História e Ciências Sociais: notas sobre uso da lógica, teorização e crítica
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HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
notas sobre uso da lógica, teorização e crítica∗
Bruno P. W. ReisUFMG, Departamento de Ciência Política
25. Moral privada e moral mundial. – Após o fim da crença de que um deus dirigeos destinos do mundo e, não obstante as aparentes sinuosidades no caminho dahumanidade, a conduz magnificamente à sua meta, os próprios homens devemestabelecer para si objetivos ecumênicos, que abranjam a Terra inteira. A antigamoral, notadamente a de Kant, exige do indivíduo ações que se deseja serem detodos os homens: o que é algo belo e ingênuo; como se cada qual soubesse, semdificuldades, que procedimento beneficiaria toda a humanidade, e portanto que
ações seriam desejáveis; é uma teoria como a do livre-comércio, pressupondoque a harmonia universal tem que produzir-se por si mesma, conforme leisinatas de aperfeiçoamento. Talvez uma futura visão geral das necessidades dahumanidade mostre que não é absolutamente desejável que todos os homensajam do mesmo modo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumênicos,deveriam ser propostas, para segmentos inteiros da humanidade, tarefasespeciais e talvez más, ocasionalmente. – Em todo caso, para que a humanidadenão se destrua com um tal governo global consciente, deve-se antes obter, comocritério científico para objetivos ecumênicos, um conhecimento das condiçõesda cultura que até agora não foi atingido. Esta é a imensa tarefa dos grandesespíritos do próximo século.
F. W. Nietzsche
Humano, Demasiado Humano (1878)
I. À guisa de introdução: D. H. Fischer e a lógica na história
Em 1970, David Hackett Fischer publicou um livro notável, chamado Falácias
de Historiadores. Embora escrito por um historiador, e para historiadores, o conteúdo
do livro é quase inteiramente aplicável a qualquer um de nós, genericamente
designáveis como “cientistas sociais”. Num breve prefácio ao volume, Fischer dá a pista
do veio que pretende perseguir, ao investir contra certa disseminação de uma atitude
ingenuamente empiricista entre estudiosos de assuntos históricos, revelada na rejeição
explícita da “lógica” em favor da atenção escrupulosa aos “fatos”.1 Naturalmente,
Trabalho preparado para mesa redonda sobre “Metodologia e Filosofia das Ciências Sociais”,coordenada por Renan Springer de Freitas no XI Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado emCampinas, entre os dias 1.º e 5 de setembro de 2003. Trata-se de uma versão revista de trabalho com omesmo título, apresentado em encontro do grupo de trabalho sobre “História Quantitativa e Serial” da
Associação Nacional de História (ANPUH), realizado em Ouro Preto, em dezembro de 2000. Agradeço
ao Prof. Adriano Sérgio Lopes da Gama Cerqueira, então coordenador do GT da ANPUH, pelo convitepara escrever o artigo em 2000, e ao Renan, pela oportunidade de voltar a refletir sobre ele.1 Fischer, Historians’ Fallacies, pp. ix-xii.
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Fischer procurará sublinhar ao longo do livro o “fato” mais elementar de que qualquer
compreensão do mais banal dos eventos deverá ser, ela mesma, lógica, se pretende ser
inteligível e/ou comunicável. Para ilustrar o seu ponto, Fischer oferece ao leitor uma
profusa descrição – alimentada com exemplos extraídos das obras de vários eminentes
historiadores – de erros lógicos dos mais variados tipos, abundantemente presentes na
historiografia sobre qualquer tema, e certamente presentes também naquilo que fazem
os demais cientistas sociais, ao lidarem com um objeto de natureza histórica. Assim, ele
divide seu livro em onze capítulos nos quais procura reunir as falácias que consegue
identificar sob onze grandes grupos, a saber: falácias de elaboração do problema, de
verificação factual, de significação factual, de generalização, de narração, de causação,
de motivação, de composição, de falsa analogia, de distorção semântica, e de distração
substantiva. Claro, não cabe aqui descer a detalhes dos numerosos tipos de falácias que
Fischer reúne em cada um desses grupos. Fica apenas a minha enfática recomendaçãopara que todos procurem explorar o livro por conta própria (além de instrutivo, ele é
bastante divertido), e mantê-lo sempre à mão para eventuais consultas.
Trago aqui a menção a esse livro porque entendo que ele lida de maneira
particularmente explícita com um aspecto fundamental de todo esforço de
compreensão de qualquer objeto de natureza empírica: o problema da imputação, a um
fluxo em princípio caótico de eventos que têm lugar no mundo sensível, de um
ordenamento de natureza lógica, implicativa, que lhe é atribuído, conscientemente ou
não, pelo nosso simples esforço de compreender o que se passa. Naturalmente, à
medida que nos referimos a um esforço “profissional” de compreensão do mundo (é o
que fazemos, não?), espera-se que essa imputação seja feita de maneira tão consciente
quanto possível acerca dos aspectos lógico-analíticos envolvidos. E aí entram trabalhos
como o de Fischer, a nos mostrar o quanto estamos aquém do desejável nesta matéria.
De fato, costumo usar o livro de Fischer nos meus cursos de metodologia, logo
após passar algumas aulas naquela que é, talvez, a parte mais “técnica” da disciplina,
numa extensa discussão sobre técnicas de survey e sua importância na explicitação dos vínculos entre teorização e evidência empírica. A ênfase na técnica de survey é bastante
adequada para explicitar de maneira intuitivamente evidente as maneiras como se pode
submeter uma hipótese a teste empírico rigoroso, sob precisos parâmetros estatísticos
de validade, e, reciprocamente, oferecer pistas minimamente precisas sobre o trabalho
de inferência indutiva de “leis gerais” a partir da evidência empírica de natureza
estatística eventualmente disponível. Mas o risco disso tudo é caracterizar de maneira
excessivamente restrita o âmbito de validade dessas operações lógicas: os alunos
podem tender a acreditar que tudo isso se aplica apenas àqueles problemas dos quaisnos podemos aproximar munidos de questionários, amostras, variáveis codificadas etc.
