HISTÓRIA E CULTURA NEGRA NO CURRÍCULO PAULISTA...

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4570 HISTÓRIA E CULTURA NEGRA NO CURRÍCULO PAULISTA: REFLEXÕES A PARTIR DE UM PROJETO PIBID-GEOGRAFIA Lisie Tatiane de Lima WENCESLAU Maria Bernadete Sarti da Silva CARVALHO Departamento de Educação, Instituto de Biociências – UNESP Rio Claro. [email protected] Eixo 2: Formação continuada e desenvolvimento profissional de professores da Educação Básica. Resumo Este trabalho resultou da realização da Semana de Consciência e Cultura Negra promovida pelos bolsistas do Programa institucional de Bolsa de Iniciação à Docência numa escola pública da rede estadual de ensino situada em Rio Claro, município do interior do estado de São Paulo. Em sua essência o evento se apresentou como um caminho para a efetivação da lei 10.639/03 que prevê o ensino de História e Cultura Afro Brasileira. Antes de uma preocupação com o cumprimento da lei, as atividades propostas para a Semana buscaram provocar nos educandos uma reflexão crítica acerca das questões e relações étnico-raciais presentes na sociedade brasileira e que, no âmbito escolar, têm sido pouco discutidas. Assim, o objetivo do trabalho foi contribuir para a formação da identidade do alunado afro descendente, engendrando a valorização do negro a partir do contexto escolar e do currículo da educação básica. O evento realizado na escola promoveu oficinas que tinham como intenção, além do trabalho com temas centrais, a de espacializar e evidenciar a diversidade cultural do continente africano, bem como confirmar o racismo muitas vezes velado e que tem sido sustentado pelo discurso da democracia racial no Brasil. Tal preconceito se materializa no território e nas relações de diversas maneiras, desde o genocídio da juventude negra, à representação do negro nas produções midiáticas, até à marginalização das religiões de matriz africana e, consequentemente, a dificuldade de aceitação dos traços e da ancestralidade desta etnia. Ao término da 2ª Semana de Consciência e Cultura Negra emergiram muitas inquietações e reflexões. Apontamos aqui três questionamentos que nortearam nossas discussões. A partir dos trabalhos foi possível reconhecer um primeiro e relevante problema, a defasagem na formação de professores no tocante às relações étnico-raciais, mesmo após dez anos de promulgação da lei 10.639/03, demonstrando a necessidade premente de programas de formação continuada de professores com relação a esta temática. Em segundo lugar, foi possível perceber o distanciamento entre a legislação que traz a necessidade de trabalho com este conteúdo e a negativação da história da África e da população negra no currículo oficial, constatado por estudos já realizados em materiais didáticos. Um terceiro questionamento diz respeito ao quanto os trabalhos realizados pelos bolsistas e co-formadores do PIBID-Geografia, quer em Rio Claro, ou em outras cidades, têm subsidiado de maneira positiva a proposição de políticas educacionais e curriculares que promovam a reflexão e a desconstrução da realidade sociopolítica e cultural. Palavras Chave: História Africana, Currículo, Formação Docente, Políticas Educacionais.

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HISTÓRIA E CULTURA NEGRA NO CURRÍCULO PAULISTA:

REFLEXÕES A PARTIR DE UM PROJETO PIBID-GEOGRAFIA

Lisie Tatiane de Lima WENCESLAUMaria Bernadete Sarti da Silva CARVALHO

Departamento de Educação, Instituto de Biociências – UNESP Rio [email protected]

Eixo 2: Formação continuada e desenvolvimento profissional de professores daEducação Básica.

