Historia Da Igreja Antiga - Pe. Paulo Ricardo

50

description

A história da Igreja Católica antiga

Transcript of Historia Da Igreja Antiga - Pe. Paulo Ricardo

AULAS 01. Igreja: continuidade histrica da Encarnao de Cristo ................................. 1 02. O surgimento das ideologias anticrists......................................................... 5 03. O Imprio Romano e a expanso do Cristianismo .......................................... 8 04. A perseguio dos cristos pelo Imprio Romano ......................................... 10 05. A heresia gnstica ....................................................................................... 13 06. A heresia gnstica nos dias atuais ............................................................... 16 07. A perseguio aos cristos e o imperador Constantino ................................. 18 08. O Edito de Milo e a Heresia Ariana ............................................................ 21 09. O Patriarca Invisvel e a defesa da ortodoxia da f ........................................ 26 10. Os Padres Capadcios ................................................................................. 29 11. Santo Anto e So Bento, os gigantes da vida monstica ............................. 32 12. So Joo Crisstomo e o Imprio Bizantino ................................................. 36 13. As grandes controvrsias cristolgicas do sculo V ...................................... 39 14. Conclio de Calcednia ................................................................................ 42 15. So Leo Magno e a teologia do poder pontifcio .......................................... 44 1 01. Igreja: continuidade histrica da Encarnao de Cristo AHistriadaIgreja,diferentementedeoutrosobjetosdeestudo,requerparasua compreenso plena um esforo prvio. Isso ocorre devido natureza complexa da Igreja. Ela no meramente uma instituio humana, que pode ser entendida somente no mbito humano. Noumaagremiao,umgrupodepessoasunidasemsociedadecomumfim especfico. No. A Igreja um mistrio e, se este for perdido de vista, a histria que dele deriva ser apenas uma caricatura. Para ilustrar, um fato histrico: a converso de um homem chamado Saulo de Tarso, o qual nasceunaatualTurquia,nosopdomonteTaulus,pertodoMarMediterrneo.Saulofoi educadonacidadedeTarso,dentrodaculturahelenstica,masaomesmotempojudaica. Sendo seus pais judeus devotos foi levado at Jerusalm para estudar na escola de Gamaliel. Saulo percebeu que estava acontecendo algo estranho no judasmo de sua poca: um homem chamado Jesus de Nazar. Quandoalgumserefere aJesus,mesmo quemnotemf,normalmenteofaz de maneira respeitosa, reconhecendo nele algum "iluminado", um "sbio". Contudo, s pode considerar Jesus como um "sbio" aquele que Nele tem f. Isso se explica porque Jesus, em sua vida histrica, reivindicou para si o ttulo de "Filho de Deus", por si s escandaloso. E assim em todo o Evangelho. Um exemplo desse escndalo o Sermo da Montanha, uma obra literria admiradaatmesmoporquemnotemf,noqualElediz:"ouvistesoquefoidito...eu, porm,vosdigo..."(conf.Mt5,21-22).ContextualizandoaspalavrasdeJesuspossvel perceber que, de alguma forma, Ele reformula o que est no Antigo Testamento, esclarecendo a Palavra de Deus, com uma autoridade divina. Paraoshomensdaquelapoca,ouvirJesusdizer:"Eusouocaminho,averdadeea vida", no deve ter sido nada fcil. Uma atitude possvel seria crer que Jesus realmente era Deusfeitohomem.AoutraeraacreditarqueJesusnadamaiseraqueumlouco.Porisso, desdeoseunascimento,JesusdeNazarfoiumafigurapolmica.Oshomensque acreditaram em Jesus possuam f. Ainda hoje, para crer que Jesus Deus necessrio f. Ora,SaulodeTarsopercebeuoqueestavaacontecendoemsuapoca.Eleeraumjudeu devoto e no podia acreditar que aquele homem que morrera crucificado em Jerusalm fosse Deus.ParaeleeraimpossvelqueDeussefizessehomem,morressenumacruz, ressuscitassenoterceirodiaesubisseaoscus.Eraimpossvel.Assim,restouasegunda alternativa e Saulo passou a perseguir os cristos. TendoemseupodercartasdeautorizaodoSindrio,emJerusalm,Saulopercorreu diversas cidades, chegando Sria - cuja capital at hoje Damasco -, pois sabia que nessa cidadehaviaumacomunidadedecristos.Comomandadojudicialnasmos,passoua prend-los, pois os considerava um grupo de judeus fanticos e perigosos, que seguiam um louco, blasfemo e, portanto, eram tambm blasfemos. Com essa perseguio, Saulo cumpre a PalavraproferidaporJesusCristo:"Expulsar-vos-odassinagogas,evirahoraemque todo aquele que vos tirar a vida julgar prestar culto a Deus."(conf. Jo 16,2). OqueaconteceuaSaulose encontranarradonolivrodos Atos dosApstolos,captulo9 e vale recordar: 2 "SaulosrespiravaameaasemortecontraosdiscpulosdoSenhor.Ele apresentou-seaosumosacerdote,elhepediucartasderecomendaoparaas sinagogasdeDamasco,afimdelevarpresosparaJerusalmtodososhomense mulheres que encontrasse seguindo o Caminho. Durante a viagem, quando j estava pertodeDamasco,Saulose viurepentinamentecercadoporumaluzque vinhado cu. Caiuporterra,eouviuumavozquelhedizia:"Saulo,Saulo,porque vocmepersegue?"Sauloperguntou:"Quemstu,Senhor?"Avoz respondeu: "Eu sou Jesus, a quem voc est perseguindo. Agora, levante-se, entre na cidade, e a diro o que voc deve fazer." Os homens que acompanhavamSauloficaramcheiosdeespanto,porqueouviamavoz,masno viam ningum. Saulo se levantou do cho eabriu os olhos, mas no conseguia ver nada. Ento o pegaram pela mo e o levaram para Damasco. E Saulo ficou trs dias sempoderver,enocomeunembebeunada.EmDamascohaviaumdiscpulo chamadoAnanias.OSenhorochamounumaviso:"Ananias!"EAnanias respondeu: "Aqui estou, Senhor!" E o Senhor disse: "Prepare-se, e vatarua que sechamaruaDireitaeprocure,nacasadeJudas,umhomemchamadoSaulo, apelidado Saulo de Tarso. Ele estrezando e acabadeter uma viso. De fato, ele viuumhomemchamadoAnaniasimpondo-lheasmosparaquerecuperassea vista." Ananiasrespondeu:"Senhor,jouvimuitagentefalardessehomemedomalque ele fez aos teus fiis em Jerusalm. E aqui em Damasco ele tem plenos poderes, que recebeu dos chefes dos sacerdotes, para prender todos os que invocam o teu nome." MasoSenhordisseaAnanias:"V,porqueessehomemuminstrumentoqueeu escolhi para anunciar o meu nome aos pagos, aos reis e ao povo de Israel. Eu vou mostraraSauloquantoeledevesofrerporcausadomeunome."EntoAnanias saiu,entrounacasaeimpsasmossobreSaulo,dizendo:"Saulo,meuirmo,o Senhor Jesus, que lhe apareceu quando voc vinha pelo caminho, me mandou aqui para que voc recupere a vista e fique cheio do Esprito Santo." Imediatamente caiu dos olhos de Saulo alguma coisa parecida com escamas, e ele recuperou a vista. Em seguida Saulo se levantou e foi batizado. Logo depois comeu e ficou forte como antes.SaulopassouentoalgunsdiascomosdiscpulosemDamasco.Elogo comeouapregarnassinagogas,afirmandoqueJesusoFilhodeDeus.Os ouvintesficavamimpressionadosecomentavam:"Noesteohomemque descarregava em Jerusalm a sua fria contra os que invocam o nome de Jesus? E noelequeveioaquijustamenteparaosprenderelevaraoschefesdos sacerdotes?"Noentanto,Saulosefortaleciacadavezmaisedeixavaconfusosos judeus que moravam em Damasco, demonstrando que Jesus o Messias." (1-22) O trecho em negrito o prenncio de uma revoluo, pois o homem que estava convicto de quefaziabememperseguirosdiscpulosdeJesus,derepentev-sefrenteafrentecomo prprio Jesus, ressuscitado, como luz que ilumina a sua vida, to forte que lhe provoca uma cegueira. Nesse ponto preciso parar e analisar o que de fato aconteceu. 3 AconversodeSaulonofoialgoquesedeudemaneiraisolada,individual,emqueele sozinhoteveumcontatocomJesus.No.Elafoieclesialdesdeoincio.Ora,paraSaulo, Jesus estava morto e sepultado, sua ressurreio era nada mais que um engodo perpetrado pelosseusdiscpulos,aosquaisSauloperseguiaconcretamente.NocaminhodeDamasco, uma luz atinge Saulo e ele escuta uma voz que diz: "Saulo, Saulo, por que Me persegues?". O queSauloperseguia,ento,eraaIgreja.Nessemomentohumarevoluoeclesiolgica, pois, diante da converso de Saulo possvel dizer que a Igreja uma continuidade de Jesus nahistria.AcontinuaohistricadomistriodaEncarnao.queSoPaulotenta explicarnaPrimeiraCartaaosCorntios,utilizando,noCaptulo11,umaanalogiaparase referir Eucaristia. Ele diz: "De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para vocs. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o po e, depois de dar graas, o partiu e disse:"Istoomeucorpoqueparavocs;faamistoemmemriademim."Do mesmomodo,apsaCeia,tomoutambmoclice,dizendo:"EstecliceaNova Aliananomeusangue;Todasasvezesquevocsbeberemdele,faamissoem memria de mim." (23-25) NoCaptuloseguinte,elecontinuaafalardoCorpodeCristo,porm,agoraserefereaele como sendo composto por todos os homens: "De fato, o corpo um s, mas tem muitos membros; e no entanto, apesar de serem muitos,todososmembrosdocorpoformamumscorpo.Assimacontecetambm comCristo.PoistodosfomosbatizadosnumsEspritoparasermosumscorpo, quer sejamos judeus ou gregos, quer escravos ou livres. E todos bebemos de um s Esprito. O corpo no feito de um s membro, mas de muitos. Se o p diz: "Eu no sou mo; logo,nopertenoaocorpo",nemporissodeixadefazerpartedocorpo.Eseo ouvidodiz:"Eunosouolho;logo,nopertenoaocorpo",nemporissodeixade fazer parte do corpo. Se o corpo inteiro fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo ele fosse ouvido, onde estaria o olfato? Deus quem disps cada um dos membros no corpo,segundoasuavontade.Seoconjuntofosseumsmembro,ondeestariao corpo?H,portanto,muitosmembros,masumscorpo.Oolhonopodedizer mo:"Noprecisodevoc";eacabeanopodedizeraosps:"Noprecisode vocs." Os membros do corpo que parecem mais fracos so os mais necessrios; e aqueles membrosdocorpoqueparecemmenosdignosdehonrasoosquecercamosde maiorhonra;eosnossosmembrosquesomenosdecentes,nsostratamoscom maior decncia; os que so decentes no precisam desses cuidados. Deus disps o corpo de modo a conceder maior honra ao que menos nobre, a fim de que no haja diviso no corpo, mas os membros tenham igual cuidado uns para com os outros. Se um membro sofre, todos os membros participam do seu sofrimento; se um membro honrado,todososmembrosparticipamdesuaalegria.Ora,vocssoocorpode Cristo e so membros dele, cada um no seu lugar." (12-27) 4 As palavras de So Paulo so claras no sentido de que no Corpo de Cristo (Eucaristia e Igreja) est presente o mistrio da Encarnao. Se uma hstia consagrada for levada ao laboratrio e analisada, nada se ver alm de po. No se ver o corpo de Cristo, no se ver Jesus. Para seenxergarJesusnaEucaristiaprecisoterf.Deuspermitiu,aolongodahistria, inmeros milagres, sinaisvisveis de queJesus realmente estpresentenaEucaristia. Mas EleestpresentetambmnaIgrejaeSoPauloexperimentouessaverdade(porqueme persegues?). Da mesma forma que no possvel levar a hstia para o laboratrio e enxergar Jesus, no possvellevaraIgrejaparaumestudosociolgicoequererenxerg-Lo.precisoterfem ambos os casos. Se o propsito estudar a Histria da Igreja, necessrio se faz saber que o objetodesseestudosernadamais,nadamenosqueoCristovivoaolongodahistriana sua Igreja. OmodocorretodesechegarverdadeirahistriadaIgrejaestudandoavidados santos, homens e mulheres que historicamente viveram a santidade (que chegaram a um estado de perfeio), cada um sua maneira, vez que existem diferentes graus de pertena Igreja, de configurao a Cristo. Para entender a histria da Igreja preciso conhecer a vida desses santos e o modo como se entregaram a Deus. UmbomexemploavidadeSoPiodePietrelcina,queconfigurou-setointensamentea DeusqueaschagasdeCristoapareceramemsuasmos,psecostas,cujavidatodafoi marcadaintensamenteporfenmenosinexplicveis,verdadeirosmilagres.Umsantoatual, falecidoem1968,equeteveseusmilagresefeitosanalisadospelacinciamoderna.So radiografias,estudosmdicos,atestados,comprovaesdeverdadeirosportentosrealizados pormeiodessehomemsanto.Noforamapenasintervenesligadasaoscarismas,mas prpriasantidadedele(bilocao,estigmasquenocicatrizaramdurantecinquentaanose que poucos dias antes de sua morte fecharam-se inexplicavelmente e no deixaram nenhum sinal, entre muitos outros). O ncleo da histria da Igreja est na vida dos santos, no fato de Cristo viver nesses homens, os quais so a continuao da Sua Encarnao. Porm, no se deve estudar sem f, pois isso perder de vista o objeto a ser estudado. preciso ter f na Igreja de Cristo, s assim possvelestudaressahistriafascinantedeCristoEncarnadoaolongodahistriada Humanidade. 