HISTORIA SOCIAL

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História social

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  • HISTRIA SOCIAL:perspectivas metodolgicas

  • educao, arte e cultura

    Coleo

    Tarcsio R. BotelhoMarco H. D. van Leeuwen

    (organizadores)

    HISTRIA SOCIAL:perspectivas metodolgicas

  • Copyright 2012 byTarcsio R. Botelho e Marco H. D. van Leeuwen (Org.)

    Todos os direitos reservados Veredas & Cenrios Educao, arte e cultura

    Botelho, Tarcsio R., Leeuwen, Marco H. D. van (organizadores).

    Histria social: perspectivas metodolgicas / Tarcsio R. Botelho e Marco H. D. van Leeu-wen (Org.). 1. ed. Belo Horizonte: Veredas & Cenrios, 2012.

    p. XXX; 14cm x 21cm. (Coleo Obras em Dobras)

    ISBN 978-85-61508-XX-X

    1. Histria da Amrica do Sul. 2. Histria do Brasil. 3. Cincias Sociais. I. Botelho, Tarcsio R., Leeuwen, Marco H. D. van. II. Ttulo. III. Srie.

    CDD XXX

    Veredas & Cenrios Educao, arte e culturawww.veredasecenrios.com.br

    [email protected]

    Direo e coordenao editorialHelton Gonalves de Souza

    Editorao de texto e projeto editorialHelton Gonalves de Souza

    Reviso de textoxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

    Capa, projeto grico e arte inalCapa, projeto grico e arte inal

    Marcos Loureno Vieira

    Produo editorialLpis Lazli Ltda.

    Impresso e acabamento

  • SUMRIO

    Apresentao ....................................................................................................Tarcsio R. BotelhoMarco H. D. van Leeuwen

    CAPTULO I

    Homogamia social na Histria ...................................................................Marco H. D. van Leeuwen

    Ineke Maas

    CAPTULO II

    Famlia, Histria e redes sociais ................................................................Fbio Faria Mendes

    CAPTULO III

    Uma alternativa metodolgica para o cruzamento semiautomticode fontes nominativas:o NACAOB como opo para o caso luso-brasileiro ............................Ana Silvia Volpi ScotDario Scot

    CAPTULO IV

    Los censos chilenos como fuente para el estudiode la estructura y movilidad social (1865-1940) .....................................Javier E. Rodriguez Weber

    Juan Ignacio Prez E.

    CAPTULO V

    Evolucin de la poblacin de Montevideo y su campaa (1757-1860).

  • Una aproximacin a su reconstruccin ..................................................Raquel Pollero

    CAPTULO VI

    A famlia brasileira do passado: Minas Gerais, 1830 .........................Mario Marcos Sampaio Rodarte

    CAPTULO VII

    Estructura social de la mano de obra rural.Un anlisis de la campaa sur prxima a Montevideo 1760-1860 ....Carolina Vicario

    CAPTULO VIII

    La clasiicacin de las ocupaciones y sus problemas:el caso de los inmigrantes espaoles en Buenos Aires .........................Nadia Andrea De Cristforis

    Sobres os autores ..............................................................................................

    NOTAS ...........................................................................................................

    REFERNCIAS .............................................................................................

  • APRESENTAO

    A Amrica Latina caracteriza-se por ser uma sociedade extre-mamente desigual, com as mais elevadas e persistentes taxas de desigualdade de renda do mundo. Outras medidas de desi-gualdade social apontam para a mesma direo, tornando esse um tema central para os estudos latino-americanos. As discus-ses sobre a desigualdade social e sobre a mobilidade social, en-tretanto, tm atrado muito mais socilogos, economistas, dem-grafos e gegrafos do que [mais especiicamente/propriamente] os historiadores. H uma irme tradio sociolgica nessa rea do conhecimento sobre a regio, pautada sobretudo pelas dis-cusses em torno da teoria da modernizao. No caso especico do Brasil, foram observados inmeros avanos tericos e emp-ricos recentes.1 Uma abordagem histrica da desigualdade so-cial, todavia, ainda pouco aprofundada. Sobretudo no Brasil, as questes tnicas e raciais ocupam boa parte da agenda de pes-quisa da rea. Alm disso, os estudos so, de modo geral, muito naciocntricos, e os exemplos de cooperao buscam muito mais justapor estudos de casos nacionais em torno da mesma temtica do que propriamente analisar sob o mesmo ponto de vista meto-dolgico as questes investigadas.

    Acreditamos que possvel avanar no estudo dessas e de outras temticas relevantes para a historiograia e as cincias sociais latino-americanas se pudermos estabelecer cooperaes mais efetivas entre pesquisadores interessados nos processos so-ciais de diversos pases latino-americanos. Um primeiro passo tem sido a busca por conhecer as fontes de dados demogricos e sociais nos diversos pases da regio, bem como o esforo em coordenar a coleta de informaes histricas de carter censit-rio que se encontram disponveis nas documentaes manus-critas dos diversos arquivos nacionais e regionais da Amrica do Sul. Trabalhando isoladamente, diversos pesquisadores j levantaram ou identiicaram fontes documentais. Construir ba-ses comuns para investigao histrica em torno da temtica da

  • desigualdade social, considerada fundamental nas cincias hu-manas e sociais da Amrica Latina, tem sido uma meta buscada ao longo dos ltimos anos.

    Em outubro de 2007, tendo como base esses pressupostos, realizamos o congresso internacional Desigualdade social na Amrica Latina em perspectiva histrica, em Belo Horizonte (MG). Enquanto esforo de integrao de pesquisadores e proje-tos de pesquisa de diferentes pases sul-americanos, buscaram--se avanos tericos e metodolgicos signiicativos. Esses avan-os relacionaram-se com uma melhor compreenso das formas de organizao dos mapas de status social em sociedades onde a ocupao no o nico, e s vezes nem mesmo o principal, crit-rio deinidor da posio social do indivduo. Os resultados desse primeiro momento de integrao de agendas de pesquisa esto registrados nos livros que renem as contribuies do congresso (BOTELHO; LEEUWEN, 2009; 2010).

    Em 2011, aconteceu a segunda edio do evento, cujos tra-balhos so apresentados neste livro e noutro que o seguir [j no prelo - 2012???]. A realizao do congresso representou um esforo de integrao de pesquisadores de diferentes pases la-tino-americanos que resultou em avanos na compreenso da desigualdade social em perspectiva histrica, bem como no co-nhecimento das potencialidades de estudo dadas pelas fontes disponveis.

    No presente volume, apresentamos trabalhos voltados para aspectos metodolgicos dos estudos de desigualdade social, de estratiicao social e de mobilidade social. Os trabalhos apre-sentados no congresso internacional Desigualdade social na Amrica Latina em perspectiva histrica, em 2011, e que se re-lacionam mais diretamente com achados empricos em torno da desigualdade econmica e social e da mobilidade social foram reunidos em outro volume (BOTELHO, LEEUWEN, 2012 no prelo???).

    O volume abre com o trabalho de Marco van Leeuwen e Ineke Maas intitulado Homogamia social na histria. Para os autores, dada a importncia para a histria social dos padres

  • 9de casamento por classe social, notvel que os historiadores te-nham estudado a endogamia por regio e por faixa etria muito mais do que a endogamia por classe social. Estudiosos de ou-tras disciplinas, nomeadamente a sociologia, tm lidado muito mais com os padres contemporneos e seus determinantes do que com as tendncias de longo prazo. No entanto, os valiosos trabalhos dessa rea notadamente sobre os determinantes da endogamia social podem ser consultados com proveito, uma vez que gera insights que podem ser testadas com registros his-tricos, ampliando assim nossa compreenso dos processos de formao de classes no passado e tambm estabelecendo, ou questionando, a validade de certas noes tericas.

    O segundo captulo, intitulado Famlia, histria e redes so-ciais, de Fbio Faria Mendes, explora as possibilidades de uso de ferramentas computacionais de anlise de redes sociais como instrumento de anlise histrica de padres intergeracionais de desigualdade social. Redes sociais moldam os luxos desiguais de recursos materiais, sociais e de informao entre indivduos e grupos, criando simultaneamente reproduo de desigualdades e formas no antecipadas de mobilidade social. Em Minas Gerais dos sculos XVIII e XIX, as formas categricas e relacionais de desigualdade articulam-se de modo complexo. O autor procu-ra descrever o conjunto de ferramentas analticas e problemas metodolgicos postos pela anlise de redes para a investigao histrica, analisando a trajetria de algumas famlias senhoriais e o destino de seu patrimnio em uma localidade de Minas Gerais dos sculos XVIII e XIX.

    O terceiro captulo (Uma alternativa metodolgica para o cruzamento semi-automtico de fontes nominativas: o NACA-OB como opo para o caso luso-brasileiro), de Ana Silvia Volpi Scot e Dario Scot, apresenta e discute um programa informa-tizado NACAOB que foi desenvolvido para coleta e orga-nizao das informaes referentes ao Batismo/NAscimento, CAsamento e Bito, disponveis nos registros paroquiais e civis para auxiliar os pesquisadores que se valem de fontes nomina-tivas para seus estudos. O processo de cruzamento nominativo

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    revela-se difcil e complexo, especialmente para os estudiosos das populaes luso-brasileiras, devido a uma srie de proble-mas j amplamente conhecidos (falta de regras para transmisso dos nomes de famlia, alterao e/ou inverso dos nomes e sobre-nomes, ausncia de nomes de famlias para a maioria da popu-lao feminina, concentrao na escolha de alguns nomes de ba-tismo, alta incidncia de homnimos). A experincia dos autores os levou a desenvolverem alguns procedimentos que, ao mesmo tempo, facilitam e procuram garantir uma maior eicincia no cruzamento de fontes nominativas de procedncia diversa. Nes-se texto, eles discutem as questes relacionadas utilizao dos registros paroquiais como fonte nominativa bsica e trazem uma contribuio para a relexo sobre as possibilidades de anlise em relao s desigualdades sociais e diversidade que caracte-rizaram a sociedade brasileira no passado.

    O captulo seguinte, intitulado Los censos chilenos como fuente para el estudio de la estructura y movilidad social (1865-1940), de Javier E. Rodrguez Weber e Juan Ignacio Prez E., procura mostrar as oportunidades oferecidas pelos censos de po-pulao chilenos para o estudo da estrutura social e sua evoluo entre 1865 e 1940. Seu principal objetivo , portanto, promover uma agenda de pesquisa. Para tanto, eles fazem uma apresen-tao crtica dos censos de populao do perodo, chamando a ateno para problemas nas informaes publicadas, mas tam-bm enfatizando o seu potencial. Para ilustrar tais aspectos, so apresentados os resultados resumidos de uma pesquisa recente sobre desigualdade de renda no Chile entre 1860 e 1930 a par-tir das informaes censitrias sobre as categorias proissionais. Tambm so apresentados alguns eixos que podem servir para continuidade das pesquisas

    Raquel Pollero, em Evolucin de la poblacin de Montevi-deo y su campaa (1757-1860): ejercicios metodolgicos para la construccin de una serie de poblacin, apresenta sries cons-trudas a partir, por um lado, dos mapas de populao, listas de habitantes (padrones) e censos do perodo e, por outro, das sries anuais de eventos religiosos (batismos e enterros) de dez

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    parquias. A interligao dos dados das listas de habitantes com os eventos vitais permitiu uma avaliao de ambos, detectando importantes subregistros. Os dados foram, ento, avaliados a partir de diferentes cenrios de populao, construdos com o uso de vrias metodologias. Primeiramente, foi analisada a srie construda com as taxas de crescimento intercensitrias, utilizan-do apenas as listas de habitantes. Em seguida, foram adotados diferentes conjuntos de equaes de compensao, onde as infor-maes das listas nominativas foram integradas s dos registros paroquiais. Finalmente, foi proposto o uso da projeco inversa de Ronald Lee como uma metodologia adequada para superar as diiculdades comuns nas anlises de populaes histricas.

