História - Mestrado - A Tradição Oral Africana e as Raízes Do Jazz

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UNIVERSIDADE DE SˆO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CI˚NCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUA˙ˆO EM HISTRIA ECONMICA RICARDO ANNANIAS PIRES A tradiªo oral africana e as razes do jazz Sªo Paulo 2008

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Mestrado de história defendido na Universidade Estadual de Campinas.

Transcript of História - Mestrado - A Tradição Oral Africana e as Raízes Do Jazz

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICA RICARDO ANNANIAS PIRES

    A tradio oral africana e as razes do jazz

    So Paulo

    2008

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS

    HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA ECONMICA

    A tradio oral africana e as razes do jazz

    RICARDO ANNANIAS PIRES

    Orientador: Profa. Dra. Antonia Fernanda Pacca de Almeida Wright

    So Paulo 2008

    Dissertao apresentada ao Programa dePs- Graduao em Histria Econmica doDepartamento de Histria da Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas daUniversidade de So Paulo, para a obtenodo ttulo de Mestre em Histria Econmica.

  • 3

    Maria Gabriela Brandi Teixeira CRB 8 /6339

    P667 Pires, Ricardo Annanias A tradio oral africana e as razes do jazz / Ricardo Annanias Pires. So Paulo, 2008.

    136 f Bibliografia: f.81 Dissertao(Mestrado Programa de ps-graduao em Histria

    Econmica do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    1.Tradio oral 2. Jazz 3. Multiculturalismo I. Ttulo

    CDD 301

  • 4

    FOLHA DE APROVAO

    Ricardo Annanias Pires A tradio oral africana e as razes do jazz.

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas, da Universidade de

    So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Profa. Dra.___________________________________________

    Instituio_______________________Assinatura ____________

    Profa. Dra.___________________________________________

    Instituio_______________________Assinatura ____________

    Profa. Dra.___________________________________________

    Instituio_______________________Assinatura ____________

  • 5

    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho a um ex-escravo, meu bisav Annanias, que

    com muito trabalho e fora de vida, pde fazer com que mais uma

    gerao pudesse seguir adiante. Tambm dedico aos meus pais que

    deram a base para que eu pudesse traar o caminho de minha vida.

    Dedico com todo o meu amor para minha esposa Gabriela e nosso

    lindo filho Eric e jamais me esquecendo de meus parentes de Minas

    Gerais, Recife e Rio Grande do Sul

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus por conseguir estar onde estou. Agradeo professora Dra. Antonia Fernanda de Almeida Wright

    por ter acreditado em minha capacidade. Ao professor Maurcio Waldman pelo brilhantismo de seus estudos

    sobre a cultura africana. Agradeo aos amigos que sempre me apoiaram e torceram por mim. Aos ingleses que se redescobriram jazz e o blues e tiraram grandes prolas da concha do esquecimento e mostraram a beleza e a fora

    da palavra atravs de novas msicas e novas bandas. Enfim, agradeo a todos aqueles que de uma forma ou outra

    contriburam para o desenvolvimento deste estudo.

  • 7

    EPGRAFE

    Na floresta quando as ramas discutem, as razes beijam-se

    Tradio oral africana

  • 8

    OBJETIVOS

    Objetivo Geral

    Estudar as influncias que a tradio oral africana exerceu na

    formao do jazz.

    Objetivo Especfico

    - Identificar a relao entre o blues norte americano e o canto dos

    griots africanos.

  • 9

    JUSTIFICATIVA DO TEMA

    notrio que tanto o jazz, quanto o blues receberam uma grande

    contribuio da cultura africana, porm, este estudo se justifica pela

    contribuio que o mesmo pode oferecer ao tratar do tema proposto

    com uma maior imerso.

  • 10

    METODOLOGIA

    Esta pesquisa apresenta uma orientao descritiva, onde seu

    delineamento visa identificar a existncia de relaes entre a tradio

    oral africana e a oralidade do blues americano. A coleta de dados da

    pesquisa ser a partir de levantamento bibliogrfico e documental.

  • 2

    RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo estudar as peculiaridades da

    tradio oral africana e suas influncias na criao do jazz. Os

    africanos, sendo um povo onde sua cultura tem como principal

    caracterstica enfatizar o emprego da oralidade na transmisso do

    conhecimento, o faz de forma muito distinta aos padres culturais

    europeus. Sob a tica do povo africano, a palavra expressa de forma

    oral possui um grande valor, sendo atribudo mesma, um nvel de

    relevncia tamanho que chega a ser vista como um elemento mstico

    capaz de criar ou at mesmo destruir. Os africanos, presentes em

    solo americano, pela imposio da escravido, fundiram seus

    elementos culturais cultura europia, dando luz uma nova

    concepo musical, o jazz. O jazz desde sua criao at os dias

    atuais, passou e passa por diversas transformaes. Estas

    transformaes, mesmo que de forma implcita, contribuem para que

    o jazz esteja presente nas mais diversas manifestaes culturais. O

    jazz no pode ser considerado apenas um gnero musical de origem

    americana. O jazz est presente em diversas partes do mundo,

    inclusive no Brasil, onde se torna renovado devido riqueza e

    diversidade cultural deste pas.

    PALAVRAS-CHAVE

    Tradio oral; Jazz; Multiculturalismo, frica, Brasil.

  • 3

    ABSTRACT

    This work studies the peculiarities of the oral African tradition and his

    influences in the creation of the jazz. The Africans, being a people

    where his culture has like principal characteristic emphasizes the job

    of the orality in the transmission of the knowledge, it does it in the

    very different form to the cultural European standards. Under the

    optics of the African people, the definite word of oral form has a great

    value, when attributed to same, a so great level of relevance that

    comes being seen like a mystic element able to create or even to

    destroy. The Africans, presents in American ground, for the

    imposition of the slavery, fused his cultural elements to the European

    culture, giving there shines a new musical conception, the jazz. The

    jazz from his creation up to the current days, passed and it suffers

    several transformations. These transformations, even that in the

    implicit form, they contribute so that the jazz is present in more

    several cultural demonstrations. The jazz cannot be considered only a

    musical type of American origin. The jazz is present in several parts

    of the world, including in Brazil, where it becomes renewed due to

    the wealth and cultural diversity of this country.

    KEY WORDS (5)

    Oral tradition; Jazz; cultural exchange, Africa, Brazil.

  • 4

    SUMRIO

    OBJETIVO

    JUSTIFICATIVA DO TEMA

    METODOLOGIA

    Resumo 02

    Abstract 03

    INTRODUO 07

    1 O FUNDAMENTO DA TRADIO ORAL AFRICANA 09

    2 DA FRICA PARA AS AMRICAS 24

    3 OS PRIMRDIOS DA CULTURA AFRO NORTE AMERICANA 39

    3.2 Os Spirituals e a msica Gospel 56

    3.3 O Ragtime 60

    4. NEW ORLEANS 63

    5 - A TRADIO ORAL AFRICANA NO BLUES 74

    CONSIDERAES FINAIS 79

    BIBLIOGRAFIA 81

    ANEXOS 83

  • 5

    Lista de Figuras

    Figura 1 - Mandingo Jalis, The Gambia, 1974 91

    Figura 2 Vista do forte escravo em Ilha Bance 92

    Figura 3 Anncio datado de 1779 do Jamaica Mercury 93

    Figura 4 Am I not a Man and a Brother 94

    Figura 5 Acar das ndias Ocidentais 95

    Figura 6- Publicao sobre a Revolta de Nat Turner 96

    Figura 7 - Novos cativos sendo amarrados 97

    Figura 8 - Inspeo e venda de negro 98

    Figura 9 - Leilo de escravos em Richmond, Virginia 99

    Figura 10 - Anncio de venda de escravos 100

    Figura 11 - Anncio sobre escravo foragido 101

    Figura 12 - Soldados negros da 107th Infantaria da Unio 102

    Figura 13 - Soldado montando guarda 103

    Figura 14 - Refugiados negros saindo de Richmond 104

    Figura 15 - Uma cena da guerra civil americana 105

    Figura 16 - Assinatura da Bone dry. 106

    Figura 17 - Apreenso de bebida alcolica 107

    Figura 18 - Eliminao da bebida 108

    Figura 19 Poema sobre John Henry 109

    Figura 20 Mapa da localizao da lenda de John Henry 110

    Figura 21 Delta do Mississipi 111

    Figura 22 Billie Holliday 112

    Figura 23 Ella Fitzgerald 113

  • 6

    Figura 24 Mapa do Imprio Mali 117

    Figura 25 Itinerrio de Sundjata Keita 118

    Figura 26 Eric Clapton 119

    Figura 27 Elmore James 120

    Figura 28 The Doors 121

    Figura 29 Willie Dixon 122

    Figura 30 Muddy Waters 126

    Figura 31 Bo Diddley 127

  • 7

    INTRODUO

    A histria do jazz j foi abordada e estudada atravs de

    diversas formas, porm sempre tiveram como ponto de partida, um

    cenrio obscuro quando eram citadas suas influncias culturais

    africanas. Por outro lado, desenvolver um estudo historiogrfico

    sobre gneros musicais, muitas vezes nos inclina apenas a

    abordarmos biografias de msicos e fatos importantes de suas

    pocas. Mesmo apresentando uma forte inclinao para tal, este

    trabalho tem como foco abordar de uma forma mais profunda a

    tradio oral africana e seus reflexos na cultura dos Estados Unidos e

    no Brasil. Seria um grande equvoco acreditarmos que o jazz

    representa integralmente uma msica de origem africana, mas sim

    o resultado do intercmbio da tradio da cultura ocidental com a

    cultura africana. A tradio cultural proveniente da Europa contribuiu

    com a lngua inglesa, estilos musicais, escrita e tcnica musical, alm

    de instrumentos musicais ainda no conhecidos pelos africanos e por

    parte da tradio cultural africana, houve uma presena marcante da

    dana, do ritmo mais intenso e principalmente da improvisao

    associada a um estilo muito particular de se cantar.

    Para muitos, o jazz um gnero musical extremamente tcnico

    e complexo, onde s os apreciadores conseguem entende-lo por

    completo, mas importante assegurar que este gnero musical

    possui diversas ramificaes onde pode apresentar um perfil

  • 8

    extremamente tcnico como, por exemplo, o bebop, ou ser

    caracterizado pela oralidade do blues. Do sculo XVIII ao XX, os

    gneros musicais que contriburam para a formao do jazz passaram

    por diversas evolues, tanto por influncias de ordem social, quanto

    cultural, conferindo assim, uma vasta gama de estilos e atendendo a

    diversos pblicos. importante identificar como o jazz pde

    contribuir para a ocidentalizao do afro-descendente e ao mesmo

    tempo tambm contribuir para a sua aceitao na cultura ocidental.