5 02. O surgimento das ideologias anticrists AntesdeprosseguircomoestudodaHistriadaIgrejaprecisocompreenderqueexistem ideologias interessadas na destruio da Igreja. Um exemplo claro de uma inteno ideolgica a prpria historiografia recente da Igreja. muito fcil notar que existe um preconceito contraaIgrejaeelefoiconfeccionadoideologicamenteporumgrupodeintelectuais, filsofos iluministas franceses do sculo XVIII e XIX. A Revoluo Francesa (1789) no foi um fenmeno espontneo, pelo contrrio, foi preparada tantopolticaquantoideologicamente. Paracompreend-laprecisoestudaroquea antecedeueosseusbastidores.Comprovadamente,existeumavastadocumentaodando contaquepseudointelectuais,falsosfilsofosforam"comprados"porumgrupode banqueiros, a ento chamada 'burguesia', para criar um movimento ideolgico que tornasse possvel a derrubada da monarquia, pois no havia outro modo de eles chegarem ao poder. Osfalsosfilsofoscriaramumarededementiras,notadamentecontraaIgrejaCatlica,os jesutas,orei,anobrezaetc,fabricandoumclimadeinsatisfaoerevolta,utilizandoa literaturacomo meiode propagao dasmentiras. Comofoidito, esse movimentofoi criado artificialmentemedianteainjeodedinheiro,contudo,algunspensadoresacreditaram sinceramentenomovimentofalsoderevolta,comofoiocasodeJeanJacquesRousseau,o qualnosetemnotciadequetenharecebidoqualquerquantiadadita"burguesia",mas que, no entanto, foi um dos melhores idelogos desse movimento. O incio do movimento, portanto, foi dado por filsofos medocres, mas a continuidade dele foi feitaporfilsofossriosquepassaramatrabalharparaaderrocadadamonarquiaeda Igreja.DentrodaideologiaIluminista,portanto,estembutidatodaumamaneiradese contar a histria que no aquela acontecida, mas feita de modo que instaure a revoluo, que mude o status quo. Naquelapoca,aimprensaacabaradeserinaugurada,osjornaiseramraros.Mas,uma tcnicabemsucedida,inventadaporChristophFriedrichNicolai,cuidoudepropagarcom sucessoaideologiailuminista:asfeirasdelivros.Comocrescenteinteressedapopulao peloslivros,Nicolaipassouaorganizarasfeiras,porm,selecionavaoslivrosqueseriam postosvenda,p.ex., seolivroeracontraaIgreja,contraamonarquia,seelepregavao materialismo,oatesmoeraescolhido,casocontrrio,no. Issofomentouomovimento revolucionrio. Historicamente, sabe-se que o rei da Frana convocou os Estados Gerais, o parlamento, para resolverumproblema referenteaosimpostos,poisaCoroa estavaindofalncia.Umavez reunidos, surpreendentemente, os representantes dos Estados franceses passaram a redigir uma Constituio, planejando a derrocada da monarquia. Destemodo,porcausadastcnicasaplicadas: investimentoemescritoresparaque produzissemmaterialcontrrioIgrejaemonarquia, eadifusodesseslivrosnas feiras idealizadas por Friedrich Nicolai, contribuiram de maneira decisiva para o surgimento desse fenmeno artifical, em vigor at hoje, que tem por objetivo denegrir a Igreja Catlica. 6 Outro ponto a ser frisado que em qualquer livro de Histria existem divises, classificaes das pocas.Essasdivisesforam estabelecidasjustamente duranteo Iluminismo, portanto, imbudasdeideologia.CadattuloatribudoaosperodosdaHistriatraznele mesmouma valnciaideolgica:IdadeAntigaeIdadeModerna.Entreumaeoutra,umperododemais ou menos mil anos no qual o Cristianismo desempenhou um papel fundamental nahistria do Ocidente. ComaquedadoImprioRomanodoOcidente,nosculoV,apsoqueabarbrietomou conta, a Igreja tornou-se a referncia cultural na Europa at a queda do Imprio Romano do Oriente. Ideolgicamente era preciso "matar" esse perodo. Por isso recebeu o nome de "Idade Mdia",emquehaviaarazonaAntiguidade,comseusgrandesfilsofos,seguidoporum perododetrevas,naqualarazofoisubstitudapelasuperstio,pelastrevas,pelo cristianismo. A partir do sculo XV, quando ressurge o paganismo, em substituio gradual ao cristianismo, o nome que se d "Renascimento", seguido pelo sculo das Luzes, no qual a Deusa Razo triunfa e surge o Iluminismo. Ora,essetipodehistoriografiapodesertudo,menosalgoisento,equilibrado. pura ideologia. Rgine Pernoud, grande historiadora medievalista, fala com toda clareza o quanto a IdadeMdiafoiumapocadeextraordinriodesenvolvimentoeminmerosaspectos. NotadamentenasituaodamulhernasociedadequedurantetodaaIdadeAntiganada maiserauma"coisa",propriedadedopaterfamilias,dopaidefamlia,domarido,oqual tinha o poder de mat-la, caso no estivesse satisfeito. Ora,ocristianismomudouradicalmenteessaviso.Nele,amulheradquiriudignidade semelhanteadeseuesposo,alis,estudossrioscomprovamqueocristianismotornou-se popular justamente porque as mulheres perceberam que a converso dos esposos os impedia de mat-las, por isso elas se empenhavam para que eles aderissem ao cristianismo. NaIdadeAntigajamaisseouviufalardeumamulherreinando,jnaIdadeMdiaelaera coroadajuntocomoRei.Muitosfeudoseramcomandadosporabadesemuitospor abadessas.Foiocristianismoque,olhandoparaadignidadedamulher,colocouaVirgem Santssima como Rainha do Cu e da Terra, fornecendo um instrumental espiritual para que se compreendesse a dignidade da mulher. ComoRenascimentoamulhernovamentecoisificadaperdendoasuadignidadee importncia,justamenteporcausadavoltadopaganismo,davisoantiga,dopr-cristianismo.AesposadoReinomaiscoroadacomorainha,emgeral,asmulheresse tornamobjetosdedesejosexual,inclusiveescravas,poisfoijustamentenoRenascimento que a prtica escravagista retornou. Na Idade Mdia no havia escravos, mas to-somente o servodagleba,quenoerapropriedadedosenhorfeudal,masmantinhacomeleuma aliana: impostos em troca de proteo militar. Portanto,oRenascimentosignificouumapagar-sedasluzesenoumretornodas luzes. Apagaram-seasluzesdosvalorescristoqueplasmaramtodaaculturadaIdade Mdia.preciso,destemodo, entenderquetodaahistoriografiacontrria IgrejaCatlica foi confeccionada quase que totalmente por vrias ideologias cuja finalidade era e derrubar 7 aIgreja,detendoainflunciadosvalorescristosnasociedade,afimdedartrelalivreao paganismo que reina na cultura atual. OobjetivodessecursoapresentarumahistriadaIgrejabaseadanaverdadedos fatos, dentrodeumaacurcia,umaprecisodosfatoshistricosrelatadosenquantotal,e depois,umainterpretaodessesfatosluzdaf.Seaverdadehistricafordolorosa, mesmoassimserrelatada.Pecadosdepapas,infidelidades,traies,heresias,lutas internas,tudoissoserabordado,massempretendoemvistaaIgrejadeCristoque, justamente por ser "a Igreja de Cristo", desde o incio perseguida at mesmo internamente. A carne, o mundo e o demnio so os trs inimigos do homens e tambm da Igreja. Existe a foradaconcupiscncianosmembrosdaIgreja,existeamundanidadedentrodaIgrejae tambmexisteaaodemonaca.Masnosisso,existeaaodoEspritoSanto,a presenadeGraa,acertezadequeDeusconduzasuaIgreja.NossoSenhorJesusCristo previa isso na ltima Ceia: "odiaram a mim, odiaro tambm a vs", (conf. Jo 15,18). Portanto, para se estudar a Histria da Igreja preciso estudar o amor de Deus na histria da humanidade, mas tambm o dio que marcou e ainda marca a Esposa de Cristo, chagada, quesegueocaminhodeseudivinofundador:aSuaPaixoeCrucifixo.Aesperanado cristodequehaverumdiaaressurreioeseveraEsposadescerdoalto,quando ento todos sero um s com Cristo. Ser a escatologia, o fim da histria da humanidade e o fim da Histria da Igreja. 8 03. O Imprio Romano e a expanso do Cristianismo O nascimento e a rpida expanso do Cristianismo s foi possvel pela conjuno de alguns fatores. Dentre eles est a situao do Imprio Romano, tema que ser abordado nesta aula. Comotexto embasadorsugerimosaleitura daobra"A Igreja dos Apstolos edos Mrtires", do escritor e historiador francs Daniel-Rops. Trezentos anos antes do nascimento de Jesus Cristo, um jovem que fora aluno de Aristteles, chamado Alexandre Magno, possuidor de grandes sonhos militares, com pouco mais de trinta anosdeidade,conseguiuconquistarumimprio.Morreuantesdeconsolidarasua conquistaquefoidivididaentreosseusgenerais.OmaiorlegadodeAlexandreMagnofoi propiciar as bases para um fenmeno que viria a ser muito importante: o helenismo. AlexandreMagnoobtevesucessoemsuasconquistasporquepermitiuqueaculturados povos orientais subjugados fosse mesclada cultura grega, numa espcie de sincretismo. O pensamentohelenistatornou-secomoqueumcaldeirodeculturas,comumariqueza enorme, inclusive de religies, de tal forma que havia uma abertura para a novidade religiosa efoiporessaportaqueoCristianismopdeentrar.Efoinestecontextoqueosromanos tomaram o imprio grego e apoderaram-se de suas terras, a vitria militar dos romanos no significouofimdaculturagrega,pelocontrrio,foimotivodesuaexpanso.Ambasas culturas,gregaeromana,mesclaram-se,surgindooquehojesechamadeculturagreco-romana. O poder romano teve trs fases: dos reis, da repblica e do imprio. Nelas houve a elaborao eoaperfeioamentodaculturaromana.JesusnasceunapocadoprimeiroImperador, chamado Otaviano Augusto, um gnio militar e poltico. Na fase da Repblica, o poder era exercido pelo Senado, contudo, havia uma previso de que em momentos de grandes conflitos, somente uma pessoa governava, uma espcie de ditador. Issodavarapidezstomadasdasdecises.OtiodeOtaviano,JulioCesar,exerceuessa prerrogativa republicana e acabou por desferir um golpe de Estado. A desonestidade poltica deJlioCsarfoiaproveitadapeloseusobrinhoeherdeiropoltico,oqualapropriou-sedo ttulo"Csar"efoiaclamadoaindacomoutrottulo"Augusto",ficandoconhecidocomo "Csar Augusto". Apesar de o Imprio Romano ter perseguido e causado bastante transtorno ao Cristianismo, nesse momento da histria foi importantssimo, pois o modo de Csar Augusto governar, ou seja,commodeferro,possibilitandoumacertaestabilidadeparatodooimprio,foium pressupostoparaaexpansodoCristianismo.AEuropasemapazromanaseriato-somenteumamontoadodepequenosreinosconflitantesentresi,mas,emboraOtaviano Augustofosse simum homem muitofirme, at mesmoviolento,os romanos demonstravam gratido pela paz que ele conquistou. Atualmente,porcausadaleituramarxistadahistria,tem-sequeareligiouma superestruturaquesexisteparasustentarainfraestrutura,formadapelarealidade econmica.ParaMarx,tudoqueprovmdafilosofia,religio,pensamento,arte,cultura, msica etc., pertence superestrutura, montada em cima da infraestrutura para sustentar o podereconmicodeumgrupo,portanto,paraele,nuncaexistesinceridadenumculto 9 religioso.Trata-sesempredeummtodoartificial,propagandstico,comonicointuitode manter um determinado grupo no poder. No caso dos romanos, o