História Da Igreja Antiga
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HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA
SUMÁRIO
1 CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA IGREJA PRIMITIVA.................................61.1 Dos 30 anos prováveis da paixão de Jesus, a 313 (edito de Milão)......................................61.2 Primeira antinomia: particularismo judaico e universalismo................................................71.3 Segunda antinomia: carisma x instituição.............................................................................91.4 Terceira antinomia: igreja, pequeno rebanho de eleitos ou multidão de santos e pecadores?
Como fugir do rigorismo sem cair no laxismo?.................................................................111.5 Quarta antinomia: forte sentido de unidade e frequentes e também fortes dissensões na
igreja primitiva...................................................................................................................131.6 infiltrações racionalistas: Gnosticismo...............................................................................151.7 Heresias...............................................................................................................................161.7.1 Maniqueísmo....................................................................................................................161.7.2 Montanismo.....................................................................................................................161.7.3 Heresias trinitárias...........................................................................................................171.7.4 Cisma...............................................................................................................................181.8 Quinta antinomia: entre escatologismo e encarnacionismo, entre ruptura e abertura........191.9 As Perseguições..................................................................................................................201.9.1 As causas..........................................................................................................................201.9.2 Principais fontes sobre as perseguições...........................................................................231.9.3 As Catacumbas.................................................................................................................241.9.4 O número dos mártires.....................................................................................................261.9.5 As duas fases da perseguição...........................................................................................271.9.5.1 Primeira fase das perseguições.....................................................................................281.9.5.2 Segunda fase das perseguições (de Severo a Diocleciano)...........................................30
2 A GUINADA CONSTANTINIANA E SEU SIGNIFICADO..............................................342.1 A contraposição dos historiadores antigos e dos atuais......................................................342.2 Constantino, o grande, primeiro imperador cristão............................................................362.3 Efeitos negativos da guinada constantiniana......................................................................392.4 Tentativa de um julgamento histórico (análise crítica atual)..............................................412.5 Reação pagã........................................................................................................................422.6 Primeiras controvérsias do século IV: Ário........................................................................44
3 AS CONTROVÉRSIAS TRINITÁRIAS E CRISTOLÓGICAS NOS SÉCS. IV – VII.......453.1 O arianismo depois do Concílio de Nicéia.........................................................................453.2 Apolinário de Laodicéia e o Concílio de Éfeso (431).........................................................493.3 Êutiques e o Concílio de Calcedônia (451).........................................................................533.4 Tentativas de acordo: últimas controvérsias cristológicas..................................................57
4 CONCÍLIOS ECUMÊNICOS NA HISTÓRIA.....................................................................60
5 CONTROVÉRSIAS SOBRE A GRAÇA: PELAGIANISMO E SEMI-PELAGIANISMO 615.1 Gênese, Protagonistas, Lugares comuns do Pelagianismo.................................................615.2 Polêmica agostiniana a vitória cabal...................................................................................645.3 Polêmica posterior: o agostinianismo rígido, o semipelagianismo, o agostinianismo
moderado............................................................................................................................675.4 Alguns aspectos da vida da igreja nos primeiros Séculos: vida sacramental, costumes.....70
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1 CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA IGREJA PRIMITIVA
1.1 Dos 30 anos prováveis da paixão de Jesus, a 313 (edito de Milão)
Fim das perseguições em geral e início da aliança entre a igreja e império, a história
eclesiástica desenvolve em três pontos fundamentais: sua difusão nos limites do império, e
também fora desses limites; a longa luta do estado romano para sobreviver; seu
desenvolvimento interno, doutrina, constituição, culto, tensões, sempre presentes que num
certo sentido até a favorece.
