História do Cemitério da Sé de Leiria: os túmulos e o seu ... · tério, visto a pedra de armas...

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Cadernos de Estudos Leirienses - 2

História do Cemitério da Sé de Leiria: os seus túmulos e o seu desmantelamento1

Francisco Queiroz*

Os túmulos do Cemitério da Sé de Leiria

Como referimos em trabalho recentemente publicado2, o recinto do de­saparecido Cemitério da Sé de Leiria formava uma espécie de rectângulo com os vértices cortados. Ao centro, existiria um caminho longitudinal, desde o portal de entrada até ao jazigo que ali mandou construir o seu fundador, D. Manuel de Aguiar.

Durante muitos anos, o carneiro dos bispos terá sido a única estrutura tumular do Cemitério da Sé. Supomos que os restantes enterramentos eram efectuados em campas abertas directamente na terra. Portanto, apesar de inovador, entendemos que o Cemitério da Sé de Leiria não foi criado para ser um cemitério de feição romântica: apenas com o Liberalismo surgiram aqui os primeiros monumentos.

Ainda subsistem vestígios do antigo cemitério. Confrontados com certos documentos, bem como com plantas e fotografias antigas, estes vestígios permitem-nos fazer uma reconstituição aproximada do que era o Cemitério da Sé de Leiria quando foi encerrado, no início da década de 1870. Porém, é quase inexistente a documentação sobre a sua gestão, pelo que teremos de nos cingir, em muitos aspectos, a hipóteses.

* Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto. Investigador Principal da linha "Heritage, Culture and Tourism” do CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.0 autor não segue as regras do novo Acordo Ortográfico.1 No seguimento do artigo publicado no primeiro número dos Cadernos de Estudos Leirienses, este artigo insere-se também no programa de pós-doutoramento “Arte tumular do Romantismo em Portu­gal”, finalizado em 2014 e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, através do Progra­ma Ciência 2008. Parte do texto deste artigo baseia-se em dois capítulos do estudo “O Cemitério de Santo António do Carrascal: Arte, História e Sociedade de Leiria no Século XIX’, elaborado entre 1998 e 2000 por Ana Margarida Portela Domingues e por José Francisco Ferreira Queiroz, e ainda por publicar.2 QUEIROZ, José Francisco Ferreira - História do Cemitério da Sé de Leiria (1 *parte). In “Cadernos de Estudos Leirienses”, Vol. 1 .Textiverso, Maio de 2014, p. 121-134.

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Do Cemitério da Sé, subsistiram quase todos os trechos do muro, e ainda a lápide tumular de D. Manu­el de Aguiar, como mostrá­mos no nosso anterior arti­go sobre este cemitério3.Subsistiu ainda a estrutura de um jazigo-capela cata- cumbal, do qual hoje não se pode vislumbrar a sua apa­rência, por se encontrar abaixo do nível de edifi­cações. Calculamos, porém, que esta capela, abobadada em alvenaria de tijolo, esti­vesse encaixada na encos­ta que fica abaixo da mura­lha medieval, com a sua fa­chada colocada na linha do muro do cemitério.

Actualmente, esta cons­trução não possui qualquer epígrafe, mas era certamen­te um jazigo-capela familiar, que não terá chegado a ser transferido para o actual ce­mitério, por óbvias dificulda­des logísticas e de inade­quação à sua planta. Mas de quem seria este suposto ja­zigo? Quando foi construí­do? Uma fonte, até hoje nãosuficientemente esmiuçada, permite-nos formular algumas suposições. Referimo-nos ao manuscrito Armas, brasões e inscrições, de Vitorino da Sil-

Fig. 1 - Reconstituição da porta em ferro forjado de um jazigo-capela catacumbal que existiu no antigo Cemitério da Sé, a qual servia de arrecadação aos escuteiros de

Leiria quando a fotografámos, por volta de 1999

* QUEIROZ, José Francisco Ferreira - História do Cemitério da Sé de Leiria (1 *parte).

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va Araújo, elaborado ñas décadas de 1860 e 18704.Analisando este manuscrito, é de su por que as inscrições fixas existen­

tes em espaços públicos e semi-públicos da cidade, foram transcritas de for­ma exaustiva e rigorosa pelo autor5. Confrontando os dados constantes nes­te manuscrito, com aqueles que recolhemos entre 1998 e 2000 sobre as con­cessões de jazigos no Cemitério de Santo Antonio do Carrascal, fica-se, não só com uma ideia bastante aproximada do número de jazigos que existiram no Cemitério da Sé de Leiria, mas também de qual o seu tipo e, em alguns casos, de qual a sua localização.

