Historia Oral

10
83 Sobre o método da história oral em sua modalidade trajetórias de vida Rita de Cássia Gonçalves Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Sobre o método da história oral em sua modalidade trajetórias de vida Resumo: Este artigo 1 busca explorar o potencial da pesquisa qualitativa, apresentando o método da história oral na sua modalidade trajetórias de vida, com o propósito de discutir a possibilidade de sua utilização em investigações científicas na profissão de Serviço Social. Situa os fundamentos epistemológicos da história oral, conferindo-lhe o caráter científico. Apresenta a modalidade trajetórias de vida como um constructo histórico e social que utiliza diferentes técnicas de entrevista para dar voz aos sujeitos até então invisíveis, anunciando as principais etapas dos procedimentos metodológicos utilizados nesta abordagem. Destaca, nas conclusões, a importância da construção desse modelo, sua projeção como uma proposta investigativa que implica um processo de compreender e analisar os universos sociais contextualizados e interconectados à luz da realidade das trajetórias de vida dos sujeitos pesquisados. Palavras-chave: pesquisa qualitativa, pressupostos epistemológicos, história oral, trajetórias de vida. The Life Trajectories Modality of Oral History Abstract: This article seeks to explore the potential of qualitative research. It presents the life trajectory modality of the oral history method, to discuss the possibility of its utilization in scientific research in the Social Work profession. The epistemological foundations of oral history are discussed to establish its scientific character. The life trajectories modality is presented as a historic and social construction that utilizes different interview techniques to give voice to previously invisible subjects, indicating the principal phases of the methodological procedures used in this approach. The conclusions highlight the importance of the construction of this model and its projection as a research proposal that implies a process of understanding and analyzing the social universes that are contextualized and interconnected, considering the realities of the life trajectories of the subjects studied. Key words: qualitative research, epistemological presumptions, oral history, life trajectories. Recebido em 22.02.2007. Aprovado em 14.05.2007. ENSAIO Teresa Kleba Lisboa Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Rev. Katál. Florianópolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

Transcript of Historia Oral

  • 83

    Sobre o mtodo da histria oral em sua modalidadetrajetrias de vida

    Rita de Cssia GonalvesUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

    Sobre o mtodo da histria oral em sua modalidade trajetrias de vidaResumo: Este artigo1 busca explorar o potencial da pesquisa qualitativa, apresentando o mtodo da histria oral na sua modalidadetrajetrias de vida, com o propsito de discutir a possibilidade de sua utilizao em investigaes cientficas na profisso de ServioSocial. Situa os fundamentos epistemolgicos da histria oral, conferindo-lhe o carter cientfico. Apresenta a modalidade trajetrias devida como um constructo histrico e social que utiliza diferentes tcnicas de entrevista para dar voz aos sujeitos at ento invisveis,anunciando as principais etapas dos procedimentos metodolgicos utilizados nesta abordagem. Destaca, nas concluses, a importnciada construo desse modelo, sua projeo como uma proposta investigativa que implica um processo de compreender e analisar osuniversos sociais contextualizados e interconectados luz da realidade das trajetrias de vida dos sujeitos pesquisados.Palavras-chave: pesquisa qualitativa, pressupostos epistemolgicos, histria oral, trajetrias de vida.

    The Life Trajectories Modality of Oral HistoryAbstract: This article seeks to explore the potential of qualitative research. It presents the life trajectory modality of the oral historymethod, to discuss the possibility of its utilization in scientific research in the Social Work profession. The epistemological foundationsof oral history are discussed to establish its scientific character. The life trajectories modality is presented as a historic and socialconstruction that utilizes different interview techniques to give voice to previously invisible subjects, indicating the principal phases ofthe methodological procedures used in this approach. The conclusions highlight the importance of the construction of this model andits projection as a research proposal that implies a process of understanding and analyzing the social universes that are contextualizedand interconnected, considering the realities of the life trajectories of the subjects studied.Key words: qualitative research, epistemological presumptions, oral history, life trajectories.

    Recebido em 22.02.2007. Aprovado em 14.05.2007.

    ENSAIO

    Teresa Kleba Lisboa Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

  • 84

    Introduo

    O Servio Social tem se consolidado como umaprofisso de carter interventivo e investigativo; maisdo que nunca imperativo dimensionar a pesquisacomo exerccio fundamental de organizao do sa-ber sobre as diferentes expresses da questo so-cial, com vistas produo de conhecimento. O co-tidiano do trabalho profissional tem demandado pes-quisas sobre dados que nem sempre se encontramdisponveis nos registros ou cadastros das institui-es. Alm disso, a interveno profissional requer,muitas vezes, conhecimento sobre processos emcurso de determinados segmentos da sociedade querecorrem s instituies. Como conhecer, por exem-plo, as repercusses do Programa Bolsa Famlia, ouBolsa Escola junto s famlias que passam para ou-tra dimenso de realidade (um processo em curso)depois de receber o benefcio? Ou ainda, como co-nhecer o cotidiano das mulheres que possuem fi-lhos participando do Programa de Erradicao doTrabalho Infantil (PETI), suas lutas pela sobrevivn-cia e responsabilidade com aeducao dos filhos, cujas de-mandas e necessidades acar-retaro em propostas de po-lticas pblicas por parte dosprofissionais? Na mesmaperspectiva, Faleiros (2001)aponta a complexidade dastrajetrias de algumas crian-as de rua que mostram umprocesso desestruturador dereferncias e identificaes atal ponto de no se lembra-rem do seu nome completo.Estas e outras tantas ques-tes, que surgem no cotidia-no da prtica do trabalhadorda rea social, requerem umconhecimento mais profundosobre o retrato da realidadedos usurios e as concepesdos mesmos sobre esta realidade, ou seja, reque-rem investigao. As pessoas com as quais traba-lhamos, possuem cada qual uma histria de vida,so sujeitos humanos com caractersticas espec-ficas, cada qual dotado de valores, sonhos e expe-rincias. Para recompor estas experincias con-cretas, histricas e vivas, portanto, preciso tam-bm escut-las.

    Queremos neste artigo chamar a ateno para aconfluncia multidisciplinar que a pesquisa qualita-tiva possibilita, trazendo o mtodo da histria oralna sua modalidade trajetrias de vida, como umacontribuio no processo de investigao e produ-o do conhecimento tambm para o Servio Social.