Sobre o primeiro ponto, basta recordar isto: não se tratou de um movimento de massa,
mas sim de uma ação capilar e por parte de cada convertido, também leigos. O cristianismo
como verá melhor neste estudo adiante, mesmo carregando consigo por décadas muito
elemento herdado do mundo hebraico assume rapidamente as características de uma religião
compatível com a instituição e tradições de povos variados, como recorda-nos o autor
anônimo da carta a Diogneto (segunda metade do Séc. II): “Os cristãos não se distinguem dos
outros homens nem pelo território nem pela língua nem pela roupa. Eles não moram em
cidades separadas, não usam uma língua própria nem levam uma vida diferente... adaptam-se
aos costumes do país no vestir-se, na alimentação e em tudo o mais...” (cap. 5). Aderiu à nova
religião não apenas gente de condição humilde como artesãos, comerciantes, escravos, mas
também pessoas das classes abastadas, mesmo da alta nobreza romana e até da família
imperial dos Flávio. A expansão ocorreu concomitantemente no Oriente e Ocidente, mas no
final do terceiro século o maior número de cristãos ficou na parte oriental do império (Ásia
Menor, Macedônia, Síria, Armênio – primeira nação cristã). Também a África norte –
ocidental (região de Cartago), o Egito, a Gália meridional possuíam sólidas e numerosas
comunidades cristas. Lembremos que a África deu à igreja um contributo relevante no campo
intelectual através de escritores valorosos. No terceiro século as comunidades mais
importantes eram as de Roma (com cerca de 50.000 cristãos numas população de meio milhão
de habitantes), Cartago, Alexandria, Antioquia, Ed essa. Na Itália, depois que a comunidade
romana nasceu, logo surgiram comunidades no centro e ao sul já no primeiro século (Pussoli,
Cápua, Nápoles e com toda probabilidade Pompéia e Herculano ante do ano 70); já no fim do
quarto século, sobre uma população total do império romano de cerca de 50 milhões, os
cristãos chegavam a 5 – 7 milhões, dos quais 2 – 3 no ocidente e 3 – 4 no oriente. É
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interessante perceber que apenas no final do primeiro milênio pode-se falar de uma Europa
quase inteira cristã, com 15 milhões de batizados sobre 18 milhões habitantes.
1.2 Primeira antinomia: particularismo judaico e universalismo
Jesus Cristo declarou que não veio suprimir a lei mosaica, mas complementá-la e
reforçar sua validade (“não passará um só yota da lei até que se tudo cumpra”), porém na
última ceia proclamou uma nova aliança, o Novo Testamento e, depois da ressurreição, deu
aos apóstolos um mandato universal.
Mesmo que o anúncio de um Novo Testamento implicasse o fim o Velho Testamento,
a superação da legislação mosaica – ao menos nos pontos onde ela não se limitava a
confirmar e defender os preceitos naturais – e o começo de uma nova comunidade onde os
convertidos do judaísmo entrar-se-ão num mesmo plano do cristão, composto exclusivamente
de hebreus, não compreendeu imediatamente o alcance das palavras de Jesus. A cultura que
impregnava o cristão gerava certo orgulho nacional (bairrismo), onde o elemento religioso
tinha preponderância máxima à interpretação literal das profecias messiânicas que
confirmavam a perenidade e universalidade do trono de Davi levava os apóstolos e os
primeiros discípulos a considerar a igreja estreitamente ligada à sinagoga e a acreditar que a
adesão ao patrimônio religioso e cultural de Israel e constituía premissa indispensável para
ingressar nessa nova comunidade.
Concretamente não recebia o batismo se não fosse circuncidado antes, bem como
observar todos os preceitos judaicos em Deuteronômio e Levítico.
As descobertas de Qumram (11 grutas na região oeste do Mar Morto, do Monte Nebo,
onde foram encontrados milhares de fragmentos de manuscritos) mostraram que o judaísmo
era bastante dividido em várias correntes – coisas que não imaginávamos – existia uma forte
afinidade de uma dessas correntes, os essênios, com a vida e a doutrina da primeira
comunidade cristã de Jerusalém. Entre outras coisas forte oposição à classe dirigida, com
acentos que lembram a polêmica antifarisaica de Jesus e sua concepção espiritualizante da lei,
a personalidade do fundador, o mestre de justiça, perseguido pelo sumo sacerdote; uma vida
comunitária rigorosa, com líder escolhido democraticamente, noviciado bienal, fervorosa
espera escatológica, nacionalismo exasperado, tudo isso porém com uma maior caridade pelos
outros.
Os Atos dos Apóstolos e os passos de S. Paulo ilustram com riqueza de detalhes a
superação gradual desta mentalidade. Depois do discurso de Estevão (At 7, 1-54), que faz
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entrever o fim do lugar privilegiado de Israel na nova economia, o fato decisivo é marcado
pela estranha visão de Pedro, que foi comovido a comer carne de animais considerados ilícitos
pelos hebreus; logo após vem narrada a catequese do centurião pagão Cornélio, sobre quem
desce visivelmente o Espírito Santo, mesmo antes do batismo. Pedro, espantado, quase a
contra gosto, exclama: “Quem pode negar o batismo àqueles que receberam o Espírito Santo
como nós?” (At 10s). Porém a mentalidade arcaica era bastante enraizada para desaparecer
rapidamente, e provocou longo e doloroso contraste, culminando no Concílio de Jerusalém,
no ano 50, que teoricamente reconheceu a tese defendida por Paulo sobre a não necessidade
de observar a lei mosaica, na prática aceitou a proposta de Tiago Menor, para evitar cisões na
igreja sugeriu aos pagãos convertidos à abstenção de sangues dos animais sufocados e das
carnes oferecidas em sacrifícios aos ídolos ou idolotitos (At 15, 1-35). Mais tarde Paulo
reprovou Pedro publicamente por ainda ceder às tendências de fanáticos defensores das
antigas tradições e não aplicar lealmente as decisões do Concílio (incidente de Antioquia,
exposto em Gl 2, 11-21: a salvação vem de Cristo não de práticas da lei mosaica). Paulo tinha
present a necessidade de salvaguardar a caridade e evitar qualquer ato que escandalizasse
alguém, porém particularmente não considerava obrigatório seguir os ditames do Concilio (cf.
