História Regional Da Infâmia- Juremir Machado Da Silva

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Juremir Machado da Silva

Transcript of História Regional Da Infâmia- Juremir Machado Da Silva

  • Para Luiz Carlos Carneiro, o Caio,amigo e meu primeiro grandeprofessor de Histria, que nosdeixou quando setembro de 2009 entrou.

    In memoriam

  • Todo imaginrio real.Todo real imaginrio.

  • SUMRIO

    "Infames, infames"Traram ou no traram?O mais infame dos documentosAinda o documento ignominiosoNeto perde sua ticaOs quatro dias do infernoO que prova um carrapato?Como incorporar um negroPunies e recompensasUma moleca para LindocaO bom uso dos negrosPequenas causas, grandes ideaisUma revoluo platina envergonhadaAmigos e hermanosUm golpe militarSeparatismo de conveninciaUma viagem ao Rio de JaneiroUma Repblica militarHonra e ouroSequestros e desapropriaesPorto Alegre vale um subornoA mazorca de AlegreteUm duelo no pampaAs loucuras do BambBento Gonalves, heri ou ladro?A defesa do ladro heri ou do heri ladroUma Constituio autoritriaO enigma de PorongosComo se reescreve a Histria?Quem morreu em Porongos?Um jogo de cartasUma carta inesquecvelA estranha reao de CanabarroA primeira defesa de RodriguesRodrigues versus Varela (primeiro round)Varela versus Rodrigues (segundo round)Rodrigues versus Varela (terceiro round)O falso original ou o original falsoA testemunha (quase) ocular da HistriaA carta forjadaNovas e velhas interpretaesFarsa em Porongos e traio em Ponche Verde ou traio em Porongos e farsa em Ponche

  • Verde?Achegas de PortinhoA carta roubada, a hiptese radicalVarela desabafaUma barca para o Rio de JaneiroAs deseres de agostoPor baixo do Ponche VerdeComisses parlamentares de antigamenteMito e HistriaPonche Verde, o encontro de cpula que no existiuO acordo que o Imprio nunca assinou (ou trato e no tratado)O batalho de AlegretePor que Caxias no assinou?A linguagem de CaxiasComo se produz um mitoUm discurso sincero na Cmara de DeputadosUma histria de encomendaO eterno recomeoO destino dos negros farraposDa valsa ao hinoDeu no jornalA saga de Manoel CongoCaxias no ParaguaiA revoluo da degolaCatlogos da iniquidadeCanudos, a infmia primitivaAqui se pagaA fora dos fracosChibata, um captulo da Histria nacional da infmiaEm busca de uma boa histria

  • "INFAMES, INFAMES"

    CONTA-SE QUE NUM PASSADO no muito distante grandes homens construram o Brasil com a fora das suas mos, com a energia dos seus ideais e com o sangue que aceitaram verter em campos, rios, sertes e matas em nome do futuro e da ptria. Esses homens saram da Histria para entrar no mito. Hoje, brilham em livros escolares ou figuram em placas de ruas paradoxalmente esquecidos e sempre lembrados. Quem foram esses homens? O que fizeram? Foram somente heris? E se tivessem sido tambm infames personagens de uma poca cruenta em que o futuro se fazia a golpes de preconceitos, de lana e de balas de canho?

    Seria a infmia a mesma por toda parte? Seria a infmia um fenmeno de poca, com as mesmas caractersticas conforme o perodo histrico e a geografia dos acontecimentos? Seria a infmia sempre universal? Ou a infmia assume formas e modalidades especficas? O grande Borges escreveu uma Histria universal da infmia. Podemos falar de uma Histria regional da infmia? Umainfmia latino-americana? Uma infmia brasileira? Uma infmia gacha? Quais seriam os principais captulos de uma infmia brasileira: o esmagamento das revoltas populares da Regncia pelo Duque de Caxias? O destino dos negros da Revoluo Farroupilha? A participao do Brasil na Guerra do Paraguai? A destruio de Canudos? O tratamento dado a Joo Cndido e aos seus companheiros na Revolta da Chibata?

    Qual a cor da infmia no Brasil do sculo XIX e comeo do sculo XX? Pode a infmia se esconder atrs de ideais humanistas? Podem os perpetuadores da infmia entrar para a Histria como heris? So tantas perguntas e tantos caminhos que se abrem para a busca das respostas. Escrever a Histria sempre produzir um imaginrio. Produzir um modo de desvelamento, uma forma de dizer o mundo, de descobrir, de desencobrir, de recobrir e de tecer novamente o passado. A Histria nuncapara de ser refeita, reescrita, redita, reinventada. Por que no se fazer uma breve cartografia da infmia neste Brasil construdo a ferro e a fogo? Por que no se fazer um inventrio, mesmo incompleto, de iniquidades?

    Esta Histria regional da infmia se apresenta assimtrica. Alguns episdios importantes tero captulos curtos por j terem sido magistralmente tratados em obras-primas. o caso de Canudos. O espao maior est reservado ao lado infame da Revoluo Farroupilha. Por qu? Talvez por ser a Revoluo Farroupilha o acontecimento mais reconstrudo e mitificado da Histria brasileira, a ponto de Histria e Mito acharem-se atualmente quase inteiramente confundidos, com ampla vantagem para a idealizao. O historiador desmancha prazeres. Cabe-lhe muitas vezes atrapalhar os mais belos sonhos daqueles que tm o poder de fazer sonhar.

    E se em cada heri se escondesse tambm um carrasco? E se a Histria, como a lemos nas cartilhas, no passasse de um romance de no fico, uma narrativa estranha em que, sem poder mentir, no se dissesse a verdade? O que a verdade? No mundo inteiro, obviamente, historiadores discutem h dcadas os limites da narrativa histrica. O problema quando tudo isso diz respeito aos nossos heris. H quem desconfie da fidelidade dos relatos histricos de Samarcande. E os nossos? Como so? Seria a Histria um labirinto de espelhos que se refletem e neutralizam como uma srie infinita de verses incompletas, sobre um mesmo acontecimento, narradas por cegos de olhos bem abertos e interiormente iluminados?

    Quem sabe? Vejamos alguns episdios.

  • TRARAM OU NO TRARAM?

    TRARAM OU NO TRARAM? Esta a questo que o tempo no consegue silenciar, embora grandes sejam osesforos dos construtores de mitos e dos orgulhosos defensores de uma forte identidade gacha paraque no se perca tempo com mesquinhos detalhes de uma ordem supostamente inferior. A traio,afinal, no passa de um ponto de vista, a vista do ponto do trado. Os farrapos traram ou no traramos negros que com eles lutaram contra o Imprio brasileiro movidos pela promessa de liberdade?Traram em Porongos? Traram em Ponche Verde? Traram no abolindo a escravido quandoproclamaram a Repblica, em 1836, e sentiram-se livres? Traram ao final do conflito, quando, paraselar uma paz dita honrosa, mais ou menos rendosa, com direito a indenizao, aceitaram entregar osltimos negros ainda incorporados s suas foras? Traram quando financiaram parte da luta com avenda e o aluguel de negros no Uruguai? Traram os escravos dos imperiais que atraram para as suasfileiras estimulando sublevaes, esperanas e fugas?

    Domingos Jos de Almeida, na minuta de uma carta a Manuel Antunes da Porcincula, davaconta dos seus temores em escrever uma Histria da Revoluo Farroupilha: Eis meu amigo Antunespor que no querem que eu escreva essa Histria: e estarei livre de algum assassinato! O futuro o dir(Coleo Varela 714). Essa correspondncia falava de Porongos. Quase todos os farroupilhas que umdia criticaram os principais chefes farroupilhas acabaram assassinados: Paulino da Fontoura, OnofrePires este num duelo, sem testemunhas, com Bento Gonalves e at Antnio Vicente da Fontoura,apunhalado por um liberto chamado Manoel, em 1861, para a libertao do qual havia colaborado comdez onas de ouro. Santa infmia! Isso tudo sem contar a morte em condies jamais bem esclarecidasde Joaquim Teixeira Nunes, o comandante dos lanceiros negros massacrados em Porongos. As razesoficiais para essas mortes jamais convenceram a todos. Domingos Jos de Almeida, em outra carta,endereada a Bernardo Pires, ao abordar a tragdia de Porongos, destacara as enormes resistncias aoseu insano projeto de contar tudo o que sabia: Eis meu amigo por que do nosso lado e do lado dosnossos antagonistas h oposio para a transcrio da nossa Histria: oposio que talvez triunfe pelomeu estado de sade, de finanas, de capacidade e de dificuldades que me criam e que renascemapenas destrudas as primeiras (CV 711). Por qu?

    Em 1836, quando os farrapos proclamaram a Repblica contra a tirania do Imprio, tendo comolema liberdade, igualdade e humanidade, a luta contra a escravido era uma realidade em vrioslugares do mundo. A abolio comeou a ser decretada em Portugal, na metrpole, em 1767, com aproibio de importar novas peas e com a lei do ventre livre de 1773; na Dinamarca (1792); naFrana (1794), embora Napoleo a tenha restabelecido em 1802; no Haiti (1794 e 1804); no Chile(1823); no Mxico (primeira investida em 1810, segunda em 1829); na Inglaterra (1834); na Bolvia(1831). Simn Bolvar comeara o seu empenho abolicionista em 1816 e 1817, libertando os negrosrepublicanos. Em 1821, finda a Batalha de Carabobo, ele libertou os escravos que possua na fazendaSan Mateo. Com esse tipo de atitude, s poderia se tornar perigoso e produzir, ainda hoje, um gostoamargo na boca dos conservadores. Na poca, os proprietrios de escravos defendiam seu patrimnioem nome da ordem e do bom-senso.

    Na Amrica do Sul, foi necessrio, em muitas naes, abolir mais de uma vez a escravido, poisas leis simplesmente no eram cumpridas. No pegavam. O ato final na Venezuela s aconteceria em24 de maro de 1854. Houve resistncia branca resistncia negra. Em 1815, no Congresso de Viena,as potncias europeias restauradoras declararam-se contrrias escravido. A Inglaterra pagou aosportugueses 750 mil libras para parar o trfico, o que s ocorreu mesmo em 1850. Em quase toda

  • parte, por razes humanistas ou econmicas, mais econmicas do que humanistas, combatia-se ohorror, que se tornara horrorosamente pouco rentvel, salvo para os farrapos. Prometamos a liberdadecom uma mo e apertvamos as correntes com as duas. Era uma questo de clculo.

    O historiador Walter Spalding ajudou, depois de 1930, a consolidar um mito com a suaRevoluo Farroupilha e com o seu talento para a omisso de dados inconvenientes: L no Prata, D.Juan Manuel de Rosas, sanguinrio, crudelssimo, exercia, com todo o furor, a sua ditadura (1980, p.74). Rosas no possua escravos. A Argentina adotara a abolio parcial, com uma lei do ventre livre,em 1813. Rosas se apoiou nos negros e em outros marginais, entre os quais os gachos, para frearseus inimigos. A Constituio uruguaia de 1830 estipulava a abolio. Rivera deu-lhe realidade de fatoem 1842 ao libertar todos os negros que se incorporassem ao exrcito. De direito, definitivamente, foipreciso esperar 1846 por presso de escravocratas do Rio Grande do Sul, desejosos de repatriar os seusnegros. Reunidos em Alegrete, ao final de 1842, para escrever a Constituio da Repblica Rio-Grandense, os farrapos, embora houvesse uma proposta de abolio da escravatura, recusaram-se aapostar numa ideia to cruel e a deixar os escravos desamparados dos seus senhores. Seriam cidadosrio-grandenses apenas os homens nascidos livres e aqueles que por razes especificadas merecessem aalforria.

