História da Matemática Relacionada à Arquitetura
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ABRIL
2011
Trabalho de Matemática:
A História da Matemática
relacionada à Arquitetura Matemática para Arquitetura I
Prof. Dr. Ton Marar
Alessandra Vitti Brusantin
MATEMÁTICA E ARQUITETURA
Pode-se definir a relação entre Matemática e Arquitetura como mera
questão técnica. Em uma análise prática cotidiana, a Matemática, o cálculo,
seria o instrumento utilizado pelo arquiteto para fazer com que seu projeto
“pare em pé”, um ponto de vista que, de certa forma, acaba por subordinar esta
ciência à Arquitetura. De acordo com o Online Etymology Dictionary, a palavra
Matemática deriva do prefixo grego mathema, que significa estudo,
aprendizado. Por sua vez, Arquitetura é a junção entre os termos gregos arché
- agir, governar - e tekton – construtor, carpinteiro. Associando as duas
palavras, temos o estudo da forma como será regida a construção; é na
Matemática que se encontra a base teórica para a Arquitetura. Essas duas
áreas de conhecimento estão intimamente relacionadas historicamente, e até
se fundem em certos momentos.
O SURGIMENTO DA MATEMÁTICA EM DIFERENTES MOMENTOS E
LUGARES
Assim como diversas outras ciências, o surgimento da Matemática como
tal é bastante difuso, ou seja, há registros e teorias de seu surgimento, ainda
que de maneira muito rudimentar, em vários períodos da história da
humanidade. Muitos autores classificam o surgimento da Agricultura por volta
de 9000 a.C. como marco de surgimento da Matemática, já que a partir de
então o homem viu-se na necessidade de contar os dias, as estações do ano e
até mesmo a quantidade produzida nos campos. Contudo, na dita Pré-História
– definida como o período anterior ao surgimento da escrita, que vai
aproximadamente de 3,5 milhões a 4 mil a.C. – há indícios do uso de princípios
de contagem representados por ranhuras em ossos, marcas em galhos, etc. Os
desenhos do período neolítico sugerem certa preocupação com relações
espaciais, e os artefatos construídos pelo homem pré-histórico por vezes
apresentam simetria e congruência,
partes essenciais da geometria
elementar.
No Egito Antigo, Matemática e
Arquitetura são duas ciências bem
relacionadas, apesar de esta última ter
sua origem etimológica na Grécia. No
vale do rio Nilo se desenvolveu uma
matemática bastante prática, empregada
na construção de obras hidráulicas,
canais de irrigação, dentre outros, mas
ao mesmo tempo carregada de certa
complexidade. Importantes documentos
como os papiros de Ahmes (figura 1) e
de Moscou (figura 2) trazem resoluções
de problemas de Aritmética e
Geometria, desenvolvidas no Egito por volta dos séculos XVI a XVIII a.C. O
Papiro de Moscou traz uma
espécie de formulação do
cálculo do volume do tronco de
pirâmide, traduzida no livro A
Rainha das Ciências - Um
Passeio Histórico Pelo
Maravilhoso Mundo da
Matemática de Gilberto G. Garbi
da seguinte forma:
Fig. 1: Papiro de Ahmes, escrito por volta de 1650 a.C.
Figura 2: Papiro de Moscou
Figura 2: Papiro de Moscou
“Se lhe disserem: um tronco de pirâmide de altura 6, com base 4 e 2
no topo. Você multiplica 4 por si mesmo, resultado 16; você multiplica
4 por 2, resultado 8; você multiplica 2 por si mesmo, resultado 4; você
soma 16, 8 e 4, resultado 28; você divide 6 por 3, resultado 2; você
multiplica 2 por 28, resultado 56. Você verá que está certo”
De um modo um pouco menos claro e
geral, a “receita” do papiro corresponde
exatamente à nossa fórmula para calcular o
tronco de pirâmide esquematizado na figura 3:
V = h/3 (L² +Ll + l²).