    O sexto captulo, de Mario Marcos Sampaio Rodarte (O tra-balho do fogo: domiclios brasileiros em tempos passados, Minas Gerais, 1830), investiga os tipos mais freqentes de domiclios na provncia de Minas Gerais na dcada de 1830. O fogo, que era o termo normalmente utilizado em registros censitrios do sculo XIX para designar a unidade domiciliar, se diferia do do-miclio contemporneo. Alm de ter a funo reprodutiva e de ser grupo de parentesco, o fogo quase sempre constitua um con-junto de pessoas com outras funes sociais e tambm econmi-cas, em especial, a de ser unidade produtiva, dado o contexto de uma sociedade pr-industrial. A proposta de tipologia de domi-clios aqui apresentada buscou captar essa plurifuncionalidade dos fogos, adotando, como ponto de partida, a concepo mais abrangente de domiclio. A partir de dados de cerca de 85 mil domiclios (10% do total estimado para o Brasil), gerou-se uma tipologia de domiclios em que se empregou 35 variveis, me-diante aplicao do mtodo Grade of Membership (GoM). Essa opo metodolgica permitiu evidenciar formas distintas de or-ganizao do domiclio derivadas da conigurao encontrada nos dados, e no de pressupostos deinidos a priori.

    La estructura de la mano de obra rural en el sur de Uru-guay: una aproximacin al estudio de la movilidad social en el campo, 1760-1860, de Carolina Vicario estuda a estratiicao social a partir da investigao da mo-de-obra rural no entor-

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    no de Montevidu, levando em conta a propriedade dos fatores de produo. A estratgia metodolgica estabelecida levou em conta que as identiicaes de classe nesse perodo provavelmen-te eram diferentes daquelas das sociedades contemporneas. A partir da anlise de listas de habitantes e censos das localidades vizinhas a Montevidu entre os anos de 1760 e 1860, identiicou--se quem eram os proprietrios dos meios de produo e quem no contava com este recurso, ou seja, os produtores rurais e os trabalhadores. O estudo focaliza a composio dos domiclios e a estrutura ocupacional de cada um desses grupos visualizando as caractersticas especicas daquela sociedade e os mecanismos que permitiam algum grau de mobilidade social e econmica.

    O oitavo e ltimo captulo, intitulado Inmigracin y estruc-tura ocupacional: el caso de los espaoles del noroeste hispnico en Buenos Aires, de autoria de Nadia De Cristforis, tem como ponto de partida a anlise da estrutura ocupacional de dois gru-pos de imigrantes em Buenos Aires no inal do perodo colonial: galegos e asturianos. Dentro do campo dos estudos migratrios, a insero no mundo do trabalho permite compreender melhor os processos de integrao dos imigrantes, tanto de primeira quanto de segunda gerao. Nesse sentido, o tratamento das categoras ocupacionais adquire relevncia singular. Para tratar dessas questes, a autora utiliza diferentes esquemas classiica-trios das ocupaes para confrontar as vantagens e limitaes de ambos.

    O Congresso articulou-se com quatro experincias interna-

    cionais de pesquisa. Em primeiro lugar, ele se integra ao HISCO - Web-Based Information System on the History of Work (htp://www.iisg.nl/research/hisco.php). Esse projeto, sediado na Uni-versiteit Utrecht (Pases Baixos) e no International Institute of Social History (IISH), em Amsterdam, coordena a elaborao de codiicaes de ocupaes a partir de uma proposta nica, j testada para diversas realidades nacionais. Seu coordenador,

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    Marco van Leeuwen, foi contemplado com dotao de recursos para pesquisa da European Research Council, que permitiu o pa-trocnio parcial do evento. Em segundo lugar, ele se associa ao Global Collaboratory on the History of Labour Relations, sedia-do no International Institute of Social History (IISH) e inanciado pela Gerda Henkel Stiftung, da Alemanha. Em terceiro lugar, o congresso ocorreu dentro das atividades que vm sendo desen-volvidas pelo projeto PRONEX/CNPq/FAPEMIG denominado Famlia e Demograia em Minas Gerais, sculos XVIII, XIX e XX (SHA - APQ-00091-09), coordenado pelo prof. Douglas Cole Libby e sediado no Centro de Estudos Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais. Finalmente, ele faz parte de um projeto de pesquisa cooperativo envolvendo pesquisadores brasileiros, argentinos, uruguaios, chilenos e colombianos para discutir es-sas dimenses da desigualdade social em contextos coloniais e ps-coloniais.2

    O Congresso contou com recursos concedidos pelo Euro-pean Research Council dentro do projeto de pesquisa do Prof. Marco van Leeuwen. Tambm contou com inanciamentos espe-cicos da FAPEMIG (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais) e do CNPq, que tornaram possvel a vinda dos pesquisadores sul-americanos e brasileiros.3 A CAPES, atravs de recursos destinados ao Programa de Ps-Graduao em His-tria da UFMG, tambm foi parceira fundamental no inancia-mento do congresso. Para a publicao dos livros que renem as contribuies do congresso, foram fundamentais os apoios recebidos da CAPES (mais uma vez atravs de recursos destina-dos ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG) e da FAPEMIG.4

    Como se v, os trabalhos aqui publicados representam um esforo de integrao de pesquisadores e projetos de pesquisa de diferentes pases sul-americanos que resultam em ganhos empricos e metodolgicos signiicativos. Esses ganhos abrem perspectivas de se avanar na compreenso das formas de orga-nizao dos mapas de status nas sociedades nacionais sul-ame-ricanas em processo de consolidao. O ponto de partida foi a

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    informao sobre ocupao dos indivduos encontrada nas listas de habitantes, padrones e censos nacionais. Entretanto, deve-se icar atento ao fato de que nesses contextos ps-coloniais a ocu-pao no o nico, e s vezes nem mesmo o principal, critrio deinidor da posio social do indivduo. Portanto, esperamos inserir na discusso correntemente formulada sobre a desigual-dade social novas dimenses que cercam a temtica e que no so normalmente contempladas. Destacam-se, nesse caso, a con-dio social (se livre ou escravo) e a origem tnica/raa, embo-ra outras dimenses tambm possam ser analisadas. Isso abre a possibilidade de testar, com bases empricas mais seguras, as diversas consideraes acerca dos elementos que esto por traz da enorme e contnua desigualdade que marca nossa sociedade. Tais consideraes tornam-se ainda mais relevantes se conecta-das a uma perspectiva comparada em nvel internacional.

    A continuidade da cooperao entre os pesquisadores sul--americanos envolvidos com a mesma temtica certamente re-sultar na construo de uma agenda comum de pesquisas e na abertura para o dilogo com pesquisadores de outras regies do mundo, sobretudo europeus, que vm produzindo sobre o tema. Desse dilogo decorre o maior impacto que esperamos ob-ter com o avano das abordagens aqui inauguradas. Trata-se de considerar as singularidades da realidade colonial e ps-colonial no que diz respeito discusso da desigualdade social e da mo-bilidade social.

    Tarcsio R. Botelho

    Marco H. D. van Leeuwen

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    IHOMOGAMIA SOCIAL

    NAHISTRIA*

    Marco H.D. van Leeuwen

    Ineke Maas

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    Introduo

    As identidades sociais dos cnjuges [...] esto entre os indicadores mais sensveis e agudos da comuni-dade ou dos sentimentos de classe. Quem casa com quem, sem buscar a alienao ou a rejeio de um grupo social, uma prova de fogo dos horizontes e fronteiras do que cada grupo social considera como tolervel e aceitvel, e uma indicao segura de onde esse conjunto traa a sua linha de pertencimento.1

    preciso que haja um casamento para reproduzir ou alterar uma estrutura de classe, como alega Thompson para a In-glaterra no sculo XIX. Kocka, em seu estudo sobre a formao das classes sociais na Alemanha, tambm observou que a sua es-sncia o processo simultneo de fechamento das barreiras con-jugais dentro de certos grupos sociais e de distino clara das barreiras com outros2.

    Dada a importncia para a histria social dos padres de casamento por classe, notvel que os historiadores tenham estudado a endogamia por regio e por faixa etria muito mais do que a endogamia por classe social.3 A endogamia por classe social tambm conhecida como endogamia social ou homo-gamia social (usamos aqui os termos como sinnimos, embora estritamente falando endogamia social se reira a casar-se den-tro da mesma classe e, portanto, pressupe a existncia de um nmero limitado de classes distintas , enquanto homogamia social se reira a casar-se com algum de status social aproxi-mado e, portanto, pressupe a existncia de uma escala cont-nua de status). Estudiosos de outras disciplinas, nomeadamen-te a sociologia, tm escrito mais sobre este assunto. Eles, mais do que os historiadores, tm lidado em maior medida com os padres contemporneos e seus determinantes do que com as tendncias de longo prazo que escapam aos dados de surveys. No entanto, os valiosos trabalhos dessa rea notadamente so-

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    bre os determinantes da endogamia social podem ser consul-tadas com proveito, uma vez que geram insights que podem ser testados com registros histricos, ampliando assim nossa compreenso dos processos de formao de classes no passado e tambm estabelecendo, ou questionando, a validade de certas noes tericas.