Resumo

Este trabalho resultou da realização da Semana de Consciência e Cultura Negrapromovida pelos bolsistas do Programa institucional de Bolsa de Iniciação à Docêncianuma escola pública da rede estadual de ensino situada em Rio Claro, município dointerior do estado de São Paulo. Em sua essência o evento se apresentou como umcaminho para a efetivação da lei 10.639/03 que prevê o ensino de História e CulturaAfro Brasileira. Antes de uma preocupação com o cumprimento da lei, as atividadespropostas para a Semana buscaram provocar nos educandos uma reflexão críticaacerca das questões e relações étnico-raciais presentes na sociedade brasileira e que,no âmbito escolar, têm sido pouco discutidas. Assim, o objetivo do trabalho foicontribuir para a formação da identidade do alunado afro descendente, engendrando avalorização do negro a partir do contexto escolar e do currículo da educação básica.O evento realizado na escola promoveu oficinas que tinham como intenção, além dotrabalho com temas centrais, a de espacializar e evidenciar a diversidade cultural docontinente africano, bem como confirmar o racismo muitas vezes velado e que temsido sustentado pelo discurso da democracia racial no Brasil. Tal preconceito sematerializa no território e nas relações de diversas maneiras, desde o genocídio dajuventude negra, à representação do negro nas produções midiáticas, até àmarginalização das religiões de matriz africana e, consequentemente, a dificuldade deaceitação dos traços e da ancestralidade desta etnia. Ao término da 2ª Semana deConsciência e Cultura Negra emergiram muitas inquietações e reflexões. Apontamosaqui três questionamentos que nortearam nossas discussões. A partir dos trabalhos foipossível reconhecer um primeiro e relevante problema, a defasagem na formação deprofessores no tocante às relações étnico-raciais, mesmo após dez anos depromulgação da lei 10.639/03, demonstrando a necessidade premente de programasde formação continuada de professores com relação a esta temática. Em segundolugar, foi possível perceber o distanciamento entre a legislação que traz a necessidadede trabalho com este conteúdo e a negativação da história da África e da populaçãonegra no currículo oficial, constatado por estudos já realizados em materiais didáticos.Um terceiro questionamento diz respeito ao quanto os trabalhos realizados pelosbolsistas e co-formadores do PIBID-Geografia, quer em Rio Claro, ou em outrascidades, têm subsidiado de maneira positiva a proposição de políticas educacionais ecurriculares que promovam a reflexão e a desconstrução da realidade sociopolítica ecultural.

Palavras Chave: História Africana, Currículo, Formação Docente, PolíticasEducacionais.

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Introdução

As reflexões apresentadas neste trabalho são fruto da realização da Semana

de Consciência e Cultura Negra em uma escola de Ensino Integral da rede estadual

paulista, situada no município de Rio Claro, interior do Estado de São Paulo.

O projeto da Semana de Consciência e Cultura Negra foi pensado com a

intenção de trazer à tona as questões étnico-raciais que têm sido pouco ou quase

nada discutidas no contexto escolar. Todo o processo de formulação e execução dos

trabalhos tornou evidente uma realidade conhecida pelos bolsistas, porém até então,

não vivenciada. Apresentaremos ao longo deste texto as reflexões suscitadas durante

a concretização do projeto. Teremos como norte da discussão três questões principais:

1) a formação de professores e a distância da efetivação da lei 10.639/03; 2) o

distanciamento entre a legislação que traz a necessidade de trabalho com este

conteúdo e a negativação da história da África e da população negra no currículo

oficial; e 3) o quanto os trabalhos realizados pelos bolsistas e co-formadores do PIBID-

Geografia, quer em Rio Claro, ou em outras cidades, têm contribuído de maneira

positiva com a proposição de políticas educacionais e curriculares que promovam a

reflexão e a desconstrução da realidade sociopolítica e cultural.

A temática racial ao longo da história se configurou e se configura uma

discussão cara tanto na sociedade de maneira geral quanto na escola. O discurso da

democracia racial torna o reconhecimento dessa realidade lento, ainda mais sob a

égide dessa teoria que afirma que a mistura de diferentes etnias criou no Brasil uma

nação unida e livre das mazelas do preconceito, Bernardino (2002).

A escola e a diversidade cultural que a compõe possuem grande potencial para

combater as mais variadas formas de preconceito que têm alicerçado a sociedade. No

entanto, o contexto de precarização do ensino, tem reproduzido o senso comum e

reafirmado de diversas formas essa estrutura. A escola é também um ambiente

essencialmente orgânico, conflitante em suas relações e que historicamente cumpre a

função de perpetuação dos conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo

dos séculos, a de socialização dos indivíduos e a de reprodutora da ideologia

dominante.