Cor 8, 1-13; 10, 23). Ainda no Apocalipse vemos a condenação a quem come idolotitos (2,
14. 20). Na mesma linha vai a Didaque, escrita provavelmente no fim do primeiro século: “Se
suportares o julgo do Senhor, serás perfeito; se não podes, faça o que puderes. Quanto aos
alimentos, observa aquilo que puderes, mas abstenha-te absolutamente das carnes imoladas
aos ídolos, pois isto seria prestar culto a deuses mortos” (VI. dois).
O processo de separação e independência do judaísmo ou, em outras palavras, a
ocidentalização do cristianismo, foi muito lento. Por décadas prevaleceu a influência judaica.
Na comunidade de Jerusalém o partido de Tiago Menor, fortemente judaizante, conservou
poder decisório por muitos anos. Recordemos, por este mesmo motivo, as comunidades de
Antioquia e Damasco.
A destruição de Jerusalém no ano 70 não resolveu o problema, mas já diminuiu a força
das correntes judaizantes os cristãos da cidade mesmo por interesse praticam, a separar
claramente seu destino do de seus conterrâneos, fugindo do país antes mesmo do assédio a
Jerusalém. Percebe-se de maneira exasperada o velho e o novo testamento para liberar o
cristianismo de qualquer infiltração espúria. Contribuiu para a diferenciação e o deslocamento
da festa semanal do sábado – dia sagrado para Israel – para o domingo, que recordava aos
cristãos a ressurreição de Cristo. Discute-se muito sobre a data ou período em que essa
mudança realmente aconteceu no começo do séc. II. Mas a separação completa com o mundo
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e a cultura hebraica realizou-se em Alexandria, entre o fim do séc. II e o início do séc. III por
mérito de Clemente (150 – 215), que foi o primeiro que tentou apresentar o cristianismo com
linguagem e conceitos helenísticos, particularmente nas obras Protretico, pedagogo e
Stromata. J. Daniel ou diz que não tem nenhuma benevolência com os elementos judaicos que
o Evangelho carrega consigo; para ele parece que a veste judaica cai por si como uma pele
morta e aparece um cristão novo, semelhante externamente em tudo aos outros alexandrinos,
porém animados por espírito diferente. O cristianismo não é mais o simples cumprimento das
profecias judaicas, é antes disso a verdadeira sabedoria, anunciada pelos sábios gregos. Esta
aberto o caminho para uma maior aceitação do cristianismo pela cultura Greco-romano.
A separação entre a igreja e a sinagoga, que dogmaticamente sublinhou a inadequação
da economia antiga e a necessidade da fé em Cristo Redentor como único caminho de
salvação, na prática salvou o universalismo dela, que não se identifica com nenhum padrão
cultural nem etnia específica, e deve “encarnar-se” em qualquer época, em novo contexto
histórico. Este resultado altamente positivo custa muito caro, a recíproca que acabou opondo a
igreja e a sinagoga, ainda depois, através dos séculos. Se os judeus consideram os cristãos
como perigosos concorrentes, como usurpadores de um patrimônio que não lhes pertencia, os
cristãos por sua vez jogaram sobre todo o povo judeu, sem nenhuma distinção, a
responsabilidade da morte de Cristo, e acabaram por considerá-la malditos. Nos séculos
sucessivos o abismo torna-se cada vez maior.