    Em geral, alguns grupos de questes-chave so recorrentes na literatura sobre casamento e classe social, e, para o que nos interessa aqui, em grande parte da bibliograia que lida com a desigualdade social. Um conjunto de questes sobre a endo-gamia por classe social concentra-se nas variaes geogricas e temporais dos padres de endogamia. Houve diferenas re-gionais em quem se casou com quem? E isso mudou ao longo do tempo? Se sim, esses padres regionais convergiram ou di-vergiram? Um segundo conjunto de questes incide sobre os determinantes da endogamia. Que fatores determinam quem casa com quem? E a importncia relativa desses fatores mudou ao longo do tempo? Um terceiro conjunto de perguntas refe-re-se permanncia da desigualdade social, tal como medida pela mobilidade social que uma dada sociedade permite aos seus membros. Socilogos que lidam com estratiicao social muitas vezes olham para o grau de mobilidade intergeracional de classe, ou mesmo para a mobilidade conjugal, para julgar a luidez social ou a abertura de uma sociedade.4 De posse de tais informaes, possvel olhar para um quarto e ltimo conjunto de questes acerca das consequncias da variedade de processos de formao de classe para as relaes sociais e pol-ticas. Pode-se especular, por exemplo, at que ponto diferenas importantes entre os pases nos padres de desigualdade so-cial, relaes de trabalho e conlitos sociais podem ser expli-cadas pelas diferenas na estratiicao social e na mobilidade social. Este tipo de pergunta foi colocada principalmente no que respeita mobilidade intergeracional, mas tambm pode ser feita em relao aos padres de casamento de acordo com as classes sociais. Por exemplo, de Karl Marx a Werner Sombart e outros, muitos estudiosos atriburam a ausncia de um grande

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    partido socialista nos Estados Unidos da Amrica em contras-te com muitos pases europeus maior permeabilidade nas suas fronteiras de classe social.5

    Dada a importncia da endogamia social para a histria social e do trabalho, uma sorte que hoje seja possvel realizar estudos de caso que lancem luz sobre uma srie de questes-chave a partir de pontos de vista comparveis. Ao contrrio do que acontecia anteriormente neste tipo de pesquisa, hoje pode-se fazer com que vrios estudos, de diferentes pesquisadores, utili-zem o mesmo esquema de classe social. Isto tambm faz com que seja possvel realizar uma anlise comparativa dos dados sub-jacentes a esses estudos de caso. No seria exagero airmar que estes trabalhos marcam o incio de um novo patamar no estudo comparativo em escala global sobre a escolha, no passado, do parceiro de acordo com a classe social.6

    A principal razo pela qual nenhum estudo comparativo sobre esse tema central na histria social tenha aparecido at agora o fato de que at recentemente era impossvel alocar para as mesmas classes sociais as mesmas ocupaes em diferen-tes regies e idiomas.7 Este problema foi recentemente entren-tado pelo desenvolvimento de duas ferramentas comparativas: HISCO (Historical International Standard Classiication of Occupa-tion) e HISCLASS. Tanto a HISCO (o esquema padronizado de codiicao de ocupaes) quanto a HISCLASS (o esquema de classe social baseada na HISCO) foram concebidas para atender necessidade de encontrar uma maneira de proceder anlise internacional da mobilidade social.8 No entanto, ambos (a codi-icao de ocupaes e o esquema de classes sociais) podem ser utilizados para muitas outras inalidades. Ocupaes formam o corao do mundo do trabalho e o mundo laboral central para a histria social e para a histria do trabalho. A homogamia social no passado pode ser estudada utilizando-se fontes histricas, no-meadamente os recenseamentos e os dados de registros vitais (incluindo certides de casamento), que esto disponveis no s na Europa mas tambm em outras partes do mundo. Ambas, HISCO e HISCLASS, podem ser usadas como instrumentos de

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    histria global e j foram testadas e aplicadas em diferentes par-tes do mundo.9

    Determinantes da endogamia social

    Os determinantes da endogamia por classe social podem ser agrupados de vrias maneiras. A diviso tripartite entre as preferncias individuais, as inluncias de terceiros e as limita-es estruturais impostas pelo mercado matrimonial frequen-temente utilizada10. Vamos usar a mesma estrutura, embora distinguindo um total de cinco grupos. O primeiro e o segundo grupos desses determinantes lidam com o mercado matrimonial. feita uma distino entre os fatores que inluenciam a proba-bilidade de encontrar candidatos ao matrimnio em uma dada localidade (pelo menos o suiciente para saber se eles podem ser cnjuges adequados), e os fatores de lidem com o grau em que os horizontes geogricos do casamento encolhem ou se expandem. Um terceiro grupo se relaciona com a presso social dos pais, dos colegas e parceiros da comunidade, favorecendo parceiros de certas classes sociais e rejeitando outros. O quarto grupo diz respeito autonomia pessoal o grau em que se pode resistir a essa presso. E, inalmente, h um quinto grupo: aquele das preferncias pessoais.

    Possibilidades de unio no mercado matrimonial

    A oportunidade de encontrar uma esposa em potencial muitas vezes vista como um fator importante para explicar por-que as pessoas se casam com algum semelhante a si mesmos11. O mercado matrimonial limitado a determinados contextos, como, por exemplo, o bairro onde se vive, e estes contextos j so, em certa medida, socialmente homogneos. Assim, algum acaba se casando com uma pessoa semelhante mesmo se ele no tm nenhum desejo especial de o fazer. A probabilidade de

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    unio pode ser dissociada em dois componentes: a probabilida-de de encontro dentro de uma determinada regio geogrica; e a probabilidade como uma funo do tamanho da regio em outras palavras, o horizonte de casamento. Comecemos com uma discusso sobre o primeiro componente.

    O casamento exige um encontro. No mundo contemporneo, os jovens podem se encontrar no jardim de infncia, em reunies familiares, na escola, na vizinhana, na igreja, atravs de clubes esportivos e outras associaes, durante as celebraes pblicas, nas atividades de lazer, no trabalho e na internet apenas para listar alguns dos pontos de encontro mais importantes que exis-tem hoje em dia. Tem-se airmado que hoje a escola e o trabalho so mais importantes na produo de casamentos socialmente homogmicos do que as redes familiares, e que os bairros pare-cem no produzir tal efeito12.

    Os jovens passam grande parte de sua juventude na escola e, assim, as pessoas que se encontram na escola formam uma reserva importante daqueles que se conhecem suicientemente bem para considerar a formao de um relacionamento.13 A es-colaridade tem, naturalmente, aumentado de forma dramtica em praticamente todos os pases do mundo nos ltimos dois sculos. A educao primria tornou-se obrigatria em muitos pases, elevando as suas taxas de participao para nveis extre-mamente elevados. Mais importante para a endogamia, o acesso educao secundria e terciria onde os participantes podem comear a procurar um parceiro aumentou em geral e em mui-tos pases tornaram-se mais universais, cobrindo todo o espec-tro da sociedade em um grau maior do que acontecia anterior-mente. Seria de se esperar que isto pudesse levar a maiores taxas de casamentos exogmicos, tanto quanto maior fosse a idade na qual as crianas fossem estratiicadas em diferentes nveis de ensino.14 Alm disso, muitas atividades de lazer so, de alguma forma relacionados com a escola15, seja porque so organizadas por elas prprias aulas de natao obrigatrias, por exemplo ou, por exemplo, porque crianas da mesma escola apoiam a sua equipe de futebol (hoje talvez mais do que no passado). Mesmo

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    quando no organizadas pelas escolas, as atividades de lazer so importantes pontos de encontro para adolescentes e ainda mais se tanto garotos quanto garotas esto ativamente envolvidos.

    O efeito da expanso educacional tem sido realmente ainda maior do que se poderia supor. As escolas na Europa dos sculos XVIII e XIX instruam as crianas nas virtudes da imobilidade das classes16, mas isso foi sendo feito em muito menor grau no sculo XX. Tem-se argumentado que os alunos que foram ensina-dos com valores no-conservadores so mais inclinados a desen-volverem uma propenso por casamentos no tradicionais17. No entanto, diferenas importantes podem ter existido entre pases como a Inglaterra com um maior grau de educao baseada nas classes sociais, dada a existncia de escolas pblicas caras e a Holanda onde a educao foi menos inluenciada pela classe e muito mais por divises baseadas na religio.

    Muitas pessoas acham seus cnjuges no trabalho, e neste aspecto as formas variadas e historicamente mutantes do mer-cado de trabalho poderiam ter tido um impacto sobre os padres de endogamia, embora ainda saibamos muito pouco sobre como isso possa ter funcionado. Um jovem empregado em um local de trabalho pequeno e modesto encontraria menos mulheres do que outro trabalhando em uma grande fbrica ou em uma in-stituio moderna, como uma estao de correios ou um banco, onde no s os pssaros so mais numerosos como tambm so de penas diferentes. A partir de meados do sculo XIX, o sur-gimento da indstria e de outros mercados de trabalho grandes e baseados na meritocracia interna levou, portanto, ceteris paribus, a uma maior probabilidade de se casar fora de sua prpria classe social.18 Outros desenvolvimentos no mercado de trabalho, tais como mudanas nos padres de migraes relacionadas com o trabalho, tambm poderiam ter inluenciado a homogamia so-cial.19

    Nas cidades, a composio social dos bairros outro fator que inluencia os padres de casamento por classe social, por-que muitas pessoas se casam com algum que vive por perto. Assim, mesmo se eles no tm inteno de se casar dentro de

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    sua prpria classe social, muitos, no entanto, vo faz-lo se o seu bairro constitudo por pessoas que trabalham no comrcio ou no mesmo tipo de fbrica, por exemplo20. Ao longo dos ltimos dois sculos, uma parte crescente da populao mundial passou a viver em cidades e, atualmente, pela primeira vez na histria, mais pessoas vivem em reas urbanas do que nas reas rurais. A composio social dos bairros urbanos pode, portanto, ter um impacto considervel sobre a endogamia social no mundo. No entanto, sabemos muito pouco sobre as mudanas de longo pra-zo na segregao scio-espacial nas cidades. Assim, possvel, por exemplo, que em algumas cidades os bairros fossem mais parecidos h dois sculos (com a segregao espacial dentro de bairros sendo mais prevalente do que entre bairros, com, por exemplo, as classes altas vivendo nas ruas principais, as classes mdias em ruas laterais, e os pobres nas ruas laterais de ruas la-terais) do que atualmente (com poucos bairros ricos, um grande nmero de bairros mistos, e uma maioria de bairros pobres). Se assim for, ento para essas cidades as mudanas na segregao scio-espacial teriam favorecida cada vez mais a endogamia so-cial, mantendo-se iguais todos os outros fatores. No podemos dizer, no entanto, em quais cidades esse processo ocorreu.

    A possibilidade de encontrar um parceiro de um grupo so-cial particular tambm depende do tamanho dos vrios grupos sociais e do seu grau de isolamento geogrico21. Se o encontro um fenmeno aleatrio, as chances de encontrar algum de uma determinada classe social so o produto do tamanho relativo do prprio grupo e do tamanho relativo da outra classe social. Quanto mais heterognea for a populao, menores as chances de encontrar algum da mesma classe social. Se o encontro im-plica o acasalamento o que, claro, no se faz invariavelmente , um maior grau de heterogeneidade social implicaria mais exo-gamia. No apenas o tamanho dos vrios grupos sociais que importa; tambm importa o grau em que eles vivem em isola-mento geogrico. As chances de se casar com um pescador do mar so, obviamente, menores para uma mulher que vive no in-terior do que para uma que viva no litoral, e a probabilidade de

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    se casar com um fazendeiro maior para as ilhas de agricultores (j que eles tambm vivem no campo) do que para quaisquer habitantes da costa ou para os moradores de centros urbanos.