Os povos babilônicos que habitavam a região da Mesopotâmia também
desenvolveram a matemática em diversos aspectos de seu cotidiano, de forma
simultânea, porém independente dos povos egípcios. As principais aplicações
matemáticas desses povos eram em calendários, administração de colheitas,
cobrança de impostos; também possui certa ligação com a arquitetura na
realização de projetos de irrigação, drenagem, dentre outros, uma vez que a
Mesopotâmia era uma região situada entre os rios Tigre e Eufrates. Sua
linguagem mais acessível que a linguagem egípcia proporcionou o
desenvolvimento de uma habilidade calculista mais avançada. Prova disso é o
seu sistema posicional sexagesimal (base 60) e o conhecimento de trincas
pitagóricas (relações entre os três lados de um triângulo retângulo), registradas
na “Plimpton 322”, tableta babilônica datada de 1800 a.C..
Por situar-se no centro do mundo ocidental conhecido até então,
relaciona-se a matemática babilônica com o surgimento da matemática grega,
junto da qual se desenvolveu a definição de arquitetura tal qual se aplica
atualmente. Na Grécia, a matemática se desenvolveu de forma tão
diversificada que torna-se agora mais complexo a contextualização geral de
sua história. Por esse motivo, opta-se por analisar alguns conceitos e correntes
de estudiosos que apareceram ao longo do decorrer da chamada Antiguidade
Clássica e influenciaram o pensamento matemático ao longo de sua evolução.
Figura 3: Tronco de pirâmide
Proporção Áurea: A onipresença do Número Ouro
Os gregos tinham como modelo de beleza o retângulo construído na
proporção áurea. É uma relação entre segmentos considerada sagrada por
muitos estudiosos. Uma secção é áurea quando
tem-se um segmento é dividido em duas partes (a e
b, na figura 4) em um ponto que obedeça a relação:
a/(a+b) = b/a. A razão entre os termos da
proporção resulta no número irracional Phi (Φ = 1,618033989...), o número
ouro. Foi o primeiro número irracional descoberto pelos gregos. A partir dele,
se constrói o retângulo áureo, no qual os lados obedecem à proporção e
podem ser infinitamente divididos em um quadrado (lado menor) e outro
retângulo áureo, formando uma espiral (figura 5).
As construções arquitetônicas baseadas no
número ouro são infinitas. No Egito, temos as
Pirâmides de Gizé (capa): a razão entre a altura
de uma face e metade do lado da base da
grande pirâmide é áurea. Cada pedra era 1,618
(valor aproximado de Phi) menor que a pedra de
baixo, a de baixo era 1,618 maior que a de
cima, que era 1,618 maior que da 3ª fileira e assim por diante. Dos templos
gregos, destaca-se o Partenon (também na capa) templo construído pelo
escultor Fídias em homenagem a deusa Atena. Sua fachada se encaixa em um
retângulo áureo, e diversas esculturas do templo também obedecem à
proporção. O número ouro
inclusive foi nomeado Phi em
referência à Fídias. No século XX,
o arquiteto Le Corbusier
relacionou o número ouro com o
corpo humano em sua obra
Modulor. Ele definiu uma altura
padrão para o homem (1,83 m) e,
a partir dela, projetava
construções, ambientes, móveis
etc. para que tudo se encaixasse
em proporção áurea com o corpo
humano (figura 6).
Durante a Idade Média um matemático chamado Leonardo de Pisa – ou
Fibonacci – estudando o crescimento das populações de coelhos, com base na
reprodução de dois espécimes por várias gerações, encontrou uma ordem
numérica onde estava presente a proporção áurea. Na sequência de Fibonacci
(1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21...) cada número é a soma dos dois anteriores, e a razão
Figura 4: segmento áureo
Figura 5: O retângulo áureo e sua espiral
Figura 6: Le Modulor
entre um número e se antecessor vai se aproximando do número ouro: 1/1 = 1;
2/1 = 2; 3/2 = 1,5; 5/3 = 1,66...; 8/5 = 1,6; 13/8 = 1,625; 21/13 = 1,615... e assim
por diante. Os retângulos áureos representados na figura 5 são construídos
com os números da sequência de Fibonacci.
A proporção áurea tem sido tão cultuada ao longo do tempo que há
diversas correntes que vêem o número ouro como um sinal da intervenção
divina na Terra. Estudiosos observam a freqüência da proporção áurea e sua
espiral em plantas, animais e até mesmo no corpo humano.