    1 Acerca dos pressupostos da pesquisa quali-tativa

    A pesquisa qualitativa tem sido resgatada nas ci-ncias sociais por se considerar que ela abarca umarelao inseparvel entre o pensamento e a basematerial, entre a ao de homens e mulheres enquan-to sujeitos histricos e as determinaes que oscondicionam, entre o mundo objetivo e a subjetivida-de dos sujeitos pesquisados. Esta forma de aborda-gem tem sido valorizada, uma vez que trabalha como universo de significados, representaes, crenas,valores, atitudes, aprofundando um lado no percep-tvel das relaes sociais e permitindo a compreen-so da realidade humana vivida socialmente.

    A tradio de pesquisa na sociologia a partir doIluminismo foi fortemente centrada na neutralidadee objetividade cientfica, no distanciamento do pes-quisador e numa relao impessoal. A partir da filo-sofia kantiana, a relao entre sujeito e objeto come-a a ser enfatizada nas cincias sociais, e a pesquisaem si, apesar de ter como fim bsico a produo de

    conhecimento, passa a serenfocada acima de tudo comouma relao entre sujeitos.

    Por isso, as metodologiasqualitativas trazem uma contri-buio significativa tanto parao Servio Social como para ascincias sociais, pois se reve-lam particularmente eficazes emreas exploratrias, especial-mente em campos temticos,onde inexistem fontes deinformaes acessveis eorganizadas. Tambm soindispensveis para compreen-der fenmenos que se manifes-tam em longos intervalos detempo como o caso de traje-trias de mobilidade social oumudanas geracionais ou ain-da manifestaes sociais que,

    por sua abrangncia, exigem a coleta exaustiva de da-dos padronizados. Alm disso, desempenham impor-tante papel na elaborao de hipteses e construode novas teorias (CAMARGO, 1987).

    Contudo, no pretendemos nos contrapor pes-quisa quantitativa, uma vez que sempre existiroabordagens em que a apreenso do objeto na suatotalidade levar o pesquisador a assumir asobreposio dos dois enfoques, como bem res-saltado por Minayo (1996, p.22): o conjunto dedados quantitativos e qualitativos no se opem.Ao contrrio, se complementam, pois a realidadeabrangida por eles interage dinamicamente, exclu-indo qualquer dicotomia.

    ... as metodologias qualitativastrazem uma contribuio signi-

    ficativa tanto para o ServioSocial como para as cincias

    sociais, pois se revelam particu-larmente eficazes em reas

    exploratrias, especialmente emcampos temticos, onde

    inexistem fontes de informaesacessveis e organizadas.

    Rita de Cssia Gonalves e Teresa Kleba Lisboa

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

  • 85Sobre o mtodo da histria oral em sua modalidade trajetrias de vida

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    A contribuio da pesquisa qualitativa, que oenfoque deste artigo, estende-se desde as fronteirasda antropologia e da etnografia, passando pelaetnometodologia, a hermenutica e diversas modali-dades de estruturalismo, at as anlises histricascomparadas, relatos orais, mtodo biogrfico e ou-tras tcnicas da histria oral. As metodologias quali-tativas vm abrindo novas perspectivas para se pen-sar novas abordagens terico-metodolgicas que con-templem as duas figuras da modernidade: razo esujeito (TOURAINE, 1994), bem como para estabele-cer uma relao entre os dois pilares da sociedade:ao e estrutura (GIDDENS, 1989).

    Martinelli (1999) ressalta trs pontos que confe-rem importncia pesquisa qualitativa: o seu carterinovador, como pesquisa que se insere na busca designificados atribudos pelos sujeitos s suas experin-cias sociais; a sua dimenso poltica que, como cons-truo coletiva, parte da realidade dos sujeitos e a elesretorna de forma crtica e criativa; e, por ser um exer-ccio poltico, uma construo coletiva, a sua realiza-o pela via da complementaridade, no da excluso.

    Alm disso, ao contemplar a abordagem quali-tativa para o objeto de investigao social, o pesqui-sador deve considerar que as pessoas envolvidas noprocesso de pesquisa so [...] sujeitos de estudo,pessoas em determinadas condies sociais, perten-centes a determinado grupo social ou classe com suascrenas, valores e significados (MINAYO, 1993, p.22), e que esse objeto apresenta-se em permanenteestado de transformao.

    2 A histria oral como uma proposta de produ-o de conhecimento em Servio Social

    A fonte oral se constitui como base primria paraa obteno de toda a forma de conhecimento, sejaele cientfico ou no.

    Para Queiroz (1987), o relato oral tem sido, atra-vs dos sculos, a maior fonte humana de conserva-o e difuso do saber, ou seja, a maior fonte de da-dos para a cincia em geral; a palavra antecedeu odesenho e a escrita. Esta, quando inventada, no foimais do que uma cristalizao do relato oral.Thompson (1992) tambm afirma que a histria oral to antiga quanto a prpria Histria, pois ela foi aprimeira espcie de histria.

    Os relatos orais passam a ser valorizados poucoa pouco pelas cincias sociais, na medida em que sepercebe que comportamentos, valores, emoes per-manecem escondidos nos dados estatsticos. Com otempo e com o avano de outras disciplinas, como alingstica, a semitica e a antropologia, foi reconhe-cido que o discurso do ator social tem uma lgicaprpria e estrutura-se como linguagem, podendopermitir a compreenso de fenmenos sociais que

    escapam observao fria e distante do pesquisador(CAMARGO, 1987).

    Desta forma, optamos em trazer para estudoinvestigativo o mtodo da histria oral, que se apre-senta como uma valiosa contribuio para as cinci-as sociais e para o Servio Social, fundamentalmen-te porque as pesquisas com os usurios ou sujeitosque recorrem s Instituies Sociais, tm exigido essenovo olhar.

    Em pesquisas desenvolvidas com mulheres tra-balhadoras (LISBOA, 2004), com aposentados e apo-sentadas (GONALVES, 2006), com mulheres em si-tuao de violncia (LISBOA; PINHEIRO, 2005), mo-radoras de comunidades de periferia que migraramde reas rurais para as grandes cidades (LISBOA,2003), a histria oral tem desvendado questes ou-trora obscuras a partir da investigao da realidadedesses sujeitos, das suas aes e relaes que seocultam nas estruturas sociais.