Imperador. Contudo,osdocumentosdapocacomprovamnosomenteaexistnciadocultoao imperador, mas tambm a sinceridade daqueles que o faziam, reconhecendo-o como um bem. Viamcomoumsinaldivinoapazconquistada.OImprioRomanoimplantouaordem utilizandotambmcomoinstrumentooDireitoRomano,oqualpreviaumcaminho processual, tal qual ocorreu na priso de So Paulo, narrada nos Atos dos Apstolos. QuandooImprioRomanotomouopoder,instaurouumasituaodepaz,prosperidade econmica,razovelharmoniaque,paraosmoldesdehoje,aindaseriaconsideradauma situao de tirania terrvel, porm, para o povo da poca, representou uma mudana positiva em comparao com o que o se vivia antes. Por isso, o Imperador era cultuado como sendo um mensageiro divino. Destemodo,numprimeiromomento,onascimentodoCristianismonoImpriopodeser consideradocomoalgobom,comoumabno.Entretanto,embreve,issomudar.Nas prximas aulas veremos como. 10 04. A perseguio dos cristos pelo Imprio Romano Na aula passada, foi estudado o ambiente no qual surgiu o cristianismo: o Imprio Romano, bem como a cultura do helenismo, a chamada pax augustana, ou seja, o momento de paze relativa tranquilidade na qual o cristianismo floresceu e que tornou possvel a sua expanso. Esse mesmo Imprio foi o primeiro adversrio srio que o cristianismo teve de enfrentar. Esta aula versar sobre a perseguio aos cristos. O cristianismo comeou a ser perseguido pelos judeus. A chamada excomunho dos cristos deu-se porque os cristos foram considerados traidores do judasmo. Todavia, a perseguio ganhourelevnciahistriasomentequandopassouaserfeitapelosimperadoresromanos. Elaseencerrounoanode313d.C,quandoConstantinotornou-seoprimeiroimperador romano assinou o dito de Milo. Durante os primeiros sculos alguns fatos tornaram-se notrios na persecuo, o primeiro a sercitadofoiaperseguiodeNero.Donodeumamoralabsolutamenteperversa,o imperadorNeronoeraamadopelopovo.Noano64d.C,houveumgrandeincndioem Romaealgunshistoriadores,dentreeles,Suetnio,afirmaramqueofogoforaateadopor Nero.Outroshistoriadores,especialmenteTcito,nocorroboraramessainformao.De qualquermodo,Neroacusouoscristosdeteremperpetradooincndio,comobodes expiatrios, e passou a persegui-los sistematicamente, culminando com o martrio de Pedro e Paulo,emRoma,oquesecomprovahistoricamentepelosrelatosdapoca.Assim,pode-se afirmar com certeza que as Baslicas de So Pedro e de So Paulo, na Cidade Eterna, foram erguidas nos locais onde os grandes da Igreja foram sepultados. NeromandouconstruirumcircoforadacidadedeRoma,dooutroladodorio,nosopda ColinaVaticano.TudoindicaquefoinessecircoquesedeuomartriodeSoPedro.No centro desse circo, Nero mandou colocar um obelisco, uma pedra monoltica de granito de cor rosada,trazidadeHelipolis,noEgito.Estemesmoobeliscoencontra-sehojenocentroda PraadeSoPedro.Figurativamente,oobeliscofoitestemunhadomartriodePedro.Efoi sepultadonaviaAurlia,ondehaviaumanecrpole.Oscristosmandaramfazerum ornamentoparaotmulo,oqualganhouonomedeOtrofudeGaioeesseenfeitefoi encontradonadcadade50,emescavaessolicitadaspeloPapaPioXII,asquais comprovaram tambm que So Paulo foi sepultado realmente na via Ostiense. Aperserguioduroucercadetrssculos,porm,emdiferentesintensidades.Num primeiromomentofoidirigidaaoslderesdoscristos,depoispassouparaosleigoseisso ocorreu aps a ordem do imperador Septmio Severo, o qual decretou que todos os cristos, cidadosdoimprioromano,deveriamrendercultoeoferecersacrifciosaonovodolo,o imperador, o qual seria portador da centelha divina. Isso seria comprovado pela emisso de um libelo, espcie de atestado. Importante recordar que os romanos realmente criam que havia algo de divino no imperador, poiselehaviaconseguidodarumaespciedepazaopovo.Destemodo,aorecusarem-sea cultuar o imperador, os cristos foram tomados como mpios, transgressores. Alm disso, os cristoserammalquistospelaprpriapopulao.AsperseguiesemLyonsoumbom 11 exemplodisso,poisaperseguioporpartedasautoridadesfrancesasfoiprecedidapelas arruaas do prprio povo que estavam linchando os cristos. Os cristos pareciam ser ateus, pois rejeitavam o culto dos deuses adotados pelo povo, no tinhamdolosesefaziamseguidoresdeumCristo.Contudo,deacordocomoquefoi relatadoporTcito,emseusAnais,Cresto(assimfoigrafado)foiapenasummarginal condenadomorte,napocadoprocuradorPilatos,naJudeia.Eramapenasfanticos, seguidores de um marginal. Assim os cristos eram vistos pelos romanos. Alm de serem tachados de ateus, os cristos foram acusados de fazer sacrifcios humanos, envolvendo crianas, pelo fato de que afirmavam comer da carne e beber do sangue do Filho de Deus. Diziam que passavam a criana numa espcie de farinha e depois imolavam-na com umafacaespecial,acomiam.Porfim,eramacusadostambmdeteremrelaessexuais incestuosasporquechamavam-seunsaosoutrosdeirmos.Todasessascalnias colaboraram para tornar o cristianismo muito impopular. ComodecretodeSeptmioparaquetodosprestassemcultoaoimperador,oscristos passaram a ser perseguidos com muito mais intensidade e violncia. No ano 250 d.C., houve agrande perseguio deDcio e em 300d.C.,adeDeocleciano. A primeira foina poca de Orgenes, o qual proferiu a famosa frase: diante de uma tentao, o cristo, ou sai mrtir ou sai idlatra. Noanode313d.C,oimperadorConstantinoassinouofamosoditodeMilo,liberandoo culto a Deus. No h uma cifra exata de quantos cristos morreram nessas perseguies. De modoclaro,existemcercademilmrtirescujahistriaelocaldesepultamentoso conhecidos.Numatentativadeseestimaronmeroaproximado,tem-secercade20.000 mrtires,oquerelativamentepoucopertodosbilhesdemrtiresqueocomunismo produziu no sculo XX. Quandosefalaemmartriooquevemmentejustamenteaperseguioocorridanos primeirossculos.Mascomo,seograndemartriosedeunosculoXXesedaindanos temposatuais?Trata-sedeumasituaosingularemqueapropagandadosinimigos suplantou a realidade. No se fala em martrio hoje. Um outro problema relacionado o fato de que a grande maioria dos cristos hoje j no cr que a f algo pela qual no se mata, mas algo pelo qual se morre. A identidade do cristo, espelhada nos mrtires dos primeiros sculos, quase se perdeu. Com isso, nem preciso que o inimigo ataque, os prprios cristos cuidam para que vena. o que diz o livro Cordula, do renomado telogo Lars Urs von Balthasar, escrito para contrapor a teoria de Karl Rahner dequetodohomemnascecristoequejustificaochamadorelativismoreligioso.Para Balthasar, aceitar a ideia de Rahner zombar do martrio dos primeiros cristos, rir deles por no saberem que todas as religies so iguais. NolivrodoApocalipseexistemduasbestasejopovoantigovianelasosdoisgrandes adversrios da Igreja: o poder poltico (imprio) e a religio. O Imprio se utilizava da religio parajustific-lo.Essasduasbestasestobemvivasaindahoje.NosculoXXI,uma pretensodegovernomundial,encarnadaconcretamentenaONUenaeliteglobalistaque 12 tentainfluenciarnasoberaniadospases.Paraconseguirseuintento,precisounificaras religies. Nessesentido, existenasede daONU, emNova Iorque, umacapela ondetodasasreligies so representadas, inclusive o cristianismo, ou seja, todas so colocadas no mesmo patamar. Estepluralismo,essanovareligiojustificaopoderglobal,onovogovernomundial.Os cristossochamadosaenfrentar,maisumavez,essagrandedificuldadequeseergue. Seria,porm,muitotriste,seosinimigosdaIgrejanosepreocupassemcomoscristos, comooepisdiodescritoemCrdula,poisestesmesmosfazemotrabalhodese autodestruir. 13 05. A heresia gnstica ApesardagrandeperseguiosofridapeloscristosduranteoImprioRomano,conforme visto na aula passada, a Igreja continuou crescendo. Esse fenmeno foi muito bem explicado por Tertuliano, escritor cristo do terceiro sculo, que viveu no norte da frica: o sangue dos mrtiressementedenovoscristos.Mas,amaiorameaaenfrentadapelocristianismo recm-nascido foi a dificuldade cultural, espiritual e religiosa do gnosticismo. Ognosticismo eraum fenmeno religioso efilosficonoqualse encontrava uma explicao para a origem do mundo, e do mal no mundo, de uma forma mais plausvel que a oferecida pelocristianismo.Apretensaracionalidadedognosticismoatraiuumnmeroconsidervel de pessoas e acabou por adentrar ao seio da Igreja nascente, de certa maneira parasitando-a, sugando suas foras e fazendo com que os devotos se tornassem falsos devotos, pois aderiam a uma filosofia estranha ao cristianismo. EmsuaobraA Igreja dos Apstolos e dosMrtires,Daniel-Ropsdescreveuo gnosticismo, tambm chamado de heresia do conhecimento, da seguinte forma: Ognosticismoapoiava-seemduasidias:adasublimeelevaodeDeus,idia tomadadosjudeusdostemposmaisprximos,paraquemJavsetornara infinitamentelongnquoemisterioso-oPoder,oGrandeSilncio,oAbismo-,ea misriainfinitadohomemedasuaabjeo.Mostrava-seobsessionadopordois problemas,exatamenteosmesmosquehojecontinuamaprenderaatenodas inteligncias: o da origem damatria e da vida, obrasto visivelmente imperfeitas de um Deus que se diz perfeito, e o do mal no homem e no universo. [...] Deus, nico eperfeito,estabsolutamenteseparadodosseresdecarne.EntreEleeesses seres,houtrosseresintermedirios,osonesqueemanamdEleporviada degradao;osprimeirosassemelham-seaDeusporteremsidogeradosporEle, masporsuavezgeramoutrosmenospuros,eassimsucessivamente.Clculos esotricos de nmeros permitiam dizer quantas classes de ones havia, e o conjunto formava o mundo completo, os trezentos e sesseta e cinco graus, o pleroma. (p.284 e 285) Assim, para os gnsticos, principalmente para aqueles que seguiam a vertente de Valentino, eraimpossvelqueoDeusPerfeitotivessecriadoessemundotoimperfeitoecheiode misria.Criaramentoumsistemadedegradaoquejustificariaomalnohomemeno mundo.Paraeles,Deuscriouparesdeons(sizgias,paresativos-passivos,masculinos-femininos,machos-fmeas),osquaisoriginaramquatrocasais(octades),degradaram-see deram origem a outros cinco casais (dcades), novamente degradaram-se e originaram mais seiscasais(duodcades).Quantomaisdegradadostantomaisdistantesdadivindade(on). Naltimadegradao,haviaumonpassivo(feminino)chamadoSofiaque,tomadapela soberba,quisdarorigemaalgosozinha.Elacriouamatriaeumoutroonmuitssimo imperfeito, chamado Demiurgo. Daniel-Rops explica de maneira resumida: Nomeiodasrie,umoncometeuumafalta:tentouultrapassaroslimites ontolgicos e igualar-se a Deus. Expulso do mundo espiritual, foi obrigado a viver a suadescendncianouniversointermedirio,efoinasuarevoltaqueelecriouo 14 mundomaterial,obramemarcadapelopecado.Aesteonprevaricadoralguns gnsticos chamam Demiurgo, e outros o identificam com o Deus criador da Bblia. (p.285) ODemiurgo,ento,brincandocomamatria,criouomundomaterial.Comoeleestava isoladodosdemais onesacabouporcrer-se onico e,aindasegundoValentino,passoua revelar-se aos homens, originando o Antigo Testamento. Daniel-Rops continua: Que acontece ao homem nestas perspectivas? Em si, ele no integralmente mau, vistoque,comosupremaemanaodoon,contmumacentelhadivina,um elemento espiritual cativo na matria e que aspira a ser libertado. A falta existir; o mal a vida. Aqueles que se contentam com existir, os hlicos ou materiais, esto rigorosamenteperdidos;aquelesqueempreendempelagnoseocaminhoda salvao,ospsquicos,podemavanarrumopazdivina;aquelesque renunciaramatodaavida,osespirituais,iniciadossuperioresealmasmuito elevadas, so os que se salvam. (p.285) Para os gnsticos, Jesus no era o Filho de Deus, mas um on que, atravs do conhecimento, guiariaaspessoaspresasmatriaaoverdadeiroDeus.Umpsicopompo.OautordeA Igreja dos Apstolos e dos Mrtires, sintetiza: Mesmo atravs de um resumo to breve, vemos at que ponto tais especulaes se opunhamaocristianismo.ApersonagemhistricadeJesusdesapareciaeCristo noeramaisdoqueummembrodahierarquiadivinadeones,easuacarne humanaumaespciedeinvlucroilusriodacentelhadivina.Oidealcristoda redenodohomeminteiro,almaecorpo,pelosofrimentoemortedeCristo encarnado, e o da realizao do reino de Deus, eram substitudos por uma espcie deapeloaonirvana,pelalibertaodaalmaarrancadasabjeesdomundo material.Amoralcristcediaolugaraumaoutramoralque,umasvezes brutalmente hostil ao corpo, conduzia a asceses excessivas; e outras, pelo desprezo da carne, tornava-se complacente e dava livre curso aos instintos. (p. 285) Aheresiagnsticapossuaumarderacionalidademuitoatraente.Amaldadeemisriado mundo era colocada na conta do Demiurgo, deixando Deus livre. E tambm pelo fato de que asalvaoeraalgofcildeserconseguido,poisbastavaapessoatomarconhecimentode tudo isso e seria libertada. Aceitaragnosesignificafazerpartedeumaelite,deumgrupodeescolhidos(os pneumticos).Amissodesteseralevaroconhecimento(agnose)aosegundogrupo,os psquicos.Paraoterceirogrupodepessoas,oshlicosnohaviasalvao,postoqueno possuam alma, nasceram para serem destrudos. Ognosticismoseproliferoudemaneiraespantosaentreocristianismo,comobemdisse Daniel-Rops,comoumcncerespiritual.EranecessrioqueaIgrejareagisseeassimse deu. Cada comunidade se agrupou em torno de seu bispo, que era o legtimo depositrio da tradio ortodoxa, e as instituies crists se tornaram mais precisas e rigorosas, para que o cidodaheresianoascorroesse.