    A infmia s se torna realmente universal quando praticada, em cada aldeia, com esmero,sofisticao e boas maneiras. Engana-se, porm, quem imagina que a traio seja a forma porexcelncia da infmia. A barbrie e o preconceito marcam outras modalidades igualmente eficazes deinfmia, cujo apogeu, entretanto, quando esta se apresenta como sua prpria negao, travestida debenefcio a quem sofre a sua ao sinuosamente deletria, assim como a forma mais sofisticada dabarbrie pode ser a civilizao. Na fase primitiva, a infmia espalha certezas. Na fase superior, podeassumir a forma de simulacro da dvida e da ambiguidade, fazendo do mito a nica verdade essencial.Conta-se que em tempos imemoriais viveu um homem to infame que se tornou benfeitor de todos osseus concidados somente para melhor poder desprez-los. Esse homem paradoxalmente bondoso nodeve ter sido muito diferente de Domingos Jos de Almeida, considerado o crebro da RevoluoFarroupilha, mulato e dono de uma centena de escravos, que vendeu algumas dezenas deles paracomprar armas, fardas e cavalos destinados a um movimento que se gabaria de ser abolicionista. Pelojeito, a infmia um estado de esprito que nega a grandeza da alma e engrandece a pequenez dosinstintos.

  • O MAIS INFAME DOS DOCUMENTOSTUDO SE VINCULA NUM MOMENTO e se perde no seguinte. A Histria sempre se faz num presente alheio aodos fatos. Perguntas vo e voltam. Como se financiou a Revoluo Farroupilha? A famosa ColeoVarela, publicada sob o ttulo de Anais do Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul, contm em tornode treze mil documentos sobre a guerra dos farrapos que podem dar respostas surpreendentes ecuriosas a essa questo. No volume 3, sob o nmero 652, encontra-se aquele que se deveria chamar deo mais infame dos documentos, ou documento ignominioso, ainda mais se o lema dos farrapos eramesmo liberdade, igualdade e humanidade e se, na poca da ecloso do movimento, a causaabolicionista havia vencido, como j se disse, em outros pases ocidentais, inclusive nalguns da tristeAmrica do Sul. O trfico no Brasil estava formalmente proibido. Domingos Jos de Almeida, autordo documento infame, foi o mentor intelectual dos farroupilhas. O historiador e general MorivaldeCalvet Fagundes, repetindo muitos outros, garante que Almeida foi um dos que definiram o rumo darevoluo (1984, p. 151). Ele chegou a ser ministro da Fazenda da Repblica Rio-Grandense. Vicenteda Fontoura, que o sucedeu no posto, acusou-o de malversao de verbas e outros deslizesburocrticos to comuns atualmente.

    Em 25 de outubro de 1845, Almeida comete o documento ignominioso. Em carta a DavidCanabarro, pede o testemunho do ltimo chefe do exrcito farroupilha em seu favor numa causainfame: Com a ocorrncia de 15 de junho de 1836 que ps a capital da Provncia em poder de nossosantagonistas, foroso foi para cada um de ns, alm de nossos servios pessoais, concorrer com aquota que nos foi possvel agenciar para obter objetos blicos e todos os meios de prosseguir naempresa em que nos achvamos empenhados: a mim, pois, me coube despender no conserto da escuna2 de Junho, no armamento da escuna 30 de Maio, na criao do Trem de Guerra, no feitio deroupas para o exrcito, e no suprimento de quantias soma de Rs. 3.647$455.[1] O financiador queriaento receber.

    Para sustentar a sua reclamao, explicava como financiara a parte que lhe coubera nummovimento revolucionrio cujos herdeiros ainda pretendem que tenha sido abolicionista: Prevendoos resultados da retirada de 4 de janeiro de 1837 se nossos companheiros no fossem de prontosocorridos de cavalgadura, roupa, fumo e erva, nesse mesmo dia despachei 35 escravos, que de minhapropriedade tinha j no departamento de Cerro Largo, com Vicente Jos Pinto para serem vendidos emMontevidu e seu produto aplicar a esse importante fim. A Revoluo Farroupilha foi, portanto,financiada com a venda de homens. Uma revoluo por igualdade, liberdade e humanidade sustentadacom a venda de negros. Almeida ainda precisou, para que o seu interlocutor no o tomasse pordesonesto: Tais escravos foram com efeito vendidos a Manuel Gonalves da Costa, e pouco depoisdois mais: um a Jos Tavares, de Taquari, em pagamento de cavalos que lhe comprei para o exrcito.Uma verdade incmoda.

    Almeida apresenta provas documentais e garante que as quantias foram fielmente aplicadas namanuteno da guerra. Para confirmar que estava falando rigorosamente a verdade, recorre aotestemunho imparcial do inimigo. Correspondncia sua ao general Neto, de 23 de maro de 1839,sobre o caso, tendo cado em mos dos adversrios, havia sido impressa no jornal O Mercantil do RioGrande, e, segundo ele, tanto me havia de servir um dia essa impresso para mostrar pelo veculo doinimigo a veracidade dos fatos. Almeida dizia tudo isso a Canabarro para combater a torpeza e asnegras calnias que o faziam sentir agonias mortais, o que o obrigava a apelar para o reto bom-senso e a probidade de Canabarro. No imaginrio dos homens comuns, revolues pela igualdade epela humanidade normalmente libertam escravos, no se financiam com a venda deles. Ou, seja por

  • decoro ou por discrio, no apresentam a fatura no caixa do novo regime. Era assim, ao menos, namitologia. Que sirvam nossas faanhas de modelo a toda terra!

    De fato, em O Mercantil do Rio Grande (Coleo Ferreira Rodrigues 33) aparece a citada carta:Se a sedio de 15 de junho nos ps quase em acefalia, os sucessos do Fanfa nos colocaram em

    tantos estados independentes quantos eram os pontos por qualquer de nossas tropas ocupados, e eis arazo de nossos males. O homem que nos servia de centro nos foi arrebatado; o governo que criamos,j pela falta de prestgio necessrio, e j pelas vicissitudes das rpidas operaes a fazer-se, caiu emperfeita nulidade. Vs ento assumistes o poder supremo do pas e neste nterim reaparece o governo.Todas estas mudanas, no curto espao de 10 meses, que [decorreram] de Junho de 1836 a Abril de 37,descentralizou inteiramente os habitantes de nosso pas. O governo, sem ao e sem capacidade para acriar, sobremaneira aumentou sua nulidade e o povo teve ento que endeusar aos comandantes decorpos e de partidas a fim de capturar suas protees e isto que havia concorrido para o desvigor dogoverno do estado, passou tambm a entorpecer vossas aes, porque todos se julgaram habilitados ano obedecerem e para isso nunca lhes faleceu pretexto. Eis o estado de nossas coisas, quando, livre desuas prises, apareceu entre ns o atual presidente. O povo ento respirou e uma nova era despontouem nosso horizonte. Era a redeno terrena.

    O otimismo de Almeida, porm, no durou. A nova era no se mostrou alvissareira para os seusinteresses:

    Eu fui pela segunda vez, e bem a malgrado meu, ocupado na parte da administrao em que orame acho. Penetrado da posio em que nos achamos e contando com o concurso dos generais daRepblica, com a pronta cooperao dos chefes influentes do exrcito e com o bom senso rio-grandense, ao tempo que com meu colega executvamos os luminosos planos administrativos dopresidente, na completa organizao dos alicerces do sistema democrtico que tnhamos abraado, nodesprezei meio algum de proporcionar ao exrcito quanto lhe fosse mister s suas previses. Umempenho de [?] 191:503$780 foi contrado para o vestir, como vereis da relao dos livros do Trem deGuerra [...] E como se acha esse exrcito? Nu, inteiramente nu! Da prtica seguida de todoscomprarem e de todos venderem, no possvel melhorar este sistema de distribuio e menos deacudir o governo no seu empenho e crdito pblico, porque, tendo por muitas e repetidas vezescomprado sobre fundos existentes nas coletarias e contra eles sacado a favor de diversos vendedores,tem constantemente sucedido no existirem esses fundos na ocasio de apresentarem os saques. Daquio clamor geral... Sem dvida, chocante.

    O mpeto revolucionrio transforma-se em queixas e cobranas. O idealismo cede lugar a umaprosa tristemente realista:

    Cabe aqui dizer que do exrcito nunca o governo encontrou a mnima proteo nestasoperaes de crdito, antes a maior resistncia e vociferao de [?] para os casaquinhas de Piratini.Isto vos no oculto, meu querido general; vs, melhor que ningum, sabe de um sem-nmero defatos desta natureza. Direi mais que, tendo-me vendido Fernando Ortiz 25 arrobas de plvora erecebido para seu pagamento em S. Diogo os 400 e tantos couros que me haviam avisado ter para aliremetido, e dando-lhe V. Exa. logo depois outra direo, de que tambm me avisou, indispensvel mefoi dar outros couros, que nesse momento me chegaram com [Jamaro] Borges e pagar-lhe o frete a S.Diogo, como poro de pataces pela demora das carretas.

    Restava a Almeida defender os seus bens com uma cerrada carta de argumentos de infantarialigeira:

    Para seguir o fio da minha narrao, direi neste lugar que, para pagamento da tipografia, depapel e remdios vindos de Montevidu, por mim pedidos; para suprir com um conto de ris aos

  • nossos prisioneiros, cujos clamores acusavam j o governo de uma maneira espantosa; e parapagamento de outras diversas dvidas do estado, um dia antes de vir de Piratini para esta, mandeivender 17 escravos carneadores que tinha em Montevidu e dos jornais dos quais me tenho sustentadoe minha famlia, expondo-a por isso agora aos horrores da misria. Quando me encarregou dacompra de cavalos no Estado Oriental, j para esse fim vendi 35 escravos a Manuel Gonalves daCosta. Mas qual o prmio de tantos e to reiterados sacrifcios? Eu, com soberba o digo, que me notenho utilizado de 20$000 da nao e que nem o pretendo fazer enquanto poder, fui tido como umladro!

    O revolucionrio chorava as suas perdas. Eram todas econmicas. Havia desvio e malversaode todo lado:

    De que serviu a organizao de um sistema de arrecadao? Ora, ajuntai a isto o produto decouros e o valor das imensas tropas de gado passadas para o Estado vizinho sem cincia do governo, edecidi em vossa conscincia se isto tolervel [...] Foi para prevenir esse inconveniente que celebrei acontrata por cpia em n. 4 e para cumprimento da qual espero que V. Exa. no consinta mais compraalguma pelos comandantes de foras do exrcito, a que o respeito passo a dar as ordens precisas, bemcomo a deixar nas coletarias o somente indispensvel para fumo e papel para as foras que por venturapassem ou se destaquem nos seus distritos. O coletor da Cruz Alta no se tem [rogado] de mandar emseus balancetes conta de plvora a 9$600 a libra, carne a 1$280 a arroba e ultimamente carne de vaca a5$000, quando o boi inteiro por c pago a 4$500 pelo Tesouro e 3$200 pelos particulares. Relatar-lhes os abusos com que se despende os dinheiros das coletarias seria no acabar; mas sua perspicciapenetrar o suficiente, etc. Meu general, tempo; estabeleamos a ordem, reprima-se o prevaricador emarchemos felicidade do nosso pas.

    Em outras palavras, universalmente compreensveis e historicamente praticadas, a roubalheiraera geral, com todo tipo de falcatrua e uma extraordinria incapacidade de escond-las. DomingosJos de Almeida realmente vendeu escravos para financiar a guerra. Foi a sua contribuio maisoriginal para a Histria dos movimentos de emancipao do homem. Os fins, certamente, peloscritrios daquela poca isso devia parecer-lhe uma verdade insuspeita , justificavam os meios. Osol declinava nos campos manchados de sangue como um fogo-ftuo.

    [1]. As cartas e citaes so transcritas neste livro de acordo com a grafia dos documentos originais. (N.E.)

