História dos Descobrimentos e da Expa nsão PortuguesaƒO FINAL CORRIGIDA... · aspectos...
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Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do
grau de Doutor em Histria dos Descobrimentos e da Expanso Portuguesa, realizada
sob a orientao cientfica de Joo Paulo Oliveira e Costa e Ana Isabel Buescu
Apoio financeiro do POCTI no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio.
(SFRH/BD/4927/2001)
Tragdia mais Gloriosa que Dolorosa
O Discurso Missionrio sobre a Perseguio aos Cristos
no Regime Tokugawa na Imprensa Europeia
(1598 1650)
Ana Cantante Mota Fernandes Pinto
Tese de Doutoramento em
Histria dos Descobrimentos e da Expanso Portuguesa
Abril, 2014
DECLARAES
Ao Antnio
Pela tolerncia ao martrio.
AGRADECIMENTOS
Foram vrias as instituies e as pessoas que me apoiaram e contriburam para esta
dissertao de doutoramento.
Ao Professor Joo Paulo Costa, meu mestre e orientador, devo o interesse pelo Japo e a
confiana que, ao longo dos anos, depositou em mim.
Professora Ana Isabel Buescu, minha co-orientadora, agradeo as novas perspectivas
de anlise e uma palavra de sincero reconhecimento pela leitura atenta deste trabalho.
Sem Fundao para a Cincia e Tecnologia, que me concedeu uma bolsa de
doutoramento e apoiou as minhas deslocaes s principais bibliotecas europeias, e sem
o Centro de Histria de Alm Mar (CHAM), com o seu ambiente acadmico
estimulante, esta dissertao este trabalho no se teria realizado.
Aos amigos, agradeo em particular a Liam Brockey e a Manuel Lobato, a quem devo
as observaes inteligentes, a Joo Teles, pelas perspectivas histricas inspiradoras, e
Alexandra Curvelo, cujo rigor cientfico procurei mimetizar.
Mariana Magalhes, Helena Barros e Ins Versos agradeo o empurro final nos
aspectos informticos e logsticos.
Ao Paulo Pinto, para l da amizade, devo a argcia com que brindou os nossos almoos
de trabalho, desconstruindo e ajudando-me a reconstruir argumentos. Cristina Joanaz
de Melo, cuja diversidade de interesses para mim uma referncia, e Rita Almeida de
Carvalho que, com o seu rigor de historiadora, leu, criticou e fez inmeras sugestes,
devo o apoio incondicional quando o desnimo parecia instalado.
H depois a famlia sem a qual nada do que fiz faria sentido. Em particular, agradeo a
Teresa Salgueiro, cujo apoio de av foi essencial para a estabilidade dos meus filhos,
aos meus Pais e s minhas irms Isabel e Madalena por terem estado presentes nos
momentos cruciais e ausentes sempre que foi necessrio.
As ltimas palavras deste agradecimento so para a Graa e para o Antnio pelo
estmulo e pela capacidade precoce de apreciarem a qualidade de persistir.
RESUMO
Tragdia mais Gloriosa que Dolorosa
O Discurso Missionrio sobre a Perseguio aos Cristos
no Regime Tokugawa na Imprensa Europeia
(1598 1652)
Ana Fernandes Pinto
Palavras-Chave: Japo Regime Tokugawa Martrio Europa Catlica Reforma
Catlica Companhia de Jesus Franciscanos Dominicanos Agostinhos
Resumo
Em 1549 os missionrios da Companhia de Jesus estabeleciam a misso do Japo,
inaugurando um perodo de evangelizao catlica que se prolongou at dcada de
1640. O sucesso da converso dos nipnicos levou a que, a partir da dcada de 1590, as
ordens mendicantes fossem no encalo dos jesutas. O perodo coincidiu com o
momento em que o regime Tokugawa imps no Japo um processo de centralizao
poltica de cariz autoritrio. A doutrina catlica e as atitudes dos missionrios colidiram
com a nova ordem estabelecida pelos Tokugawa que, por isso, promoveram uma
poltica sistemtica anticrist. O sucesso da evangelizao deu lugar a uma misso
martirizada que serviu para alimentar uma vasta produo tipogrfica na Europa
Catlica de Seiscentos, tanto mais que ia ao encontro das tendncias devocionais da
Europa da Contra-Reforma e da espiritualidade do Barroco. Por esta via, a Europa
tomou contacto com a longnqua sia. Mas os textos missionrios impressos no
tinham apenas fins informativos. A dinmica tipogrfica gerada servia tambm para
fazer a apologia de cada uma das ordens missionrias e assim influenciar os poderes
polticos e religiosos a fim defenderem os seus direitos de evangelizao. O martrio no
Japo foi assim utilizado como arma de propaganda pelas ordens missionrias na
Europa.
ABSTRACT
Tragdia mais Gloriosa que Dolorosa
The Missionary discourse about Tokugawa persecution towards Christians
in European Printing Press
(1598 1652)
Ana Fernandes Pinto
Keywords: Tokugawa Japan Martyrdom Early Modern Europe Catholic Renewal
Jesuits Dominicans Augustinians
Abstract
In 1549 the missionaries of the Society of Jesus established themselves in Japan
ushering in a period of Catholic evangelization which lasted until the 1640s. Since the
Japanese mission came to be very successful, Mendicants Orders went after Jesuits
evangelization from 1590s onwards. By that time Tokugawa rulers were committed to
structuring a centralized and authoritarian government. Missionaries preaching and
attitudes clashed with the new order established by Tokugawa, who ended up promoting
an anti-Christian policy. The success of the evangelization gave rise to a martyred
mission which fueled a large missionary printing press activity in Catholic Europe. This
discourse on martyrdom in Japan fed into the then occurring Catholic renewal
devotional trends and Baroque spirituality. This was the setting in which 17th century
Catholic Europe learned about Japan. Those printed texts were not simply used for
information purposes. Printing press activity, separately promoted by each missionary
order, envisaged also their own exaltation in a competition to influence the European
political and religious powers in the ongoing controversy on missionary rights in Japan.
Martyrdom in Japan thus became as a weapon of propaganda for missionary orders in
Europe.
NDICE
INTRODUO ............................................................................................................................................. 1
Estado da Arte ............................................................................................................................................. 2
Limites cronolgicos ................................................................................................................................... 7
Metodologia................................................................................................................................................. 9
O Japo e a Europa seiscentista ................................................................................................................. 12
Cap. 1 Da tolerncia perseguio: o discurso missionrio sobre a evoluo da poltica anticrist. .. 23 1.1. Antes do Decreto de Perseguio Generalizada (1614). ..................................................................... 26
1.2. Do Grande Exlio / Daitsuih supresso de facto (1614 1640). ................................................ 42
Cap. 2 Tempo de calamidade: A realidade punitiva dos cristos a partir dos textos impressos
missionrios. ................................................................................................................................................. 73 2.1. Que cristos foram perseguidos? ........................................................................................................ 75
2.2. O Exerccio da Justia. ....................................................................................................................... 79
2.2. O Repositrio das Prticas Anticrists. .............................................................................................. 87
2.2.1. Arbtrio e Dissimulao ................................................................................................................... 89
2.2.2. As Sanes ...................................................................................................................................... 93
2.2.3. O Aparato da Execuo ................................................................................................................. 101
2.2.4 O Novo Ciclo de Perseguio ......................................................................................................... 109
2.3. As repercusses da barbaridade. ................................................................................................... 112
Cap. 3 Invencvel constncia e fervoroso desejo de padecer por Cristo: Os significados do
martrio nos textos impressos missionrios ............................................................................................. 120 3.1. Sair para o palanque: Honra ou Gloriosa morte? ........................................................................ 123
3.1.1. A Niponizao do Cristianismo ................................................................................................. 125
3.1.2. O Legado da Cultura Honorfica: Vassalagem e Liberdade .......................................................... 128
3.1.3. O Legado da Morte Honrada ......................................................................................................... 132
3.2. O Discurso do Mrtir: Representao e Devoo ............................................................................. 142
3.2.1 A Verdade Doutrinal ...................................................................................................................... 142
3.2.2. Os que se deixaram ficar ........................................................................................................... 150
3.2.3 Em Harmonia com a Espiritualidade da poca .............................................................................. 153
3.2.3. A verdade feita .......................................................................................................................... 158
Cap. 4 O texto impresso missionrio sobre a misso do Japo: modalidades e estratgias ............... 168 4.1. Centros de Produo ......................................................................................................................... 169
4.2. Uma Propaganda Intensa .................................................................................................................. 178
4.3. A Arte Tipogrfica entre Rivais ....................................................................................................... 181
4.4. A Rivalidade no Discurso ................................................................................................................. 189
4.5. Em Demanda da Santidade ............................................................................................................... 198
CONCLUSO ........................................................................................................................................... 212 CRONOLOGIA ......................................................................................................................................... 220 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................... 224 GLOSSRIO ............................................................................................................................................. 258 MAPAS ....................................................................................................................................................... 260 ANEXO: Reportrio Bibliogrfico .......................................................................................................... 270
ABREVIATURAS
AIA Archivo Ibero-Americano
BPJS Bulletin of Portuguese and Japanese Studies
CEHR-UCP Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica
Portuguesa
CEPCEP Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expresso Portuguesa
CHAM Centro de Histria Alm-Mar
CHJ Cambridge History of Japan
CNCDP Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses
FCG Fundao Calouste Gulbenkian
FCSH-UNL Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
IHSI Institutum Historicum Societatis Iesus
JJRS Japanese Journal of Religious Studies, Nanzan Institute for Religion and Culture
RAC Real Academia Histria, Madrid
UA Universidade dos Aores
NORMAS DE TRANSCRIO
A abrangncia geogrfica do tema discutido na presente dissertao obrigou
definio de um critrio relativamente nomenclatura. A ortografia dos antropnimos e
dos topnimos europeus foi actualizada e traduzida para portugus contemporneo. No
caso dos antropnimos nipnicos seguiu-se a regra local, isto , o apelido antecede o
nome prprio ao que, quando se tratam de japoneses conversos, acresce o nome de
baptismo. No caso dos topnimos, respeitaram-se as denominaes da poca, ou seja, os
das eras de Quinhentos e Seiscentos (por exemplo, Miyako e Edo).
Na transcrio de vocbulos japoneses, seguiu-se o Sistema de Hepburn,
utilizado para transcrever os sons da lngua japonesa para o alfabeto latino.