(p.289)Emespecial,surgeafiguradeSantoIrineude Lyon, nascido na atual Turquia, provavelmente prximo Esmirna, que teve Policarpo como 15 bispo.PolicarpohaviaconhecidooapstoloJooque,porsuavez,haviasidoodiscpulo amado de Jesus. A fim de combater a heresia gnstica, Santo Irineu usa como argumento a sucesso apostlica. A ideia da tradio apostlica algo bastante documentado ao longo da histria. No final do primeirosculo,quando,provavelmente,SoJooaindaestavavivo,houveumbispo chamadoInciodeAntioquia,oqualfoilevadoparaRomaafimdesermartirizado.No caminho,SantoIncioescreveudiversascartaseexistemregistrosdesetedelas.Nelas,o santo enfticoao dizerque paraser Igreja preciso estarunidoaoBispo,ao episcopado. Ubiepiscopus,ibiecclesiae,ondeestobispo,aestaIgreja.Emoutracarta,Santo Incio afirma que a Igreja de Roma quem preside sobre as demais (a Igreja de Roma preside na caridade), ou seja, a Igreja no ficou catlica, mas j nasceu catlica. Nestas cartas se v claramente o princpio da catolicidade, a estrutura e a hieraquia da Igreja. Santo Irineuviveu depoisdeSanto Incio etevede enfrentaraheresiagnsticaque estava seduzindo o seu rebanho. Para tanto, ele escreveu a sua maior obra intitulada Exposio e refutao da falsa gnose, mais conhecida como Adversus haereses (Contra os Hereges), em cinco volumes: (...)nosdoisprimeirosvolumes,SantoIrineuanalisacomprecisotodasas heresias de seu tempo; diz ele: Expor os sistemas venc-los, assim como arrancar umaferadasselvasetraz-laparaaluzdodiatorn-lainofensiva.Poroutro lado,nosltimostrsvolumes,apresentaadoutrinaortodoxadetal formaque os errosherticosnomaisseropossveis.Assimsurgeumpensamentofilosficoe teolgiconotonovoquantoslido,equenofuturoservirdebaseparatodoo pensamento cristo. (...) Materialmente,noumasequnciaqualquerdepretensosiniciadoscujo pensamentonosepodedeterminar;atradiodaIgreja,quetodospodem conhecer, a dos bispos, cuja lista se pode estabelecer, a de Roma, que desempenha aqui um papel eminente. Espiritualmente, no um dado fossilizado, que maltrata a inteligncia;umprincpiodevidaqueoEspritorejuvenescesemcessar,que orienta a razo e lhe determina o fim. (p. 292) Um outro fator explorado por Santo Irineu de Lyon no combate s heresias, especialmente ao gnosticismo, foi a chamada Regula Fidei, ou seja, a Regra de F, a reafirmao da f primeira de que Deus um s e Eleo criador do cu e da terra. No h outro Deus e se o mundo est mal, no por causa da matria - que boa -, mas por causa do diabo, seus demnios e dos prprios homens. Para a Igreja Catlica o pecado no tem origem na matria. Deste modo, com os trs pilares descritos: os bispos (sucesso apostlica), a regula fidei e a SagradaEscritura,aIgrejafoirespondendoaospoucosagravedificuldadeemquese constituiu a heresia gnstica. 16 06. A heresia gnstica nos dias atuais O gnosticismo teve seu auge na poca de Valentino e foi duramente combatido pela Igreja, na pessoa deSanto Irineu,conformejvisto.Essepensamento pareceutersidoaniquiladodo seiodaIgreja,masaverdadequeelesedisfaroueseescondeu,permanecendovivoao longo da histria. Nunca acabou realmente. No final da Idade Mdia aflorou novamente com bastanteforaatravsdaheresiadosctarosedosalbigensesefoicombatidopelaSanta Inquisio. Mais uma vez, a heresia gnstica se retraiu e pareceu ter desaparecido. O pensamento gnstico parece tambm ser algo bastante distante dos dias atuais. Algo que ficounopassado.Infelizmente,issonoverdade.Grandestelogos,comoEricVoegelin, HansUrsvonBalthasar,HenrideLubac,entreoutros,estodeacordoemafirmarqueos pensamentos de muitos telogos liberais so gnsticos. No somente isso, mas que a matriz do pensamento moderno possui uma forte influncia do gnosticismo. Oatrativodognosticismoofatodequepossuiumaexplicaoparaaorigemdomalno mundo. Segundo ele, o mundo est mal, est errado, porque foi mal feito. O Demiurgo criou o mundo de maneira imperfeita. Mas, eles, os gnsticos, oferecem tambm a soluo para esse supostoproblema:achaveoconhecimento.Asalvaonoparatodos,masparaos "escolhidos", os "eleitos", os que possuem o segredo. Isso mexe com a vaidade das pessoas. Nopassado,ognosticismoatribuaosproblemaseamaldadedomundoaoDemiurgo. Atualmente, a culpa de tudo do sistema. Um exemplo muito claro o pensamento marxista, eminentemente gnstico. As injustias do mundo so explicadas por ele por meio da ideologia (umsistemadeideiasconfeccionadoparaalienaraspessoas,fazendocomqueelasno enxerguemomundodeverdadeefiquemaprisionadasnosistemadepensamento).A libertao se d quando a pessoa conhece a teoria crtica do marxismo, nesse momento ela se livra das amarras do sistema. Tpico esquema gnstico. OfilmeMatrixrefleteoesquemagnsticonumalinguagemmoderna.Eleexplicaquea humanidade est dentrodeum programade computador(sistemadeideias queaprisiona). Um enviado(Neo)temcomo missolibertaropovoda Matrix,levando-oparaa"realidade". Novamente o pensamento gnstico. Damesmaforma,asuniversidadesestoabarrotadasdeprofessoresgnsticos,osquais estoconvencidosdequeavisodomundocomum,ocidental,cristo,umavisode mundo de um sistema opressor, errado. Ento, ele tem a misso de, pelo conhecimento, levar as pessoas para fora do mundo opressor: esquema gnstico. Apretendidaigualdadeentreossexostambmapresentatendnciagnstica.Adiferena existente entre homem e mulher vista pelos cristos como algo da vontade de Deus e que, portanto,deveserrespeitada.Cadaumtemedevecumpriroseupapel.Asvocaesso diferentes,maspodemseunirnavocaomatrimonialeassim,tantohomemquanto mulher,realizarodesgniodivino.Contudo,opensamentodaideologiadegnerova diferenacomoumgrandeerro.NoatribuemoerroaDeus,umavezqueparaelesDeus nemsequerexiste,masaumaideologiaopressoramachista.Noaceitamasdiferenas naturais (fsicas) entre os dois sexos. Existe a uma revolta contra a estrutura criacional, uma revoltacontraDeus,oqualfariapartetambmdessaideologiaopressora,patriarcal.Por 17 isso, os gnsticos modernos lutam para quebrar o esquema tradicional por meio da revoluo de ideias. EssepensamentoesttambmdentrodaIgreja.ocasodaTeologiadaLibertao, totalmentepermeadapelopensamentognstico.ATLseapropriadovocabulriocristo, esvazia-o de seu sentido e insere contedo pago, diferente do original. Por exemplo: "Povo de Deus",noentendimentocatlicosignificatodoopovodeDeus,oPapa,osBispos,os sacerdotes, os leigos, religiosos, etc., ou seja, todos. J para os adeptos da TL, marcada pelo marxismo,aexpresso"povodeDeus"refere-seaumaclasse:osproletrios,os trabalhadores, os oprimidos. Nem todos so povo de Deus. As diferenas hierrquicas dentro daIgrejasoconsideradasabsurdas,partedeumsistemaopressorquecriouumaigreja "classista". Segundo eles, o clero no superior aos leigos, no possuem um poder sagrado, mas so, to-somente, funcionrios do povo. E assim, a Igreja transformada desde dentro. Troca-seocristianismoporumsistemagnstico,transformandooscristosdevotosem agentes de transformao de um novo sistema. Nafilosofia,todoopensamentohegelianognstico(tese-anttese,negativo-positivo).A gnosedeHegelentrouparainfluenciarocristianismo,pormeiodeumpsiclogotambm gnstico,chamadoCarlGustavJung,oqualcriticaocristianismo,poiseleteriaabolidoo negativo da divindade. Tanto para Jung quanto para Hegel, Deus tem que ter o negativo e o positivo, por isso Satans faz parte da divindade, mais que isso, o princpio mais dinmico e ativo dela, muito mais que o Deus que os cristos castraram tirando toda a sua potncia. OpensamentodeJungoriginadodeHegeleminentementegnsticoe,mesmoassim, existemmuitaspessoasdentrodaIgrejaquecreemqueeleumpsiclogoaceitvelpelo cristianismo.LogosevqueainflunciadognosticismodentrodaIgrejaCatlicaatual enorme.Trata-sedeumfenmenoquemerecetodaaateno.MonsenhorLuigiGoivanni Giussani, fundador do movimento "Comunho e Libertao", afirmou que o grande problema do mundo moderno no o atesmo, o agnosticismo, mas justamente a gnose. a gnose que fazcomqueocristianismosetransformenumacontrafao,numafalsidadee,aomesmo tempo,transformacristosdevotosemagentesdetransformaoculturalaquemservem sem ter conscincia. 18 07. A perseguio aos cristos e o imperador Constantino OltimograndeimperadordoImprioRomanofoiDiocleciano(284-305).Elegovernou duranteoperodoqueficouconhecidocomoBaixoImprioe,emboraessettulotenhapor objetivoapenassitu-locronologicamente,temsidoutilizadotambmparafazerreferncia ao declnio do Imperio, sua decadncia em todos os aspectos. DioclecianopercebeuqueoImprioestavasendoameaadoporinimigosexternoseque poderiaseresmagadotambmporseusproblemasinternose,comsuashabilidades estratgicas, encontrou a soluo mais adequada para o momento. O grande escritor Daniel-Rops,emcujaobra"AIgrejadosApstolosedosmrtires"estecursoseinspira,diza respeito da ideia de Diocleciano: Antes de mais, era necessrio dar uma base slida obra de seus predecessores, osimperadoresilricos,etornarimpossveloretornoquelaterrvelcrisede anarquiaquedurantetrintaanosameaarafazersoobraroImprio.Ocorreu-lhe queosterritriosconfiadossuaguardaeramexcessivamentevastosparaas foras de um s homem, e que seriamindispensveis vrios chefes paramantera ordem e defender as fronteiras. Ao mesmo tempo, esta partilha de autoridade podia servirpararesolverdeumamaneiradefinitivaasempredelicadaquestodas sucesses. Dois anos depois de assumir o poder, em 286, associou a si um colega, Maximiano,umpannioinculto,soldadoaventureirodeplohirsutoefeies obstinadas,masdotadodeumaenergiaferozequemantinhapeloseuamigoum indefectvelrespeito.MaximianoadotouosobrenomedeHrcules,enquanto DioclecianoreservouparasiodeJpiter,oquemarcavabemasdistncias.O Imprio foi dividido em duas partes, ficando Diocleciano com o Oriente e Maximiano com o Ocidente. Estava criadaa diarquia. O sistema foi completado em 293 com a criaodedoisnovosimperadoresque,comoosprimeiros,exerciamopoderem regiesdistintas,ocupandonoentantoumacategoriainferior.Dioclecianoe MaximianodetinhamosttulosdeAugustus,aopassoqueosoutrosdoiseram