    Alm disso, uma populao que heterognea do ponto de vista religioso (ou tnico) provavelmente mais exogmica do ponto de vista social porque os candidatos potenciais ao casa-mento so selecionados em primeiro lugar com base na religio (ou na etnia), ocorrendo menos casos, se existir algum, de par-ceiros de casamento no mesmo grupo social. Isto poderia levar a se esperar que um pas religiosamente (ou etnicamente) mais diversiicada tivesse uma maior exogamia do que um pas me-nos diverso, e que um pas que se tornasse mais diversiicadas ao longo do tempo testemunharia um aumento na proporo de casamentos exogmicos.

    Horizontes geogricos do casamentoA possibilidade de encontrar um parceiro adequado para o

    casamento no depende apenas do grau em que uma pessoa se torna familiarizado com os cnjuges potenciais em uma regio, mas tambm da alterao das fronteiras do que constitui uma regio. Muitos estudos, em todas as partes do mundo, tm de-monstrado que a maioria das pessoas tende a se casar com al-gum que vive por perto. Estando a p em terreno acessvel isto , sem brejos, rios, montanhas ou desiladeiros , pode-se talvez caminhar vinte quilmetros para outra aldeia e percorrer a mes-ma distncia de volta no mesmo dia. Essa distncia se aproxima do limite de coniana que separava o universo conhecido do mundo inseguro que existia para alm dela. Se o horizonte dos casamento se expandisse, jovens pretendentes seriam capa-zes de encontrar mais cnjuges potenciais. O aumento dos meios de transporte e da sua velocidade, provocado por novas e melho-res estradas e canais, e o surgimento de novos meios de transpor-te, como o trem, a bicicleta, o bonde e o automvel, trouxeram ao alcance uma gama mais ampla de potenciais cnjuges. Estes novos meios de transporte aumentaram a distncia que se pode-

  • 25

    ria viajar durante o mesmo dia, e assim ampliaram o horizonte geogrico do casamento.

    No decorrer dos ltimos dois sculos, o cidado solteiro me-diano teria encontrado mais parceiros de casamento de sua pr-pria classe social e de outras classes do que anteriormente. Ele ou ela tambm se envolveram mais frequentemente na delicada arte de escrever cartas de amor. Nos ltimos dois sculos, o nmero per capita de cartas e cartes postais escritos aumentou muito22. Em um fenmeno mais recente, milhes de pessoas mesmo em aldeias geograicamente remotas esto entrando em contato uns com os outros pela internet. Sites de encontro, onde homens e mulheres especiicam os seus desejos e apresentam o que eles tm para oferecer (de um modo favorvel), abundam, mas estes no so de modo algum a nica maneira como os contatos so estabelecidos pela internet. Amigos e parceiros matrimoniais em potencial, embora remotos, esto separados por apenas um cli-que de mouse, e seu nmero parece quase ilimitada. No passado, outro fator importante a reunir jovens de diferentes regies era o exrcito. A conscrio militar ampliava o horizonte de casamen-to dos homens jovens de uma regio, colocando-os em contato com jovens de outros lugares e de outras classes sociais, nome-adamente quando os ilhos dos agricultores acampavam perto de cidades. Essa expanso geogrica do mercado de casamento poderia muito bem ter aumentado os contactos entre as classes sociais, levando assim a mais exogamia social.

    Embora isso possa muito bem ter sido a regra geral, a am-pliao do horizonte de casamento tambm poderia ter o efeito oposto. Os membros de pequenos grupos sociais ou grupos grandes em tamanho mas dispersos por todo o pas poderiam ser capazes de viajar longe o suiciente para encontrar cnjuges potenciais de sua prpria classe, enquanto que anteriormente poderiam ter sido preparados para aceitar algum de outra clas-se. Este cenrio implica em um forte desejo de se casar dentro da sua prpria classe social, um desejo frustrado pela falta de candidatos adequados. Embora se possa imaginar vrios tipos de grupos para os quais essa airmativa talvez tenha sido ver-

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    dadeira nomeadamente as minorias religiosas e tnicas23 , mais difcil imaginar que seja o caso para todas as classes sociais, com exceo da elite e dos agricultores mais ricos, onde o desejo de preservar a propriedade familiar ou o status social era uma questo primordial.24

    Presso social

    Os pais, colegas e outras pessoas ou instituies comunit-rias desempenham um papel importante no processo de casa-mento. Em cada pas, no passado e no presente, a permisso dos pais tem sido necessria se os ilhos querem se casar antes que eles alcancem a idade para tal, e essa idade tem variado entre os pases e ao longo do tempo. Na verdade, houve sociedades, tais como a China Imperial, onde as crianas estavam legalmente sujeitas ao poder paternal at que seus pais morressem.25 Para alm deste poder formal que lhes era concedida por lei, os pais geralmente tinham o poder derivado da fora do costume, ou porque eles controlavam os recursos da famlia. Os pais podiam recusar-se a receber, hospedar ou acolher em casa um cnjuge em potencial; eles podiam envergonh-lo(a) ou tentar impedir o casamento no contribuindo para as despesas efetuadas pelos noivos na criao de um agregado familiar autnomo (como era prtica comum para recm-casados na Europa), ou ameaando deserd-los, por exemplo. Os pais de classes proprietrias pode-riam exercer mais presso do que os das classes trabalhadoras. A maneira habitual de se tornar um agricultor, por exemplo, era haver nascido em uma famlia de agricultores e aprender aju-dando o prprio pai para, mais tarde, herdar a fazenda; alterna-tivamente, podia-se casar com a ilha de um fazendeiro que no tinha nenhum ilho como herdeiro.26 Da mesma forma, o ilho de um comerciante iria trabalhar no escritrio de seu pai para aprender o ofcio e, gradualmente, assumir mais e mais o traba-lho de seu pai at ele inalmente se retirar do negcio. Assumin-do que os pais normalmente preferem que seus ilhos se casem com algum de sua prpria classe, a autoridade dos pais deveria

  • 27

    levar endogamia social, e o enfraquecimento dos vnculos ju-rdicos e materiais entre pais e ilhos ao longo dos ltimos dois sculos deveriam ter conduzido a uma maior exogamia.27

    Se os pais queriam inluenciar a escolha do parceiro de seus ilhos, eles poderiam faz-lo de modo mais eicaz quando ambos ainda estavam vivos. Se um ou ambos os pais morriam antes que a criana atingisse a idade nbil, a sua inluncia seria diminuta ou inexistente. Da mesma forma, porm, com um ou ambos os pais falecidos, a presso sobre a criana para que ela se casasse pode ser aumentada (uma boca a menos para alimentar), mesmo que isso signiicasse se casar em uma classe menos desejvel. Na verdade, vrios estudos tm sugerido que as taxas de endogamia para crianas com dois pais sobreviventes eram superiores aos de rfos ou semi-rfos28. Talvez o efeito da falta de um dos pais variasse de acordo com o gnero. Admitindo-se que os vivos se recasavam com mais frequncia do que as vivas, os rfos cujas mes morreram eram mais propensos a terem uma madrasta do que os rfos cuja pai havia morrido. Se isso criou tenses (no-meadamente, como s vezes se airma, entre ilhas e madrastas), esta teria sido uma razo para contrair o matrimnio a im de se deixar a casa dos pais o mais rapidamente possvel, mesmo que o cnjuge no fosse inteiramente desejvel.

    Em algumas sociedades, os pais exerciam diferentes poderes sobre as ilhas em relao aos ilhos. Na Sucia do sculo XIX, por exemplo, as mulheres solteiras nunca atingiam a maiorida-de; independentemente da sua idade, por lei eles tinham que pe-dir permisso para casar a um parente do sexo masculino (geral-mente o pai). Estava longe de ser uma regra global, no entanto, que as ilhas estivessem sujeitas a uma maior autoridade dos pais do que os ilhos. Se a transmisso do status ou da propriedade da famlia era uma questo primordial, e se isso acontecia atravs da linha masculina por exemplo, onde as exploraes agrcolas eram entregues ao ilho mais velho , ento pode-se imaginar que os pais queriam ter uma inluncia considervel sobre com quem este ilho se casaria, mas por outro lado se contentariam com uma menor inluncia sobre o casamento dos seus outros

  • 28

    ilhos. O efeito do poder parental sobre a endogamia social pode, portanto, divergir de acordo com o sexo e o sistema de herana.

    Mesmo que um jovem casal tivesse sorte o suiciente para no sentir as limitaes do poder parental, eles ainda estavam sujeitos ao escrutnio de seus pares. Estes pares poderiam apro-var uma unio potencial com algum do mesmo grupo; mas quando os casamentos eram considerados inaceitveis, devido a diferenas de idade ou a grandes diferenas na regio de ori-gem, na religio ou na classe social, eles poderiam reprovar e humilhar o rapaz ou a moa em questo, e talvez at espanc-los, como aconteceu em algumas regies.29

    O trabalho noturno por vezes referido pelo termo francs veilles era comum em toda a Europa30. Nas longas noites de inverno, as moas solteiras da aldeia se juntavam a suas mes e pretendentes potenciais em um celeiro comum para trabalhar (principalmente a iar), cantar e conversar, talvez danar, comer e beber. O que o salo foi para a jeunesse dore urbana, o veille era para as populaes rurais, exceto que para o primeiro era apenas lazer, enquanto o segundo tambm tinha que trabalhar. Costumava-se dizer que os casamentos eram feitos nas veilles.

    Em grandes partes da Europa, existia uma tradio de agregao, ou de noites que serviam para o cortejar, em que os grupos de jovens saam para visitar jovens mulheres solteiras, com a inteno de conhec-las e, inalmente, de dormir com elas como um preldio para o casamento.31 Esta prtica era restrita s reas rurais. Havia uma presso para se casar com o ilho de um agricultor da mesma aldeia, em vez de algum de outra aldeia ou com um lenhador itinerante oriundo de uma regio comple-tamente diferente. Filhos dos agricultores eram autorizados a participar de fraternidades rural de garotos mais velhos que se reuniam nas aldeias, principalmente para organizar o namoro. Nas noites de sbado, eles se reuniam e saam juntos para convi-dar as meninas.

    O fato de a escolarizao ter se tornado mais universal e mais longa implica que a durao da presso dos colegas na es-cola teria aumentado. Sua extenso, todavia, pode muito bem

  • 29

    ter diminudo j que a escolaridade agora abrangeria todos os grupos sociais em maior grau do que antes e a maioria das esco-las j no instrua os alunos sobre as virtudes saudveis dos rgi-dos limites de classe. Porm, a durao da presso dos colegas, em geral, aumentou ainda mais do que a simples expanso no sistema educacional poderia sugerir, devido ao crescimento nos sculos XIX e XX de uma cultura jovem institucionalizado, com clubes desportivos e similares32.

    Outra forma de presso pblica era ouvir os sermes na igreja. O sacerdote, ou outro ministro religioso, podia ter uma viso mais liberal da endogamia, ou alertar para os perigos de se casar um degrau acima do seu. Em casos extremos, ele po-dia at nomear o culpado. Suas opinies reletiam no apenas as suas convices pessoais, mas tambm os ensinamentos de sua Igreja. E algumas religies podiam ser mais restritiva do que outras quando se tratava de casamento. Tem-se argumentado, por exemplo, que o catolicismo tende a ser mais conservador do que o protestantismo, particularmente no que diz respeito ao ca-samento, embora ambas as religies tenham presumivelmente tornado-se menos conservadora ao longo do tempo33.