Partindo desse pressuposto concordamos com Althusser (1970) de que a

escola compõe o conjunto dos aparelhos ideológicos do Estado, sendo deste modo

compreensível que perpetue o autoritarismo, as discriminações e as demais opressões

que se materializam nas relações sociais e nos documentos que regem o ensino no

Brasil.

No tocante à questão negra, esse quadro permanece. Amparada pelo já

mencionado discurso da democracia racial e pela necessidade de escamotear o

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preconceito ainda vigente no Brasil, a instituição escola contribui de maneira

significativa para a constante cristalização do racismo. Isso, quando levamos em

consideração a marginalização das manifestações religiosas, a negação da negritude

e da ancestralidade africana manifestas na forma como a temática é tratada e na

maneira como a história africana e a trajetória desta população no Brasil é

mencionada no currículo da educação básica. É perceptível que há no pensamento

ideológico brasileiro uma desconstrução da identidade e negativação do ser negro, o

que tem como resultado, a criação de uma imagem pejorativa no consciente coletivo

(Biko,1990) resultando em não aceitação e na falta de identificação desta etnia,

principalmente entre os próprios negros e negras.

Apesar disso, o movimento negro no Brasil tem cumprido um papel de suma

importância, que é o de militar pela obtenção de seus direitos e pelas medidas de

compensação que em longo prazo garantirão que a população negra esteja em pé de

igualdade com os não negros. Uma dessas conquistas e a promulgação da lei

10.639/03.

É no tocante a esta lei que entendemos a necessidade de fazer emergir na

escola a temática da consciência negra. Entendemos por consciência negra,

concordando com Biko (1950), que o termo tem ligação com a conscientização do

próprio negro da sua condição de existência, uma vez que é duplamente oprimido. Por

um lado, pelos mecanismos institucionais externos a ele, como leis, condição de

trabalho, condições de vida, marginalização, condições de moradia e, por outro, pelos

mecanismos de ordem psíquica. O consciente coletivo desenvolve uma imagem

negativa de si mesmo e de sua cultura atrelando o que é bom e positivo à cultura não

negra.

Nesse contexto se justifica a realização de projetos com esse conteúdo. Além

do cumprimento da lei propriamente dita, temos a preocupação direta de contribuir

com a construção da identidade no alunado afro descendente como forma de

superação do preconceito racial praticado contra a população negra.

A trajetória do negro no Brasil e as bases da democracia racial.

A história do Brasil foi construída em grande parte sob as bases da escravidão.

Foram 358 anos de trabalho compulsório realizados por homens e mulheres

sequestrados de sua terra de nascimento, vindos de várias partes do continente

africano.

O ano de 1888 marca somente a decomposição do sistema escravista pela

necessidade de estruturação do nascente capitalismo brasileiro. A reestruturação do

modo de produção no Brasil, porém, não deu conta de inserir de maneira efetiva as

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mulheres e homens negros na vida da sociedade brasileira. Uma vez que não se

criaram mecanismos e políticas que integrassem esta população ao novo regime

trabalho e, de maneira abrupta, os negros e mestiços se viram donos de si, tendo que

responder pela sua própria assistência e a de sua família sem que houvesse

condições morais e materiais para isso (Fernandes,1964).

A lei áurea, conforme escreve Barbosa (1898), converte-se numa ironia atroz,

pois o que em tese seria a garantia de uma vida livre, resultou em condições ainda

mais perversas de existência. Não houve políticas de reparação, nem indenizações

que permitissem às negras e negros a inserção na nova forma de organização social e

do trabalho. Foram submetidos a uma competição injusta com os imigrantes europeus

sem que houvesse como competir e, dessa forma, foram duplamente espoliados

(Fernandes,1972). A afirmação de Florestan Fernandes se explica a partir do

pressuposto que a abolição foi uma revolução social realizada pelo branco e para os

brancos, sendo os negros e mestiços atingidos de maneira cruel.

A escravidão se torna possível em conjunto com o processo de desumanização

do negro, sendo então tratado como inferior e desprovido de capacidades cognitivas,

servindo apenas ao trabalho braçal. O fim do sistema escravista, no entanto, não

abala essa concepção. Surgem no mesmo período diversas teorias que sustentam

essa ideia.