somente Csares. E assim nasceu a tetrarquia. (p. 387) Nosanosseguintesreinouumarelativapaz,naqualoscristospuderamexercerafde modotranquilo,semperseguies.Aomesmotempo,oImprioRomanopassavapor transmutaes,pois,"medidaqueprogredianocaminhodaorganizaopblicae centralizadora,osistematetrrquicopodiasuportarcadavezmenosqualquerespciede no-conformismo."Ostetrarcashaviamimplementadooquenemosmaisloucosdeseus predecessores haviam conseguido: eles se declararam deuses em vida, inclusive com rito de adorao. Diante disso, Diocleciano entendeu que: A oposio entre o cristianismo e este regime de coao oficial resultava da prpria natureza dos dois adversrios: j ento a Igreja, em face do totalitarismo, assumia uma atitude de recusa e de resistncia. Diocleciano acabou por compreender que os cristosnuncacolaborariamnosseusesforosequeseconservariam substancialmente, na oposio. (p. 390, 391) 19 Sendooscristosobstculosaseremvencidos,Dioclecianoiniciaaperseguiomais sangrentaecrueldahistriadocristinianismo.Contudoelanoaconteceudemodo repentino, pois, como foi dito, o Imprio e o cristianismo viveram em paz por cerca de trinta anos.HistoriadorescontamquefoigraasinstigaodeGalenojuntoaDiocleciano, afirmandoquehaviaanecessidadedeumadepuraoentreosoficiaisqueeladefatose iniciou.Apsalgunsacontecimentospontuaisenvolvendocristos,finalmenteDiocleciano decidiu-se pela fora e baixou um primeiro edito contra eles (24/02/303) proibindo os cultos, mandandoqueasigrejasfossemdestrudas,oslivrossagradosincineradosequeos funcionriospblicosabjurassem.Todavia,oeditonoincentivavaamorteeatorturados cristoseissosomenteocorreuapsdoisincndiosbastantessuspeitosaconteceremno palcio de Diocleciano. Num deles, Galeno "abandonou a capital, gritando que no queria ser queimadovivoeinsinuandoquenoteriadificuldadealgumaparaencontraros responsveis", claramente se referindo aos cristos. Diante disso, Diocleciano foi tomado pelo pavor e totalmente alucinado, tomou as seguintes medidas: Exigiuqueamulhereafilhaabjurassemexpressamente,mandouprenderoseu camareiro-mor, o cristo Doroteu,assim comoo bispo Antima e grande quantidade desacerdotesefiis,quepereceramnomeiodasmaishorrveistorturas.Trs editossucessivosacentuarampassoapassoorigordasmedidas,eps-se novamente em vigor a ordem de Dcio pela qual todos os cristos eram obrigados a sacrificar. Desencadeava-se a perseguio sangrenta atravs do Imprio. (p. 392) A perseguio continuou cada vez mais violenta e cruel visando sobretudo encontrar os livros sagrados para queim-los. Com isso inaugurou-se um novo perodo da era crist: a era dos mrtires, pois muitos preferiram dar o sangue e a vida para proteger os livros e se manterem fiisaCristo.Aperseguiomaiscruentaqueocristianismoenfrentouduroudezanos aproximadamenteecontoucomtodasortedeatrocidadescontraoscristos,oquegerou inmeros e detalhados relatos de martrios. O homem que poria um fim perseguio e mudaria os rumos do cristianismo chamava-se Constantino. Filho de Constncio Cloro, um dos tetrarcas, a quem coube o Imprio Romano doOcidente,foiproclamadoAugusto,apsamortedopaiereveliadeGaleno,quelhe concedeuapenasottulodeCsar.Apsvriasvitriasmilitares,Constantinotorna-seo nico poder no Oriente. Esse feito gerou ainda mais inveja em Magncio, filho de Maximiano, porque j havia sido rejeitado em favor de Maximino Daia, filho do Csar Maximiano, e, com a ascenso de Constantino ficou ainda mais enfurecido. Nesse estado de nimo, decidiu dar um golpe de estado em Roma, proclamou-se Augusto, assumindo o poder. Magnciodeclarou-se"onicosoberanolegtimo,onicodescendentedosgrandes imperadores",oquemotivouConstantinoaempreenderumagrandecampanhacontraele. MarchouparaRomacom40.000soldados,passandoinclumepelosAlpeseobtendo inmerasvitriasecapitulaesdoinimigopelocaminho.Roma,aosaberdessasnotcias, trocouodesdmporConstantinopelomedoeentrouempolvorosa.Magncioconsultaos futurlogos e ouve do orculo que no deve sair da cidade, pois caso o faa, morrer. 20 ConstantinomarchapelaViaFlamnia,acampanasproximidadesdeRomanodia27de outubro e, no dia seguinte, aps uma grande batalha, vence os exrcitos de Magncio, o qual perece durante a luta, seu corpo encontrado boiando no rio, sua cabea cortada e exibida pelacidadeespetadanumalana.AlmdavitriaestratgicadeConstantino,essabatalha tem ainda um outro significado: ela marca a converso de Constantino ao cristianismo, num episdio cercado de mistrio e interpretaes, mas que no pode ser negado historicamente. Daniel-Rops narra o episdio da seguinte forma: Umanoite-dizLactncio-,poucoantesdabatalha,Constantinoteveumxtase durante o qual recebeu de Cristo a ordem de colocar sobre o escudo das suas tropas um sinal formado pelas letras CH e R ligadas; este, com efeito, o monograma que se encontra nas moedas e inscries constantinianas. Quanto a Eusbio, informado - segundo diz - pelo seu heri imperial, que no fim da vida lhe teria contado todos os pormenores do episdio, eis a sua verso: momentos antes de entrar na luta contra Magncio,ConstantinoapelouparaoDeusdoscristoseento,emplenodia,viu no cu, para os lados do poente, uma cruz luminosa com estas palavras em grego: "Comestesinalvencers".Nanoiteseguinte,Cristoapareceu-lheemostrou-lhea cruz, convidando-o a mandar fazer uma insgnia que a representasse. Esta insgnia oLabarum,estandarteemformadecruzque,apartirda,acompanhouos exrcitos de Constantino. (p.407) Muitoshistoriadores,aindahoje,afirmamqueaconversodeConstantinonopassoude uma manobra poltica para angariar a simpatia dos cristos e unificar o Imprio. Contudo, os dados histricos demonstram que Constantino era um homem que "acreditava", um crdulo. Anteriormentehaviainvocadoodeussol,ochamadoSolInvictum,numaoutraocasio afirmoutertidoumavisodeApolo.Noeraumctico.Almdisso,suameHelena, tambm era uma devota crist. A ideia mais plausvel que Constantino de fato converteu-se ao cristianismo, mas manteve os seus traos supersticiosos. O Imprio Romano ainda era pago. Enquanto a elite era pag, a classe subalterna era crist. QuandoConstantinose converteu efoiaceitoemRoma como Imperador,aclassedirigente providenciouosrituaispagosnecessriosparasuaposse.Eleaceitousubmeter-seaos rituaisporumaquestopoltica,mastambmporqueasuperstiofaziapartedasua natureza, em que pese a converso. Mais que isso, ele permaneceu catecmeno durante toda asuavida,tendosidobatizadoapenasemseuleitodemorte.Estaprticaeracomum naquelapoca,poisaIgrejaadministravaosacramentodapenitnciademodomuito rigoroso e, caso a pessoa tivesse cometido pecados muito graves, deveria passar longos anos em penitncia e mortificaes. Esse fato no depe contra Constantino. Emboramuitosvejamnessaconversoumagrandedesgraa,poisaIgrejateriase "paganizado",inegvelqueDeusseutilizoudessehomem-comtodososseusdefeitose mazelas-paradarIgrejaumtempodepazedeprosperidade,permitindoqueela florescesse, como de fato, aconteceu nos sculos seguintes. 21 08. O Edito de Milo e a Heresia Ariana ApsestabelecerapaznoladoocidentaldoImpriocomavitriasobreMagncioeseus exrcitos,Constantinodecideencontrar-secomLicnio,oImperadordoOriente.Numa manobra poltica,oferece asuairm,Constana, como esposaparaLicnio. Areunio para celebrar as bodas deu-se em Milo e durante as tratativas para o casamento, Constantino e Licnio decidiram sobre diversos pontos polticos, inclusive sobre os cristos. Dessas reunies resultouodocumentoquemudariaradicamenteorumodocristianismonahistria:o chamadoEditodeMilo.Daniel-Rops,emsuaobra"AIgrejadosApstolosedosMrtires" que norteia esse curso, tece o seguinte comentrio explicando em que consistiu o documento: A expresso no deve ser tomada ao p da letra. No chegou at ns qualquer texto, assinadoepromulgadoemMilo,quefixeasbasesdapolticacrist.Oque conhecemossoapenasalgumascartasdeConstantinoeoutrasdeLicnio,as primeirasmencionadaspor Eusbioeassegundaspor Lactncio,quetransmitem, acompanhadas de comentrios, um certo nmero de clusulas. Tem-se perguntado seoEditodeMilonoteriasidoumsimples"protocolo"assinadopelosdois Augustosapsassuasentrevistas,comofimdepassaralimpoasdecisesque tinham tomado em comum. (p. 409) O Edito de Milo, portanto, foi uma srie de clusulas, as quais podem ser reduzidas a uma s:"Aliberdadedereligionopodesertolhidaenecessriopermitir,quantoscoisas divinas,quecadaumobedeasmoesdesuaconscincia".Aliberdadedecultofoi estendida aos cristos, os quais vinham sendo duramente perseguidos desde Diocleciano. Na sequncia, uma srie de privilgios que acabou por fortalecer o cristianismo: AIgreja,agorareconhecida,temodireitodeserajudadaareconstruirassuas runas: o culto, agora lcito, deve ter condies para poder ser praticado. As decises imperiaisdistinguemduasespciesdeconstruescrists:asigrejas,"lugaresde assemblias",easpropriedadescoletivas,certamenteoscemitrioseoutras.Sem indenizao,semreclamaodepreo,semdemoraesemprocesso,tudoser restitudoaosfiis,eoEstadoseencarregardeindenizarterceirosquetenham adquiridodeboafessesbens.OeditodeGalrio,em311,eadecisode Magncionamesmaocasio,haviamjestabelecidoregrasmuitoaproximadas, mas por razes de oportunismo poltico ou de interesse pessoal do imperador. Mais importanteseramestasprescriesde313,poisassociavamoprincpiodas reparaes legtimas ao da liberdade espiritual. Era o incio de uma nova ordem. (p. 410) ConstantinonotransformouocristianismoemreligiooficialdoImprioRomano,que continuou a ser fundamentalmente pago. Sendo certo, porm, que a partir da chamada paz constantinianaocristianismopdecrescercadavezmais.Noentanto,foinessapocaque afloraramtambmosconflitosteolgicos,reprimidosduranteagrandeperseguio.Uma segunda grande crise na Igreja surgiu: a crise ariana. Naquela poca havia duas grandes cidades no Oriente, Alexandria, no Egito e Antioquia, na SriaRomana(que,atualmentepertenceTurquiaetemonomedeAntakya),nasquais 22 grandespensadoreselaboravamasbasesteolgicascrists.Nasduascidadeshaviauma riquezafilosficaeculturalmuitogrande.Precisamentenestapocafloresciaoneo-platonismoe,aomesmotempo,umgrandemovimentoculturaljudaico,ligadoaFilode Alexandria; todo o processo de traduo do Antigo Testamento do hebraico para o grego, na renomadatraduodosSetenta;tambmhaviaafamosabibliotecadeAlexandreque, infelizmente,foiqueimadaporCsaraotomarpossedacidade.Emtermosgeogrficos, Alexandria era muito importante, pois localizada prxima ao delta do Rio Nilo. E foi nela que nasceu a heresia ariana. Seu idealizador: rio-tinhaemsiumamisturainextrincveldequalidades edefeitos, fundidos no cadinhodesseorgulhoqueencontramossemprenosgrandeshereges.Nadanele erainsignificante:nemainteligncia,nemocarter,nemaviolncia,nema ambio. O seu belo rosto macilento, o seu ar de austeridade modesta, a severidade serena e vibrante de suas palavras, tudo parecia feito para seduzir, e por isso eram muitas as jovens apaixonadas que o rodeavam. Sbio e dotado do dom da dialtica comosopodiaterumorientalimbudodeespritogrego,era-segundosediz- virtuoso,duroparaconsigomesmo,dadoapenitnciaseasceses,aureoladode dignidadeequasedesantidade.NumLuteroque,mallargouohbito,cedeuao calordosangueesecasou,asrazesdasuarebeliopodiamnoparecermuito teolgicas, mas, quanto a rio, nada se podia dizer contra ele no plano moral; e no era menos perigoso por isso. (p. 446-447) riofoiordenadojemidadeavanada.Antes,porm,beberaemvriasfontesde conhecimento, sendo profundo conhecedor de diversas doutrinas. Alm disso, era um grande pregador,possuindoumtalentonatoparaapublicidade.Pessoasdetodasaspartesde