    Pode-se esperar que o tamanho e a homogeneidade de uma comunidade tenham inluenciado o grau em que ela poderia exercer presso sobre os no-conformistas. Em uma pequena comunidade homognea no que dizia respeito s normas de es-colha de parceiros, a presso para se conformar teria sido maior do que em uma comunidade maior, onde se poderia escapar do controle social, ou onde vrios conjuntos de normas tenham co--existido.

    Alguns estudiosos tm argumentado que o poder de pais, dos colegas e da comunidade tem diminudo ao longo dos lti-mos sculos. Segalen escreve:

    Na sociedade tradicional, os problemas que hoje seriam considerados pessoais, por ter a ver com as intimidades do corao ou do corpo, eram da res-ponsabilidade da comunidade. A formao do casal,

  • 30

    bem como os assuntos sobre os prprios jovens, en-volviam as duas famlias e todo o grupo social. [...]. Consideraes familiares pesavam muito sobre os indivduos, que tendiam a desaparecer diante dos objetivos mais amplos de melhoria econmica e so-cial da linhagem familiar. Nestes termos, o casal apenas um elo na cadeia que levava ao crescimento do patrimnio ou resistncia fragmentao da propriedade fundiria por meio de herana. A in-dividualidade do casal, ou melhor, a sua tendncia para a individualidade, esmagado pela instituio familiar, e tambm pela presso social exercida pela comunidade alde como um todo.34

    Shorter airma queHavia uma precedncia dos costume sobre a esponta-neidade e a criatividade. Estas pequenas coletividades, seja a guilda, a linhagem familiar ou a aldeia como um todo, reconheciam corretamente que a inovao em demasia poderia tocar a campainha da morte, e assim eles insistiram [em] ... velhas formas de propor casa-mento. [...]. Uma vez que o corao comeou a falar, ele comeou a dar instrues muitas vezes inteiramente incompatveis com os princpios racionais do interesse familiar e da sobrevivncia material sobre os quais a pequena comunidade estava organizada. Case-se com a mulher que voc ama, o corao pode dizer, mesmo que seus pais desaprovem.35

    A tese de Shorter sobre a revoluo sexual pertence a uma escola de pensamento denominada teoria da modernizao. Esta escola h muito tempo dominou a pesquisa sociolgica em mo-bilidade social, incluindo a mobilidade conjugal e a endogamia. No campo da endogamia, Goode foi provavelmente o mais elo-quente porta-voz da teoria da modernizao. Ele escreveu:

  • 31

    Com a industrializao, os sistemas familiares tra-dicionais vo se quebrando [...]. Ancios no con-seguem mais controlar as novas oportunidades econmicas ou polticas, de modo que a autorida-de familiar escorre por entre as mos de tais chefes de famlia. O jovem noivo pode obter sua noiva por conta prpria, e no precisa obedecer a ningum fora da sua unidade familiar, uma vez que apenas o desempenho no trabalho relevante para o seu avano. Eles no precisam coniar em pessoas idosas da famlia para aprender sobre o trabalho, j que as escolas, a fbrica, a plantation ou a mina vo ensin--los as novas habilidades [...]. Nem sequer precisam de continuar a trabalhar na terra, ainda na posse dos ancios, j que os empregos e as oportunidades po-lticas esto na cidade. Assim, a industrializao est apta a prejudicar gradualmente os tradicionais siste-mas de controle familiar e de intercmbio.36

    Autonomia pessoal

    A partir desse esboo, pode parecer que, na escolha de seus parceiros, os homens e mulheres jovens no foram mais do que o barro moldado pelas mos de outros. Claro que isso no era ver-dade. Embora a presso social pudesse tornar mais difcil casar-se com algum fora de sua classe social, raramente isso era imposs-vel. Ao invs de aprisionar, deixar passar fome ou matar algum que no se conformava com as regras, eles eram forados a pa-gar um preo na forma de boatos, de olhares vis, de comentrios desagradveis, de amizades perdidas, da recusa de assistncia, e de serem deserdados. Aqueles suicientemente determinados podiam decidir que este era um preo que valia a pena pagar. Pa-gar tal preo no era inteiramente uma deciso do corao, mas tambm dependia de seus recursos pessoais para suportar tal presso comunitria. Um desses recursos foi a possibilidade de encontrar trabalho assalariado em uma idade precoce, permitin-

  • 32

    do que se escapasse da casa dos pais e se estabelecesse de modo independente ou pelo menos se poderia permanecer com os pais, mas com maior independncia. Tem sido observado, por exemplo, que a disponibilidade de trabalho fabril para homens e mulheres jovens com salrios que atingiam seu pico no incio da trajetria de vida deu-lhes margem de manobra considervel para fazer o que eles queriam37. Estes recursos pessoais poderiam ser diferentes de acordo com a classe social, a regio e o perodo. A existncia de trabalho nas fbricas de algumas regies, e no em outras, e o aumento geral na disponibilidade desse trabalho ao longo do tempo teriam favorecido aqueles que nasceram mais tarde e os nascidos em reas industriais.

    Um fator at agora ausente da discusso a possvel inlu-ncia dos regimes de seguridade social, com base em benefcios concedidos ou nos recursos pessoais ou em seguros garantidos por parte do Estado ou de seguradoras. Enquanto algumas par-tes da Europa foram caracterizados pela ajuda aos pobres presta-da por agncias pblicas e privadas, bem como por seguradoras (especialmente em bases mutualistas), em momento to precoce quanto ao inal da Idade Mdia, existiram variaes acentuadas entre regies, e grandes mudanas ocorreram ao longo do tem-po. Ainda hoje, quando o mercado de seguridade social muito mais forte do que tem sido h dcadas, quase todos na Europa se voltam ao Estado para obter apoio inanceiro quando se adoece ou se chega velhice, e, quando verdadeiramente necessitados, a maioria deles vai receber tal assistncia. Embora a ajuda de fami-liares, amigos e vizinhos ainda seja muito importante em certos aspectos no que respeita ao tempo, amor e ateno dispensados aos doentes e idosos, por exemplo , a ascenso desses sistemas pblicos deixou as pessoas menos dependentes de suas famlias (e da Igreja para o que nos interessa: na Europa continental, a ajuda aos pobres tendeu a ser regulamentada em grande medida pela Igreja at meados do sculo XX). Pode-se especular ento que havia uma correspondncia inversa entre o grau em que es-ses regimes de seguridade social existiram38 e a necessidade de aquiescer com a presso parental e comunitria em assuntos to

  • 33

    importantes como a escolha do cnjuge. Alm disso, os pais po-deriam se dar ao luxo de deixar os ilhos se casarem com quem quisessem se eles deixassem de considerar seus ilhos como ne-cessrio para o seu prprio bem-estar futuro39. Este pode ter sido um fator a contribuir para as diferenas entre pases e para um afrouxamento gradual, ao longo do tempo, do controle da coleti-vidade em matria de casamento.40

    Preferncias pessoais

    Pode-se certamente ser perdoado por algum grau de ceti-cismo em relao nossa lista de fatores que determinam a es-colha do cnjuge. De fato, pode-se argumentar que preferncias pessoais desempenham um papel importante, e talvez um papel maior do que qualquer outro dos outros fatores mencionados.41 E certamente seria correto atribuir importncia a assuntos do co-rao e outros desejos ntimos. No entanto, muitas dessas foras ntimas da atrao no so apenas difceis de medir; eles tambm podem variar amplamente entre os indivduos da mesma classe social. Historiadores e socilogos raramente, ou nunca, estuda-ram a beleza, a bondade, o humor ou a boa ndole como determi-nantes de padres de casamento. Tambm no vamos fazer isso aqui. Isto seria uma grave omisso apenas se essas caractersticas diferissem de uma classe social para outra.

    Quase todos os estudos de endogamia mostram que as pes-soas eram mais propensos a se casar com outras da mesma classe social, e que isso no pode ser explicado simplesmente pelo ta-manho da classe social ou pelo acaso.42 Grande nmero de outros fatores desempenharam seu papel. O que nos interessa aqui a questo de saber se, na ausncia desses outros fatores, homens e mulheres jovens ainda preferem casamentos socialmente endo-gmicas. Para responder a esta pergunta, preciso considerar o que distingue uma relao endogmica ntima duradoura de ou-tra exgena. Um ponto importante que os indivduos da mes-ma classe social esto mais familiarizados com as atividades que caracterizam a sua classe. Alm disso, esses indivduos so mais

  • 34

    propensos a compartilharem um entendimento similar um do outro e do mundo, o que pode tornar um casamento mais fcil (outros, ao contrrio, preferem um parceiro com gostos diferen-tes, a im de tornar seu casamento mais excitante). No s um casamento socialmente homognea aumenta a probabilidade do casal ter os mesmos gostos; tambm torna mais fcil realizar coisas em comum, conduzir uma casa juntos, criar os ilhos (e ter a mesma atitude em relao ao parceiro). E, inalmente, pode ser mais fcil coniar em algum do seu prprio crculo social coniar em seus gostos, seu carter e sua capacidade de ganhos futuros do que algum estranho a ela.

    Embora no seja fcil de formular e testar hipteses sobre as preferncias deste tipo no passado, duas hipteses se apresen-tam. Seguindo Bourdieu, Kalmijn argumenta que, ceteris paribus, a maioria das pessoas prefere um parceiro que compartilha nos-sos valores e gostos, nossas prticas culturais embora muitos no se importariam de ter um parceiro mais rico, ou seja, algum de uma classe economicamente superior43. A outra noo que po-demos investigar que os indivduos das classes proprietrias esto inclinados a se casar entre si. Ter terra e gado torna homens e mulheres provenientes da agricultura candidatos atrativos ao casamento. Casamentos entre agricultores eram especialmente importantes uma vez que, na conduo de uma fazenda, a mu-lher era necessria para cozinhar, ordenhar e preparar o feno, enquanto o marido faria o restante do trabalho44. A endogamia entre os agricultores tambm foi importante porque s vezes deu a eles um meio de ampliar a fazenda, ou de mant-la dentro da famlia.45 O mesmo pode ser dito para as classes urbanas proprie-trias.46 Atravs de cartas, dirios e fontes semelhantes, sabemos que a elite holandesa do sculo XIX, por exemplo, via o casa-mento em termos mais exaltados e romnticos, mas considera-es sobre o status e a propriedade nunca estiveram muito longe de suas vistas47. A questo da comensurabilidade do amor e da propriedade um ponto interessante. A elite holandesa pensava que se casar por dinheiro era vulgar, enquanto se casar por amor mas sem dinheiro era uma tolice. O ideal seria ter os dois, e os

  • 35

    pais icavam muito atentos criao de um crculo de candidatos potenciais ao casamento que correspondesse ao seu status; um desses candidatos, esperava-se, seria amvel.