2
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E imagino perfeitamente um estudante de história (mas não apenas de história) a
perguntar-se: “Qual a utilidade dessa parafernália analítica para mim, se eu vou estudar
um evento que se deu uma única vez [um “evento único”...], e eventualmente há cem,
ou quinhentos, ou há dois mil anos atrás?” Um livro como o de Fischer nos presta nesse
momento o inestimável serviço de mostrar claramente – para o estudante menos
inclinado ao emprego de laboriosas técnicas quantitativas de pesquisa – a perfeita
analogia operacional entre o que se passa, por exemplo, numa pesquisa de survey e o
que se encontra envolvido na validação de uma interpretação ou explicação de qualquer
fenômeno histórico. Em qualquer dos casos, trata-se de imputar a eventos certa
estrutura lógica de natureza causal/implicativa cuja validez é independente dos eventos
em si (ainda que sua pertinência não o seja). Pois qualquer explicação ou compreensão
de fenômenos de natureza empírica requererá validação em dois planos: um primeiro, o
da pura correção lógica, formal, do argumento em pauta; e um segundo, o daadequação da imputação daquele teorema abstrato de natureza eminentemente formal
ao conjunto específico de eventos que se quer compreender (é quase desnecessário
acrescentar que este último plano estará necessariamente comprometido se o nosso
esforço naufragar no plano lógico). Apenas para nos permitir uma exemplificação dos
paralelismos relevantes aqui, o capítulo IV de Fischer, sobre “falácias de generalização”,
nos mostra como toda generalização, do ponto de vista lógico, se refere inevitavelmente
a regularidades estatísticas, explícitas ou não – e que seria absolutamente vão, por
absurdo, qualquer esforço de “não generalizar”: entre outras razões, isto equivaleria aalgo como, por exemplo, “não usar palavras”...
II. Weber segundo Schluchter, e a história na teoria
Se pesa sobre o ofício do historiador o compromisso bastante óbvio com os
rigores da lógica mesmo quando ele tenta “não teorizar” (como se isso fosse possível),
do outro lado a recíproca é verdadeira, e – exceto por alguns modelos estáticos de
alcance bastante tópico – pesará sobre qualquer teoria social a necessidade de levar
devidamente a sério a dimensão diacrônica (e portanto histórica, no caso) inerente à
postulação de qualquer nexo causal .2
Wolfgang Schluchter, em sua reconstrução da concepção weberiana da história,
provê uma adequada ilustração deste ponto. Buscando qualificar a interpretação que vê
em Weber sobretudo o fundador de uma sociologia que rejeita o evolucionismo e a
filosofia da história (numa polêmica implícita com Marx),3 Schluchter elabora as
2
Esta seção apóia-se largamente em argumentação mais extensamente desenvolvida em minha tese dedoutorado, “Modernização, Mercado e Democracia”, esp. cap. 1, pp. 12-6.
3 Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 4, atribui esta leitura de Weber a intérpretes comoReinhard Bendix, Guenther Roth e Johannes Winckelmann, entre outros. A posição contrária – que
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relações e a interdependência recíproca entre os planos configuracional (estrutural,
“macro”), situacional (individual, “micro”) e histórico de análise, buscando sempre
sublinhar a permanência da relevância da dimensão histórica de análise –
eventualmente depreciada pelos herdeiros de Weber, ciosos de demarcar suas
diferenças com os marxistas. De outra maneira, prosseguirá Schluchter, não há como
dar sentido a uma série de temas weberianos cruciais, e que estruturam mesmo sua
sociologia, como a descrição da história do Ocidente por alusão à tese da
racionalização das relações sociais que teria lugar ao longo do processo, apoiada em
minuciosa análise sobre as diversas “orientações estruturalmente possíveis” da ação,
todas sujeitas a desenvolvimento, empiricamente perscrutável ao longo da história.4
Autor de interpretação distinta da de Schluchter, Reinhard Bendix talvez tenha
sido o mais influente dos intérpretes não “desenvolvimentalistas”5 de Weber, além de
ter contribuído substantivamente para uma reavaliação mais comedida do alcance dosconceitos de tradição e modernidade a partir do final dos anos 60, mediante uma
alentada crítica de certos abusos e distorções do recurso à “modernização” que
certamente terá contribuído de maneira importante – ainda que não intencionalmente
– para o progressivo abandono da referência ao conceito nos anos que se seguiram ao
seu ataque, publicado pela primeira vez em 1967.6 Está acima de discussão aqui a
pertinência do ataque de Bendix (qualquer reconstrução de um enfoque
desenvolvimental tem de tomar a sério a sua crítica), mas é necessário cautela aqui.
Preliminarmente, apesar do espírito não-desenvolvimentalista de sua interpretação de
Weber, seria impróprio atribuir, por isso, à obra (inequivocamente fecunda) do próprio
Bendix um caráter conseqüentemente anti-desenvolvimentalista. Pois Bendix
invariavelmente confere à história (e à história estruturada em processos de
desenvolvimento) lugar inequivocamente proeminente, patentemente identificável
naquele que é talvez seu principal trabalho – Construção Nacional e Cidadania. Ilustra
este ponto o fato de que seu ataque aos conceitos de tradição e modernidade jamais
visou ao seu abandono, mas apenas à sua reavaliação. Contra certa trivialização
reificada dos conceitos, pode-se dizer que Bendix contrapôs – com elevada
sensibilidade metodológica – a necessidade de lhes recuperar a densidade histórica.
identifica em Weber um autor fundamentalmente evolucionário – Schluchter atribui a FriedrichTenbruck. Em seu livro, Schluchter procura adotar uma posição intermediária, mas claramente se inclinapor sublinhar o que há de “desenvolvimental” no argumento weberiano.
4 Conforme a reconstrução feita por Schluchter, The Rise of Western Rationalism, pp. 129-30, asorientações estruturalmente possíveis da ação são três (“afetiva”, “para valores” ou “para o sucesso”),todas elas (com a exceção parcial da ação afetiva) sujeitas a desenvolvimento, “which leads to a generalrationalization of action”.
5 Tenho me habituado a recorrer ao barbarismo “desenvolvimental” para traduzir a palavra inglesa
“developmental” , tendo em vista a contaminação do adjetivo “desenvolvimentista”, no Brasil, por certaorientação doutrinária que diz respeito sobretudo à política econômica, portadora de conotaçõestotalmente alheias à questão de natureza metodológica relevante aqui.
