História da infância 1

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    UMA VIAGEM DA HISTRIA DA INFNCIA S HISTRIAS DE VIDA,A PARTIR DA OBRA JOGOS INFANTIS DE PIETER BRUEGHEL

    Eliane Aparecida BacocinaUniversidade Estadual Paulista

    Maria Augusta Hermengarda Wurthmann RibeiroUniversidade Estadual Paulista

    RESUMO

    A comunicao apresenta um recorte de uma pesquisa realizada na ps-graduao em Educao daUNESP Rio Claro / SP. Tal pesquisa foi desenvolvida numa sala de aula de educao de jovens eadultos do municpio de Cordeirpolis / SP, a partir da leitura de obras de arte. O trabalho propostoteve como objetivo o de levar os educandos, em fase de alfabetizao a, mediatizados pela linguagemartstica, se reportarem s prprias experincias de vida, atribuindo, dessa forma, significado aprendizagem da leitura e da escrita. Fundamentada no artigo A importncia do ato de ler(FREIRE,1993), a pesquisa desenvolveu-se tendo como temas os apontados por Freire na narrativaque faz de sua leitura de mundo: identidade, infncia, experincia escolar, famlia, crenas, medos,aprendizado com as pessoas e trabalho. No momento do desenvolvimento de um desse temas, ainfncia, destaca-se a obra Jogos Infantis (BRUEGHEL, 1560), material que despertou a atenodos alunos devido s diferenas histricas que evidencia em sua pintura. Nesta obra, o pintor retratabrincadeiras infantis presentes na poca em que viveu (sc. XVI), sendo realizadas com crianasdaquela poca, que muito diferem das crianas de hoje, tanto no que se refere vestimenta queusavam, quanto na forma como eram vistas, como pequenos adultos. Na obra, nenhuma criana ri,apenas se ocupam da atividade do jogo. A obra levou, dessa forma, os alunos envolvidos na pesquisa adesvendarem mistrios de duas fascinantes histrias: a histria das diferentes vises da infncia nasdiferentes pocas, e a histria da prpria infncia vivida, alm da comparao entre as mltiplasinfncias ali presentes, considerando-se tambm a composio heterognea da sala de aula aquireferida, pois contemplou alunos de diferentes idades, portanto, com diferentes vivncias, o quepossibilitou aos alunos envolvidos compartilharem no apenas experincias, como tambm novasvises / novos modos de se perceber a infncia. No texto apresentado, descreve-se, inicialmente, a

    obra utilizada como material histrico de leitura, acompanhada de uma breve histria da infncia noque se refere aos jogos e brincadeiras nela presentes no sc. XVI, a partir da anlise de Aris (1978).Em seguida, busca-se trazer a obra em destaque para os dias atuais, em dois momentos. Num primeiromomento, descreve-se a atividade de leitura da obra, realizada pelos alunos alfabetizandos, no qual,aps um momento muito rico de observao e levantamento de hipteses sobre o contedo da pintura,cada um pde se reportar s experincias de brincadeira vividas na infncia, em momento deinterlocuo com os colegas de grupo. A seguir, exploramos a forma como vem sendo proposto olharpara a infncia por Larrosa (2004), como algo que contm uma presena enigmtica, que representa oinesperado, contendo em si mesma um novo e verdadeiro incio, que no se pode prever nem definircomo algo conhecido. Apontamos, por fim, como resultado, a forma como os jogos infantis retratadosh mais de quatro sculos por um pintor flamengo ganharam novas leituras e significaes nos diasatuais. Acredita-se ter conseguido contemplar, portanto, um dos grandes desafios da Histria daEducao: tornar viva a Histria na escola e na sala de aula.

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    TRABALHO COMPLETO

    Se os olhos esto na caixa de ferramentas, eles so apenas ferramentas queusamos por sua funo prtica. Com eles vemos objetos, sinais luminosos,nomes de ruas e ajustamos nossa ao. O ver se subordina ao fazer. Isso necessrio. Mas muito pobre. Os olhos no gozam... Mas, quando os olhos

    esto na caixa dos brinquedos, eles se transformam em rgos de prazer:brincam com o que vem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amorcom o mundo.(...) Os olhos que moram na caixa de ferramentas so os olhosdos adultos. Os olhos que moram na caixa de brinquedos, das crianas. Parater olhos brincalhes, preciso ter as crianas por nossas mestras (ALVES,2004).