A Escola Pitagórica
Pitágoras nasceu por volta de 570 a.C. em uma ilha grega chamada
Samos. Fundou a sociedade homônima ao se mudar para Crotona, no sul da
Itália, por volta de 525 a.C.. Os pitagóricos eram um grupo de estudiosos que
discutiam questões filosóficas, científicas e matemáticas mas, por outro lado,
também seguiam alguns princípios espirituais como a crença na imortalidade
da alma e na reencarnação. Há certa relação entre a sociedade pitagórica e as
unidades monásticas medievais ou budistas, em função de suas práticas: o
silêncio, a música, simbolismo, roupas de linho puro, ascetismo moderado,
comunhão de bens, lealdade, manutenção de segredo, purificação física e
moral. Foram os primeiros a pensar a matemática no plano da abstração, a
partir da premissa Tudo é número. Eles acreditavam que todas as coisas na
natureza de alguma forma tinham, em seu nível mais aprofundado, relações
matemáticas, utilizando-se desta ciência para a compreensão da realidade.
Dentre as questões racionais nas quais se aprofundaram esses estudiosos, as
mais relevantes para o desenvolvimento do racionalismo são as considerações
sobre números e a relação entre matemática e harmonia musical.
Ao contrário do que se pode imaginar, o famoso Teorema de Pitágoras
não foi integralmente descoberto pelo matemático – as relações entre os lados
em triângulos retângulos já era conhecida pelos babilônicos e egípcios. Porém
a forma como esse teorema foi pensado e escrito por Pitágoras é que era
inovadora. Como afirma Garbi:
“Existem muitos e belíssimos teoremas na Matemática, mas a
aura de surpresa, originalidade , estética e importância que cerca o
teorema de Pitágoras faz dele algo realmente incomparável em
relação aos demais: todos os caminhos da matemática conduzem a
ele”
Pitágoras enxergava a relação entre os três lados do
triângulo retângulo de maneira geométrica. Para ele, o
quadrado da hipotenusa certamente não seria
considerado um número multiplicado por si mesmo,
mas sim um quadrado geométrico construído no lado.
Dizer que a soma de dois quadrados é igual a um
terceiro quadrado significava que os dois quadrados (A
e B, na figura 7) poderiam ser cortados e remontados
para formar um quadrado idêntico ao terceiro quadrado.
A respeito dos números, os pitagóricos definiram números masculinos e
femininos. Os números pares, femininos, eram considerados mais fracos que
os ímpares ou masculinos, porque divididos ao meio eles não possuíam nada
no centro. Mais que isso, números ímpares eram mestres: a soma de um
número ímpar e um par produz um número ímpar; a soma de dois pares nunca
Figura 7: Teorema de Pitágoras
representado geometricamente
produz um número ímpar, mas a soma de dois ímpares sempre resulta em par.
Da mesma maneira que o nascimento de um filho homem na época era mais
valorizado que o nascimento de uma menina, os números ímpares passaram a
serem associados à sorte.
O site do MATC – Mathematics Across The Curriculum, projeto da
Deathworth College, nos EUA, traz algumas definições de números pelos
pitagóricos:
1 Mônada. Ponto. A fonte de todos os números. Desejável, essencial,
indivisível
2 Díade. Linha. Diversidade, a perda da unidade, o número de excesso e
defeito. O primeiro número feminino.
3 Tríade. Plano. Em virtude da tríade, a unidade e sua diversidade são
restauradas em harmonia. O primeiro número masculino.
4 Tétrade. Sólido. O primeiro quadrado feminino. O número do quadrado,
os elementos (terra, fogo, água e ar), as estações do ano, as fases lunares, as
virtudes cardeais (justiça, prudência, fortaleza e temperança).
5 Pêntade. O número da primeira união masculina: une o primeiro número
feminino e o primeiro número masculino por adição (2+3=5). O número de
dedos em cada membro. O número de poliedros regulares (sólidos platônicos).
Incorruptível: múltiplos de 5 terminam em 5.
6 Héxade. O número da primeira união feminina: une o primeiro número
feminino e o primeiro número masculino por multiplicação (2x3=6). O primeiro
número perfeito – cuja soma de divisores é igual a ele mesmo (1+2+3=6). A
área de um triângulo 3-4-5 (trinca pitagórica).