Telles (2004) explica que para a compreensão das relações raciais presentes

no Brasil hoje, é necessária a compreensão dos processos culturais, políticos e das

teorias que sugiram nos séculos passados e que deram as bases para a sustentação

da ideologia racista.

Na obra “Race in Another America: The Significance of Skin Color in Brazil.

2004”, traduzido para o português como “O Significado de Raça na Sociedade

Brasileira”, Telles traça um panorama dessas teorias dividindo-as em três períodos: 1)

Século XIX – a crença que a miscigenação é uma degeneração que levaria o Brasil ao

atraso eterno; 2) Fim do século XIX início do XX – Crença de que o branqueamento

via miscigenação seria uma solução biológica a esse atraso e 3) Décadas 1930 a 1980

– miscigenação como um caráter positivo da população brasileira e prova contundente

da democracia racial.

Até o ano de 1850 quando o tráfico de negros africanos é suspenso no Brasil,

um contingente de mais de 3,6 milhões de homens e mulheres africanos já tinham sido

trazidos para o Brasil. Primeiro para o trabalho nas lavouras canavieiras, em seguida

para o trabalho nas minas de metais preciosos e na pecuária e, por fim, no século XIX

nas lavouras de café. Em 1888 o Brasil era um dos últimos países da América do Sul a

abolir a escravidão.

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O grande número de negros e seus descendentes no território tornou-se

motivo de grande preocupação para as elites brasileiras. A grande população de

mestiços deveu-se aos estupros praticados pelos senhores de terras e que favoreceu

a mistura de raças. Assim a descendência mestiça com o passar dos anos teve

significativo crescimento no período colonial.

Dada a hierarquia racial imposta pela economia escravocrata,as relações entre os colonizadores brancos e as mulheresbrasileiras não-brancas eram extremamente desiguais.Frequentemente, os homens brancos estupravam eabusavam das mulheres africanas, indígenas e mestiças. Defato, os brasileiros mestiços foram em grande parte geradosatravés da violência sexual durante o período da escravatura,apesar de não serem incomuns a coabitação e o matrimônioentre brancos e não-brancas. (Telles, 2002 p. 21)

No decorrer do século XIX as escolas eugenistas vêm com a intenção de

trazer as bases científicas para a dominação das raças. Essa escola defendia a tese

de que negros eram inferiores e mestiços degenerados além de acreditarem que os

climas tropicais como é predominante no Brasil agiria de modo a comprometer a

integridade biológica dos indivíduos. Um forte representante dessa tese era o francês

Arthur de Gobineau (1856). “Ele deplorou que no Brasil a miscigenação tivesse

afetado todos os brasileiros (exceto o imperador, de quem se tornara amigo), em todas

as classes e até mesmo nas ‘melhores famílias’, tornando-os feios, preguiçosos e

inférteis” (Telles, 2002 p. 21).

Raimundo Nina Rodrigues (1880) foi outro representante dessa linha de

pensamento, aproximando-se da formulação de uma teoria racista que tivesse amparo

legal como nos casos de Jim Crow e o Apartheid, nos Estados Unidos da América e na

África do Sul, respectivamente.

As teorias de embranquecimento sustentaram os anseios da elite brasileira

que investiram e incentivaram a imigração europeia. O embranquecimento prescrito

pelos eugenistas se tornava então pilar da imigração para o Brasil.

Apesar de influentes essas teorias não tiveram longa vida e, na década de 30,

marca a publicação de uma obra que será fundamental para a concretização do

discurso da democracia racial. A obra “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre

torna a miscigenação o grande fator de indenidade nacional no Brasil.

Apesar de não ter criado o termo e de os elementos do conceito jáhaverem sido promovidos bem antes, Freyre expressou, popularizoue desenvolveu por completo a ideia da democracia racial quedominou o pensamento sobre raça dos anos 1930 até o começo dosanos 1990. Argumentava que o Brasil era único dentre as sociedadesocidentais por sua fusão serena dos povos e culturas europeias,indígenas e africanas. (Telles, 2002 pg. 27).