    Se pudssemos definir o jazz com uma palavra, ela seria

    improvisao. E no h improviso sem sentimento, sendo assim

    talvez esta seja a razo de sua constante reinveno atravs do

    sculo XX. Com o passar dos anos, o jazz ultrapassou a fronteira

    americana, recebendo influncias e influenciando gneros musicais

    na Europa, sia e Amrica Latina.

  • 9

    1 - O FUNDAMENTO DA TRADIO ORAL AFRICANA

    Ao abordarmos os princpios fundamentais da oralidade africana

    e seus reflexos nas manifestaes musicais nos Estados Unidos

    importante ressaltarmos que na cultura africana, o emprego da

    articulao da palavra como forma de expresso da lngua, detm um

    alto grau de importncia. A oralidade pode expressar aspectos

    msticos, ou apenas relatar fatos ocorridos durante um determinado

    perodo histrico1. Para os povos do Ocidente africano, a fala humana

    vista como o poder da criao. Na frica Ocidental, a fala

    considerada a materializao das foras msticas interiores do

    esprito. Devemos entender que de uma maneira geral, todas as

    tradies africanas postulam uma viso mstica do mundo. Enquanto

    na Europa, a palavra magia vista em um sentido negativo, na frica

    vista como a manipulao das foras visando prover o equilbrio do

    Universo.

    Em Mali, acredita-se que Maa Ngala, figura divina considerada o

    Deus criador, fez o homem designando-o como um guardio de tudo

    aquilo que foi criado no Universo. Maa Ngala animou as foras

    csmicas que dormiam estticas atravs da fala. Da mesma forma, a

    fala humana pode animar e dotar de movimento aquilo que est

    inerte. Para que a fala possa surtir efeito, a mesma dever ser

    dotada de ritmo, sendo assim, fala considerada o grande agente

    1 Segundo P. Diagne cita no livro Histria Geral da frica, cap. 10, pg. 247, que a tribo Fulbe afirma que a narrativa o lugar onde se encontra o passado: Hanki koy daarol awratee.

  • 10

    ativo da magia africana devido ao fato da mesma ser dotada tanto de

    poder para criar, quanto para destruir. A partir destas crenas,

    poderamos identificar o quanto importante para os africanos o uso

    da palavra associada ao ritmo, onde os mesmos acreditam que

    segundo (HAMPAT B, 1972)

    Nas canes rituais e nas frmulas encantatrias, a fala , portanto, a materializao da cadncia. E se considerada como tendo o poder de agir sobre espritos, porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram foras, foras que agem sobre espritos que so por sua vez, as potncias da ao."

    De acordo com (VANSINA, 1961), as civilizaes africanas,

    tanto no Saara quanto ao sul do mesmo, eram em grande parte

    civilizaes baseadas na palavra falada, mesmo na frica Ocidental

    onde j existia a escrita, a partir do sculo XVI, poucas pessoas

    sabiam escrever e o ato de se escrever ficava relegado a um plano

    secundrio diante dos interesses da sociedade. Diante de tais fatores,

    seria um grande erro considerarmos que a civilizao africana era

    primitiva por priorizar a comunicao oral em detrimento da escrita.

    Para que as tradies orais de uma civilizao sejam bem

    compreendidas, faz-se necessrio observar a atitude da mesma em

    relao ao discurso. Tal postura completamente diferente das

    civilizaes que registram de forma escrita todas as mensagens

    importantes. Por outro lado, uma sociedade oral faz o uso da palavra

  • 11

    como uma forma de se preservar a sabedoria ancestral atravs do

    testemunho verbal. Diante de tais argumentos, ainda de acordo com

    (VANSINA,1961), a oralidade representa uma atitude diante da

    realidade dos fatos vividos e no uma ausncia de habilidade para

    reproduzir os acontecimentos ocorridos. De forma bem diferente de

    textos escritos, no que se refere leitura e interpretao de um

    registro, um registro oral deve ser executado, decorado, digerido e

    muitas vezes exigem-se um retorno constante fonte para que o seu

    verdadeiro significado seja literalmente compreendido. Muitos

    estudiosos africanos como Amadou Hampt-B2 afirmam que ao se

    estudar a tradio oral africana, deve-se aprender a trabalhar mais

    lentamente para que sejam entendidos e assimilados elementos de

    uma memria coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma.

    Existem diversas definies sobre a tradio oral, porm

    dificilmente conseguem defini-la completamente, devido imensa

    gama de elementos que a caracterize. Sendo assim, para

    entendermos a tradio oral, precisamos identificar elementos como

    o verbalismo e suas diferentes formas de transmisso. Muitas vezes a

    tradio oral delimitada por rigorosas regras que tm por objetivo

    padronizaes da verbalizao e seus meios de difuso. Porm,

    existem tradies onde os seus difusores, tambm chamados de

    griots, apresentam uma total liberdade de transmitir o conhecimento.

    2 B, A.H. 1972. Aspects de la civilization africaine. Paris, Prsence Africaine .

  • 12

    Os griots so considerados os menestris, ou trovadores que tm

    como funo animar as recreaes populares, atravs da msica,

    contos populares e poesia. Muitas vezes os griots percorrem um pas

    divulgando a sua arte de forma solitria e itinerante ou

    acompanhando alguma famlia importante fazendo parte de uma

    grande comitiva. Os griots so classificados em trs categorias: griots

    msicos; griots embaixadores; griots genealogistas, historiadores,

    poetas ou os trs ao mesmo tempo.

    Os griots msicos so compositores e instrumentistas que

    podem tocar diversos instrumentos musicais como: monocrdio,

    guitarra, cora, tant, kalimba entre outros. Normalmente so grandes

    cantores que preservam e transmitem as tradies antigas. Os griots

    embaixadores so responsveis pela mediao em casos de

    disputas entre famlias. Esto sempre ligados a uma famlia nobre ou

    real e algumas vezes esto ligados a apenas uma pessoa. Os griots

    genealogistas, historiadores ou poetas (ou os trs ao mesmo tempo)

    so grandes contadores de histria, alm de grandes viajantes dos

    quais no esto necessariamente ligados a uma famlia.

    Na lngua bambara3 , os griots tambm so chamados de dieli

    que significa sangue. O termo sangue (dieli) denomina em um

    sentido figurado, que a funo do griot disseminar a informao

    3 Lngua falada na regio da antiga frica Ocidental francesa.

  • 13

    dentro da sociedade, assim como o sangue percorre pelo corpo. Os

    griots so dotados de grande liberdade no falar, devido a importncia

    de sua funo na sociedade que lhes do direitos nicos, como por

    exemplo, falar de forma imprudente a algum membro da nobreza ou

    de alguma famlia importante. O griot no tem compromisso nenhum

    em ser discreto, ou respeitar a verdade e inclusive pode at mentir,

    sem que isso seja visto de forma negativa diante da sociedade. Uma

    tradio pode ser permissiva diante das mentiras dos griots, ou

    invenes dos dielis, inclusive a sociedade pode aceita-la estando

    ciente de que a mesma no totalmente verossmil.

    Como j foi dito anteriormente, uma das mais importantes

    funes dos griots o papel de porta-voz dos nobres. Enquanto um

    nobre no pode retroceder em suas palavras, muito menos faltar com

    a verdade, os griots podem atuar como negociadores nas mais

    diversas situaes como, por exemplo, assuntos matrimoniais,

    disputas territoriais e at mesmo assuntos militares. Na cultura

    africana, a designao mais importante para um griot quando o

    mesmo tambm exerce a funo de tradicionalista-doma, ou seja,

    Grande Conhecedor.

    Quando o ttulo de tradicionalista-doma atribudo a um griot,

    significa que o mesmo dotado de grande credibilidade e a fidelidade

    de seus relatos nunca dever ser alterada. E por esta razo que ao

  • 14

    ser transmitida uma tradio oral, costuma-se perguntar se a mesma

    provm de dieli ou doma. Em outras palavras, poderamos entender

    tal pergunta, como um questionamento sobre a credibilidade da

    tradio a partir de sua fonte. Porm, ser um tradicionalista-doma

    em uma frica colonizada, passou a ser um grande desafio, pois,

    para o colonizador, as tradies sendo cultuadas por um povo,

    impedem ou ento dificultam o seu domnio. Sendo assim, os

    tradicionalistas passaram a ser perseguidos ou ento desacreditados

    pelo poder colonial para que suas prprias idias pudessem

    prevalecer ao invs da tradio original4.

    Diante de tamanha importncia da funo comunicacional e da

    manuteno das tradies culturais de sua sociedade, poderamos

    afirmar que os griots atuaram como agentes ativos nas transaes

    comerciais e na disseminao das informaes entre os pases

    africanos. Independentemente das diversas verses que os griots

    possam relatar sobre um mesmo fato histrico importante

    ressaltarmos que a legitimidade da tradio narrada vlida a partir

    da existncia de uma mesma seqncia de fatos ocorridos. Para uma

    tradio oral, o testemunho ocular um elemento primordial para

    conferir o mnimo possvel de distores.

    4 B, A. H. apud Histria Geral da frica p. 188

  • 15

    muito comum que o boato a partir de concluses

    especulativas e pouco focadas em relao veracidade de fatos

    ocorridos no passado, possa vir a ter valor como expresso popular e

    at mesmo dar origem a uma nova tradio quando o mesmo for

    repetido por vrias geraes. A oralidade apresenta uma grande

    diversificao no que se refere escolha e transmisso das palavras,

    onde as mesmas podem ser decoradas, em outros casos, podem ser

    utilizadas livremente pelo artista que as dissemina. O contedo da

    mensagem a ser transmitida em uma tradio oral africana pode ser

    caracterizado por quatro formas bsicas que so: poema, frmula,

    epopia e narrativa.

    O termo poema utilizado por (VANSINA,1961), refere-se a

    todo contedo decorado e dotado de uma estrutura especfica

    incluindo canes. J o termo frmula, trata de uma formatao

    esttica no muito rgida apesar de tambm ser decorada.

    Identificamos a estrutura frmula em provrbios, charadas, oraes

    e genealogias. importante observarmos que as tradies no

    compreendem s a mensagem, mas tambm as palavras que servem

    de veculo de difuso. A epopia representa uma forma de tradio

    oral africana, onde o artista ou griot tem completa liberdade na

    escolha das palavras dentro de um conjunto pr-estabelecido de

    regras formais como rimas, padres tonais, nmero de slabas entre

    outras formataes. A epopia devido liberdade de ao do

  • 16

    artista, como j foi citada anteriormente, pode apresentar vrias

    verses sobre um fato ocorrido no passado. Diante de tal contexto

    cabvel ao historiador observar que provavelmente todas as verses

    de uma epopia baseiam-se de um nico fato original.