7 Héptade. O número virgem, porque sozinho não tem nem fatores ou
produto (o primeiro número primo). Além disso, um círculo não pode ser
dividido em sete partes por nenhuma operação conhecida.
8 Ogdóade. O primeiro cubo perfeito (2³ = 8).
9 Enéade. O primeiro quadrado perfeito (3² = 9). Incorruptível –
independente de quantas vezes for multiplicado, sempre reproduz ele mesmo.
(9x2=18 e 1+8=9; 9x3=27 e 2+7=9; etc).
10 Décade. Número de dedos. Contém todos os números, porque depois
de 10 os números apenas se repetem. Número perfeito formado pela soma dos
números arquetípicos (1+2+3+4=10).
Dez era o número divino para
Pitágoras. Era a base do sistema de
contagem dos gregos, que perdura
até hoje. O pentagrama, símbolo da
escola pitagórica, é uma estrela de
cinco pontas formada pelas diagonais
de um pentágono regular e possui
dez vértices. Outro ponto interessante
é que as linhas que formam o
pentagrama são cortadas em
proporção áurea, símbolo de maior
beleza para os gregos.
No campo da harmonia, Pitágoras relacionou números com o tom
musical. Credita-se a ele a invenção do monocórdio, instrumento no qual teria
descoberto que o comprimento da corda vibrante influencia no som produzido
pela mesma. O matemático observou que pressionando um ponto situado a 3/4
do comprimento da corda em relação a sua extremidade e tocando-a em
seguida ouvia-se uma quarta acima do tom emitido pela corda inteira. Da
mesma forma, pressionando a 2/3 da corda inteira, ouvia-se uma quinta acima
e, a 1/2, uma oitava do som original.
Esses intervalos foram
chamados de consonâncias
pitagóricas, e encontram-se
presentes em qualquer
instrumento de corda. A
corda inteira produz o som
mais grave e as frações
correspondem às frações
de corda que produzem os
sons mais agudos dos
referidos intervalos.
Figura 8: pentagrama pitagórico, formado
por segmentos em proporção áurea, ou
seja, A/B = B/A+B
Figura 9: Esquema de marcações tonais em cordas
Platão
Platão é mais popularmente conhecido por seus trabalhos acerca de
questões filosóficas políticas, mas sua contribuição para a Matemática e outras
ciências exatas também é bastante relevante. O filósofo grego fundou em
Atenas, por volta de 387 a.C., a Academia – instituição voltada ao estudo e
aprendizado das ciências e da filosofia. No plano educacional, Platão via a
Matemática como a ciência mais importante para a compreensão de todas as
outras, pois ela possibilita a abstração das coisas. A matemática aqui é o meio
pelo qual se faz voar o pensamento para objetos mais sublimes, algo que
purifica e estimula a alma. Em sua mais famosa publicação, A República, o
filósofo define cinco disciplinas matemáticas - aritmética, geometria plana,
geometria espacial, astronomia e harmonia (música). Suas ideias são
apresentadas na forma de diálogos entre Sócrates e seus discípulos, no caso,
Glaucon.
O mérito de aprender cálculo (aritmética)
“Então este é o conhecimento [a aritmética] do tipo para o qual estamos buscando, com um
duplo uso, militar e filosófico, pois o soldado deve aprender a arte de número ou ele não sabe
como organizar o seu exército, e também filósofo, porque ele tem para sair do mundo
transitório e apreender a realidade e, portanto, ele deve ser capaz de calcular.”
“Isso é verdade.”
“E os nossos tutores são os soldados e os filósofos?”
„Certamente.”
“Então este é um tipo de conhecimento do qual a legislação deve fazer um objeto de estudo, e
temos de nos esforçar para convencer aqueles que estão em posição de autoridade em nosso
Estado para aprender aritmética, não como amadores, mas eles devem continuar a estudar até
entenderem adequadamente a natureza dos números, (...) porque esta será a maneira mais
fácil para que ela passe a partir do mundo do devir para o da verdade e da realidade.”
“Isso é excelente”, disse ele.
“Sim”, eu disse, “e agora tendo falado sobre isso, devo acrescentar quão charmosa a ciência
da aritmética é! E em quantas maneiras é uma ferramenta sutil e útil para alcançar os nossos
propósitos, se for realizada no espírito de um filósofo, e não de um lojista!”