    Nas reas urbanas, por exemplo, as trajetriasdas famlias de migrantes podem ser tomadas comotrilhas de vida no tempo e no espao, comeandocom rotinas cotidianas estendendo-se a movimentosmigratrios. Da mesma forma, as trajetriassocioocupacionais iro mostrar as rupturas edescontinuidades na carreira profissional de homense mulheres decorrentes da perda do emprego, decontrarem doenas e das dificuldades de ascensona escala da mobilidade social; ao mesmo tempoapontam a multiplicidade de funes assumidas poresses sujeitos mltiplos, que exercem sucessivamen-te diferentes tipos de ocupaes no espao social.

    A histria oral, enquanto mtodo investigativo,tambm tem sido utilizada para ressaltar a crescenteparticipao de mulheres na economia informal, va-lorizando as experincias de socioecomomia solid-ria, os processos de criao de cooperativas e asso-ciaes uma rea ainda pouco conhecida e um temapouco pesquisado.

    Alberti (1990, apud SILVA, 1998, p.118) define his-tria oral como

    [...] um mtodo de pesquisa (histrica, antropol-gica, sociolgica, etc.) que privilegia a realizaode entrevistas com pessoas que participam de, outestemunharam acontecimentos, conjunturas, vi-ses de mundo como forma de se aproximar doobjeto de estudo [...] Trata-se de estudar aconteci-mentos histricos, instituies, grupos sociais,categorias profissionais, movimentos, etc., luz dedepoimentos de pessoas que deles participaram ouos testemunharam.

    Em sua perspectiva, Aspsia Camargo (1994),afirma que a histria oral um instrumento ps-mo-derno para se entender a realidade contempornea.Ps-moderno por sua elasticidade, imprevisibilidade

  • 86 Rita de Cssia Gonalves e Teresa Kleba Lisboa

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    e flexibilidade. Para a autora, a histria oral , aomesmo tempo, uma fonte e uma tcnica, mas a gran-de preocupao convert-la em metodologia, aquientendida como um conjunto de procedimentos arti-culados entre si, cuja finalidade obter resultadosconfiveis que nos permitam produzir conhecimento.

    Por outro lado, o mtodo da histria oral clara-mente multidisciplinar uma vez que tem permitido ainter-relao entre as disciplinas de Servio Social,Histria, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Cin-cias Polticas, Educao, e outras. Esse cartermultidisciplinar tem contribudo para a anlise da com-plexidade socioeconmica e cultural com a qual otrabalhador social se defronta na atualidade.

    3 Fundamentos epistemolgicos da histria oral

    O mtodo da histria oral, em suas vertentes his-trias de vida, narrativas, trajetrias de vida, requer ouso de fundamentos epistemolgicos, isto , o pes-quisador deve orientar-se atravs de pressupostos quedelimitam o entendimento sobre o uso dos procedi-mentos metodolgicos em questo, que por sua vezdefiniro o carter de investigao social.

    A epistemologia possui uma funo importante napesquisa, pois estabelece as condies de objetivida-de dos conhecimentos cientficos, dos modos de ob-servao e experimentao. Bourdieu, Chamboredone Passeron (1987) advertem que necessrio sub-meter a prtica cientfica a uma reflexo sobre a ci-ncia que est sendo construda. Tal tarefa, propria-mente epistemolgica, consiste em descobrir na pr-tica cientfica mesma, ameaada sem cessar peloerro, as condies pelas quais se pode discernir overdadeiro do falso, na passagem de um conheci-mento menos verdadeiro para um mais verdadeiro.

    Por sua vez Bruyne, Her-man e Schoutheete (1977) afir-mam que a epistemologia for-nece os instrumentos dequestionamento dos princpiosnas cincias, ou seja, indica re-gras s cincias sociais parti-culares, e ao adot-las todo opesquisador debrua-se sobrea natureza dos fatos pesqui-sados, a natureza da expli-cao e sobre a validade dosprocedimentos cientficos. Osautores sugerem que a con-cepo e o desenvolvimento das cincias no adotemuma epistemologia fixista, que pretenda reger as ci-ncias a partir de fora; propem, ao contrrio, umaepistemologia como reflexo, como vigilncia internada cincia sobre os seus procedimentos e resultados.Seria, de certa maneira, dizer que [...] uma cincia

    das cincias possvel, ou seja, afirmar que um certosaber ligado produo cientfica torna-se possvel apartir da reflexo epistemolgica[...] (BRUYNE;HERMAN; SCHOUTHEETE, 1977, p. 41).

    Torna-se necessrio identificar alguns pressupos-tos epistemolgicos da histria oral que delimitam oentendimento dessa metodologia e lhe conferem ocarter cientfico. A construo dos itens foi elabo-rada a partir da reviso bibliogrfica dos construtosterico-metodolgicos dos seguintes autores: Marre(1991), Silva (1998), Martinelli (1999) e Alberti (2007).

    a) Primazia epistemolgicaA histria oral se constitui como verdadeiro e efi-

    ciente instrumento de investigao quando o pesqui-sador atribuir um carter cientfico a sua pesquisa:ele deve estar orientado por um conhecimento teri-co prvio; a problemtica da pesquisa deve estarinserida num projeto previamente formulado; as in-formaes sobre o campo a ser pesquisado devemestar coletadas e o uso de instrumentos e tcnicas depesquisa definidos. Durante o processo de pesquisa,a hiptese problematizadora e a fundamentao te-rica devem servir como uma bssola, orientandoa investigao cujo principal objetivo a construode conhecimento a partir do levantamento, interpre-tao e anlise dos dados empricos.

    b) Vigilncia epistemolgica a condio de ruptura que se impe entre o

    senso comum e o discurso cientfico. Durante a pr-tica profissional, ou no decorrer do processo de ob-servao em campo, o pesquisador tende a estabele-cer uma relao com o seu objeto e, em se tratandode uma relao social, os dados geralmente se apre-sentam como configuraes vivas, singulares, e de-masiado humanas. Para Bourdieu, Chamboredon e

    Passeron, (1987), necess-rio estabelecer uma rupturacom o real, desmontar as tota-lidades concretas e evidentesque se apresentam para a in-tuio do pesquisador para emseguida substitu-las pelo con-junto de critrios abstratos queas definem sociologicamente. fundamental que o pesqui-sador consiga estabelecer anecessria distncia cientficacom o objeto pesquisado, nosentido de exercer o maior con-

    trole possvel sobre os fatores que se contrapem busca da objetividade.

    c) Conscincia e no-conscinciaA histria oral ganha estatuto de informao vli-

    da para o conhecimento sociolgico na medida em

    A epistemologia possui umafuno importante na pesquisa,pois estabelece as condies deobjetividade dos conhecimentoscientficos, dos modos de obser-

    vao e experimentao.