Assim, segundo Vitorino da Silva Araújo, no Cemitério da Sé de Leiria, que ele refere como “Cemitério de Leiria”, “Cemitério do Cabido”, e - presumivelmente, já depois do seu encerramento - como “Cemitério Velho”, existiram estas inscrições:

• Num “jazigo”, lia-se: “Aqui jaz José Maria do Couto, filho de João Anastácio do Couto, e de D. Vicência Ritta do Couto, natural de Coimbra, de 59 annos de idade, e fallecido em Leiria a 12 de Junho de 1856. Como catholico, foi observador da religião de N. S. Jesus Christo; como verificador da Alfândega Grande de Lisboa, foi um empregado exemplar; como pessoa particular, foi homem honrado e virtuoso: e designadamente como filho, marido, e pai, foi amigo extremoso de sua familia. Sua mulher, D. Ritta Sepúlveda do Couto, e suas filhas, D. Ma­ria, e D. Adelaide, para lenitivo de sua saudade, e ao mesmo tempo inspiradas por um sentimento religioso, mandarão construir este desataviado jazigo em honra da memória do seu prezado marido, e pai, e para repouso de seus restos mortaes, até ao dia de juizo”. A ju Igar pelo manuscrito de Vitorino da Silva Araújo, junto a este epitáfio haveria ain­da o monograma “JMC”, envolvido por um círculo ou elipse6. Aparente­mente, o finado não tinha as suas raízes familiares em Leiria. Não por acaso, quando o Cemitério da Sé de Leiria foi encerrado, os restos mor­tais de José Maria do Couto não terão sido transferidos para o Cemitério

4 O manuscrito pertence ao Seminário de Leiria. Consultámos uma reprodução, graças à gentileza do Eng. Ricardo Charters d’Azevedo.5 Vitorino da Silva Araújo não chegou a registar qualquer inscrição existente no Cemitério de Santo Antônio do Carrascal, fundado no início da década de 1870.6 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fls. 19-20.

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de Santo António do Carrascal. Se foram transferidos para um outro ce­mitério, isso não pudemos apurar.

• Na lápide de um jazigo dos que estão mettidos na parede”, lia- -se “Sepultura de D. Maria Joana da Silveira Mascarenhas. Nasceu a 14 de Maio de 1814. Falleceu a 8 de Janeiro de 1854"7. Esta senhora, tam­bém conhecida como Maria Joana Salgueiro da Silveira de Mascarenhas, era natural de Loulé e supomos que os seus restos mortais também não foram transferidos para o Cemitério de Santo António do Carrascal.

• No jazigo da família Ata ide, havia um brasão contendo as ar­mas dos Silvas Ataídes e Costas, e, “por cima” a data de 1850®. Neste caso, os restos mortais aí depositados foram depois trasladados para o Cemitério de Santo António do Carrascal, e encerrados num novo jazi­go, em forma de capela, no qual terá sido colocada a mesma pedra de armas (Fig. 2). Em nossa opinião, só se transferiu o brasão, e não o primitivojazigo-ca- pela, que seria tal­vez em alvenaria e alinhado com o pró­prio muro do cemi­tério, visto a pedra de armas ser em lioz dos arredores de Lisboa e a con­cessão de terreno no Cem itério de Santo António do Carrascal ter sido feita gratuitamente, em 1872, com base na área que o anterior jazigo ocupava no Cemitério da Sé de Leiria. Tudo indica, pois, que o jazigo-capela da família Ataíde era o mais antigo dos que existiam no Cemitério da Sé de Leiria. Curio­samente, o jazigo-capela da família, em Santo António do Carrascal, viria a ser também o mais antigo deste cemitério9.

7 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fl. 57.3 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fl. 48.9 No terceiro volume da obra que estamos a concluir sobre a Casa do Terreiro, aprofundamos estaquestão.