“O que você quer dizer?”, Perguntou ele.
“Quero dizer, que a aritmética tem um efeito muito grande e edificante, obrigando a mente a
raciocinar sobre o número abstrato, e se rebelando contra a introdução de objetos visíveis e
tangíveis no argumento.”
Neste trecho, observa-se claramente a exaltação de Platão ao cálculo,
considerado uma ferramenta de uso duplo: pode ser aplicado tanto
tecnicamente (uso militar e comercial) quanto cientificamente (nas questões
filosóficas). Seu uso científico possibilita o desenvolvimento do raciocínio
abstrato e, sendo assim, aqueles que aprendem a arte do cálculo possuem,
segundo Platão, maior facilidade com qualquer outro tipo de conhecimento.
O mérito de aprender geometria plana
“Então, se a geometria nos obriga a ver a realidade, nos diz respeito; se nos obriga a ver
apenas o domínio da mudança, não nos diz respeito?”
“Sim, é isso que nós reivindicamos.”
“No entanto, quem tem uma mínima familiaridade com a geometria, não vai negar que essa
concepção da ciência é exatamente o oposto dos termos comuns”
“Como assim?”
“Eles têm uma visão prática apenas, e estão sempre falando de uma maneira mesquinha e
ridícula, de „quadratura‟ e „extensão‟ e „aplicar‟ e similares - eles confundem as formas da
geometria com as da vida diária e que o conhecimento é o verdadeiro objeto de toda a ciência.”
“Certamente isso é verdade”, disse ele.
“Então não devemos fazer uma admissão mais?”
“Qual?”
“Que o conhecimento buscado pela geometria é o conhecimento do eterno, e não de algo
transitório que irá decair.”
“Isso”, respondeu ele, “pode ser facilmente permitido, e é certamente verdade que o
conhecimento geométrico é eterno.”
“Então, meu nobre amigo, a geometria vai chamar a mente para a verdade, e criar o espírito da
filosofia, e levantar o que está agora, infelizmente permitiu a cair.”
“Nada vai ser mais propenso a ter esse efeito.”
“Então os habitantes do seu Estado devem por todos os meios aprender geometria. Além
disso, a ciência tem vantagens indiretas também, que não são pequenas.”
“De que tipo?” disse ele.
“Não são as vantagens militares de que você falou,” eu disse, “e em todos os setores do
conhecimento, como a experiência demonstra, qualquer um que tenha estudado geometria é
infinitamente mais rápido na aprendizagem de outras disciplinas do que aquele que não tem.
Por isso, vamos propor que esse seja o segundo ramo de conhecimento que nossa juventude
precisa estudar.”
Os argumentos de Platão aqui são bem próximos aos utilizados para
defender o estudo da aritmética; ele vê também a geometria como uma
ferramenta para ajudar aos jovens a entender melhor o mundo.
O mérito do desenvolvimento da geometria espacial
“Suponha que façamos da astronomia a terceira disciplina - o que me diz?”
“Eu apoio”, disse ele, “a observação das estações e dos meses e anos é tão essencial para o
geral quanto é para o agricultor e o marinheiro.
“Estou chocado”, eu disse, “Com o seu medo de desaprovação do público, que faz com que
você evite insistir em estudos que são aparentemente inúteis; e eu admito inteiramente a
dificuldade de acreditar que cada homem possui uma capacidade mental que, quando ele é
cegado e arruinado por outras atividades, é por esta purificado e reiluminado; e essa
capacidade vale muito mais do que dez mil olhos, por ela a verdade é vista. Agora há dois tipos
de pessoas: aquelas que vão concordar com você e aprovar sem ressalvas suas propostas e
outro tipo para as quais as propostas não farão nenhum sentido, que vão naturalmente julgá-
las como contos ociosos, pois não podem obter lucro alguma delas. E então você precisa
escolher com qual dos dois tipos você está disposto a discutir. Você muito provavelmente dirá
com nenhum dos dois, e que seu principal objetivo na realização da proposta é para seu
próprio aperfeiçoamento; ao mesmo tempo você não tem rancor dos outros que receberem
benefícios disto.
