HISTÓRIA DAS IDEIAS E DISCURSO: APONTAMENTOS SOBRE RENATO KEHL E JOSÉ ENRIQUE RODÓ

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HISTÓRIA DAS IDEIAS E DISCURSO: APONTAMENTOS SOBRE RENATO KEHL E JOSÉ ENRIQUE RODÓ HISTORY OF IDEAS AND DISCOURSE: NOTES ABOUT RENATO KEHL AND JOSÉ ENRIQUE RODÓ Jóice Anne Alves Carvalho Mestranda em História - UFSM [email protected] Renata Baldin Maciel Mestranda em História – UFSM [email protected] RESUMO: Esse trabalho é resultado de pesquisas financiadas pela FAPERGS/CAPES, vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em História da UFSM e ao projeto de pesquisa “História Intelectual, Historicidade e Processos de Identificação Cultural”, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Henrique Armani. O objetivo desse artigo é realizar alguns apontamentos sobre a utilização da História das Ideias e das possibilidades oferecidas por algumas categorias-chaves na interpretação de discursos, partindo do exemplo dos significados atribuídos à realidade por Renato Kehl, autor que realizou expressivas contribuições na constituição das teses eugênicas brasileiras nas primeiras décadas do século XX e pelo uruguaio José Enrique Rodó, figura que obteve grande destaque no cenário intelectual latino- americano com sua obra Ariel (1900). Entre os elementos que envolvem esse tipo de análise, vale ressaltar a necessidade de se evitar valores de verdade e a subordinação das ideias ao nível sociológico, ou seja, de apresentá-las como mero resultado da política, da economia e da cultura do período de produção. Isso não significa negar a importância do contexto histórico, mas de buscá-lo a partir da própria perspectiva do autor, dos subsídios que sua obra pode nos oferecer. PALAVRAS CHAVE: História das Ideias. Discurso. Intelectuais. 1 Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.7, Suplemento especial – I EPHIS/PUCRS - 27 a 29.05.2014, p.1-20

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Esse trabalho é resultado de pesquisas financiadas pela FAPERGS/CAPES, vinculadas ao Programa de Pós-Graduação em História da UFSM e ao projeto de pesquisa “História Intelectual, Historicidade e Processos de Identificação Cultural”, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Henrique Armani. O objetivo desse artigo é realizar alguns apontamentos sobre a utilização da História das Ideias e das possibilidades oferecidas por algumas categorias-chaves na interpretação de discursos, partindo do exemplo dos significados atribuídos à realidade por Renato Kehl, autor que realizou expressivas contribuições na constituição das teses eugênicas brasileiras nas primeiras décadas do século XX e pelo uruguaio José Enrique Rodó, figura que obteve grande destaque no cenário intelectual latino-americano com sua obra Ariel (1900). Entre os elementos que envolvem esse tipo de análise, vale ressaltar a necessidade de se evitar valores de verdade e a subordinação das ideias ao nível sociológico, ou seja, de apresentá-las como mero resultado da política, da economia e da cultura do período de produção. Isso não significa negar a importância do contexto histórico, mas de buscá-lo a partir da própria perspectiva do autor, dos subsídios que sua obra pode nos oferecer.

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Histria das ideias e discurso: apontamentos sobre Renato Kehl e Jos Enrique RodHISTORY OF IDEAS AND DISCOURSE: NOTES ABOUT RENATO KEHL AND JOS ENRIQUE ROD

Jice Anne Alves Carvalho

Mestranda em Histria - UFSM

[email protected]

Renata Baldin Maciel

Mestranda em Histria UFSM

[email protected]

RESUMO: Esse trabalho resultado de pesquisas financiadas pela FAPERGS/CAPES, vinculadas ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFSM e ao projeto de pesquisa Histria Intelectual, Historicidade e Processos de Identificao Cultural, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Henrique Armani. O objetivo desse artigo realizar alguns apontamentos sobre a utilizao da Histria das Ideias e das possibilidades oferecidas por algumas categorias-chaves na interpretao de discursos, partindo do exemplo dos significados atribudos realidade por Renato Kehl, autor que realizou expressivas contribuies na constituio das teses eugnicas brasileiras nas primeiras dcadas do sculo XX e pelo uruguaio Jos Enrique Rod, figura que obteve grande destaque no cenrio intelectual latino-americano com sua obra Ariel (1900). Entre os elementos que envolvem esse tipo de anlise, vale ressaltar a necessidade de se evitar valores de verdade e a subordinao das ideias ao nvel sociolgico, ou seja, de apresent-las como mero resultado da poltica, da economia e da cultura do perodo de produo. Isso no significa negar a importncia do contexto histrico, mas de busc-lo a partir da prpria perspectiva do autor, dos subsdios que sua obra pode nos oferecer.

PALAVRAS CHAVE: Histria das Ideias. Discurso. Intelectuais. ABSTRACT: This work is the result of researches funded by FAPERGS/CAPES, linked to the Graduate Program in History of UFSM and to projects of search Histria Intelectual, Historicidade e Processos de Identificao Cultural coordinated by Prof. Dr. Carlos Henrique Armani. The aim of this paper is to perform some notation about the use of History of Ideas and the possibilities offered by some key categories in the interpretation of speeches, from the example of the meanings ascribed to reality by Renato Kehl author who made significant contributions to the establishment of theses Brazilian eugenics in the early decades of the twentieth century and the uruguayan Jos Enrique Rod, most prominent figure in Latin American intellectual scene due to his work called Ariel (1900). Among the elements that involves this type of analysis, it is worth Emphasizing the need to avoid values of truth and subordination of ideas to the sociological level, to present Them just like Merely the result of politics, economy and culture of the production period. This is not to deny the Importance of the historical context, but get it from the author's own perspective, the subsidies his work can offer us.KEYWORDS: History of Ideas. Discourse. Intellectuals.Histria das Ideias e Intelectuais

O historiador das ideias tenta compreender a conscincia de uma determinada poca produzida pela sua sociedade a partir das perspectivas dos intelectuais. Partindo deste pressuposto, a historicidade que nos interessa trabalhar aqui est subordinada ao sentido de realidade atribudo pelos autores no que se refere a cultua, sociedade, economia ou a poltica.