Apesar de no Japo o calendrio lunar ter prevalecido at 1873, tendo em conta
que o presente estudo assenta em documentao impressa na Europa, a cronologia
apresentada segue a datao ocidental.
1
INTRODUO
A presente dissertao centra-se na anlise do texto impresso na Europa por
ordens missionrias a evangelizar no Japo, durante a primeira metade do sculo XVII,
com enfoque no discurso sobre as prticas anticrists do regime Tokugawa.
Em 1545, o jesuta Francisco Xavier desembarcou no Japo, iniciando um
perodo de contacto permanente entre ocidentais e nipnicos. A partir de ento, a
presena missionria tornou-se uma pea fundamental no relacionamento entre a Europa
e o Japo. Foi igualmente um factor decisivo na alterao da atitude nipnica face ao
exterior, que inicialmente foi de abertura, para depois, se transformar numa crescente
desconfiana, at que, por fim, terminou na expulso de comerciantes e missionrios
ibricos, uma das expresses do efectivo controlo dos contactos com o exterior pelo
xogum.
A intransigncia das autoridades polticas do Japo evoluiu a par do processo de
unificao do arquiplago, que se desenrolou a partir da dcada de 1560, com as
conquistas militares de Oda Nobunaga, e terminou em 1600, com a vitria de Tokugawa
Ieyasu em Sekigahara. O guerreiro que iniciou a unificao, Oda Nobunaga, tolerou a
presena dos missionrios. Foi o seu sucessor, Toyotomi Hideyoshi, quem deu os
primeiros sinais de desconfiana ao mandar executar o primeiro grupo de cristos em
1597. Tokugawa Ieyasu, o ltimo dos unificadores militares, imps a perseguio
generalizada ao Cristianismo. O seu neto, Tokugawa Iemitsu, responsvel pela
consolidao poltica do processo militar, tornou sistemtica a perseguio aos cristos
e expulsou os mercadores castelhanos do arquiplago, em 1623, medida que foi
estendida aos comerciantes portugueses em 1639. Os missionrios, que sempre tinham
vivido na sombra dos mercadores, perderam definitivamente a base de apoio que lhe
permitira viver, desde 1614, na clandestinidade
As notcias da crucificao do primeiro grupo de 26 cristos a 5 de Fevereiro de
1597, entre os quais se encontravam seis frades franciscanos, trs jesutas, e 17
japoneses convertidos ao Cristianismo, comearam a ser impressas na Europa logo no
ano seguinte pela mo de missionrios jesutas e franciscanos. A partir de ento, e
durante todo o perodo de permanncia no arquiplago nipnico, as ordens missionrias
a estabelecidas foram relatando as suas experincias, sendo que algumas foram dadas
estampa. A Europa vivia ainda os efeitos das reaes Reforma protestante, que
2
desencadeara guerras e a morte de milhares de indivduos por causas religiosas. Para os
catlicos, o contexto era de renovao da Igreja e de reafirmao da veracidade do
catolicismo. As notcias sobre cristos que perseveravam na f Catlica at morte,
numa misso to longnqua, adequavam-se a uma Igreja que se procurava impor como
triunfante. Em 1627 a Cria Romana, mostrando o reconhecimento da realidade
martirolgica nipnica, beatificava aquele primeiro grupo de mrtires.
Estado da Arte
Os relatos dos missionrios tm sido uma referncia para compreenso das
mutaes militares, polticas e sociais do Japo dos sengoku daimy ao Japo dos
Tokugawa. Porm, estas fontes tm sido ignoradas enquanto testemunho da atitude
anticrist do bakufu de Edo. At bem recentemente, o estudo da proibio do
Cristianismo no Japo Tokugawa foi objecto de anlises que ora privilegiam a
missionao e enquadram a proibio como a etapa final da primeira evangelizao do
arquiplago, iniciada na dcada de 1540, ora se centram no processo histrico do Japo,
integrando a supresso da F crist no mbito da poltica de controlo das relaes
exteriores estabelecida pelo regime Tokugawa. Uma e outra perspectiva resultam
sobretudo da base documental subjacente.
A partir da dcada de 1920, investigadores pertencentes s ordens missionrias
que estiveram envolvidas na primeira missionao do Japo deram incio a um trabalho
sistemtico sobre a imensa produo escrita pelos religiosos. Daqui resultaram
narrativas histricas sobre a evoluo da respectiva actividade missionria no
arquiplago, a publicao de documentao indita que abarca igualmente o perodo das
perseguies e a sua edio crtica. Lorenzo Prez traou a biografia dos frades
franciscanos que trabalharam no Japo e foi responsvel pela edio de um manancial
de documentao que se encontrava dispersa1. Na dcada de 1960, surgiram estudos
similares sobre a presena agostinha e dominicana no Japo, pela mo respectivamente
1 Lorenzo Perez, Los Franciscanos en el Extremo Oriente. Noticias bio-bliograficas in Archivum
Franciscanum Historicum, 1 (1908), pp. 241-247, pp. 536-43; 2 (1909), pp.47-62, pp. 232-39, pp.548-60;
3 (1910), pp.39-46; 4 (1911), pp.50-61, pp.482-503. O autor foi ainda responsvel pela publicao de
muita documentao indita, Cartas y Relaciones del Japon in Archivo Ibero Americano, IV (1915), pp.
395-418; VI (1916), pp.199-309; IX (1918), pp.55-142, pp. 168-263
3
de Arnulf Hartamann2 e de Fr Honorio Muoz3. O contributo dos investigadores jesutas
mais diversificado, o que se explica pelo volume mpar de documentao. Johannes
Laures traou a histria da igreja catlica no Japo4. Georg Shurhammer centrou o seu
trabalho nas primeiras dcadas da presena missionria no Japo, sendo o responsvel
pela edio crtica das obras de Francisco Xavier5. Josef Franz Schtte, para alm do
seu estudo sobre a presena da Companhia de Jesus at 1650, foi particularmente activo
na inventariao de documentos dispersos e na edio completa dos textos relativos
cristandade nipnica entre 1547 e 15626. A obra de publicao da correspondncia
enviada pelos jesutas, iniciada por Schtte, foi prosseguida, mais tarde, por Juan Ruiz
de Medina. A este jesuta fica ainda a dever-se o trabalho de organizao cronolgica
dos martrios ocorridos no Japo, desde os primrdios da misso jesuta, at 1873.
Trata-se de uma obra e compilao de toda a informao possvel relativa aos martrios
ocorridos no Japo7.
Na actualidade, a informao missionria compilada e disponibilizada por esta
gerao de historiadores mantm-se incontornvel pelo seu rigor cientfico, seja no
estabelecimento de uma cronologia dos acontecimentos, seja na identificao de
topnimos e antropnimos. Em termos interpretativos, e no que s prticas anticrists se
refere, redundam, porm, numa leitura apologtica da realidade, desenquadrada das
polticas de controlo social a decorrer no Japo.
Com base nestes trabalhos desenvolveram-se linhas de investigao similares
tambm valorativas do acontecimento, mas representativas de novas abordagens. Nestes
estudos o tema da perseguio continua a ser subsidirio. Destaca-se a obra de C.R.
2 Entre os anos de 1964 e 1965 publicou em vrias sries a histria da presena dos agostinhos no Japo.
Arnulf Hartamann, The Augustinians in Seventeenth Century Japan in Augustiniana, XIV (1964),
pp.315-377, 640-669; XV, 1965, pp.237-258, 462-492. 3 Fr Honorio Muoz, Los Dominicos Espaoles en Japon (s. XVII), Madrid, 1965. 4 Johannes Laures, The Catolic Church in Japan, Tokyo, Charles E. Tuttle, 1954.
5 Georg Shurhammer dedicou especial ateno s primeiras dcadas da presena missionria no Japo.
Orientalia, Roma-Lisboa, Institutum Historicum Societatis Iesu Centro de Estudos Histricos
Ultramarinos, 1963. 6 Josef Franz Schutte, Introductio ad Historiam Societatis Jesu in Japonia 1549-1650, Roma, IHSI, 1968.
Foi tambm responsvel pela Monumenta Historica Japoniae Editionem critica, introductiones ad
singula documenta, commentarios historicos proposuit Josef Franz Schtte/ Juan Ruiz-de-Medina, S.J.,
1975-1995. Publicou ainda o texto de Alexandre Valignano Il cerimoniale per i missionari del Giappone:
Advertimentos e avisos acerca dos costumes e catangues de Jappo : importante documento circa i
metodi di adattamento nella missione giapponese del secolo XVI : testo portoghese del manoscritto
originale, versione letterale italiana di Alexandro Valignano, edio crtica, introduo e notas de Josef
Franz Schutte, 1946. 7 Juan Ruiz-de-Medina, Documentos del Japn (1547-1562), 2 vols., Roma, 1990-1995. Juan Ruiz-de-
Medina, El Martirologio del Japn 1558-1873, Roma, IHSI, 1999.
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4
Boxer e, mais recentemente, os trabalhos de Joo Paulo Oliveira e Costa8. Em The
Christian Century in Japan, Boxer abandona a perspectiva apologista do trabalho
missionrio que dominara a historiografia e traa a evoluo das presenas religiosa e
mercantil europeias, relacionando-a com o processo poltico e o desenrolar das atitudes
das autoridades nipnicas, primeiro para com os missionrios, depois para com os
mercadores, sem esquecer as repercusses na vida dos cristos9. O impacto deste seu
trabalho bem evidente no facto do ttulo da obra ter ascendido a conceito operativo,
usado ainda hoje para designar o perodo da histria do Japo que compreende a
primeira evangelizao. No plano da historiografia nacional, os trabalhos de Joo Paulo
Costa apresentam um novo retrato sobre a evoluo da cristandade nipnica. A
evangelizao missionria surge agora tratada no quadro mais genrico da expanso e,
em particular, da presena portuguesa no Japo e avaliada no mbito do processo de
adaptao e acomodao eclesistica civilizao nipnica. Por ltimo importa referir,
j no plano da historiografia nipnica o trabalho de Ikuo Higashibaba, uma abordagem
do cristianismo no Japo, centrada nos cultos e nas prticas locais10.
O perodo histrico coincidente com a primeira evangelizao do Japo foi ainda
objecto de estudo de uma gerao de japonlogos que surgiu aps a 2 Guerra Mundial.