  • 87

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    Sobre o mtodo da histria oral em sua modalidade trajetrias de vida

    que os contedos das falas obtidas pelos sujeitos dapesquisa extrapolam os sentidos e significados quepretendem expressar conscientemente. Por sua vez,as relaes que conformam os processos sociais e oseu sentido devem ser extradas do materialemprico, de forma consciente pelo pesquisador eanalisadas com a utilizao de instrumentos forneci-dos pelos referenciais tericos e metodolgicos queconduzem investigao.

    d) Objetividade e subjetividadeAutores como Giddens (1989) tm apontado para

    o fim dos imperialismos: tanto da objetividade comoda subjetividade. No centro de sua teoria daestruturao est o propsito de iluminar a dualidadeda ao e da estrutura e a sua interao dialtica.Portanto, trabalhar qualitativamente significa dar con-ta de entrelaar a dimenso pessoal e subjetiva coma estrutura social. O relato de uma pessoa sobre asua prpria vida, seus valores, sua cultura, no po-dem deixar de conter dimenses subjetivas. ParaRolnick (1997), no h subjetividade sem uma carto-grafia cultural que lhe sirva de guia; e reciprocamen-te, no h cultura sem um certo modo de subjetivao.Cada sociedade uma maneira de fazer o tempo, deconstruir o tempo. na sociedade que o indivduotorna-se sujeito.

    e) Singularidade e totalidadeA singularidade da histria oral ressaltada por

    Marre (1991), uma vez que no se consegue chegarao geral atravs de uma diversidade de histrias devida singulares sem dar a elas uma totalidade sintti-ca, que por sua vez se forma a partir da singularida-de de cada uma delas. Quando o indivduo vivenciae relata sua trajetria, se identifica a um grupo socialdo qual ele elemento constitutivo (MARRE, 1991,p.128). Cabe ao pesquisador reconstruir, em cada his-tria de vida, a presena de relaes bsicas e com-plexas que dizem respeito s categorias sociedade,grupo e indivduo, expressas na relao oral. So re-laes ligadas estrutura social e grupal e ainda idia de rearranjo e reapropriao do social que oindivduo faz como unidade singular de seu relato.

    f) Compreenso na perspectiva hermenuticaA abordagem compreensiva visa apreender e ex-

    plicar o sentido que as pessoas e grupos atribuem sua ao, enquanto realizao de uma inteno. Asaes humanas so sempre a expresso de uma cons-cincia, o produto de valores e a resultante de motiva-es. Alberti (2007, p. 02) ressalta que o modo de pen-sar hermenutico consiste em valorizar o movimentoe colocar-se no lugar do outro para compreend-lo eem acreditar que as coisas, o passado, os sonhos, ostextos, por exemplo, tm sentido latente, ou profundoa que se chega pela interpretao. A autora aponta

    ainda trs termos da frmula que tornam acessveis osobjetos das cincias humanas: vivncia expresso compreenso, pois As produes humanas exprimema vivncia e cabe ao hermeneuta compreender essasexpresses, de tal forma que a compreenso seja omesmo que tornar a vivenciar.

    g) HistoricidadeO pesquisador deve ter como pressuposto o ca-

    rter dinmico e processual da pesquisa e sua rela-o com o tema proposto, pois toda a pesquisa quali-tativa visa uma perspectiva histrica; sabemos que arealidade social est em constante transformao, damesma forma, a realidade em torno de um determi-nado tema de pesquisa no esttica. Alberti (2007)confirma que o campo da histria oral acentuada-mente totalizador, na medida em que entrevistador eentrevistado trabalham conscientemente na perspec-tiva da re-significao e reconstruo do passado.

    A epistemologia, portanto, considerada, enquantoplo essencial da pesquisa, na medida em que privi-legia o processo de construo de conhecimento sobdois ngulos: o da lgica de descoberta e o da lgicade validao. A reflexo epistemolgica, primeiropasso na hierarquia do trabalho investigativo seguidada definio dos conceitos tericos e da escolha dastcnicas, indispensvel a uma pesquisa, pois no pro-cesso de investigao o plo epistemolgico queassegura o rigor, a exatido e a preciso do procedi-mento cientfico.

    4 Trajetrias de vida como construtos histri-co-sociais

    O mtodo da histria oral utiliza diferentes tcni-cas de entrevista para dar voz a sujeitos invisveis e,por meio da singularidade de seus depoimentos, cons-tri e preserva a memria coletiva. Pesquisadoresque trabalham com histria oral (Life-Course-Forschung) na Europa, e mais especificamente naAlemanha, utilizam as terminologias biografia e tra-jetria de vida como procedimentos metodolgicosdessa abordagem.

    Born, Krger e Lorenz-Meyer (1996) afirmamque a pesquisa relacionada com trajetrias de vida uma rea relativamente nova na sociologia, tendocomo ponto de partida a mobilidade social, bem comoa trajetria das mulheres que iniciam uma carreiraprofissional e a mudana de status e de rotina queisso acarreta em suas vidas: interrompem sua carrei-ra profissional porque decidem ter um filho, consti-tuir famlia, ou optam em sair do emprego.