Para tanto, compreende-se que as ideias tm uma irradiao e um desenvolvimento, uma ascendncia e uma posteridade prprias, nas quais os homens participam, mas como padrinhos e madrinhas do que pais legtimos (BAUMER, 1990, p. 17). Vendo assim, a histria das ideias como representante de uma tentativa para estancar esta direo fragmentria, para ver se no seria possvel considerar as culturas como totalidades e inter-relacionar as suas partes (BAUMER, 1990, p. 19). Ainda assim, vlidos so os questionamentos do autor sobre o conceito de ideias: Que se entende precisamente por ideias? Pertencem estas ideias apenas aos intelectuais? (BAUMER, 1990, p. 20). O prprio Baumer nos responde, no sentido de compreender o conceito com elasticidade.

O termo ideias, no entanto, elstico e pode referir-se a quase tudo desde o pensamento de uma pequena elite ao de toda gente. [...] a difuso pode entender-se aqui de duas formas: primeiro, como difuso para alm de um departamento do pensamento mesmo um departamento to vasto como a filosofia; segundo, como difuso para alm dos indivduos, atravs de grupos e movimentos significativos. [...] est mais interessada sobretudo nas ideias da cultura mais elevada do que da cultura mais baixa. (BAUMER, 1990, p. 21)

Na verdade, muito importante compreender que a Histria das Ideias, em oposio da Histria da Filosofia, tendo como um dos principais objetivos a descoberta de certa classe ideias que subjazem a e condicionam o pensamento formal. Desta forma, a Histria das Ideias, ainda que necessariamente opere em grande parte dentro da rbita do pensamento racional, tambm lida com ideias que mais propriamente se podem chamar de crenas ou convices (BAUMER, 1990, p. 21). Ao analisar, por exemplo, os discursos racialistas de finais do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX sob a perspectiva da Histria Ideias, pode-se dizer que alguns intelectuais se sobressaem aos demais membros da sociedade. Isso no quer dizer que o intuito seja o de realizar uma sociologia dos intelectuais, mas sim perceb-los como constituintes de uma classe distinta, uma espcie de classe sem classe. Mas ainda assim, no desprendida das demais e dos interesses comuns de sua poca. Podendo-se assim, compreender os intelectuais como uma espcie de espelho de sua poca, espelho que reflete a experincia de vida de grupos maiores e, por vezes mesmo, de uma sociedade inteira (BAUMER, 1990, p. 21).

Em suma, tendo o entendimento que Histria das Ideias no possui um nico caminho metodolgico, pode-se dizer que o historiador das ideias tenta compreender a conscincia de uma determinada poca produzida pela sua sociedade a partir das perspectivas dos intelectuais. Desta forma, salienta-se que a proposta do trabalho no se baseia em uma reconstituio fundamentada em uma histria sociolgica ou uma sociologia dos intelectuais atrelada s instituies, classes ou demarcaes sociais. A historicidade que nos interessa trabalhar aqui est subordinada ao sentido de realidade que os intelectuais atriburam ao quadro poltico, econmico, social e cultural.

Com o intuito demonstrar alguns exemplos de abordagem de trabalhos da Histria das Ideias, na sequencia desse artigo sero expostas as principais concepes de Renato Kehl e Jos Enrique Rod, intelectuais que atualmente so alvos de pesquisas em nvel de mestrado do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Santa Maria. Aps essa sntese, sero apresentadas algumas categorias-chaves utilizadas na interpretao do discurso dos referidos intelectuais. Com essa segunda pretende-se demonstrar ao leitor um caminho ou possibilidade de anlise para trabalhos alinhados Histria das Ideias.

Aproximaes nos Discursos de Renato Kehl e Jos Enrique Rod

No desenvolver da anlise acerca das ideias propostas por Kehl, pode-se afirmar que se trata de um autor significativo na histria intelectual brasileira, tendo em vista que seus trabalhos so frequentemente referidos na historiografia nacional, principalmente quando se trata de discusses sobre eugenia, higiene mental, raa e imigrao. Entre as dcadas de 1910 a 1940, assumiu a propaganda eugnica como uma misso poltica e intelectual. Entre as principais defesas realizadas pelo autor em suas obras constam definies de eugenia e seus campos de atuao; a prtica eugnica como favorecimento dos fatores sociais de tendncia seletiva, assim como, multiplicao de indivduos aptos sociedade. Neste sentido, preocupava-se com a resoluo do problema racial na superioridade do branco europeu ariano e percebia a mestiagem como um elemento perturbador da formao nacional. Para Kehl (1929, 1931, 1935), a pretenso da eugenia constitua-se em regenerar os indivduos para melhorar a sociedade. Seguindo esse preceito, a biopoltica eugnica visava o domnio da constituio biolgica dos indivduos atravs do controle de reproduo, o que refletia diretamente sobre os casamentos. Dessa forma, como uma medida preventiva os matrimnios entre os degenerados deveriam ser evitados. O vnculo entre as medidas sanitaristas estreitava-se em relao preocupao de tornar o Brasil uma grande nao. Pode-se afirmar que a articulao entre esses anseios e os projetos de limpeza da sociedade foi to enftica, que no Brasil passou-se a compreender a eugenia como parte do processo higienista, ou seja, foi encarada como uma higiene biolgica e mental.

Em uma conferncia durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929), Kehl busca explicitar os problemas do Brasil e os principais aspectos da eugenia. Na perspectiva do autor, o progresso da humanidade estava ocorrendo de maneira unilateral. Por isso ele profere em seus primeiros momentos de fala a barbrie ocorrida na Europa entre 1914-18, comprovando que:

[...] a educao e as injunes religiosas no bastaram para moderar as paixes, para tornar a humanidade melhor, mais equilibrada, mais filantrpica. Isto porque o homem continuou escravo de sua natureza particularssima, indelvel e simples influencias morais e mentais, preso a uma fora que o subjuga biologicamente, que lhe imprime o temperamento, o carter, de modo inexorvel a hereditariedade (KEHL, 1929, p. 47).