Dominando a lngua e empenhados no intercmbio com historiadores nipnicos, estes
investigadores privilegiaram maioritariamente a documentao em japons, dando a
conhecer informao indita em lnguas europeias11. Nestes estudos a perseguio ao
Cristianismo surge integrada nas polticas de controlo social. John Whitney Hall foi
responsvel por uma extensa bibliografia que proporcionou o entendimento da evoluo
do bakufu em lnguas ocidentais, organizou ainda a publicao de colectneas de
estudos especficos que enquadram as prticas anticrists no processo histrico do
Japo. Os estudos de Marius Jansen12, Conrad Totman13, Herman Ooms14 e, mais
8 Cita-se o trabalho de referncia Joo Paulo Oliveira e Costa, O Cristianismo no Japo e o Episcopado
de D. Lus Cerqueira, vols. I e II, dissertao de doutoramento apresentada na Faculdade de Cincias
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998 [texto policopiado]. 9 C. R. Boxer, The Christian Century in Japan, Manchester, Carcanet Press, 1993 (1951). 10 Ikuo Higashibaba, Christianity in Early Modern Japan. Kirishitan Belief and Practice, Leiden-
Londres-Colnia, Brill, 2001. 11 The Cambridge History of Japan, vol. IV, Early Modern Japan, John Whitney Hall (coord.),
Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p.vi. 12 Marius B. Jansen, The Making of Modern Japan, Cambridege Mass-Londres, Belknap Press- Havard
University Press, 2000. 13 Conrad Totman, Early Modern Japan, Londres-Los Angeles, University of California Press, 1993. 14 Herman Ooms, Tokugawa Ideology, Princeton, Princeton University Press, 1985.
5
recentemente, James McClain15 tratam das perseguies no mbito das estratgias
desenvolvidas pelo regime ao nvel poltico, social e ideolgico. A mesma abordagem
encontra-se nas biografias dos grandes unificadores, no trabalho de Mary Elizabeth
Berry sobre Toyotomi Hideyoshi16, de Conrad Totman sobre Tokugawa Ieyasu17, e num
estudo mais recente, na investigao de Jeroen Lamer sobre Oda Nobunaga18. Refira-se
ainda o trabalho mais especfico e actual de Jurgis Elisonas Christianity and the
Daimyo onde traa a inter-relao entre dimios, missionrios e mercadores, e analisa
a influncia destas ligaes nos desenvolvimentos polticos19.
Enquanto tema autnomo, os estudos dedicados supresso do Cristianismo
deram os primeiros passos a partir da dcada de 1920, pela mo de Anesaki Masaharu.
O autor foi ainda responsvel pela disponibilizao de documentao nipnica
fundamental histria da perseguio dos cristos no Japo: documentos produzidos no
mbito do exerccio do cargo de shumn aratame yaku (uma espcie de inquisidor que
tinha por misso vigiar o cumprimento da proibio do cristianismo); material disperso
em arquivos nipnicos que evidenciam prticas religiosas realizadas pelos cristos que
se mantiveram crentes de modo oculto; ou ainda literatura crist redigida em japons
sobre o martrio20. Hubert Cieslik tambm contribuiu para o tema com vrios artigos
tratando algumas figuras da misso (Pedro Kasui, Sebastio Kimura e Cristovo
Ferreira)21. A investigao ganhou novo impulso com a obra Deus Destroyed, na qual
Jurgis Elisonas examina os mecanismos intelectuais explorados pelos Tokugawa com
vista a denegrir a imagem do cristianismo (uma f perniciosa) ao ponto de erradic-lo
do Japo. Elisonas publica e analisa tratados eruditos (redigidos por monges budistas e
intelectuais ligados ao neo-confucionismo) e panfletos de propaganda popular22.
15 James L. McClain, Japan. A Modern History, W. W. Norton & Company, 2002. 16 Mary Elizabeth Berry, Hideyoshi, Cambridge Mass.-Londres, Harvard University Press, 1982. 17 Conrad Totman, Tokugawa Ieyasu: Shogun, Heian, 1983. 18 Jeroen Lamers, Japonius Tyrannus. The Japanese Warlord. Oda Nobunaga Reconsidered, Leiden,
Hotei Publishing, 2000. 19 A partir do ano de 1991 George Elison retomou a grafia lituana do seu nome, Jurgis Elisonas. Jurgis
Elisonas, Christianity and the daimyo in CHJ, vol. IV, Early Modern Japan, John Whitney Hall
(coord.), Cambridge, Cambridge University Press, 1991, pp.301-372. 20 O nmero de publicaes por Anesaki Masaharu nesta matria muito extenso. Veja-se Bibliografia. 21 Hubert Cieslik, The Great Martyrdom in Edo, 1623. Its Causes, course and consequence in
Monumenta Nipponica 10 (1955), pp.81-98. Idem, Sel. Sebastian Kimura (1565-1622): der erste
japanische Priester Neue Zeitschrift fr Missionswissenschaft (15) 1959, pp.81-98; Idem, P. Pedro
Kasui (1587-1639) der letzte japanische Jesuit der Tokugawa-Zeit Monumenta Nipponica 15 (1960),
pp.35-86. Ibidem, The case of Christovo Ferreira Monumenta Nipponica 29 (1974), pp.1-54. 22 George Elison, Deus Destroyed. The Image of Christianity in Early Modern Japan, Cambridge-
London, Harvard University Press, 1991. Uma abordagem mais resumida mas seguida da publicao de
6
Actualmente j possvel diferenciar vrias linhas de investigao centradas
especificamente em matrias relativas supresso do Cristianismo. hashi Yukihiro
tem desenvolvido a questo enquadrando a problemtica no mbito do estabelecimento
da ordem social e estatal do Japo Tokugawa23; Peter Nosco tem abordado o
Cristianismo partindo das directivas do regime para com as restantes religies24; mais
recentemente, Kiri Paramore publicou Ideology and Christianity in Japan onde, na
esteira do trabalho de Elisonas, analisou o discurso anticristo em momentos distintos
do desenvolvimento do regime Tokugawa (instituio e transio Meiji),
perspectivando deste modo o contributo dessas construes na formao do Estado
moderno e contemporneo nipnico25.
A presente dissertao pode ser enquadrada nesta historiografia dedicada s
prticas anticrists. Porm, ao contrrio dos estudos referidos, apenas faz uso de
documentao nipnica a ttulo complementar, e quando esta est traduzida para lnguas
ocidentais. As prticas anticrists so agora analisadas a partir da documentao
redigida pelos missionrios, os mesmos que eram perseguidos por um poder poltico
que se formava a partir da oposio poltica e social ao Cristianismo. Valdemar
Coutinho descreveu as informaes contidas nos textos redigidos pela Companhia de
Jesus sobre a perseguio aos cristos, tratando-se do nico trabalho sobre esta matria
em lngua portuguesa26. objetivo do presente estudo alargar o espectro da anlise,
incluindo tambm a informao contida nos relatos redigidos por membros das ordens
mendicantes.
Ora, a descrio destas prticas anticrists a circular na Europa sob a forma de
texto impresso suscita questes relacionadas com estratgias de propaganda,
empreendidas, mediadas e alimentadas pelas ordens missionrias, que se encontram por
formular. De facto, a supresso do Cristianismo no Japo enquanto estratgia editorial e
poltica na Europa no foi at ao momento objecto de uma avaliao crtica. Na presente
dissertao procura-se assim seguir uma abordagem que tem vindo a ser desenvolvida a
documentao encontra-se The Evangelic Furnace: Japans First Encounter wit the West in Sources of
Japanese Tradition, vol.II abr., Part One 1600 To 1868, Wm. Theodore de Bary, Carol Gluck, Artur E.
Tiedemann (dir.), Nova York, Columbia University Press, 2006, pp.127-157. 23 hashiYukihiro, Orthodoxie, htrodoxie et Kirishitan: maintien delordre et prohibition du
Christianismo dans le Japon moderne, Histoire & Missions Chrtiennes, n 11, Septembre 2009, p.131. 24 Peter Nosco, Early Modernity and the States Policies toward Christianity in BPJS, 7 (2003), p.20 25 Kiri Paramore, Ideology and Christianity in Japan, Nova York, Routledge, 2009. 26 Valdemar Coutinho, O Fim da Presena Portuguesa no Japo, Sociedade Histrica da Independncia
de Portugal, 1999.
7
propsito dos mrtires resultantes do conflito religioso que deflagrou na Europa de
Quinhentos e se prolongou por Seiscentos. Brad S. Gregory apresenta uma viso global
dos textos publicados a este propsito por todas as confisses religiosas27, Dickens e
Tonkin28, e Frank Lestringant29 tm prosseguido na anlise acentuando a relao entre
estratgias editorial e poltica.
Limites cronolgicos
Tendo em conta que se procura estudar as prticas anticrists a partir de uma
tipologia documental especfica o texto impresso as barreiras cronolgicas foram
definidas pela conjugao de duas variveis distintas: o desenrolar das prticas
anticrists no Japo e a recepo e impresso dessas notcias na Europa. Analisa-se
assim o designado primeiro perodo da perseguio, que vai desde o primeiro acto de
hostilizao aos nipnicos convertidos at ao estabelecimento da poltica de excluso
nacional, (sakoku) que os conduziu clandestinidade.
Em 1597, ocorreu a primeira execuo de cristos no Japo. Toyotomi
Hideyoshi, o autor do decreto, governava o arquiplago desde a morte de Oda
Nobunaga (1582), tendo consolidado e prosseguido o trabalho do seu antecessor no que
se refere unificao territorial e imposio da autoridade: primeiro pela fora das
armas, depois atravs de uma abrangente reforma administrativa que visava o controlo
efectivo da sociedade e manuteno da ordem. Sob o pretexto de garantir o bem pblico
(kgi), Hideyoshi decretou vrias medidas, como a obrigatoriedade de realizao de
censos e a recolha de armamento e estabeleceu regras de controlo comunitrio
(goningumi), que permitiram um melhor controlo sobre a populao. Uma srie de
atitudes protagonizadas por cristos, interpretadas como expresso de uma ambio
poltico-militar, explica a alterao da atitude de Hideyoshi, que passou de
condescendente a perseguidor. O assunto foi amplamente divulgado na Europa em
textos que comearam a ser impressos no ano de 1598. Esta , por isso, a data de incio
do estudo das notcias publicadas sobre o Japo na Europa.