    De acordo com algumas teorias, a importncia das prefern-cias pessoais na escolha do parceiro para o casamento mudou ao longo do tempo. Shorter airma que aps o im do sculo XVIII o amor romntico ganhou terreno no mundo ocidental: a mudan-a mais importante no namoro nos sculos XIX e XX foi a onda do sentimento [...]. As pessoas comearam a colocar carinho e compatibilidade pessoal no topo da lista de critrios na escolha de parceiros conjugais. Estas novas normas se articularam no amor romntico.48 Se assim for, seria de se esperar um declnio da homogamia por classe social em relao s caractersticas eco-nmicas, mas talvez no em relao s caractersticas culturais.49

    Concluso

    Grande parte da literatura acerca da endogamia social sobre os padres e seus determinantes; h relativamente pou-cos trabalhos sobre suas conseqncias, e menos ainda sobre as mudanas de longo prazo. Isso talvez no seja surpreendente. Grande parte da teoria sobre endogamia social se origina na so-ciologia, e os dados que os socilogos costumam usar dados de surveys no cobrem perodos de tempo muito longos. Mas dados de longo prazo existem no campo da histria. Registros de casamento, dados censitrios e outros materiais esto dispo-nveis em muitos pases em todo o mundo para longos perodos de tempo, e estas fontes podem ser usados para testar e reinar teorias sobre a endogamia social.

    Em teoria, existem, evidentemente, vrios grupos de fatores que determinam a endogamia. Pode-se discernir sua fora relati-va ao longo do tempo relacionando-se os padres de endogamia em pases e perodos distintos com a robustez dos indicadores dessas determinantes, que tambm variaram por pas e ao longo

  • 36

    do tempo. Vale a pena depurar as hipteses quanto s mudanas na endogamia social ao longo do tempo que surgiram a partir de nossa reviso da literatura - mesmo porque a literatura lida mais com as estruturas e os determinantes do que com os pro-cessos ao longo do tempo e suas causas. O Quadro 1 apresenta estas hipteses de uma forma estilizada. Embora esta apresenta-o no leve em conta muitos fatores complicadores, ela serve a um propsito til e, esperamos, ir ajudar outros pesquisadores a identiicarem ideias simples que possam ser testadas com os dados histricos.50

  • 37

    QUADRO 1

    Hipteses sobre as mudanas na endogamia social ao longo do tempo

    Efeito sobre a endogamia social

    Mudanas glo-bais nas macro--caractersticas ao longo do tempo

    Mudanas resultantes da endogamia social ao longo do tempo

    Probabilidade de encontrar algum de outra classe social

    Universalizao do ensino

    - + -

    Vida associativa + + +

    Diversidade tnica/religiosa

    - ? ?

    Mercado de tra-balho moderno

    - + -

    Segregao scio-espacial

    + ? ?

    Horizonte de casamento

    Meios de trans-porte

    - + -

    Meios de comu-nicao

    - + -

    Servio militar - + -

    Presso social

    Controle dos pais

    + - -

    Tradies comunitrias

    + - -

    Controle pelo grupo de pares

    + ? ?

    Mortalidade adulta

    + - +

    Autonomia pessoal

    Independncia econmica em idade precoce

    - + -

    Regimes de seguridade social

    - + -

    Preferncias pessoais

    Noes de amor romntico

    - + -

  • 38

  • 39

    IIFAMLIA, HISTRIA

    EREDES SOCIAIS

  • 40

  • 41

    Introduo

    Na dcada de 1950, o antroplogo John A. Barnes realizou um detalhado estudo etnogrico da vida social de Bremnes,

    uma pequena parquia de pescadores da costa norueguesa. A pesquisa resultou em um artigo que se tornaria um clssico da chamada Escola de Manchester, ao demonstrar que numa so-ciedade fortemente igualitria como a norueguesa, as desigual-dades sociais no eram resultado das posies de classe, mas do acesso diferencial informao e recursos resultante de relaes face a face de amizade, parentesco, vizinhana e contatos infor-mais. Barnes deiniu esse campo interacional especico, difuso, sem fronteiras claras e sem organizaes coordenadoras, como uma rede social:

    Cada pessoa est em contato com outras, e algumas delas no. De modo similar, cada pessoa tem certo nmero de amigos, e estes amigos tm seus prprios amigos. Alguns desses amigos conhecem-se uns aos outros, outros no. Considero conveniente chamar de rede um campo social como esse.1

    Para Barnes e seus seguidores, a noo de rede social era uma alternativa terica rigidez das anlises estrutural-funcio-nalistas ento em voga. Embora o uso da expresso no fosse propriamente novo, Barnes apontava para uma srie de possibi-lidades interessantes de anlise situacional que tomavam como fatores explicativos da dinmica social no apenas os atributos individuais ou grupais, mas tambm as coniguraes relacio-nais em sua luidez. Diferentes tipos de conigurao de rede deiniam constrangimentos e oportunidades distintos de acordo com as posies ocupadas pelos atores no interior da rede. Bar-nes sugeria tambm um mtodo de anlise, baseado na observa-o participante de indivduos-em-relao em situaes concre-

  • 42

    tas com o objetivo de identiicar os padres especicos de relao entre os atores.

    O conceito de rede social, tal como deinido por Barnes, ocuparia um lugar central na srie de estudos etnogricos em contextos urbanos conduzidos pelos membros da chamada Es-cola de Manchester na frica, entre as dcadas de 1950 e 19702. Sua principal virtude era oferecer uma chave para a interpreta-o das complexas realidades multiculturais em mudana das cidades africanas. Associado a essa tradio, o clssico estudo de famlias londrinas de Elisabeth Bot tambm demonstrava a fecundidade da nova abordagem, ao explorar as relaes entre a morfologia das relaes e a conigurao dos papis sociais3.

    Ao lado dessa tradio de anlise de redes de corte antropo-lgico, desenvolveu-se outra de modelagem formal de redes so-ciais. No campo da sociologia norte-americana, principalmente, os desenvolvimentos formais da Social Network Analysis (SNA, daqui em diante) partiam fundamentalmente da sociologia in-teracional de Georg Simmel4 e do trabalho pioneiro de Jacob Levi Moreno, criador dos mtodos sociomtricos e do sociograma como mtodo de visualizao de dados relacionais5. Em ins dos anos de 1940, essa tradio passa a ganhar soisticao tcnica e metodolgica crescente, graas incorporao do arsenal da teoria matemtica dos grafos6. Em funo diiculdades de pro-cessamento de grandes volumes de informao relacional, e de circunscrio dos limites das networks, at os anos de 1970 os es-tudos sociolgicos e de psicologia social dessa tradio tende-ram a se concentrar na anlise de ego-networks de escolhas in-terpessoais de grupos relativamente restritos, seja em contextos experimentais, seja colhendo dados por meio de questionrios. A miniaturizao do objeto, entretanto, teve como contraparte uma rigorosa formalizao e operacionalizao dos conceitos-chave, produzindo um vocabulrio conceitual e metodologias de anli-se rigorosas e passveis de mensurao.

    A SNA procura analisar os padres emergentes nos laos en-tre indivduos, grupos e organizaes, em diferentes escalas, da microanlise das relaes interpessoais dinmica dos sistemas

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    globais7. Para alguns autores, ela constituiria a chave paradigm-tica para a articulao dos nveis microinteracionais e macroes-truturais, o ponto de partida para uma sociologia relacional8. Charles Tilly, em sua vasta obra de interseco de sociologia e histria, sugeriu a necessidade de inventrios sistemticos das estruturas relacionais, e suas variaes no tempo e no espao, argumentando que desigualdades relacionais importam tanto ou mais que desigualdades categricas, e que ambas relacionam-se em padres complexos9.

    Embora no constitua propriamente uma teoria social (so luidas as fronteiras entre teoria, metodologia e tcnica na SNA), a SNA parte de algumas premissas bsicas sobre as relaes en-tre agncia e estrutura social10. O pressuposto bsico que atores e suas aes so interdependentes, e que os diversos tipos coni-guraes de laos em que os atores esto imersos so canais para luxos de recursos materiais, informacionais e sociais.

    Para anlise da morfologia e dos padres interacionais no interior de uma rede, a SNA desenvolveu um vocabulrio conceitual especico, tcnicas de representao e amostragem prprias, e um conjunto de medidas rigorosamente deini-das11. A singularidade da SNA est em sua nfase primeira nas relaes, com ateno secundria aos atributos dos atores. Isso no signiica dizer que os atributos (gnero, idade, cor, renda etc.) sejam irrelevantes: o que se airma que seu signi-icado social redeinido pelas posies no interior das redes sociais. O objetivo central da SNA identiicar e interpretar coniguraes de vnculos e contatos sociais entre atores. As ferramentas analticas da SNA podem ser aplicadas a diferen-tes tipos de atores e relaes. Atores podem ser indivduos, famlias, irmas, organizaes, movimentos sociais, regies, pases etc. Atores esto tambm frequentemente envolvidos em mltiplas relaes, de vnculos fortes ou contatos eventu-ais, como parentesco, amizade, crdito, transaes de merca-do, ailiao poltica ou religiosa etc. Um dos seus objetivos centrais tambm compreender a interpenetrao, ou sobre-posio, de diferentes tipos de laos.

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    A SNA lutua entre duas unidades de anlise: a das redes ancoradas em um indivduo e sua perspectiva (ego-networks), e a das redes sociais totais (ou de mltiplos egos), envolvendo a totalidade dos laos identiicados, por exemplo, para uma unida-de organizacional ou territorial12. No primeiro caso, a literatura tendeu a acentuar como a anlise de redes ilumina as atividades manipulativas dos atores em situaes concretas. No segundo, os autores concentraram-se em mostrar como coniguraes de rede moldam os comportamentos e a percepo cognitiva dos atores, conigurando a estrutura social.

    Diferentemente das mensuraes tabulares e correlaes entre variveis dos mtodos estatsticos convencionais, em que colunas ou linhas representam frequncias de casos ou atributos, os dados da anlise de redes tm a forma de matrizes de adjacn-cia, em que linhas e colunas representam os mesmos casos, e em que cada clula descreve a ausncia/presena de relao entre as unidades. Matrizes de adjacncia podem ser transformadas em diagramas espaciais bi ou tridimensionais que permitem a inspe-o visual dos padres de relao entre os atores13.

    Grafos representam visualmente a arquitetura de uma rede, combinando conjuntos de vrtices e linhas entre pares de vr-tices. Atores so representados por vrtices, enquanto relaes so representadas por linhas e arcos. Grafos podem ser dirigidos (arcs) ou no dirigidos (edges), simtricos ou assimtricos. Os gra-fos podem representar as relaes entre um conjunto de atores (one-mode networks) ou dois tipos de atores/eventos (two-mode ne-tworks). Atributos discretos e contnuos podem ser representados por convenes aplicadas s formas, cores, densidades, rtulos etc. Networks consistem, pois, na representao simultnea de grafos e atributos dos vrtices.