    Para as pesquisadoras alems, trajetrias de vida(Lebenslauf) considerado um construto cientfi-co, definido em primeira mo pela perspectivametodolgica adotada, podendo utilizar dados

  • 88

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    Rita de Cssia Gonalves e Teresa Kleba Lisboa

    quantitativamente analisveis que possuam relaodireta com a seqncia cronolgica da vida dos indi-vduos (DAUSIEN, 1996). No entender dessa autora,a trajetria de vida denominada cientificamente detranscurso, pois analisa mudanas sociais, passa-gens de status, de situao econmica, de atividadesprofissionais, utiliza datas significativas, perodos, n-meros, enfim aspectos quantitativos e qualitativosrelacionados na mesma abordagem. Nesta perspec-tiva, a trajetria de vida considerada uma institui-o social, um sistema de regras que rege/conduz asrelaes do indivduo na modernidade.

    Luz Arango (1998), pesquisadora colombiana, tam-bm utiliza o termo trajetria, mas com nfase natrajetria social como um ciclo da vida, como umaetapa da vida. Para a autora, trajetria social oencadeamento temporal das posies que os indiv-duos ocupam sucessivamente nos diferentes cam-pos do espao social. Em cada momento de sua exis-tncia, os indivduos ocupam simultaneamente vriasposies, que resultam obviamente do entrelaamentoentre os campos profissionais e familiares.

    A noo de trajetria para Bourdieu (1989) uma srie de posies sucessivamente ocupadaspor um mesmo agente ou mesmo grupo em umespao, ele prprio em devir e submetido a trans-formaes incessantes.

    Referindo-se prtica profissional como fonte deproduo do conhecimento em Servio Social, Faleiros(2001, p. 72) enfatiza a articulao entre as trajetri-as dos usurios e as estratgias no processo de inter-veno profissional. Para ao autor,

    [...] a prtica crtica no se reduz a mera aplicaodo conhecimento que vem de fora, mas ela prpriagera a necessidade de reformulao do conheci-mento, e em cada situao preciso umahermenutica, uma interpretao que alie os senti-dos que se do prtica analise das condiesque esta se realiza [...] trata-se, pois, de interpretaro mundo na sua transformao e de transform-lona sua interpretao.

    Faleiros prope que a interveno em Servio Soci-al consista na articulao entre mediaes, trajetrias eestratgias de ao entre profissional e usurio, confi-gurando-se uma situao de relao, pois o sujeito, comseus desejos, seu mundo simblico, sua individualidadepassou a ser valorizado pelas cincias sociais como umpersonagem que entra em cena. O profissional de Ser-vio Social deve considerar a articulao do contextoentre a trajetria social, trajetria individual e familiar dousurio, levando em conta a totalidade das dimensesem que esse indivduo se constitui.

    As trajetrias sociais de cada indivduo trazemimbricados processos de construo e desconstruode poderes que se entrecruzam configurando mudan-

    as de relaes. Esse processo de mudana nasrelaes implica rupturas que se manifestam em de-savenas, revoltas, resistncias, deslocamentos econtinuidades [...] (FALEIROS, 2001, p.74). Para oautor, a trajetria dos dominados geralmente tem amarca da excluso social, pois, no transcurso de suasvidas, foram alijados de seus patrimnios; tanto cul-turais e simblicos quanto materiais.

    No processo de interveno profissional, impor-tante que o assistente social conhea os patrimniossimblicos dos usurios medida que os mesmos soreferncias para a constituio de identificaes so-ciais. Para Faleiros (2001, p. 75), [...] a representa-o que indivduos e grupos fazem de si mesmos de-pende das crenas, valores e referncias culturaisque se adotam no cotidiano. Estas por sua vez, de-pendem das prticas sociais de classe, de discrimi-nao, de resistncia, que na grande maioria dos ca-sos so repassadas pelas instituies sociais. Por isso,o autor (2001, p. 77) adverte que

    No possvel viver sem referncia s instituiessociais, elas fazem parte das trajetrias e estratgi-as dos sujeitos e por sua vez definem trajetrias,itinerrios e estratgias, j que pressupem rela-es de poder e saber que interferem na vida e nocotidiano dos indivduos. O Servio Social se ins-creve num contexto institucional permeado de con-flitos e lutas, de jogos de poder e recursos, o quesempre tenho enfatizado, e participa da articulaode estratgias que variam de acordo com a pers-pectiva terica e ideolgica de seus atores, assimcomo das relaes de poder das instituies.

    Faleiros assevera que as estratgias de interven-o do profissional de Servio Social devem estar ar-ticuladas s trajetrias dos sujeitos que recorrem sinstituies. Estes, na maioria das vezes, quando pro-curam um assistente social, encontram-se numa traje-tria fragilizada, de perda de patrimnio ou de refe-rncias, sem atendimento das necessidades bsicas.Nesse momento, o profissional deve passar a ser umaliado do usurio em vez de um gerenciador de recur-sos e, sempre que for possvel, trabalhar na perspecti-va de emancipao e empoderamento2 do usurio.

    Trajetrias de vida, portanto, podem ser conside-radas como partes de uma histria de vida, um deter-minado percurso, itinerrio ou ciclo que vai ao en-contro do interesse do profissional ou pesquisador.Nos processos investigativos, este percurso, geral-mente, vem ao encontro da questo de pesquisa co-locada, ou seja, da delimitao do problema. Porexemplo: se desejo saber que tipo de ocupao re-munerada as mulheres, sujeitos de minha pesquisa,j tiveram ao longo de suas vidas, vou pesquisar atrajetria ocupacional dessas mulheres; se desejosaber o itinerrio migracional que um determinado

  • 89

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    Sobre o mtodo da histria oral em sua modalidade trajetrias de vida

    grupo percorreu, vou pesquisar a trajetriamigracional; se desejo saber a durao do tempo emque adolescentes permaneceram cometendo infra-o, vou pesquisar a trajetria infracional; se desejosaber como determinado grupo de pessoas se senteaps ingressar na aposentadoria, vou pesquisar a tra-jetria laboral, e assim por diante.

    J enfatizamos, antes, que a definio do problemade pesquisa pressupe uma imerso do pesquisador nocontexto terico-metodolgico do tema a ser trabalha-do. O pesquisador no parte de uma tbula rasa parair a campo. Ele deve estar submerso nas condies que condicionam o problema, bem como partilhando na pr-tica as experincias e percepes que os sujeitos pos-suem desses problemas, que por sua vez vo sendo re-latados e construdos com relativa coerncia em rela-o sua viso e sua experincia.