    E por ltimo, as narrativas, apresentam tambm uma ampla

    liberdade de expresso por parte do artista, onde o mesmo pode

    fazer uso de diversas combinaes, enfatizaes, remodelaes alm

    de outros tipos de desenvolvimentos. Apesar de o artista poder se

    expressar livremente nas narrativas, no ponto de vista social,

    muitas vezes o mesmo poder estar condicionado a uma maior

    fidelidade s fontes. Os africanos que foram para a Amrica, levaram

    consigo aquilo que segundo H. Moniot5 chama de superfcie social,

    ou seja, a identidade prpria que traz consigo elementos de um

    passado inscrito nas representaes coletivas de tradies que o

    explica e o justifica. Sem esta superfcie social, as tradies no

    seriam mais transmitidas e por conseqncia, no haveria sentido da

    mesma continuar a existir.

    Para elucidarmos um pouco mais a respeito da tradio oral

    africana importante observarmos o trabalho que o historiador

    senegals Djibril Tamsir NIANE (1982) desenvolveu respeito do relato

    que rene os notveis feitos que cercam a memria do imperador

    5 Moniot, H. 1962. Pour une histoire de l`frique noire.

  • 17

    Sundjata Keita, soberano do Mali, Senhor do Umbigo do Mundo,

    Pai do Pas Luminoso, Heri dos cem reis vencidos e Senhor dos

    mltiplos nomes(NIANE, 1982: 12/13). Do sculo XII D.C ao sculo

    XV, o Imprio Mali, conforme afirma (Waldman 1998) foi uma das

    grandes formaes estatais do passado permeado pelo curso dos

    grandes rios Senegal e Niger, espalhando-se sobre a Savana, onde

    cultivava um pujante comrcio que atravs de diversas rotas,

    entendia-se do Golfo da Guin, do Sudo Oriental, do Magreb e do

    Egito.

    importante destacarmos que esta vasta poro territorial

    ocupada pelo Imprio Mali, era composta por uma grande diversidade

    de etnias e mesmo diante de tantas particularidades, tais diferenas

    foram respeitadas sem comprometer a governabilidade.Conforme

    afirma (Waldman 1998:3), o resgate da atuao de Sundjata e dos

    fatos que cercam seu reinado (entre 1230 e 1255 d.C.), foi baseado

    naquilo que o autor denominou de memria viva consignada na

    atividade secular, ou mesmo milenar dos griots. Ainda (Waldman

    1998) define os griots como interlocutores de uma cosmoviso

    negro-africana que possui na oralidade a principal forma de garantir

    conciso e beleza na narrativa, alm de tambm apresentar uma

    viso muito particular do conceito Tempo e Espao.

  • 18

    E esta forma de se manifestar, baseada em uma narrativa

    carregada de simbolismos nos d uma grande compreenso daquilo

    que (Leite 1992) denomina como frica Profunda. A definio do

    termo frica Profunda apresentado por Leite, teria origem num

    pensamento dominado por uma metodologia no diferencial, eivada

    de preconceitos e fundamentada nos limites de suas proposies, no

    atingindo o ncleo de outras realidades histricas (Leite 1992: 85).

    A Epopia de Sundjata Keita narra o confronto de dois

    soberanos altamente influentes e ao mesmo tempo significativos no

    que se refere aos respectivos mundos que ambos representavam.

    Sundjata Keita representa um personagem fortemente islamizado,

    onde h muito tempo o isl j estava presente nas elites de toda a

    regio do Sudo Ocidental6. E Suamoro Kant, o grande heri da

    savana e rei do Sosso7, representa a tradio africana carregada de

    rituais, crenas e valores baseados no misticismo. interessante

    ressaltarmos que Sudjata Keita, apesar de ser seguidor do isl, no

    6 O termo Sudo, procede de um topnimo de origem rabe: o Bilades-Sudan, isto , o Pas dos Negros (PAULME, 1977: 37). Esta expresso foi incorporada pela Geografia Colonial Europia, dizendo respeito, como para seus proponentes originais, aos pases localizados entre o Mar Vermelho, a Oeste, e o Atlntico, a Leste, acompanhando a faixa de Savanas e de Estepes que se sucedem latitudinalmente aps o Deserto do Saara. Nesta linha de compreenso, passou-se a falar em Sudo Oriental ou Sudo Anglo-Egpcio (a atual Repblica do Sudo) e em Sudo Ocidental, que predominantemente dominado pela Frana, foi tambm nomeado como Sudo Francs. 7 Sosso, grupo tnico existente na regio da Guin.

  • 19

    abandonou totalmente suas tradies seculares da prtica do

    misticismo.

    Essa era uma prtica muito comum na frica sub-saariana onde

    os indivduos islamizados normalmente viviam em uma dualidade de

    crenas e tradies, onde mesmo os seguidores do isl mais

    fervorosos, normalmente no abandonavam por completo as

    tradies msticas de seu povo. Sendo assim, o confronto de

    Sundjata Keita e Suamoro Kant no foi de ordem religiosa, mas sim

    de ordem poltica, pois o islamismo era visto como um cone de

    modernidade que poderia vir a corromper as tradies seculares de

    todas as etnias regionais8. Em outras palavras, ambos eram

    tradicionalistas, mas apenas Sundjata apresentou uma postura

    menos ortodoxa procurando incentivar a pluralidade tanto em termos

    religiosos, quanto em termos sociais.

    O confronto entre Suamoro e Sundjata apresenta outras

    peculiaridades. De acordo com (Waldman 1998, 22:23), Suamoro

    tambm era conhecido como o Rei Feiticeiro e Ferreiro, pois o mesmo

    governava um cl do povo manden especializado em metalurgia do

    ferro e completamente obstinado a banir os islmicos da regio. O

    fato de serem hbeis nas artes da metalurgia, naturalmente os

    8 Bantus e Sudaneses constituem dois dos principais grupos negroafricanos, cada um deles reunindo centenas de etnias. (WALDMAN 1998:43)

  • 20

    propeliam para as aes militares. Na Epopia, Suamoro foi visto

    como um rei saqueador combatendo os islmicos impedindo suas

    transaes comerciais, especificamente o trfico de escravos, que

    antes mesmo da colonizao europia j era uma prtica nos

    mercados do Mediterrneo, alm de outras regies islamizadas. Outro

    fator importante foi o seqestro da meia irm de Sundjata e de seu

    griot Balla Fassk.

    A Epopia dividida em trs partes, a profecia, o exlio e o

    retorno do rei. A profecia citada na Epopia referente Nar Fa

    Maghan, rei de um pequeno reino em Mali no ano de 1200 D.C. O rei

    Magnan era descendente de uma longa linhagem de grandes

    caadores, conhecido por sua bravura e tambm pela habilidade de

    se comunicar com os djinns, espritos que exercem influncia sobre

    os vivos. Nessa poca, os governantes Mandinkas eram seguidores

    do islamismo, porm ainda mantinham suas crenas nos espritos.

    Certo dia, um caador vindo do norte veio at Maghan e fez uma

    profecia. A profecia dizia que dois caadores iriam at o rei com uma

    mulher muito feia, mas apesar de sua aparncia o rei deveria casar-

    se com ela, pois dessa unio surgiria o maior soberano de todos os

    tempos. Tempos depois, dois caadores chegam diante do rei,

    acompanhados de uma mulher feia e corcunda chamada Sogolon

    Kedju. Era conhecida como a mulher bfalo que dotada de poderes

    mgicos assolou a terra de Do matando caadores e cidados

  • 21

    igualmente. Os caadores contaram ao rei que tambm fizeram o uso

    de poderes mgicos para capturarem Sogolon Kedju e, por

    conseguinte a ofereceram para o soberano.

    Ciente da profecia, o rei logo se casou com Sogolon e dessa

    unio tiveram um filho, Mari Diata. Sendo filho de Sogolon, Mari

    Diata passou a ser chamado de Sogolon Diata, e eventualmente de

    Sundjata. A Epopia narra uma srie de intrigas que constantemente

    ameaam a subida de Sundjata ao trono de Mali logo aps a morte

    de seu pai. Diante da crescente ameaa a sua vida e de seu filho,

    Sogolon Kedju exilou-se para poder criar seu filho Sundjata livre de

    possveis atentados por parte daqueles que cobiavam o trono de

    Magnan. Aps anos de exlio, o trono de Mali estava nas mos do

    poderoso rei feiticeiro Suamoro Kant que associando magia e um

    poderoso exrcito, consegue exercer poder sobre os diversos

    soberanos e etnias adjacentes ao reino que antes pertencera ao rei

    Magnan, pai de Sundjata.

    Surge na trama a presena de um griot, Balla Fassk que

    dotado de poderes mgicos e consegue atravs de seu instrumento

    musical, o balafon dominar os animais peonhentos, alm de utilizar

    a prpria msica para controlar o inimigo de seu rei, no caso,

    Suamoro Kant.

  • 22

    A Epopia narra vrios confrontos entre Suamoro, o rei

    usurpador e Sundjata, o legtimo soberano na linha de sucesso do

    trono de Mali. Finalmente a Epopia chega ao fim aps uma srie de

    embates onde a utilizao da magia foi a chave para a vitria de

    Sunjata sobre Suamoro. Sudjata Keita tornou-se um lder respeitado,

    morrendo em 1255, deixando um imprio que durou mais de dois

    sculos. O papel dos griots, tanto na prpria trama da epopia,

    quanto na difuso da mesma durante os sculos, permeia uma ntida

    valorizao da imagem de Sunjata Keita em detrimento a Suamoro

    Kant. Esta generosidade com a imagem de Sundjata est

    diretamente ligada ao imaginrio popular, onde inclusive os griots

    atribuem ao poderoso e legtimo Imperador de Mali, a inveno dos

    principais instrumentos musicais utilizados por eles, balafon e o dan.

    De um modo geral, o pensamento africano bem distinto no

    que se refere relao espao, tempo e fora vital. Em outras

    palavras, o tempo um eixo dinmico no qual o ciclo da vida entre

    outros ciclos, permeia atravs de uma sucesso de eventos.

    ... Este sentimento estava traduzido no pensamento africano como uma permanente reconstruo do mundo pela constante renovao do equilbrio entre as foras vitais. Nas culturas africanas, o passado era honrado por sugerir aos homens do presente seus compromissos como devedores das geraes ancestrais. Graas ao passado, existiam as linhagens e se prognosticava a proteo para as geraes seguintes, ligando o homem do presente aos antepassados mais remotos e ao prprio Pr-existente. (WALDMAN 1998: 19).