27 Brad G. Gregory, Salvation at Stake. Christian Martyrdom in Early Modern Europe, Cambridge Mass.-
Londres, Harvard University Press, 1999. 28 A. G. Dickens, John Tonkin, Dickens, The Reformation in Historical Thought, Oxford, Basil
Blackwell, 1985. 29 Frank Lestringant, Lumire des Martyrs: Essai sur le Martyr au Sicle des Rformes, Paris, Honor
Champion diteur, 2000.
8
Em 1600, a vitria de Tokugawa Ieyasu na batalha de Sekigahara (na qual as
foras Tokugawa atacaram os apoiantes do sucessor Toyotomi), dava incio a um novo
regime que se caracterizou pelo autoritarismo e pela intolerncia face aos
comportamentos considerados desviantes, entre os quais, se passou a enquadrar a
profisso do Cristianismo. Os Tokugawa empenharam-se na imposio de sistemas de
controlo social e poltico que se repercutiram na Cristandade nipnica, primeiro numa
srie de constrangimentos, depois na punio dos transgressores. Ainda assim, alguns
religiosos mantiveram-se ocultos no territrio continuando a reportar a sua actividade
atravs de notcias que circulavam por via dos mercadores portugueses e castelhanos.
Sem a presena de um poder institucional europeu que os protegesse, o relacionamento
entre comerciantes e missionrios era portanto particularmente estreito. Por isso, num
primeiro momento a recepo de textos de religiosos na Europa no sofreu alteraes,
sendo condicionada pela clandestinidade dos missionrios que permaneceram no
territrio. O revs na circulao deste tipo de textos na Europa deu-se aps a expulso
dos mercadores, primeiro dos castelhanos (1623), mais tarde dos portugueses (1639).
certo que os holandeses, que negociavam no Japo de modo contnuo desde 1609, foram
autorizados a permanecer em solo nipnico mas, ainda assim, agora confinados ilha
artificial de Deshima (1640). Para alm deste constrangimento, os holandeses no
tinham qualquer interesse proselitista e estavam empenhados, pelo contrrio, na
destruio da cristandade local ligada Igreja Romana30 enquanto estratgia de
obteno do exclusivo comercial na rea.
Pode afirmar-se que em 1644 j no restavam missionrios clandestinos no
Japo. O chamado Primeiro Grupo Rubino, que desembarcara em Chikuzen em Julho
do ano anterior, tinha sido imediatamente capturado. O relato do acontecimento,
impresso em 1652, naquela que dever ter sido a primeira a edio europeia (Roma),
encerra um captulo do discurso missionrio sobre as prticas anticrists. Essa a razo
pela qual o ano de 1652 o termo cronolgico deste estudo, apesar da ausncia de
informaes precisas sobre as prticas anticrists ser anterior. Quando em 1660 sai
impresso o volume da obra do jesuta Daniello Bartoli (1608-1685), dedicado em
exclusivo ao Japo, a abordagem j assumidamente retrospectiva, uma exposio
sobre o que tinha sido a presena da congregao naquele territrio (neste caso em
30 Joo Paulo Oliveira e Costa, op.cit., p.771.
9
particular desde 1570 at expulso de 1640)31. Trata-se claramente de uma nova linha
discursiva, que se tornou dominante. Embora importante, por ser o resultado da
reutilizao de informao compilada durante um sculo e meio de contacto entre o
Ocidente e Japo, merece, por isso, uma abordagem especfica que no se enquadra no
presente estudo.
Metodologia
As prticas anticrists estiveram na origem de uma vasta documentao
impressa por missionrios. Adoptou-se uma abordagem epistemolgica abrangente que
procura questionar os vrios nveis de representao contidos no impresso32. Para este
efeito coligiu-se um repertrio bibliogrfico, onde foram compilados todos os ttulos
com referncia ao Japo ou a topnimos e antropnimos nipnicos desde que de autoria
religiosa, fossem ordens missionrias ou membros da hierarquia eclesistica, impressos
na Europa. Cientes das lacunas presentes em todos os trabalhos de inventariao,
procurmos que o presente reportrio fosse to exaustivo quanto possvel. Nesse sentido
procedeu-se ao confronto de informao de diversas provenincias, um trabalho moroso
que permitiu, em contrapartida, detectar erros, esclarecer dvidas e apresentar no final
um repertrio que consideramos descrever um quadro muito prximo da realidade
tipogrfica sobre o Japo preservada na actualidade. As obras catalogadas constituem
uma amostra bastante exaustiva da realidade que resultou da consulta directa de
catlogos de bibliotecas bibliotecas nacionais dos pases em estudo e arquivo das
ordens religiosas em estudo de catlogos de textos impressos, bem como bibliografias
especializadas nas questes referentes ao Japo, e nos assuntos das ordens religiosas em
estudo.
Os textos publicados sobre o Japo so analisados ao nvel descritivo, enquanto
testemunho de uma realidade emprica. Os textos impressos baseiam-se essencialmente
em factos, mas estes foram coligidos e descritos de forma a construir uma retrica
estratgica. O seu discurso , por isso, tambm analisado na perspectiva da formulao
de representaes. A escrita do impresso traduz muitas vezes um olhar etnocntrico
31 A verso definitiva da obra de D. Bartoli foi publicada em Roma, em 1667, sendo que pouco diferencia
do original 32 Stuart B. Schwartz, Introduction in Implicit Understandings. Observing, Reporting, and Reflecting
on the Encounters between Europeans and Other Peoples in the Early Modern Era, dirg. Stuart B.
Schwartz, Cambridge University Press, 1994 (1995).
10
sobre o Japo, ali avaliado atravs das categorias mentais de quem o olha e, por isso
mesmo, reveladora da identidade de quem o redigiu33. Mas esse discurso no se limita
a ser um espelho cultural, social e imaginrio de quem o escreveu. O Japo e os
nipnicos surgem tambm descritos e analisados como o outro, fazendo do impresso
uma manifestao do chamado primeiro orientalismo. Segue-se aqui a interpretao
de C. R. Boxer, que classificou desta forma os textos redigidos no contexto da expanso
portuguesa dos sculos XVI-XVII que davam a conhecer aos europeus as civilizaes
asiticas34. O termo, contudo, remete de imediato para a obra Orientalism de Edward
Said. Porm, a abordagem deste autor tem por base a realidade de projectos
colonizadores em que as potncias europeias instrumentalizaram o conhecimento sobre
o Oriente com vista a legitimao do domnio imperial europeu35, o que no encontra
paralelo com a situao vivida pelos missionrios no Japo seiscentista. Por ltimo, o
texto impresso ser avaliado no jogo de interesses que se desenrolava na Europa entre
ordens religiosas, poderes polticos e Cria Romana, isto , enquanto veculo de uma
estratgia de produo e de publicitao.
De forma a proceder-se a estes vrios nveis de anlise, a dissertao foi
estruturada em quatro captulos.
No primeiro e segundo captulos analisa-se a evoluo do discurso das prticas
anticrists traado por aqueles que foram objecto de perseguio. Como se afirmou, a
srie de textos impressos que constituem objecto de anlise da presente dissertao
abrange um perodo de grande mudana no que se refere aos desenvolvimentos polticos
ocorridos no Japo e, consequentemente, s caractersticas que a presena missionria
assumiu no territrio. Em 1598, sob a gide de Toyotomi Hideyoshi, o Japo transitou
de um contexto caracterizado por lutas militares e total fragmentao de poder, para
uma nao unificada. At ao ano de 1652, termo do perodo cronolgico que se analisa,
o Japo foi governado pelos trs primeiros xoguns do regime Tokugawa: Ieyasu
33 Steven L. Rosen mostra como na actualidade uma srie de paradigmas continuam a projectar-se no
relacionamento entre ocidentais e o Japo. Steven L. Rosen Japan as Other: Orientalism and Cultural
Conflict in Intercultural Communication, 4 (2000). http://www.immi.se/intercultural/. 34 Assunto discutido por Diogo Ramada Curto em Introduo Opera Minora II. Orientalismo, editado
por Diogo Ramada Curto, Fundao Oriente, 2002, pp.xvii e ss. Antnio Manuel Hespanha segue a
mesma denominao, e define esse primeiro orientalismo como um elemento marcante do sistema de
produo de um saber colonial portugus no perodo anterior ao sc. XVIII in O Orientalismo em
Portugal (sculos XVI-XX), Antnio Manuel Hespanha (coord.), Lisboa, Comisso Nacional para as
Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p.19. Sobre esta questo veja-se ainda Rosa
Perez Introduo in Os Portugueses e o Oriente. Histria, Itinerrios, Representaes, Dom Quixote,
2006. 35 Rosa Maria Perez, op. cit., p.20.
11
(r.1600/1603-05), fundador do regime, proclamado xogum em 1603; o seu filho
Hidetada, (r. 1605-23); e o seu sucessor, Iemitsu, (1604-1651, r.1623-1651), filho do
segundo e neto do primeiro. O perodo compreende o processo de consolidao de um
regime recm-criado, que emergira, como se afirmou, aps um longo e conturbado
perodo de instabilidade. O objectivo primordial dos Tokugawa foi garantir a paz e a
durabilidade do regime. Se inicialmente o Cristianismo constitua uma hipottica
ameaa poltica, acabou por ser encarado, face ao quadro organizacional estabelecido,
como um factor de desestabilizao social, que por isso tinha de ser erradicado. Nestes
dois primeiros captulos escrutina-se o relato missionrio sobre a perseguio e a
punio vivida pelos cristos japoneses e pelos prprios religiosos. possvel
identificar uma evoluo da atitude do regime e das prticas anticrists? A punio dos
cristos diferenciou-se no contexto do sistema punitivo nipnico? O impresso constitui
de alguma forma uma fonte de informao, ou limitou-se a encerrar um discurso
valorativo da actividade missionria e dos padecimentos sofridos, que interessava
divulgar enquanto tal na Europa? Por ltimo, em que medida este discurso sobre a
punio influenciou a imagem de barbaridade que foi colocada aos nipnicos em
Oitocentos?