6 Bendix, “Tradition and Modernity Reconsidered”, esp. pp. 274-314.
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Pois, se por um lado é sempre real o perigo – contra o qual nos alertava Weber – de se
confundirem com a realidade os tipos ideais a que recorremos profissionalmente, por
outro lado Bendix não deixará de reiterar o grande valor heurístico da construção de
seqüências de desenvolvimento.7 O tom de Bendix é sobretudo de cautela metodológica,
mais que de rejeição frontal do recurso à modernização para a reflexão sobre a
sociedade e a política. Assim, ele nos adverte que a tradição e a modernidade não são
mutuamente excludentes, e persistem invariavelmente elementos “tradicionais” em
sociedades “modernas”, assim como elementos modernos são identificáveis muito
antes da era “moderna”; que em quase todos os casos a modernização mistura fatores
endógenos e exógenos, com forte ação governamental – o que denota um processo não
tão “espontâneo” quanto eventualmente somos levados a acreditar; e, finalmente, que a
industrialização não parece ter efeitos internacionalmente tão uniformes quanto
desejariam os modernizadores mais otimistas.
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Em outras palavras, ele nos alerta paraa possibilidade de que a “modernização” – apesar de ser quase universalmente
observável – jamais venha a alcançar uma “modernidade” a priori definida, mas ao
mesmo tempo insiste em que não é possível refletir sobre a mudança social sem
remissão a estruturas de compreensão apoiadas em mecanismos do tipo “antes-e-
depois” – e, tomados todos os cuidados, ele reafirma explicitamente o contraste entre
tradição e modernidade, apoiado em traços “canônicos”, como o processo de
progressiva “diferenciação estrutural” identificado por Neil Smelser na crescente
divisão do trabalho e na emergência de estruturas sociais sempre mais especializadasfuncionalmente, bem como a interação complexa entre essa diferenciação
(potencialmente desintegradora) e a emergência de novas formas de integração. Bendix
observa, por exemplo, que na economia tradicional há elevada integração dentro das
unidades domésticas e das comunidades, e baixa integração entre elas – e durante a
modernização observa-se uma tendência à inversão desse padrão, com crescente
interdependência entre unidades produtivas diversas, entre a família e o mercado etc.9
Voltando a Schluchter, ao afirmar que Weber produziu uma abordagem
desenvolvimental da história, ele naturalmente não pretende reduzir a visão weberiana
à postulação de uma série linear de estádios históricos sucessivos e inevitáveis. Embora
alguma tipificação de estádios seja inevitável para a descrição de processos de natureza
histórica (e Weber não se tenha furtado a isso), sua “história desenvolvimental”
consiste antes num minuciosíssimo esforço de contrastar uma tradição cultural
7 Bendix, “Tradition and Modernity Reconsidered”, pp. 275-6.8 Bendix, “Tradition and Modernity Reconsidered”, pp. 290-3.
9 Sou grato a Renan Springer de Freitas por me fazer ver a necessidade de lidar com o caso de Bendix.
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específica (a ocidental) com outras, com o permanente propósito de identificar, pela
comparação, seus atributos distintivos e seu curso histórico específico.10
E talvez resida aí a tese fundamental de Schluchter, que procuro mobilizar aqui:
a de que estas duas tarefas são inseparáveis. Nenhuma narrativa da história de uma
sociedade ou civilização sequer fará sentido se desprovida de um diagnóstico específico(explícito ou não) sobre os atributos configuracionais e situacionais do caso estudado;
e, reciprocamente, a identificação dos atributos configuracionais ou situacionais de um
dado sistema social não poderá prescindir da referência a seu curso histórico – e, mais
precisamente, da imputação de uma direção específica provável a esse curso de
acontecimentos – sem esterilizar-se completamente como ferramenta analítica. O
próprio Schluchter conclui, em termos bastante claros:
“Therefore, we can argue that sociology must be historically oriented and history
sociologically, but we cannot assert a hierarchy between the two or advocate areduction of one to the other. Both are necessary perspectives, for they are tied to thenature of historical subject matter. However, it is also in the nature of historical subjectmatter that it demands not only configurational and situational analysis but ultimately a directional analysis. Only from a developmental perspective can we establish whichindividual actions have fateful consequences for basic social configurations. Only inthis manner can we separate events that transcend a given structure from those that preserve it, events that lead to a transformation from those that remain within therange of a given structure.”11
Portanto, contrariamente à moda corrente nas últimas décadas, a posição de
Schluchter resulta em que nada há de obviamente recomendável no esforço de se despir
a análise sociológica da imputação de uma “direção” aos eventos históricos – antes pelo
contrário. A reflexão sociológica se apóia necessariamente na atribuição de
determinado curso aos eventos na história, ao longo do qual se define uma linha de
desenvolvimento teoricamente compreensível e empiricamente esperável – ainda que
estritamente conjectural e condicional (como exigiria Popper).12 Numa palavra, a teoria
social, adequadamente formulada, é necessariamente “desenvolvimental”. Esta
afirmação Schluchter a faz no contexto de um esforço de reconstrução da teoria da
história de Max Weber, mas entendo que ela se aplica genericamente a qualquer
esforço de reflexão de natureza sociológica (incluindo sob esta rubrica as ciências
sociais num sentido amplo, que incluiria não apenas a ciência política e a antropologia,
10 Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 175. Naturalmente, a identificação de atributosdistintivos num objeto qualquer não exclui – antes requer – que a comparação com outros objetos se façaapoiada em analogias referidas a um aparato analítico que se pretende universalmente aplicável. Paul
Veyne, O Inventário das Diferenças, p. 30, exemplificou o ponto:“Um físico explica e individualiza ao mesmo tempo um fenômeno concreto, aplicando-lhe afórmula certa, substituindo as letras da álgebra pelas cifras, que são circunstanciais; da mesmaforma, a explicação histórica e sociológica (trata-se da mesma) consiste em relacionar umacontecimento a um modelo trans-histórico, que se individualiza jogando-se com as variáveis.”
(Devo a Antonio Mitre a indicação da analogia entre alguns argumentos de Paul Veyne e o ponto de vistadefendido aqui.)
11 Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 176 (grifos meus).
12 Cf. Karl Popper, “Previsão e Profecia nas Ciências Sociais”, pp. 338-9.
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mas mesmo a economia) – até porque Weber é um autor comumente desvinculado de
qualquer suspeita de adesão a “determinismos” lineares ingênuos. Assim, apesar da
evidente impropriedade da imputação apriorística à história de qualquer direção que se
pretenda imanente ao próprio devir histórico e portanto incondicional, insuscetível a
mudanças (alvo da crítica de Popper ao historicismo),13 entendo que é impossível abrir
mão completamente de uma análise “direcional” da história sem que percamos junto –
conforme aponta Schluchter na passagem citada acima – a capacidade de avaliar
criticamente nosso contexto e nossos objetivos. E é importante observar que a obra do
próprio Popper constitui ilustração bastante oportuna deste ponto: a despeito de sua
enfática rejeição do historicismo e do que ele chamou de “profecias” históricas de longo
alcance, ele jamais se livrou da proposição do advento da sociedade aberta como o
macroprocesso que conforma a base de sua interpretação da história da humanidade –
e sobre a qual se apóia sua avaliação crítica de tudo o mais.