    5 Os procedimentos metodolgicos na pesqui-sa qualitativa e o uso das trajetrias de vida

    As principais etapas, que envolvem o emprego domtodo da histria oral na perspectiva das trajetriasde vida e proporcionam uma viso conjunta do pro-cedimento, so:

    a) Elaborao do projeto de pesquisa a partirde um roteiro

    Apresentao, justificativa, objetivos, fundamen-tao terica, metodologia, referncias bibliogrficas.Assim constitudo, o projeto de pesquisa requer umdelineamento bsico das etapas que definiro a con-cepo terico-metodolgica e do caminhoinvestigativo. Esta estrutura formal um conjunto defundamentos e de argumentos lgicos norteadoresda ao do pesquisador durante todo o processo.

    b) Apreciao do projeto de pesquisa pelo res-pectivo Comit de tica

    Uma vez que esta modalidade de pesquisa envol-ve seres humanos, o projeto de pesquisa dever sersubmetido s exigncias ticas e cientficas bsicas,segundo as Diretrizes e Normas Regulamentadorasde Pesquisa definidas pelo Conselho Nacional deSade, atravs da Resoluo n 196, de 10/10/1996.O pesquisador dever recorrer ao Comit de ticamais prximo, tendo em vista que o mesmo se cons-titui como rgo disciplinar deliberativo, consultivo eeducativo com a finalidade de Defender os interes-ses dos sujeitos da pesquisa em sua integridade econtribuir no desenvolvimento da Pesquisa dentro dospadres ticos 3 . Outro componente estabelecidopelo Comit Nacional de tica em Pesquisa o Ter-mo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)que tem como objetivo esclarecer e proteger o sujei-to da pesquisa, assim como o pesquisador, que por

    este meio manifesta seu respeito tica no desen-volvimento do trabalho.

    c) Definio do objeto de pesquisaDurante a elaborao do projeto de pesquisa atri-

    bui-se especial nfase definio do objeto de pes-quisa, pois a partir deste delineiam-se as etapas pos-teriores do roteiro do projeto. Tal importncia res-saltada por Bourdieu (1989, p. 26-27):

    [...] a construo do objeto, na minha experincia deinvestigador, no uma coisa que se produza deuma assentada, por uma espcie de ato terico inau-gural. [...] um trabalho de grande flego que serealiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, portoda uma srie de correes e emendas sugeridaspelo que se chama o ofcio, quer dizer, esse conjun-to de princpios prticos que orientam as opes aomesmo tempo minsculas e decisivas

    Da mesma forma, Minayo (1993), destaca a im-portncia do delineamento do objeto trazendo comotarefa inicial um trabalho de pesquisa bibliogrficaque seja capaz de projetar luz e permitir uma ordena-o ainda imprecisa sobre a realidade emprica.

    d) Definio da questo problemaOutro elemento bsico na elaborao do projeto

    de pesquisa a definio da questo problema (hip-tese problematizadora), ou seja, a elaborao de umaou mais questes a partir do objeto de pesquisa, quese pretende responder ao longo do processoinvestigativo e cujas respostas mostram-se relevan-tes terica ou socialmente.

    e) Definio da amostra e critrios qualitativosSegundo Marre (1991, p. 111 e 113), No basta

    um nmero de indivduos, preciso que este nmeroexpresse de maneira diversa, mas inter-relacionada,a trajetria socioeconmica do grupo socialpesquisado. Para cobrir e alcanar um grau sufici-ente de evidncia qualitativa nos dados pesquisados,Marre sugere dois critrios qualitativos: o de diversi-ficao da amostra e o de saturao. A diversifica-o refere-se identificao de pessoas que socapazes de analisar os temas, fatos, estratgias e iti-nerrio do grupo social pesquisado, possibilitando as-sim abarcar o campo da investigao atravs da es-colha de um certo nmero de pessoas bem diferenci-adas, mas conhecedoras do campo. J a saturaoindica o esgotamento da amostra pela incapacidadede acrescentar informaes relevantes pesquisa,ou seja [...] a partir de um certo nmero de entre-vistas coletadas, as posteriores no acrescentam maisnada ao que as outras expressaram. Quando come-amos a repetir informaes, sinal de que aquelecircuito se esgotou; tambm um sinal de que esse

  • 90

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    Rita de Cssia Gonalves e Teresa Kleba Lisboa

    campo que foi criado artificialmente, atravs da en-trevista, tem a sua lgica. esta lgica que deve sertrabalhada e no apenas a informao pontual queos documentos oferecem.

    f) Elaborao do roteiro de entrevista (fio con-dutor) com base na questo problema

    As trajetrias de vida so construdas atravsda inter-relao dialgica entre pesquisador e sujei-to pesquisado: atravs de uma tcnica de entrevis-ta. O pesquisador seguir um roteiro de perguntaselaboradas de acordo com a questo a serinvestigada, obedecendo a um fio condutor compostopelas categorias previamente definidas na funda-mentao terica do projeto.

    g) Realizao das entrevistasCabe ressaltar que a tcnica trajetria de vida

    construda por meio da conversao com pessoassobre sua experincia e memria. Ela ocorre atravsde um trabalho de campo onde essencial que ocor-ra um processo de interao entre o pesquisador eos sujeitos que se colocam disposio para com-partilhar os fatos de sua vida. Um fator importante aser observado pelo pesquisador o espao fsico ondesero realizadas as entrevistas. Este deve permitirque o dilogo possa ser realizado de forma espont-nea e ao mesmo tempo reservada. As entrevistasdevem ser marcadas mediante contatos prvios, olocal, data e horrio do encontro definidos, o objetivoda entrevista deve ser esclarecido. Sugere-se queseja dada especial ateno tcnica de gravao, nosentido de testar o aparelho, evitando correr o riscode perder informaes valiosas; solicitar permissopara gravar; preparar o ambiente, evitar situaesconstrangedoras, proporcionar um dilogo franco eaberto, estabelecendo uma relao de empatia como sujeito entrevistado. Os sujeitos que pretendemosentrevistar muitas vezes so ariscos e temos queempreender certo tempo para conquistar sua empatia.As condies fsicas e estruturais que se interpemao pesquisador nem sempre so as mais confort-veis. Pesquisas junto a um acampamento dos Sem-Terra, junto a uma comunidade de periferia localiza-da em locais ngremes e distantes, a visita a uma fa-mlia mais de uma vez, sem encontrar a pessoa emcasa ou no local marcado, so desafios ao pesquisa-dor que opta por esta metodologia.