    Ao iniciarmos nosso texto, temos a honra de convidar a todos para nos acompanharem emuma viagem pelo tempo e pela histria, rumo infncia.

    Para participar desta viagem, necessrio, em primeiro lugar, que cada um se permita resgataros prprios olhos de criana, adormecidos na caixa de brinquedos de sua infncia.

    O item obrigatrio para todos a coragem de se aventurar, pois, embora nossa viagem sigauma ordem cronolgica, o tempo e o espao so cheios de paradas sbitas e imprevisveis.

    Pedimos tambm que cada um leve na bagagem as lembranas da prpria infncia, parabrincar com o que v e olhar com prazer para tudo o que estiver sua volta nesses caminhosenigmticos e misteriosos.

    Todos a postos.Nossa mquina do tempo est prestes a decolar.Apertem os cintos... e boa viagem!

    Partida: um retrato da infncia

    Temos hoje, assim como no fim do sculo XIX, uma tendncia a separar omundo das crianas do mundo dos adultos. (ARIS, 1981, P. 56).

    Estamos no sculo XVI. Na regio hoje compreendida na Holanda, vemos um pintormisterioso. Com certeza, um dos mais desconcertantes personagens da histria da pintura. Sabemosque seu nome Pieter. Mas ningum sabe ao certo seu sobrenome: Bruegel, Breughel ou Brueghel?Ningum sabe nos informar tambm sua idade, pois no h certeza se o ano de seu nascimento 1522,1525 ou 1528; se sua regio natal Brabante ou qualquer outra dos Pases Baixos. Sua vida e sua obraguardam interrogaes, mistrios e paradoxos que nem mesmo o tempo conseguiu dissipar. Foi umdos primeiros pintores a ter sua biografia escrita por um contemporneo, mas as lacunas e imprecisesdo trabalho ocupam mais espao que as certezas. No entanto,

    o aqui e o agora que definem o sentido de sua obra ganham plena existnciaquando o pintor se prope a narrar os episdios e as situaes de vidacotidiana, com uma preocupao de fazer inveja a um botnico do sculoXIX. Tendo vivido durante o pleno florescimento renascentista das cidades

    flamengas, o universo que elegeu para seus quadros foi, porm, o dasaldeias rurais e sua cultura marcadamente medieval. Por isso, o que de maisseguro se pode dizer da arte de Pieter Bruegel que ela constitui oderradeiro e magnfico testemunho de um mundo em vias dedesaparecimento. Um testemunho que concilia o real e o fantstico, ocotidiano vivido e o imaginrio temido. Um depoimento angustiado,mrbido, dilacerante, pessimista. Fiel (BRUEGEL, 1969, prancha II/III).

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    E isso acontece tambm no quadro que Pieter, nesse momento em que partimos, acaba depintar. O ttulo dessa obra Jogos Infantis. Trata-se de um verdadeiro estudo antropolgico dasatividades ldicas das crianas flamengas do sculo XVI (BRUEGEL, 1969, prancha II/III).

    Figura 1:Jogos Infantis Pieter Bruegel (118 x 161 cm; 1560). Kunsthistorisches Museum, Viena.

    Segundo um investigador paciente, no h aqui menos que 84 brincadeiras. Algumas delas noexistem mais, foram apagadas da memria. Outras existem at hoje, com inmeras variaes. Porm,h algo muito diferente nessa obra. Crianas annimas, nenhuma delas ri. Assemelham-se a pequenosadultos tristes, que apenas se ocupam de uma atividade. E so justamente as formas assumidas poressa atividade que movem a ateno do artista (BRUEGEL, 1969, prancha II/III).

    Ao observar atentamente a obra, pode se tornar impossvel no ficar em dvida a respeito dequem so os personagens nela retratados: adultos ou crianas? difcil definir, pois, segundo Aris(1981), no mundo das frmulas romnicas, e at o fim do sculo XVIII, no existem crianascaracterizadas por uma expresso particular, e sim homens de tamanho reduzido (ARIS, 1981, P.51). Ao que tudo indica, essa recusa em aceitar na arte a morfologia infantil encontrada, alis, namaioria das civilizaes arcaicas (ARIS, 1981, P. 51). Crianas com aparncia de adulto. Adultosem atividade de criana. No passa desapercebido, esse dualismo, esse paralelo evidenciado pelopintor entre infncia e idade adulta.