    Partindo dessas convenes notacionais, as ferramentas de SNA permitem formas de anlise e representao de alguns dos objetos e problemas centrais das cincias sociais e da histria: os padres de interao de grupos sociais, comunidades, organiza-es, mercados, relaes de poder, luxos de migrao, mobili-dade social etc. Em um artigo pioneiro, Barry Wellman e Charles

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    Weterell argumentaram que a abordagem de redes era particu-larmente til para o entendimento da organizao das relaes de parentesco e estruturas ocupacionais de comunidades hist-ricas14. Poderamos acrescentar sua lista as relaes interpesso-ais cruzadas, tais como amizade, compadrio, migrao, crdito, movimentos sociais e relaes de clientela.

    Os historiadores, em geral, apropriaram-se da noo de rede social como uma metfora para a complexidade e extenso dos vnculos relacionais, raramente utilizando o vocabulrio e as tcnicas de anlise oferecidas pela SNA15. No Brasil, poucos tm sido os trabalhos na rea de histria que tm utilizado conceitos e tcnicas de anlise de redes16.

    No contexto internacional, entretanto, visvel o interesse crescente pelas ferramentas de SNA na investigao histrica. Em artigo pioneiro, John Padget e Christopher Ansell analisaram a ascenso dos Mdici ao poder na Florena do Renascimento, explorando suas estratgias de construo de clientelas usando tcnicas de block modeling, a partir de vasta documentao proso-pogrica sobre as faces lorentinas17. Lilian Brudner e Douglas White estudaram as relaes entre alianas matrimoniais recor-rentes e a transmisso da propriedade rural em uma aldeia aus-traca, entre os sculos XVI e XIX, operacionalizando os conceitos de endogamia estrutural e relinking18. Claire Lemercier investigou as elites empresariais francesas e suas redes familiares no sculo XIX, analisando as relaes entre irmas e seus impactos sobre a coeso do empresariado. A mesma autora tambm utilizou tc-nicas de SNA para analisar padres de migrao inter-regional na Frana do sculo XIX19. Joaquim Carvalho e Isabel Ribeiro analisaram as relaes de compadrio da freguesia portuguesa de bidos, entre os sculos XVI e XVIII, utilizando registros paro-quiais de batismos. Eles utilizaram tcnicas de computao de prestgio para identiicar mecanismos de posicionamento social por meio do ato de apadrinhamento20. De modo semelhante, Christine Fertig analisou o compadrio como meio de identii-car estratgias multigeracionais de mobilidade social em duas aldeias alems do sculo XIX21, e Juuso Martila utilizou regis-

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    tros batismais inlandeses de ins do sculo XIX para destacar as intercesses entre redes familiares e ocupaes22. Nesta lista no exaustiva de pesquisas empricas que mobilizaram tcnicas de SNA, observamos enorme variedade temtica e de mtodos de anlise. Esses trabalhos utilizaram tambm diversos tipos de fontes histricas, tais como registros paroquiais, notariais e is-cais, prosopograias locais e regionais, arquivos de empresas e associaes, censos etc. De passagem, destaco que o uso do re-linking nominativo como um dos elementos da reconstruo de redes nesses trabalhos representa uma continuidade e extenso do programa microhistrico23.

    Entretanto, em funo da polissemia da noo de rede social e das ambiguidades no seu uso, h tambm razo para certo ceticismo quanto aos ganhos analticos derivados des-sa abordagem. possvel utilizar esse tipo de mtodos dado o carter fragmentrio da evidncia histrica? Que ganhos de conhecimento podem advir do uso da anlise de redes na pes-quisa histrica? O que ela pode acrescentar aos mtodos de in-vestigao tradicionais, quantitativos ou qualitativos, alm de iguras impactantes?

    Penso que a SNA , em primeiro lugar, promissora para os historiadores como uma ferramenta de anlise exploratria, quando confrontados com grandes volumes de dados relacio-nais. A reconstruo de comunidades histricas e sua conigu-rao de relaes no um objetivo per si. A questo no pro-priamente dizer ou no se uma rede social est presente, mas a problemtica mais especica de qual a sua conigurao, quais so seus efeitos sobre a dinmica das interaes sociais e que transformaes podemos observar em seus padres de conigurao.

    Na anlise exploratria, a representao visual permite su-marizar, decompor e reorganizar grandes volumes de dados re-lacionais histricos, como aqueles oriundos dos registros vitais nominativos do passado. Ela permite operacionalizar decompo-sies e recombinaes de informao para identiicar, descrever e analisar padres relacionais. Pode-se, assim, identiicar com

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    maior acuidade subgrupos coesivos e componentes densos, cli-ques ou atores-ponte em meio a milhares de vrtices e linhas. Ela permite tambm a mensurao de propriedades estruturais emergentes de networks completas ou centradas em um ego, utili-zando-se de medidas como coeso, centralidade, densidade etc., que permitem comparar padres de diferentes tipos de laos ou diferentes partes de uma rede. Resta dizer que a SNA um com-plemento, e no um substituto, para outras tradies quantitati-vas e qualitativas j estabelecidas na pesquisa histrica. Ela no se encaixa, alis, na clssica dualidade entre mtodos quantitati-vos e qualitativos.

    A SNA particularmente til, do meu ponto de vista, para a anlise de situaes envolvendo, implcita ou explicitamente, escolhas sociais. Qual o signiicado social da escolha de algum como esposo, amigo ou padrinho? Ou a escolha de algum em particular como parceiro em uma relao de crdito ou de apoio poltico? Como esses diferentes tipos de relaes se interpene-tram? Acreditamos que essas escolhas sociais no ocorrem ao acaso, e esperamos encontrar padres subjacentes a elas. Elas revelam processos sociais de posicionamento e hierarquizao social, estabelecendo rankings de prestigio e status social em pro-cessos de interao no tempo. A SNA oferece, pois, conceitos, mtodos e tcnicas soisticados para analisar esse conjunto de situaes.

    A partir da revoluo microinformtica dos anos de 1980, com a expanso do uso de computadores pessoais com capaci-dades de memria e processamento cada vez maiores, tem-se operado uma integrao crescente entre a elaborao de novas teorias, conceitos e mtodos da SNA com o desenvolvimento de ferramentas informacionais cada vez mais soisticadas. Hoje dispomos de um grande nmero de softwares que permitem visualizao em rede de dados, encapsulando ferramentas de anlise de redes para os mais diversos tipos de uso.24 Na pes-quisa em histria da famlia e demograia histrica, as ferra-mentas informacionais da SNA podem servir a trs objetivos complementares:

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    1. Constituir uma plataforma de reconstruo de famlias e armazenamento de informaes relacionais, de links ge-nealgicos ou de outra natureza;

    2. Permitir a inspeo visual, representao e identiicao de padres relacionais;

    3. Computar e analisar padres estruturais de comunida-des histricas, utilizando medidas e ndices desenvolvi-dos pela literatura da SNA e encapsulados em softwares de anlise de redes.

    O maior problema que enfrentamos que essas tarefas ge-ralmente no podem ser processadas pelos mesmos softwares: ferramentas teis para a reconstituio de redes so geralmen-te pobres em recursos analticos; por outro lado, ferramentas analticas soisticadas, em geral, pressupem reconstrues mximas j inalizadas, para que as medidas possam fazer sentido.

    Meu objetivo no que se segue relatar meu contato com as ferramentas informacionais de SNA, utilizando-as como ins-trumentos de pesquisa no campo da histria da famlia. No de-correr do texto, acentuo tanto as suas possibilidades quanto as suas limitaes, diiculdades e problemas no resolvidos. Ao i-nal, apresento duas aplicaes de ferramentas de SNA s bases de dados relacionais desenvolvidas pelo meu projeto, exploran-do relaes de compadrio e circuitos matrimoniais endgamos e preferenciais da elite da freguesia de Guarapiranga, Minas Gerais, nos sculos XVIII e XIX. As informaes sobre compa-drio e alianas matrimoniais provm de bases de inventrios post mortem e registros paroquiais de batismo. Utilizando-me fundamentalmente do software Pajek, no primeiro caso exploro as tcnicas de computao de prestgio e censo de trades. No segundo, exploro tcnicas de anlise de genealogias e blockmo-deling. Limitaes de espao impedem uma contextualizao histrica mais abrangente dos casos.

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    Softwares de visualizao e anlise de redes

    Meu primeiro contato com ferramentas desta natureza acon-teceu em 2004, quando orientei uma dissertao de mestrado que utilizava o software Dot/Graphviz25 como ferramenta de represen-tao de dados e anlise de informaes. Esse software foi desen-volvido pela ITT para representao de redes eletrnicas de co-municao. Utilizamos o Dot para representao bidimensional em rede de dados de um survey com 96 famlias de agricultores familiares de um pequeno municpio da Zona da Mata mineira, as quais haviam participado de uma associao de crdito rotati-vo para compra de terras26. A estruturao das redes de contato nos permitiu corroborar a hiptese de que redes de parentesco e movimentos religiosos eram os principais canais de luxos de in-formao e solidiicao de coniana para a compra coletiva de terras, naquele caso. A inspeo visual dos resultados permitia observar padres de relaes que no eram identiicveis pela ta-bulao cruzada. No entanto, o programa apresentava uma srie de limitaes e diiculdades para o lanamento de dados, e pas-sei a explorar alternativas para armazenamento, manipulao e anlise de dados em forma de redes.

    A partir de 2007, combinando o interesse pelas ferramen-tas de anlise de rede com projetos de conservao preventiva e digitalizao de acervos histricos de documentos cartoriais, passei a explorar com mais profundidade o campo da histria da famlia. Tratava-se de uma rea de investigao totalmente nova em minha trajetria de pesquisa, e comecei a me familia-rizar com seus problemas, teorias, mtodos e fontes diferentes daquelas que coniguravam meu trabalho cientico anterior. A maior parte dos mtodos e tcnicas apresentadas aqui resultou do enfrentamento de problemas concretos colocados pelas fontes e de aprendizado prtico no uso dos softwares de rede.

    Deini como objeto de investigao a analise das estratgias de sucesso e herana na freguesia de Guarapiranga, entre 1780 e 1880, procurando utilizar mtodos de SNA como ferramentas de

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    anlise. Inspirei-me na literatura histrica e antropolgica sobre parentesco27 que enfatizava a complexidade dos processos suces-srios e a heterogeneidade das estratgias utilizadas pelas fam-lias em diferentes momentos do ciclo de vida. Procurei conjugar a esta problemtica conceitos, mtodos e tcnicas da SNA, com o uso de ferramentas computacionais para visualizar e analisar redes de grande extenso.