  • 23

    E tambm (SERRANO 1983), afirma que o pensamento africano

    observa o tempo de forma mtica e estreitamente ligado a um espao

    especfico numa relao de espao-tempo na qual as foras sociais se

    confrontam e se revitalizam constantemente. A relao espao-tempo

    na tica africana envolve um dinamismo baseado na dinmica de

    ordem espiritual e material, onde ambos esto intimamente ligados

    s foras vitais. Amadou HAMPAT-B demonstra como o mtico e a

    relao espao-tempo se manifestam no contexto africano:

    Tomemos o exemplo de Thianaba, a serpente mtica peul, cuja lenda narra as aventuras e a migrao pela savana africana, a partir do Atlntico. Por volta de 1921, o engenheiro Belime, encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a curiosidade de seguir passo a passo as indicaes geogrficas da lenda, que ele havia aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande Conhecedor peul. Para sua surpresa, descobriu o antigo leito do Nger (1993: 216).

    Na tica da tradio oral africana, o mundo no visto como

    um cenrio onde os acontecimentos apenas ocorrem, mas sim como

    um todo onde tudo est interligado. Nada supera a fora da oralidade

    africana, onde a escrita, considerada um fator externo pessoa, e

    por esta razo, impacta negativamente os processos de

    comunicao (LEITE,1992: 87).

  • 24

    2- DA FRICA PARA AS AMRICAS

    Em meados do sculo XV, a frica9 estabeleceu uma relao

    nica com a Europa que levou devastao e a despovoamento do

    continente, mas por outro lado contribuiu para a prosperidade e o

    desenvolvimento da Europa. Do sculo XVI at o final do sculo XIX,

    os europeus comearam a estabelecer um comrcio de cativos

    africanos. No incio este trfico s complementou um comrcio de

    seres humanos que j existia dentro da Europa, no qual os europeus

    tinham escravizado um a outro. Alguns Africanos escravizados

    tambm foram enviados para a Europa, o Oriente Mdio e outras

    partes do mundo antes de meados do sculo XV. Esta prtica era

    comum e o comrcio de seres humanos existia h muito tempo na

    frica.

    Estima-se que no incio do sculo XVI, aproximadamente 10

    por cento da populao de Lisboa fosse de origem africana. Muitos

    desses cativos africanos cruzaram o Saara e chegaram a Europa e

    outros destinos da frica Norte, ou foram transportados atravs do

    Oceano ndico. O comrcio escravo transatlntico comeou durante o

    sculo XV quando Portugal, e posteriormente outras monarquias

    europias, foi finalmente capaz de expandir-se para o ultramar e

    conseguir chegar frica. O portugus primeiro comeou a raptar a

    gente da costa do Oeste da frica e os levavam Europa como

    9 Acessado em 23/03/2007

  • 25

    escravos. Depois da descoberta europia do continente americano, a

    exigncia do trabalho africano gradualmente cresceu como outras

    fontes do trabalho tanto a mo-de-obra o europeu como o do

    americano - foram vistas como insuficientes.

    A Espanha capturou os primeiros africanos e os levou para as

    Amricas e Europa no incio de 1503 e a partir de 1518 os primeiros

    cativos passaram a ser enviados diretamente da frica para a

    Amrica. A maior parte da dos africanos cativos era proveniente da

    Costa Oeste da frica, aproximadamente uns 5000 Km entre o que

    hoje chamamos de Senegal e Angola. E tambm a maior parte de

    Benin, Nigria e Camares.

    Os historiadores ainda discutem exatamente quantos Africanos

    foram forosamente transportados atravs do Atlntico durante

    quatro sculos. Estima-se que seja por volta de 11 milhes de

    pessoas. Dos 11 milhes de indivduos, menos de 9.6 milhes

    sobreviveram assim chamada de meia passagem atravs do

    Atlntico, devido s inumanas condies nas quais eles foram

    transportados, e a supresso violenta de qualquer resistncia de

    bordo. Muitas das pessoas que foram escravizadas no interior

    africano acabaram morrendo na longa viagem costa. Estima-se que

    o nmero total de Africanos capturados na costa Leste do continente

    e escravizados no mundo rabe esteja entre 9.4 milhes e 14

  • 26

    milhes. Essas referncias so imprecisas devido ausncia de

    registros escritos.

    A retirada forada de at 25 milhes de pessoas do continente

    obviamente teve um efeito principal no crescimento da populacional

    da frica. Sendo assim, podemos supor que no perodo de 1500 a

    1900, a populao da frica tenha se estagnado ou diminudo. Os

    seres humanos, alm de muitos recursos minerais e naturais que

    foram tomados da frica, contriburam para o desenvolvimento

    capitalista e a prosperidade da Europa. A frica foi o nico continente

    a ser afetado de forma to drstica e esta perda da populao

    demogrfica e potencial foi um fator principal que levou ao seu

    posterior subdesenvolvimento econmico. A relao de desigualdade

    que foi gradualmente criada como conseqncia da escravizao de

    Africanos foi justificada pela ideologia do racismo - a noo que os

    Africanos foram naturalmente inferiores a europeus. Esta ideologia,

    que tambm foi perpetuada pelo colonialismo, um dos legados mais

    significantes deste perodo da histria.

    O desenvolvimento econmico e social de frica antes 1500

    esteve indiscutivelmente frente da Europa na mesma poca. Isso

    por que houve grandes imprios na frica do Oeste, o Ghana, o Mal

    e Songhay que forneceram os meios de alavancagem econmica da

    Europa antes dos sculos XIII e XIV e inevitavelmente despertando o

    interesse de europeus na frica ocidental. O imprio africano do

  • 27

    oeste do Mal foi maior que a Europa Ocidental e se empenhou para

    ser um dos Estados mais ricos e poderosos no mundo. Para

    fundamentar essa afirmao (ADI, 2007) explica que quando o

    imperador do Mal, Mansa Musa visitou o Cairo em 1324, trazia

    consigo tanto ouro, que o seu preo caiu dramaticamente e no

    recuperou o seu valor at 12 anos depois. O imprio de Songhay era

    conhecido, entre outras coisas, por sua universidade de Sankore

    baseado em Timbuktu.

    Os historiadores discutiram por muito tempo como e por que as

    monarquias africanas e os comerciantes estabeleceram um comrcio

    que foi to desvantajoso para frica e os seus habitantes? Alguns

    argumentaram que a escravido foi endmica na frica e que, por

    isso, a demanda da Europa rapidamente levou ao desenvolvimento

    de um comrcio organizado. Essa demanda por mo-de-obra escrava

    por parte da Europa passou a ser to crescente, que rapidamente a

    busca por escravos em solo africano comeou a ser feita ou por

    intermdio de grandes caadas, ou at mesmo atravs de guerras

    incentivadas para finalidade de aquisio de prisioneiros.

    Os africanos poderiam ser escravizados como punio por um

    crime, como pagamento de uma dvida de famlia, ou o mais

    comumente de todos, sendo capturado como os presos da guerra.

    Com a presena de barcos europeus e americanos, mercadorias para

  • 28

    serem comercializadas em troca da gente, os africanos tiveram um

    estmulo majorado para escravizar um a outro, muitas vezes at

    mesmo exercendo a prtica de rapto. No h dvidas de que os

    europeus no se arriscaram no interior do solo africano na busca dos

    milhes de cativos que foram transportados da frica. Nas reas

    onde a escravido no foi praticada, como na regio do povo Xhosa

    da frica do Sul, os capites europeus foram incapazes de comprar

    escravos.

    No lado africano, o comrcio escravo foi geralmente o negcio

    de soberanos ou comerciantes ricos e poderosos, preocupados com

    os seus prprios interesses egostas ou estreitos, e no aqueles do

    continente. Ento, no houve nenhum conceito de ser africano. A

    identidade e a lealdade foram baseadas em parentesco ou scio de

    uma monarquia especfica ou sociedade, e no ao continente

    africano. Os africanos ricos e poderosos foram capazes de exigir

    vrios artigos de consumo e em alguns lugares at ouro de

    prisioneiros, que podem ter sido adquiridos pela guerra ou por outros

    meios, inicialmente sem perturbao macia a sociedades africanas.

    Contudo, em meados do sculo XVII, a demanda europia por

    cativos, em particular das plantaes de acar nas Amricas, ficou

    to grande que eles s puderam ser adquiridos por intermdio de

    invaso, ou e guerra.

  • 29

    No h dvidas de que algumas sociedades se alimentaram de

    outros para obter prisioneiros em troca de armas do fogo europias,

    na crena que se eles no adquirissem armas de fogo se proteger,

    eles seriam atacados e capturados por seus rivais e inimigos que

    realmente possuram tais armas. Contudo, alguns soberanos

    africanos realmente tentaram resistir devastao da demanda

    europia por escravos. Em 1526, o Rei Afonso de Kongo, que

    anteriormente gozava de boas relaes com o trono portugus,

    queixou-se ao rei de Portugal que os comerciantes escravos

    portugueses raptavam os seus sditos, despovoando a sua

    monarquia.

    Em 1630, a Rainha Njingha Mbandi de Ndongo (na Angola

    moderna) tentou expulsar os portugueses do seu reino, mas foi

    finalmente persuadida a negociar com eles. J em 1720, o Rei Agaja

    Trudo de Daom no s se ops ao comrcio escravista, como

    chegou a atacar os fortes que os poderosos europeus tinham

    construdo na costa. Mas a sua necessidade por armas do fogo

    forou-o a chegar a um acordo com os comerciantes europeus.

    Outros lderes africanos como Donna Beatriz Kimpa Vita em Kongo e

    Abd al-Qadir, no que agora o Senegal do norte, tambm exerceram

    uma grande resistncia contra a exportao forada de africanos.

    Muitos outros, especialmente aqueles que foram ameaados com a

    escravizao, bem como aqueles que foram mantidos como

  • 30

    prisioneiros na costa, rebelaram-se contra a escravizao e esta

    resistncia estendeu durante a meia passagem.

    Estima-se agora que houve rebelies em pelo menos 20 por

    cento de todos os barcos escravos que cruzaram o Atlntico. O

    comrcio transatlntico de escravos realizou a maior migrao

    forada de uma populao humana na histria. Milhes de africanos

    foram transportados para o Caribe, Amrica do Norte e Amrica do

    Sul, bem como para Europa alm de outros lugares. Embora a

    escravido fosse efetivamente ilegal em Inglaterra desde 1772 e na

    Esccia desde 1778, as campanhas para aboli-la tanto o comrcio

    como a sua prtica continuaram desde ento. As mulheres

    participaram de campanhas abolicionistas iniciando suas

    manifestaes nos cenrios domsticos e sociais, culminando at nas

    instncias polticas. Aos poucos esse movimento passou a conquistar

    membros da aristocracia britnica como a Duquesa de Devonshire,

    evanglicos e intelectuais.