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Fig. 2 - Armas que estavam à entrada do jazigo-capela da família Ataíde, segundo Vitorino da Silva Araújo

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• No “carneiro de José Lopes Vieira da Fonseca", I ia-se a inda: “À memoria de José Lopes Vieira da Fonseca, que nasceu em 10 de Outu­bro de 1813 e falleceu em 26 de Setembro de 1866, d[edicam] sua mu­lher e seus filhos"™. Em 1886, os restos mortais deste finado viriam a ser transferidos para um jazigo propositadamente construído no Cemitério de Santo Antonio do Carrascal.

• “No cemitério, na porta do 1o carneiro à esquerda, em letras de latão”, Iia-se “A.L.C.P. /1868'™. Tratava-se do jazigo da familia de Antonio Lopes da Cunha Pessoa, em forma de capela, alinhada com o muro do cemitério. A família viria a construir um novojazigo-capela, no Cemitério de Santo Antonio do Carrascal, datando o pedido de concessão de 1873.

• “No mesmo sitio, no 2o carneiro: Jazigo do Visconde do Ampa­ro”''2, acrescentando Vitorino da Silva Araújo: “O jazigo (...) tem por cima da entrada estas armas" (Fig. 3). Seria, portanto, um jazigo-capela ali­nhado com o muro do cemitério. Note-se que a família não mandou cons­truir um jazigo de equivalente dimensão no Cemitério de Santo Antonio do Carrascal, onde é notoria a ausência de um túmulo que evidenciasse o quanto havia sido, até então, urna das mais importantes familias de Leiria. Quanto ao destino do brasão, talvez tenha sido a Quinta da Fábri­ca, dadas as semelhanças flagrantes entre o que lá existe hoje13 e aque­le que Vitorino da Silva Araújo desenhou.

• “Sobre a porta d ’um jazigo”, Iia-se “ 1868/jazigo de José Manu­el Pereira da Costa e de sua família”''4. Ou seja, trata-se de mais um jazigo-capela. Vitorino da Silva Araújo acrescenta que, “dentro do car­neiro” desta família, lia-se também: “O caixão 1o contém o corpo de Joze Manuel Pereira da Costa Junior, filho de Joze Manuel Pereira da Costa e de D. Maria do Nascimento Monteiro, o qual nasceu a 8 de Junho de 1849, falleceu a 18d’Abriide 1868"™. Em 1873, a família mandou cons­truir novo jazigo-capela no Cemitério de Santo António do Carrascal.

10 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fl. 66.11 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fl. 70.12 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fls. 71 e 74.13 Nunca vimos directamente esse brasão, mas baseamo-nos em AMARO, Adélio - Brasão do Vis­conde do Amparo.14 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fl. 73.15 ARAÚJO, Vitorino da Silva - Armas, brasões e inscrições, fl. 89.

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• “Sobre a porta d ’outro jaz i­go", portanto, em forma de capela, lia-se “Jazigo do Barão do Salguei­ro e de sua famí­lia"16. Em 1883, a fam ília mandou também construir novojazigo-capela no Cem itério deSanto António do Fig. 3 - Armas que estavam à entrada do jazigo-capela do Carrascal. Visconde do Amparo, segundo Vitorino da Silva Araújo

Fig. 4 - Detalhe de uma fotografia de cerca de 1889, vendo-se as traseiras da Sé, parte do antigo cemitério e, mais acima, parte da cerca medieval (fotografia cedida pelo Dr. Jorge Estrela)

Uma interessante fotografia antiga (Fig. 4), mostra aquilo que parece ser a capela catacumbal da qual mostrámos o desenho do portão (B), bem como uma outra construção do género (A). Na mesma fotografia, nota-se que, junto

16 ARAÚJO, Vitorino da Silva -Armas, brasões e inscrições, fl. 74.

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à eventual capela catacumbaI que persistiu mesmo depois de desmantelado o Cemitério da Sé, o capeado de cantaria que coroava o muro é interrompido, como se ali existisse outra construção tumular, embora não havendo qual­quer mancha mais escura que pudesse indicar a existência de um portão de entrada (C). São visíveis, igualmente, os cunhais dos muros do antigo Cemi­tério da Sé, rematados por pirâmides em cantaria, bem como um pouco do portal do cemitério, junto do cipreste mais à esquerda.