  • AINDA O DOCUMENTO IGNOMINIOSO

    A LUZ AZULADA DO TEMPO PODE escurecer mais do que iluminar. Domingos Jos de Almeida, o incansvel eiluminado crebro da Revoluo Farroupilha, no documento infame (CV 652), pede a DavidCanabarro que o ajude a ser reembolsado pelos seus sacrifcios a bem da causa comum, como vendade escravos para financiar o movimento. Explica que tambm alugou dezessete dos seus melhoresescravos em Montevidu para do trabalho deles manter minha famlia, sendo que a maior parte doarrecadado teria sido aplicada no minoramento das precises sempre crescentes do lado em que nosachvamos. O bravo revolucionrio, em nome da igualdade, da liberdade e da humanidade, acionou aRepblica Rio-Grandense para cobrar os servios prestados pelos seus negros ao movimento. Outrospapis (CV 629), por exemplo, mostram o processo em que o suplicante, Almeida, tenta ser ressarcidopelos servios de 53 escravos revoluo entre 1o de junho e 20 de outubro de 1836, quandotransportaram tbuas para a construo de balsas, carregaram alimentos, carnearam gado, serviram detodo jeito e com o melhor das foras oriundas da frica. Ideais, ideais, negcios parte!

    O processo consistiu em provar o nmero de escravos envolvidos na operao e em fixar o valorda diria de trabalho de cada um. Na poca, a justia era lenta e a pendenga arrastou-se por um bomtempo. Foram ouvidas testemunhas. Peritos tiveram de atuar. O suplicante pressiona, esclarece,confunde, injuria, lamenta-se, exige receber o que lhe de direito por ter posto a servio da revoluoque ajudou a conceber os seus bons escravos. V-se um homem prtico e capaz de separar o joio dotrigo, o branco do negro, a utopia da realidade etc. Acima de tudo, preserva o seu ideal maior: apropriedade. Mesmo que seja de seres humanos. Domingos Jos de Almeida, por seu feito regionalcriativo, merece um lugar eterno na galeria universal da infmia.

    No documento ignominioso, como em outros, ele esclarece que serviu em 1837 de fiador deemprstimos da Repblica junto a Joo Ramirez e Juan Jos Victorica, dando seus negros comogarantia. Ao deixar o Ministrio da Fazenda, explica, mandei dar ao dito Victorica poro de gado decriar. Seu sucessor, Antnio Vicente da Fontoura, anulou a operao por consider-la suspeita e semplena justificao. Ao final, Almeida (CV 637) listou onze escravos para vender a Leo Chastan esaldar a dvida com Victorica: Manjolo, carneador, 400$000; Toms, graxeiro, 250$000; MariaJoaquina, graxeira, 300$400 etc. Tudo, como sabem os liberais, tem preo. O importante era seguir osvalores de mercado. Esse tipo de disputa cheia de ideais se vincula ruptura que ocorreria na reunioda Constituinte, em Alegrete, entre a minoria de Fontoura e a maioria de Almeida, a partir dedezembro de 1842.

    Ainda no documento ignominioso, protestando contra a atitude de Fontoura, Almeida escreveumais algumas extraordinrias linhas dignas de figurar no catlogo das iniquidades regionais, quiuniversais: Tendo em 1837 afianado para com Joo Pedro Ramirez e o mesmo Victorica poro degneros para municiar e vestir o exrcito, como comprovam os documentos G, H, para pagamento dorestante dessa fiana e da quantia acima pr-indicada, pouco antes de deixar o ministrio que ocupava,mandei dar ao dito Victorica poro de gado de criar, mas anulando o Sr. Fontoura essa ordem,ficaram a importncia dos escravos alugados garantindo o restante da dvida do governo, e o restodaqueles que eu ainda possua hipotecados ao que devia a Victorica [...] Este ato do Sr. Fontoura paracomigo, que de outro procedimento me julgava credor pelos meus servios e sacrifcios que deixo

  • mencionados, me arrancou justos queixumes, e esses queixumes, como suponho, me proporcionaram aperda de doze dos melhores escravos que eu tinha em Montevidu, e todo o mal que depois o Sr.Fontoura teve a ocasio de fazer-me; porquanto negando-me tenazmente em agosto de 1842 a quantiaque eu devia a Victorica, e que reclamei para mand-la e retirar meus escravos antes que se verificassea invaso das tropas de Buenos Aires, caluniou-me, tirou-me os meios. Pobre Almeida, to vilmenteinjustiado!

    Nesse documento ignominioso, Almeida lamenta realmente que a abolio da escravatura noUruguai o tenha feito perder esses doze dos seus melhores escravos, incorporados ao exrcito porRivera para defender-se de seus inimigos. Em dezembro de 1842, com a lei 242, Rivera decretara,considerando que desde 1814 os nascidos no Uruguai eram livres e desde julho de 1830 no se podiaintroduzir novos escravos vindos do estrangeiro, que: Art. 1) Desde la promulgacin de la presenteresolucin no haya esclavos en todo el territorio de la Repblica. Art. 2) El gobierno destinar losvarones tiles que han sido esclavos, colonos o pupilos, cualquiera que sea su denominacin, alservicio de las armas por el tiempo que crea necesario. Na prtica, os negros militarizados aindaeram escravos do exrcito uruguaio. A libertao total viria com a desmobilizao. Mulheres, crianase homens inadequados para a guerra ficavam sob a proteo dos antigos senhores. Rivera devia acharque quando a libertao demais o escravo fica desamparado. No Rio Grande do Sul, quis-se ver naincorporao compulsria ao exrcito farroupilha da minoria dos negros disponveis uma aboliocompleta. O procedimento de Rivera foi o contrrio: deu liberdade formal a todos e conservou emarmas os vares de que necessitava. Os farrapos mantiveram todos os negros em cativeiro. Fingiramdar liberdade aos de propriedade dos adversrios que pegaram em arma. Depois, devolveram-nos aosimperiais.

    Mais tarde, furioso com tantas injustias e arbitrariedades contra os seus altos ideaiscomerciais, Domingos Jos de Almeida reclamou que a comisso de indenizaes nomeada peloImprio em acordo com os ltimos chefes farrapos, sob a influncia de Fontoura, no estava sendocorreta com ele. Afirmou que muitos comerciantes foram reembolsados com base em preosexorbitantes, com mais de 40 ou 50% de lucros. Em outras palavras, houve superfaturamento, essavelha prtica do ganho fcil e rpido. Fontoura, o negociador da paz, era escravocrata assumido. Noseu dirio, indica que o movimento farroupilha implodiu mesmo quando Jos Mariano de Mattosprops na Constituinte a libertao dos escravos: Cada vez mais me conveno que, quando essemulato votou em plena Assembleia pela liberdade geral dos escravos, foi com o fim sinistro de tudoconfundir para, no incio geral da consternao, roubar-nos mais amplamente e evadir-se para o pasvizinho. No existe prova documental de que Mattos tenha realmente apresentado essa proposta.Pode ter sido provocao.

    Pragmtico, Fontoura, como ministro da Fazenda, sabia muito bem que no havia qualquerinteno de dar liberdade aos escravos. Em correspondncia ao general Neto, de 20 de outubro de 1842(CV 4876), menos de um ms antes de instalada a Constituinte, ele fazia saber que o governo daRepblica, convicto da necessidade de tomar medidas enrgicas para salvao da Ptria, h por bemautorizar-vos para que logo e oportunamente que nossas operaes o permitirem lanceis mo de toda aescravatura dos dissidentes da causa da Repblica, que estejam ou no em terreno ocupado peloinimigo. Ao mesmo tempo, informava que se pediria a cada republicano um escravo ao que tivertrs vares, e dois, a seis, e sobre a mesma base os que tiverem mais, passando-se-lhes documentospara oportunamente serem pagos. Espoliava-se a escravatura do inimigo. Pedia-se uma contribuio,em nome do esforo de guerra, em escravos aos amigos. Estes seriam indenizados e manteriammetade dos seus escravos vares no cativeiro trabalhando para sustent-los.

  • Na correspondncia dos farrapos comum se encontrarem lamentaes pela falta de escravospara as tarefas cotidianas. Joo da Cunha Pessanha, em carta a Domingos Jos de Almeida, de 10 dedezembro de 1842 (CV 7300), queixa-se de ver-se sem escravo algum que o sirva. Claro que osimperiais no eram diferentes. O tenente-coronel Vidal Jos do Pilar, em 4 de fevereiro de 1842 (CV7306), censurava um subordinado por ter andado trocando bestas por uma escrava. Bento Gonalves(CV 7101) mandava confiscar escravos e cavalos com a mesma eficcia e clareza. Vez ou outra, o pioracontecia com os escravos tem fugido toda a negrada que eles tinham agarrado a na serra (CV7070) ou se dava o inconveniente de algum no querer entregar os negros (CV 7290). Tudo eraclaro.

    Por trs dos discursos luminosos, brilha a transparncia dos fatos opacos. O projeto impresso,mas no votado, da Constituio considerava cidados apenas os homens nascidos livres. Osprincipais chefes farroupilhas deixaram escravos aos seus herdeiros. O imaginrio da poca no servede desculpa. Caxias esmagou insurreies brasileiras pela liberdade dos negros. O documentoignominioso talvez possa ser interpretado como uma lio de pragmatismo: financia-se a revoluocom a venda de negros e promete-se a liberdade aos que lutarem, especialmente os vindos do inimigo.Aos demais, diz-se que no existe almoo grtis. O general Morivalde Calvet Fagundes, em livrolaudatrio de 1984, descreve o financiamento da Revoluo Farroupilha por Domingos Jos deAlmeida com estas fantsticas e singelas palavras neutras: A mais uma vez sobressaiu-se acapacidade administrativa de Almeida, feito, com muito acerto, ministro do Interior e da Fazenda.Depois de haver posto venda propriedade sua, para com o produto resultante comprar osmantimentos necessrios aos emigrados da Revoluo, comprometeu outra parte maior e, com ajudadas firmas de 2 ou 3 patriotas mais, conseguiu os recursos necessrios para o recomeo da guerra.Pde, assim, enviar a Neto valiosas cavalhadas, que, de 5 de janeiro a 28 de abril, subiram a 2.355animais (1984, p. 200).

    Por que no descreve a natureza das propriedades vendidas? Omite por desconhecimento ouestratgia? Sente vergonha? Por que no calcula quantos cavalos vale um negro com bons dentes?Quantos bois vale uma escrava? Por que no reflete sobre os altos valores morais de um mulatoescravagista e inspirador de um movimento revolucionrio ambguo, ora separatista e republicano, oraapenas desejoso de ser mais bem tratado pelo governo central, ora humanista, ora pragmtico? ARevoluo Farroupilha parece ter sido feita imagem e semelhana do seu mentor. O generalMorivalde Calvet Fagundes tem razo: um homem que vende negros para financiar um movimentocapaz de ter pretenses abolicionistas s pode ser um gnio administrativo. Almeida, na verdade, foium sujeito extraordinrio, de uma atividade mental e fsica excepcional. Para muitos foi o crebro darevoluo, no sentido de que tudo cuidava e a tudo providenciava [...] Ao iniciar-se a revoluo,Almeida abraou-a ardorosamente, e, graas ao seu tino administrativo, fundou um verdadeiroarsenal... (1984, p. 398-99)

    A diversidade de opinies faz a beleza da Histria. Spencer Leitman, pelas mesmas razes deCalvet Fagundes, descreve Domingos Jos de Almeida como um testa de ferro ou um traficante deinfluncia em busca de novos bons negcios: Como ministro do Tesouro, controlou uma importanteparte do comrcio: o agrupamento das manadas e os acordos entre os agentes de gado uruguaios eFarrapos e as charqueadas em Montevidu. De certo modo, influenciou os preos e a direo do fluxo,manipulando as taxas e controlando as pastagens confiscadas dos legalistas. Mas, como no passado,depois da declarao da independncia, a maior parte do comrcio continuou sob a forma decontrabando. No entanto, na esfera econmica Almeida tinha mais influncia do que qualquer outrofarrapo. Temendo uma acusao de conflito de interesses Almeida liquidou suas operaes de charque

  • em Pelotas, sem perder o controle da propriedade (1979, p. 159).Em carta a Israel Rodrigues Barcelos (CV 653), de 17 de janeiro de 1846, Domingos Jos de

    Almeida, tendo recebido resposta de David Canabarro ao seu infame pedido de ajuda, exigia que acomisso de indenizaes lhe pagasse 19:629$170, visto estarem solenemente legalizados como sev nos documentos e peas cobertos pela citada carta de Canabarro. A sua justificativa no podia sermais pura e cristalina: Isto assentado, ningum me poder tachar de exigente ou de importuno emreclamar a reparao de um dano contra mim acintosamente promovido por um indivduo ento meufigadal inimigo, como exuberantemente se evidencia por documentos incontestveis que por segundavez ofereo ao seu exame e conhecimento. Alm das perdas com os negros vendidos, hipotecados,alugados ou desapropriados, Almeida cobrava tambm o valor de outro produto, um barco perdido.