AlexandriapassaramafrequentarsuaparquiaemBaucalisapenasparaouvir-lheas palavras,asuagrandeerudio,tantoquechamouaatenodobispoAlexandre,oqual optou pela via pacfica e convocou rio e seus seguidores para exporem suas ideias perante um snodo. Daniel-Rops explica o pensamento ariano da seguinte forma: Comotodasasheresias,partiadeumaidiajusta:adagrandezasublimee inefvel de Deus. nico, no gerado, Deus "Aquele que ", como j dizia o Antigo Testamento, o Ser absoluto, o Poder e a Eternidade absolutos. At aqui tudo estava certo.Masrioacrescentava:"Deusincomunicvel,porquesesepudesse comunicar,teramosdeconsider-loumsercomposto,suscetveldedivisese mudanas",deduoquesaimprecisodostermostornavaaceitvel.Ora, continuavario,seElefossecomposto,mutveledivisvel,seriamaisoumenos corporal; mas isso no pode ser, donde se conclui que sem dvida incomunicvel e que, foradEle,tudocriatura,includoCristo, o VerbodeDeus.Aqui estoponto exatoemquesesituaoerro:Jesus,oCristo,oFilho,noDeuscomoPai;no seuigualnemdamesmanaturezaqueEle.EntreDeuseCristoabre-seum abismo, o abismo que separa o finito do infinito. (p. 448) A inteno de rio era salvaguardar o monotesmo, por isso dizia que se existe um s Deus, no possvel haver a trindade, pois isso equivaleria a trs deuses. Para ele, Deus verdadeiro o Pai. Dele veio o Filho. E somente a o Esprito Santo. Trata-se da posio conhecida em 23 teologia como subordinacionismo. Somente o Pai Deus, o Filho divino, mas no Deus e o EspritoSantoestnumacategoriaaindamaisinferior.Essavisojexistiaanteriormente na Igreja, porm, os telogos ainda no haviam encontrado uma linguagem que a traduzisse comclareza.rioconseguiu.Eemborativessecontrasioseubispo,possuacontatoscom bisposdeoutrasdiocesesqueconcordavamcomsuavisosobreaTrindade.Dentreeles estavaobispodeNicomdia,chamadoEusbio.Assim,aoserconvocadopelobispo Alexandre, sentiu-se amparado por sua rede de amigos e, de maneira muito tranquila, exps aosnodooseupensamento,empequenasfrases,fceisdeseentender.Areuniodos bispos foi descrita da seguinte maneira: O snodo decorreu num clima cheio de exaltao. Excetuados dois ou trs, todos os bispos presentes estavam ao lado de Alexandre, isto , da ortodoxia, e contra rio. Houve momentos dramticos, como quando o heresiarca, arrastado pela sua lgica, afirmouqueCristoeraumacriaturae,portanto,teriapodidoerrarepecar,ea assembliasoltouumgritodehorror. rio foicondenadoecomelealgunsclrigos deAlexandria,deMaretisedaCirenaica,quetinhamaderidossuasteses. Recebeuordemformaldesubmeter-seoudemitir-se.Durantealgumassemanas, tentou ainda conservaro lugar de presbtero, mas logo verificou que, paratravara batalha, precisava sair do Egito. E saiu. (p. 450) A sada de rio no significou o fim da heresia, pelo contrrio, o que havia sido "uma simples agitaolocal",tornou-seum"vastomovimentoemcontnuaexpansoportodooOriente, esse solo frtil para todo tipo de religies estranhas, de teorias aberrantes e de inesgotveis especulaes sobre os mistrios divinos." J no Ocidente, a heresia encontrou um campo no tofecundo,poisoscristosocidentaiseram"menosdadosdiversointelectual,se preocupavammaiscomviverocristianismoeintegr-lonorealdoquecomcoment-lo,o desmedido gosto oriental pelas palavras abriu s teses arianas um campo ilimitado." Por meio de cartas, rio contatou aqueles que supunha corroborarem com seu pensamento, cooptando-os.Aotomarconhecimentodessattica,obispoAlexandretambmdirigiuuma carta aos seus aliados, iniciando assim, uma intensa batalha. Nodecursodoinvernode323-324,nohaviaumapessoainstrudanoOriente cristoqueignorasseestariminenteumacrisequeprometiasermuitograve.Os bisposescreviamunsaosoutros,querafavorderio,quercontraele.Alexandre recebiacensurasdeEusbiodeCesaria.Oprprioheresiarca,parabaralharas cartas,faziacircularum"smbolo"emque,resumindosuasteses,asenvolvia habilmenteemtantasexpressesdeduplosentido,frasesequvocasefigurasde linguagem,quemuitaspessoasbemintencionadaspodiamserinduzidasemerro. (...)Quantoaobompovocristo,queapropagandaarianacuidavamuitodeno esquecer, repetiam-se refres de cnticos que o prprio rio compusera e nos quais, sob a piedosa suavidade de palavras edificantes, se escondiam erros abominveis. (p. 450-451) Aomesmotempo,ConstantinofinalmentederrotavaLicnioesetornavaonicoImperador Romano. Chegando na cidade de Nicomdia, "viu com horror que pesava sobre a Igreja uma 24 ameaa de diviso bem pior do que aquele que ele pensava ter evitado na frica". Aps longas noitesmeditandosobreagravecrise,Constantinoenvioucartasaosdoisladosdadisputa: ao bispo Alexandre e para rio, pedindo que reconsiderassem e se colocassem novamente em comunho. Para entregarasmissivas designouobisposiodeCrdovaque,apsouviras duas partes da contenda, decidiu-se por permanecer ao lado da Igreja, portanto, contra rio. Contudo,oesperadoacordopretendidoporConstantinonoveioe,durante"umconclio provincialreunidoemAntioquiaparaelegerumnovobispoterminavaemtumulto,porque, tendo-sediscutidoaquestoderio,trsouquatroprelados,entreosquaisEusbiode Cesaria,tinhamdefendidodescaradamenteoherege."Algodeveriaserfeitoparaencerrar aqueladisputaqueestavadividindoaIgrejadeCristo.Paratanto,Constantinoconvocouo primeiro conclio ecumnico da histria da Igreja: o Conclio de Nicia. Constantino fez as convocaes diretamente.Convidou pessoalmente cada um dos bispos,pormeiodecartasrepassadasdomaistocanterespeito,nodizerde Eusbio.Quemfoiconvocado?Quemapareceu?Semprecheiodeentusiamo, Eusbio afirma que "a flor dos ministros de Deus chegou de toda a Europa, da Lbia edasia"eque"umascasadeoraes,comoquedilatavapelopoderdivino reuniu srios, cilicianos, fencios, rabes, palestinos, gente do Egito, da Tebaida, da Lbia, da Mesopotmia" e que se contavam tambm o bispo da Prsia, macednios, trcios,aqueus,epirotas,eatque"osmaisdistantesvieramdaEspanha,como, por exemplo, um muito ilustre." (p. 453) AdiscussomaisimportantedoConclioversousobreaRedeno.OdiconoAtansio colocou a questo em discusso nos seguintes termos: "a Redeno no ter sentido se no for o prprio Deus quem se tenha feito homem, se Cristo no for ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem." E mais, "o Filho no uma criatura; existiu sempre e sempre se conservouaoladodeseuPai,unidoaEle,distintomasinseparvel;foisempreinfalvele perfeito." O Conclio exprimiu este fato dizendo que "o Filho consubstancial ao Pai." Oquesev,portanto,ainequvocacondenaodopensamentoariano.Apenascinco bispospermanecerampublicamentecomrioecomeleforamparaoexlio.Outros,mais astutos, empreenderam uma manobra para permanecer nas boas graas: Pensaramquepodiamfazersobreviverassuasdoutrinascomumainsignificante mudana de grafia. Substituram a palavrahomoosios, que quer dizer "da mesma substncia",pelapalavra homoiosios,quesignifica"deumasubstncia semelhante". Entre as duas palavras no h diferena seno de um iota, mas essa diferena,mnimanaaparncia,erafundamental,etemosdeavaliarbema importncia da jogada. Entre homoosios e homoiosios, havia um abismo: de um lado,aidentidadecomDeus;dooutro,asimplessemelhanaouno-dissemelhana. O gnio sutil dos gregos aprendera perfeitamentea diferena, e os Padresortodoxosorientaisteroprecisamenteamissohistricadeafirmara identidade,adespeitodetodasassedues,tentaeseargcias.Estaastcia ortogrfica havia ainda de ter consequncias muito graves. (p. 456) 25 Quandoosbisposvoltaramparacasa,porm,arrependeram-sedeterempermanecidoao ladodeAlexandre.O"partido"derionohaviamorridoeseusintegrantestrataramde demonstrar que era um absurdo existir uma profisso de f com uma palavra que no existia naSagradaEscritura.Aomesmotempo,Alexandrevoltaparacasajuntamentecomoseu diconoAtansio,oqualeleitonovobispodeAlexandriaapsamortedeAlexandre.O imperador Constantino, tambm influenciado pelos arianos, tergiversa, cancela punies e a heresiaarianatomacorponovamente.ComamortedeConstantino,novamenteinstala-se uma crise, pois seus dois filhos herdam o Imprio. O lado oriental do Imprio coube ao seu filhoConstncioeoladoocidentalaConstante.Constncioeraarianoe,pormeiodele,o partido ariano ter um novo sucesso. No Oriente, com a converso do imperador ao arianismo, muitos bispos tambm aderiram heresia.SoJernimodefineessapocacomaseguintefrase:"omundodormiucristoe, surpreso, acordou ariano", ou seja, rapidamente todo o mundo oriental aderiu ao arianismo. Noladoocidental,porm,cujoimperadoreracristo,aftrinitriafoimantida.Apoltica exerciauminfluncianegativanaIgreja,poisaomesmotempoemqueosimperadores davam ao cristianismo a possibilidade de crescer, uma certa ingerncia comeou a aparecer. AIgreja,porsuavez,demonstrouterbastantepersonalidadeefidelidadeaNossoSenhor JesusCristopara,mesmonasadversidades,manter-sefirmenafapostlica.Eessa fidelidade ser o tema das prximas aulas. 26 09. O Patriarca Invisvel e a defesa da ortodoxia da f Aheresiaarianaestendeuseustentculosatospilaresdafcatlica.Psemxequea prpria natureza da Redeno ao questionar a divindade de Jesus. Seu veneno escorreu por todoomundocristo,mas,emboratenhachegadoatosestertores,aIgrejanos sobreviveucomofoirobustecidaporessagrandeluta.Saiumaisfortedabatalhagraas coragem e destemor de grandes homens, dispostos a dar o sangue, se necessrio fosse, para defenderaortodoxiadaf.UmdessesgrandesfoiSantoAtansio,aquemohistoriador Daniel-Rops descreve como: Umapersonalidadegrandiosaeterrvel,umsantoquedominatodaahistria religiosadoEgito-e,quasedacristandadeinteira-duranteestesanos conturbados.Dotadodeumaintelignciaextraordinariamentepenetrante, acostumado a todas as sutilezas do esprito oriental, mas sabendo desmascarar as falsas aparncias e evitar as armadilhas graas a um bom senso positivo que no o deixavacairemqualquerlogro,tinhaumcarterdemaravilhosatmpera,do mesmo ao com que Deus fizera seus Apstolos e os seus mrtires, ao mesmo tempo maleveleforte,retonassuasintenesehbilnassuasmanobras.Dealma profundamentereligiosa,encarnavaotipodessesgrandesmsticosparaquema ao o efeito e o prolongamento da orao e que, no meio das piores lutas nunca se esquecem de que pertencem a Deus. (p. 464) ApsamortedobispoAlexandrefoieleitoparaoseulugarestehomemdegrande envergadura teolgica e firmeza de carter. E Atansio logo se pe em atrito com o heresiarca rio,oqualretornaraapoucodoexlioejestavatratandodelevantarasuadoutrina. Numasurpreendentereviravolta,rioacusaeconsegueacondenaodeAtansiocomo herege,numprocessofraudulentoevergonhoso.Atansiomandadoparaacidadede Trveris,emexlio.AnosmaistardevoltaparaAlexandriae,novamente,aodefenderaf condenadoemandadoparaoRoma.Issoserepetiraindamaisduasvezes.Somentepor volta do ano 346 que "pde finalmente voltar a Alexandria e, durante dez anos, desfrutou deumacertacalma,oquelhepermitiuestabelecerumvastorelacionamentodemaisde quatrocentosbisposfiisaodogmadeNiciaeescreversuasobrasdoutrinaismais importantes." (p. 465) Almdeincansvel defensordaortodoxia daf,Atansiotambmfoioautor de umavasta obraliterria.Dentreoutrosttulos,foielequemrevelouaomundoabelezadavida monstica inaugurada por Santo Anto. Foi ele tambm quem conseguiu transpor a barreira da linguagem rebuscada e abstrata dos pensadores o cerne da f crist, justamente quando combateu a heresia ariana. Ele conseguiu colocar em palavras simples que: OdogmadaEncarnao,basedaRedeno,bemcomoacertezadoPaiigualao Filho, j no so definies ou frios enunciados: so realidades vivas e clidas da alma. 