14
III. Desenvolvimento e crítica
De fato, ao buscar analisar comparativamente diferentes contextos
teoricamente concebíveis, ou empiricamente identificáveis, não temos como escapar à
imputação de uma direção aos acontecimentos sem nos expormos a esterilizar
completamente a comparação. Esclareça-se mais uma vez que a busca desta direção
não guarda qualquer relação necessária com a adoção de uma orientaçãoambiciosamente historicista, profeticamente orientada para a imputação de caminhos
inapeláveis à história – pois, para além do canônico ataque de Popper, não seria difícil
identificar no próprio livro de Fischer mencionado acima um bom número de falácias a
que semelhante orientação se exporia fatalmente.
Antes, penso sobretudo na busca de um critério valorativo que possa servir de
instrumento de avaliação comparativa das diversas experiências históricas tomadas
isoladamente, sem o qual a comparação se reduzirá fatalmente a um exercício estéril de
cotejo de números, em que as eventuais diferenças observadas nada poderão significar
senão a expressão de aleatórias “peculiaridades locais”, eventualmente ditas “culturais”,
condenando-nos a um niilismo relativista incapaz de reflexão crítica. Mas é importante
observar que este critério valorativo, para ser fecundo, deverá dispor da necessária dose
de plausibilidade empírica, que terá de se desdobrar, sim, na elaboração de linhas de
13 Cf. Karl Popper, A Miséria do Historicismo.
14 Para uma análise crítica mais detida sobre a ambigüidade de Popper neste ponto, ver Fábio W. Reis,“Mudança, Racionalidade e Política”, esp. pp. 24-7 (texto relevante para diversos desdobramentos dopresente argumento, sobretudo para a questão da atribuição de sentido à história, ainda que com ênfasese objetivos distintos).
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desenvolvimento teoricamente consistentes, que inevitavelmente se desdobram na
constituição de cenários futuros plausíveis, ainda que não inexoráveis.
Tendo isso em mente, não se pode senão lamentar o furor “antideterminista”
que tem assolado as ciências sociais mundo afora nas últimas décadas. Apoiados alguns
na rejeição de Popper ao historicismo (que aparentemente nem ele mesmo conseguelevar a cabo em todas as suas implicações), outros em certa desilusão já de algumas
décadas com algumas predições cruciais do marxismo, e a maioria em vago “caldo de
cultura” formado por ambas as coisas, passamos todos a uma histeria antideterminista
que tende a rejeitar liminarmente tudo aquilo que evoca projeções históricas em
grandes linhas, em vez de cogitar de alguma reação mais sóbria, que eventualmente
rejeitaria predições específicas à luz de dados contrários – sem nem por isso ter de se
obrigar a não pensar sobre o futuro. Afinal, se Schluchter estiver correto, é
extremamente limitado fazer ciência social sem incorporar, sob um formato“desenvolvimental”, a dimensão histórica do argumento. E simplesmente impossível
preservar sua dimensão crítica sem essa incorporação.
Sob esse prisma, talvez não seja mera coincidência o propalado declínio da
sociologia nas últimas décadas. Fragmentada em múltiplos campos e especialidades,
enclausurada em jargão incompreensível não apenas para leigos, mas eventualmente
até para os “adeptos” ou “praticantes” de “paradigmas” variados que mal se
comunicam, a sociologia vê-se numa encruzilhada penosa, pois hoje inclina-se porabraçar a rejeição doutrinária de uma das pernas do tripé metodológico em que – a
julgar por Schluchter – se apóia. O resultado é uma perplexidade paralisante que tem
talvez seu mais nítido sintoma no fato – observado recentemente por Axel van den Berg
– de que cada vez mais o que é tido hoje por teoria sociológica (ele cita Habermas,
Bourdieu, Giddens e Alexander) lida sobretudo com epistemologia, ontologia e filosofia
da ciência, a expensas da tarefa mais corriqueira – e propriamente sociológica – de
teorizar sobre o mundo social. O resultado, prossegue van den Berg, é que “teoria
social” parece hoje uma teorização sobre a teorização, e nem tanto sobre a sociedade. E“teoria” virou uma subdisciplina em si mesma, com pequena relação aparente com o
que os pesquisadores empíricos eventualmente fazem.15 Certamente é necessário
15 Van den Berg, “Is Sociological Theory Too Grand for Social Mechanisms?”, pp. 205-6. É importantedizer que o caso de Habermas ocupa lugar peculiar no argumento de van den Berg. Pois, se ele acusa osdemais de praticamente se restringirem a reenunciar – sob jargão mais ou menos novo (e portantoprovavelmente mais obscuro) – velhas ambigüidades e dilemas clássicos da teorização sociológica,Habermas inequivocamente teoriza: formula novas questões, e dá-lhes respostas pessoais e originais. Eleapenas censura em Habermas o que acredita ser uma forte subordinação do plano descritivo de suaanálise ao plano normativo, eventualmente em prejuízo da clareza analítica do argumento. Para um
exemplo bastante claro da imprecisão analítica que Habermas se permite em pontos cruciais, van denBerg (p. 208) menciona as relações entre ação comunicativa e mundo da vida: “There is much confusionand debate about whether Habermas thereby wishes to claim that ‘communicative rationality’ in thissense is logically implied by, inherent in, necessary for, presupposed by, or the necessary means of thereproduction of the lifeworld”.
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ressalvar que o foco do ataque de van den Berg se distingue do meu ponto aqui: ele se
dedica basicamente a apontar o fosso profundo que se observa na sociologia recente
entre as atividades de teorização e investigação empírica – com óbvios efeitos deletérios
sobre a ciência produzida. Mas o que desejo destacar é que, na linha de raciocínio aqui
perseguida, a perplexidade epistemológica ali apontada parece compreensível, já que a
progressiva tendência à desqualificação da dimensão “desenvolvimental” da análise
acaba por privar os sociólogos da capacidade de simplesmente dizer qualquer coisa
substantiva sobre seu objeto, uma vez que a sua dimensão histórica se perde – e eles
começam a ter de reinventar a roda, perguntando-se mesmo se é possível dizer alguma
coisa com aspirações legitimamente científicas sobre o seu objeto.