1.3 Segunda antinomia: carisma x instituição
A igreja fundada por Jesus, como aparece no Evangelho, apóia-se numa autoridade
que lhe vem do alto, não de uma investidura terrena; tal autoridade é dada do alto para certos
indivíduos, que por si só em nada diferem dos demais fiéis: e.g. os doze são bem
diferenciados dos outros discípulos. Em At. e epistolas paulinas a estruturação geral aparece
bem clara: bispos e presbíteros, mesmo sem distinção precisa, têm juntado a si, se bem que
subordinados, os diáconos, de função prevalentemente assistencial-caritativa. Portanto, é bem
provável que nos primeiros tempos todos os sacerdotes recebessem a plenitude da ordem, isto
é, todos fossem consagrados bispos, se bem que isto não nos autoriza a supor que na prática
todos gozassem da mesma autoridade. Em outras palavras, distinção entre episcopado e
simples presbiterado, ambos participes do mesmo sacramento mesmo quem em grau
diferente, não seria fruto de uma disposição do próprio Cristo, mas sim uma iniciativa da
igreja, como uma evolução da história gradual, esta opinião, até comum, apóia-se além do
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mais, na elaboração complexa de alguns textos do Concílio de Trento, que de maneira
pensada recusou-se a definir que essa distinção fosse vontade divina direta, “De iure divino”.
No período apostólico a escritura nos apresenta os dirigentes das igrejas geralmente no
plural; cada comunidade era provavelmente dirigida pelo collegium chamado presbitério (cf.
1Tm 4,14), semelhante as comunidades judaicas, governadas por um conselho de “anciãos”.
No período pós-apostólico (segundo século) a direção das igrejas assumiu a forma
monárquica; esta evolução não é bem clara em Clemente Romano onde, escrevendo aos
legítimos chefes estabelecidos por Deus (Deus, Cristo, apóstolos, bispos seus sucessores), sem
precisar-se a autoridade episcopal era confiada a um indivíduo ou a várias pessoas dessa
comunidade. Já em Inácio de Antioquia, morto em Roma em 107 a linguagem é bem clara e
precisa. “Sigam todos os bispos como Jesus segue o Pai, e o colégio dos presbíteros como aos
apóstolos; quanto aos diáconos, venerai-os como a lei de Deus. Nada se faça sem o bispo...
onde está o bispo, aí está a igreja... sem o bispo se quer é lícito batizar ou celebrar a ágape,
mas aquilo que ele aprova é graça de Deus” (esmirnenses, VIII). Muito se discute sobre a
evolução do episcopado, da forma colegial à monárquica; uma explicação provável, mas
discutível, atrelada a certa tendência a explicar fatos passados à luz de uma evolução
posterior, forçando um pouco os documentos e textos é que o tal colégio presbiteral das
comunidades primitivas fosse submisso ao apóstolo que fundou cada igreja local que
considerado o verdadeiro chefe dessa comunidade. Assim se explicaria melhor a
uniformidade da evolução, seja a rapidez com que se processou, em cerca de cinqüenta anos,
tanto que antes de Inácio não faltam acenos às comunidades regidas por um só bispo (Timóteo
e Tito nas cartas paulinas aparecem como bispos monárquicos de Éfeso e Creta, Tiago Menos
é chamado por historiadores da antiguidade “bispo de Jerusalém” os “anjos” das sete igrejas
da Ásia de que fala Ap 1, 2; 2-3 é provavelmente seus bispos, Egesipo e Irineu de Lião
aparecem no fim do séc. II na lista dos bispos das primeiras igrejas de origem apostólica). De
qualquer maneira parece que o episcopado em si representa a continuação da missão dos
apóstolos na vida da igreja.
Junto a esta sólida hierarquia bem distinta onde a autoridade é transmitida
publicamente mediante investidura oficial dada por Deus através da mediação da igreja
encontrou nas primeiras comunidades pessoas dotadas de poderes extraordinários em vários
campos, dados por Deus plenamente sem mediação nenhuma e sem lista deles são para o bem
comum, não da própria pessoa que tem, prevendo com isso os abusos e indicando como evitá-
los, bem como arrogando para si autoridade sobre os carismáticos (1Cor 14, 37). Todavia
mais que contrapor os ministérios de serviço e os dons particulares, ele exalta sua
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complementaridade e serviço. Enumera-se pouco mais de uma dúzia de carismas, a Didaqué
no fim do primeiro século registram-se apenas três: apóstolos, mestres e profetas; mas
também se preocupa em distinguir os verdadeiros dos falsos profetas, indicando como critério
certo o desapego e a coerência (cap. XI). O mesmo critério é usado por Hermas, do início do
séc. II, na obra Pastor (um conjunto de visões, preceitos e costumes) dedica todo o preceito à
distinção entre verdadeiro e falso profeta, sem mostrar nenhum traço de atrito deles com a
hierarquia. No final de dois séculos o profetismo e outros desapareceram, a igreja estava
consolidada e não precisava mais desses apoios exteriores e sensitivos que apanharam seus
primeiros passos.