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O discurso da democracia racial é, em certa medida, presente até os dias

atuais, e ainda sustenta que o fator racial não é um fator limitante de ascensão social e

de relações sociais. Bernardino (2002, p. 249) diz que os defensores dessa teoria

acreditam que:

Em nosso país as ascensões sociais do negro e do mulatonunca estiveram bloqueadas por princípios legais tais comoos conhecidos Jim Crow e o Apartheid na África do Sulprincipalmente. Para os que imaginam e advogam asingularidade paradisíaca brasileira, isto significa dizer que ocritério racial jamais foi relevante para definir as chances dequalquer pessoa no Brasil. Em outras palavras, ainda éfortemente difundida no Brasil a crença de que a culturabrasileira antecipa a possibilidade de um mundo sem raças.

Os estudos realizados pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA) publicados na

revista “Retrato das Desigualdades”, além dos estudos realizados pela Secreataria de

Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR) demonstram, entretanto, que a

democracia racial tem escamoteado a realidade ainda vivenciada pela população

negra mesmo após 127 anos de abolição da escravatura. Em outras palavras significa

dizer que a maior parcela da população negra ainda possui condições desumanas de

habitação, de saúde, de educação e de trabalho. Nas periferias brasileiras o

percentual de jovens negros mortos é superior ao de jovens não negros. Em 2012,

uma parceria entre Centro de Estudos Latino-Americanos (CEBELA), SEPPIR e o

Governo Federal, resultou na publicação da revista “Mapa da Violência: A cor dos

Homicídios no Brasil” na qual se confirma a queda do número absoluto de homicídios

na população branca e de aumento nos números da população negra.

Tabela 2.1 Evolução do número de homicídios, da participação e da vitimização

por raça/cor das vítimas na população total. Brasil, 2002/2010.

Fonte: SIM/SVS/MS* soma das categorias preta e parda

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Tabela 2.2. Evolução do número de homicídios, da participação e da

vitimização por raça/cor das vítimas na população jovem. Brasil, 2002/2010

Fonte: SIM/SVS/MS * soma das categorias preta e parda

Até aqui discutimos a trajetória do negro no Brasil e a forma como essa

população tem acesso às condições de vida, apresentação necessária para a

compreensão do tema central desse trabalho, ou seja, as relações étnicas raciais no

currículo do Estado de São Paulo.

O Ensino de História e Cultura Negra: um exame do currículo da Educação

Básica das disciplinas de História e Geografia.

Colocada a importância da escola para a superação dos preconceitos e para

a construção positiva da identidade negra, faz-se necessário um exame dos

documentos oficiais que regem a educação básica no estado de São Paulo, tanto no

que diz respeito ao currículo quanto aos materiais didáticos utilizados nas salas de

aula, com a preocupação de verificar em que medida estes elementos didáticos

contribuem para que se perpetue a construção negativa da identidade da população

negra.

Examinamos as propostas curriculares da disciplina de Geografia e História

do estado de São Paulo para o Ensino fundamental e Médio. A temática da África e a

trajetória do Negro no Brasil existem, porém de maneira reduzida e fazendo menção,

na maioria das vezes, à África primitiva. A seguir apresentamos os conteúdos tal como

aparecem nas propostas

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História para o Ensino Fundamental II – Seriação/ conteúdo por bimestre

5ª/6º ano 6ª/7º 7ª/8º 8ª/9º2º bimestre Vida na China e na África antiga

3º bimestre As sociedades africanas do século XV

4º bimestre – Escravidão e abolicionismo; formasde resistência (os Quilombos), o fim do tráfico e da escravidão.

3º bimestreOs nacionalismos na África e na Ásia, as lutas pela independência.

________________4º bimestreTráfico negreiro e escravismo africano no Brasil

________________ ______________

História para o Ensino Médio – Seriação/ conteúdo por bimestre

1º ano 3º ano4º bimestre Sociedades africanas da região sbsaariana até o século XV;O encontro dos europeus com as diferentes ciilizações da Ásia, África e América

4º bimestre A emergência dos movimentos de defesa dosdireitos civis no Brasil contemporâneo diferentes contribuições gênero, etnia e religiões.

Na Geografia o tema não aparece diretamente em todos os casos, porém os

tópicos de estudo são passíveis de conexões pelo professor.