Desgraçadamente, esse processo de autonomização subdisciplinar da “teoria”
ainda produz contrapartida na idêntica autonomização dos temas “metodológicos”
(principalmente quantitativos). Igualmente repleta de “especialistas”, a áreametodológica em ciências sociais costuma sofrer de grave desinformação teórica, num
processo paradoxalmente encorajado pelo desenvolvimento dos recursos
computacionais envolvidos. Conforme descreve muito singelamente Aage Sørensen, se
o pesquisador tem de operar manualmente os cálculos estatísticos necessários à
avaliação da relação empiricamente observada entre algumas variáveis, ele é obrigado a
pensar muito cuidadosamente sobre os cruzamentos que vai fazer; já o computador o
encoraja a cruzar simultaneamente, digamos, cinqüenta variáveis – para depois
verificar os coeficientes de regressão de cada uma e proceder retroativamente, com
uma explicação ad hoc para o comportamento das variáveis que parecem mais
relevantes naquele conjunto de dados. Infelizmente, já sabemos desde Hume que
enunciados particulares não podem fundamentar um enunciado universal – e Sørensen
lamenta que ao longo das últimas décadas os sociólogos tenham se tornado menos
competentes na tradução de idéias teóricas em modelos a serem estimados por técnicas
estatísticas.16
No centro desse duplo processo de afastamento recíproco, a teorizaçãopropriamente dita perde espaço, particularmente a formulação de hipóteses
intelectualmente arrojadas, que sejam ao mesmo tempo teoricamente sofisticadas e
empiricamente operacionalizáveis: e a sociologia tristemente parece envelhecer, sem
jamais ter saído da juventude.17 Comparativamente à situação em que hoje se encontra
a sociologia, parece-me justo afirmar que a produção recente na ciência política se
mostra mais robusta (ou pelo menos mais ambiciosa no plano proposicional) – apesar
16
Sørensen, “Theoretical Mechanisms and the Empirical Study of Social Processes”, esp. pp. 238-47.17 Sørensen, “Theoretical Mechanisms and the Empirical Study of Social Processes”, p. 247, nos lembra que
no final dos anos 60 os sociólogos tinham mais experiência com o uso de dados de surveys de grandeescala do que os economistas – e maiores facilidades de financiamento para suas pesquisas também.
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da dificuldade de se constituir um padrão cumulativo consistente, e de que também ali
algumas “modas” intelectuais parecem ditar as orientações da pesquisa mais do que a
densidade da crítica à produção anterior. A propósito, acredito que o relativo vigor que
a ciência política tem sido capaz de exibir deve-se em boa medida ao impacto renovador
propiciado por uma dessas “modas”, a teoria da escolha racional, que veio
oportunamente preencher lacunas importantes no plano – tradicionalmente
negligenciado, exceto na economia – da análise situacional.18 Mas isso certamente
reivindica desdobramento mais ousado no plano diacrônico, histórico – que está por
ser feito, e permanece como uma carência importante da teorização recente. Não é por
outro motivo que um livro como Comunidade e Democracia, de Robert Putnam,
publicado em 1993, obteve – a despeito de todos os problemas gerados pela passagem
um tanto “rápida” demais sobre temas tão variados – acolhida tão entusiástica, mesmo
por seus críticos: contrariando o perfil costumeiro da produção contemporânea emciência política, ele atreveu-se a lidar com os três planos de análise a que Schluchter se
referiu (configuracional, situacional e histórico), produzindo uma obra rara nos dias de
hoje – e que não pôde ser ignorada.
De fato, se não nos deixássemos seduzir tão facilmente por reorientações
drásticas e arbitrárias de nossos programas de pesquisa, seria bastante óbvio que o
problema não pode ser o “desenvolvimentalismo” em si mesmo. Afinal, se algumas
previsões de Marx (especialmente algumas de implicações políticas mais imediatas,
como a polarização social crescente, a tendência à queda da taxa de lucro, a iminência
do colapso revolucionário do capitalismo a iniciar-se pelo centro do sistema etc.)
revelaram-se problemáticas e acabaram por frustrar muitos planos de ação política
nelas apoiados, o mesmo não se pode dizer de outros: o curso do século XX (e de
maneira particularmente óbvia o destino da experiência soviética e o Holocausto)
corrobora grande parte do que Max Weber chegou a entrever sobre as relações entre
racionalização e burocratização e suas conseqüências perniciosas sobre as perspectivas
da política moderna. Também Tocqueville, ainda mais remoto, e incomparavelmente
menos rigoroso no método que Weber ou Marx, costuma causar perplexidade por sua
capacidade de antever, há quase duzentos anos, as linhas gerais sobre as quais se
desdobrou a história desde então. O próprio Marx permanece insuperado em sua
antevisão da dinâmica geral de operação da economia capitalista, e ninguém pode hoje
18 Acredito que isto pode ser adequadamente ilustrado por uma rápida consulta ao New Handbook of Political Science, organizado em 1996 por Robert Goodin e Hans-Dieter Klingemann. Orientado paracapturar as tendências e novidades mais importantes detectáveis desde a publicação dos oito volumes do
primeiro Handbook of Political Science, por Fred Greenstein e Nelson Polsby em 1975, o novo volume épatentemente pautado pelo impacto da “escolha racional” sobre a ciência política: em quase todas asáreas da disciplina em que se divide a obra, o foco da apresentação é a avaliação dos méritos relativos daabordagem “micro”, ou “individualista”, sobre o tema em questão, em contraste com abordagens“convencionais”, freqüentemente ditas “sociológicas”.
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ler as primeiras páginas do Manifesto Comunista sem assombrar-se com sua precisa,
eloqüente e persuasiva clarividência.
Se tomarmos como espúria toda especulação sobre padrões previsíveis de
desenvolvimento futuro, toda imputação de uma linha sobre a qual tem curso a
história, toda afirmação sobre a direção da história, como poderemos explicar essesnotáveis acertos? “Sorte”? “Inspiração”? “Revelação da divina providência”? Não vou
me ocupar de tentar contestar estas conjecturas, até porque não posso excluir a
alternativa de que tudo isso efetivamente se tenha passado (e a formulação vaga
aumenta ainda mais a chance) – mas sobretudo porque aprendemos com Popper que o
“contexto da descoberta” é irrelevante para a validação de um argumento.