Dissemos que desapareceram os carismas extraordinários, como por exemplo, o dom
de línguas, porém restou e restam aqueles que não aparecem tanto, mas eficazes: e Deus
continua a derramar sobre quem e como quer, mantendo viva sua ação na igreja.
O desaparecimento gradual dos carismas extraordinários (muitas vezes confundidos
simplesmente com os carismas em geral), e o predomínio crescente da hierarquia na vida da
igreja foram interpretados pelos historiadores leigos, de uma forma geral, como sinal
inequívoco de decadência do cristianismo; ele nasceu como uma resposta espontânea à voz do
Espírito terminou por dar um revestimento conceitual às suas idéias e uma ossatura
burocrática à sua ação, algo inevitável, mas fez prevalecer à disciplina sobre o carisma, o
silogismo sobre a fé viva. Porém se concretamente a história da igreja mostra dificuldade em
equilibrar os dois elementos e o perigo da conceituação e burocratização, também é verdade
que o carisma e hierarquia constituíram dois modos complementares que Deus usa para
influenciar a igreja; se o primeiro modo traz a primava religiosidade sua pureza e liberdade, o
segundo surge como necessidade para discernir o carisma verdadeiro do falso e também para
dar estabilidade e difundir um impulso que, se deixado à sua própria sorte, enfraqueceria e
desapareceria. Esta antinomia não pode resolver-se de uma vez por todas sempre reaparecerá
na história da igreja, sempre andarão juntos.
1.4 Terceira antinomia: igreja, pequeno rebanho de eleitos ou multidão de santos e
pecadores? Como fugir do rigorismo sem cair no laxismo?
Contrastando com a atitude misericordiosa de Cristo no evangelho, a igreja primitiva
mostrou-se tremendamente rigorosa na praxe penitencial; diante de um mundo onde os
costumes pecaminosos estavam arraigados e vistos com simplicidade, ela achou seu dever nos
fiéis uma claríssima oposição a isso, e pensava que a facilidade em conceder o perdão
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comprometeria irremediavelmente à conduta deles. Obviamente que a prática era diversa
conforme o local oriente ou ocidente, mas geralmente era rígida. Todavia percebem-se duas
correntes; uma mais severa, desejosa de conservar a igreja toda pura, que isso significasse a
exclusão dos numerosos pecadores, e outra dispôs à misericórdia e receptiva a quem se
mostrasse verdadeiramente arrependido. As decisões que brotaram desde o início e foram se
desenvolvendo, chegaram ao ponto culminante no séc. III, quando aumentou o número dos
convertidos e também por causa dos que apostataram na perseguição de Décio (250) e se
arrependeram e pedia insistentemente a absolvição. A crise insuflou com o surgimento de
movimentos laxistas (Novato em Cartago), rigoristas (Novaciano em Roma) e a heresia
montanista; eles exasperavam de modo unilateral e moral cristã. Não menos importância
deve-se dar ao surgimento de fortes personalidades no bojo da crise, Calisto, papa de 217 a
222, expoente da corrente moderada e diametralmente oposto a Tertuliano, que na sua carreira
de escritor sustentou idéias cada vez mais radicais até chegar a abandonar aquela igreja que a
ele parecia muito complacente com os pecadores; e também alguns autores, levados talvez por
certa abstração comum a homens de estudo que os leva a enrijecer em suas posições até
chegar a uma rebelião declarada contra a autoridade, mesmo cheios das melhores intenções e
com um sincero amor a igreja. Parecem inegável que o surgimento de Calisto significou o
prevalecimento da corrente moderada, alguns historiadores não estão de acordo com isso,
distante tanto do laxismo de Novato como do rigorismo de Hipólito e Novaciano. A vitória
dele não significou degeneração do cristianismo, mas acolheu peixes bons e maus.
Os documentos, Hermas no Pastor (quarto preceito) admite a possibilidade de perdão
depois do batismo, mas uma vez apenas. Hipólito nos philosophumena (IX, 12) repreende
Calisto por ter prometido o perdão a todos. (Tertuliano, que até então se mantinha ortodoxo,
admitiu a possibilidade de perdão concedido uma vez apenas (de poenitentia) (VII, 2-11),
tornado montanista insurgiu-se contra certo “Pontífice Maximo” que prometia a absolvição do
adultério e da fornicação (de pudicícia, I, 69). Não faltam expressões rigoristas de Cipriano e
de Orígenes (séc. III), porém mais significativas são algumas disposições do Concílio de
Elvira (próxima de Granada, Espanha), em 312, que negam a absolvição mesmo in
articulomortis para certa categoria de pecadores, Nec in finem recipere communione.