    O movimento abolicionista ingls teve uma grande participao

    das mulheres por entenderem que o tratamento desumano e

    preconceituoso direcionado ao escravo era semelhante ao direcionado

    s mulheres por ocuparem um papel de submisso em relao aos

    homens. Esse tipo de discurso estendeu at o incio do sculo XX

  • 31

    quando as mulheres passaram a reivindicar melhores condies de

    trabalho, sufrgio universal e igualdade social.

    As aes abolicionistas em geral eram pacficas culminando em

    boicotes de produtos fabricados com mo-de-obra escrava10, como

    por exemplo, o acar, onde houve uma mobilizao na qual

    trezentas mil pessoas se recusaram a comprar tal produto. Estas

    manifestaes normalmente eram praticadas por elementos da classe

    mdia e os seus reflexos logo influenciaram as estratgias comerciais

    do mercado, como por exemplo, as embalagens de produtos

    manufaturados de origem estrangeira apresentavam dizeres em seus

    rtulos que negavam a utilizao de mo-de-obra escrava em sua

    produo.

    A Amrica Norte colonial figurou no Comrcio Escravo

    Transatlntico tardiamente neste captulo da histria. Diferentemente

    do ingls, holands e francs, a Amrica Norte nunca se destacou no

    que se refere ao mercado de cativos africanos, atingindo um quinto

    do volume de negcios realizados na poca. Contudo, a escravido

    profundamente formou o desenvolvimento demogrfico, social,

    econmico e tnico dos EUA. Por volta de 1730 os norte-americanos

    comearam a importar significativamente e escravizar africanos

    estima-se que em solo norte-americano tenha sido trazido cerca de

    10 Anexo figura 5

  • 32

    aproximadamente seis por cento dos africanos trazidos da frica para

    as Amricas.

    A maioria dos africanos que foi trazida para a Amrica Norte,

    veio do Oeste da frica (especialmente final do sculo XVII). Existiam

    postos comerciais estabelecidos pelos ingleses ou de origem africana

    situadas em Gmbia e ao longo da costa da Guin, onde trocavam

    cativos por tecidos, artigos metlicos, contas, armas entre outras

    mercadorias. Quando os Estados Unidos era colnia Inglesa, os

    postos comerciais ingleses na frica eram freqentados por

    americanos. Aps sua Independncia, os americanos no chegaram a

    estabelecer seus prprios postos comerciais em solo africano,

    comercializando basicamente rum com os postos ingleses de

    comrcio. O estado americano de Rhode Island era o ponto de

    partida para as aes comerciais na frica, perfazendo quase mil

    viagens e transportando mais de cem mil africanos para as Amricas.

    Nos Estados Unidos, no final do sculo XVIII, enquanto na

    regio norte, existia um crescente desenvolvimento industrial, alm

    de pequenas propriedades agrcolas, a regio sul era caracterizada

    pelos grandes latifndios dos quais, a mo-de-obra escrava de

    origem africana era a base de sua economia11. O total de escravos

    trazidos para o continente americano totalizou aproximadamente

    11 Anexo figura 4

  • 33

    doze milhes de indivduos, onde um milho e meio sucumbiu

    durante as viagens. Somente na Amrica do Norte, de 1618 at

    1786, foram introduzidos como escravos 4,3 milhes de africanos.

    Dos estados americanos, os do Sul12 eram os que tinham o

    maior nmero de escravos, onde antes de 1780, Virgnia, Carolina do

    Norte, Carolina do Sul e Maryland concentravam 85% da mo-de-

    obra escrava em solo americano. Porm, em 1776 o Congresso

    Americano proibiu a importao de cativos para qualquer uma das

    Treze Colnias. Essa ao do Congresso desencadeou uma grande

    movimentao interna da mo-de-obra escrava. Como j foi dito

    anteriormente, havia muitas vezes insurreies durante o trajeto dos

    navios negreiros para as Amricas, mas tambm houve uma grande

    revolta em solo americano, a revolta de Nat Turner. A revolta de Nat

    Turner13 foi a mais famosa das revoltas nos estados do Sul de

    Amrica do Norte. Ocorreu em Southampton, Virginia no dia 22 de

    Agosto de 1831.

    Nat Turner nasceu em 1800 de pais escravizados na plantao

    de Benjamin Turner. Aprendeu sozinho a ler e escrever e foi

    estimulado por seu mestre a ler a Bblia, onde a partir de ento se

    12 13 Anexo figura 6

  • 34

    viu predestinado a libertar o seu povo. Seu pai escapou para o norte

    e Benjamin Turner, seu proprietrio morreu em 1810 e Nat e sua

    me passaram a pertencer a Samuel Turner - o filho de Benjamin

    Turner. Nat foi posto para trabalhar nos campos pela primeira vez e a

    sua liberdade em todos os sentidos lhe foi roubada. Um nmero de

    exemplos e os acontecimentos na vida de Nat moveram-no em

    direo insurreio sangrenta que ele conduziria finalmente em

    1831. Nat tinha sido considerado um profeta por outros africanos

    escravizados.

    Isso porque ele descreveu eventos que tinham acontecido antes

    de seu nascimento. Ele tambm teve um nmero de vises onde os

    espritos brancos e os espritos pretos se enfrentavam em batalha

    onde viu o muito sangue pairar sobre os campos. Estas vises

    fizeram de Nat Turner um pregador Batista, onde passou a divulgar

    para as congregaes escravas sobre o dia em Deus levantaria os

    escravos acima de seus mestres e eles seriam libertos da escravido.

    Apesar das suas crenas profundamente religiosas, em 1827 as

    igrejas locais recusaram-no a permisso de batizar um e a sua

    desiluso cresceu. Em 1831 ele foi vendido a Joseph Travis e foi sob

    este novo mestre insurreio realizou-se. Ele esperou por um sinal do

    Deus acreditando que um eclipse do sol era um sinal divino. Na

    Segunda-feira, 22 de Agosto, a revolta de Turner comeou na casa

    de Joseph Travis, com somente seis seguidores.

  • 35

    Ento os insurgentes foram de casa em casa, matando homens

    brancos, atraindo mais seguidores e armas elevando o grupo para

    aproximadamente 60 homens a cavalo armados com machados,

    espadas, armas de fogo entre outros instrumentos blicos. Eles

    mataram aproximadamente 55 homens, mulheres e crianas. As

    notcias da insurreio estendem-se rapidamente e logo apareceram

    grupos armados de brancos chegaram para suprimir a rebelio,

    resultando na morte ou a disperso de muitos de homens de Turner.

    Finalmente Turner foi capturado no dia 30 de Outubro, sendo

    julgado, declarado culpado e enforcado no dia 11 de Novembro de

    1831. Esta insurreio levou o estado de Virginia a um debate srio a

    respeito do trmino da escravido nos estados mais ao Sul do pas,

    porm acabaram instituindo leis severas para policiar as suas

    populaes escravas e prevenir revoltas.

    Outro episdio importante na histria dos afro-descendentes

    nos Estados Unidos foi a Guerra Civil americana. A Guerra Civil

    americana comeou depois de dcadas da discordncia entre estados

    do Norte e estados do Sul. Houve muitos fatores econmicos,

    polticos e sociais que levaram a isto, mas a escravido esteve muito

    presente em cada um desses fatores. No sculo XIX durante a dcada

    de 30, os sulistas acreditavam que a escravido era necessria tendo

    entre outros argumentos, a referncia sobre os povos da antiguidade,

    como os gregos e romanos que atingiram o mximo de

  • 36

    desenvolvimento econmico, social e tecnolgico fazendo o uso de

    mo-de-obra escrava. Isso fez com que escravido se desenvolvesse

    nos estados do Sul do pas.

    J na dcada seguinte, no mesmo sculo, o debate nacional

    sobre a escravido dividiu o pas, com os estados do Sul que

    acreditavam ser o seu direito em utilizar a mo-de-obra escrava nos

    territrios ocidentais e os nortistas que opuseram a expanso da

    escravido uns por motivos morais e outros por razes econmicas.

    A questo de escravido causou divises severas nos partidos

    polticos. Em 1860 o Partido Republicano elegeu Abraham Lincoln

    como o Presidente dos Estados Unidos. Isto despertou a ira dos

    estados do Sul, muitos sulistas acreditam que no houvesse mais

    lugar para eles na Unio, composta de 34 estados ento. A Carolina

    do sul foi o primeiro estado a separar-se da Unio, seguida por seis

    outros (Mississipi, a Flrida, a Alabama, a Gergia, a Luisiana e o

    Texas). Esses sete estados formaram os estados Confederados de

    Amrica e elegeu Jefferson Davis como Presidente.

    Em 1861 se uniram a mais quatro estados (Virginia, o

    Arkansas, a Carolina Norte e Tennessee). Lincoln declarou que a sua

    inteno foi proteger a Unio e nos primeiros dias ele no interferiu

    no tema da escravido. Inclusive ele at ordenou que os seus

    generais devolvessem qualquer escravo fugitivo alm das linhas de

  • 37

    Unio. Mas a sua postura no satisfez a Confederao, onde no dia

    12 de Abril eles atacaram o Forte que Sumter, uma base militar

    federal em Charleston, a Carolina do Sul e a Guerra Civil iniciou-se.

    Com decorrer da Guerra, Lincoln enfrentou uma srie de

    crticas por parte dos abolicionistas que desejavam que este

    confronto terminasse com a escravido. Lincoln no estava

    convencido de que negros e brancos pudessem viver em unio, mas

    ele sentiu que a emancipao pudesse ser o nico modo de acalmar

    os seus crticos internacionais e conservar a unio do pas. Em

    primeiro de Janeiro de 1863, Lincoln emitiu a Proclamao de

    Emancipao que concedeu a liberdade a todo o escravo em rebelio,

    exceto os ocupados por tropas de Unio. Finalmente a Dcima

    Terceira Emenda Constituio foi aprovada em Janeiro de 1865,

    abolindo a escravido em todas as partes dos Estados Unidos. A

    Guerra Civil terminou no dia 18 de Abril de 1865 quando o exrcito

    Confederado se rendeu s foras de Unio. A Guerra Civil, tambm

    conhecida como a Guerra entre os estados, a Guerra da Rebelio, a

    Guerra de Separao e a Guerra de Independncia do Sul, foi uma

    luta longa e dolorosa.