Tecnicamente, a qualidade de uma predição sobre assunto de natureza histórica
depende da sua correspondência com os eventos observados e da precisão do
enunciado (sem a qual a primeira condição não pode ser aferida). Mas afirmo que defato ela depende sobretudo da qualidade do diagnóstico do presente do qual deriva.
Com efeito, seria trivial afirmar que todo prognóstico futuro parte de algum
diagnóstico sobre o presente; o que afirmo aqui é que assim como toda proposição
teórica sobre objeto de natureza empírica implica necessariamente prognóstico sobre
acontecimentos futuros (é o que está suposto em todo experimento científico), quando
esse objeto empírico é também histórico (como a sociedade, matéria da sociologia)
então todo diagnóstico implica necessariamente o esboço de cursos de eventoshistoricamente abrangentes, linhas evolutivas esperadas – numa palavra, direção. Pois
é isso o que distingue o objeto histórico dos demais: embora possamos falar de uma
história da física assim como de uma história da sociologia (pois ambas são atividades
humanas, e conseqüentemente o seu protagonista é dotado de livre-arbítrio), não faz o
menor sentido falar de uma “história da matéria” por analogia a uma história das
sociedades humanas. E o que distingue essas duas é precisamente o fato de que a
história das sociedades tem um curso, uma direção; envolve o desenrolar de um
drama; tem começo, meio e fim, numa dada ordem que não pode ser alterada; e acompreensão de qualquer ponto desse fio envolve necessariamente a compreensão de
suas ligações com seu passado e com seu futuro.19
19 Talvez alguém queira retrucar que também a física (mais precisamente a cosmologia) pode ser histórica,quando se ocupa de processos tais como a origem do universo ou o seu colapso, mas penso que essaanalogia não pode ser levada longe a ponto de cancelar o argumento acima. Uma determinada massa deum elemento qualquer, digamos de ferro, sob condições determinadas de temperatura e pressão, e
velocidade e volume mantidos constantes, terá comportamento idêntico em qualquer ponto no tempo. Omesmo não é rigorosamente válido para grupos humanos: por mais que especifiquemos variáveisgenéricas em termos formais, e que isto nos auxilie na tipificação de comportamentos esperáveis emqualquer ponto do tempo, a configuração global das circunstâncias sob a qual se dá a ação se apresenta
diferentemente em cada época histórica, e os modelos de comportamento terão sobretudo valorheurístico, em sua aplicação a épocas variadas. O livre-arbítrio de que goza nossa unidade de análise (oser humano) constitui o ingrediente decisivo a definir a especificidade de nossa ciência. Pois é a isto quese refere uma distinção crucial entre ciências naturais e sociais: por causa do livre-arbítrio humano oconhecimento de que dispõem as pessoas condiciona e modifica historicamente o seu comportamento.
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Assim um atributo crucial a distinguir as ciências sociais das ciências naturais é
a historicidade do objeto das pri7meiras; o fato de que elas estudam objeto de natureza
histórica e com isso se habilitam – tanto quanto a descrever e explicar – também a
avaliar seu objeto, por remissão a certo padrão logicamente identificável de
desenvolvimento histórico, certo curso cientificamente esperável de acontecimentos.
Nisto se apóia a essência da exortação do jovem Marx: transformar o mundo – ainda
que não apenas segundo nossos desejos estritamente considerados, mas mediante um
diagnóstico cientificamente informado sobre cursos históricos alternativos plausíveis. E
é sobre o futuro que esse diagnóstico nos permitir esperar que se apoiará toda
dimensão crítica que nossa análise almejar.
De fato, apesar de nossa costumeira ironia quanto a “futurologistas”, e também
do que há de inequivocamente justificável na cautela profissional com que recebemos
os profetas de plantão, cabe reconhecer que o que a sociedade espera de nós éprecisamente isto: pistas sobre o que nos reserva o futuro. Por mais precário que tenha
de ser o atendimento honesto a essa demanda, e por mais que o rigor nos imponha
cautelas no enunciado de nossas convicções, trabalhamos inevitavelmente voltados
para o futuro. Não financiam nossas atividades para que possamos ser meramente
depositários passivos de um acervo empírico inesgotável que o passado alimenta. Mas
para forjarmos – inclusive por uma adequada compreensão de fenômenos passados –
diagnósticos de nosso presente que nos permitam divisar nosso futuro e, quando
julgarmos ser o caso, tentar modificá-lo. Repito: toda a dimensão crítica do
conhecimento sociológico se apóia sobre a imputação de cursos de eventos
empiricamente plausíveis e valorativamente desejáveis ao devir histórico. E é nesse
ponto que reside sua peculiaridade fundamental frente às ciências da natureza: a crítica
do seu objeto.
IV. Modernização e modernidade: uma breve ilustração
Apenas com o propósito de ilustrar o que se propõe, e na esperança de tornar
menos árida a exposição, caberia tomar aqui uma questão canônica em ciências sociais
que nos sirva de guia a alguns dos problemas envolvidos.20 Penso no tema geral da
modernização, a que a busca de alguma “direção” para a história nos impele
inevitavelmente quando consideramos o transcurso dos últimos quatro ou cinco
Por isso, uma teoria sociológica é sociologicamente relevante, mas uma teoria física (embora tambémpossa ser sociologicamente relevante) não é fisicamente relevante. Não foi à toa que Einstein se queixou
de que a física quântica queria atribuir livre-arbítrio às partículas: como já disse o físico Murray Gell-Mann, “imagine o quanto a física seria mais difícil se um átomo pudesse pensar”...
20 O próximos parágrafos utilizam-se de trechos extraídos de minha tese de doutorado, “Modernização,Mercado e Democracia”, pp. 12-5.
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séculos da humanidade, mas que pode ser extrapolado pelo menos até a Baixa Idade
Média – conforme se identifiquem as características básicas do processo.