Destes textos emerge uma problemática variada. Primeiramente deve-se questionar a
igreja sempre perdoou os pecados ou certo período ela se recusou isso e sendo assim quantos
e quais motivos dessa conduta? Segundo, ela concedeu o perdão uma única vez ou absolveu
também os reincidentes? Existia apenas penitencia pública ou havia também particular
(privada)?
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Provável resposta. Para o primeiro problema parece que a igreja não perdoava alguns
pecados não porque pensasse que não tinha poder para isso, mas simplesmente porque não
queria usar este poder, aconteceu uma evolução disciplinar não dogmaticamente. As
expressões de Hipólito e mais as de Tertuliano no de Pudicitia (que parece aludir ao bispo de
Cartago, Agripino, e não a Calisto), pode-se muito bem interpretar como uma praxe mais
moderada inaugurada por Calisto, não no sentido de uma evolução doutrinal. A recusa em
perdoar alguns pecados aparece claramente apenas no Concílio de Elvira.
Os pareceres são diversos quanto ao segundo problema (perdoava-se uma vez ou
mais?), quem se fundamenta provavelmente no texto de Hermas e admite a unicidade da
absolvição, e quem interpreta esse mesmo texto como uma afirmação ideal daquilo que deve
ser não que era de fato; também chama a atenção par ao fato que durante toda a controvérsia
sobre os lapsos (os apostataram na perseguição de Décio), mesmo se discutindo as várias
nuances, nunca apareceu o questionamento sobre o caso de um apóstata que já reincidiu. As
contradições entre as duas teses poderia ser resolvida admitindo uma penitência pública e
solene onde se era admitido apenas uma vez na vida, e outra privada, de acesso fácil e
repetitivo. Assim desembocamos no terceiro problema (penitência pública ou privada?):
enquanto alguns historiadores admitem apenas a penitência pública, outros, de igual valor,
defendem que concomitantemente com essa havia sim penitência privada em casos
determinados. É certo não haver nenhum texto antigo que prove a existência da penitência
privada. Os defensores desta tese fazem-no por dedução indireta, p. ex, como se explicaria a
misericórdia de alguns pastores, S. Ambrosio e outros, que convidam calorosamente ao
arrependimento e à confiança num Senhor misericordioso, sem a existência de outra forma de
penitência? É evidente que se procura colocar nos primórdios de cristianismo instituições
desenvolvidas posteriormente. A penitência privada torna uma praxe comum e documentada
inquestionavelmente a partir do séc. VI, na igreja da Grã-Bretanha e Irlanda.
Convém recordar que se a igreja não concebia absolvição a alguns pecadores, rezava
pela sorte e confiava-os à misericórdia divina. Nesse tempo ainda não era clara a necessidade
da absolvição sacramental como meio habitual de manifestar o perdão divino (o problema
será resolvido apenas no Concílio de Trento).
1.5 Quarta antinomia: forte sentido de unidade e frequentes e também fortes dissensões
na igreja primitiva
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Cipriano, bispo mártir de Cartago (210-257), no seu opúsculo De Catholicae Ecclesiae
Unitate, escrito em 251, expressou de maneira eficaz o forte sentido de unidade que pervaga a
igreja primitiva. Mais grave que a perseguições são as armadilhas nascidas das heresias e
cismas: é o modo do diabo arrastar para a perdição àqueles que não pôde manter as trevas do
paganismo. Para se salvar é necessário estar firmemente ancorado na igreja: “Ela nos
conserva em Deus... quem se separa dela e se liga a uma falsa fica privado das promessas
feitas... não pode ter Deus por Pai quem não tem a igreja por mãe... não pode ser mártir quem
está fora da igreja... mesmo se fosse jogado no fogo e ardesse nas chamas... isso seria para ele
coroação da sua fé, mas punição pela sua incredulidade...” podem ser mortos, mas não serão
coroados”. Já antes Irineu, bispo de Lião, que viveu entre o séc. II e III, que em sua obra
Adversa Haereses, composta por volta de 180, exaltava comovido à unidade da fé da Igreja:
“A igreja, mesmo esparramada em todo universo até os últimos confins da terra, recebeu dos
apóstolos a fé num único Deus, Pai onipotente. A igreja mesmo estando esparramada pelo
mundo inteiro é conservada diligentemente como se habitasse numa única casa e como se
tivesse uma alma apenas e um único coração, como se tivesse uma boca. Mesmo sendo
diferentes as línguas do mundo, uma apenas e semelhante é a força da tradição” (9I, 10).