    O ttulo tambm irnico:Jogos Infantis, como se o pintor nos dissesse que jogos so coisasde criana. Mas nem sempre foi assim. Segundo Aris, era comum, no sculo XVI, crianasparticiparem dos jogos dos adultos:

    Por volta de 1600, a especializao das brincadeiras atingia apenas aprimeira infncia; depois dos trs ou quatro anos, ela se atenuava edesaparecia. A partir dessa idade, a criana jogava os mesmos jogos eparticipava das mesmas brincadeiras dos adultos, quer entre crianas, quermisturada aos adultos. Sabemos disso graas principalmente ao testemunhode uma abundante iconografia, pois, da Idade Mdia at o sculo XVIII,

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    tornou-se comum representar cenas de jogos: um ndice do lugar ocupadopelo divertimento na vida social do Ancien Rgime. (...) Inversamente, osadultos participavam de jogos e brincadeiras que hoje reservamos scrianas. Um marfim do sculo XIV representa uma brincadeira de adultos:um rapaz sentado no cho tenta pegar os homens e as mulheres que oempurram. (...) Logo, podemos compreender o comentrio que o estudo daiconografia dos jogos inspirou ao historiador contemporneo Van Marle:

    Quanto aos divertimentos dos adultos, no se pode dizer realmente quefossem menos infantis do que as diverses das crianas. claro que no,pois se eram os mesmos! (ARIS, 1981, p. 92-93).

    Com o tempo, muitos jogos da corte se transformaram, adaptando-se realidade infantil etornando-se brincadeiras de criana, algumas delas, como a cabra-cega, existentes at hoje.

    Numa tapearia do sculo XVI, alguns camponeses e fidalgos, estes ltimosmais ou menos vestidos de pastores, brincam de uma espcie de cabra-cega:no aparecem crianas. Vrios quadros holandeses da segunda metade dosculo XVII representam tambm pessoas brincando dessa espcie decabra-cega. Num deles aparecem algumas crianas, mas elas estomisturadas com os adultos de todas as idades: uma mulher, com a cabeaescondida no avental, estende a mo aberta nas costas (ARIS, 1981, p. 93).

    Ainda segundo o autor, as cenas medievais muitas vezes tinham nas crianas suasprotagonistas principais ou secundrias, o que

    nos sugere duas idias: primeiro, a de que na vida quotidiana as crianasestavam misturadas com os adultos, e toda reunio para o trabalho, opasseio ou o jogo reunia crianas e adultos; segundo, a idia de que ospintores gostavam especialmente de representar a criana por sua graa oupor seu pitoresco (o gosto pitoresco anedtico desenvolveu-se nos sculosXV e XVI e coincidiu com o sentimento da infncia engraadinha), e secompraziam em sublinhar a presena da criana dentro do grupo ou da

    multido (ARIS, 1981, p. 56).Ao que tudo indica, portanto, no existiam brincadeiras ou jogos de crianas ou de adultos,

    mas simplesmente brincadeiras e jogos, dos quais todos participavam. Aos poucos, as classes sociaismais abastadas comearam a deix-los de lado. Porm, nas aldeias retratadas por Brueghel, elesresistiram por mais tempo. Segundo Aris, partimos de um estado social em que os mesmos jogos ebrincadeiras eram comuns a todas as idades e a todas as classes. O fenmeno que se deve sublinhar oabandono desses jogos pelos adultos das classes sociais superiores, e, simultaneamente, suasobrevivncia entre o povo e as crianas dessas classes dominantes (ARIS, 1981, P. 124). Emalguns pases esses jogos no morreram, apenas passaram por transformaes e adaptaes, porexemplo, na Inglaterra, os fidalgos no abandonaram, como na Frana, os velhos jogos, mastransformaram-nos, e foi sob formas modernas e irreconhecveis que esses jogos foram adotados pelaburguesia e pelo esporte do sculo XIX. (ARIS, 1981, P. 124). Nesse contexto, podemos citar

    tambm, os tempos atuais, nos quais os esportes se destacam, e entre eles o futebol, que sempre seevidencia entre as atividades cotidianas de crianas e adultos, e tem sua origem nos jogos antigos.