Geografia Fundamental II – Seriação/ conteúdo por Bimestre

5ª/6º ano 6ª/7º 7ª/8º 8ª/9º2º bimestreUm pouco da história da Cartografia

________________ 1º bimestre A Geografia dos descobrimentos

1º bimestre Os blocos econômicos supranacionais

________________ ________________3º bimestreA apropriação desigual dos recursosnaturais

2º bimestreA organização das Nações Unidas

________________ ________________4º bimestreBrasil e Argentina as correntes de povoamento

_________________

Geografia - Ensino Médio - Seriação/ conteúdo por Bimestre

1º ano 2º ano 3º ano1º bimestre A nova desordem Mundial

3º bimestreMatrizes Culturais no Brasil

1º bimestre As regiões da ONU

3º bimestreRiscos em um mundo desigual (sub- tópico de natureza e riscos ambientais)

_____________________2º bimestre A geografia das Religiões;A questão Étnico-Cultural

____________________ _____________________3º bimestreA África do Norte e Subsaariana.África e AméricaÁfrica e Europa

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O exame da proposta curricular de História nos permitiu concluir que há

predominância do ensino de história europeia nas séries finais do Ensino Fundamental

e no Ensino Médio. No caso da Geografia as séries iniciais estão centradas na

compreensão de conceitos, na área ambiental, na dinâmica interna da Terra e

descrição do relevo. Como propusemos anteriormente, para que seja possível a

associação dos conteúdos em alguns tópicos, é necessário que o professor tenha

conhecimento suficiente sobre os temas para que possa estabelecer as correlações

entre os mesmos.

As propostas curriculares acima mencionadas confirmam o que diz Correia

(2011), de que há um processo de não existência do negro na formação do território

nacional, e corroboram nossa tese da presença pouco significativa de história africana

nas grades curriculares das licenciaturas, inclusive da Geografia, e dos escassos

programas de formação continuada de professores oferecidos que ficam aquém da

necessidade, constituindo-se em fatores limitantes para o trabalho em salas de aula.

Uma análise preliminar dos programas oferecidos pela Secretaria Estadual de

Educação de São Paulo, via Escola de Formação de Professores, confirmam também

essa afirmativa, sendo que o último curso oferecido com essa temática foi no ano de

2014 Não foram encontrados nesta mesma pesquisa, informações sobre o

oferecimento de cursos anteriores e tampouco menção a próximos.

Concordamos com Santos (2007, p. 27) que a Geografia escolar é

fundamental para que o sujeito se posicione no mundo. O termo por ele utilizado

conota dois sentidos: o de se posicionar geograficamente no espaço e também o de

posicionar-se politicamente no mundo. As narrativas e discursos presentes nos livros

didáticos estão carregados de um sentido simbólico que é responsável pela criação no

imaginário coletivo da negativação e não aceitação da ancestralidade africana. A

história da África e do negro do Brasil é lembrada e contada com tom de

subserviência, evidenciando-se mais a dominação do que as lutas pela libertação.

Quando pensamos na África apresentada nos livros didáticos, o europeu ganha

caráter de libertador e não de opressor. Assim, o ensino de Geografia deve contribuir

para a “construção da representação e das visões sobre o mundo; (ii) a localização do

sujeito neste mundo, composto de símbolos territoriais e sociais; (iii) a maneira com

que esse sujeito vai reagir após se localizar. ” (Santos, apud Correia, 2011, p.2).

A promulgação da lei 10.639/03 e alterada pela lei 11.645/08, mesmo após 12

e 7 anos respectivamente de suas publicações, ainda são extremamente distantes da

realidade escolar, isso no que diz respeito aos currículos e à formação de professores.

Neste sentido, entendemos que a exequibilidade das mesmas é dificultada tendo em

vista as propostas curriculares que privilegiam a história europeia e a quase ausência

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dos programas de formação continuada para os professores já efetivos na rede

estadual, que contemplem essa temática.

Esse quadro é responsável segundo Oliveira (2004, p. 104) pelas negações

por parte dos docentes dos conflitos étnico raciais presentes na escola. Além disso,

segundo ela “A lógica uniformizadora e homogeneizante da escola, e da sociedade por

meio do discurso da igualdade pode cooperar para que um aluno/a ou professor/a

negro/a se assuma enquanto tal dentro do coletivo da escola”.