Mesmo no sendo o aspecto mais importante salientado por Renato Kehl, diversas teses apontam para a importncia do processo educativo. Defendia a necessidade no apenas de um melhoramento fsico, mas tambm, cultural da populao. Neste ponto percebe-se a escravido como um erro, no por desumanizar os negros, mas por impedir a entrada de imigrantes brancos no pas, dificultando o branqueamento da populao. Desta forma, como j estava impregnada na sociedade, a raa negra no processo de higienizao seria suprimida culturalmente e extinta a partir da mestiagem eugnica.

Jos Henrique Rod, intelectual uruguaio nascido em Montevidu em 1871. Destacou-se como ensasta, crtico, jornalista, educador e poltico. Faleceu em 1917, mas conquistou grande projeo internacional aps a publicao de Ariel (1900). Tornou um dos principais membros da gerao dos 900 da literatura uruguaia e deixou como legado o movimento que ficou conhecido como arielismo.Em relao ao seu discurso pode-se salientar como base dos modelos de civilizao a trade Amrica Latina - Europa - Estados Unidos em disputa. Outro elemento de destaque sua narrativa ou filosofia da Histria. Rod explorou a temtica identitria a partir da referida trade e relatou as situaes de ameaa s soberanias nacionais, como, por exemplo, o imperialismo dos Estados Unidos, que ele chamou de nordomania, o esprito utilitrio e a degenerao da democracia. Ao enaltecer a superioridade espiritual da Europa, ao valorizar a Grcia Antiga como representao da alma jovem ou mesmo ao criticar o modelo civilizacional dos Estados Unidos, Rod estava definindo o eu latino-americano.

A filosofia da Histria proposta por Rod identifica-se com a de Hegel. Segundo Reis (2013) na viso hegeliana, a Histria mundial a marcha necessria do esprito universal em busca da liberdade (REIS, 2013, p.77). Pode-se perceber em Rod a mesma direo, na medida em que seu programa de ao demonstra a que honra das geraes consiste no esforo de conquistar a liberdade, de buscar a autoconquista, de manter a f nas manifestaes ideais e na evoluo das ideias.

O esprito universal descrito por Hegel aparece na filosofia da Histria de Rod, relacionado, por exemplo, ao papel da cincia e da democracia. nesse sentido que a cincia, vista como esclarecedora do princpio democrtico pode contribuir para o desenvolvimento do esprito universal.

Para Rod a juventude a grande a fora motriz, dotada da paixo que leva ao, ela a gerao humana que marcha para o futuro, que renova as esperanas. A concretizao de seu projeto depende das aes da juventude, da sua vontade de lutar pela liberdade. Segundo Reis (2013), em termos hegelianos o fato de que todos os homens so livres constitui a verdade da Histria universal. Para que essa verdade seja efetivada preciso uma revoluo a partir da crtica do passado e pela criao de um novo mundo no futuro (REIS, 2013, p.73). Rod apresenta essa mesma f em um mundo novo. A crena no futuro, que uma espcie de instinto nos jovens, deve prevalecer frente ao descontentamento com o presente.

primeira vista o eugenista Kehl e o americanista Rod no possuem muitas semelhanas, porm se analisarmos seus discursos em uma perspectiva macro a partir de algumas categorias, proposta, por exemplo, por R. Koselleck, D. LaCapra, J. Pocock ou mesmo por E. Orlandi plausvel perceber inmeras congruncias entre esses intelectuais.

nesse sentido que possvel afirmar que tanto Rod como Kehl apresentam modelos de civilizao em disputa da identidade latino-americana ou brasileira. A juventude e as novas geraes so outro ponto em comum de seus discursos, pois atravs delas seria possvel conquistar o progresso e concretizar o projeto de civilizao construdo por eles.

Os demais elementos convergentes nestes dois intelectuais remetem filosofia da Histria, ou seja, as suas narrativas do presente, passado e futuro da nao e da Amrica Latina, constitudas no tempo, onde circulam tanto as experincias, quanto as expectativas que foram identidade nacional e latino-americana.

Categorias-chaves para Analisar os Discursos a partir da Histria das Ideias

A partir de algumas categorias-chaves foi possvel perceber, por exemplo, na obra dos autores citados um discurso constitudo pelos modelos de civilizao em disputa e a configurao de uma filosofia da Histria. A seguir sero discutidas algumas dessas categorias com o intuito de demonstrar suas potencialidades nas anlises que se vinculam Histria das Ideias.

Primeiramente como guia terico-metodolgico para a anlise proposta pode-se destacar as noes de espao de experincia, de horizonte de expectativa, de tempo histrico e de progresso trabalhadas por Reinhart Koselleck (2006). Como possibilidade para interpretar a Histria, Koselleck construiu duas categorias: espao de experincia e horizonte de expectativa, que, como categorias histricas, equivalem s de espao e tempo. Ele define a experincia como sendo o passado atual, no qual acontecimentos foram incorporados ou podem ser lembrados. Na experincia encontram-se as elaboraes racionais e as formas inconscientes de comportamento, nela, por exemplo, esto contidas as experincias de geraes anteriores que os indivduos incorporam em suas vidas. A partir desse raciocnio, o autor conclui que a prpria Histria pode ser entendida como uma forma de conhecimento construdo por experincias alheias. Em relao expectativa, Koselleck afirma que esta tambm ligada pessoa e ao interpessoal e que se realiza no hoje. Essa pode ser vista como um futuro presente, voltado para o que ainda no aconteceu ou ao que pode ser apenas previsto. Koselleck salienta que apesar desses conceitos se relacionarem, eles no so proporcionalmente complementares, pois apresentam formas bem diferentes. Segundo o autor, passado e futuro jamais coincidem, assim como, uma expectativa jamais pode ser deduzida totalmente da experincia. Para o autor, a experincia realizada torna-se completa na medida em que suas causas so passadas enquanto que a experincia futura, antecipada na forma de expectativa, se decompe em uma infinidade de momentos temporais. O que Koselleck tenta mostrar que h diferenas entre a presena do passado e a do futuro. A principal delas encontra-se no fato de que presena do passado espacial e no pode ser cronologicamente mensurvel, ela no cria continuidade no sentido de uma elaborao ativa do passado.Como horizonte de expectativa, Koselleck compreende uma espcie de linha que gera no futuro um novo espao de experincia que ainda no pode ser contemplado. As expectativas podem ser revistas enquanto as experincias realizadas so recolhidas e podem ser repetidas e confirmadas no futuro. O que distingue uma da outra o fato da experincia ter elaborado acontecimentos passados podendo torn-los presentes. Em suma, experincia e expectativa no so conceitos opostos, mas possuem caractersticas distintivas cujas tenses resultam no chamamos de tempo histrico.