    Primeira parada: um livro de histrias

    Pula carnia, menino,Cinco meninos na praa,

    Mais um balo voejando,Tanta coisa, quanta coisa...

    (ORTHOF, 1987)

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    Nossa mquina do tempo avanou cerca de quatro sculos. Estamos em 1987. Emquatrocentos anos, a viso a respeito da infncia em muito se modificou. Surgiram teorias diversas arespeito do desenvolvimento da criana. A criana no mais um pequeno adulto, um homem detamanho reduzido, mas sim um ser com caractersticas e necessidades muito diferentes das que setem na idade adulta. A cada dia, surgem materiais que evidenciam um mundo prprio a essasnecessidades infantis: brinquedos, livros, vdeos e materiais diversos.

    E nossa parada agora um livro de literatura para crianas.

    Figura 2: primeira ilustrao do livroDoce, doce E quem comeu regalou-se! Sylvia Orthof (1987)

    Seus autores, porm, so dois adultos: Sylvia Orthoff, escritora, e Tato Gost, ilustrador, que,apesar de crescidos, brincam num jogo de fantasia, que tm como cenrio a pintura do sculo XVI: Jogos Infantis. Aqui, o significado a ela atribudo outro, muito diferente do sentido que o pintorflamengo imaginou na poca em que a criou. Quem inicia a brincadeira Tato, ao recriar a pintura deBrueghel, uma de suas manias. E Sylvia d continuidade ao jogo, dando vida aos desenhos do marido.Nascem, ento, crianas que, vista de um balo, brincam de pular carnia, e saem em busca dedoces. At o dono da venda entra na brincadeira, fazendo cara feia e, ao final, cara de arrependido,assim como o estranho casal formado pelo gato e pela rata da histria.

    No final, temos a concluso:Doce, doce... E quem comeu regalou-se!

    Segunda parada: um relato de infncia

    Daquele contexto faziam parte igualmente os animais: os gatos da famlia,a sua maneira manhosa de enroscar-se nas pernas da gente, o seu miado,

    de splica ou de raiva; Joli, o velho cachorro negro de meu pai, o seu mau-humor toda vez que um dos gatos incautamente se aproximava demasiado

    do lugar em que se achava comendo e que era seu estado de esprito, ode Joli, em tais momentos, completamente diferente do de quando quase

    desportivamente perseguia, acuava e matava um dos muitos timbus

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    responsveis pelo sumio das gordas galinhas de minha av (FREIRE,1983, p.13).

    Voltamos seis anos no tempo... Lembranas de infncia relatadas por um adulto. Em 1981, aoabrir um congresso de leitura, o educador Paulo Freire ensaia escrever sobre a importncia do ato deler e afirma ter se sentido levado gostosamente, a reler momentos fundamentais de sua prtica,guardado na memria, desde as experincias mais remotas de sua infncia.

    Retomando a infncia distante, busca a compreenso do seu ato de lero mundo particular emque se movia, e em suas palavras, at onde no sou trado pela memria - me absolutamentesignificativa. Neste esforo a que vou me entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, aexperincia vivida no momento em que ainda no lia a palavra (FREIRE, 1983, p. 12).

    A partir de ento, o autor se v na casa onde nasceu, num cenrio rural da infncia, no Recife,relembrando as rvores e as sombras dos galhos, bem como os cmodos e o quintal da casa, anatureza, o aprendizado das cores por meio da observao e do gosto dos frutos, as brincadeiras comas rvores e os animais da famlia. O autor analisa a forma como os textos, as palavras, as letrasdo contexto vivenciado por ele na infncia foi constituindo sua leitura de mundo e a forma como osmesmos se encarnavam numa srie de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreenso ele iaapreendendo por meio de percepes visuais, auditivas, olfativas, como por exemplo, o canto dospssaros, o assobio do vento, as cores e movimentos das nuvens do cu, a cor das folhagens, o cheirodas flores...

    Quanto s brincadeiras, descreve as brincadeiras nas rvores que rodeavam sua casa, relatandoque sua sombra brincava e em seus galhos mais dceis minha altura eu me experimentava emriscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores (FREIRE, 1983, p.12). O autorv, portanto, nas brincadeiras, uma preparao para a vida.