'O Verbo se fez carne para nos tornar divinos', repete ele sem cessar. desta afirmao que o cristianismo viver de sculo em sculo e dela que se tem nutrido at os nossos dias. (p. 466) 27 Almdisso,AtansiofoimuitoperspicazaoperceberqueaIgrejanopodiapermitira ingerncia dos imperadores em seu governo. Defendeu a independncia da Igreja em relao aosgovernostemporaisatofimdesuavidaeotemposeencarregoudelhedarrazo. Daniel-RopsencerraocaptulosobreSantoAtansiodizendoqueelefoium"eminente defensordafedaliberdadeemCristo.Comtodajustia,aIgrejasoubeprestar-lhe homenagem. Foi o primeiro dos bispos no martirizados elevado aos altares e um dos seus 'grandes doutores'. (467) AlutamaiordeAtansiofoi,semdvida,contraoarianismo.Conformevistonaaula passada,noConciliodeConstantinoplafoielaboradoumnovo"Smbolo"enelefoitravada umagrandebatalha,que diziarespeitojustamenteortodoxia daf e aheresiaariana. Os fiisIgrejaconcordaramcomapalavrahomoosiosutilizadanonovotexto,osarianos, porm, maliciosamente, trocaram esta palavra por homoiosios. A diferena consiste em um iota,porm,notemnadadesimples.umadiferenafundamental,poisaprimeira significaaidentidadedohomemcomDeuseasegunda,asimplessemelhanaouno-dissemelhanaentreambos.AofinaldoConclio,osbisposacharamporbemproferir tambmalgunsantemas,visandojustamenterefrearaondaarianaqueameaavaaf catlica. Sobre os antemas, Daniel-Rops esclarece: Estasprescriespunitivaspoucodizemaoscristosdehoje,que,nasuaquase unanimidade,nopensamdemaneiraalgumaempremcausaadivindadede Cristo;poderparecer-lhesotipoexatodessasfrmulas"bizantinas"cuja inutilidade frvola se tornou proverbial. Mas- repetimo-lo - tinham uma importncia capital.OmritodostelogodosculoIVfoiteremcompreendidoissomesmoe teremprocuradoeencontrado,parafazerfrenteaosseusadversrios,frmulas suficientemente precisas para salvaguardar a divindade de Cristo, que a essncia de todo o cristianismo. Cada pequena parcelade uma frasetinha emmiraafastar umaameaa de heresia. Cada palavra estava carregada de significado. Quadoas lemos,compreendemosbematquepontodevetersidoviolentaepatticaa discussosobreo"consubstancial"nassessesdoConclio;mascompreendemos tambmque,emborasetentassetornaraexpressodestasfrmulastoexatas quantopossvel,ficasseaindaabertoumcampoparainterpretaesperigosas.(p. 458) HqueseestranharqueentreosgrandespaladinosdafnoconsteonomedoSumo Pontficedapoca,oPapaLibrio,oqual,infelizmente,teveumdesempenhodesastroso nessa batalha. O Imperador Constncio queria que todos os bispos se dobrassem diante do arianismo. O Papa Librio no incio no se dobrou, permanecendo fiel f e foi mandado para oexlio.Porvriasvezes,contaSoJernimo,oImperadormandoudinheiroparaoPapa, quer seja diretamente quer por emissrios, tendo o pontfice se recusado em todas as vezes. Ocorreu,porm,queotdioeasolidodoexliocorroeramafirmezadoPapae,nofim, diante das adulaes e das ameas de morte, ele cedeu assinando a excomunho de Atansio e o credo ariano. ApesardesseerromoraldoPapa,eleemnadamaculouodogmadainfalibilidadepapal, postoqueoatocometidopodeserclassificadocomoindecenteemoral,masapenaspara 28 livrar-se do exlio e da punio. O Papa Librio, com as assinaturas, manchou as pginas do Papado. O Bem-aventurado Cardeal John Henry Newman escreveu um livro sobre a vida de Santo Atansio no qual descreve com preciso toda a desastrosa ao do Papa Librio. Depois de muitas peripcias, no ano de 360 subiu ao trono o Imperador Juliano, o Apstata. ElequisreintroduziropaganismonoImprioRomano,demodoquelevandooexliode Atansio,poisachouqueoscristossematariammutuamente.Contudo,otirosaiupela culatrapoisAtansio,comsuaeloquncia,estavaconvertendoparaaIgrejaospagos. Mandou-oparaopenltimoexlio.Atansiomorreurodeadopeloseucleroem373e"era certamente o homem mais clebre, a autoridade mais notvel de toda a Igreja." (466) OexemplodeSantoAtansiodeveiluminarosdiasatuais,nosquaisnemsempresesabe com certeza onde se encontra a reta f catlica, e em que a atuao de bispos, de prelados e at mesmo do Papa podem ser moralmente desastrosas. Santo Atansio ensina que cabe aos fiis catlicos, aos homens de bem, permanecerem firmes na autntica f dos Apstolos. 29 10. Os Padres Capadcios A Igreja viveu tempos difceis com a propagao do pensamento ariano. Embora tenha havido uma aparente vitria da f trinitria com o Conclio de Niceia, a heresia permaneceu latente e tologoareunioseencerrou,asforasarianasvoltaramaagirnasurdina.Eusbiode Nicomdia, ariano convicto, conseguiu convencer o Imperador Constantino de que a deciso deNiceianohaviasidoamelhor.Suscetvelaopiniescomoera,Constantinomudoude lado,ecomeleoepiscopadocatlico.NosemrazofoinessemomentoqueSoJernimo afirmou que o mundo dormiu catlico e acordou ariano. O Imprio tornara-se ariano. Em tempos de provao Deus sempre levanta do meio de seu povo bravos homens dispostos a serem luminares da verdadeira f. Nesse caso, foram os chamados Padres Capadcios que, seguindoatrilhadeixadaporSantoAtansio,cuidaramderesgatarereafirmaraf trinitria. Os sacerdotes assim chamados viveram na regio de Constantinopla, sendo Baslio, chamado de Magno ou o Grande; Gregrio, seu irmo (mais tardiamente chamado de Nissa); Gregrio, oriundo de Nazianzo, chamado pelos orientais de o Telogo. Baslio Magno vinha de uma famlia envolvida em santidade, seu av morrera como mrtir e sua av (Macrina, a Velha) uma santa canonizada da Igreja. Tambm a me foi canonizada e quatro de seus irmos so considerados santos. Era um homem com muitos problemas de sade, o que no o impedia de ter uma grande capacidade de enxergar os problemas fsicos e espirituais das pessoas e da poca em que vivia. Estudou em Atenas, a capital cultural e foi onde conheceu seu amigo Gregrio. Baslio se sentiu atrado pela vida monstica e, inclusive chegou a viajar para conhecer a vida monstica do Oriente. Mudou-se com sua irm Macrina para um lugar retirado e viveu certo tempo de maneira monstica. Porm, a vida o chamava para ser bispo e foi nomeado para a cidade de Cesareia. Importante salientar que existiam diversas cidades chamadas Cesareia, pois era um modo de seprestarhomenagemaCsar.CesareiaMartima,CesareiadeFelipe,localizadana DecpoleetambmacapitaldaCapadcia,paraaqualBasliosemudou,Cesareiada Capadcia.Trata-sedeumacidadeimportante,estrategicamentelocalizadaentre ConstantinoplaeaTerraSanta.FoilqueSoBaslioMagnofezumexcelentetrabalho social, mostrando que no era apenas um homem de grande vida mstica, mas tambm um homemdevisobastanteprtica,enxergandoeauxiliandoosmenosfavorecidos.Homem mstico,comgrandecaridadesocialetambmumagrandecapacidadeteolgica.Ele percebeuqueparavencerosheregesprovandoqueJesus,SegundaPessoadaSantssima Trindade,Deustambm,precisavairatofim,ouseja,falartambmsobreaTerceira Pessoa: o Esprito Santo. Escreveu a obra De Spirictu Sancto, ou seja, a respeito do Esprito Santo,seempenhandoemdemonstrarqueoEspritoSantoverdadeiramenteDeuse, portanto, pertence Santssima Trindade. Apesar de ser um excelente polemista, So Basilio escrevesuaobranumtomecumnico,ouseja,oseuesforoeraconvencerosheregesa deixar a heresia utilizando uma linguagem que no os agredia. Aescolhadapalavra "homoosios" noerabblicae,porisso,feriaasensibilidadedos arianosedossemiarianos,assim,Basiliousoualinguagembblicaparaexplicarefoiesta 30 linguagemadotadaporelequetriunfounoConcliodeConstantinopla.EnquantoBaslio Magnoeraumhomemdegrandeestratgiapoltica,umgrandenegociador,seuamigo GregriodeNazianzoeraexatamenteooposto.Poucoprticoepoucodiplomticoera,em compensao, um grande telogo. Naquelapoca,oImperadorValentedesejavaexpandiroarianismoeresolveudividira diocesedeConstantinoplaemoutrosbispados,visandominaropoderdeinflunciade Baslio,porm,estealertadodasintenesdoImperador,rapidamenteprovidencioua nomeaodepessoasdesuaconfianaequecompartilhavamdafretaparaasnovas dioceses. Foi nesse movimento que Gregrio de Nazianzo foi sagrado bispo, bem como Pedro, irmo de Baslio e Gregrio de Nissa. Gregrio de Nazianzo no conseguiu tomar posse da cidade que lhe fora designada. Ao viajar para Ssima foi vtima de uma emboscada de arianos. Voltou para a casa de seu pai, tambm bispo,tambmchamadoGregrioetambmdeNazianzo.Porumtempoficaramambos naquela diocese, porm, o pai, ao ver o filho subutilizado em Nazianzo, mandou que partisse para Constantinopla. E assim foi feito. ApsaderrotadoImperadorValentenabatalhadeAdripolis,sobeaotronoTeodsio, catlicoquepromulgouoEditodeTessalnica,implantandonovamenteafcatlicano ImprioRomano.AochegaremConstantinoplanotouqueumareviravoltahaviaocorridoe aquelesqueeramarianostinhamvoltadoasercatlicos,oquedenotaafragilidadeda doutrinaariana.TeodsioconvocaoConcliodeConstantinopla,inicialmentedo"Oriente", mas que depois foi reconhecido como ecumnico. Na mesma poca foi realizado um conclio equivalente no Ocidente, na cidade de Aquilia, na regio norte da Itlia, quase na fronteira com a antiga Iuguslvia. Os dois conclios atestam a f catlica claramente dizendo que no somente o filho consubstancial ao pai, portanto Deus, mas que o Esprito Santo tambm Deus. O Conclio corroborou a argumentao dos Padres Capadcios. Osarianosradicais,comoAcioeEunmio,diziamcomclarezaqueoFilhonoeraDeus, massomenteumacriaturadoPai.Poresseraciocnio,oEspritoSanto,quesemprefora consideradodecorrentedofilho,nopoderiaserDeus.Pararefutaroarianismo,osPadres Capadcios perceberam que bastava afirmar que o Esprito Santo pertence Trindade. Haviaainda dois gruposqueafirmavarama divindade doFilho, porm,noaceitavamado Esprito Santo: eram os chamados pneumatmacos (ou macedonianos), os quais afirmavam a semelhanadoPaicomoFilhoetambmostrpicos,queafirmavamqueoEspritoSanto no podia ser Deus por causa da forma com que a Sagrada Escritura se referia a ele. SoBasilioMagnoargumentouemsuaobrademodoconvincenteeecumnicoacercada divindadedoEspritoSanto,insistindonousodalinguagembblica.Nesseaspecto,a abordagemdeBasliodiferiaviolentamentedadeGregriodeNazianzo,oqualera politicamenteincorreto,direto,semconcesses.OcorrequequemfoiaoConcliode Constantinopla no foi Basilio Magno, mas sim, Gregrio de Nazianzo e Gregrio de Nissa. O ConcliodeixouumapssimaimpressoemGregriodeNaziano,poiselepercebeuque aquelesbisposlpresentesnotinhamvirtudesuficiente,chegandoarepreend-los 31 duramente. Quando percebeu que o Conclio no adotaria a linguagem que ele julgava ser a mais adequada, resolveu retirar-se. AatitudedeGregriodeNazianzogerouumgrandedesconforto,eosbispos,seus adversrios, resolveram justificar a sada dele com uma "inverdade", invocando um cnon do ConcliodeNiceiaquenuncaforautilizadoproibindoatransfernciadedioceseparaos bispos.AfirmaramquecomoelehaviasidonomeadoparaSsima,nopoderiatersido transferidoparaConstantinoplaedestituiram-no,colocandooutroemseulugare continuandooConclio,oqualconfirmouoCredoConstantinopolitano:"creionoEsprito Santo, Senhor que d a vida e procede do Pai". A parte que continua "E do Filho", vir depois com a chamada clusula Filioque. Oquesev,portanto,quevenceuaabordagemdeSoBaslioMagno,ouseja,ousoda linguagembblica.OCredodeConstantinoplaficaresquecidoduranteumbomtempo,do mesmo que o Conclio de Niceia. Eles foram realizados numa poca em que se no se tinha muita conscincia sobre a clareza e o papel de um conclio, o que vir somente mais tarde. A Igreja concluir que quando um conclio ecumnico, aceito pela Igreja inteira e pelo Papa, elesetorna umadeclaraoinfalvel, poisa Igrejacomoumtodo nopode errar.Contudo, naquela poca no havia clareza quanto a isso, tanto que uma das razes pelas quais a igreja tergiversounaaceitaodoConciliodeNiceiafoiexatamentepelofatodeeleseruma novidade. A Igreja cresceu eaos poucosdeu-se contadequeosconcliossoirreformveis. EmCalcednia,451,sedirqueafdos381padres(Niceia)eafdos150padres (Constantinopla)afdaIgreja,reconhecendoosdoisgrandesconclioscomosendo definitivos. otriunfodafcatlicaapstantasperipcias,dificuldadeseagrurasenfrentadaspor grandes homens: Atansio e os Padres Capadcios. Numa poca em que Imperadores e poder poltico estavam a favor da heresia, eles perseveraram viram triunfar a f catlica. 