Essas duas categorias indicam a condio humana universal, ou seja, tanto a experincia quanto a expectativa fornecem os subsdios necessrios para lidarmos com o tempo histrico, pois ambas entrelaam passado e futuro. Esses conceitos permitem que a Histria avance e que o nosso conhecimento histrico decifre a execuo concreta da mesma. Pode-se dizer que experincia e expectativa remetem a temporalidade do homem, e meta-historicamente a prpria temporalidade da histria. O tempo histrico entendido a partir da relao dinmica entre experincia e expectativa. Para Koselleck a Histria (Geschichte), se tornou disponvel ao homem quando do ponto de vista histrico-lingstico as vrias histrias (Historie), se transformaram em uma nica Histria (Geschichte), o que indicaria um novo espao de experincia e um novo horizonte de expectativa. Ele afirma que o tempo histrico embora esteja ligado ao tempo natural, no coincide com o mesmo, pois est muito mais atrelado ao mbito poltico e social. Esse tempo seria, portanto, fruto das experincias e expectativas de homens e instituies cujas aes engendram no um tempo nico e universal como o proporcionado pela cronologia, mas diversos ritmos temporais que lhes so prprios. Em suma, o tempo histrico seria ento, resultado da tenso entre experincias e expectativas; tenso essa que pode ser analisada atravs da relao histrica entre passado e futuro.

O tempo histrico trabalhado por Reinhart Koselleck (2006) fundamental para compreender as concepes de presente, passado e futuro nas perspectivas de Rod e Kehl, pois, em suas narrativas o passado, bem ou mal, constitui as bases (ou experincias) nas quais seus projetos de devir (ou horizontes de expectativa) so configurados. Para eles o presente deve ser superado e o futuro ser marcado pela regenerao e pelo progresso. Seus horizontes de expectativas esto baseados em uma confiana no futuro, que abrir as porta para a condio de progresso da nao.

Em Rod no que se refere ao passado, tem-se o predomnio do carter de preservao dos valores da Antiguidade. Desse passado, ou espao de experincia so selecionados alguns valores que passam a fazer parte do horizonte de expectativa, ou seja, das projees futuras constitudas a partir da insatisfao com o presente que deve ser superado em decorrncia do esprito utilitrio que impede a plenitude do esprito. O tempo rodoniano deve ser entendido a partir da necessidade dos indivduos em control-lo, ele consolida nos indivduos a necessidade de renovao, de adaptao s condies que no foram mostradas pela experincia, ou seja, o tempo a condio mxima para que os seres humanos consigam lidar com seu espao de experincia e adaptarem-se aos mais inimaginveis horizontes de expectativa.

Em Kehl, tambm perceptvel a definio de civilidade a partir da ruptura com o passado colonial e uma perspectiva de projeto de uma nao progressista moderna. Dentro desta perspectiva de futuro, h um prognstico racional, a ideia de futuro como um campo de possibilidades, assim, as ideias polticas eugenistas buscavam defender e mover a expectativa de futuro. Em suma, a partir da relao ou tenso entre experincias e expectativas que os discursos de Kehl e de Rod podem ser investigados.

Para Koselleck a concepo progresso na modernidade determinou a diferena entre a experincia e a expectativa. Segundo o autor, esse conceito foi criado no sculo XVIII, em um momento onde se procurou reunir um grande volume de novas experincias dos trs sculos anteriores. Esse progresso visto como nico e universal fundamentava-se em inmeras experincias novas individuais de progressos setoriais que interferiam cada vez mais na vida das pessoas. Esse progresso aglutinava experincias e expectativas afetadas pelo tempo. Um novo grupo, um pas, uma classe social tinham conscincia de estar frente dos outros, ou ento procuravam os outros ou ultrapass-los (KOSELLECK, 2008, p.317). Foi por essa via que o Imperialismo se justificava, tendo em vista que aqueles povos possuam um grau superior de civilizao julgavam-se no direito de dirigir menos desenvolvidos. Enfim, compreende-se que essa concepo de progresso estava direcionada para uma transformao ativa do mundo e no mais do alm, tal como anteriormente propunha a expectativa crist de futuro. O rompimento com esta se d na medida em que as expectativas para o futuro acabaram se desvinculando do que as antigas experincias podiam oferecer. De outro lado, at mesmo as experincias novas proporcionadas pela colonizao ultramarina e o desenvolvimento da cincia e da tcnica, tambm j no eram mais suficientes para formar as bases para as novas expectativas para o futuro. Como resultado, o espao de experincia deixou de estar limitado pelo horizonte de expectativa, seus limites se separaram. Ou seja, a experincia do passado e a expectativa do futuro distanciam-se de forma progressiva, sendo o progresso, o primeiro conceito genuinamente histrico que concebeu, em um conceito nico a diferena temporal entre ambas.