Fig. 5 - Detalhe de uma fotografia tirada por volta de 1890 (gentileza do Eng. Henrique Pereira do Vale)

Na fotografia da figura 5, que poderá ter sido tirada meses depois da anteriormente referida, mas de um ângulo diferente, mostra-se a existência de uma outra edificação na linha do muro do cemitério (E), claramente um jazigo-capela. Mais à esquerda, também se nota o que parece ser um remate triangular, tapado pela copa de uma árvore que está num plano mais próxi­mo. Provavelmente, será um frontão de uma edificação tumular, que - pela sua posição - não deve ser a que assinalámos na fotografia anterior com um C, mas sim uma outra edificação, à qual vamos aqui atribuir a letra D17.

17 Na figura 4, vêem-se alguns ciprestes, quer no interior, quer no exterior do cemitério. Ora, na figura 5, estes não são visíveis, estando a encosta abaixo da muralha aparentemente caiada. Isto indicia, não só que a figura 5 é posterior à figura 4, mas também que a suposta edificação que assinalamos com um D não possa ser a mesma assinalada com um C na figura 4.

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Fig. 6 - Fotografia tirada por volta de 1915, na qual pode ver-se o antigo Cemitério da Sé e parte do portal do mesmo (gentileza do D r. Jorge Estrela)

Fig. 7 - Nesta fotografia tirada por volta de 1927, pode ver-se parte do recinto do antigo Cemitério da Sé, por detrás dos prédios da Rua Mouzlnho de Albuquerque (gentileza do Dr. Jorge Estrela)

Graças à amabilidade do D r. Jorge Estrela, podemos apresentar mais três fotografias onde, de algum modo, se percebe o recinto que ficou do anti­go Cemitério da Sé, antes de ter sido parcialmente ocupado por edificações (figuras 6,7 e 8). Na figura 6, parece ser ainda visível a silhueta ondulante do remate do portal do antigo cemitério. Porém, na figura 7, mais recente, cons- tata-se que os muros sul e respectivo portal do cemitério já não existiam (te­rão, entretanto, sido demolidos). Isto explica porque não poderia existir hoje a suposta construção assinalada com um A na figura 4.

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Fig. 8 - Vista aérea datável do início da década de 1940, na qual assinalamos o antigo Cemitério da Sé (fotografia cedida pelo D r. Jorge Estrela)

Estas fotografias da primeira metade do século XX não são muito esclarecedoras em relação às construções marcadas nas figuras anteriores com as letras B, C, D e E, pois vislumbra-se mal a superfície ao longo do muro que empareda com a encosta do cerca amuralhada. Contudo, pelo menos a construção que assinalámos na figura 5 com um B teria de existir na época das três fotografias, até porque chegou aos nossos dias.

Que terá sucedido às edificações que assinalámos nas figuras 4 e 5 com as letras C, D e E? Terão sido entaipadas? Porque não o foi aquela em que subsistiu a porta em ferro forjado que mostrámos na figura 1? Será que tal se prende com o facto de ter sido o único jazigo-capela cuja família con­cessionária não pediu nova concessão no Cemitério de Santo António do Carrascal, para transferir os restos mortais?

Procurámos testemunhos de pessoas mais idosas que nos elucidassem quanto ao destino dessas construções, mas ninguém se lembrava sequer

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da presença de qualquer construção tumular no muro do antigo cemitério, antes de ali terem sido construídas as casas que, nos últimos anos, servi­ram de infantário.

Outras imagens do Cemitério da Sé, sobretudo algumas gravuras do século XIX, não são muito esclarecedoras. No desenho de 1836 que publicámos no primeiro número dos Cadernos de Estudos Leirienses, nenhu­ma construção se vislumbra no cemitério, o que faz sentido, uma vez que o primeiro jazigo-capela no Cemitério da Sé de Leiria, como referimos, data de 1850. Porém, no mencionado desenho também não se distingue qualquer portal de entrada (que existia na altura), ou as pirâmides que rematavam os cunhais do muro, pelo que talvez os detalhes desenhados não sejam total­mente fiáveis.

Ainda assim, podemos deduzir que, já em 1836, o Cemitério da Sé pos­suía ciprestes, no seu interiore na encosta abaixo da cerca medieval. Vê-se também uma moita de vegetação ao fundo do cemitério - provavelmente a copa de uma árvore - no local onde existia o jazigo dos bispos. Essa árvore ainda estava de pé em 1915, como se viu na figura 6.

