conforto...

    Carla, professora de Portugus.

    Sim, respiro o que fao, sonho com cada excerto que analiso, vibro com cada recurso expressivo esboado pelo autor. Festejo cada vi-tria, limpo as lgrimas, recomeo perante a derrota. No ser isso ser professor?

    Ouo a campainha, hora de partir! Carla Alexandre (Professora de Portugus)

  • 69

    XXII

    Tragdia no Douro

    Sou educadora de infncia num jardim de infncia do concelho de Seia.

    Esta histria marcou-me de tal forma que j decorreram quase tre-ze anos e ainda est bem viva na minha memria. Foi em 2001, em maro, precisamente a seguir quele dia.

    Fui buscar o porteflio desse ano, que guardo com carinho no ar-mrio do meu gabinete. L est a notcia.

    Tinha acontecido no dia 5 o trgico acidente na ponte de Entre--os-Rios. Os nossos sentimentos foram abalados pela tragdia. Os adultos conversavam, procurando culpados, pedindo responsabili-dades. Neste vai e vem de informaes, a televiso permaneceu ligada no jardim de infncia. Foi-se explicando s crianas o que tinha acontecido.

    E, entre a catadupa de notcias, esquecemos-nos dos sentimentos dos pequenitos, de como estariam a sentir a tragdia. No foi pre-ciso perguntar-lhes, porque um pequenito (o Bruno, de cinco anos), numa atividade espontnea, dirigiu-se ao quadro existente na sala de atividades e com giz desenhou o seu sentimento. Desenhou a ponte desfeita, os automveis e o autocarro a cair, as pessoas que

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    testemunharam o acidente, uma ambulncia, um corao o dele e a bandeira de Portugal. O que ficou ali registado era to intenso que resolvi registar em fotografia e elaborei um artigo que saiu no jornal escolar do agrupamento.

    Treze anos depois, permaneo no mesmo jardim de infncia. No ano letivo passado, o Bruno, j com dezoito anos, esteve no jardim a acompanhar um familiar na festa de Natal que ali se realizou. Ambos estivemos a recordar aquele acontecimento e ele disse-me que ainda se lembrava do que tinha sucedido naquela sala, naquele quadro.

    Anabela Nunes (Educadora de Infncia)

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    XXIII

    Dona Mariana

    A histria que vou partilhar em homenagem minha primeira professora: a pequena GRANDE Dona Mariana.

    O cuco e a poupa faziam-se ouvir a grandes intervalos, s os rou-xinis dialogavam sem fim, quando Assim comearam muitas das minhas redaes no 1. Ciclo, pois esta foi a introduo que a minha querida professora, a Dona Mariana, me atribuiu para estimular a escrita. Nunca mais as esqueci. Nem a uma nem outra.

    Foram quatro anos, durante os quais a Dona Mariana me ensinou e muito. Com ela aprendi a ler e a escrever e ganhei o gosto pelo mundo da escola. Acolheu-me e incentivou-me com as suas estra-tgias.

    As suas peas de teatro tambm me ficaram na memria. De um Natal ficou o Bacalhau, bacalhau! Bacalhau onde est ele? Onde est esse marau, que era o amigo fiel? Bacalhau subiste tanto, ao preo que ests amigo, acredita no consigo nem ao teu rabo che-gar.

    Alimentou o meu desejo de saber com os seus cartes verdes que eu tanto gostava de ganhar. Dessas conquistas ficaram alguns pr-mios (livros, jogos...) que ainda guardo com estima no meu ba de recordaes, pois recordar viver. O seu exemplo de professora

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    serviu-me de motivao para querer tambm eu ser professora, um dia. E assim foi. Sou professora desde 1993, ou seja, h vinte anos, com muito gosto.

    Ao longo da minha vida de estudante, tive vrios professores com estilos diferentes, uns esqueci, outros guardo na memria e no cora-o. A todos respeitei. A Dona Mariana inesquecvel. Foram qua-tro anos de convivncia e aprendizagem com ela. Lembro-me da sua linda figura: tinha cabelo curto, liso e loiro. Por vezes, pintava-o de preto. Era baixa e magra, elegante e muito feminina. Tinha uma bonita voz inconfundvel. Ainda a ouo.

    A Dona Mariana est agora reformada. Ela foi do tempo da rgua e da cana, mas no as gastou comigo. No entanto, lembro-me de uma vez em que me distra e apanhei com a cana. Era um momento de es-tudo da gramtica. Quando se virou para mim e disse Lusa?, no me apercebi que queria que classificasse gramaticalmente a palavra e ento respondi-lhe que o meu nome era Maria Jos...

    Eu gostava de aprender, mal chegava a casa queria imediatamente fazer os deveres. Era a melhor da turma e feliz por s-lo.

    Recordo com saudades os momentos em que formvamos roda na sala de aulas e dizamos ou cantvamos a tabuada. Recordo as brin-cadeiras com jogos tradicionais no recreio: caadinhas, escondidi-nhas, cabra-cega, elstico, macaca... Bons tempos!

    Obrigada, Dona Mariana, consigo ainda poderia muito aprender. Quem sabe um dia ainda venha a rev-la...

    Espero tambm eu deixar boas recordaes e aprendizagens nos meus alunos, que ao longo destes anos j foram muitos. Todos iguais, todos diferentes, mas todos seres em formao que quero ajudar a CRESCER.

    Maria Castro (Professora de Portugus e de Ingls)

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    XXIV

    A grandeza da diferena

    Era um dia de calor, muito calor! Era o Norte que virava Sul... Era eu, professora de Braga em terras de Liberalitas Jlia.

    Eles entravam na sala de aula... dois a dois, trs a trs, um a um, e no final, depois de todos sentados, eram muitos, muitos alunos! E to diferentes... Alguns tinham o cabelo rapado, outros comprido, outros verde ou com madeixas de cores vivas e vorazes... e as roupas exticas e atentatrias eram largas e justas, escuras e muito escuras, com ou sem correntes, pulseiras, adereos metalizantes, brilhantes, cintilantes, num vai e vem exuberante de adolescente marcante. E assim, pouco a pouco, fui percebendo que os gticos, os emos, os dreads e tantos outros viviam e sobreviviam no meu pequeno mundo da diferena. Olhei, vi, observei, escutei e pensei:

    Quem so estes? De onde vm? O que querero da escola? Pro-vocao? Protagonismo? Irreverncia? Prontos e dispostos a quebrar regras, violar princpios, infringir normas e regulamentos... S pode ser isso! pensei, na certeza cartesiana de um cogito fechado em si.

    At que, envolta no espao areo do meu pensamento, ouvi:

    Professora! Porque no faz o favor de se apresentar? que ainda no sabemos o seu nome! disse um aluno