A preocupao com o progresso da nao e da civilizao uma constante no discurso de Kehl e de Rod. Para este ltimo, trabalhar pelo progresso, pelo benefcio do futuro, seria uma forma de realar nossa dignidade humana e, por conseguinte, de triunfar diante das limitaes de nossa natureza. O horizonte de expectativa seria para Rod a superao da experincia presente ou dos rumos que esta oferece para a Amrica Latina e a retomada de alguns valores do esprito inspirados na Grcia Antiga, em suma, o futuro um projeto novo que busca superar o presente e que ao mesmo tempo liga-se a um passado ainda mais distante. Pode-se observar esse jogo entre presente-passado e futuro nas palavras de Rod:

De la veneracin piadosa del pasado, del culto de la tradicin por una parte, y por la otra del atrevido impulso hacia lo venidero, se compone la noble fuerza que, levantando el espritu colectivo sobre las limitaciones del presente, comunica a las agitaciones y los sentimientos sociales un sentido ideal. [...] (ROD, [1900], 1957, p.241)

Para Rod, Amrica Latina do futuro marcada pela regenerao, como se o presente sombrio fosse iluminado, ela se tornar aberta para as coisas do esprito. Rod convoca as multides ao para concretizar esse projeto, enfatizando que no seremos seus fundadores, mas, talvez os precursores dessa Amrica regenerada e por isso, no futuro tambm sero glorificados.Para Kehl e seus colegas eugenistas a perspectiva de progresso tambm envolve a superao do presente e a concretizao no futuro do seu projeto de brasileiro ideal. Para ele no era suficiente a modificao no ambiente, a educao poderia sim engrandecer algumas qualidades, porm restringir outras, podendo dar um verniz mediante com o qual so disfaradas as ms caractersticas morais. O processo educativo para Kehl apresentava-se como alavanca do progresso social e deveria ser desenvolvido em conjunto com o progresso biolgico por meio da eugenia. Kehl evidenciou como exemplo os Estados Unidos e seu alto nvel de violncia, o que contrasta com a seriedade com que governo e as instituies tratam as campanhas contra ao analfabetismo no pas. Para ele isso ocorre devido ao forte fluxo imigratrio que o pas hospedou em sua constituio. Sobre sua perspectiva de Brasil o autor coloca em sua conferncia:

Numa terra grandiosa, bela e rica como a nossa, tudo nos impe o dever de sermos otimistas, - otimistas no bom sentido devemos frisar. Precisamos, portanto, no congregar sob a bandeira de um ideal em comum, para torna-la cada vez mais prspera e feliz. O ideal mximo seria o da regenerao eugnica do nosso povo, - regenerao esta que pressupe sade, paz, justia e educao. Precisamos v-lo sob uma administrao moralizada e sinceramente patritica. S ento poderemos ter maior orgulho de sermos brasileiros. Por enquanto nos envaidecemos do cu, da terra, das nossas riquezas inexploradas; precisamos nos ufanar de alguma coisa mais que no tenha sido ddiva da natureza, - dos nossos empreendimentos, das nossas aes, do nosso valor como habitantes deste maravilhoso recanto de terra (KEHL, 1929, p. 58).As concepes de John Pocock (2003) tambm fornecem subsdios essenciais para se considerar o contexto de referncia no discurso dos intelectuais, ou seja, a tradio intelectual que os antecedeu. Para Pocock o autor habita um mundo historicamente determinado, que apreensvel somente por meios disponveis graas a uma srie de linguagens historicamente construdas (atos de fala). Os discursos disponveis fornecem as intenes que o autor pode ter, pois so seus meios de concretiz-las. A linguagem empregada pelo autor no exclusivamente sua, ela j est em uso e utilizada para enunciar intenes outras que no as suas. Por isso, pode-se dizer que o autor tanto um expropriador da linguagem de outros quanto um inovador que pode modificar a forma como a linguagem utilizada. Tendo isso em mente, torna-se possvel realizar, o que foi denominado nesse trabalho de uma anlise externa da obra de um autor, partindo de um contexto comum de reflexo que envolva tanto a tradio secular que o antecedeu, como seus prprios contemporneos. A isso soma-se o carter de continuidade e de transformao da linguagem. Quer dizer, apesar das linguagens sofrerem modificaes em determinados contextos, elas sobrevivem e impem sobre os atores dos contextos subsequentes as restries para as quais a inovao e a modificao sero as necessrias, porm imprevisveis, respostas (POCOCK, 2003, p.30).

Quanto interpretao do historiador em relao linguagem ou ao modo de enunciao disponvel e aos propsitos dos autores, Pocock diz que o historiador deve procurar ir alm de seu olhar interpretativo e apoiar-se no maior nmero possvel de relaes que possam mostrar a efetivao dos atos elencados por ele. Quanto mais ele puder provar (a) que diversos autores empregaram o mesmo idioma e nele efetuaram enunciaes diversas e at mesmo contrrias, (b) que o idioma recorrente em textos e contextos alm daqueles que foi detectado pela primeira vez e, (c) que os autores expressaram em palavras sua conscincia de que estavam empregando tal idioma e desenvolveram linguagens crticas e de segunda ordem para comentar ou regular o emprego desse idioma tanto mais a confiana desse historiador em seu prprio mtodo aumentara. (POCOCK, 2003, p.33)

Para Pocock, quando um historiador escreve um texto sobre a linguagem de outros autores, ele apoia-se no que Pocock chamou de paralinguagem ou metalinguagem, criada para apresentar a histria de um discurso como uma espcie de dilogo entre suas insinuaes e potencialidades. O historiador avana em suas investigaes a partir das explicaes da linguagem que ele conseguiu ler, culminando em duas direes: nos contextos em que a linguagem foi enunciada e na dos atos de fala e de enunciao efetuados no e sobre o contexto oferecido pela prpria linguagem e outros contextos em que a palavra se situa (POCOCK, 2003, p.35). Dessa forma, pode dizer a linguagem pode ser vista como a chave do historiador para interpretar o ato de fala e tambm o contexto.

Considerando que interpretar o discurso de Rod e Kehl no significa apenas ler seus textos e transcrever a suposta opinio do autor, necessrio realizar alguns apontamentos tericos sobre linguagem, discurso, texto e significado, pois a utilizao corriqueira s vezes faz com que sua configurao mais complexa seja ignorada. Sendo assim, levando em conta a necessidade de se ter em mente alguns fundamentos tericos, discusses e conceitos pertinentes Histria das Ideias, que propem-se a utilizao de algumas concepes mais pontuais de Eni P. Orlandi, especialista em Anlise de Discurso, deixando-se de lado os mtodos e procedimentos dessa rea. Essa limitao decorre da distncia existente entre a proposta da Anlise de Discurso e a Hermenutica, visto que a primeira busca compreender como os objetos simblicos (que so textos, aes, falas) produzem sentidos, ou seja, sua nfase est no como enquanto a segunda, reala o o qu, mais precisamente os processos de compreenso e interpretao dessas formas simblicas.