    Na disputa entre Almeida e Fontoura, dois gigantes da Revoluo Farroupilha, cujos valoresmaiores, conforme os seus admiradores, eram a honra e a probidade, chamam a ateno os termosaltamente diplomticos e altivos usados por ambos para qualificar suas argumentaes. Em carta aIsaas Antnio da Silva (CV 617), de 25 de dezembro de 1842, Almeida, tratando de letras sacadas afavor do Tesouro, refere-se a mais essa prova da impudncia e fraude do monstro Fontoura, que paravergonha dos republicanos rio-grandenses manchou por dilatado tempo uma das mais importantespartes da administrao. Prev que a Repblica poder desaparecer por causa das tramoias deFontoura. J em carta a Fulgncio Chevalier (CV 618), tambm de 25 de dezembro de 1842, consegueser ainda mais explcito: Fontoura, esse perverso vendido ao governo do Brasil, j deixou deenvergonhar a Repblica descendo do ministrio que manchou, e de onde promovia o enterro da causario-grandense, a tanto custo sustentada desde 1835.

    A linguagem de Antnio Vicente da Fontoura sobre Domingos Jos de Almeida nunca foimenos vibrante do que a do adversrio. No seu dirio, em 15 de junho de 1844, Fontoura anotou: Operverso Domingos Jos de Almeida est em Pelotas anistiado, e j requerendo ao governo dez contosde ris de um iate que outrora lhe apreenderam. Que homem safado! Que mais me falta ver nomundo?. Feita a paz, que ele negociaria por baixo dos ponchos, no Rio Grande do Sul, com o Barode Caxias e, no Rio de Janeiro, com os superiores do baro, faltava-lhe ver a guerra pelasindenizaes. Uma guerra sem quartel.

    Mais dois exemplos da sua ira contra Almeida: Depois de anistiado e com aquela cara to sem-vergonha, veio o Almeida ao campo da diviso do Neto, e foi, ou inda est seu companheiro de tenda(25 de julho de 1844). Almeida cometera o mais vil dos pecados na tbua de valores de Fontoura:pedira anistia individual ao Imprio. Que lstima no se haver inda o Almeida lembrado de pedir, emrecompensa de suas ladroeiras e traies, a nomeao de condestvel da Repblica (28 de julho de1844). A Repblica teve os seus agiotas, os seus mercenrios, os seus degoladores, os seusestupradores, os seus investidores despudorados e os seus pragmticos. Tudo isso num clima deprofundo idealismo retrico.

    Apesar disso tudo, Cludio Moreira Bento, em Domingos Jos de Almeida, o diamantinenseque foi o crebro e o maior estadista da Repblica Rio-grandense 1836-1845 (Instituto Histrico eGeogrfico de Minas Gerais, 1981), rotula a Revoluo Farroupilha de a mais cavalheiresca domundo (p. 4) e o prprio Almeida de republicano e abolicionista (p. 8). certo que Moreira Bentotem posies originais. Para ele, o general Olimpio Mouro Filho, que deflagrou o golpe militar de1964, detonou uma revoluo democrtica a fim de, obviamente, fazer do Brasil uma democracia(p. 11). Domingos Jos de Almeida morreu de amolecimento cerebral. Mas certamente no foi issoque o levou a considerar-se como abolicionista e a dizer que fez de tudo pela cessao do trficonegreiro (apud Bento, 1981, p. 17). O seu trabalho de libertao teria passado pela formao dos

  • corpos de lanceiros negros e, em 24 de outubro de 1845, como vereador, pela defesa da criao de umdefensor pblico de escravos em cada municpio. Quanto humanismo!

    Sempre tranquilamente contraditrio, Cludio Moreira Bento mostra que Almeida chegou falido Revoluo Farroupilha. Em 18 de setembro de 1834, teve de aceitar uma concordata. Os credores,que lhe haviam emprestado 169 contos, deram-lhe at 18 de setembro de 1834 para se recuperar,aconselhando-o a no especular no comrcio e a no avalizar ttulos, restringindo-se a gerir a suacharqueada e a sua olaria. O mais incrvel que Moreira Bento registra que a Revoluo Farroupilhalevou-lhe 88 dos escravos que possua e servios por eles prestados causa farrapa e no indenizados(1981, p. 19). O abolicionista teve, informa Bento, de sustentar a si e a sua numerosa famlia comrendas auferidas de trabalhos de 17 escravos da sua propriedade. A verdade simplesmente infame:Almeida buscou na revoluo um meio de fugir da crise financeira em que se encontrava. No deucerto.

    Ao final, recebeu mais oito anos dos credores para reerguer-se. Segundo Moreira Bento, oabolicionista para recuperar a sua casa e comprar novos escravos contraiu a dvida de 42 contos deris (1981, p. 20). Como a clera-morbo matou seus negros, Almeida generosamente fundou umlazareto, em 1857, para defender as suas propriedades humanas. Um bom empresrio deve sabercuidar do seu patrimnio. Bento trata ainda da priso de Almeida, em 13 de maro de 1844, por BentoManoel. O prisioneiro fugiu, mas no deixou de manifestar estranhos sintomas precursores dasndrome de Estocolmo: Em 1836, deixei a priso conspirando dio aos guardas. Em 1844, os deixeiconstrangidos isento de sentimentos rancorosos contra algum e ansioso para auxiliar meus captores.Esta lio no deve ser esquecida (apud Bento, 1981, p. 24). Estaria ansioso para auxiliar seuscaptores? Seria um generoso e incontido desejo de trair a Repblica?

  • NETO PERDE SUA TICA

    DOMINGOS JOS DE ALMEIDA vendeu seus negros para financiar o movimento e pediu reembolsofarroupilha e imperial. Vendo que no levaria, mandou sua carta infame a David Canabarro (CV 652)pedindo que intercedesse junto a Caxias para que o pacificador influenciasse a comisso deindenizaes em seu favor. Os termos de Almeida so de uma clareza digna dos melhores chantagistasde todos os tempos: Uma carta sua ao nobre Conde de Caxias, cobrindo os documentos que citei eadjunto [...] apadrinha minha justa reclamao. Em caso de insensibilidade do outro, Almeidalembrava que a soluo amigvel do problema o pouparia ao penoso trabalho de publicar todo oocorrido a este respeito para conhecimento de meus credores e daqueles que supem fundadas ascalnias de que tenho sido vtima.

    Antnio Vicente da Fontoura, o definitivo emissrio da paz em nome dos farrapos, chamouvrias vezes de ladres os principais lderes da sua imaculada Repblica. Era um homem franco etemperamental. Acusou muitos deles de desviarem dinheiro pblico. Ao final, descreve-os, no seudirio, escrito na forma de cartas esposa, juntando velhos recibos para verem se inda podem pilharalguns pataces ou, numa linguagem bem atual, s cuidam em arrecadar recibos velhos parachuparem o dinheiro que puderem. Um documento muito instrutivo (Coleo Varela 6601) mostraque o governo central liberou uma verba secreta para conceder, na linguagem bondosa de Caxias,pequenos favores para os rebeldes. O homem da cueca dessa histria, Rodrigo Jos de FigueiredoMoreira, registrou tudo isso com esmero e rigor: Relaes das quantias que entreguei ao Ilmo. Sr.Antonio Vicente da Fontoura para as despesas secretas da pacificao da Provncia, por ordem doExmo. Sr. Presidente Conde de Caxias. No fim da lista, cujo montante alcanou 608:000$000,cobrindo os anos de 1845 a 1847, Moreira ressalva ser somente o que entreguei ao Exmo. Sr.Fontoura sem compreender outras quantias, que entreguei a diversas pessoas. O cerebral e incansvelDomingos Jos de Almeida levou 2.000$000.

    Em 7 de outubro de 1850, Moreira escreveu a Vicente da Fontoura, j meio perdido nas contas,para dizer que lhe mandaria em anexo a relao dessas despesas secretas da pacificao daProvncia, pois tinha anotado num caderno tudo o que ia dando. Outro documento (Revista doIHGRS, IV trimestre 1828), de 22 de julho de 1845, lista 289 nomes indenizados pelo governo central,sendo os valores em moeda forte sobre a base de 960 ris cada pataco prata. O primeiro da listanoblesse oblige Bento Gonalves da Silva, que sacou 4:800$000. O prprio Antnio Vicente daFontoura, que distribuiu a verba, teve direito a 965$578. Domingos Jos de Almeida no levou maisdo que 4:016$000. Essa partilha no se fez sem presses, insultos, choradeira e inimizades. A maioriados indenizados formada pelos fornecedores voluntrios ou involuntrios dos rebeldes. A longaguerra civil deixou um rastro de desapropriaes a serem pagas. J a relao mais completa (CV 4887)apresenta 334 indenizados com o nmero de cada recibo. Por essa lista, Fontoura recebeu 1:085$471.At o Padre Chagas, irmo de David Canabarro, levou o seu: 398$000. Ismael Soares, amigo de BentoGonalves, teve direito a parcos 191$309.

    Documentos costumam no ter virtudes. Somente verdades incmodas. Quem semeia mitos, seno tomar cuidado, colhe inverdades e revises tardias. Os farrapos no eram revolucionriosdesinteressados. Bento Gonalves, finda a guerra, tentou dar-se uma imagem de pobre, de homemarruinado pelos seus ideais. Teria pedido emprestadas duzentas cabeas de gado de cria pararecomear a vida. O historiador Alfredo Ferreira Rodrigues, o maior adulador dos farrapos, tentouconfirmar esse mito em Pobreza de Bento Gonalves, texto publicado no seu Almanak Literrio e

  • Estatstico da Provncia do Rio Grande do Sul (1989, p. 175). Morivalde Calvet Fagundes (1984, p.412) repete essa lenda, citando um trecho da carta de 6 de maro de 1845, em que Bento se despede doamigo Dionsio Amaro acusando os farroupilhas que fizeram a paz de serem ambiciosos de mando eouro, numa guerra que s podamos perder, e conclui com uma chantagem sentimental de folhetimda pior espcie: Sigo para a minha pequena fazenda, com a glria mui ingrata de achar-me o homem,talvez mais pobre do pas. Havia outros.