Aquando da sua estadia em Leiria em 1870-1871, Eça de Queiroz tam­bém se refere ao Cemitério da Sé, descrevendo "um canto do muro do cemi-

Fig. 9 — Gravura sensivelmente da mesma época em que foi escrito o romance de Eça de Queiroz sobre Leiria. Vêem-se vários ciprestes no recinto do cemitério, mas não fica daro se existiam também

chorões, como o romancista descreveu (gravura publicada em “O Oddente”, n.° 55, Abril de 1880)

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térío coberto de parieíárias e pontas agudas e negras dos ciprestes", bem como o voo circular dos mochos naquele local18. 0 romancista menciona ain­da, “ao fundo do cemitério, junto ao muro” e ao lado da “vala dos pobres", a presença de urna “cruz negra, que um chorão assombreava", ao lado da qual o sineiro da Sé - um dos personagens de “O crime do Padre Amaro” - ia frequentemente ajoelhar-se19.

Uma gravura publicada em 1880 mostra também os ciprestes e a copa da referida árvore (Fig. 9). Não é visível o portal, mas duas das pirámides que rematavam o muro são representadas. A gravura mostra igualmente uns es­tranhos volumes arquitectónicos, aparentemente no interior do Cemitério da Sé, mas o carácter estilizado da gravura não nos permite concluir que formas são essas. Seriam as tais capelas catacumbais, ou meras invenções do desenhador, uma vez que este desenhou as traseiras da Sé sem qualquer janela e não representou sequer as silhuetas das casas da cidade que fica­vam para lá da catedral? Parece-nos que o desenhador terá tido a intenção de representar as referidas capelas, mas de forma estilizada, até porque, no planoem quea vista foi desenhada, seria muito difícil ver-se o coroa mento das mesmas.

Em “O crime do Padre Amaro”, Eça de Queiroz também confirma a exis­tência de mo nu mentos funerários no antigo Cemitério da Sé, oferecendo-nos outras pistas. A dado passo do romance, refere-se que o Padre Amaro dava “grandes passeios pela estrada de Lisboa e às vezes, ao voltar, entrava no cemitério, ia passeando entre os renques de ciprestes, sentindo àquela hora do fim da tarde a emanação adocicada das moitas de goivos: lia os epitáfios; encostava-se à grade dourada do jazigo da família Gouveia, contemplando os emblemas em relevo, um chaoéu armado e um esoadim. seguindo as negras letras da famosa ode que lhe adorna a lápide:

«Caminhante, detém-te a contemplarEstes restos mortais;E, se sentires a mágoa a trasbordar,Detém teus ais.Que João Cabral da Silva MaldonadoMendonça de Gouveia,

13 QUEIROZ, Eça de - O Crime do Padre Amaro, p. 19.19 QUEIROZ, Eça de - O Crime do Padre Amaro, p. 399-400.

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Moço fidalgo, bacharel formado,Filho da ilustre Ceia,Ex-administrador deste concelho,Comendador de Cristo,Foi de virtudes singular espelho.Caminhante, crê nisto.»

Depois era o rico mausoléu do Morais, onde sua esposa que, agora, rica e quarentona, vivia em concubinagem com o belo capitão Trigueiros, fizera gravar uma piedosa quadra:

«Entre os anjos espera, ó esposo,A metade do teu coração Que no mundo ficou, tão sozinha,Toda entregue ao dever da oração!...»” 20

Fig. 10 — Reconstituição hipotética da planta do Cemitério da Sé por volta de 1890, com a localização das capelas catacumbais que se percebem pelas figuras 4 e 5 e com a localização do

jazigo dos bispos, ao fundo do cemitério (esquema elaborado pelo autor)

20 QUEIROZ, Eça de - O Crime do Padre Amaro, p. 399-400. Os sublinhados são nossos.

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Claro que, nesta descrição, torna-se difícil saber onde a ficção se cruza com a realidade. Mas é provável que Eça de Queiroz se tivesse inspirado em jazigos que ali existiam. Mais adiante no seu romance faz-se menção a “ruas de buxo que fechavam os canteiros cheios do negreja mento das cruzes e da brancura das lápides novas”21.

Atendendo ao número de jazigos com inscrição, mencionados porVitorino da Silva Araújo, e à localização que o mesmo faz de, pelo menos, dois deles, poder-se-ia supor que o jazigo da família de António Lopes da Cunha Pessoa fosse o que, na planta da figura 10, marcamos com “A”. O do Visconde do Amparo poderia ser o que, na dita planta, marcamos com “B”, e os marcados com “C”, “D” e “E” poderiam ser os da família Silva Ataíde, de José Manuel Pereira da Costa e do Barão do Salgueiro, embora sem que possamos apon­tar qual era qual.