Analisar o discurso destes intelectuais uma forma de buscar compreender os sentidos atribudos por eles realidade e o que delimita esse sentido a ideia de interpretao e compreenso. Ao refletir sobre o seu discurso preciso lembrar que a leitura do mesmo faz parte de um processo de instaurao de sentidos. Tambm imprescindvel notar que os sujeitos e os sentidos so determinados historicamente e que nossa vida intelectual est ligada aos efeitos da leitura de cada poca e aos acontecimentos sociais. Orlandi (1996) debate sobre a questo da legibilidade do texto e defende que esta no pode ser concebida como algo direto e automtico, mas antes de tudo depende da natureza da relao que algum estabelece com o texto. Para a autora a leitura depende da natureza, das condies, dos sentidos produzidos, enfim, da historicidade. Ela salienta que h dois tipos de leitores inscritos no texto: um leitor virtual construdo no ato da escrita que aquele que o autor imagina para seu texto e para quem ele se dirige e um leitor real, aquele que l o texto, que ao realizar esse ato se encontra com o primeiro. Dessa forma para realizar a leitura (no sentido de interpretar e compreender) de Ariel necessrio considerar o jogo entre o leitor imaginrio de Rod e o leitor real de Ariel, ou seja, da juventude latino-americana do sculo XIX, conosco, leitores do sculo XXI. Desse modo, Orlandi nos faz perceber que fundamental tanto a historicidade do texto como tambm da prpria ao da leitura. Para a autora, os sujeitos e sentidos so constitudos simultaneamente tornando-se parte de um mesmo processo, o da significao.

Mas afinal o que discurso? Orlandi (2009) traz importantes contribuies tericas sobre essa questo. A autora classifica o discurso como a palavra em movimento ou a prtica da linguagem. A noo de discurso proposta por Orlandi (2009) defende a superao do esquema elementar da comunicao constitudo de emissor, receptor, referente e mensagem. Ela chama a ateno para o fato de o discurso no mera transmisso de informao, pois essa funo suprimida na medida em que no funcionamento da linguagem, (espao de relao entre sujeitos e sentidos afetados pela lngua e pela Histria), h um complexo processo de constituio dos sujeitos e dos sentidos.

Dessa forma, entende-se que as relaes de linguagem so relaes de sujeitos e de sentidos e seus efeitos so mltiplos e variados. Todos esses elementos compem a sua definio de discurso como efeito de sentidos entre locutores. Orlandi (2009) tambm ressalta que o discurso no deve ser confundido com fala de modo a suplantar a dicotomia lngua-fala anteriormente proposta por Saussure. Para a autora,

No se trata de op-lo lngua entendida como um sistema onde tudo se mantm, com sua natureza social e suas constantes, sendo o discurso como a fala, apenas uma ocorrncia casual, individual, realizao do sistema, fato histrico, a-sistemtico, com suas variveis, etc. (ORLANDI, 2009, p.22).

Partindo dessas concepes, pode-se concluir que o discurso possui uma regularidade prpria que pode ser apreendida quando forem superadas as oposies entre o social e o histrico, o sistema e a realizao, o subjetivo e o objetivo, o processo e o produto. Na anlise de discurso, este considerado como influenciado por condicionantes lingusticos e determinaes histricas enquanto a lngua vista como um sistema aberto que tambm apresenta falhas e equvocos. Por isso diz-se ento que a lngua a condio de possibilidade do discurso, porm a linha que separa ambos nem sempre se revela de forma estvel.

A linguagem outro elemento que muitas vezes tratado aqum de suas contribuies tericas. Orlandi (1996) concebe a linguagem como trabalho e a palavra como um ato social repleto de conflitos, relaes de poder e identidades. Dessa forma supera-se a imagem da linguagem como mero suporte de pensamento ou simples instrumento de comunicao. Essa concepo abrange tanto o psquico e/ou social como a ideologia. Seguindo esse pensamento, os interlocutores, o contexto histrico-social ou ideolgico (que nada mais so do que as condies de produo) superam o status de complemento. O falante e o ouvinte ocupam um lugar na sociedade e por isso fazem do processo de significao. Levando esse fato em considerao, nota-se que h uma relao entre a linguagem e a exterioridade que se apresenta de forma constitutiva.

Orlandi (1996) diz que as formaes discursivas compem as formaes ideolgicas e determinam o que pode e deve ser dito de acordo com sua posio em determinado contexto. As palavras mudam de sentido ao passarem de uma forma discursiva para outra, pois a sua relao com a formao ideolgica modificada. O sujeito apropria-se da linguagem de forma social porque quando a produz, apropria-se de sentidos pr-existentes, ele seleciona o que a lngua oferece dentro de um contexto social. Sendo assim o dizer no apenas domnio do locutor, pois tem a ver com as condies em que se produz e com outros dizeres, ou seja, o dizer tem sua prpria Histria, que muitas vezes desconsiderada pelo sujeito, culminando na iluso de que o discurso apresenta-se como reflexo objetivo da realidade. Pocock (2003) tambm chamou a ateno para esse fato ao defender que a linguagem empregada pelo autor no exclusivamente sua, ela j est em uso e utilizada para enunciar intenes outras que no as suas. nesse sentido que o autor tanto um expropriador da linguagem de outros quanto um inovador que pode modificar a forma como a linguagem utilizada.

Em relao leitura do texto preciso considerar o dito e o implcito, pois os silncios tambm significam algo. As relaes de sentidos estabelecidas entre os dizeres de um texto com os demais constituem o que Orlandi denomina de intertextualidade e LaCapra de corpus do escritor. Orlandi (1996, 2009) esclarece ainda que a atribuio de sentidos de um texto varia de uma leitura parafrstica, que reproduz o suposto sentido dado pelo autor e uma leitura polissmica que atribui mltiplos sentidos ao texto. Em suma, necessrio considerar a relao dos sentidos com suas condies de produo. Como resultado tem-se a multiplicidade dos sentidos devido relao do discurso com a exterioridade que propicia tambm a sedimentao histrica dos sentidos, sua legitimidade em termos institucionais e seu uso regulado.