    Assim, um adulto revive a infncia, assim como certamente muitos outros adultos costumamfazer, embora poucos se dediquem a escrever essa experincia. Esse exerccio de reviver o passado,segundo Gonalves Filho (1988) ao escrever sobre olhar e memria, estabelece uma relao entre oato de recordar o passado e a inteligncia de mundo de cada um:

    A memria oferece o passado atravs de um modo de ver o passado:exerccio de genialidade, onde h, pois, investimentos do sujeito recordadore da coisa recordada, de maneira que ao termo e ao cabo do trabalho de

    recordao j no podemos mais dissoci-los: ento far tanto sentido entreentender o sujeito a partir do que recordou quanto o que recordou a partir domodo como o fez. (GONALVES FILHO, 1988, p. 99).

    Terceira parada: Infncias revividas

    Minha infncia foi gostosa, pedalavaGincana mangueira rioRibeiro da Getagima

    MaPato nadando no ribeiro

    Saudade dos meus 18 anos.Rezava na capela.

    texto escrito por um aluno de uma sala de aulade alfabetizao de Jovens e Adultos (BACOCINA, 2005, p. 91)

    Embaladas pelas recordaes, vinte e dois anos se passam. Estamos em 2003, numa sala deaula formada por jovens e adultos de diferentes idades, em fase de alfabetizao. Aqui, fundamentadasnos relatos de Paulo Freire, propomos uma retomada a suas leituras de mundo.1 O ponto de partida, ali

    1 Esse trabalho, realizado numa sala de alfabetizao de jovens e adultos localizada no municpio deCordeirpolis / SP, faz parte de uma pesquisa, apresentada como Monografia de Concluso no curso deEspecializao em Alfabetizao da UNESP de Rio Claro / SP (BACOCINA, 2005), e teve como objetivo o de

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    est novamente: Jogos Infantis Bruegel. A leitura dessa imagem pelos alunos composta pordiversas vises:

    - Parece um sanatrio: um jogando gua no outro, um puxando o outro.- Parece mesmo, um sanatrio.- So crianas brincando.- Se fosse tudo criana, era brincadeira, mas tudo velho, tudo adulto...- verdade, so adultos.

    - o ptio de um colgio de idosos. Porque s tem gente de idade. um asilo...- Parece festa de italianos.- igual aquela novela que fez, da Itlia. S ta faltando a uma macarronada.- mesmo, porque tem gente de touca, tem freira...A seguir, contextualizamos a obra e o pintor. A surpresa foi grande, quando souberam que se

    tratava de crianas do sculo XVI, vistas como pequenos adultos. Acreditamos, de certa forma, tersido possvel, neste momento, tornar viva a histria na escola e na sala de aula, devido ao interessedemonstrado pelos alunos ao descobrirem que, em outras pocas, existiram outros costumes, bemcomo outras formas de ver a infncia

    A seguir, em roda de conversa, elaboramos uma lista com as brincadeiras de infncia dosalunos: futebol, cantar, carrinho, esconde-esconde, vlei, casinha, pio, videogame, boneca, balano,pular corda, pega-pega, pique bandeira, bicicleta.

    Percebemos a satisfao dos alunos ao relembrarem as brincadeiras da infncia. Segundorelato de um dos alunos, crescido na zona rural:

    - Como no stio tinha muito servio, quase no dava tempo de brincar, mas as poucas horas debrincadeira eram to boas que foi s o que ficou da infncia. Naquelas horas, a gente esquecia de tudo,da pobreza, da fome, do cansao...

    Foram possveis tambm, durante essa atividade, as trocas entre os alunos mais jovens e osalunos mais velhos, que puderam contar como eram suas brincadeiras nas diferentes pocas. Um dosalunos mais jovens, afirmou nunca ter jogado pio, enquanto alguns dos mais velhos nunca ouviramfalar em videogame. Perguntamos a eles se gostariam de combinar um dia para levarem seusbrinquedos e trocarem experincias, mas nenhum se interessou. Os mais jovens demonstraram ficarcom vergonha de brincar com sua idade. J, para os mais velhos, nas palavras de um deles:

    - Ah, no! A brincadeira da infncia boa na lembrana. O tempo de brincar j passou.Mas todos os alunos mais velhos concordaram ao afirmarem que as brincadeiras daquela

    poca eram melhores.Hoje t tudo mudado...Tais relatos demonstram como, infelizmente, os jogos, antes to presentes, inclusive entre os

    adultos, deixam aos poucos de existir e vo se transformando em brinquedos estticos, nos quais ascrianas no brincam realmente, apenas olham as figuras brincando enquanto apenas apertam umboto, como acontece, por exemplo, no videogame. triste saber que as geraes mais jovens noconhecem uma brincadeira popular to conhecida como o pio. Triste tambm o olhar que se encontranos mais velhos ao perceberem que hoje t tudo mudado, e que a brincadeira de hoje no maiscomo antes.