No terceiro captulo analisam-se as condicionantes desse discurso de propaganda
que encerra o impresso. O discurso produzido pelos missionrios traduz uma construo
intelectual e uma representao do Japo em geral e dos cristos japoneses em
particular, influenciada por categorias mentais europeias. Porm, o texto impresso em
anlise no dominado pelas vises de alteridade. A escrita missionria baseia-se na
analogia, representando um outro aculturado. Os missionrios descrevem com
bastante detalhe as atitudes dos japoneses face ao seu destino, e apresentam o converso
como um indivduo que se afirma sempre (ou na maioria dos casos) disposto a morrer
mrtir. Mas em que medida estes comportamentos, embora descritos na perspectiva
crist, no so representaes dos modelos e das tradies da sociedade nipnica, de
cunho marcadamente marcial e honorfico? Por outro lado, seguindo esta representao
das prticas anticrists nipnicas a perseguio dos cristos japoneses, a execuo das
penas, a relao de mortes sob a classificao de martrio e a misso nipnica
apresentada como uma Igreja Primitiva renovada, em que medida este discurso no visa
ir ao encontro da espiritualidade barroca?
12
O ltimo captulo trata do movimento editorial, tendo em vista discernir
estratgias de impresso. O mrtir correspondia a um dos arqutipos de santo
reconhecido pela Igreja Catlica e o discurso impresso sobre o Japo encaixava na
perfeio no movimento renovador que absorvia ento a Igreja Catlica ps-tridentina
que exaltava os santos em vida (em carne ou em memria)36. Os textos impressos tm
de ser por isso avaliados no contexto do movimento renovador que absorvia ento a
Igreja de Roma. Porm, nem todos os textos publicados relativos misso nipnica
foram redigidos por missionrios a trabalhar no Japo. No se tratou assim de uma
simples consequncia do dito de expulso dos religiosos nem da sua dificuldade
crescente em permanecer no territrio num contexto de intensa perseguio aos cristos,
nem de uma estratgia nica. Ao longo de todo o perodo analisado, jesutas e
mendicantes a residir noutras paragens (Macau, Manila, Mxico ou Europa) tomaram
tambm a iniciativa de redigir e publicar textos sobre a misso nipnica. A existncia
simultnea de diversos contextos de produo indicadora de projectos distintos que,
no descurando a inteno apologtica no mbito do movimento renovador da Igreja,
parecem responder a interesses particulares de certos grupos. Quais? O compromisso da
Monarquia Catlica junto do Papado em prosseguir e manter o seu imprio sob o
imperativo da evangelizao? A luta das ordens missionrias envolvidas na missionao
no Extremo Oriente?
Do mesmo modo que no Japo Tokugawa emerge um discurso anticristo que
visa consolidar uma poltica interna, na Europa publicado um discurso centrando no
anticristianismo nipnico que visava consolidar estratgias. Pelo estudo deste legado
europeu relativo ao Japo do sc. XVII, que resulta e se enquadra na expanso
portuguesa, procura-se dar um contributo para a histria do Japo e para a histria do
catolicismo europeu.
O Japo e a Europa seiscentista
O sculo XVII foi um tempo de profundas mudanas, quer para o Japo, quer
para Europa. Nos dois territrios a reorganizao poltica, social e religiosa abarcou
toda a sociedade. Procura-se aqui traar as linhas gerais destes processos histricos to
36 R. Po-Chia Hsia, The World of Catholic Renewal 1540-1770, Cambridge, Cambridge University Press,
1999 [1998], p.105.
13
vastos quanto complexos e distintos, assim enquadrando o estudo sobre os textos
missionrios impressos na Europa da poca sobre o Japo.
chegada dos mercadores portugueses (1523/1543), o Japo era um pas
assolado por guerras civis. Desde 1467 que a corte imperial e o bakufu, isto , o governo
militar chefiado pelo xogum, tinham perdido a sua autoridade. De facto, h muito tempo
que o imperador no exercia um poder poltico efectivo, gozando apenas de um
prestgio simblico. Quanto ao governo do xogum e dos seus oficiais, este tornara-se
incapaz de travar a guerra civil entre guerreiros menores, os sengoku daimy.
Alguns anos aps a chegada dos portugueses, a partir de 1560, Oda Nobunaga,
tambm ele dimio, comea a destacar-se no processo de reunificao militar, iniciando
a sua caminhada em direco Miyako, sede do xogunato e da corte imperial. A presena
de mercadores portugueses e de missionrios jesutas, em Kyushu, em nada colidia com
as ambies do guerreiro; antes proporcionaram bens e conhecimentos exticos de que
ambos tiraram partido. O sucessor de Oda, Toyotomi Hideyoshi, prosseguiu as
campanhas militares at que, entre 1582 e 1587, conseguiu unificar toda a regio do
Kinai, as ilhas de Shikoku e de Kyushu. Ficaram por se render sua autoridade algumas
provncias no norte do arquiplago, o que por fim viria a acontecer em 1591. Senhor do
Japo, at 1598, data da sua morte, Hideyoshi levou a cabo reformas administrativas
que lanariam as bases de um governo poltico centralizado e de que se destaca um
sistema de vassalagem em que todos guerreiros passaram a estar submetidos sua
prpria autoridade militar hegemnica. Foi ento j neste contexto que foi proclamado o
primeiro dito de expulso dos missionrios (1587) e ocorreu a primeira execuo de
cristos (1597).
Em 1603, a imposio da casa Tokugawa conduziu a uma mudana de regime. O
novo xogum, Tokugawa Ieyasu, reforou ainda mais a autoridade hegemnica do
governo militar. Ieyasu impos um sistema que representava o retorno diarquia poltica
bakufu e casa imperial modificando, contudo, o sistema de governo do Japo37. A
37 Seguimos as informaes de John Whitney Hall The bakuhan system in CHJ, vol. IV, Early Modern
Japan, John Whitney Hall e James McClain (dirig.), pp.128-182; Harold Bolitho, The han, in ibidem,
pp.183-234; Jurgis Elisonas, Christianity and the daimyo, op. cit., pp.343-372; Shinzabu ishi The
Bakuhan System in Tokugawa Japan. The Social and Economic Antecendents of Modern Japan, Chie
Nakane e Shinzabur ishi (dirig.), Tokyo, University of Tokyo Press, 1990, pp.11-36.
14
organizao poltico-administrativa passou a assentar no sistema bakuhan38, assim
designado por conjugar dois nveis de poder, o xogunato, sede da autoridade
governativa controlada pelos Tokugawa, e os dimios, guerreiros e senhores de um
vasto territrio (han) que administravam com uma autonomia significativa, sobretudo
no que se refere cobrana de impostos e ao exerccio da justia local. Tokugawa
Ieyasu fixou ainda as funes e prerrogativas da corte imperial e, fazendo uso da
expresso utilizada por Ikegami Eiko, domesticou os dimios39. Para este efeito,
recorreu exigncia de votos de lealdade constantes, sujeio Buke Shohatto, cdigo
regulador da casa dos guerreiros, imposio de um nico castelo por domnio, meios
estes que utilizou para impor a centralizao poltica, tornando o bakufu autoridade
hegemnica. Todavia, o regime Tokugawa no era a autoridade militar suprema do
Japo, j que no controlava a totalidade do territrio apenas cerca um tero do
territrio se encontrava sob a administrao do bakufu embora inclusse os principais
portos (Nagasaki e Sakai) centros urbanos (Miyako, Edo e Osaka).
Tokugawa Hidetada, sucessor de Ieyasu no bakufu, aps a morte do seu pai, em
1616, levou ainda mais longe a consolidao do seu poder, centrando-se para este efeito
na regulao das relaes do Japo com o exterior e na poltica anticrist. Mais tarde,
quando em 1623 Tokugawa Iemitsu assumiu o cargo de xogum, a supremacia do bakufu
era j um facto mas que no garantido. certo que a lealdade e obedincia dos dimios
eram j para com o bakufu e no, como desde o tempo de Oda Nobunaga, para com um
guerreiro hegemnico. Apesar desta mudana de paradigma, para que o bakufu pudesse
garantir a sua supremacia havia que equilibrar melhor os poderes envolvidos no sistema
bakuhan. Assim se explica que Iemitsu tenha reforado os mecanismos de controlo
poltico, levando ainda mais longe a centralizao do sistema de governo e a autoridade
sob os dimios. Em concreto, o cdigo Buke Shohatto aumentou o nmero de proibies
relativas aos dimios por exemplo s podiam casar com consentimento do bakufu, no
podiam fazer reparaes no castelo do domnio sem a sua autorizao e foi-lhes
imposto o regime de residncia alternada em Edo (sankin ktai), o que obrigava os
senhores dos domnios a participar nos rituais no palcio xogunal. Alis, esta obrigao
38 O vocbulo emergiu na historiografia ps II Guerra Mundial, resulta da conjugao dos termos baku
(de bakufu, o governo central) e de han. 39 Ikegami Eiko, The Taming of Samurai. Honorific Individualism and the Making of Modern Japan,
Londres, Havard, University Press, 1995.
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hoje comumente considerada a medida mais eficaz na estratgia de controlo destes
importantes guerreiros.
A autoridade do bakufu foi tambm reforada nos domnios territoriais. Por
exemplo, o julgamento de alguns crimes passaram a estar adstritos a oficiais do bakufu e
foi criado um tribunal central para os julgar (hyjsh)40. tambm neste crescente
processo de centralizao que se insere a perseguio generalizada aos cristos
fazendo dela uma poltica do xogunato , a expulso dos mercadores castelhanos e
portugueses, e dos missionrios ao servio do Padroado Portugus do Oriente e do
Patronato Real, o controlo rigoroso das relaes com o exterior (sakoku), em suma, a
sua poltica isolacionista. Iemitsu criou assim novos mecanismos de centralizao e
autoritarismo que acabaram por permitir a longa durao do regime Tokugawa 200
anos.
A poltica dos trs primeiros xoguns alterou profundamente o regime poltico
japons, criando um sistema que se caracterizou pelo autoritarismo e pelo centralizao,
embora o bakufu no fosse um poder absoluto. Na verdade, os dimios conservaram
sempre um certo grau de autonomia, controlando e intervindo no quotidiano das
populaes, estipulando, por exemplo, o que podiam comer ou vestir, cobrando
impostos e garantindo o policiamento. Os senhores dos domnios eram tambm a
primeira instncia judicial do territrio; porm, as suas prerrogativas judiciais estavam
sob a vigilncia do bakufu, o qual, em ltima anlise, podia retirar ou no confirmar a
posse do dimio no respectivo domnio.
Tambm na Europa se vivia uma guerra endmica desencadeada pela ciso
religiosa41. Quando em 1517 Martinho Lutero protestou contra os abusos da Cria
Romana, era difcil de prever as consequncias religiosas e polticas que tal gesto viria a
ter. Com propsitos reformistas, surgiu em poucas dcadas a Igreja Luterana, seguida,
mais tarde, pelos Calvinistas.