32 11. Santo Anto e So Bento, os gigantes da vida monstica OtemadaauladehojeserosurgimentodavidamonsticaemmeadosdosculoIIIno OrienteeVInoOcidente.Elafoipropagandeada,porassimdizer,noOcidenteatravsde SantoAtansioemumdeseusexlios,quandofoiparaTrier,naAlemanhaedepoispara Roma.Nessasocasies,elenoticiouaexistnciadevrioshomenssantos,queviviamno desertodoEgitoequededicavamavidaaDeus.Maistarde,eleescreveuavidadomais famososdesseshomens,SantoAntoe,pormeiodessabiografia,escritaoriginalmenteem grego, mas depois traduzida para o latim, que a vida monstica se difundiu no Ocidente. OconceitodevidamonsticaseriaestranhoaoCristianismo?SeJesusmandouamarao prximoeservi-lo,ento,porqueseretirarparaodeserto?Ora,oprprioCristofalaem seus ensinamentos sobre pessoas que deixaram tudo para seguir o reino dos cus e este o fundamento no Evangelho para esta forma de servir a Deus. SantoAnto,emsuajuventude,aoouvirserproclamadooEvangelhodojovemrico(Mt 19,16-24), no qual Jesus diz: "Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, d-os aos pobres e ters um tesouro no cu. Depois, vem e segue-me!" (v.21), sentiu que aquela Palavra era para ele. Sendo muito rico, vendeu tudo o que tinha e foi viver no deserto. Teologicamente, pode-se notar que se trata de uma escolha em seguir Jesus, radical sim, mas com objetivo de cumprir o primeiro Mandamento da Lei de Deus: Amar a Deus sobre todas as coisas. Pois bem, a vida espiritualcristexigequequemaelasepropefaaumesforoparacumprirtal mandamentoafastando-sedaidolatria,combatendocriaturasecoisasqueinsistememse colocar no lugar de Deus. A Igreja oferece dois caminhos: o da vida ativa e o da vida monstica. A primeira consiste em combater a idolatria no dia a dia, procurando servir a Deus no prximo, esquecendo-se de si mesmo.Morrerparasimesmo,parapoderamaraDeus.OoutrocaminhoodeSanto Antoetantosoutrosque,apartirdeumaexperinciamstica,deumavocao sobrenatural, foram chamados a viver uma radicalidade maior, morrendo para o mundo para se dedicarem a Ele. Retirar-se para o deserto, de alguma forma, se assemelha aos quarenta anosqueopovodeIsraelandoupelodeserto,empurificaoantesdeadentrarTerra Prometida.Tambmaofazerisso,SantoAntoseguiaospassosdoprprioJesus,pois tambm Ele jejuou e ficou 40 dias no deserto. E igualmente de So Paulo que, na Carta aos Glatas, afirma ter passado um tempo no deserto da Arbia (1,17), provavelmente no deserto da Edumia. Assim, a vida asctica crist, de se retirar para o deserto para rezar, algo que existe desde o incio do Cristianismo. No entanto, no era algo corriqueiro, pelo contrrio, era raro. As pessoas se retiravam para o deserto durante um certo perodo de tempo, mas depois voltavam ao convvio social. A partir do sculo III, mais e mais pessoas decidiam viver permanentemente no deserto. Umadastentativasdeseexplicaromonaquismoqueoscristosjnotinhammaiso martriodesanguee,portanto,optavampelomonaquismoqueseriatambmumaforma lentademartriobranco.Essaexplicaocontmumacertaverdade,masnotodaela.A vidamonsticacomeounodesertodoEgitonumapocaemqueoscristoaindaestavam sendoperseguidos.SantoAnto,quenasceuporvoltadoano250,foiparaodesertocom 33 cerca de 20 anos de idade e encontrou ascetas cristos que j estavam l. Ele chamado de "PaidoMonaquismo"noporseroprimeiro,masporseromaior,aquelequeconseguiu atrair seguidores. InicialmenteAntoseretirouparaalgunslocaisafastadosdacidade,comotmulose pequenososis.Atque,finalmente,eleencontrouolugarideal,hcercade95kmde Alexandria, no deserto de Nitria, onde mais tarde iro se desenvolver as colnias monsticas. Alm disso, perto dali, havia tambm as chamadas "esquetes" que abrigava um tipo de vida mais cenobtica. Nesselugar,SantoAntofoitentadopelodemnioporvriosanos,oqualsetravestiade mulheres,alimentos,animaisetc.Elefoitentadoevenceu,porisso,suafamacomeoua espalhar-seealiestabeleceu-seaprimeiracolniademonges.Comoeledesejavaum completoafastamentodomundodirigiu-separaosul,paraoAltoNilo,prximocidade antigadeCrocodilpoliseaoMontePispir.Nestelocalelefoinovamentetentadopelo Demnio inmeras vezes. Tempos depois,foi maisparaoleste, em direoaoGolfode Suez eficounuma espcie de caverna onde, atualmente, se encontram ainda diversos mosteiros. Esta uma caracterstica deSantoAnto:noslugaresporondepassouseformarammosteirosemaismosteiros.Os relatos de suas vitrias contra Satans serviam como atrativo para muitas pessoas. Contudo, ele sabia que o inimigo de Deus no tinha nenhum poder sobre ele. Em sua vida, escrita por Santo Atansio, diz claramente que o nico poder de Satans a mentira e a iluso. SantoAntoviveuumavidaasctica,nodesertoe,porvriasvezesestevenacidadede Alexandria.AmaisimportanteidafoiaindanapocadeDioclecianoedascruis perseguiesaoscristos.Elequeriasermrtir.Fezdetudoparairritarasautoridades romanasemAlexandria,praserlevadoaomartrio,masnoobtevexitoeacabouporse retirar novamente para o deserto. Uma outra ida sua foi para pregar contra a heresia ariana. Emboranofosseumhomemculto,conseguiuconvertermuitaspessoasverdadeiraf catlica. Elefoioprimeirodosgrandesmonges,doschamados"PadresdoDeserto".Atualmente existemcoleesdepequenashistriasdessesgrandeshomens,denominadas"apotgmas" que, nada mais so do que ditos, lies espirituais, que germinam ainda hoje grandes frutos espirituais. Santo Anto e de tantos outros como ele, viviam a denominada vida anacortica. Os anacoretas ou eremitas so pessoas que vivem sozinhas, isoladas. Mais ao sul do Egito, tambm no Alto Nilo, uma outra experincia de uma poca um pouco posterior a Santo Anto: So Pacmio. Embora fosse mais novo, morreu antes que Anto, que viveu por 105 anos. So Pacmio pretendeu fundar o estilo de vida chamado "cenobtico", ou seja,demongesquevivememcomunidade.Naquelaregio-deTebas-surgiramvrios mosteirosnosquaisosmongeseramcontemplativos,dedicadosaDeus,masviviamem comunidade. Nessa poca nasceram tambm as comunidades femininas. No entanto, a ascese e a vida monstica no deserto do Egito era marcada pelos exageros do incio.Oshomenseramverdadeirosascetas,queviviamjejunsepenitnciasdeformato 34 rigorosasquedifcilencontraraolongodahistriaoutrapocasemelhante.Hojeavida monstica foi reformada. Nosculoseguinte,surgeoexemplodeSoBaslioMagno,oqualviveupoucodepoisde SantoAtansio,oriundodaCapadcia,naTurquia,masqueviajouinmerasvezesparao Egito e para a Palestina a fim de encontrar os monges do deserto. Quando ele se retira para a vidamonstica,antesdeserbispo,comeaaescreverassuasregras,baseando-senas experinciadosmongesquevisitaranodeserto,contudo,asregrasforamadaptadas, mitigadas para que refletisse o esprito comunitrio. A vida eremtica, ensinou a Igreja desde sempre, no era para todos, posto que uma vocao rarssima, especial. Portanto, o normal da vida contemplativa e monstica a comunitria. O mesmoSoBaslioindagacomosepoderinclinarparalavarospsdosirmosese humilharseestiverforadeumacomunidade.Portanto,avidamonsticanaturalmente cenobtica e excepcionalmente eremtica. A regra de So Baslio ir modelar o monaquismo em todo o Oriente cristo. J no Ocidente, aps a propaganda de Santo Atansio em Roma, So Jernimo colhe a provocao de Santo AtansioevaiparaoOriente,paraaTerraSanta,viveremumapequenacomunidade monstica.TambmalgunsmongesdoOrientevmparaoOcidente.FoiocasodeJoo Cassiano, em pleno sculo IV, instala-se em Marselha, na Frana, onde funda um mosteiro. ExistemrelatostambmdevriasoutrasatividadesnoOcidente,comoporexemplo,o prprioSantoAgostinhoque,tendoouvidofalardavidamonsticacomea,lmesmoem Hipona, uma vida retirada com seus companheiros, Alpio, dentre eles. Finalmente, no sculo VI surge a grande figura de So Bento de Nrsia, o qual codificou no Ocidentearegraquesetornouaregramonsticaporexcelncia.Assim,enquantono Ocidente,asexperinciadosPadresdoDesertoforamcodificadasaindanosculoIV,com SoBaslioMagno,no Ocidente, emboravriastentativastenhamsido empreendidas nesse sentido,aquelaqueconseguiumostrarequilbrioecolocarsuamarcanoOcidentefoia beneditina. SoBento,queviveuumavidaeremticadeincioeviveunumacavernaemSubiaco.As pessoas levavam alimentos para ele e logo comearam as surgir discpulos e a comunidade. So Bento, ento, comeou a codificar a vida daquele grupo de monges. Tempos depois sua irm,SantaEscolstica,tambmfundaum mosteirofeminino.Ele,finalmente,setransfere para Monte Cassino, onde est sepultado juntamente com sua irm. AvidadeSoBentomaisconhecidaqueadeSantoAntoesuaRegrapertenceao patrimnio espiritualdosmonges doOcidente,nosisso, detodo Ocidentecristo.Santo AntotevesuavidaescritaporSantoAtansio,jSoBentoporSoGregrioMagno,em seu famoso livro "Dilogos". EstefoioinciodavidamonsticatantonoOrientequantonoOcidenteeelateve importnciacabalparaodesenvolvimentodavidadaIgrejaeafundaodosmosteirosno Ocidentefoioquesalvouacivilizaoocidental.Nofossemosmongescopiarem pacientemente durantesculosos manuscritosdasabedoriaantiga certamente esse grande 35 tesouroteriaseperdidoaolongodotempo.QuandoosbrbarosinvadiramoImprio Romano do Ocidente foram os monges que garantiram a preservao da cultura. Porfim,omonaquismoteveumapresenafortenasIlhasBritnicas.TantonaInglaterra quantonaIrlandaaspopulaesceltasquelseinstalaramviveramumavidamonstica intensa.Quandoo ImprioRomano caiunoOcidente eoCristianismopraticamente entrou numa fase ariana, foram justamente eles que reenvangelizaram a Europa desenvolvendo um trabalho impressionante para o restabelecimento da vida espiritual. Em breves pinceladas, este foi o incio da vida monstica no Ocidente e no Oriente. 36 12. So Joo Crisstomo e o Imprio Bizantino A aula passada contemplou alguns aspectos da vida monstica. Nesta, se pretende caminhar emdireoao5sculo,noqualocorreramasgrandescontrovrsiascristolgicas,que culminaram nos conclios de feso, em 431 e Calcednia, em 451. Para compreender a transio entre uma e outra poca preciso volver o olhar para algo que estava apenas nascendo: o Imprio Bizantino. Oficialmente, naquele tempo no se chamava Imprio Bizantino, posto que esse termo foi criado pelos historiadores para descrever os mil anos em que o Imprio Romano do Oriente assumiu algumas caractersticas prprias. QuandooImprioRomanoeracentradoemRoma,possuacaractersticasmaisjurdicas, racionais,prticasemilitares.Amentalidaderomanaeramuitosimples,reta,prtica,sem grandespaixes.Adiferenaentreoromanodoocidenteedoorientevisvelathojepor meio da liturgia. O cnon romano mais seco e preciso, j o oriental mais potico, escrito para fazer surgir devoo, mais emocional. Oespritobizantinocaracteriza-seporumamisturadetrsingredientes:1.amentalidade romanaqueinfluencioueentrounoImprioBizantino;2.ohelenismo,quesecompeda chamadaculturahelnica(originriadaGrcia,comsuafilosofia;comameditaoacerca dasverdades,todaaculturaplatnica,neoplatnica,aristotlica,etc.)edarealidade oriental.LembrandoqueafusoentreambasfoiobradoImperadorAlexandreMagno, conforme j visto em au