    Centenas de milhares de pessoas morreram ou foram

    prejudicadas, alm de muitas propriedades e reas naturais

    devastadas. O perodo que se seguiu passou a conhecido como

  • 38

    Reconstruo. Esta reedificao envolvida da unio despedaada e

    criao de uma nova ordem social. Outro ponto importante referente

    escravido nos Estados Unidos foi a Underground Railroad14 que era

    um sistema onde abolicionistas e simpatizantes auxiliavam os

    escravos a escaparem das fazendas onde eram cativos. Faziam uma

    longa e penosa fuga dos estados do Sul para liberdade no norte dos

    EUA ou o Canad.

    Contudo, apesar das histrias de esconderijos secretos,

    resgates ousados, no houve realmente um sistema nacionalmente

    organizado, na verdade os escravos planejavam e conduziam suas

    prprias fugas com uma ajuda relativamente pequena. A lenda da

    undergroud railroad foi em parte baseada no fato de alguns

    abolicionistas se dedicarem no auxlio de escravos fugitivos. Por

    exemplo, houve Comits de Vigilncia formados em algumas

    comunidades do norte que forneceram comida, alojamento

    temporrio, direes rotas de viagem e s vezes transporte a

    escravos que passavam por suas comunidades. Porm, o auxlio que

    a underground railroad beneficiou muito poucos escravos.

    14 http://www.antislavery.org/breakingthesilence/slave_routes/slave_routes_unitedstates.shtml Acessado em 20/07/2007

  • 39

    3 OS PRIMRDIOS DA CULTURA AFRO NORTE AMERICANA

    Segundo (Aguiar, 2002), a forma mais importante da expresso

    da msica Afro-americana so as manifestaes religiosas,

    conhecidas hoje como msica gospel, onde a mesma dotada de

    uma grande carga emocional e rtmica. A msica negra na Amrica

    manteve muitas caractersticas da cultura africana, onde a tradio

    da coletividade, ritmos enfatizados e grande improvisao na

    execuo musical, confirmam tal afirmao. Mesmo havendo a

    proibio de manifestaes musicais entre os escravos por parte da

    populao branca escravista, a tradio africana passou assimilar

    elementos da cultura ocidental adicionando aos mesmos, ritmo,

    emoo e a liberdade no uso das palavras.

    Os africanos seqestrados trouxeram consigo para o continente

    americano, plantas medicinais, poucos pertences pessoais alm de

    toda uma carga cultural intuitiva. Por sua vez, colonos americanos

    proibiam os seus escravos de fazerem uso de tambores e outros

    instrumentos musicais. Tal postura era devido ao receio de que a

    aproximao do escravo a sua origem cultural, pudesse despertar

    revoltas e eventuais sublevaes. O nvel das proibies era

    tamanho, que at mesmo o uso de dialetos e lnguas nativas, era

    passvel de pesadas punies por parte dos colonos. Esta postura

    tinha como principal objetivo, desfazer a unidade corporativa dos

  • 40

    grupos ticos entre os escravos, sendo assim, poderia ser exercido

    um maior controle sobre os mesmos, pois, sem identidade, no

    poderia haver coeso entre os cativos. Ao mesmo tempo,

    (HOBSBAWN,1990) afirma que o fator crucial para o desenvolvimento

    do jazz, bem como toda msica popular americana, foi condio

    dos elementos culturais provenientes das classes superiores no

    terem sido to influentes do que os da classe trabalhadora. Ainda

    (HOBSBAWN 1990) cita que a cultura musical da classe trabalhadora

    inglesa do sculo XIX era baseada em uma msica folclrica pr-

    industrial decadente, onde tal decadncia deu-se a partir de 1840.

    Mesmo com todas as restries culturais, os escravos enquanto

    trabalhavam nas plantaes, ou na construo das estradas de ferro,

    criavam e cantavam canes dotadas de ritmo, sem o

    acompanhamento de instrumentos musicais e dotadas de melodias

    improvisadas. Estas canes passaram a ser chamadas de work

    songs ou canes de trabalho, ou tambm chamadas de field hollers.

    Geralmente uma pessoa iniciava o canto e as demais respondiam,

    repetiam ou improvisavam. Conforme afirma (HOBSBAWN,1990), a

    msica folclrica de origem negra passou por um rpido processo de

    evoluo, onde a lngua inglesa forneceu as palavras para o discurso

    negro e para as canes e a partir das mesmas, foi criada uma

    linguagem jazzstica.

  • 41

    Como j foram anteriormente citadas, as origens do jazz so

    um tanto imprecisas em termos cronolgicos e at mesmo

    controversos quando se refere s origens africanas. Por exemplo,

    (HOBSBAWN,1990) afirma que no se pode considerar o jazz uma

    msica totalmente africana, pois apesar se suas peculiaridades

    rtmicas e intuitivas este gnero musical desperta muito mais o

    interesse dos ingleses do que dos povos da frica Ocidental, regio

    de origem dos escravos da Amrica do Norte. Basicamente, o jazz foi

    desenvolvido a partir de quatro pilares: o blues, os spirituals , gospel

    e o ragtime.

    3.1 O Blues

    O Blues que teve como origem as worksongs e as field hollers ,

    onde segundo (ESSEN ,1975), trata-se do resultado de uma

    interao do arsenal meldico e declamatrio africano com as

    harmonias europias mais simples. O Blues manifestava-se atravs

    de cantos calcados em lamentos, dotados de grandes pores de

    melancolia, alm de relatar os acontecimentos do dia a dia.

    Conforme afirma (HOBSBAWN, 1990:105),o blues no um

    estilo ou uma fase do jazz, mas sim um substrato permanente de

    todos os estilos; no todo o jazz, mas o seu ncleo. Em outras

    palavras, o blues o elo de ligao entre tcnicas instrumentais do

  • 42

    jazz e suas origens basicamente populares. O Blues um estado de

    esprito, no necessariamente tristeza, embora na maioria das vezes

    se apresente dessa forma. Tambm poderamos ver o blues como:

    Em sua forma original uma forma de essencialmente,uma msica antifnica, na longa tradio africana de canto e resposta. Na verdade, o blues um dueto entre a voz e o instrumento.

    (HOBSBAWN, 1990)

    Os ancestrais do Blues so de imediato, as msicas para a

    dana das quais, os escravos tocavam em suas reunies de sbado

    noite, as worksongs, por meio das quais eles organizavam seus

    trabalhos e as field hollers, que tinham como finalidade a

    comunicao durante o trabalho. De acordo com (HOBSBAWN, 1990)

    citando Wilder Hobson15, os primrdios do blues podem ter surgido

    antes mesmo da Guerra Civil americana.

    Com a emancipao dos negros, aps a Guerra Civil americana,

    o blues passou por uma rpida evoluo, deixando de ter um aspecto

    coletivo dos tempos da escravido, passando a ser divulgado por

    artistas menestris itinerantes divulgando a sua arte, talvez de forma

    semelhante aos griots. A partir de uma forma derivada dos field

    hollers, onde o canto iniciado por um integrante de um grupo

    respondido por um coro dos demais, para o bluesman, tal

    performance passou a ser feita de forma solitria, onde a resposta 15 ...essa forma pode ter, originalmente, consistindo meramente no canto, apoiado por um ritmo de percusso constante, de estrofes de tamanho varivel, sendo o tamanho determinado pela frase que o cantor tinha em mente, com pausas igualmente variveis (com a continuao do ritmo do acompanhamento) determinadas pelo tempo necessrio ao cantor para pensar em uma nova frase.

  • 43

    para o seu canto vinha por intermdio de um instrumento de corda

    que o acompanhava.

    Na lngua inglesa palavra blue16 geralmente associada

    tristeza desde o sculo XVI. De acordo com (CHARTERS, 1962), o

    termo blues para designar este gnero musical s foi atribudo no

    incio do sculo XX. De um modo geral aps a escravido, o blues

    sofreu no s uma mudana morfolgica, como tambm uma

    mudana social. Devido ao trabalho assalariado para os ex-escravos,

    possibilitou um aumento da populao economicamente ativa nos

    estados do sul, isso fez com que o houvesse um aumento no fluxo de

    dinheiro na regio e, por conseguinte, a expanso do setor de

    entretenimento, porm, restrito a pequenos bares e casas de dana.

    De acordo com (Hobsbawn 1990), partir da primeira dcada do

    sculo XX, houve uma grande migrao de negros para os grandes

    centros urbanos como, por exemplo, Chicago, Harlen entre outros.

    Essa migrao, consecutivamente possibilitou um grande aumento da

    populao das cidades-destino alterando o perfil do mercado. E em

    termos de entretenimento o jazz tambm acompanhou essa

    migrao.

    Apesar da tradio do blues ser puramente masculina, os

    primeiros registros fonogrficos deste gnero, foram feitos por

    mulheres, Mamie Smith17 e Bessie Smith. Nascida em 15 de abril de

    16 Segundo Robert M. Baker em http://www.thebluehighway.com/history.html 17 Mamie Smith gravou o primeiro registro vocal do blues, 'Crazy Blues' em 1920.

  • 44

    1894, em Chattanooga, Tenessee, Bessie Smith teve dez irmos.

    Quando tinha a idade de oito anos, Bessie Smith perdeu seus pais

    passando a ser criada por seus irmos mais velhos Viola e Clarence.

    Seus irmos tutores procuraram incentiv-la s atividades artsticas

    como o canto e a dana. Diante de tal incentivo, Bessie Smith e seu

    outro irmo Andrew, passaram a fazer shows nas ruas de

    Chattanooga enquanto o seu irmo mais velho Clarence, passou a

    fazer parte do Moses Strokes Company. Em pouco tempo Clarence

    arranjou um teste para sua irm Bessie na Moses Strokes Company

    e a mesma foi contratada em 1912.

    Nessa poca, Bessie tornou-se amiga de uma da integrante

    mais veterana da Companhia, Gertrude Ma Rainey, da qual era

    carinhosamente chamada de Mother of the Blues, ou Me do

    Blues. Com o passar do tempo, Bessie Smith desenvolveu um estilo

    original de cantar, onde o seu timbre vocal marcante, balanceado

    com uma suave docilidade e senso rtmico, fez com que conquistasse

    os pblicos alm de diversas cidades do Sul, tambm conquistou fs

    em Nova Iorque, Filadlfia e Baltimore. Seus shows eram no estilo

    vaudeville18, cruzando comdia e canes dramticas. Em 1923,

    Bessie Smith deixou sua Companhia apresentando-se com lotao

    esgotada no Palace Theater em Memphis, Tennesee. Ainda em 1923,

    18 Vaudeville foi um gnero de entretenimento de variedades predominante nos Estados Unidos e Canad do incio dos anos 1880 ao incio dos anos 1930.

  • 45

    Bessie Smith chegou a vender em apenas seis meses, mais do que

    780.000 cpias do disco com a msica Down Hearted Blues.