Contudo, esta questão é um pouco mais complexa. Sabemos que a família Costa Guerra teve também um jazigo no Cemitério da Sé de Leiria, o qual seria de área apreciável. De facto, a quantidade de terreno pedida para o jazigo que a família mandou erguer em 1876 no Cemitério de Santo António do Carrascal era igual à que o jazigo da família já ocupava no Cemitério da Sé22. Além disso, no Cemitério da Sé de Leiria também existiu o jazigo do Dr. Roberto Charters, que não seria tão grande em área como os que acima mencionámos, atenden­do ao facto de, em 1873, o cunhado do falecido ter pedido no Cemitério de Santo António do Carrascal uma porção de terreno igual à que ocupava o jazigo no Cemitério da Sé23, e a capela depois ali edificada ser bem mais pequena em área do que a da família Costa Guerra, por exemplo.

O desmantelamento do Cemitério da Sé de Leiria

Em 1871, poucas semanas após a abertura do Cemitério de Santo António do Carrascal (actual cemitério de Leiria), a Câmara adquiriu vários metros cúbicos de cal, a José Francisco Barbeiro (da Boavista), para serem lançados no Cemitério da Sé. Curiosamente, esta medida foi tomada a pedi­do expresso do Delegado de Saúde24.

21 QUEIROZ, Eça de - O Crime do Padre Amaro, p. 401.22 A.M.L., Actas, L.° 32, fls. 153-153v.23 A.M.L., Actas, L.° 30, fl. 3,30 de Abril de 1873.24 A.M.L., Actas, L.°28,fls. 43v.-44, sessão de 21 de Junho de 1871.

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Parece algo estranha esta medida, uma vez que o Cemitério da Sé aca­bara de ser encerrado a enterramentos, e a sua administração pertencia ao Cabido. No entanto, esta medida também não parece ser uma ingerência da Câmara, tendo em conta o que se passou em Fevereiro de 1872, quando Maria Guilhermina Pereira Peres Furtado Galvão, de Penela, pediu licença à Câmara para mandar colocar, no Cemitério da Sé, uma lousa sobre a sepul­tura de seu pai, Luís Guilherme Peres Furtado Galvão. Isto, até fazer a sua trasladação para o mausoléu de família existente no Cemitério de Penela. De facto, perante esta petição a Câmara lembrou que tal requerimento deveria ser feito ao Cabido25.

Pelas limitações que já enunciámos, relativas à actual inexistência de documentação do Cabido de Leiria sobre o Cemitério da Sé, não podemos fazer a história do seu desmantelamento. Sabemos apenas que foram sendo feitas várias trasladações para o Cemitério de Santo António do Carrascal, nos anos que se seguiram ao encerramento do Cemitério da Sé. Porém, não apurámos quando é que efectivamente o velho cemitério deixou de ter ossadas no seu solo. Sabemos apenas que não terá sido certamente antes do fim do século XIX.

A verdade é que um cemitério meio abandonado podia ser fonte de pro­blemas. Em 1884 é mencionada a existência de uma barraca junto a ele, onde se praticavam actos pouco decentes, que não poderiam tolerar-se. Não são especificados que actos eram esses26. Cerca de dez anos depois, diz-se que até dentro do próprio recinto do cemitério se passavam factos entendi­dos na época como reprováveis. Atente-se nesta carta, enviada por um anónimo (“P. de N.’) ao jornal “O Distrito de Leiria”, datada de 2 de Junho de 1894:

“Cultura Sepulchral.Senhor Redactor. Passando um d’estes dias à borda do antigo Ce­

mitério da Sé, fiquei surprehendido ao deparar com elle semeado de cevada, plantado de couves e em preparação de outra culturas. Como V. sabe, não foram ainda removidas as ossadas das sepulturas, conti­nuando todavia aquetle recinto na posse da Junta de Parochia que athe há pouco levara o seu escrupuloso respeito pelos mortos athe ao ponto

25 A.M.L., Actas, L.°28,fl. 198, sessão de 7 de Fevereiro de 1872.26 A.M.L., ¿cías, L.° 35, fl. 101.

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de nem sequer estorvar o livre crescimento e medrança das silvas, ortigas e outras plantas que ali brotam espontaneamente. Sei que isto de res­peito pelos mortos não passa, afinal, de uma velharia indigna de um século materialista como o nosso; mas confesso-lhe que estava bem longe de esperar tão avançada philosophia n ’uma corporação que, pelo seu fim e constituição se me afigurava refractária àquella doutrina.