O reformismo Protestante mergulhou a Europa em inmeros conflitos. No Sacro
Imprio Romano as disputas entre catlicos e protestantes estenderam-se at 1555, data
40 Seguimos as informaes em CHJ, vol. IV, Early Modern Japan dirig. por John Whitney Hall e James
McClain, p.159, p. 195, p.200. 41 R. Po-Chia Hsia, The World of Catholic Renewal 1540-1770, Cambridge, Cambridge University Press,
1999 [1998]; David Sturdy, Fractured Europe 1600-1721, s. l., Blackwell, 2002; Antnio de Oliveira, D.
Filipe III, Lisboa, Crculo de Leitores, 2005. Historia de Espaa, Manuel Tun de Lara, Julio Valden
Baruque e Antnio Domnguez Ortiz (dir.), Barcelona, Editorial Labor, 1991.
16
da assinatura da Paz de Augsburgo. O acordo tinha por base a aceitao da multi-
confessionalidade nos territrios e estabelecia certos princpios de modo a evitar futuros
conflitos. Um deles era a aceitao de que a religio dominante em cada um dos
territrios do Sacro Imprio Romano era a religio dos respectivos sbditos. Este
princpio aplicava-se apenas a catlicos e luteranos pois os calvinistas no eram ainda
reconhecidos. Determinava-se ainda que nas cidades imperiais onde o nmero de
seguidores catlicos igualava o de luteranos haveria liberdade de culto. Em Frana
Henrique IV (r. 1589-1610) tinha conseguido pr cobro ao conflito entre catlicos e
calvinistas (os huguenotes) sagrando-se como rei catlico e publicando o dito de
Nantes (1598). Porm, este dito tinha um alcance mais limitado pois, ao contrrio da
Paz de Augsburgo, apenas autorizava que os calvinistas gozassem de liberdade de culto
em alguns territrios do reino de Frana. Nos Pases Baixos, as provncias que
desejavam separar-se de Espanha criaram a chamada Unio de Utrecht (1579), numa
revolta simultaneamente contra o domnio de Filipe II e contra as perseguies dos
catlicos aos calvinistas. Algumas das provncias permaneceram fiis Monarquia dos
ustrias - os Pases Baixos Espanhis tornaram-se no conclave catlico da regio, que
inclua os condados da Flandres, de Hainault e de Artois, e os ducados de Brabante e do
Luxemburgo.
Sob a presso reformista, Roma reagiu tardiamente convocando o Conclio de
Trento que decorreu entre 1545 e 1563. Deste conclio saiu a condenao das doutrinas
Luterana e Calvinista e excluiu-se qualquer possibilidade de compromisso com o
Protestantismo. Tambm a se deu corpo ofensiva catlica promovendo uma
renovao religiosa que passava no s pela disciplina religiosa, mas tambm pela
evangelizao. A Companhia de Jesus, nascida dos combates entre catlicos e
protestantes, desempenhou um papel preponderante no projecto proselitista catlico,
desenvolvendo uma intensa actividade missionria nos territrios protestantes.
Em 1618 reiniciaram-se as hostilidades entre as confisses religiosas que seriam
agravadas pela crescente popularidade do Calvinismo. De novo, s motivaes
religiosas aliaram-se interesses polticos, acabando por originar conflitos militares.
Assim se explica, entre 1618 e 1648, a Guerra dos Trinta Anos um conflito aberto entre
protestantes e catlicos que envolveu quase todos territrios europeus Sacro Imprio
Romano, Sucia, Dinamarca, Inglaterra, Frana e alguns territrios italianos como
Mntua.
17
Nada do que at aqui se descreveu acabou com os conflitos religiosos, nos quais
nenhum dos monarcas da Europa assumiu a defesa do catolicismo como os Filipes de
Espanha o fizeram. Filipe II (r.1556-1598), ao criar para a Monarquia Catlica um
destino providencialista, associou de uma forma particular os destinos da Espanha aos
da Igreja Catlica. O seu reinado foi marcado por conflitos polticos e militares de
cunho marcadamente religioso; so os casos das guerras com o Imprio Otomano, com
a Inglaterra e com os sbditos dos Pases Baixos. Durante o governo do seu neto, Filipe
IV (r.1621-1665) entrou-se num perodo de tal modo conflituoso que todos os recursos
foram canalisados para a guerra razo pela qual a historiografia se refere neste perodo
a uma economia de guerra , sempre levada a cabo sob o estandarte do catolicismo.
Em 1621, depois de algum tempo de paz (1609-1621), o jovem monarca reabriu as
hostilidades com as Provncias Unidas sob o argumento de que as trguas tinham sido
assinadas em termos humilhantes, pois no tinha ficado garantida a liberdade de culto
dos catlicos nas regies sob o domnio protestantes. No mesmo ano, Filipe IV
envolveu-se ainda na Guerra dos Trinta Anos. No incio desta poltica intervencionista,
entre 1625-1626, Filipe IV saiu vitorioso a ponto de ter granjeado o cognome de o
Grande. Mas a mesma poltica acabaria por culminar na Paz de Vesteflia, assinada em
1648, com a Espanha destruda e derrotada. A pretenso espanhola de dominar uma
Europa catlica fora em vo: em Vesteflia foi declarada a independncia das
Provncias Unidas, foram reconhecidos os Calvinistas e restabelecido a regra enunciada
na Paz de Augsburgo de que no Sacro Imprio Romano cada unidade territorial
determinava a respectiva religio oficial.
Entre o Japo e a Europa, locais onde ocorriam processos histricos
completamente distintos, circulavam missionrios e mercadores, os protagonistas da
Expanso portuguesa e castelhana42. A chegada dos portugueses ao Japo em 1543 no
foi planeada pela Monarquia de Portugal e o estabelecimento de portugueses no
42 Lus Filipe Thomaz, De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994; e, Sanjay Subrahmanyam, O Imprio
Asitico portugus, 1500-1700. Uma Histria Poltica e Econmica, Lisboa, Difel, 1995. Boxer, C.R.,
The Christian Century in Japan, Manchester, Carcanet Press, 1993. Joo Paulo Oliveira e, O
Cristianismo no Japo e o Episcopado de D. Lus Cerqueira, vols. I e II, dissertao de doutoramento
apresentada na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998
[texto policopiado]. Histria de Portugal, Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonalo
Monteiro (coord.), Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009. Paulo Jorge Sousa Pinto, No Extremo da Redonda
Esfera: Relaes Luso-Castelhanas na sia, 1566-1640. Um ensaio sobre os Imprios Ibricos,
dissertao de doutoramento apresentada Faculdade de Cincias Humanas da Universidade Catlica
Portuguesa, 2010 [texto policopiado].
18
arquiplago, semelhana do que aconteceu em outros lugares da sia Oriental, no se
baseou em estruturas administrativas rgias. A interveno da Coroa limitou-se dcada
de 1570 atravs do sistema de concesso da "viagem do Japo", na figura do capito
da viagem, cuja presena no arquiplago era, contudo, sazonal. Mesmo aps a fundao
de Nagasaki em terrenos cedidos por um dimio local Companhia de Jesus, a
comunidade portuguesa era pouco significativa quando comparada com a dos restantes
portos que garantiam a rede de comrcio do imprio portugus.
Mesmo assim, os membros da Companhia de Jesus foram os primeiros europeus
a viver permanentemente no territrio (a partir de 1545), a permanecendo ao servio do
projecto proselitista da Coroa portuguesa e sob a jurisdio do Padroado Portugus do
Oriente. Foram tambm os jesutas que estabeleceram as bases que permitiram
assegurar a rota martima que fez florescer o porto Macau. O Japo mostrara-se um
territrio bastante favorvel evangelizao pois a guerra civil que assolava o
arquiplago desde 1460 garantia liberdade de aco dos missionrios: se havia dimios
que rejeitavam a sua presena nos respectivos domnios, outros acolhiam-nos de bom
grado. A mesma volatilidade se verificou entre os unificadores do Japo, os quais como
se afirmou olharam para os missionrios, ora como fonte de saber, instrumento de poder
e elo de ligao aos mercadores, ora como entraves expanso da sua autoridade.
A unio ibrica, em 1580, teve impacto em toda a sia portuguesa e tambm no
Japo. A unio dos dois imprios sob a Monarquia Catlica abriu as portas a uma
rivalidade entre portugueses e castelhanos, que estava latente desde o estabelecimento
destes nas Filipinas em 1565. O tratado de Saragoa, que resolvera a indefinio em que
ficara o anti-meridiano no Tratado de Tordesilhas e a Questo das Molucas que foram
entregues a Portugal a troco de uma avultada soma, fora assinado num passado j
longnquo, no tempo de Carlos V e D. Joo III (1529).
Filipe II procurara cumprir o juramento das Cortes de Tomar (1581), isto ,
defender o princpio da exclusividade dos naturais do reino no governo da metrpole e
do imprio portugus, o que era extensvel ao Padroado Portugus do Oriente. Na
prtica, o monarca no conseguiu faz-lo dada a distncia, a sobreposio dos interesses
locais e a complexa burocracia que se instalou com a unio ibrica. De facto, em torno
do rei, chefe de uma Monarquia que congregava vrios reinos, passou a orbitar o
Conselho de Estado e o Conselho da Guerra, rgos de jurisdio geral, bem como
todos os outros conselhos especficos dos governos das unidades polticas que
19
formavam a Monarquia. O sistema de intermediao entre o despacho real e a Coroa de
Portugal e as partes do seu imprio dificultaram em muito a execuo das
determinaes rgias.
Nestas condies, e apesar da navegao e o comrcio entre os extremos dos
dois imprios estar formalmente proibidos, mercadores e missionrios ao servio de
Castela sediados nas Filipinas viram o acesso ao Japo facilitado. Em 1584, mercadores
castelhanos, alegando o facto de a sua embarcao ter sido obrigada a aportar no
arquiplago (Hirado), alcanavam o Japo. Sabendo que os mercadores acabam por
trazer consigo missionrios, os jesutas sob a jurisdio do Padroado Portugus
reagiram de imediato. Nesse momento, os missionrios ao servio do Patronato Real,
isto , sob a jurisdio da Monarquia dos ustrias, j se encontravam a laborar nas
Filipinas: os jesutas desde 1571, os franciscanos desde 1577, os dominicanos desde
1587 e os agostinhos com uma presena mais tardia, de 1606. Em 1585 o papa Gregrio
XIII confirmava o monoplio da evangelizao do Japo aos missionrios jesutas
(breve papal Ex pastorali officio).