    h) Processamento das entrevistasO tratamento dos dados obtidos na pesquisa uma

    etapa que merece destaque, pois exige a ateno dopesquisador em relao totalidade do processo. Esta fase da pesquisa se constitui basicamente na detranscrio das entrevistas e importante conferir afidelidade do contedo. Especial ateno devemmerecer tambm, os silncios, os suspiros seguidos

    de silncio, os choros, as emoes, enfim, o no dito,que podero constituir-se em importantes fontes deanlise. Se acontecerem falhas no equipamento degravao durante a entrevista, sugere-se que o pes-quisador anote o maior nmero de depoimentos pos-sveis imediatamente aps a conversa, para que pos-sa aproveitar o que permanece no frescor da mem-ria. Nesta altura do processo, conveniente entre-gar a primeira verso do texto transcrito para os en-trevistados procederem conferncia dos conte-dos apresentados atravs de suas falas.

    i) Codificao e anlise das entrevistasA codificao evidencia a intrnseca relao en-

    tre as categorias atravs de uma organizaometodolgica e esquemtica. Strauss e Corbin (1991,p. 54) propem que o processo de codificao dehistrias orais siga por etapas, de iniciar por umaampla identificao e articulao dos dados, denomi-nada codificao aberta, de onde emana:

    [...] o potencial de encontro entre o material empricoe o conhecimento sobre o contexto do pesquisa-dor. comum extrairmos dezenas, talvez centenasde elementos conceituais que devero ser agrupa-dos mediante o processo de categorizao.

    Aps essa extensa categorizao, os autores suge-rem uma nova articulao um reordenamento dosdados com base no referencial terico da pesquisa denominada codificao axial. Nesse momento colo-cam-se os desafios de transformar os dados, situaes,aes e interaes em conceitos; identificar as vari-veis, as caractersticas das respectivas categorias esubcategorias; e de estabelecer uma lgica de anlise.

    Esse processo nos leva codificao seletiva, queconsiste na seleo das categorias-chave que seroaprofundadas na anlise da pesquisa. O fio condutorutilizado permanece sendo o indicativo para anlise;contudo, todo esse percurso busca incorporar de for-ma dinmica os elementos trazidos pelas trajetrias,que possibilitam validar ou refutar as hipteses e, prin-cipalmente, responder com propriedade questo depesquisa. Aps esse percurso, desenvolvemos a an-lise das trajetrias como um todo, com vistas a re-construir a histria sociocultural dos grupos investi-gados, de forma a articular todos os elementos iden-tificados no tempo e no espao, discorrendo acercados diferentes ritmos, estratgias, conjunturas, valo-res e significados, ordenando a totalidade do materialcoletado no somente em cada trilha, mas na suarelao com os outros.

    j) Retorno dos resultados da pesquisa aos su-jeitos

    Quanto divulgao e retorno dos dados obtidos, importante que o acordado com os entrevistados seja

  • 91

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    Sobre o mtodo da histria oral em sua modalidade trajetrias de vida

    cumprido, respeitando o sigilo da fonte oral e renovan-do o estabelecimento do contato entre pesquisador esujeitos que fizeram parte da pesquisa; exatamentepor ser um exerccio poltico, por trabalhar com signi-ficados de vivncias, a pesquisa qualitativa precisa serdevolvida aos sujeitos que dela participam. Em traba-lho recente, Lisboa (2003) devolveu, s 15 mulheresque fizeram parte de sua pesquisa, as sua trajetriasde vida transcritas, impressas e encadernadas, inclusi-ve com a foto de cada uma delas na folha de rosto.Uma dessas mulheres que exerceu grande lideranaem sua comunidade durante mais de 40 anos faleceurecentemente e na celebrao de seus funerais foramlidas, com muito orgulho, vrias partes de sua histria,que estava em mos da famlia.

    6 Tecendo consideraes finais

    Procuramos neste artigo enfocar a importnciado mtodo da histria oral no processo de constru-o do conhecimento em Servio Social e mostrarque a modalidade trajetrias de vida poder ser maisuma possibilidade de leitura do social com aporte demltiplos construtos, inicialmente de forma individu-al, em seguida categorizado e analisado sob a pers-pectiva da totalidade, sobre uma realidade viva, his-trica e coletiva .

    Para os profissionais de Servio Social, trabalharcom pessoas implica uma situao de relao, com ointuito de desvelar o sentido que as mesmas do paraa sua realidade, suas vidas, suas histrias e seu con-texto. a partir deste conhecimento emprico que oprocesso scio-histrico, econmico e cultural de gru-pos ou segmentos dos usurios ser analisado.

    Cada usurio do Servio Social um sujeito ml-tiplo que foi se formando ao longo de uma trajetria,possui uma identidade, que por sua vez est em cons-tante construo. O mtodo da histria oral configu-ra-se como uma proposta de construo de conheci-mento para o Servio Social na medida em que nosapresenta um leque de trajetrias, uma dimensocoletiva do contexto do qual provm nosso usurio,demandando elementos significativos que nortearonossas estratgias de interveno.

    As autoras deste artigo, Lisboa (2003) e Gonal-ves (2006), utilizaram o mtodo da histria oral mo-dalidade trajetrias de vida no processo de constru-o de suas investigaes, e reconheceram a impor-tncia e a riqueza das experincias individuais e cole-tivas relatadas pelos sujeitos pesquisados. Atravs dasdemandas postas, do universo que se desenha a partirda construo e reconstruo destas experincias,constataram que possvel decifrar, ordenar, organi-zar, analisar, enfim, estabelecer mecanismos dedesvelamento da realidade social e contribuir para aconstruo do conhecimento em Servio Social.

    A construo deste modelo de anlise se projetacomo uma proposta investigativa que implica um pro-cesso de compreenso dos fatos, das relaes sociaise pretende, luz das trajetrias dos sujeitos, mobiliz-los em direo participao social, empoderamentoe conquista dos direitos de cidadania.