Fundamento desta unidade é por um lado a estreita união com o bispo (aspecto sublinhado
preferentemente por Inácio de Antioquia e Cipriano), de outro lado a fidelidade ao
ensinamento dos apóstolos, transmitindo interruptamente através de seus sucessores em
comunhão (vínculo jurídico espiritual) com Roma”, porque nela sempre foi conservada a
tradição apostólica (aspecto ressaltado com particular vigor por Irineu, ad Haer, III, 2, e por
Tertuliano, em depraescriptione haerticorum de 199-200, que poderíamos traduzir por
“Exceções de inadmissibilidade de heréticos”). Cristo fundou a igreja sobre os apóstolos e a
eles confiou as escrituras; que não obedece aos legítimos sucessores deles não tem direito a
interpretar a bíblia. Expressão concreta desta idéia era o costume dos bispos dessa época de
conservar o elenco dos colegas que eram fiéis a ortodoxia. Se por acaso havia suspeito de um
bispo distanciar-se da fé verdadeira, ele se defendia recordando o número de colegas com os
quais estava em comunhão. Em caso de dúvida, se também seus adversários tivessem seguido
o mesmo método, havia ainda dois critérios decisivos: permanência ortodoxa do bispo que
tivesse maior número de bispos, ou de maneira mais simples e segura, quem se gloriava de
estar em comunhão com Roma. Ambrosio assume claramente este conceito – “da igreja
inteira”, (Ambr. ep. 11, p. 116, 946). Onde nós falamos de autoridade, de unidade, a igreja
primitiva usava o termo “communio”, vinculo concomitantemente sacramental (participação
no mesmo sacramento) e jurídico (a admissão ao sacramento é decidida pela autoridade).
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E, todavia este vinculo bem elástico e bem distante da tendência à centralização
desenvolvida a partir da Baixa Idade Média, era visto também como uma reação as fortes
dissensões que entravam na igreja dos primeiros séculos, assaltada constantemente por
infiltrações racionalistas, heresias e cismas.
1.6 infiltrações racionalistas: Gnosticismo
Aflora já nos fins dos tempos apostólicos, provocando veementes discursos de Paulo,
mas desenvolve-se, sobretudo entre 130 e 180 sob o influxo das tendências sincréticas típicas
da Ásia Menor, de uma equivocada versão pela simplicidade evangélica, de uma tentativa de
explicar com maior profundidade a origem do mal. Elementos fundamentais em comum: o
dualismo (ao reino da luz que vem de Deus contrapõe-se ao reino das trevas, do mal, que
deriva da matéria incriada sempre e essencialmente má); a existência de uma série de seres
intermediários entre Deus e a criação, os aéons (desde 365), que emanam de Deus mesmo; a
origem do mundo a partir da mistura de elementos do reino da luz com a matéria e por fim a
reorganização feita pelo último aéon, identificado como Javé do Velho Testamento, a
redenção, quer dizer, a liberação de centelhas de Liz aprisionadas na matéria, é obra de um
aéon superior que assume um corpo aparente (dado que a matéria é essencialmente má, o aéon
não pode ter um corpo real; equivaleria a atribuir ao redentor uma mancha moral), os homens
são divididos em três categorias: os ilicos ou seres prevalentementes materiais; os equívocos
ou classe média, que são os crentes comuns e os pneumáticos ou gnósticos, os perfeitos, os
únicos que participam realmente da redenção. Os ensinamentos da seita são divididos em duas
classes; esotéricos, suscetíveis de divulgação e destinados apenas aos iniciados. Vale a pena
sublinhar como elementos que reaparecerão posteriormente, o dualismo, de onde logicamente
deriva da matéria e também uma tendência ao ascetismo rigoroso, que acabou provocando, de
diversas maneiras, uma reação oposta de licenciosidade moral. Os principais centros do
gnosticismo foram: o Egito (Alexandria), a Síria (Antioquia) e, por um período, também
Roma, seus principais expoentes foram Basílides, Valentino, Carpócrates e Marcião, que tem
afinidade com os gnósticos ao menos pelo dualismo, o rigorismo ético, o repúdio integral ao
Antigo Testamento. Marcião chegou a Roma vindo do ponto em cerca de 140.
O adversário mais ferrenho do gnosticismo no campo teórico foi Irineu de Lião (fim
do séc. II), em sua citada obra Adversa Haereses, que apresenta maior significado em seu
título completo “Desmascaramento e confutação da falsa gnose”. Um pouco mais tarde, no
início do séc. III, Clemente de Alexandria tentará mostrar como o cristianismo acolhe e
13
desenvolve todos os elementos positivos da gnose, apresentando o cristão perfeito como
verdadeiro gnóstico.