“Eu acho”, ele respondeu: “que eu prefiro o argumento que prioriza minha própria satisfação.”
“Então dê um passo trás, pois erramos na ordem da ciência que vem depois de geometria
plana.”
“Qual foi o erro?” disse ele.
“Depois de geometria plana,” eu disse, “procedeu-se imediatamente para os sólidos em
revolução, em vez de tomar os sólidos em si mesmo; Considerando que, após a segunda
dimensão (geometria plana) deveria ter seguido a terceira, que se preocupa com cubos e
dimensões de profundidade.”
“Isso é verdade, Sócrates, mas parece tão pouco ainda o que é conhecido sobre esse assunto”
“Sim,” eu disse, “e por duas razões: em primeiro lugar, nenhum governo valoriza-o, o que leva
a uma falta de energia na busca do mesmo. Em segundo lugar, os alunos não podem aprender
a não ser que tenham um professor. Mas então um professor dificilmente pode ser encontrado,
e mesmo se pudesse, atualmente, os alunos, que são muito vaidosos, não vão querer ouvi-
lo. Isso, porém, seria diferente se todo o Estado se tornasse o diretor dos estudos e desse
valor a eles; então os discípulos iam querer avançar, e haveria investigações contínuas e
sérias, e as descobertas seriam feitas.”
“Sim”, disse ele, “há uma grande atração em si. Mas eu não entendo claramente a mudança na
ordem. Primeiro, começou com a geometria das superfícies planas. Depois havia colocado a
astronomia, e agora voltou atrás.”
“Sim”, eu disse. “Na minha pressa, esse estado ridículo do estudo da geometria sólida, que, de
forma natural, deveria ter seguido, me fez passar por este ramo e ir para a astronomia, ou o
movimento dos sólidos. Então, assumindo que essa ciência, agora omissa, viria a existir se
incentivada pelo Estado, vamos continuar com a astronomia, que será a quarta disciplina.”
Este diálogo possui um caráter mais crítico, pontuando os problemas do não
desenvolvimento da geometria espacial na época por falta de incentivo; por esse
motivo, Sócrates e seu discípulo passam despercebidos da geometria plana ao estudo
dos sólidos em revolução (astronomia). Sócrates só se dá conta da inversão quando
critica Glaucon por este não valorizar as ciências ditas inúteis, como o seria a
geometria espacial naquele contexto.
O mérito do aprofundamento da astronomia
“E agora, Sócrates, como você repreendeu a forma vulgar como eu elogiei a astronomia antes,
o meu louvor deve ser dado a seu próprio espírito. Para todos, penso eu, devemos perceber
que a astronomia compele a mente a olhar para cima e nos leva da terra para os céus. "
"A todos, exceto a mim", eu disse.
'E então o que você diria?”
"Eu deveria dizer que aqueles que elevam a astronomia na filosofia parecem-me fazer-nos
olhar para baixo e não para cima. '
"O que você quer dizer?" ele perguntou.
'Você', eu respondi, “tem em sua mente uma concepção verdadeiramente sublime do nosso
conhecimento sobre as coisas acima da Terra. E ouso dizer que, se uma pessoa erguesse a
cabeça e estudasse o teto pintado, você ainda acharia que sua mente estava sendo usada, e
não somente seus olhos. E você provavelmente pode estar certo, e eu posso ser um idiota,
mas, em minha opinião, só o conhecimento que é real e invisível pode fazer a mente olhar para
cima. E, se um homem pasma-se diante dos céus ou pisca os olhos no chão, buscando algum
sentido, eu negaria que ele pudesse aprender, pois nada desse tipo é conhecimento da
ciência; sua mente está olhando para baixo, não para cima.”
“Eu aceito”, disse ele, “que devo ser repreendido. Ainda assim indago como a astronomia
deveria ser aprendida de uma maneira mais pertinente ao conhecimento do qual estamos
falando”
“Eu te direi”, eu disse, “O céu estrelado que nós observamos é a mais linda e perfeita das
coisas visíveis, mas é necessário que seja considerado inferior, apenas porque ele é visível,
aos verdadeiros movimentos de absoluta rapidez e lentidão, que são relativos. As velocidades
reais são encontradas em números puros e em figuras perfeitas. Agora, estas necessitam ser
aprendidas racionalmente, e não pela observação.”