Vejo que me enganava; como porém me não consta que o referido cemitério ande arrendado, devo supor que a exploração é por conta da Parochia; mas como ella certamente não cultiva para si, poderá V. dizer- -me, senhor redactor, onde é que ella vende as suas couves, que eu também ás vezes tenho laivos de espírito forte e desejava provar, uma vez, aquella hortaliça mortuária.

Um amigo que me acompanhava, disse-me que as couves eram provavelmente destinadas a um bôdo, com que a junta desejava tam­bém brindar os pobres, por occasião dos festejos de S. João. Assim será, mas a cevada, a que destina a junta a cevada? Muito me obsequi­ará V., senhor redactor, se puder esclarecer-me estas dúvidas”.

Daqui se infere claramente que, nos finais do século XIX, o Cemitério da Sé ainda continha os despojos de muitos leirienses, estando agora entregue à Paróquia de Leiria. De facto, em 1881, após um complicado processo (que durou várias décadas), a Diocese de Leiria foi extinta, só tendo sido restaura­da em 191827.

O antigo portal do Cemitério da Sé ficava quase em frente de um alpen­dre, cuja entrada dava serventia para o claustro da Sé (reveja-se a figura 4). De facto, aquela que viria a ser a chamada Estrada Real n.° 58 (da Figueira da Foz a Leiria), a qual passava mesmo encostada ao Cemitério da Sé, correspondia ao antigo acesso a este cemitério e a essa entrada alpendrada. Quando foi regularizada a dita estrada, na sequência da reorganização urba­nística do Rossio, eliminou-se a curva que servia a entrada do cemitério. Deixando o Cemitério da Sé de estar em actividade, e havendo outro acesso para a Sé através do adro, a Câmara de Leiria optou por arrendar, por trinta anos, todo o leito dessa estrada que ficara desactivada. Foram fechados os

27 Note-se, porém, que também nos informaram não existir documentação referente ao Cemitério da Sé, quer na Junta de Freguesia de Leiria (que sucedeu à Junta de Paróquia de Leiria), quer mesmo no Cartório Paroquial de Leiria, não nos sendo possível apresentar mais dados sobre este assunto.

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dois extremos desse trecho de estrada, mas, mesmo assim, ficou este leito servindo como caminho. Em 8 de Agosto de 1894, alguns habitantes pediram à Câmara para ponderar sobre esta situação, pelos problemas legais que levantava o usufruto daquela passagem28.

Para esclarecermos melhor que leito de estrada era este e quais as con­frontações com o antigo cemitério, apresentamos, na figura 11, uma planta bastante esclarecedora29. O requerente pediu à Câmara a concessão, por arrendamento, de um terreno junto ao antigo cemitério, “que noutro tempo foi estrada, e hoje pertence ao município”30.

O facto de ter desaparecido este leito de estrada, praticamente retirou visão ao que resta actualmente do antigo Cemitério de Leiria. Se quase todos os muros do antigo Cemitério da Sé ainda hoje existem, a maior parte deles está escondida por construções. Um trecho desse muro, contudo, ainda é visível na Rua Mouzinho de Albuquerque (precisamente a antiga estrada real), no local que assinalamos na figura 11 com um A, e que mostrámos no artigo publicado no primeiro volume destes “Cadernos”.

Por último, refira-se que, só no início do século XX, foram exumados os restos mortais dos bispos de Leiria, que desde 28 de Abril de 1864, encon­

23 A.M .L., Requerimentos, 1890.29 A.M.L., Processos de Obras Particulares, 1873-1892, s/n.° de processo.30 A.M.L., Processos de Obras Particulares, 1893-1904, s/n.° de processo.