    O norte-americano Spencer Leitman reduziu essa fantasia idlica e bonita a p de mico lendo oinventrio do caudilho farrapo, que morreu dois anos apenas depois de costurada a paz, e o relatrioda repartio dos negcios estrangeiros apresentado Assembleia Legislativa, em 1851, no Rio deJaneiro: Bento Gonalves tinha prazer em dizer que era talvez o homem mais pobre do Rio Grandedo Sul, o que no era verdade. Quando morreu em 1847, sua estncia Christal na rea de Camaqutinha cinquenta e trs escravos e valia cinquenta e sete contos. Tanto ele como seus filhos possuamgrandes extenses de terra na Banda Oriental (1979, p. 157). O prprio general Morivalde cita oinventrio, embora referindo 33 escravos e 3.746 braas de campos, o que lhe impe uma conclusofatalmente a contragosto: Os herdeiros de Bento Gonalves, um decnio aps o seu passamento, seno podiam dizer que eram opulentamente ricos, pelo menos no podiam afirmar que eram os maispobres da Provncia (1984, p. 417). O golpe mortal de Spencer Leitman, que destaca o fato de BentoGonalves ter recebido aposentadoria militar, descortina a malcia direta e serena do pragmatismo:No h informaes precisas sobre os negcios de Bento Gonalves, mas ele era muito ativo. Todossabiam que seu irmo e dois sobrinhos vendiam gado no distrito de Camaqu sob controle legalista(1979, p. 147). Essa afirmao vem de uma carta do legalista Joo da Silva Tavares. Nem o generalNeto saiu ileso. Fontoura lembra-se, em anotao de 21 de janeiro de 1845, no seu dirio to ntimo ecruel com seus amigos-inimigos, de que o intrpido comandante Neto, talvez o mais romntico dosfarrapos, recebera 250 mil cruzados, em 1837, afirmando que tal dinheiro seria aplicado para vestir atropa que ento assediava Porto Alegre, mas, pobre tropa!, o dinheiro recebeu-se e ela continuou nanudez....

  • OS QUATRO DIAS DO INFERNO

    RARAMENTE AS QUESTES DE DINHEIRO entram nas cartilhas escolares sobre a vida dos heris de um povo.Antnio Vicente da Fontoura, porm, foi obrigado a cumprir uma ltima misso depois de vencer seusadversrios internos e de costurar a paz com o Imprio. Coube-lhe, embora no fosse o presidente dacomisso, distribuir o dinheiro das indenizaes. Em 27 de fevereiro de 1845, no seu dirio, nosltimos ajustes para a rendio de Ponche Verde, obtidas certas concesses do governo central, ele jse queixava da lentido do pardo Joaquim Pereira de Borba, inspetor do Tesouro, encarregado porLucas de Oliveira de tirar a relao dos credores do estado para serem pagos. Parecia que algosuspeito se preparava, e at Caxias desconfiou. Afinal, como observou Fontoura, Borba levou doismeses para realizar um servio de, no mximo, quatro dias.

    A infmia nunca modesta. Requer grandes meios. Em carta de 25 de fevereiro de 1847 aosdemais membros da comisso de indenizaes (Revista do IHGRS, IV trimestre 1928, p. 538-542),Antnio Vicente da Fontoura descreveu o que chamou de os quatro dias do inferno, perodo em que,instalado em Porto Alegre, pagou as indenizaes. Quando chegou, recebido pelo presidente daProvncia, soube que o dinheiro para a operao, 350 contos, no estava disponvel. Passou diasesperando a liberao dessa verba. Em 10 de fevereiro de 1847, enfim, comeou a receber os credorese encaminhar os recursos. Um certo Fidlis, de So Gabriel, acusou prontamente a comisso deentregar por fora, atravs do mulato Anastcio, onze mil pataces a David Canabarro, que, segundoo denunciante, receberia ainda mais trinta mil por papis de outro, um tal de Francisco Maciel deOliveira o que hoje se rotularia de laranja.

    Fidlis acusava tambm o presidente da comisso de ser o negociante mais forte de So Gabriel.Embora a redao de Fontoura seja confusa, chamando esse Fidlis de mentiroso, possvel saber queum sujeito teve um lucro de seis contos na indenizao, pois muitos haviam adquirido papis deoutros com desgio. A especulao correu solta. Houve quem adquirisse papis com cinquenta porcento de desconto. O melhor vem quando a pena de Fontoura se torna mais clara: Poucos dias depoisde se haver retirado o Fidlis, chega o homem mais infame que tem produzido o Rio Grande BentoGlz da Silva. Era assim que Fontoura qualificava o chefe farroupilha: o mais infame. Bento erasempre o primeiro em tudo. Segundo Fontoura, Bento tratou de espalhar as mesmas denncias do talFidlis, alegando tambm ser prejudicado pela comisso. Pelo jeito, ele ameaou o inimigo,transformado em homem do caixa, com palavras destitudas de ambiguidade: E que devia morrer queele mesmo seria o primeiro a assassinar-me. Por certo, bastaria uma vez.

    O coronel Marques, heri imperial tido por todos como um homem probo, ciente dasreclamaes, teria chamado Bento Gonalves de o chupador mais sem-vergonha. incrvel comocertas expresses conseguem se manter atuais. Para calar a boca do caudilho, que exigia dez contos deris, foram pagas as indenizaes de certos indivduos. Fontoura ressentia-se do fato de que Bentojogava contra ele os inimigos da pacificao, gente que no tinha ficado contente com o entendimentosecreto entre Canabarro, por meio de Fontoura, e o Imprio. Houve presses, jogos de influncia,apadrinhamentos, apresentao de papis pertencentes a terceiros. O valor disponvel era muitoinferior soma reclamada pelo conjunto dos credores. Bernardo Pires, grande amigo de DomingosJos de Almeida, esperava mais de sessenta contos. Fontoura deixou os valores maiores para o fim.No custa lembrar que pela relao de Rodrigo Moreira foram feitos pagamentos secretos tambm em1845 e em 1846.

    O dinheiro que recebi e que foi distribudo consta do Imparcial no 248, diz Vicente da

  • Fontoura, antes de vituperar mais uma vez contra Bento Gonalves, que j tinha recebido os dezcontos de ris, mas queria mais. Como fazia os pagamentos na casa onde estava hospedado, esta setornou para mim o verdadeiro inferno, porque sem fora moral, e sem fora fsica pela maneirainslita com que a respeito se tem havido o governo, todos ou quase todos se julgavam habilitadospara expenderem suas palavras, segundo o grau de educao que os qualificava. Resumo da epopeia:especulao, mentiras, chantagem, ameaas e insultos. Antnio Vicente da Fontoura, ao final da carta,pedia obviamente completo sigilo de tudo.

    Jos Antnio Silva (CV 4888) acusou a comisso de indenizaes de fazer negcios particularespagando por menos da metade em dinheiro, fazendas e a prazos. Fontoura respondeu ao pai dofalecido: Que infame e insolente mentira. No foram poucas as reclamaes desse naipe. Certoshistoriadores preferem poupar o leitor da catilinria dessa carta de pssima redao e alto teor dedenncia implacvel. Antnio Vicente da Fontoura nunca deixou de ser visceral. Quando negociava apaz, enfrentou resistncias de Neto, Bento Gonalves, Almeida e at de Joo Antnio. No seu dirio,anotou algumas explicaes para essas corajosas tentativas de continuar a guerra: Ser crvel? Poder-se-ia acreditar que Joo Antnio tambm um desses entes corrompidos que no querem a paz? JooAntnio? E no a quer s porque no lhe confirmou o governo imperial a patente de general! (10 defevereiro de 1845). Lucas de Oliveira tambm teria hesitado em apoiar a paz, em certo momento, pormedo de no ter seu posto militar reconhecido pelo Imprio. Foi atendido.

    Sem qualquer meno s denncias do tal Fidlis contra a comisso de indenizaes, SouzaDocca (apud Calvet Fagundes, p. 374) garante que o nome de Canabarro no figura na listaignominiosa dos ajustes de contas. O general de Porongos no teria recebido um real dos cofres doImprio, quando se firmava a paz e em seguida a esta. No teria se abastardado nessa sedutora emiservel questo de dinheiro, em que os homens fteis, fracos e covardes, esquecem que o maior dostesouros a probidade, e conseguem meios para um passageiro bem-estar material, em troca daexecrao eterna dos seus nomes. Portanto, a lista deve mesmo ser vista como ignominiosa? Todosesses adjetivos podem ser aplicados a Bento Gonalves? E a Domingos Jos de Almeida? Afinal, foiexatamente o que deles disse mil vezes Antnio Vicente da Fontoura. A defesa de um enterra outrosainda mais.

    O pudor de certos historiadores pode atingir nveis inimaginveis. O tenente-coronel HenriqueOscar Wiederspahn, comentando essa carta de Antnio Vicente da Fontoura e seus chiliques nacomisso de indenizaes, alega que Bento Gonalves recebeu apenas 4:800$00 de uma dvidareconhecida de 5:517$696, sendo que Fontoura teria tentado impedir o pagamento ao inimigo. Numacesso de discrio incomensurvel, o historiador militar prefere abster-se de transcrever averdadeira catilinria redigida e apresentada pelo mesmo Antnio Vicente da Fontoura a Manuel JosPereira da Silva e aos demais membros da comisso [...] na qual denomina Bento Gonalves da Silvacomo o homem mais infame que tem produzido a Provncia, citando-o cerca de quatro vezes mais emtermos acres e at acintosos (1980, p. 111). Onde se viu desconfiar dos farroupilhas e insinuarpresses indevidas do presidente da Provncia? Ao menos, Wiederspahn remete o leitor maispersistente para a fonte onde poder ler a ntegra dessa catilinria da qual preferiu poup-lo como umjornalista disposto a passar ao largo da notcia para no ser acusado de sensacionalismo.

    Alfredo Ferreira Rodrigues, com a autoridade suprema de quem viveu depois dos fatos, temuma verso mais cndida de tudo: Os chefes da revoluo, os responsveis por ela, no pensavam emproventos pessoais, cuidaram apenas de garantir os direitos dos seus companheiros de armas e delegalizar os atos praticados durante a Repblica pelas autoridades civis e eclesisticas. Eles foram osnicos que no tiveram os seus postos reconhecidos, os nicos que nada pediram para si, a no ser o

  • direito de viverem na ptria (1985, p. 284-85).Como se viu, documentos so como um cu estrelado: podem exibir diferentes brilhos e outras

    verses.

  • O QUE PROVA UM CARRAPATO?

    PODE-SE COMEAR A HISTRIA pelo fim. Afinal, os espelhos que se refletem ao infinito levam todos aomesmo lugar: uma imagem feita de pedaos que sempre acabam por se encaixar. Chega, porm, ummomento em que preciso tentar entender como tudo comeou. O mito das origens se refleteessencialmente numa eterna especulao: qual a razo inicial? Como num jogo de dados feito detantos acasos se d o instante que ficar para sempre cristalizado num quadro cubista? Trocando emmidos, no caso em tela, por que a Revoluo Farroupilha aconteceu?

    A principal causa da Revoluo Farroupilha foram os carrapatos. O surto de 1834 abalou o gadodos estancieiros do Rio Grande e provocou uma crise sem precedentes. Esse infortnio tomaria, apartir de 1835, um tom poltico e de confronto com o poder central, provocando uma guerra civil, aproclamao de uma Repblica e dez anos de mortandade. Parece uma zombaria, mas verdade. Esse o ponto em discusso. Prova? O que prova que uma prova uma boa prova? Jorge Luis Borges,citando Agripa, o ctico, sugere que impossvel se provar alguma coisa, pois toda prova requer umaprova anterior. O Agripa em questo, por exemplo, no o Agripa que primeiro vem mente detodos, mas talvez Heinrich Cornelius, um filsofo ligado ao famoso Pico della Mirandola, autor deuma obra, em certo sentido, duvidosa De Vanitate et incertitudine scientiarum.