No fragmento acima, Platão considera a astronomia como algo que vai
além da observação dos astros; o caráter mais rico dessa disciplina na verdade
é o estudo da movimentação dos corpos celestes, estudo que possibilita o
exercício racional – diferente da mera admiração desses corpos, que não exige
qualquer raciocínio.
O mérito do conhecimento da harmonia
“O movimento”, eu disse, “possui várias formas. Duas delas são óbvias o suficiente para cérebros não melhores que os nossos; mas há outros, como eu imagino, que são apenas para especialistas.”
“E quais são esses dois?”
Há um segundo”, eu disse, “que é o contraponto do outro já citado.”
“E qual é esse?”
“O segundo,” eu disse, “parece relacionar-se aos ouvidos do mesmo jeito que o primeiro relaciona-se aos olhos. Eu acredito que os olhos são feitos para olhar para as estrelas, bem como os ouvidos são feitos para ouvir movimentos de harmonia, e estas são ciências irmãs – como diziam os Pitagóricos. E nós, Glaucon, concordamos com eles?”
“Sim”. Ele respondeu.
“Há um nível ao qual todo conhecimento deveria chegar, e que os nossos alunos também
deveria atingir, e não cair em curto prazo, como eu estava dizendo que é feito na
astronomia. Pois na ciência da harmonia, como vocês provavelmente sabem, acontece a
mesma coisa. Os professores da harmonia comparam os sons e as consonâncias que são
audíveis, e seu trabalho, como o dos astrônomos, é em vão.”
O filósofo equipara a harmonia musical à astronomia; acredita que, em
ambas instâncias matemáticas, há certas limitações de aprendizado, como a
capacidade racional.
Apesar desse limite da capacidade racional enxergado por Platão, o
filósofo também acreditou na existência de certos conhecimentos que não são
adquiridos por nós, ou seja, independem da capacidade de aprender de cada
um. Platão prova isso em Mênon, um diálogo no qual Sócrates, apenas
interrogando um escravo o faz descobrir como duplicar a área de um quadrado.
Dessa foram,a Platão também introduz um modo de aprendizado muito
utilizado no ensino da matemática até hoje: a dialética (o questionamento).
Os sólidos platônicos
Aos discípulos de Platão atribuem-se diversas descobertas matemáticas,
dentre elas a construção de três dos cinco sólidos perfeitos (dois deles foram
formulados pelos pitagóricos), chamados Sólidos Platônicos - poliedros
formados por faces de polígonos regulares congruentes que se encontram em
igual número nos vértices. São eles:
Tetraedro: Quatro vértices; quatro faces triangulares, três faces
encontram-se em cada vértice.
Hexaedro (Cubo): Oito vértices; seis faces
quadrangulares, três faces encontram-se em cada
vértice.
Octaedro: Seis vértices; oito faces triangulares, quatro
faces encontram-se em cada vértice.
Dodecaedro: Vinte vértices; doze faces pentagonais,
cinco faces encontram-se em cada vértice.
Icosaedro: Doze vértices; vinte faces triangulares, três
faces encontram-se em cada vértice.
É interessante notar como os sólidos se relacionam: o
número de faces e de vértices se intercalam, entre o hexaedro (6 e 8,
respectivamente) e o octaedro (6 e 8, respectivamente), e também entre o
dodecaedro e o icosaedro; o tetraetro possui os números iguais. Os sólidos
foram citados por Platão em um diálogo de Sócrates com Timeo, filósofo
pitagórico, como modelos para os quatro elementos que compõem o Universo:
o tetraedro para o fogo, o hexaedro para a terra, o octaedro para o ar e o
dodecaedro para a água. O icosaedro simbolizava todo o Universo.
Alguns cortes de sólidos platônicos:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VAZ, Oscar de Vianna. Entre as palavras e as coisas. Arquitetura,
Humanismo e República, Belo Horizonte, 02 out. 2003. Disponível em:
<http://www.arq.ufmg.br/ahr/artigos/entrepalavrasOSC.html>.
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<http://www.etymonline.com/index.php>.
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<http://www.dm.ufscar.br/hp/hp0/hp0.html#pitagoras>.
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