    Como coloca Gonalves Filho, ao citar Bosi:

    Hoje, fala-se tanto em criatividade... mas, onde esto as brincadeiras, osjogos, os cantos e danas de outrora? Nas lembranas de velhos aparecem e

    nos surpreendem pela sua riqueza. O velho, de um lado, busca aconfirmao do que se passou com seus coetneos, em testemunhos escritosou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que guardio. Deoutro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que, quando as

    levar os educandos a, mediatizados pela linguagem artstica, se reportarem s prprias experincias de vida,atribuindo, dessa forma, significado aprendizagem da leitura e da escrita. Vale citar tambm que a pesquisa emquesto tem continuidade em dissertao em andamento no Mestrado em Educao na mesma universidade,orientada pela profa. Dra. Maria Rosa R. M. de Camargo

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    perdemos, nos fazem sentir diminuir e morrer (BOSI, In: GONALVESFILHO, 1988, p. 100).

    No entanto, a fala de um dos alunos, torna-se marcante por pela sua profundidade, e podelevar a uma reflexo:

    Se fosse tudo criana, era brincadeira, mas tudo velho, tudo adulto...E se fossem mesmo velhos e adultos, no seria brincadeira? O que seria, ento?

    Loucura, talvez. Uma loucura que poderia estar mais presente nos dias atuais, possibilitando,quem sabe, o resgate de um humanismo esquecido...

    Para onde vamos agora? Um convite...

    Se o reconhecimento e a apropriao podem produzir imagens da infnciasegundo o modelo da verdade positiva, a experincia do encontro s pode

    ser transmutada numa imagem potica, isso , numa imagem que contenhaa verdade inquieta e tremulante de uma aproximao singular ao enigma

    (LARROSA, 1998, p. 197).

    Essa a ltima parada que fazemos juntos. Encerramos nosso texto por aqui. Mas, apesar dofim das letras e palavras aqui presentes, esperamos que a viagem no termine. O prximo destino, asprximas paradas, quem define cada um dos leitores que se dispuseram a dela participar. Temoscerteza de que muitos j realizaram suas prprias pausas em meio s paradas propostas, acrescentandosuas prprias lembranas, realizando sua viagem peculiar em meio s letras aqui presentes, e talvez atdiscordando do que foi escrito. Alguns, talvez, ainda faro essas paradas a partir daqui. Para a autorada pesquisa aqui citada, o prximo destino j est em curso, na ps-graduao em nvel de Mestrado,junto a um grupo de educadores, convidados tambm a viajar pelas suas prprias experincias de vida,formao e prticas educativas, e pelos jogos presentes em cada um desses aspectos. Ali estnovamente, entre tantas outras imagens, a obra de nosso conhecido Pieter, e seusJogos Infantis, comopontos de partida.

    Como j dissemos, cada um dos tripulantes aqui presentes, com seus infinitos modos de ler,realizar uma diferente viagem daqui em diante. Deixamos aqui, como inspirao para o destinoescolhido, uma nova viso da infncia, proposta por Larrosa (1998). Para o autor as crianas so

    seres estranhos dos quais nada se sabe (LARROSA, 1998, p.183). Mas ao mesmo tempo, em queno se conhece a infncia, possvel

    abrir um livro de psicologia infantil e saberemos de suas satisfaes, de seusmedos, de suas necessidades, de seus peculiares modos de sentir e depensar. (...) Temos bibliotecas inteiras que contm tudo o que sabemos dascrianas e legies de especialistas que nos dizem o que so, o que querem edo que necessitam em lugares como a televiso, as revistas, os livros, assalas de conferncia ou as salas de aula universitrias. (...) E se nosdedicarmos a conhecer pessoas, encontraremos logo multides deprofessores, psiclogos, animadores, pediatras, trabalhadores sociais,pedagogos, monitores, educadores diversos e todo tipo de gente quetrabalha com crianas e que, como bons especialistas e bons tcnicos, tm

    tambm determinados objetivos, aplicam determinadas estratgias deatuao e so capazes de avaliar, segundo certos critrios, a maior ou menoreficincia de seu trabalho (LARROSA, 1998, p.183,184).