    Essa localidade havia sido um dos primeiros arraiais do ouro, em ins do sculo XVII, e a sua regio se constituiu em uma rea de transio entre o distrito minerador e as reas de abas-tecimento. Em meados do sculo XVIII, as unidades produtivas mistas de roas e lavras transitam em direo produo mer-cantil de alimentos e aguardente dirigida a mercados regionais. A disponibilidade de sries de inventrios post mortem para a quase totalidade dos sculos XVIII e XIX oferecia a possibilida-de de construir uma base de dados extensa para a reconstruo genealgica. Parecia-me um espao-tempo suicientemente pe-queno para ser manejvel no levantamento e tratamento dos da-dos, mas grande o suiciente para fazer generalizaes relevan-tes e comparveis com outras regies. Posteriormente o projeto integrou-se ao PRONEX/FAPEMIG Famlia e Demograia em Minas Gerais, sculos XVIII, XIX e XX , coordenado pelo pro-fessor Douglas Cole Libby.

    Juntamente com outros pesquisadores da Universidade Fe-deral de Viosa (UFV), coordenei simultaneamente projetos de conservao preventiva, identiicao e digitalizao de docu-mentos no acervo da Casa Setecentista de Mariana (CSM). Pos-teriormente, iniciamos tambm projetos semelhantes em acervos do judicirio das cidades de Piranga e Viosa. Esses projetos pro-duziram uma base digitalizada de cerca de 3.500 inventrios post mortem de diversas localidades do Termo de Mariana, entre 1713 e 1855. Esperamos incorporar mais 4.000 inventrios base, com-pletando a digitalizao da CSM e destes novos acervos.

    No caso da freguesia de Guarapiranga, a digitalizao e a codiicao de dados dos dois acervos tornaro possvel a criao de uma srie de inventrios contnua abrangendo grande parte

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    do sculo XVIII e todo o sculo XIX. Dispomos tambm das listas nominativas da dcada de 1830 e dos Registros Paroquiais de Terras de 1855-1856, dos diversos distritos e capelas da freguesia, agora disponveis nos stios do CEDEPLAR28 e do Arquivo P-blico Mineiro29. Recentemente, adicionamos a esta lista de fontes os registros vitais, graas ao acesso consulta on line pelo stio Family Search30. Desafortunadamente, aparentemente sobrevive-ram poucos livros de casamento e bito para a freguesia de Gua-rapiranga. Entretanto, dispomos de cerca de 26.000 assentos de batismo, entre 1757 e 1887, em processo de codiicao. Registros vitais, listas nominativas, registros de terras e inventrios post mortem constituem, pois, enorme volume de informao histri-ca em processamento para cruzamento nominativo e particular-mente rico em informao relacional.

    Apesar dos problemas de representatividade e bias que o uso dos inventrios como fonte para interpretao dos padres de fortuna e reconstruo de relaes poderia acarretar31, partimos dessa base para a reconstituio de famlias, pois no tnhamos ainda acesso aos registros paroquiais daquela localidade. Como o ncleo de nossa base de dados era constitudo de inventrios post mortem, e s tardiamente obtivemos acesso aos registros pa-roquiais, no nos foi possvel utilizar os mtodos clssicos de re-gistro e processamento desenvolvidos por Louis Henry para a reconstituio de famlias, ou as adaptaes desenvolvidas por Maria Norberta Amorim para reconstituio de parquias32. Uti-lizamos os inventrios como ponto de partida para a reconstru-o das redes familiares, recolhendo informaes genealgicas no rol de herdeiros que, cruzadas com outros inventrios e fon-tes, gradativamente esclareciam os vnculos entre as diferentes unidades familiares. Plotamos nos grafos tambm todas as re-ferncias dos nomes encontrados leitura dos inventrios e de outros documentos, atribuindo a eles stamps de tempo-espao33. O cruzamento das informaes nominativas e relacionais dos in-ventrios nos dava acesso reconstruo de um domnio do pa-rentesco que tnhamos diiculdade em vislumbrar partindo das listas nominativas.

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    Partindo dos inventrios post mortem, pois, desenvolvemos ento uma tcnica no automtica algo heterodoxa de reconstru-o de famlias, utilizando o software yEd Graph Editor34 para ar-mazenar e reconstruir links de aliana matrimonial e iliao, cru-zando os dados dessas diversas fontes. Esse banco de dados nominativo armazena atualmente cerca de 10.700 nomes, assim como 7.300 relaes de parentesco ou ainidade identiicadas.

    Embora esse programa apresente algumas srias limitaes para visualizao e anlise das redes, ele tem sido til para o armazenamento de grandes volumes de informao genealgica que podem ser manipulados manualmente. Trata-se de um sof-tware de interface grica direta com o usurio, sem necessidade de complexos procedimentos de programao ou preparao da base de dados para importao, e de fcil manipulao caso a caso, seja na incluso de novos vrtices e linhas, seja na modii-cao das propriedades dos dados j plotados. Adicionalmente, possvel armazenar informaes sobre cada vrtice ou linha, na caixa de propriedades ou em uma URL prpria. Dessa for-ma, esse software nos pareceu adequado e lexvel para o desen-volvimento de uma base de dados em construo contnua, nas quais as fronteiras da amostra no podiam ser claramente deter-minadas, e em que a reconstruo de famlia avanava de modo incremental caso a caso. Nessa worktable, passamos a compor um mapa do parentesco, em que podemos recuperar rapidamen-te informaes sobre relaes de aliana matrimonial e iliao. Devemos estar conscientes, entretanto, de que a reconstruo de longas cadeias genealgicas nos oferece um mapa de relaes po-tenciais entre os atores. Como os atores interpretaram seus laos de parentesco, e em que situaes os mobilizaram efetivamente para ins econmicos ou polticos, deve ser objeto de anlise e cruzamento com outras evidncias de ao concertada35.

    Novas identiicaes de nomes, relaes ou atributos foram sendo inseridos manualmente, checando-se nomes prximos e atributos complementares, e analisando cuidadosamente os ca-sos de homnimos e nomes incompletos, atravs de informaes contextuais adicionais. Um dicionrio de padronizao foi de-

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    senvolvido para nomes e localidades. Informaes relacionais de parentesco foram tambm includas e checadas a cada nova infor-mao nominativa, preservando-se a referncia para recuperao posterior da origem dos dados. Alm das informaes nominati-vas, deinimos convenes de representao e stamps temporais e espaciais, na forma de rtulos acima da forma representando o indivduo, incluindo o prenome e nomes, datas aproximadas de nascimento e bito, localidades, e indicaes de cor e condio. Um mecanismo de zoom permite a leitura das informaes nomi-nativas, e um mecanismo de busca permite encontrar indivduos por meio da digitao do nome ou pela rolagem de uma listagem dos nomes em ordem alfabtica, esquerda da tela principal. In-divduos do sexo masculino foram representados por tringulos, e do sexo feminino por elipses. Para reduo da complexidade da representao dos laos, a populao escrava no foi plota-da, exceto quanto o indivduo em questo estava relacionado de algum modo a uma rede familiar reconhecida. Como o progra-ma s permite representar linhas partindo de vrtices, optamos por representar as relaes de iliao com arcos direcionados partindo da me biolgica, e no de ambos os cnjuges, como no Ore Graph, para reduzir os efeitos do adensamento de linhas sobre a visualizao da rede. Os indivduos identiicados como oriundos de Portugal e das Ilhas do Atlntico foram destacados com a cor azul. Indivduos identiicados atravs do registro pa-roquial foram representados na cor verde. Os indivduos para os quais dispomos de inventrios tiveram o contorno da forma destacado em vermelho. Quando havia transcrio de inventrio ou icha analtica disponvel, essas foram includas em uma URL acessvel por um duplo clique na forma. Convenes foram de-senvolvidas tambm para os dados relacionais, representando relaes de casamento e iliao como linhas cheias horizontais e verticais, respectivamente, e unies consensuais e iliao ile-gtima com linhas pontilhadas. Propriedades mutveis (estado civil e residncia, por exemplo), assim como unies mltiplas, colocam desaios complexos de representao, que foram contor-nados com ajustamentos manuais caso a caso.

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    Entre as desvantagens do yEd, conta-se a impossibilidade de rearranjo automtico das informaes e a consequente so-breposio crescente das linhas, diicultando a visualizao de informaes bases de grande extenso. Outra diiculdade des-se programa que a plotagem no gera efetivamente um banco de dados numrico, produzindo arquivos no formato GraphML, No se trata, pois, de uma ferramenta informacional que possa ser utilizada de modo integrado com bancos de dados Excel ou Access. De modo semelhante, no se podem gerar computaes ou estatsticas sobre os parmetros da rede por meio desse sof-tware. Sua principal virtude servir de um worktable para a re-construo de redes familiares, realizada manualmente e caso a caso. Para a utilizao dessas informaes em outros programas, entretanto, necessrio duplicar o lanamento de dados, o que se torna contra produtivo a partir do momento em que os nme-ros crescem s centenas ou milhares.

    Temos despendido intensos esforos no sentido de recons-truir genealogias e redes de relaes dessa localidade, pouco claras nos inventrios individuais, mas emergentes quando se efetuam cruzamentos de informaes de diversos inventrios e outras bases de dados. Trata-se de trabalho difcil, demorado e complexo, dependente de conhecimento contextual que se de-senvolve gradualmente, e em que rigorosos protocolos de checa-gem de informao precisam ser utilizados. Parte dos problemas de identiicao derivada do reduzido estoque de nomes pre-sentes no perodo, produzindo grande nmero de homnimos. Outro problema constante a variao dos mecanismos de trans-misso dos sobrenomes e patronmicos, ou sua ausncia. Uma proporo no determinada de nomes recolhidos na base de da-dos nominativos, pois, certamente composta de duplicaes. Entretanto, muitas vezes, o reaparecimento do nome em outro ato e circunstncias permite a eliminao da duplicao. Outra limitao importante derivada de bias de gnero caracterstico dos inventrios at ins do sculo XIX: enquanto os nomes dos cnjuges das ilhas so registrados sistematicamente nos inven-trios (o cabea do casal), raramente so registrados os nomes

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    dos cnjuges do sexo feminino. Apesar dessas diiculdades e in-certezas, a expanso gradativa da base de nomes foi possibilitan-do identiicaes cada vez mais precisas dos vnculos familiares, e o estabelecimento de redes adensadas e cruzadas.

    Embora o yEd tenha se mostrado como uma opo interes-sante para as operaes de reconstrues mximas, suas limi-taes de exportao de dados e apresentao de fragmentos especicos da rede nos fez buscar alternativas de softwares de visualizao. Nossa escolha recaiu sobre o Genopro36, desenvolvi-do especiicamente para bases de dados genealgicas como um produto comercial de cdigo restrito, e que tem sido utilizado tambm por outros pesquisadores37. O Genopro apresenta vrias vantagens frente ao yEd: o armazenamento de informaes nomi-nativas selecionadas para cada indivduo em banco de dados ex-portvel, a utilizao da notao antropolgica clssica de paren-tesco, com apresentao elegante e automtica, e a possibilidade de organizao da informao genealgica em layers ligados por hiperlinks. Assim como o yEd, o programa de fcil manipula-o caso-a-caso, permitindo constituir ou corrigir bases de dados pela insero manual de novas informaes na interface grica. O layout da rede pode tambm ser ajustado manualmente para maximizar a visualizao das relaes e atributos destacados na an