Incontestavelmente um dos temas axiais de toda reflexão sobre as sociedades humanas
levada a cabo durante os últimos dois séculos, o conceito de “modernização”
certamente já se expôs a abusos de toda sorte, e sofreu com generalizações arbitrárias,
extrapolações apoiadas em pouco mais que wishful thinking etc. Quando se toca nesse
assunto, imediatamente nos ocorre (pelo menos a mim e a meus colegas da ciência
política) a literatura sobre política comparada produzida nos anos 60, que recorreu
abundantemente à categoria da “modernização” e do “desenvolvimento político” – e
nem sempre, é certo, com a devida cautela.21 Contudo, não obstante as impropriedades
certamente cometidas, acredito que o legado dessa literatura é potencialmente muito
mais fecundo do que pode nos fazer crer o seu quase completo abandono pela produção
dos últimos anos.Um primeiro ponto curioso que talvez valha a pena ressaltar é a observável
“migração” ocorrida nas últimas décadas, do uso generalizado da palavra
“modernização” para sua quase extinção no âmbito da literatura acadêmica, substituída
avassaladoramente pela referência à “modernidade”. Aparentemente, tal migração teria
obedecido ao propósito de se evitarem certas implicações tidas por inaceitavelmente
determinísticas, e de cunho etnocentrista, usualmente associadas, não sem boas razões,
ao uso do termo “modernização” feito pela sociologia política americana dos anos 60. É
possível, todavia, que sua substituição usual pela referência à “modernidade” feita pela
sociologia contemporânea, longe de evitar o problema, acabe por agravá-lo a partir de
uma reificação da época contemporânea que, tentando evitar apontar um estado de
coisas ideal – ou, de algum modo, melhor – implícito no termo “modernização”, acaba
por postular de maneira simplificadora um certo estado de coisas que de alguma
maneira descreva a nossa época e possa estar reunido por debaixo do rótulo
“modernidade”. Tentando evitar supor um estado de coisas ideal a ser alcançado, a
adesão ao termo “modernidade” acaba por inadvertidamente supor que este estado de
coisas já chegou.
Todavia, posta a questão nesses termos, a modernidade é a Inglaterra vitoriana
ou o estado do bem-estar social do pós-guerra? O individualismo de que a sociedade
norte-americana se constituiu em arquétipo, ou o organicismo nazi-fascista (ou
comunista)? A prosperidade e a expansão das possibilidades de consumo oferecidas
pela operação do mercado, ou os surtos de fome recorrentes na África? Naturalmente, a
presunção geral é a de que ela é tudo isso. Mas, para essa solução, é crucial a remissão a
um processo subjacente, cuja complexidade dinâmica produz resultados episódicos
21 Para críticas detalhadas (e, num certo sentido, “internas”) da literatura de então, pode-se recorrer aSamuel Huntington, “The Change to Change”, e Harry Eckstein, “The Idea of Political Development”.
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próprios em circunstâncias distintas – desde que se possam deduzir essas
conseqüências a partir de um conjunto identificável, minimamente parcimonioso, de
características elementares do processo, presentes ao longo de todo o percurso. O
formato de sociedade tipicamente esperável da operação desse conjunto de fatores
pode, em princípio, configurar algo a que chamemos “modernidade” – um tipo ideal
como qualquer outro. Mas o processo estará inequivocamente presente, mesmo de
maneira implícita, pois embora se possa em princípio privilegiar a descrição – por mais
complexa que se revele – do estado de coisas historicamente observado ao longo da
modernização, ele nunca poderá ser caracterizado teoricamente senão como um
“instantâneo”, num ponto qualquer do tempo, dos resultados concretos de um processo
que lhe é subjacente, de uma dinâmica social específica engendrada a partir da
confluência de um determinado conjunto de circunstâncias em algum ponto do
passado, talvez há séculos. Assistimos ainda ao desenrolar desse processo – certamentecontraditório, tenso, muitas vezes extremamente violento, e ainda presa de oscilações
esporádicas que fazem com que tudo pareça reverter, que valores supostamente
enterrados para sempre ressurjam com força inaudita logo adiante, adiando e, com
freqüência, frustrando os sonhos otimistas dos modernizadores mais utópicos.
Concebendo, portanto, as peculiaridades da história dos últimos séculos como as
vicissitudes de um processo (de cuja “conclusão” podemos efetivamente estar muito
mais distantes do que a ciência social do século XX tendeu a acreditar – do leninismo a
Fukuyama, passando pela sociologia política americana dos anos 60), podemoslegitimamente nos perguntar sobre as suas características básicas. Poderei dizer que
vejo, assim, um mundo em “modernização”, se puder estabelecer as linhas básicas
desse processo, seus elementos deflagradores, suas linhas de mudança, sua direção
geral. A “modernidade” se caracterizará sobretudo pela extrapolação na direção do
futuro das linhas básicas de continuidade do processo em curso. Numa palavra, a
modernidade se constitui sobretudo como utopia. Não é por acaso que Habermas a ela
se refere em diversos trabalhos como “projeto inacabado”. Isso é apenas outra maneira
de dizer “processo em curso” – apenas resvalando discretamente para certa “teleologiaobjetiva”...
V. Para uma conclusão: positivismo, cultura e história
Caberia, enfim, contrastar com modéstia nossas perplexidades de hoje com o
otimismo gnoseológico daqueles que nos antecederam em um século, e sobre cujos
ombros nos encontramos refestelados desde então. Desde o dia em que pisam pela
primeira vez numa universidade, as atuais gerações são habituadas a referir-se com
desdém ao “positivismo” prevalecente na atmosfera intelectual do século XIX – e ele
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poderá ser identificado não apenas em seu principal apóstolo Augusto Comte, mas
também seguramente em Herbert Spencer e Émile Durkheim, eventualmente em Max
Weber e mesmo em Karl Marx. E a grande ironia é que não conseguimos nos livrar da
herança destes homens, todos nascidos há bem mais de um século e ainda hoje a
conformar pesadamente a formação de nossos alunos (a um ponto que até eu me
inclino por julgar exagerado). Como conciliar nossa dependência intelectual em relação
a eles com nossa facilidade em atribuir-lhes tamanha ingenuidade epistemológica?
Não acredito que essa pergunta comporte resposta que nos absolva. Por isso
busquei, na epígrafe deste trabalho, apontar uma agenda positiva para as ciências
sociais em um autor certamente insuspeito quando a acusação é positivismo. De fato,
parece-me um tanto melancólico avaliar em que ponto nos encontramos hoje na
realização da empreitada que Nietzsche ali designa – ainda que ironicamente – como “a
imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo século”: “um conhecimento das
condições da cultura” que até então não havia sido atingido, e que deve ser obtido,
“como critério científico para objetivos ecumênicos”, para que a humanidade não se
destrua com o “governo global consciente” que se impõe com “o fim da crença de que
um deus dirige os destinos do mundo”. É bastante surpreendente descobrir que um
espírito patentemente “antipositivista” como Nietzsche não se faz de rogado quando
tece comentários sobre o futuro, esboça prognósticos e agenda tarefas para o século que
se lhe seguiria. E é bastante lamentável perceber que o seu prognóstico histórico se
materializa em larga medida, mas nos colhe desprevenidos em virtude de nosso
colossal fracasso no cumprimento da tarefa que ele nos atribuiu então. Em virtude do
fato de que (também) ele acertou seu prognóstico, não temos escolha: ou tomamos a
sério a tarefa que ele nos lega e acreditamos francamente na possibilidade da
fundamentação científica – por um conhecimento das “condições da cultura” – dos
critérios que presidirão nossos objetivos ecumênicos, ou somos obrigados a aceitar sua
ironia, mesmo seu escárnio, e resignarmo-nos com nossa impotência frente ao mundo.