    Referncias

    ALBERTI, V. O fascnio do vivido, ou o que atrai na histriaoral. Rio de Janeiro, CPDOC, 2003. Disponvel em. Acesso em:19 jan. 2007.

    ARANGO, L. Famlia, trabajo e identidad de gnero.Analogias y contrastes entre dos categorias socio-profesionales en Amrica Latina. In: ABRAMO, L.; ABREU,A. Gnero e trabalho na sociologia latino-americana.So Paulo, Rio de Janeiro, ALAST, 1998. (Srie II CongressoLatino-Americano de Sociologia do Trabalho).

    BORN, C.; KRGER, H.; LORENZ-MEYER, D. Derunentdeckte Wandel annherung na das Verhltnis vonStruktur und Norm im weiblichen Lebenslauf.Berlin: Ed.Sigma, 1996.

    BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.C.; PASSERON, J.C.El oficio de socilogo: presupuestos epistemolgicos.Mxico: Siglo Veintiuno, 1987.

    BOURDIEU, P. O poder simblico. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1989. (Coleo Memria e Sociedade).

    BRUYNE, P.; HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinmicada pesquisa em cincias sociais. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1977.

    CAMARGO, A. Histria oral e poltica. In: MORAES, M.de.Histria oral. Rio de Janeiro: Diadorim, FINEP, 1994.

    ______. O Mtodo Qualitativo: usos e perspectivas. In: IIICONGRESSO NACIONAL DE SOCIOLOGIA. Sociologia,Sociologias. Sociedade Brasileira de Sociologia, Braslia, 1987.

    DAUSIEN, B. Biographie und geschlecht zur biogra-phischen konstruktion sozialer wirklichkeit in frauenle-bensgeschichten. Bremen: Donat, 1996.

    FALEIROS, V. de P. Estratgias em Servio Social. SoPaulo: Cortez, 2001.

    FRIEDMAN, J. Empowerment uma poltica dedesenvolvimento alternativo. Oeiras (Portugal): CeltaEditora, 1996.

    GIDDENS, A. A constituio da sociedade. So Paulo:Martins Fontes, 1989.

  • 92

    Rev. Katl. Florianpolis v. 10 n. esp. p. 83-92 2007

    Rita de Cssia Gonalves e Teresa Kleba Lisboa

    GONALVES, R. de C. Gnero e geraes O processo deaposentadoria de idosos junto Previdncia Social. 2006.Dissertao (Mestrado em Servio Social) UniversidadeFederal de Santa Catarina, Florianpolis, 2006.

    LISBOA, T. K.; PINHEIRO, E. A interveno do ServioSocial junto questo da violncia contra a mulher. RevistaKatlysis, Florianpolis: Edufsc, v. 8, n. 2, p. 199-210, 2005.

    LISBOA, T. K. Um olhar por baixo do tapete mulheresterceirizadas. Mulher e trabalho. FEE, FGTAS/SINE RS;DIEESE; SEADE SP; FAT. Publicao Especial doConvnio da Pesquisa de Emprego Desemprego na RegioMetropolitana de Porto Alegre, v. 4, Editora Irene MariaSassi Galeazzi, Porto Alegre, 2004.

    ______. Gnero, classe, etnia. Trajetrias de vida demulheres migrantes. Florianpolis, Chapec: Edufsc,Argos, 2003.

    MARRE, J. L. Histria de vida e mtodo biogrfico.Cadernos de Sociologia, Porto Alegre, UFRGS, v. 3, n. 3,p. 89-141, 1991.

    MARTINELLI, M. L. Pesquisa qualitativa um instigantedesafio. So Paulo: Editora Veras, 1999.

    ______. O desafio do conhecimento Pesquisa qualitativaem Sade. So Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco, 1993.

    MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento.Pesquisa Qualitativa em Sade. So Paulo, Rio de Janeiro:HUCITEC, ABRASCO, 1993.

    ______. Pesquisa social teoria, mtodo e criatividade.Petrpolis: Vozes, 1996.

    QUEIROZ, M. I. P. de. Relatos orais: do indizvel aodizvel.Cincia e Cultura, So Paulo, v. 39, n.3, p. 272-286,mar. , 1987.

    ROLNIK, S. Uma inslita viagem subjetividade. Fronteirascom a tica e a cultura. In: LINS, D. (Org.). Cultura esubjetividade. Saberes nmades. So Paulo: Papirus, 1997.p. 25-34.

    SILVA, M. K. Uma introduo histria oral. Cadernos deSociologia, Porto Alegre, UFRGS, v. 9, p. 115-142, 1998,

    STRAUSS, A.; CORBIN, J. Grounded theory: grundlagenqualitativer sozialforschung. Datenanalyse undTheoriebildung in der empirischen soziologischenForschung. Mnchen: Fink, 1991.

    THOMPSON, P. A voz do passado histria oral. SoPaulo: Paz e Terra, 1992.

    TOURAINE, A. Crtica da modernidade. Petrpolis: Vozes,1994.

    Notas

    1 Este artigo tem como origem o trabalho Trajetrias de vida:visibilizando e reconstruindo a histria das mulheres,apresentado pelas autoras no Seminrio InternacionalFazendo Gnero 7: Gnero e Preconceitos, realizado nos dias28, 29 e 30 de agosto de 2006 na Universidade Federal deSanta Catarina.

    2 Empoderamento, segundo John Friedman (1996, p. viii), todo o acrscimo de poder que, induzido ou conquistado,permite aos indivduos ou s unidades familiares aumentarema eficcia do seu exerccio de cidadania.

    3 Regimento do Comit de tica em Pesquisa com SeresHumanos na Universidade Federal de Santa Catarina,disponvel no site da UFSC: < www.cepsh.ufsc.br/documentos.htm >.

    Rita de Cssia GonalvesMestre em Servio Social pela UFSC, pesquisadorae integrante do NUSSERGE e Professora do De-partamento de Servio Social da UFSC

    Teresa Kleba LisboaDoutora em Sociologia pela Universidade Federal doRio Grande do Sul (UFRGS)Professora do Departamento de Servio Social daUFSCCoordenadora do Ncleo de Estudos em ServioSocial e Relaes de Gnero da UFSC.

    Campus Universitrio Reitor Joo David FerreiraLimaTrindade Florianpolis SCCEP: 88010-970

    92