    Entre 1923 e 1933, Bessie Smith gravou aproximadamente 160

    canes e seus shows foram igualmente bem sucedidos. Durante este

    perodo ela tambm viajou em todas as partes do Sul e Norte,

    executando a grandes pblicos. Em 1929, ela apareceu no filme St.

    Louis Blues At l, contudo, o alcoolismo tinha danificado

    severamente a sua carreira, como fez a Depresso, que afetou

    indstrias de entretenimento e as gravadoras. Bessie Smith faleceu

    em 1936 decorrente de um acidente de automvel.

    Porm houve poucas mulheres interpretes de blues no incio do

    sculo XX. Alguns historiadores afirmam que o primeiro registro de

    uma msica utilizando o nome blues foi datado de 1912 e a

    composio chamava-se Dallas Blues de autoria de Hart Wand, um

    violinista branco da cidade de Oklahoma, mas este gnero musical

    realmente passou a ser mais popular entre 1911 a 1914 com as

    composies do msico afro-americano W.C. Handy (1873-1958).

    William Christopher Handy ganhou popularidade publicando

    Memphis Blues (1912) e St. Louis Blues (1914). Conforme afirma

    (KAMIEN 518), os primeiros blues instrumentais foram gravados em

    1913. De acordo com (Priestly 9), a partir do momento em que o

  • 46

    blues conquistou uma ampla aceitao popular que o jazz pde

    tambm conquistar o seu espao junto ao grande pblico.

    A histria das artes pode ser dividida em dois segmentos:

    aquele onde a minoria elitizada, culta e segundo (Hobsbawn 1990)

    desocupada, usufrui e o segmento da massa de pessoas comuns.

    Este isolamento cultural muitas vezes quebrado por motivos sociais

    como sentimento de nacionalidade, valores e crenas culturais entre

    outros fatores. O jazz conseguiu ser um elemento aglutinador das

    massas populares para com a elite. Talvez esse interesse tenha sido

    despertado pelo fato do jazz ser uma fuso de culturas e tradies

    misturando referncias musicais de origem europia e a capacidade

    de improviso proveniente da tradio oral africana, fez com que esse

    gnero musical pudesse se renovar atravs dos tempos.

    Essa capacidade de renovao despertou e ainda desperta o

    interesse das elites que sempre que podem, procuram fugir da

    estagnao que muitas vezes outros gneros musicais se encontram,

    assimilando elementos do jazz para conferir algum diferencial em

    suas manifestaes artsticas. Nas primeiras dcadas sculo XX, a

    busca pela renovao da cultura ocidental, fez-se presente em

    diversos segmentos das artes, onde o extico passou a ser procurado

    e apreciado. Diante deste contexto, o jazz gradativamente deixou de

    ser visto como uma manifestao cultural marginalizada, ou at

  • 47

    mesmo como algum tipo de revolta das massas contra as elites, para

    ser visto como uma fonte de apropriao, visando cativar uma gama

    maior de apreciadores e claro intensificar a crescente indstria do

    entretenimento nos grandes centros urbanos.

    Na dcada de 1920, de acordo com (Hobsbawn 1920), nos

    crculos intelectuais o jazz era denominado de msica do futuro

    pelo fato de seu ritmo produzir um movimento que faz lembrar a

    dinmica das mquinas. Ao pensarmos numa possvel ligao entre a

    indstria e o jazz, talvez haja pouca ligao no que tange

    padronizao, pois a referncia mais prxima existente entre o jazz e

    a mquina, foi em relao ao trem. bem possvel que

    coincidentemente haja uma ligao do imaginrio popular atravs do

    blues que a expresso oral do jazz e o trem no sentido de

    movimento, de mudana e at mesmo transcendendo em conotaes

    sexuais19.

    Atravs do jazz, o imaginrio popular fez muitas ligaes

    metafricas sobre o trem. Como por exemplo, a lenda de John Henry

    que narra um embate fenomenal entre homem e mquina. Para

    construir as estradas de ferro, as companhias contratavam milhares

    de homens para o servio de terraplanagem e desobstruo do

    19 Riding, rocking e rolling so palavras usadas tanto para a estrada de ferro quanto para o coito. Nas canes de priso e de campos de trabalho, a estrada de ferro tambm o meio que traz a namorada do prisioneiro ao seu encontro. (Hobsbawn 1990: 32)

  • 48

    caminho da futura ferrovia. De todas as tarefas direcionadas para o

    grupo de trabalhadores, a que aparece com bastante nfase a

    escavao de um tnel chamado Big Bend Tunel, ou Tunel da Grande

    Curva, que era deveria ter mais de uma milha atravs de uma

    montanha em West Virginia.

    Os ento chamados homens de ao como John Henry usavam

    grandes martelos e estacas para abrir buracos na rocha, que ento

    foram cheios de explosivos que abririam uma cavidade mais profunda

    na montanha. Nas baladas folk, o evento central ocorreu quando, na

    nsia de reduzir preos e acelerar o progresso das obras, alguns

    engenheiros passaram a usar furadeiras a vapor para abrir seu

    caminho na rocha. Segundo algumas contam, ao ouvir a mquina,

    John Henry props um desafio aos operadores de furadeira a vapor.

    No bate, John Henry morreu de exausto devido ao esforo sobre-

    humano. Como j foi dito sobre essa lenda existe uma srie de

    verses sobre o local20 do evento, sobre a identidade de John Henry,

    entre outros detalhes.

    Mas o esforo sobre-humano de John Henry serviu de

    inspirao para muitas canes populares e o blues entoa essa lenda

    como atravs de diversos intrpretes por mais de um sculo. O cone

    John Henry representa a luta do homem contra a mquina. A pessoa

    20 Anexo figura 20

  • 49

    simples e humilde contra os poderosos e quando falamos de msica

    popular, muitas vezes essas referncias ficam em evidncia. Existem

    algumas referncias21 que afirmam que John Henry era um escravo

    nascido nos anos de 1840 ou nos anos de 1850. importante

    ressaltar que ningum sabe com certeza se John Henry realmente

    existiu.

    uma das coisas que faz com que essa lenda seja to

    intrigante. Inclusive dizem que ele tinha aproximadamente 1,98m de

    altura e 100 kg - um gigante naquele dias. Embora a histria de John

    Henry parea ser um grande conto, certamente baseado, pelo

    menos em parte, em alguma circunstncia histrica. H discusses

    sobre onde lenda se originou. Algum John Henry de algum lugar em

    West Virginia22, enquanto pesquisas recentes sugerem Alabama.

    Entretanto, todos compartilham de um desfecho semelhante para a

    estria. As prises sulistas segundo Allan Lomax23, contriburam para

    a tradio do blues, onde os prisioneiros culpados por assassinatos,

    roubos entre outros crimes, cantavam seus lamentos sobre a

    liberdade tolhida ou por estarem diante de um possvel e prximo

    final da vida.

    21 Tributaries: Journal of the Alabama Folklife Association, Vol. V (2002). 22 Anexo figura 20 23 Lomax, Alan. _The Land Where the Blues Began_. N.Y.: Pantheon Books, 1993

  • 50

    Em 1939, John A. Lomax24, pai do folclorista Allan Lomax,

    desenvolveu junto Biblioteca do Congresso Americano, um grande

    trabalho chamado de Archive of American Folk Song entre outros

    gneros musicais, registrou profundamente a tradio do blues em

    diversas localidades na regio do Delta do Mississipi25 e at os

    grandes centros urbanos do Norte dos Estados Unidos. De work

    songs das plantaes ao blues cantado nas penitencirias. Do blues

    rural ao blues urbano.O blues se transformou em uma expresso

    individual, independente e mais improvisada, contrapondo-se s

    worksongs e field hollers. O Blues passou a ser mais atual,

    comentando fatos da vida cotidiana, inicialmente sendo acompanhado

    por banjo, um instrumento de origem africana.

    Na mesma poca, o blues tambm passou a ser acompanhado

    por piano em bordis, bares e casas de dana, como tambm em

    acampamentos de marinheiros e de outros trabalhadores no

    Sudoeste, como afirma (HOBSBAWN, 1990). muito difcil

    determinarmos de forma precisa onde originalmente nasceu o blues,

    porm sabe-se que cresceu no Delta do Mississipi, onde seus

    intrpretes itinerantes acompanhavam o sentido do rio em direo

    aos centros urbanizados da regio norte do pas em busca de

    melhores oportunidades de vida. De uma forma bem diferente de seu

    derivado, o jazz, o blues no era um gnero musical executado em

    24 Informao disponvel em: http://memory.loc.gov/ammem/lohtml/lohome.html 25 Anexo figura 21

  • 51

    grandes eventos e entretenimentos em geral. Inclusive ficou relegado

    regio sul e meio-oeste dos Estados Unidos at meados dos anos

    30 do sculo XX, como afirma (KOPP,2005).

    O blues sofreu muitas transformaes durante os anos e de

    acordo com os nveis de contato que seus interpretes tiveram com

    outras culturas nas cidades ao longo do Rio Mississipi. Nas ltimas

    dcadas do sculo XIX, blues e seus interpretes, como j foi citado

    anteriormente tinham um comportamento similar ao dos griots, no

    que se refere ao entretenimento de pequenas comunidades vivendo

    na maioria das vezes atravs da mendicncia. Porm, ao chegarem a

    Chicago, por volta dos anos 20 consolidou-se a maior transformao

    do blues.

    Com a emancipao dos negros, logo aps a Guerra Civil

    Americana, houve uma crescente migrao da populao afro-

    americana para o Norte, produzindo assim, conforme afirma

    (HOBSBAWN, 1990:60), um novo proletariado, tecnicamente livre

    para escolher seu prprio entretenimento. Sendo Chicago um grande

    centro urbano, havia uma grande estrutura de entretenimento e

    consecutivamente a necessidade de msicos baratos e tanto os

    bluesmen, quanto os msicos de jazz provenientes de New Orleans

    e adjacncias, preencheram a esta lacuna no respectivo mercado.

  • 52

    Logo os empresrios do entretenimento identificaram um novo

    segmento de mercado, organizando os chamados trent shows

    podendo ser caracterizados com uma forma de vaudeville. Apenas

    por volta de 1910 a 1914 que surgiram os primeiros teatros com

    contedo exclusivamente voltado para o pblico afro-americano,

    como por exemplo, o New Palace em Nova York, o Booker T.

    Washington em St. Louis, o Pekin e o State em Chicago.