Neste caso, teremos de rejeitar todo o racionalismo ocidental; todo o ethos que decorre
da tese socrática – endossada por Marx – segundo a qual é possível modificar (e
melhorar) o mundo e a vida humana pelo uso da razão, pelo aprendizado racional que
pode decorrer da apropriação sistemática de nossa interação com o mundo; e
poderemos, sem remorsos, recomendar o fechamento dos nossos cursos e
departamentos.
É particularmente digno de atenção que Nietzsche tenha se referido ao
conhecimento científico das “condições da cultura” como a tarefa política central que
uma sociedade secularizada tem diante de si. Pois rapidamente a “cultura” se tornou agrande “caixa-preta” conceitual diante da qual a ciência social se deixou paralisar, e
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todo relativismo procurou seu ponto de apoio. Vê-se que Nietzsche não estava
divagando, mas sabia apontar com precisão o calcanhar-de-Aquiles mais provável de
um esforço de organização racional da convivência humana. Mas os progressos da
sociologia na primeira metade deste século (inclusive no campo de um conhecimento
científico das “condições da cultura”) sugerem que não há nada de intrínseco ao objeto
“cultura” que impeça em princípio sua decomposição analítica, e o torne inerentemente
incompreensível por meios teóricos racionais. O estádio que foi alcançado em poucas
décadas de trabalho pela primeira geração de sociólogos, um século atrás, e sua
capacidade de pautar fortemente, ainda hoje, todo nosso trabalho indicam do que é
capaz uma adesão “ingenuamente positivista” à tarefa de se fazer uma ciência da
sociedade, da história ou da cultura. Pois esse ânimo é tudo o que compartilhavam os
integrantes da geração de nossos fundadores, que incluiu Durkheim, Weber, Simmel,
Tönnies, Pareto e alguns outros – e esse traço pode ser também inequivocamenteatribuído a seu principal precursor, Karl Marx. Por contraste, a sociologia da segunda
metade do século XX é extraordinariamente hesitante (na melhor das hipóteses,
tímida) na afirmação do caráter científico de sua atividade – e pagamos por isso o preço
da dispersão descrita nas seções anteriores.
Uma ilustração bastante singela da possibilidade de apreensão tecnicamente
simples, mas inequivocamente científica, de fenômenos ligados a o que se designa
genericamente como traços “culturais” de uma sociedade – diante dos quais temos
freqüentemente deixado paralisar a análise – pode ser encontrada no trabalho a que
Ronald Inglehart já dedica trinta anos de sua vida profissional. Trata-se dos World
Values Surveys, conduzidos em ondas periódicas sucessivas a partir do Institute for
Social Research da Universidade de Michigan, e que hoje já alcançam mais de sessenta
países em todo o mundo. Não se trata aqui de subscrever ou endossar as conclusões
específicas que Inglehart alcançou com seus estudos (a despeito de seu inegável
interesse, o teor dessas conclusões não é relevante aqui). O que pretendo sublinhar é
que seu trabalho ilustra a plena viabilidade de uma aproximação teórica e
metodologicamente informada de questões de natureza “cultural”, na medida em que
os surveys se orientam por identificar padrões culturais a partir das respostas obtidas a
questões sobre valores pessoais e orientações normativas diversas com relação a uma
ampla variedade de temas.
E aqui nos aproximamos finalmente de um dos objetos centrais desta mesa: ao
trazer de novo a menção à técnica de survey, agora para tratar especificamente de
objeto de natureza “cultural”, tal como as orientações valorativas de populações
dispersas por todo o mundo, trago à baila de maneira implícita a postulação dapertinência do recurso a técnicas “quantitativas” de análise para o tratamento de
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qualquer objeto em ciências sociais. De fato, inclino-me por abordar a interminável e
muitas vezes equivocada polêmica em torno do emprego de métodos quantitativos e
qualitativos em ciências sociais de maneira um tanto impaciente, que tende a trivializar
a discussão: como já afirmei acima, nosso problema é sempre dizer coisas lógicas a
respeito de eventos e processos no mundo, de maneira a compreender esses eventos e
processos, assim como a outros – análogos – que possam acontecer; se é assim, minha
técnica de aproximação será eventualmente quantitativa, sempre que meu objeto puder
ser contado ou medido, e portanto se prestar a “operações lógicas quantitativas” – vale
dizer, matemáticas. Isto por si só já valeria como qualificação da terrivelmente nefasta
tese das “duas culturas” (a científica e a humanística), que tantos ignorantes produziu e
legitimou em ambas – e que foi involuntariamente vulgarizada por C. P. Snow ao tentar
questionar a distinção em The Two Cultures. Mas creio que se pode acrescentar algo: as
técnicas estatísticas serão tanto mais fecundas e bem-vindas quanto menos o objetoparecer prestar-se de maneira óbvia à dedução lógica intuitivamente evidente. Com o
survey, ampliamos os números, controlamos formalmente a aleatoriedade envolvida, e
eventualmente um pouco de sorte e boa dose de trabalho árduo junto aos dados
poderão prestar ajuda inestimável à indispensável reflexão teórica, para identificar
padrões não-óbvios de interdependência entre as variáveis envolvidas no estudo.
Em boa hora a ciência social brasileira tem nos últimos anos se inclinado por
ignorar a reafirmação obscurantista das “duas culturas”, ao patrocinar uma série
extensa de iniciativas voltadas para sanar uma histórica má-vontade com técnicas
quantitativas mais complexas. Mas se as teses que animam este pequeno trabalho
estiverem minimamente corretas, os desafios que se antepõem a este esforço vão muito
além do preenchimento de uma conhecida lacuna na formação dos cientistas sociais
brasileiros.
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