    Larrosa no v a infncia dessa forma, como algo que se pode prever e controlar comestratgias e tcnicas. Para ele, a infncia deve ser entendida como um outro, e isso no significadefini-la como o que j se sabe ou como o que ainda no se sabe, mas sim como algo que escapaa qualquer objetivao e que se desvia de qualquer objetivo, como aquilo que permanece ausente eno-abrangvel, brilhando sempre fora dos limites (LARROSA, 1998, p.185).

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    Dessa forma, para o autor, h sempre uma presena enigmtica na infncia, que escapa ao quej sabemos e assim nos inquieta. E a essa inquietao que ele nos convida a atentar, nos dispondo aescutar a essa verdade que desconhecemos, receber a essa novidade que muito vir a nos enriquecer.Larrosa nos convida, portanto, a recusar ao totalitarismo. E exemplifica:

    Uma imagem do totalitarismo: o rosto daqueles que, quando olham parauma criana, j sabem, de antemo, o que vem e que tm de fazer com ela.

    A contra-imagem poderia resultar da inverso da direo do olhar: o rostodaqueles que so capazes de sentir sobre si mesmos o olhar enigmtico deuma criana, de perceber o que, nesse olhar, existe de inquietante para todassuas certezas e seguranas e, apesar disso, so capazes de permaneceratentos a esse olhar e de se sentirem responsveis diante de sua ordem:deves abrir, para mim, um espao no mundo, de forma que eu possaencontrar um lugar e elevar a minha voz! (LARROSA, 1998, p.183).

    Bem, nesse ponto nos despedimos, agradecemos a todos pela agradvel companhia, edeixando este novo convite: o de olhar a infncia no com olhos pedagogizantes, baseados naquelatentao da pedagogia que, como define Larrosa, lhe oferecia ser a dona do futuro e a construtora domundo, e que transformava alguns dos aspectos da infncia em ferramentas utilizadas para sedominar tecnicamente (pelo saber e pelo poder) as crianas que encarnavam o futuro por vir e omundo por fabricar (LARROSA, 1998, p. 196). Convidamos a olhar a infncia com olhosbrincalhes, presentes nas diversas caixas de brinquedo, caixas imprevisveis e enigmticas, que aoserem abertas, no contm algo pronto, estereotipado, mas sim, peas com formas divertidas einusitadas, de algo novo, a ser construdo e inventado. E nessa construo, certamente, estar presentea possibilidade de inveno de novas histrias: histrias de infncia, histrias de vida, histrias daeducao.

    Referncias:ALVES, R. A complicada arte de ver. Folha de So Paulo, So Paulo, 26 out. 2004. Folha Sinapse,p. 19.ARIS, P. Histria Social da Criana e da Famlia. 2a ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.BACOCINA, E.A. A importncia do ato de ler na alfabetizao de jovens e adultos: o movimento

    entre a leitura de mundo e a leitura da palavra mediado pelas linguagens visual, potica e musical.Monografia de Concluso de Curso de Ps-Graduao lato sensu Especializao Alfabetizao,sob a orientao da Profa. Maria Augusta H. W. Ribeiro. UNESP - Rio Claro-SP: fevereiro de 2005.BRUEGEL. In: Gnios da Pintura. So Paulo: Abril Cultural, 1969. v. 3.FREIRE, P. A importncia do ato de ler em trs artigos que se completam. 28 ed. So Paulo:Cortez, 1983.GONALVES FILHO, J.M. Olhar e memria. In: NOVAES, A. (Org.). O olhar. So Paulo:Companhia das Letras, 1988. p. 95-124.LARROSA, J. O enigma da infncia. ou o que vai do impossvel ao verdadeiro. In: PedagogiaProfana. Porto Alegre: Contrabando, 1998, p.183-198.ORTHOF, S. Doce, doce e quem comeu regalou-se! So Paulo: Paulus, 1987. (Coleo Pontode Encontro. Srie algodo doce)