    Jean-Franois Lyotard, o filsofo que assinou a certido de nascimento do ps-moderno comocrise das narrativas legitimadoras, formulou assim o mesmo problema: O que eu digo verdadeiroporque o provo; mas o que prova que a minha prova verdadeira? (1986, p. 45). A humanidadejamais para de lutar pelo controle dos imaginrios. Toda pesquisa tem uma funo de narrativa(des)legitimadora. Uma narrativa que deslegitima uma viso de mundo ao mesmo tempo legitimaoutra e vice-versa. O pesquisador um decifrador de imaginrios cujo objetivo descobrir(desencobrir), fazer emergir, trazer tona, dar luz, revelar o que se esconde sob a tnue camada dasmitologias incorporadas ao cotidiano. Feito um jornalista ou um cronista, o historiador descobre o queest diante dos olhos de todos mas no pode ser visto por excesso de proximidade ou de investimentoafetivo. Na guerra pela hegemonia dos imaginrios, cada discurso ou relato uma operao narrativa(des)legitimadora.

    preciso narrar visceralmente o que aconteceu sem se deixar levar pelas paixes. Existedistanciamento intelectual por falta de virtude. Quer dizer, pelo desejo obsessivo de demonstrar oserros dos outros. Esse o paradoxo da coisa: s algum muito prximo pode ter razes e foras parase distanciar. Pode-se evitar a paixo exceto quando acontece um descuido por cansao da razo. Oideal impossibilitado pela inverossimilhana de muitos acontecimentos seria contar a histriadessa guerra civil como romance a partir de quatro pontos de vista incomuns e provocantes: o dospossivelmente trados, os negros; o de um comandante vira-casacas, Bento Manoel, que lutou dos doislados e a todos venceu, sendo por isso menosprezado por todos, sem direito a esttua ou nome de rua,salvo em Alegrete ou nalgum recanto menos visvel; o de um heri acusado de traio, ou um traidorconsiderado heri, o general David Canabarro; e o de um farroupilha em guerra aberta, na busca dapaz, contra os seus companheiros, um certo Antnio Vicente da Fontoura.

    Pelo jeito, ainda no se passou tempo suficiente para se ter clareza sobre os fatos. Continuamosem p de guerra civil. S que agora lutamos, como prova da prova do que dizemos, a golpes dedocumentos incompletos e de interpretaes generosamente favorveis a quem as emite. Durante dezanos, de 1835 a 1845, bravos e valentes, os estancieiros do que viria a ser o Estado do Rio Grande doSul lutaram contra o Imprio do Brasil. Eram movidos por um ideal moralmente superior e ainda hoje

  • defendido por muitos idealistas: pagar menos impostos. Deram sangue, suor, vidas, filhos e at negrospor essa utopia. Principalmente negros alheios, capturados s tropas adversrias, aos quais prometiama liberdade desde que aceitassem viver e morrer lutando pelos seus libertadores contra o exrcito dosseus antigos e detestveis amos. Era um excelente negcio para os escravos. No tendo escolha, elessempre faziam a escolha certa na esperana de que ao final da guerra o contrato chegasse tambm aoseu termo. Faziam um investimento de alto risco e sem prazo fixo para saque. Apostavam livrementeno futuro. No podiam perder visto que tudo j haviam perdido.

    O negro Jesuno acreditou nessa promessa de liberdade e empregou a sua energia, durante cincoanos, a servio dos farrapos, tendo tambm lutado no lado oposto por um ano. Em 1874, contudo, nacondio de escravo de Epifnio Orlando de Paula Fogaa, respondeu a processo, acusado de matarFrancisco Dirceu Marinho de S Queiroz. Talvez nunca ouvssemos falar nele se o historiadorVinicius Oliveira no o tivesse resgatado de maos de papis fadados ao esquecimento. A trajetriadesse homem comum, pronto a guerrear por rebeldes e legalistas, feito um jogador de futebol sem cornem time, serve hoje de indcio ou de prova de um acordo no cumprido. Provas, de resto, faltarampara conden-lo no processo citado. Tinha, segundo informou, cinquenta e poucos anos, nascera emAlegrete, de pais desconhecidos, vivera como campeiro, soldado de circunstncia e escravo pordefinio.

    A guerra dos farrapos tem muito a ver com negros e com carrapatos, com negros exterminadoscomo carrapatos, negros exilados fora cujo silncio mortal ainda se pode ouvir. Jesuno no pdecontar a sua histria. Os negros que morreram em Porongos tambm no.

  • COMO INCORPORAR UM NEGRO

    CERTO QUE OS NEGROS LUTARAM ao lado dos farrapos. A inteligncia pragmtica dos farroupilhas revelou-se desde o comeo. As instrues de 4 de outubro de 1837 determinavam que o juiz de paz e o chefede polcia de cada municpio deveriam recrutar homens entre dezoito e 35 anos para as tropasrebeldes. Em primeiro lugar, seriam incorporados os vadios, os desertores do servio militar e osbriges. No h dvida de que uma tropa de vadios e arruaceiros resolve vrios problemas de uma svez: diminui o desemprego, pune os que fugiram das suas obrigaes militares, engrossa o contingenteem luta contra o inimigo imoral e dissemina o civismo compulsrio. S no contribua para a paz,com a retirada de circulao dos baderneiros, por ser um caso de guerra. Noutra perspectiva, seriapossvel dizer que houve uma mobilizao dos excludos ou uma aliana, por fora maior, entre osdois andares da sociedade de ento.

    Parece que os negros foram engenhosamente trados trs vezes. Na primeira, quandoacreditaram, ou fingiram crer, que ganhariam a liberdade ao fim da guerra com a vitria dosrepublicanos. Na segunda, no famoso episdio de Porongos, quando teriam sido dizimados num ataquesurpresa dos imperiais ou numa traio do comandante David Canabarro, que teria negociado com ooponente de maneira a livrar-se dos aliados negros convertidos em obstculos a uma rendio comjeito de acordo de paz. Salvo se no foi surpresa nem traio, mas apenas uma coincidncia se astropas imperiais caram justamente sobre o setor negro de Porongos enquanto brancos e ndiosescapavam. Na terceira traio, a mais recente e a mais sofisticada de todas, os negros farroupilhasso transformados pelos seus carrascos em heris de uma resistncia colossal que teria dado s tropasrepublicanas humilhadas em Porongos mais alguns meses de sobrevida. O ganho dessa consagraotardia certamente todo para os seus sinceros inventores. Se os republicanos tivessem armado todosos negros da Provncia, libertando-os do cativeiro, teriam formado um exrcito talvez imbatvel. Poralguma razo, no tiveram essa ideia simples. O pensamento vulgar conclui que os revolucionrios,oponentes de um Imprio escravagista, autoritrio e malvado, no queriam perder seus negros. Erammuito apegados a eles. No viveriam sem os seus servios. Precisavam deles para comer, dormir elutar.

    Domingos Jos de Almeida, como ministro da Fazenda da Repblica Rio-Grandense, assinouuma circular digna de nota determinando recrutamento geral de todas as pessoas nas circunstnciasda lei, bem como de todos os morenos que existam no mesmo departamento, cujos senhores nomostrarem documento de compra, ou no justificarem no ter o moreno sobre quem se disputa aposse, pertencido a inimigos da Repblica... (CV 329). A ideia era juridicamente perfeita: moreno,cujo proprietrio no tivesse a escritura ou a prova de no ter pertencido aos adversrios, devia serdesapropriado. O exrcito republicano recebia cada negro ou ndio, conforme disposio de BentoGonalves, em 20 de abril de 1838, de acordo com as suas capacidades: os mais geis e capazes eramdestinados ao corpo de lanceiros, ficando os demais destinados s delcias da infantaria, em cujasfileiras homem branco algum queria lutar. Por preconceito. Mas no, nesse caso, contra negros. Contraandar a p.

  • PUNIES E RECOMPENSAS

    AOS NEGROS J LIBERTOS DA PROVNCIA rebelde, depois de implantada a Repblica de 1836, o discurso eraligeiramente diferente, embora no menos generoso e eficaz: se desertassem ou fugissem para oinimigo, voltariam a ser escravos. Sem dvida, como prova a teoria do clculo do menor dano a simesmo, a tentao de arriscar a vida pelos estancieiros insurretos se via fortalecida no corao de cadanegro. Era s uma questo de como viver ou morrer. O decreto republicano de 16 de maio de 1839afirmava a importncia de se respeitarem os contratos firmados. Sem isso, no h como estabelecerrelaes de confiana mtua. O texto dessa lei, citado pelo historiador Moacyr Flores em Negros naRevoluo Farroupilha, de uma clareza exemplar: Todo homem de cor ao soldo da Repblica quefugar para o inimigo, volver condio de escravo, sempre que cair prisioneiro das ForasRepublicanas (2004, p. 53). Se foge um escravo que ganhou a liberdade para defender as forasrepublicanas, justo que fique rescindido aquele trato condicional. A ideia era de que no existechurrasco grtis. Restava saber se o preo do mercado era realmente justo. Mas os negros no perdiamtempo com detalhes mesquinhos. Precisavam morrer pelos amos.

    Alguns lderes farroupilhas, mais arrojados, defendiam posturas liberais avanadas para apoca. Fiis a esses princpios, no deixaram, ao trmino do conflito, de receber indenizaes doantigo inimigo. Moacyr Flores lembra, sem a menor ironia ou desrespeito, que um branco recrutadopodia eximir-se do servio militar desde que oferecesse em seu lugar um escravo com carta dealforria (2004, p. 49). Era um mtodo bastante eficiente, tico e coerente utilizado porrevolucionrios que tinham, como se sabe mas no custa repetir , por singelo lema liberdade,igualdade e humanidade. A mesma lgica igualitria e humanista determinava que oficiais esuboficiais do corpo de lanceiros recebessem soldos, enquanto os soldados eram aquinhoados com aroupa do corpo. Nada mais justo e belo. Afinal, a responsabilidade deve ser premiada em qualquercircunstncia e poca.

    Joo Manuel de Lima e Silva, tio de Caxias, organizador do primeiro corpo de lanceiros negros,tomou Pelotas para os farroupilhas em 7 de abril de 1836. Nem sempre se pode fazer a guerra com afamlia inteira do mesmo lado. O maior prmio pela batalha vencida foi a incorporao dequatrocentos negros do inimigo s foras rebeldes. Pelotas, principal centro charqueador da Provncia,contava com mais de cinco mil escravos. Lima e Silva s no engajou e armou mais negros porque osseus companheiros de revoluo tinham medo de criar um novo mal maior, de perder o controle dosescravos e de atentar contra a sacrossanta propriedade privada, especialmente as suas e dos aliados.Havia certo conflito em torno da questo dos escravos entre os estancieiros da campanha, menosdependentes da escravaria, e seus aliados charqueadores, usurios em grande escala do trabalho menosoneroso da mo de obra compulsoriamente no assalariada. Ao final, preservaram o escravismo emnome do pragmatismo econmico e das convenes sociais vigentes. Armar escravos tomados aoinimigo, sob a promessa de liberdade futura, s tinha vantagens: dispensava-os de armarmassivamente os prprios escravos e mantinha a ordem natural das coisas. Sem contar que dava umar progressista a uma rebelio caseira que pretendia impressionar o mundo sob inspirao dosfranceses.

    O governo central entrou na briga pelos negros com um decreto no menos ardiloso: um avisode 19 de novembro de 1839 fixou em duzentos a mil o nmero de aoites a aplicar em qualquerescravo capturado lutando pelo inimigo. Devidamente castigado, partindo do princpio de que ahumanidade, inclusive quando escravizada, funciona por punio e recompensa, o infeliz seria enviado

  • ao Rio de Janeiro, ficando disposio do dono, que, no entanto, no poderia traz-lo de volta Provncia para evitar recadas revolucionrias. J o escravo que desertasse das tropas rebeldes seriaanistiado e, suprema e generosa concesso, enviado para fora do teatro das operaes s custas doerrio imperial. Como mercadorias que eram, num Imprio escravocrata, os escravos fugidos dosinsurretos deviam ser avaliados quando se apresentassem s autoridades legitimadas pelo Imprio.

    Os farroupilhas reagiram com o decreto de 11 de maio de 1839. Para cada negro farrapoaoitado pelos imperiais, estavam autorizados os chefes militares rebeldes a sortear para fuzilamentoum oficial do Imprio que se encontrasse na condio de prisioneiro. Moacyr Flores observou a esserespeito com ironia sutil que no h notcias de que autoridades imperiais tenham surrado soldadosde cor republicanos e nem de oficial imperial fuzilado por esse motivo (2004, p. 33). Em 16 de maiode 1839, como j se viu, Bento Gonalves determinou a reescravizao de negros libertos quefugissem para o inimigo. Eram medidas de interesse militar. Nada mais. Muitos j quiseram ver nodecreto autorizando a execuo de oficiais imperiais, em represlia a aoites a negros republicanos,uma prova do abolicionismo farrapo. Nada mais insustentvel. Um decreto neutraliza o outro.