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, a cidade de Chicago tinha

    mais cabars e casas noturnas, do que toda a regio sul dos Estados

    Unidos. Em 16 de janeiro de 1920, o Governo americano instaurou a

    dcima sexta emenda da Constituio que passou a proibir a

    importao, exportao, manufatura e transporte de bebidas

    alcolicas. Essa ferrenha proibio, com origens de carter religioso e

    tendo incio de meados do sculo XVII no estado de Massachusetts, a

    proibio do uso de lcool era objeto de diversas leis de vrios

    Estados americanos, mas aquilo que passaria a ser chamada de Lei

    Seca somente veio a ser concretizada a partir do ato Volstead. O ato

    Volstead foi ratificado em 16 de janeiro de 1919, aprovado em 28 de

    outubro de 1919 e em 16 de janeiro de 1920, foi efetivada como a

    dcima oitava emenda da Constituio Americana.

    No final da dcada de 1910 e incio da dcada de 1920, o

    cumprimento da dcima oitava emenda foi caracterizado por uma

  • 53

    forte represso policial em todo pas, alm de uma rgida censura e

    controle por parte das autoridades polticas e religiosas. Esta postura

    era proveniente tanto por parte dos congressistas protestantes do

    Partido Republicano, que representavam a maioria nos Estados do

    Norte, quanto os do Partido Democrata, que representavam a maioria

    das cadeiras do partido nos Estados do Sul. Diante desse cenrio, os

    norte-americanos seguidores da religio catlica e os descendentes

    de alemes passaram a ser perseguidos por serem acusados de

    descumprirem da lei de proibio do consumo de lcool.

    Enquanto a fabricao, transporte e venda de lcool era

    proibido em solo norte-americano, em outros pases prximos como

    Canad, Mxico e os pases caribenhos no era. Esta condio

    facilitou a presena de tais produtos e forma ilegal. Nos Estados

    Unidos, Chicago passou a ser visto como o paraso da desobedincia

    do ato Volstead, incentivando o crime organizado e at mesmo a

    indstria de entretenimento.

    Porm o ato Volstead passou a ser muito impopular nas

    grandes cidades culminando em sua modificao em 1933 por parte

    do Presidente Franklin D. Roosevelt atravs da assinatura de uma

    emenda conhecida como o ato Cullen-Harrison que autorizou a

    fabricao e venda de bebida alcolica a partir das seguintes

    especificaes: para as cervejas 3.2% de lcool por peso

    aproximadamente e 4% lcool por volume e vinhos leves. Isso por

  • 54

    que o Ato Volstead havia definido como perigo de intoxicao, o

    consumo de qualquer bebida que possusse uma proporo de lcool

    superior a 0,5% por volume. O Ato Volsted ou a Dcima Oitava

    emenda foi derrubada no dia 5 de dezembro de 1933 com a

    ratificao da Vigsima Primeira emenda atravs do ato Cullen-

    Harrison. Esta emenda d o direito para que cada estado norte-

    americano defina suas polticas referentes ao lcool.

    Sendo assim, o ato de Proibio Nacional, ou Ato Volstead que

    tinha como princpio, coibir a criminalidade e prover uma maior

    qualidade de vida em uma sociedade longe de vcios, acabou

    contrariando as expectativas, pois gerou um acentuado aumento da

    violncia e um fortalecimento do crime organizado. Os membros de

    gangues do crime organizado de Chicago denominados gangsteres,

    comercializavam bebidas alcolicas clandestinamente em discretas

    casas noturnas. Estas casas noturnas no podiam despertar a

    ateno das autoridades policiais, sendo assim, os msicos de jazz

    que trabalhavam em tais estabelecimentos, precisavam tocar em

    volume baixo, alterando o modo de tocar seus instrumentos fazendo

    diversas adaptaes nos mesmos. A adaptao a esta nova realidade,

    fez com que o jazz personificasse uma nova mudana em termos

    estruturais.

  • 55

    O blues foi um gnero musical edificado por muitos menestris

    que infelizmente no alcanaram grande popularidade, tendo sua

    obra consecutivamente fadada ao anonimato. Muitos bluesmen na

    esperana de melhores condies de vida e o merecido

    reconhecimento de sua arte partiram para os grandes centros

    urbanos no Norte, principalmente as cidades de Chicago e Detroit. E

    neste caminho o blues sofreu profundas transformaes.

    O blues originrio da regio do Delta do Mississipi26 apresenta

    um perfil mais rural, onde os menestris se assemelhavam muito aos

    griots africanos, tendo apenas um instrumento de cordas para se

    acompanhar, sendo grandes intrpretes de suas estrias cantadas. J

    o blues proveniente dos grandes centros urbanos, passou a receber

    uma maior infra-estrutura, aonde muitos bluesmen chegaram a

    integrar bandas de jazz, fazendo parte do circuito principal do

    entretenimento nas grandes cidades.

    Com o final da Lei Seca, em Chicago, o blues passou a ser

    eletrificado, ou seja, ao invs de ser acompanhado apenas por um

    violo e gaita, devido s casas noturnas serem barulhentas, o som

    dos msicos comeou a ser amplificado. No final da dcada de trinta,

    houve o surgimento de um novo advento que contribuiu para a

    inovao do blues, a guitarra eltrica. Isto consolidou mais uma

    26 Anexo figura 1

  • 56

    grande mudana para o gnero, tornando-o mais popular, inclusive

    mesclando-o ao jazz.

    Devido profunda segregao racial nos Estados Unidos,

    conforme citado anteriormente, at a terceira dcada do sculo XX, o

    blues ficou relegado s minorias afro-americanas e seus

    simpatizantes. Durante a dcada de 50 e 60, houve uma grande

    identificao com o blues por parte dos jovens britnicos. Esta

    identificao ocorreu de tal forma, que o mesmo pde ser resgatado

    e at mesmo reinventado, por jovens intrpretes, ou at mesmo

    grupos musicais de todo o Reino Unido. Este resgate cultural do blues

    por parte dos britnicos foi to intenso que conseguiu influenciar a

    parcela branca do pblico americano com os elementos de uma

    cultura anteriormente desprezada.

    3.2 - Os Spirituals e a msica Gospel

    Os primeiros spirituals remontam do sculo XVII e passou por

    diversas transformaes a partir de um gnero chamado ring shout ,

    que era uma dana de carter religioso originria dos rituais africanos

    de dana em crculos. Este tipo de dana religiosa pode ser

    considerada um dos grandes veculos de disseminao do

    cristianismo entre os afro-descendentes norte americanos. Nos

    Estados Unidos, este tipo de dana, assim como o uso de tambores,

    foi considerado pela Igreja Batista como prtica profana.

  • 57

    Mesmo sendo considerado como um tipo de prtica

    profana, o ring shout at hoje praticado nas igrejas de afro-

    descendentes, logo aps os trabalhos oficiais praticado como uma

    forma de louvor e confirmao de f em Deus. O ring shout consiste

    em coesas coreografias que envolvem todo o corpo de seus

    participantes onde o principal objetivo criar um som percussivo

    atravs de palmas e batido de ps onde todos os participantes

    tambm em coro respondem aos clamores de um cantor (shouting)27.

    Acredita-se que o crculo do ring shout deriva da herana

    muulmana28 que se refere volta no sentido horrio que os fiis do

    Isl fazem em torno da Kaaba29. O ring shout desenvolveu-se em

    South Carolina, Texas, Georgia e Louisiana sendo praticado at no

    sculo XXI nestas mesmas regies.

    Em resumo, o ring shout uma clara herana das razes

    africanas presentes em seus descendentes norte-americanos que

    direcionaram elementos como a oralidade, o ritmo, a dana

    direcionados ao louvor a Deus (anteriormente na cultura Yorub era

    designado sob o nome de Elegba). Muitas vezes esta dana leva a

    certo tipo de xtase muito semelhante aos encantamentos e

    possesses espirituais de origem africana.

    27 http://www.streetswing.com/histmain/z3ringshout.htm 28Aproximadamente 20 % dos africanos levados para Amrica do Norte como escravos

    eram provenientes da frica Ocidental. 29 Pedra Sagrada da religio islmica situada na cidade de Mecca.

  • 58

    Os spirituals, apesar de serem considerados grande fonte de

    inspirao para o jazz, so vistos em relao ao mesmo, como uma

    forma extremamente europeizada da msica negra norte-americana

    apresentando inclusive uma evoluo paralela. Segundo James H.

    Cone30, a criao dos spirituals no foi meramente usual e sim

    imperativa, sendo assim o mesmo no pode se considerado uma

    criao artstica, mas sim, a sua causa.

    Isto por que ao abordar os males, temores e demais

    sentimentos do povo africano, atravs de meios dos quais os mesmos

    apresentavam grande identificao que seriam elementos como a

    msica, o ritmo e a dana, serviu como um ajuste mental para que

    houvesse uma maior aceitao de uma terra estrangeira. A forma

    com que os escravos lidavam com o trauma da servido era

    compartilhar suas experincias, seus valores e seus pontos de vista

    em relao a um mundo que no conhecem.

    Uma caracterstica importante dos spirituals que apresentam

    muitas repeties em suas letras. Isto resulta da herana da tradio

    oral africana onde tal estrutura musical tinha como objetivo facilitar a

    memorizao da mesma, assim como prover uma maior liberdade

    30 The Spirituals and the Blues: An Interpretation apud multidisciplinary online curriculum by The Spirituals Project at the University of Denver.

  • 59

    para a criao de novos versos. importante ressaltar que a msica

    tanto para a cultura africana como para os seus descendentes,

    apresentou um carter funcional no que se refere disseminao do

    conhecimento, onde o conhecimento pode ser considerado o

    compartilhamento de experincias, transmisso de tradies

    ancestrais entre outros ensinamentos. Assim como o gospel, os

    spirituals tinham como tema tpicos como libertao e tendo a bblia

    como base, as passagens de Moiss e a queda das muralhas de Jeric

    eram tpicos muito presentes em suas letras.

    Segundo Michael Tanner31, enquanto o europeu v a msica na

    maioria das vezes como um entretenimento, para o africano toda

    msica sagrada, mesmo. Diante deste contexto, gospel surgiu

    como o resultado do processo de cristianizao dos escravos

    africanos, onde os mesmos ao aceitarem a doutrina crist, puderam

    incorporar seus prprios elementos culturais nas canes religiosas. A

    segregao racial estava presente tambm nas igrejas, comeando a

    incidir de forma significativa a partir de 1816 quando a igreja

    Episcopal Metodista Africana de Sion se tornou uma seita

    independente, desencadeando um movimento de massa no perodo

    da Guerra Civil americana.

    importante ressaltar que a msica spiritual quando

    direcionada para fins religiosos passaram a ser o principal gnero

    31 Artigo A Brief History of Anthem, Spiritual, and Gospel Music from Early Slavery to the Mid Twentieth Century escr