Em se tratando dos recortes, Orlandi (1996) defende que o texto deve ser compreendido como uma unidade da anlise de discurso, ultrapassando noo de informao e de segmento. Para a autora, os recortes devem ser analisados como uma relao das partes com o todo produzindo as unidades discursivas. Todavia, preciso considerar que sendo a linguagem relacionada com a exterioridade, ideia de unidade (de todo) no sinnimo de completude. A linguagem caracteriza-se pela incompletude, por seus sentidos mltiplos, por suas condies de espao e tempo simblicos. Orlandi (1996) em seu modelo de anlise de discurso prope conceitos fundamentais, como o de processo e produto, contexto histrico-social, interao, trabalho, formao discursiva, formao ideolgica. Levando-se em considerao esses pontos, pode-se ento concluir que toda leitura tem sua Histria e que h diversas formas de variao no processo de significao dos textos e de sua compreenso: para um mesmo texto, leituras possveis em certas pocas no o foram em outra, e leituras que no so possveis hoje sero no futuro (ORLANDI, 1996 p.41.), lembrando-se igualmente que o carter social tambm pode oferecer diversos modos de leitura.

Embora existam essas variaes, a autora defende que h leituras previstas para um texto, no de forma absoluta, visto a possibilidade de novas leituras. Entre os elementos que determinam a previsibilidade da leitura destaca-se a historicidade dos sentidos, isso significa que h uma sedimentao de sentidos decorrente das condies de produo da linguagem e da relao de um texto com outros textos (intertextualidade). Aps essas consideraes pode-se dizer que texto e discurso no so coisas iguais. O texto unidade de anlise, mas no unidade de construo do discurso. Essa unidade o enunciado, mas o texto necessrio enquanto conceito medidor para que este enunciado seja apreendido no processo de construo do discurso.

Quanto ao sentido, para anlise de discurso, por exemplo, ele no existe em si mesmo, mas determinado pelas posies ideolgicas contidas do processo histrico em que as palavras so produzidas. As palavras, por sua vez podem mudar de sentido dependendo das posies (ou formaes ideolgicas) de quem as empregam. A formao discursiva pode ser entendida como aquilo que em uma formao ideolgica (entendida como a posio da em uma determinada conjuntura scio-histrica), determina o que pode e deve ser dito. Dessa forma, as palavras constituem um sentido quando relacionadas com as outras da mesma formao discursiva, possibilitando que o sujeito falante se reconhea. Em suma diz-se que a formao discursiva o lugar de constituio do sentido e da identificao do sujeito, seja em relao a ele mesmo ou com os outros, adquirindo sua identidade.

Tendo em perspectiva a anlise das fontes a partir da hermenutica, englobando no somente textos escritos, mas tambm tudo que h no processo interpretativo (formas verbais e no verbais de comunicao, assim como aspectos que afetam a comunicao, como proposies, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem, e a semitica) articulada com o proposto por Dominick LaCapra (1983) tem-se o objetivo de pensar a histria enquanto elemento essencial no processo interpretativo humano. De maneira que a escrita do historiador seja uma articulao do lugar social e prtica de pesquisa, na tentativa de construo de um discurso que no se dissolva na literatura, mas que favorea estudos histricos. Proporcionando desta maneira, o estreitamento das relaes entre historiografia, filosofia da linguagem e teoria literria. Em suas pesquisas, LaCapra acabou por deslocar a relao hierrquica dicotmica entre texto e contexto para um entendimento inter-relacional entre ambos. Para o autor, a textualidade implica as estruturas ditas reais e todos os referenciais possveis. Tais relaes de texto e contexto se do num complexo processo de interao, suplementando-se. Para tratar da interpretao dos textos histricos, que fornecem os meios para investigar as causas e efeitos das ideias LaCapra estabeleceu seis nveis:1) Relao entre as intenes do autor e o texto; 2) Relao da vida do autor e o texto; 3) Relao da sociedade com os textos; 4) Relao da cultura com os textos; 5) Relao de um texto com o corpus de um escritor; 6) Relao entre modos de discurso e textos. A partir de LaCapra h uma reinsero da retrica no trabalho historiogrfico. Dependendo da proposta de trabalho, no necessrio utilizar todos os seis nveis, mas somente aqueles que a fonte pode dar conta ou que sejam alvos de investigaes mais profundas.

A questo do contexto que na Histria das Ideias at hoje suscita inmeras polmicas e controvrsias resolvida por LaCapra na medida em que ele entende que a noo de contexto propiciada por outros textos em si mesma de natureza textual. Ela levanta o problema da relao entre um texto e os textos de outros escritores, assim como outros textos do mesmo escritor. Pois o que est em discusso aqui precisamente a unidade ou identidade de um corpus. Este pode ser considerado por trs maneiras: continuidade entre textos (desenvolvimento linear), descontinuidade entre textos (troca ou ruptura epistemolgica entre etapa ou perodos) e sntese dialtica (a ltima etapa eleva a primeira a um nvel mais elevado de captao) O corpus, desse modo se unifica de uma ou outra maneira (unidade evolutiva, duas unidades, unidade superior) assim, comum somente textos de maior escala, porque o texto nico pode ser interpretado mediante o uso dessas categorias. Dessa forma, pode-se, por exemplo, investigar o pensamento de Rod a partir do confronto de Ariel (1900) com outras obras rodonianas e tambm interpretar os escritos de Kehl comparando com outras publicaes do autor ou mesmo em sua prpria correspondncia pessoal onde ele dialogou com seus colegas sobre suas concepes. A proposta dialgica de LaCapra, na qual o texto no pensado isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou prximos, permite, por exemplo, analisar o discurso de Kehl e de Rod levando em considerao os movimentos polticos e a cultura da poca sem remeter suas ideias categorias sociolgicas. Outra categoria que merece destaque o aspecto documentrio e ser obra dos textos, descritos por LaCapra (2012). Esses elementos referem-se a aspectos ou componentes do texto que podem se desenvolver em diferentes graus e se relacionar uns com os outros de diversas maneiras. O aspecto documentrio situa o texto em termos de dimenses literais que implicam a referncia realidade emprica e transmitem informaes sobre ela; enquanto o ser obra complementa a realidade emprica com adies e subtraes, implica dimenses do texto no redutveis ao documentrio que incluem a interpretao e a imaginao. Para LaCapra, a obra se situa na histria de um modo que lhe oferece dimenses documentrias, da mesma forma, o documento tem aspectos do ser-obra. Isso explica-se pelo fato de que tanto o documento quanto a obra so textos que implicam uma interao entre os componentes documentrios e de ser-obra que deveria ser examinado em uma historiografia crtica. Em relao a esta, LaCapra adverte que na mesma h um predomnio do enfoque documentrio da leitura dos textos, por isso os textos complexos, especialmente os literrios, so excludos do registro histrico ou lidos de uma maneira reducionista. O autor ainda discute sobre a questo trazida pela histria intelectual entre uma espcie de reconstruo do passado e um dilogo ou converso com o passado. Para ele essa distino no deveria ser considerada uma mera dicotomia, pois reconstruir o passado um esforo importante assim como documentos confiveis so fundamentais para enfoques que possuam a pretenso de serem histricos. Todavia, para LaCapra, o predomnio de uma concepo documentarista distorce nossas maneiras de entender a historiografia e o processo histrico. Dessa pode-se supor que uma concepo puramente documentria da historiografia em si mesma uma fico heurstica, visto que a descrio nunca consegue ser totalmente pura.