    Margaret Bakos mostrou que os farrapos consideravam mais grave a desero de um negroliberto do que a de um branco. No podiam suportar a ingratido. A historiadora, a exemplo de outros,indicou tambm que os jornais farroupilhas especialmente O Povo e O Mensageiro nuncadeixaram de tratar o escravo como mercadoria, publicando anncios de compra e venda de negros oude recompensas por delao de escravos em fuga. Era um delicioso discurso esquizofrnico em queliberdade e escravido ocupavam as mesmas pginas com a mesma naturalidade. Em 1814, conformedados oficiais do governo provincial citados por Bakos, o Rio Grande tinha uma populao livre de70.656 pessoas e 20.611 escravos. Em 1846, um ano depois de finda a guerra civil, a populaoescrava era de 30.841. O contingente escravo no diminuiu durante o decnio glorioso. Em 1858, apopulao livre chegava a 282.547, enquanto a populao escrava era de 70.880 indivduos. A Histria a madrasta dos mitos: Estes dados, por exemplo, revelam que o nmero de escravos negros mais doque triplica no perodo de 1814 a 1858 [...] Calcula-se que a populao escrava negra se constitua emquase 1/4 da populao total da Provncia no perodo em estudo (Bakos in Dacanal, 1985, p. 82).

    Cai o mito de que a proporo de negros na populao do Rio Grande era reduzida. Os farrapospodiam ter feito um grande exrcito negro. Spencer Leitman salienta que s em Pelotas havia cincomil escravos disponveis. O general Portinho, heri farroupilha, lamentou tardiamente o fato de noterem usado esse exrcito militar de reserva. Margaret Bakos destaca a ambiguidade farroupilha:Muitas pessoas testemunharam, aps o trmino do conflito, que os farroupilhas promoveraminsurreio na escravaria negra, com fim de remanejar os cativos para as fileiras revolucionrias.Agostinho Jos de Menezes denunciou o fato em Pelotas, onde, segundo ele, cerca de 304 escravosnegros foram desviados de seus proprietrios pelos farrapos em troca de promessas de liberdade(Bakos in Dacanal, 1985, p. 90).

    A esperteza, ou malandragem gacha, foi uma caracterstica farroupilha. No se opunham afazer bonito com o chapu dos outros, quer dizer, a fazer guerra com escravos alheios. Eram maiszelosos em relao aos seus. Certamente no queriam estragar as peas com ferimentos incurveis.Segundo Moacyr Flores, Bento Gonalves, na ordem do dia de 05 de julho de 1841, considerando arepugnncia dos continentistas para servir na infantaria, por serem excelentes cavaleiros, convida osrepublicanos para subscreverem escravos na arma da infantaria (2004, p. 34). O general MorivaldeCalvet Fagundes, em sua Histria da Revoluo Farroupilha, escrita 150 anos depois dosacontecimentos, louva as faanhas dos fazendeiros gachos e d, com seus conhecimentos militaresafiados, uma precisa definio do papel da infantaria num ataque: Os infantes (na verdade, um

  • peloto de praas desmontadas, munidas to-somente de pistolas e espadas) marcharam frente dogrosso, seguidos de uma grande massa de cavalaria. Foram recebidos, como era inevitvel desde quepercebidos, pelo fogo das baterias inimigas de terra e de bordo, em tiros diretos e rasantes (1984, p.144). Vale repetir o to-somente. Um passaporte mortal.

    Em linguagem leiga, interpretando-se livremente as palavras do general Morivalde, a infantariaera to-somente bucha de canho. Essa terminologia repugna alguns militares ainda hoje. Osinfantes, sem qualquer eufemismo, abriam caminho de cara para o fogo cerrado adversrio,empunhando espadas e pistolas. Nada mais razovel que os brancos farroupilhas no quereremparticipar de to honrosas foras, preferindo ir atrs delas, instalados no trono dos seus cavalos. Comoeram valentes e heroicos, algo indiscutvel, no era por medo ou excessivo apego vida querejeitavam servir na infantaria. Era mesmo por no gostar de andar a p. Um escravo, porm, no tinhaescolha. Caso sobrevivesse, mesmo a p, poderia sonhar com a liberdade. Era o preo.

    A documentao sobre isso tudo farta e encontra-se, em boa parte, na famosa Coleo Varela(CV), guardada no Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul, onde outrora se podia passar diasagradveis na juventude aprendendo sobre os costumes altamente civilizados e heroicos dos nossosantepassados. Que histria esta, afinal? Poderia ser a histria de como uns cem homens,majoritariamente negros, massacrados pelas foras imperiais, no distante 14 de novembro de 1844, emPorongos, foram convertidos em heris por representantes tambm tardios da mesma instituio queos massacrou, o que s traz paradoxalmente, como indicam documentos e louvaes, mais glria parao chefe mximo das operaes, aquele homem que entraria para a Histria como Duque de Caxias, opacificador, atual patrono do exrcito brasileiro, tido por alguns historiadores militares entusiastas,por essas e outras razes convincentes ou convenientes, como o primeiro abolicionista brasileiro.

  • UMA MOLECA PARA LINDOCA

    TUDO SE INTERLIGA: em lugar do bater de asas de uma borboleta, um surto de carrapatos para nunca seresquecido. Assim comeam os mitos e terminam os sonhos.

    Ao longo da primeira metade do sculo XIX, na qual se formaram e atuaram os farroupilhas,Portugal proibiu o trfico de escravos (1836), o Imprio Britnico aboliu a escravatura (1834) emesmo os vizinhos e amigos do Rio Grande, o Uruguai (1842) e a Argentina, de forma gradual (1813),de quem tanto os farrapos sofreram influncia, foram mais longe no combate ao odioso e prticosistema de ganhar dinheiro com o suor gratuito dos outros. O Brasil manteve-se firme. Osrepublicanos rio-grandenses nunca libertaram os negros. Estavam em guerra. Precisavam de quemtrabalhasse por eles. O projeto de Constituio da Repblica (artigo sexto) considerava cidadosapenas os homens livres nascidos no Rio Grande. O decreto de 20 de fevereiro de 1839 estabelecia ouso do tope da nao nos chapus dos cidados, excetuados os escravos. Finda a revoluo, osprincipais chefes republicanos seguiram a vida como sempre a tinham levado e deixaram escravospara os seus queridos herdeiros, segundo os inventrios divulgados pela historiadora Margaret Bakos(in Dacanal, 1985, p. 95): Joo Antnio da Silveira (1873), 2 em So Gabriel e 26 em Rio Pardo;Antnio Vicente da Fontoura (1861), 19; Jos Gomes de Vasconcelos Jardim, um dos presidentes daRepblica Rio-Grandense (1854), 47; Bento Gonalves da Silva (1847), 53.

    No h desculpa possvel nesse sentido para os farrapos. A prpria historiadora Margaret Bakos,em texto publicado na coletnea A Revoluo Farroupilha: Histria e interpretao, assinalou que lugar-comum na bibliografia do Rio Grande do Sul atribuir aos farroupilhas o ideal da abolio daescravatura negra (1985, p. 79), especialmente em funo de uma das clusulas de Ponche Verde, aquarta na relao assinada por Antnio Vicente da Fontoura, que dizia: So livres e como talreconhecidos todos os cativos que lutaram ao lado da Repblica. Mas os imperiais jamais assinaramesse documento. No existe uma Conveno de Ponche Verde assinada pelas duas partes. Houvetraio em Porongos e farsa em Ponche Verde, como sustenta Moacyr Flores (2004), ou farsa emPorongos e traio em Ponche Verde? Houve uma anistia dada pelo Imprio aos farroupilhas ou umacordo de paz? Ou a simulao de uma conveno para encobrir um pacto por baixo do ponchobaseado numa srie de concesses em troca do fim da guerrilha e da entrega dos negros libertos aopacificador, o mesmo que reduzira a p a rebelio negra da balaiada? Existe uma relao diretaentre o massacre de Porongos e a paz de Ponche Verde? Qual o mistrio desse passado ainda vivo?

    Antnio Vicente da Fontoura, o homem que negociou a paz com os imperiais, tendo ido ao Riode Janeiro como emissrio farrapo, nunca escondeu o seu racismo nem a sua defesa da escravido. Nodirio que escreveu entre 1o de janeiro de 1844 e 22 de maro de 1845, anotou, num momento denostalgia e saudades da famlia, este sonho de bom pai: Cruzam-me na ideia mil planos: deste tiro olucro para comprar uma moleca para Lindoca; de outro, mais um cozinheiro; e inda de mais outro, dever decentemente vestidos os nossos filhinhos. Ah! Muito vale aos infelizes a esperana! (1984, p.54). No tocante? Era o dia 5 de maro de 1844. Vicente da Fontoura sonhava com a paz. Nada comoimaginar, no meio da guerra sem fim, um futuro de progresso, de liberdade e de crianas bem-vestidasbrincando com seus negrinhos escravos!

  • O BOM USO DOS NEGROSTER NEGROS EXIGIA muita sabedoria!

    Com seu rifle de gringo e sua retrica de faroeste, o historiador norte-americano SpencerLeitman acertou na mosca imvel a respeito da questo do negro na Revoluo Farroupilha: Oestancieiro que possua negros poderia concordar com a recente abolio do trfico de escravos, masno permitiria a emancipao. Foi precisamente esta maneira de ser que levou a elite da fronteira amanter uma estrutura social bastante estratificada durante a Guerra dos Farrapos, mesmo quandoenfrentava a derrota (1979, p. 23). Se Rivera chegou a contar com cinco mil soldados negros nas suasguerras, os farrapos nunca passaram de seiscentos, mesmo se a populao da Provncia, em torno de170 mil pessoas, contasse com quarenta mil escravos.

    Os farrapos eram separatistas indecisos. Fundaram uma Repblica, mas no desgostavam de serbrasileiros. Eram abolicionistas em doses homeopticas, conforme as suas necessidades caudilhescasde mo de obra militar robusta e gratuita. Eram republicanos at segunda ordem ou primeiranecessidade. Em linguagem popular, lembravam um saco de gatos dotados de solenidade exagerada ebrios pomposos. Como em toda revoluo conduzida por uma vanguarda esclarecida, a exemplo daRevoluo Francesa e depois da Revoluo Russa, havia faces geradas pelas circunstncias eutopias, principalmente de jacobinos e moderados, cada parte tentando impor-se pela certeza de deteruma verdade incontestvel jamais demonstrada.

    A Revoluo Farroupilha foi espiritual e culturalmente platina. As causas econmicasencontraram nos caudilhos do Rio Grande, insuflados pelas ideias dos caudilhos do Prata, o canalpoltico por meio do qual se expressar. O problema que os lderes platinos pareciam ser maisditatoriais e menos conservadores do que os seus amigos do Rio Grande. Rivera chegou a distribuirterras aos pobres, para horror de Bento Manoel. As relaes entre os dois lados da fronteira fluram erefluram como vasos comunicantes: Rivera e Lavalleja tentaram revolucionar o Rio Grande. Neto eCanabarro influram nos nimos rebeldes dos uruguaios em outro momento. Entre uma aproximao euma ruptura, trocavam armas, gado, cavalos e ideias. A promiscuidade entre rio-grandenses e platinosera tamanha que a mulher de Lavalleja fazia o papel de intermedirio entre o marido e os seus amigosconspiradores do Rio Grande. Era uma fronteira permevel. A soberania da nao no passava de umideal a ser confirmado ou de uma bandeira a levantar ocasionalmente.