Em 1593 os franciscanos Pedro Baptista e Bartolom Ruiz acompanhados de
mais dois religiosos, viajando a partir das Filipinas, estabeleceram-se no Miyako. Esta
iniciativa suscitou de imediato uma enorme reaco por parte dos poderes polticos do
Estado da ndia e das ordens religiosas envolvidas na missionao sob a jurisdio do
Padroado Portugus. Porm, a actuao dos mendicantes no tinha sido totalmente
clandestina. O caminho para a indefinio das reas de misso tinha sido aberto por
Sisto V que, entretanto, elevara So Gregrio das Filipinas a provncia e outorgara-lhe o
direito de missionar em pases asiticos (1586). A ambiguidade desta concesso era
utilizada como argumento para os mendicantes entrarem no arquiplago nipnico.
Acresce ainda que o dito de 1587 de Toyotomi Hideyoshi que expulsava os
missionrios do territrio parecia comprovar a ineficcia da poltica evangelizadora dos
jesutas. Isto acontecia quando se supe que data existissem 170.000 japoneses
convertidos.
Entretanto, outras vicissitudes desestabilizavam a presena missionria no
arquiplago. As potncias do Norte da Europa tinham-se organizado mercantilmente.
Em 1602 as Provncias Unidas criaram a Verenidge Oos-Indische Compagnie (VOC,
isto , Companhia Holandesa das ndias Orientais) e os ingleses a East India Company
(EIC). A sua expanso ultramarina implicava a competio com os mercadores ibricos.
20
Os mercadores holandeses, que tinham em 1600 aportado por mero acaso em Hirado,
regressam em 1610 e a estabelecem a sua feitoria, proporcionando uma alternativa
comercial s rotas ibricas. O regime Tokugawa apreciou a chegada de um novo aliado
que, oferecendo as mesmas vantagens comerciais, no trazia consigo o problema da
religio. De facto, os brbaros ruivos (komojiin), assim denominados por oposio aos
brbaros do sul (nanbanjin) portugueses e castelhanos , faziam questo de mostrar
que no eram movidos por nenhum tipo de proselitismo religioso.
Como se no bastasse a presena efectiva do inimigo poltico e religioso em
terras nipnicas, os portugueses comerciantes e missionrios tiveram ainda de lidar
com os efeitos dos conflitos da Monarquia Catlica com os pases europeus. Mesmo
durante o perodo de trguas assinado entre Filipe III e as Provncias Unidas (1609-
1621), que em teoria era extensvel aos imprios, a guerra manteve-se na sia, tendo as
possesses ultramarinas da Coroa de Portugal sofrido ataques dos inimigos. J antes, em
1605, os holandeses tinham capturado fortalezas portuguesas nas Molucas e, em 1606,
d-se o primeiro grande confronto em Malaca. A partir de ento, a VOC, dada a sua
capacidade para interceptar as ligaes martimas, constitua um obstculo circulao
no Mar da China e no Sudeste Asitico, perturbando o acesso aos mercados necessrios
ao comrcio com o Japo: tambm os ingleses aportaram no Japo, mas no
conseguiram reunir as condies para desenvolver um comrcio rentvel. Por essa
razo, chegados em 1613, abandonam a sua feitoria, tambm em Hirado, em 1623. A
desestabilizao dos tambm hereges ingleses deu-se sobretudo em outras paragens no
Estado da ndia.
Em 1614 era promulgado um novo dito anticristo que remetia definitivamente
os missionrios clandestinidade. Da em diante iniciou-se um perodo de perseguies
que s terminou em 1639 com o fim da presena missionria no territrio. O dito no
resultava apenas de um conflito religioso e do facto de os japoneses entenderem que a
presena dos religiosos prejudicava o processo de unificao. Na verdade, as dinmicas
da perseguio nipnica aos cristos devem ser enquadradas nos j referidos processos
de centralizao e autoritarismo polticos. Primeiro, foram expulsos os castelhanos em
1623, depois, foram expulsos os portugueses em 1639. Ficaram os holandeses, mas nas
condies ditadas pelos Tokugawa pelo xogum, isto , restritos ilha artificial de
Deshima, construda nas imediaes de Nagasaki, com dinheiro de mercadores
portugueses.
21
Em simultneo, a Coroa de Portugal comeava a dar sinais de revolta. O
desgaste do esforo de guerra a que a unio ibrica obrigara, a poltica centralista do
conde de Olivares, valido de Filipe IV, que procurava quebrar o princpio de respeito
pela jurisdio da Coroa de Portugal e pela exclusividade dos portugueses no governo
da metrpole e do imprio redundou na Restaurao em 1640.
Na sia, mercadores e missionrios tiveram de se ir ajustando s polticas dos
Tokugawa e dos governos europeus. Em 1639 o Senado de Macau, na sequncia da
expulso dos mercadores portugueses do Japo, pedia ao Monarca que pusesse cobro s
pretenses de evangelizao no Japo que, apesar de toda a perseguio, continuava a
persistir, prejudicando os interesses comerciais. Em 1640, a reboque da Restaurao,
procurou-se restabelecer o comrcio com o Japo. neste contexto que decorreu a
organizao da primeira embaixada oficial enviada por Portugal ao Japo. O
embaixador Gonalo de Siqueira de Sousa, que partira de Lisboa em 1640, aportou em
Nagasaki em Julho de 1647. Diversas vicissitudes explicam este hiato de tempo,
nomeadamente o debate em Goa e em Macau sobre se o embaixador deveria ou no
afirmar junto o xogum que nunca nenhum comerciante transportaria missionrios.
Tendo Siqueira acabado por no se comprometer, o xogum no recebeu a embaixada e
os dois galees regressaram em Lisboa em 1650, dez anos depois de terem iniciado a
viagem. Em face da determinao nipnica, D. Joo IV no voltou a insistir.
23
Cap. 1 Da tolerncia perseguio: o discurso missionrio sobre
a evoluo da poltica anticrist.
Os relatos de novos martrios comeam usualmente com uma sntese da
histria da misso, das perseguies e martrios precedentes. Poucos destes relatos
contm descries sobre o Japo e do seu povo, e aqueles que as apresentam fornecem
pouca informao inovadora1. Esta afirmao de Donald Lach sobre as notcias
impressas relativas misso jesuta do Japo nem sempre exacta. A informao que
circulava nos textos do sculo XVII relativos ao Japo contrasta fortemente com os
contedos da documentao congnere produzida durante o sculo XVI, repleta de
detalhes sobre a geografia, os costumes, e as realidades polticas e sociais do
arquiplago. Porm, mesmo os impressos seiscentistas relativos ao Japo continuam a
dar informaes sobre a realidade local e sobre o outro. Os exemplos so mltiplos.
Refira-se o grau de pormenor usado na descrio da recepo com a qual, em 1594,
Toyotomi Hidetsugu na qualidade de kanpaku, agraciou o seu tio, Toyotomi Hideyoshi,
que ocupava ento a dignidade de taiko, descrita no seu todo, desde os preparativos aos
cortejos finais, pormenorizando-se as precedncias a respeitar pelos participantes na
recepo, o seu vesturio, as oferendas2; ou refira-se a descrio do aparato cerimonial
aquando da elevao de Tokugawa Ieyasu ao cargo de xogum em 16033. Significa isto
que se manteve a lgica narrativa que sempre presidiu redaco das missivas e que a
menor ateno prestada aos temas seculares nos textos impressos seiscentistas foi
sobretudo consequncia da evoluo poltica, sendo por isso, reveladora da mesma. Na
verdade, em face da hegemonia militar e da progressiva consolidao poltica obtida
pelos Tokugawa, tornou-se menos necessria a descrio da realidade japonesa a qual
1 Donald F. Lach, Edwin J. Van Kley Asia in the Making of Europe, vol. III, A Century of Advance, livro
4, East Asia, Chikago, University of Chikago Press, 1993, p.1842. 2 Na carta nua que compreende os anos de 1594 e 1595 encontra-se a seguinte descrio: era hu das
mais magnificas & reaes que se fazio em Iapo, // & auia j muytos annos que se no tinha feita porque
todos os senhores da Tena morrero, espada sem auer lugar de a renunciar em seus filhos, nem fazer
esta festa: por isso achando se agora Taicosama senhor vniuersal de Iapo, por deixar fama de si desejou
de fazer esta festa & Quambacudono seu sobrinho desejaua muito que se fizesse por ficar com isso mais
autorizado, & entronizado, in Compendio de algvas cartas qve este anno de 97. viero dos Padres da
Companhia de Iesv, que residem na India & corte do gro Mogor, & nos Reynos da China, & Iapo, &
no Brasil em que se contem varias cousas. Collegiadas por o padre Amador Rebello de mesma
companhia, Lisboa, Alexandre Siqueira, 1598, fl.130-131. 3 Carta nua de 1603 redigida por Mateus Couros em Nagasaki a 23 de Novembro de 1604 in Tre lettere
annue del Giappone de gli anni 1603, 1604, 1605 e parte del 1606, mandate dal P. Francesco Pasio, V.
provinciale di quelle parti, al M. R. P. Claudio Acquaviva, Generale della Compagnia di Gieusu, Milo,
Pietro Locarni, 1609, fl.4-6. A edio ser citada em diante Tre lettere annue del Giappone de gli anni
1603, 1604, 1605 e parte del 1606..., seguido da numerao de flio.
24
era agora menos complexa e de mais fcil apreenso, ao contrrio do que acontecera no
sculo XVI, quando no perodo dos sengoku daimy as mutaes eram uma constante.
Contudo, a caracterizao da realidade nipnica, apesar de sucinta, foi sempre suficiente
para a compreenso dos acontecimentos que afectavam a vida dos religiosos e/ou da
comunidade crist:
muerto Taycosama [Toyotomi Hideyoshi], senr de todo Iapon, ao de 1598 dexo
vn hijo nio, llamado Fideyori [Toyotomi Hideyori], y por tutor principal a Dayfusama
[Tokugawa Ieyasu], a quien agora llaman Xogun, seor que era del Quanto [Kanto] y a
otros senres grandes del Reyno, que le ayudassem en el gouierno. Ellos se desunieron
entre si: y el tutor se dio tan buena maa, que en el ao de 1600 se hizo seor de todo
Iapon, llamandose Xogun, o Cubosama4.