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Cemitério da Sé de Leiria: os seus túmulos e o seu desmantelamento

travam-se em caixas de madeira na cripta dos bispos do Cemitério da Sé31. Note-se que, ao contrário do que sucedeu com os leirienses que possuíam jazigo no Cemitério da Sé, o jazigo episcopal não foi transferido para Santo António do Carrascal. Ao invés, as ossadas foram recolhidas para o interior da Sé, em 22 de Abril de 190732. Nas paredes do transepto deste templo, foram então colocadas várias lápides tumulares (saídas do risco de Ernesto Korrodi) para encerrar as ossadas, quer de D. Manuel de Aguiar, quer dos dois outros bispos que estavam sepultados no mesmo jazigo33.

Estas lápides tumulares foram executadas na oficina de cantarias de Korrodi, em mármore amarelo de Opeia, com dinheiro angariado através de uma subscrição pública aberta no jornal “Leiria lllustrada”, por iniciativa do seu director, o maçon Tito Larcher, o que não deixa de ser curioso. Aliás, esta opção pode ser considerada regressiva, já que D. Manuel de Aguiar, que tanto fez para que existisse um cemitério geral decente em Leiria, acabou por ficar dentro da Sé, contrariando o exemplo que ele próprio quis dar. O que vale é que, na época dessa transferência, o novo Cemitério de Santo António do Carrascal era já completamente aceite por toda a sociedade leiriense (até porque habituada há muito a veros seus mortos enterrados fora das igrejas).

Fontes e bibliografia

-AMARO, Adélio - Brasão do Visconde do Amparo. Leiria, Folheto, 2008.-ARAÚJO, Vitorino da Silva -Armas, brasões e inscrições. Manuscrito pertencente ao Seminário de

Leiria.-ARQUIVO MUNICIPAL DE LEIRIA (A.M.L.), Actas (diversos livros das décadas de 1860 e 1870),

Requerimentos (1890) e Processos de Obras Particulares (1873-1892 e 1893-1904).- CABRAL, João -Ana is do Município de Leiria. Leiria, Câmara Municipal de Leiria, 1993 (3 vols.).- “Correspondência de Leiria”, 1875.- “Echos do Liz”, 1907.- GIL, Jacinto de Sousa -Leiria. Catedrais. Leiria, Edição do Autor, 2009 (2 vols.)- “Leiria lllustrada”, n.° 105,31 de Janeiro de 1907 e n.° 117,25 de Abril de 1907.- “O Distrito de Leiria”, 1894.- PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, J. Francisco Ferreira - O Cemitério de Santo António do

Carrascal: Arte, História e Sociedade de Leiria no SéculoXIX. S.I., s.n., 2000 (3 volumes policopiados).

31 Leiria lllustrada, n.° 117,25 de Abril de 1907.32 CABRAL, J. - Anais do Município de Leiria, vol. II, p. 286.33 Echos do Liz, n.° 1,1 de Janeiro de 1907, p. 3 e n.° 17, 27 de Abril de 1907, p. 2.

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Cadernos de Estudos Leirienses - 2

- QUEIROZ, José Francisco Ferreira - História do Cemitério da Sé de Leiria (1.8parte). In “Cadernos

de Estudos Leirienses”, Vol. 1, Textiverso, Maio de 2014, p. 121 -134.

- QUEIROZ, J. Francisco Ferreira -Leiria romântica: uma leitura histórica da arquitectura e do espaçourbano. Estudo de investigação elaborado no âmbito de uma bolsa atribuída pela Câmara Mu­

nicipal de Leiria em 2002. S.I., s.n., 2005 (policopiado).

- QUEIROZ, J. Francisco Ferreira - A necrópole romântica de Leiria. In Actas do “II Congresso

Internacional de História da Arte” (Porto, 14 a 17 de Novembro de 2001), p. 519-531.

-Q U E IROZ, J. Francisco Ferreira - Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portu­gal. Consolidação da vivência romântica na perpetuação da memória. Tese de Doutoramento em

História apresentada á Faculdade de Letras do Porto em 2003. Porto, 2002 (3 tomos policopiados).

- QUEIROZ, J. M. Eça de - O Crime do Padre Amaro. Cenas da vida devota. Lisboa, Livros do Brasil, s.d.

- Um Bispo segundo Deus ou Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar 17° Bispo de Leiriacolllgidas e coordenadas (1860-1863) e agora dadas à estampa por um filho da extincta Diocese. Tipografia de Rui Leitão, Rua do Norte, n.° 6, Coimbra.

- ZÚQUETE, Afonso Eduardo Martins - Leiria. Subsídios para a História da sua Diocese. Leiria,

Gráfica de Leiria, 1943.

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