O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID e a

proposição de políticas públicas.

O PIBID, como o próprio nome sugere, tem se constituído um importante elo

entre universidade e escola. É um espaço que tem permitido aos professores em

formação inicial vivenciar o contexto escolar desde o início de sua formação. Esse

processo permite aos futuros docentes criarem a cultura da investigação, já que estar

no espaço escolar e dele participar, faz emergir questões que demandam cuidados e

rigor em suas análises e reflexões, sendo este um processo de suma importância na

formação de professores.

Muitos trabalhos produzidos por bolsistas e co-formadores do programa tem

demostrado o potencial dos mesmos para a formação inicial quanto para a proposição

de políticas educacionais já que os trabalhos produzidos, em tese, são resultados

diretos das experiências vividas na escola e suas consequentes reflexões. Um

exemplo desses trabalhos é o artigo de Brito e Silva (2010) apresentado no encontro

de Ensino de Geografia ENSIGEO /Encontro de PIBID na Unesp de Ourinhos em

2013. No texto as autoras propõem um currículo que contribua para com a superação

da desvalorização do negro.

A terceira e última inquietação proposta nesse trabalho é a de pensar no

quanto os trabalhos realizados pelos bolsistas do PIBID-Geografia, quer em Rio Claro,

ou em outras cidades, têm contribuído de maneira positiva e inspirado a proposição de

políticas educacionais e curriculares, ajudando nos processos de desconstrução e de

transformação da realidade sociopolítica e cultural.

No texto de apresentação do projeto PIBID pela CAPES, aqui transcrito,

ressalta-se que a intenção do projeto “é antecipar o vínculo entre os futuros mestres e

as salas de aula da rede pública. Com essa iniciativa, o Pibid faz uma articulação entre

a educação superior (por meio das licenciaturas), a escola e os sistemas estaduais e

municipais [...] A intenção do programa é unir as secretarias estaduais e municipais de

educação e as universidades públicas, a favor da melhoria do ensino nas escolas

públicas em que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) esteja

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abaixo da média nacional, de 4,4. Entre as propostas do Pibid está o incentivo à

carreira do magistério nas áreas da educação básica com maior carência de

professores com formação específica”.

No presente texto não temos a intenção de colocar um programa de formação

para a docência como base para a adoção de políticas públicas. No entanto, o que

estamos defendendo aqui é que os resultados dos inúmeros projetos já desenvolvidos

e relatados podem contribuir para tanto. As políticas educacionais historicamente se

fazem sem levar em consideração, na maioria das vezes, a realidade das escolas

públicas brasileiras, o que pode resultar em graves problemas, principalmente no

âmbito local. Por essa razão defendemos a importância das pesquisas realizadas

pelos bolsistas, pois os mesmos têm a escola como objeto de estudos e de

problematização, de estudos tanto teóricos como práticos, podendo prover os órgãos

decisórios com informações e discussões que subsidiem a formulação das políticas

educacionais.

Considerações Finais

Apesar dos muitos avanços conseguidos pela luta de homens e mulheres negras no

Brasil e do movimento negro propriamente dito, como por exemplo, a lei 10.639/03, há

inúmeras evidências e dados que a sociedade brasileira ainda resguarda, no plano

ideológico, o preconceito racial. De maneira muito velada, a isto se associa o mito da

democracia racial, que contribui para que não reconheçamos esta triste realidade.

Como colocado desde o início deste trabalho, a escola cumpre um papel fundamental

na superação do racismo, mas, todavia, muitos impasses e desafios se colocam para

que isto se cumpra. Percebemos durante a realização do trabalho a grande distância

entre legislação - formação de professores - currículo, sendo que esses elementos se

constituem centrais para o avanço das discussões. Em outras palavras a efetivação da

lei 10.639/03 virá quando acompanhada da reformulação dos elementos supracitados.

Projetos como os que foram desenvolvidos pelos bolsistas PIBID – Geografia são

passos importantes e necessários, mas pequenos diante da magnitude do problema,

que requer mudanças mais concretas rumo à extinção dos preconceitos raciais e,

sobretudo, para a construção de uma escola livre de opressões e que forme, antes de

trabalhadores, seres humanos livres e plenos de seus direitos.

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