    No caso dos farroupilhas, as causas materiais acharam tambm motores polticos no imaginriode intelectuais urbanos, associados a estrangeiros sedentos de aventuras, e nos militares de outrasregies brasileiras, dominados por uma mescla de ressentimentos baixos e de altos projetoshumanistas, mantidos na geladeira do extremo sul pelo envolvimento nos episdios insurrecionais de7 de abril de 1831. Basta lembrar, como fez Spencer Leitman (1979, p. 71), que Joo Manuel de Limae Silva, Jos Mariano de Mattos e Reis Alpoim eram militares radicais deportados para o Sul a fim deno conspirarem mais na corte. Os demais cabeas da revoluo, entre os quais Bento Gonalves,Antnio de Souza Neto, Jos Gomes Jardim e Onofre Pires, tambm eram de algum modo militares.Cada protagonista identificou as causas que mais o afligiam para explicar a rebelio de 1835. AntnioVicente da Fontoura, no prlogo, escrito bem depois do calor dos acontecimentos, ao seu dirio deguerra, dirio de campo, dirio da campanha, foi extremamente objetivo e sincero: Eles [osportugueses] no poupavam toda qualidade de baixezas para intrigar-nos, e o mais que abastardadosbrasileiros, indignos de tal nome, no se enojavam de representar o papel escalo de tais monstros.Isso era to grave que, mesmo passados alguns anos, Fontoura precisava controlar-se para no seafastar do foco narrativo pelo justo ressentimento que nutre minha alma contra os lusitanos (1984,

  • p. 20).Os negros, para os farrapos, eram literalmente inocentes teis desde que bem adestrados. Muito

    teis como ferramentas nas charqueadas, nas estncias e em atividades urbanas, mas tambm comoarmas numa guerra que no lhes pertencia, da qual se tornaram scios minoritrios e semprevigiados. Negro bom mesmo era negro valente, destemido e disciplinado, capaz de viver trabalhando ede morrer lutando pelo seu amo. Negro bom tinha imenso valor. Um grande valor de mercado.

    Domingos Jos de Almeida sustentava que um escravo deveria estar sempre ocupado ealimentado para no virar problema. Por exemplo, pensar em liberdade.

  • PEQUENAS CAUSAS, GRANDES IDEAIS

    TUDO COMEOU SEM um fim claro.A revoluo dos estancieiros teve incio em 20 de setembro de 1835, quando os rebeldes

    tomaram a capital da Provncia, Porto Alegre. Menos de um ano depois eles a perderiam e, embora asitiassem demoradamente em outras ocasies, no mais a retomariam. Porto Alegre se manteveimperial praticamente ao longo de todo o conflito. Talvez por isso as grandes comemoraes dosgachos, herdeiros dos farroupilhas, a cada 20 de setembro, na mui leal e valorosa Porto Alegre,paream fora de lugar, embora as suas ruas abundem em nomes de insurretos rejeitados. Em 1836, osrebeldes perceberam que no iriam muito longe se no engrossassem as suas tropas com a negradaque lhes servia de pau para toda obra. E a que comea uma histria malcontada dentro de umaHistria excessivamente bem contada, uma narrativa to perfeita a ponto de ligar todos os fios,mesmo os mais contraditrios, numa fbula sem brechas nem falhas.

    A mais famosa causa da revoluo dos proprietrios do Rio Grande, nobres demais para falarem carrapatos, a disparidade dos impostos cobrados pelo governo imperial ao charque rio-grandensee ao charque uruguaio. A verdade que, alm dos carrapatos e dos impostos, a principal causa dachamada Revoluo Farroupilha foi a independncia da Banda Oriental, a Cisplatina, o Uruguai, em1828. Perdidas as guerras da Cisplatina, nas quais homens como Bento Gonalves e Bento Manoelfizeram curso preparatrio para a guerra civil que os levaria a entrar definitivamente para a Histria,os fazendeiros do Rio Grande ficaram sem as pastagens uruguaias. Boa parte deles possua terras dooutro lado da fronteira. Sendo, porm, outro pas, havia que se pagar impostos para transitar com ogado. Sem dvida, uma complicao desagradvel e que lhes parecia artificial e injusta. As pastagensuruguaias eram melhores. Os caudilhos da Banda Oriental sabiam disso e resolveram, a partir de certomomento, levar a cabo uma ideia estapafrdia: ficar com a terra uruguaia para os uruguaios. Antesdisso, alguns brasileiros e uruguaios, entre os quais Bento Gonalves e Lavalleja, pensaram numasoluo diferente: fazer um novo pas unindo Rio Grande, Banda Oriental e Entre Rios, Provnciaargentina. Teria sido bem mais prtico.

    A qualidade dos campos uruguaios era to superior, segundo Spencer Leitman, que as estnciasbrasileiras na Banda Oriental tinham quase o dobro da capacidade da maioria de suas congneres noRio Grande do Sul (1979, p. 22). Ao contrrio do mito difundido, havia um grande nmero deescravos em quase todas as estncias, sendo que no Uruguai havia ainda mais escravos do que nolado brasileiro. A Revoluo Farroupilha oporia, ainda conforme o norte-americano Spencer Leitman,os coronis da pecuria s elites industriais da Lagoa. Estas elites exigiam mais impostos e maisproduo provenientes da zona da fronteira. (1979, p. 23) O problema que os estancieiros noqueriam saber de impostos. Moacyr Flores faz um comentrio deveras curioso: O presidente AntnioRodrigues Fernandes pretendia criar impostos sobre a propriedade rural, pois no achava justo quegrandes latifundirios nada pagassem, enquanto o habitante do ncleo urbano, s vezes, tendo apenasuma casinhola para viver, pertencesse ao nico grupo contribuinte de impostos territorial e predial. Osestancieiros protestaram contra a medida, apesar de o imposto ser bastante mdico, pois segundo asideias da poca, as taxas s podiam recair na produo, jamais no capital (Flores, 1990, p. 16-17). Afarsa parece que se repete.

    Na poca da ecloso do movimento farroupilha, a Provncia do Rio Grande tinha quatorzemunicpios. Os estancieiros faziam tambm o papel de militares. Spencer Leitman, em Razesscioeconmicas da Guerra dos Farrapos, sugere que os rebeldes criaram pretextos para deflagrar um

  • conflito com o poder central. Depois que Fernandes Braga acusou Bento Gonalves de conspirao,em 20 de abril de 1835, os deputados, em sua maioria farroupilhas, rejeitaram que houvessefundamento nessa denncia. A tomada de Porto Alegre, cinco meses depois, teve por justificativaderrubar um governante que se tornara insuportvel. Colocou-se no lugar dele, por coincidncia, oquarto vice-presidente, por ser o que mais pronto estava, Marciano Ribeiro, justamente o maisidentificado com as ideias dos rebeldes. Os trs primeiros foram declarados oportunamente doentes.

    Havia radicais e moderados nas fileiras rebeldes. Estes aceitaram tranquilamente o nome do rio-grandense Arajo Ribeiro para substituir o presidente deposto. Os radicais, ao contrrio, separatistasque eram, prepararam-se para vetar a sua posse na Assembleia Legislativa. Embora Bento Gonalvesnegasse qualquer inclinao separatista, em proclamaes estudadas, a ambiguidade persistia. Os fatosso conhecidos. Arajo Ribeiro, sem alternativa, tomou posse em Rio Grande, infringindo a lei. Omelhor pretexto para negar a aceitao do seu governo surgiu com a ordem de retirar as credenciais dovice-cnsul de Hamburgo, Antnio Gonalves Duarte, por haver aconselhado no Recompilador, aosseus jurisdicionados, que se mantivessem neutros por ocasio da revoluo de 20 de setembro(Calvet Fagundes, 1984, p. 107). Os farroupilhas acharam tal ato descabido e injusto. Esse mesmoDuarte seria responsvel por transportar em seu barco Bento Gonalves em fuga da Bahia. A lgicafarroupilha era extraordinria. Haviam subvertido a ordem, mas, como se julgavam com razo, todamedida do governo central para debelar o movimento era considerada arbitrria. Queriam umgovernador da terra. Foram atendidos. Deram um jeito de recus-lo. Uma frase, citada por S Brito,relatando fato ocorrido na Loja Manica Filantropia e Liberdade, resume a situao com uma clarezairnica: Um indivduo, sentado em uma cadeira, em atitude arrogante, como se tivesse entre as mosos destinos do mundo (era o Venervel-Mestre) dizia: No se h de dar posse ao novo Presidente; aProvncia no o quer (apud Calvet Fagundes, 1984, p. 106).

    Bento Gonalves, em carta de 12 de outubro de 1835 ao regente Francisco de Lima e Silva,exige: Um governador de nossa confiana, que olhe pelos nossos interesses, pelo nosso progresso,pela nossa dignidade, ou nos separaremos do centro, e, com a espada na mo, saberemos MORRERCOM HONRA OU VIVER COM LIBERDADE. E ameaa mais uma vez o Imprio com a separao:Em nome do Rio Grande, como brasileiro, eu lhe digo, Sr. Regente, reflita bem antes de responder,porque da sua resposta depende talvez o sossego do Brasil. Dela resultar a satisfao dos justosdesejos de um punhado de brasileiros que defendeu contra a voracidade espanhola uma nesga daPtria; e dela tambm poder resultar uma luta sangrenta, a runa de uma Provncia ou a formao deum novo Estado dentro do Brasil (apud Calvet Fagundes, p. 82). Bento Gonalves era mestre eminverses. Depois de passar parte da vida lutando para manter o Uruguai anexado ao Brasil, falava emvoracidade espanhola. Nos manifestos ao povo rio-grandense, no esquecia de dar vivas ao jovemimperador. Apostava todas as cartas ao mesmo tempo. Tratava de aumentar suas chances de ganho.

    Todos jogavam com paus de dois bicos. O jornal O Continentista, de Calvet e do mesmo SBrito que fingira se recusar a aderir ao movimento quando convidado por Bento Gonalves, publicouem dezembro de 1835 uma vibrante defesa do separatismo e do federalismo. A argumentao eraclara: uma situao de opresso permite ao povo revogar o poder dos governantes. Para sustentar edefender estes direitos os homens criaram os governos, a que conferiram poder e autoridade somenteenquanto os governantes cuidarem do bem do povo, o qual tem o direito de lhes tirar o poder e aautoridade logo que eles se tornem seus opressores (in Rodrigues, 1990, p. 386). Calvet Fagundes notinha dvidas de que esse texto era de S Brito e de Calvet (1990, p. 106-7). Alfredo FerreiraRodrigues acreditava que o jornal O Continentista era feito por um estrangeiro, possivelmenteZambeccari.

  • De que direitos tratava o texto? Estava bem explicado: Todos os homens nascem iguais e damesma forma, e obtiveram de seu criador certos direitos inauferveis, entre os quais a vida, aliberdade, a segurana individual, a felicidade e a resistncia tirania so os principais (inRodrigues, 1990, p. 386). Como se explica, ento, a existncia de escravos? Estavam os escravos,vtimas de opresso, tirania e bvia ausncia de liberdade, autorizados a se rebelar? Ou eram menosiguais por natureza? O artigo, inspirado livremente no iluminismo francs, garantia o direito do povode mudar, abolir, reformar como lhe convier, desde que tenha por objeto defender suas garantias epropriedade. Esse era o ponto essencial: uma rebelio de proprietrios s podia ser justa. Outropargrafo ainda mais impressionante: Mas quando os abusos, as usurpaes, o patronato, omenosprezo, as perseguies, a tirania, as violncias e injrias se sucedem, no deixando esperanaalguma de melhorar, o povo deve persuadir-se de que se procura destruir ou aniquilar seus direitos eliberdades, e que se pretende escraviz-lo; ento ele deve reassumir o seu supremo direito, e mesmoum dever seu melhorar sua sorte, reformando ou abolindo esse governo e organizando outro adaptados suas necessidades, que tenha em vista seu bem-estar (in Rodrigues, 1990,