Durante o governo de Ieyasu, o Japo mergulhou numa pace vniuersale, merc
del Cub Monarcha di tutto questo stato, il quale lo gouerna con tal prudenza, & ordine
ch tutti sotto l ombra sua viuono quieti e contenti5. Depois, essendo ... morto il
Daif [Ieyasu] Signore vniuersale del Giapone, e succedutogli cos nell Imperio il
Xongn suo figliuolo6, Hidetada. A partir de ento repete-se consecutivamente a
informao de que o imperatore nel Giappone il medesimo ch era lanno passato: lo
stato temporale delle cose lo stesso: le ricchezze accumlate dal Padre dell Imperatore,
e lasciate lui con l Imperio lo rendono ogni giorno pi potente e formidable7. A
tomada de poder por Iemitsu assentou definitivamente o caminho da estabilidade
poltica, e deu novo impulso perseguio. Este tipo de informao tornou-se uma
4 Pedro Morejon, Relacion de la persecucion qve huuo estos aos contra la Iglesia de Iapon, y los
ministros della. Sacada de carta anua, y de otras informaciones authenticas q truxo el Padre Pedro
Morejon, Juan de Larumbe, Saragoa, 1617, fl.254. Em diante esta obra ser citado de forma abreviada
Relacion de la persecucion, seguida da nmerao de flio 5 Carta nua de 1604 redigida por Joo Rodrigues Giro em Nagasaki a 23 de Novembro de 1604 Tre
lettere annue del Giappone de gli anni 1603, 1604, 1605 e parte del 1606..., fl.72. 6 Carta nua de 1618 redigida por Camilo Constanzo no Miyako a 28 de Dezembro de 1618 in Lettere
Annve del Giappone China, Goa, et Ethiopia. Scritte Al M. R. P. Generales Della Compagnia di Gies.
Da Padri dell'istessa Compagnia ne gli anni 1615. 1616. 1617. 1618. 1619. Volgarizati dal P. Lorenzo
delle Pozze della medesima Compagnia, Npoles, Lazaro Scoriggio, 1621, fl.280. A colectnea
compreende vrias notcias. Em diante, e aps a referncia da notcia em concreto, ser citada de forma
abreviada Lettere Annve del Giappone China, Goa, et Ethiopia..., seguida da indicao de flio. 7 Gironimo Maiorca, Relatione dellAnno 1621, Relatione di Alcvne cose Cauate dalle lettere scritte ne
gli anni 1619 1620 & 1621 dal Giappone. Al molto Reu. In Christo P. Mvtio Vitelleschi Preposito
Generale della Compagnia di Giesv, Roma, Herdeiros de Bartolomeo Zannetti, 1624, fl. 154.
25
constante nos impressos sendo usada como uma contextualizao inicial que permitia a
todo o leitor, versado ou no nas questes nipnicas, localizar-se no tempo histrico.
J o reforo do controlo social levado a cabo pelo regime Tokugawa,
consequente do seu emergente autoritarismo, que conduziu perseguio do
Cristianismo, levou os missionrios a descrever detalhadamente os seus efeitos na vida
dos cristos em particular, e na sociedade em geral. O discurso missionrio acerca das
prticas anticrists no sculo XVII compreende a viso do outro, do estrangeiro em
terras nipnicas. Porm no se tem procedido sua anlise, seja para o conhecimento da
forma como os europeus apreenderam a civilizao nipnica, seja enquanto manancial
de informao complementar aos decretos, aos regulamentos e aco de propaganda
plasmada nos discursos representativos dos Tokugawa, que tm sido examinados nos
estudos dedicados supresso do Cristianismo no Japo. Na verdade, a grande mais-
valia dos textos seiscentistas consiste no facto de enunciarem uma realidade que
ultrapassa a formalidade institucional do bakufu.
Pelas razes acima enunciadas, neste captulo, partindo do texto impresso e
seguindo uma abordagem cronolgica, analisa-se a evoluo das prticas anticrists no
seio da sociedade nipnica, a partir de um discurso redigido por agentes no nipnicos,
que foram simultaneamente figurantes e actores no processo da poltica de supresso do
Cristianismo pelos Tokugawa, e que foi objecto. Em bom rigor, os textos que foram
dados estampa acabam por traduzir a viso jesuta desta realidade. Com efeito, uma
vez que as ordens mendicantes no se regiam por uma poltica de impresso contnua,
no produziram informao que permita traar a evoluo, o significado e o impacto
evolutivo destas prticas.
Resultante da informao coligida por missionrios que, apesar de reduzidos a
uma existncia oculta, foram conseguindo manter a sua presena no territrio, o texto
impresso sobre as prticas anticrists traduz a realidade local de forma continuada. Esta
documentao testemunha o empenho dos jesutas em divulgar a resposta das
autoridades aos actos que no mbito da poltica nipnica constituam uma transgresso,
mas que do ponto de vista dos religiosos eram evidncia da perseverana crist. Nas
perspectivas que dominam a investigao sobre a poltica anticrist dos Tokugawa,
umas mais direccionadas para as estratgias desenvolvidas pelo bakufu com vista a
solucionar o problema do Cristianismo, outras centradas em martrios especficos,
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sobretudo nas grandes execues pblicas ou na biografia das vtimas8, as prticas
anticrists so referidas num quadro de procedimentos e polticas uniformes. Porm, o
texto missionrio impresso revela o contrrio e diversas particularidades que
evidenciam a sua valncia enquanto fonte histrica: a perseguio no foi constante, no
foi generalizada e no foi indiferenciada. Por isso, no que s prticas anticrists se
refere, o facto de se tratar de informao impressa, logo objecto de uma seleco com
vista a responder a interesses (como se ver noutro captulo), no constitui um bice
reflexo que aqui se prope.
1.1. Antes do Decreto de Perseguio Generalizada (1614).
Em 1598 publicou-se na Europa a primeira notcia de um martrio realizado no
arquiplago nipnico9. Trata-se da obra de Francisco Telo, Relacion qve Don Francisco
Tello gouernadore Y capitan general de las Philipinas embio de seis frayles espaoles
de la Orden de san Frcisco, que crucificaron los del Iapon, este ao proximo passado
de 1597. Con otras vente personas Iapones, que murieron juntamente c ellos animados
por los antos frayles y conuertido a sua predicacion, que foi publicada em Sevilha.
Nesse mesmo ano morria Toyotomi Hideyoshi, que ordenara aquela que foi a
primeira execuo pblica de um grupo de cristos em Fevereiro de 1597. Decorrera
uma dcada desde que o guerreiro dera o seu primeiro sinal de intolerncia face ao
Cristianismo. A 24 de Julho de 1587, Hideyoshi emitira um decreto que proibia os
missionrios de residir no arquiplago e desterrava-os, a pretexto da necessidade de
banir uma religio que, por ser proslita e exclusivista, promovera a perseguio
efectiva das tradies religiosas nipnicas10. De facto, os missionrios, desde o primeiro
8 Sobre a extensa bibliografia sobre a matria veja-se a Introduo. 9 Logo nesse ano o texto foi igualmente publicado em Granada, Roma, Bolonha. No ano seguinte surgiu
traduzido e editada em Paris, Munich e Lyon. 10 No perodo dos sengoku daimy foram emitidos decretos similares, nomeadamente pela instituio
imperial. Porm, a fragmentao poltica poca no permitiu a sua aplicao escala nacional. Uma
verso resumida do dito de 1587 encontra-se publicado na edio Segunda parte das cartas de Iapo que
escreuero os padres, & irmos da companhia de IESVS, Manuel de Lyra, vora, 1598, fl.208v; para
uma verso completa vide J. S. A. Elisonas The Evangelic Furnace: Japans First Encounter with the
West in Sources of Japanese Tradition, vol.II abr., Part One 1600 To 1868, Wm. Theodore de Bary,
Carol Gluck, Artur E. Tiedemann (dirg.), Nova York, Columbia University Press, 2006, pp.168. A
explicao dos acontecimentos que antecederam a sua emisso, e consequncias da sua promulgao
foram dissecadas por George Elison, Deus Destroyed. The Image of Christianity in Early Modern Japan,
Cambridge-London, Harvard University Press, 1991, p.111-116, pp.131-133. Trata-se do mesmo autor,
que, a partir de 1990, recuperou o seu nome lituano, e que passou a assinar como Jurgis Elisonas e J. S. A.
Elisonas. Manteve-se a diferenciao na referncia bibliogrfica das suas obras ao longo do seu trabalho.
27
momento da sua fixao no arquiplago (1549), fizeram eco dos conflitos e distrbios
causados pela converso dos dimios ao Cristianismo nos territrios por eles
controlados. Foram sendo relatadas as converses foradas, a destruio de templos
locais, a expulso de bonzos11 ou ainda a recusa por parte dos conversos nipnicos em
participar em cerimnias religiosas budistas mesmo quando tal era exigido pelas
autoridades polticas.
Por exemplo na carta anua de 1596 descreve-se que, perante a imposio da
principal consorte de Hideyoshi para que todas as pessoas principais, seculares e bonzos
aderissem a uma seita que venerava o buda Amida para que assim fosse exorcizado o
demnio uma jovem casadoura, um guerreiro pertencente casa de Bizen, descrito
como vno de i pi valorosi soldati della sua Corte, il quale sempre tiene dieci, o dodici
caualli nella sua cauallerizza de i migliori, che siano in quelle parti, rejeitou
publicamente a imposio secular, afirmando preferir a morte a obedecer12. Esta
situao era uma afronta tradio religiosa nipnica firmada no sincretismo religioso
entre Budismo e Xintosmo.
A evoluo dos acontecimentos acabaria por demonstrar que o decreto de 1587
surgiu sobretudo do receio de Hideyoshi de que uma fora religiosa com capacidade
para mobilizar foras militares se constitusse como ameaa s suas polticas
unificadoras do arquiplago. Vrios so os indcios que apontam neste sentido13. A
ordem de expulso foi emitida imediatamente aps uma entrevista entre Hideyoshi e o
vice-provincial Gaspar Coelho, responsvel pela misso jesuta no Japo. Neste
encontro, o missionrio disponibilizou-se para angariar contingentes militares que
auxiliariam o unificador do Japo na guerra que se propunha travar contra a Coreia. O
missionrio associava-se, deste modo, a projectos mili