LaCapra afirma que muitas vezes uma inteno formulada retrospectivamente, quer dizer, quando um enunciado ou o texto j tenha sido submetido a uma interpretao com a qual o autor no est de acordo. Por isso pode-se dizer que a relao da inteno com o texto discutvel. Ele ainda adverte que a motivao da ideia da inteno autoral constitui o critrio ltimo para chegar a uma interpretao vlida do texto decorre de suposies morais, legais e cientficas excessivamente estreitas. Para ele, crer que as intenes autorais controlam por completo o significado ou o funcionamento dos textos, como por exemplo, seu carter srio ou irnico, supor uma posio preponderantemente normativa que no est relacionada com dimenses importantes do uso da linguagem e a resposta do leitor. Como exemplo tem-se as obras ditas clssicas, visto que estas no so dotadas de concluses definitivas, mas sim de interpretaes diversas ao longo da Histria.

Consideraes FinaisTendo em vista que a Histria das Ideias no possui um caminho terico-metodolgico fechado e considerando que muitas vezes seus direcionamentos metodolgicos so obscuros para alguns, o suporte para os que nela se aventuram consiste em uma gama de autores com propostas diferentes ou s vezes complementares que exigem um constante processo de seleo. Por esses motivos, os trabalhos da Histria das Ideias geralmente apresentam inmeras faces sendo, por exemplo, ora mais aproximo da Histria Cultural ou Poltica, ora da Filosofia ou da Lingustica.

nesse sentido que o presente artigo procurou expor determinadas categorias-chaves como possibilidades terico-metodolgicas na rea da Histria das Ideias. Esses itens selecionados foram aplicados no desenvolvimento em uma pesquisa que estuda as teses eugnicas de R. Kehl e em outra que investiga o pensamento latino-americano a partir de J. E. Rod.

Em suma, pode-se dizer que Pocock, Koselleck, Orlandi e LaCapra so apenas alguns dos inmeros autores que podem oferecer subsdios importantes para quem deseja realizar uma trabalho vinculado Histria das Ideias. Entretanto, o importante destacar a necessidade de se estar aberto para recorrer a autores e proposies de diferentes reas que possam constituir a ferramenta mais adequada para um projeto em prtica.Referncias Bibliogrficas

BAUMER, Franklin. O Pensamento Europeu Moderno. Lisboa: Ed. 70, 1990, Vol 1.KEHL, Renato. Lies de Eugenia (2a ed.). Rio de Janeiro: Canton & Reile. 1935. _____ . A Eugenia no Brasil (esboo histrico e bibliogrfico). In: Actas e Trabalhos do 1 Congresso Brasileiro de Eugenia. 1929.

______. A Campanha da Eugenia no Brasil. Arquivos Brasileiros de Hygiene Mental. Publicaes da Liga Brasileira de Hygiene Mental, 1931. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Traduo: Wilma Patrcia Maos e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. Cap. 5, Cap. 7 e Cap. 14.LACAPRA, Dominick. Historia intelectual. In: PALTI, Jos Elas.Giro Lingustico e histria intelectual. 1 Ed. reimp. Bernal: Repblica Argentina, Universidade Nacional de Quilmes Editorial, 2012, p. 237-294.ORLANDI, Eni Pulcinelli. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. 8 Ed. Campinas, SP: Pontes, 2009.______. Discurso e leitura. 3 Ed. So Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Federal de Campinas, 1996.______. Discurso e texto: formao e circulao dos sentidos. 2 Ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.POPOCK, John. Linguagens do iderio poltico. So Paulo: Ed. da USP, 2003.REIS, Jos Carlos. Histria da conscincia histricaocidental contempornea: Hegel, Nietzsche, Ricouer. 2 Reimpresso. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2003.

ROD, Jos Enrique. Obras completas. (1900) Ed. Aguilar: Madrid, 1957, p.189-244. Nova promoo de escritores uruguaios, cronologicamente equivalente a gerao de 98 na Espanha. Possui como principal preocupao o destino nacional e da Amrica. Ver: Jos Enrique Rod. Obras Completas. Introduo, p.67-79. Produo que se insere no contexto do processo de modernizao do Uruguai. Gerao que produzem uma literatura que visa responder ao novo Uruguai, que surge a partir das primeiras dcadas do sculo XX com o modelo bastllista (seu projeto defendia a cincia como base de uma conduta racional com base na justia distributiva .e eliminao da pobreza. Ver tese de Elvira Blanco Blanco, La creacin de um imaginario. LaGeneracin literrio del 45 en Uruguay, p.21-22.

Essas condies dizem respeito ao contexto histrico-social, ideolgico, a situao, os interlocutores e o objeto de discurso.

Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.7, Suplemento especial I EPHIS/PUCRS - 27 a 29.05.2014, p.1-20

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