1.7 Heresias
Podemos distinguir as correntes rigoristas, a fins ao gnosticismo por certas
características, e as heresias trinitárias. As primeiras nascem de motivos práticos, as outras
dificuldades em apresentar de modo adequado o mistério trinitário, sobretudo nos albores da
especulação teológica.
1.7.1 Maniqueísmo
O fundador Manes viveu no séc. III e pregou na Índia e na Pérsia até ser crucificado
por instigação da casta sacerdotal do país. Sua doutrina difundiu-se pelo oriente até a China, e
no ocidente, através da África, Espanha e Itália. Até S. Agostinho foi adepto por vários anos.
Às doutrinas já encontradas nos gnósticos a doutrina de Jesus não é bem entendida, ele
enviará um Paráclito, que o próprio Manes. E mais, divide os homens em duas categorias: os
auditores, que se limitam à observância dos dez mandamentos, e os eleitos, ou puros, cátaros,
aos quais é prescrito abster-se de carne e vinho, do matrimônio e dos trabalhos manuais
(signaculum oris, sinus, manuum).
1.7.2 Montanismo
Montano, oriundo da Frigia (Grécia – Ásia Menor Oriental), surgiu no final do séc. II
como instrumento do Paráclito prometido por Jesus para renovar a igreja, anunciando o
iminente fim do mundo e a necessidade de preparar-se com uma moralidade mais severa. Era
proibido a segunda núpcias e o próprio matrimônio era considerado com desprezo; o jejum
tornou-se mais forte; prescreveu-se a xerofagia (uso exclusivo de alimentos secos); sem carne;
proibiu-se fugir da perseguição e foi recomendado oferecer-se ao martírio; negava-se a
absolvição aos réus de pecados capitais (homicídio, fornicação, adultério). No oriente, onde as
correntes extremistas sempre tiveram certo sucesso, o montanismo o difundiu-se. Em Roma,
onde num primeiro momento a nova doutrina foi acolhida favoravelmente, os papas Vitor e
Zeferino se lhe opuseram peremptoriamente, para decepção de Tertuliano, que, levado por seu
temperamento guerreiro e radical, terminou aderindo ao movimento, defendendo numa serie
14
de escritos as prescrições montanistas. O evangelho não era mais mensagem de salvação para
os doentes, de misericórdia para os fracos, mas um apelo inexorável à luta e ao martírio.
Quem admitia a possibilidade de um perdão e recordasse com emoção a parábola do filho
pródigo, seria então convencido de ter enganado e a remissão dos pecados estava
perigosamente limitada: quem exaltasse a excelência do matrimônio terminou por apresentar
o casamento com um mal menor, apenas tolerado por Deus. E com a mesma violência que o
bravo africano tinha atacado os pagãos, agora atacava sua mãe, a igreja... o montanismo
mesmo dividido em várias seitas e combatido a partir do séc. IV também pelas autoridades
civis por muito tempo percebia-se seu rastro ainda no séc. VII.
1.7.3 Heresias trinitárias
Era relativamente fácil para os primeiros pensadores cristãos que tentaram apresentar
em termos científicos (abstratos) o mistério de a Trindade acentuar ora a distinção das pessoas
terminando por atribuir ao Pai certa superioridade em relação ao Filho, ou, ao contrário,
exasperar a unidade de natureza até o ponto de diminuir ou distinção das pessoas. No primeiro
caso se cai no subordinacionismo no segundo no monarquianismo.
Aparece em escritores do séc. II, os apologistas, certo subordinacionismo, pois se
preocuparam primordialmente em defender o cristianismo das acusações que faziam os
pagãos, e tentaram fazer juntos uma exposição sumária dos pontos centrais da nova religião,
mesmo de maneira imperfeita. Em geral, consideravam o Verbo como a própria razão do Pai,
e deduzem que ele conquistou personalidade própria, distinta do Pai, no tempo, a partir da
criação do mundo, do que seria o instrumento, em outras palavras, eterna seria apenas a
existência, não a personalidade do Verbo. A esta doutrina pendeu não apenas Justino,
martirizado em 165, autor de duas belas apologias, mas também Teófilo Antioquino, que
morreu em 185, e Hipólito, que ataca Calisto com veemência acusando-o de “dite ismo”
(Philosoph IX, 12), e até mesmo Orígenes, um dos maiores pensadores cristãos da
antiguidade. “Deus Pai... fez todos os seres... O filho, sendo inferior ao Pai, fez apenas os
seres racionais, visto que é o segundo depois do Pai. Ainda menor é o Espírito Santo que age
apenas nos santos. Doutra forma mesmo precedido do fato que qualquer aprofundamento
doutrinal é sempre imperfeito em seu início. Todos estes autores admitiam explicitamente a
unidade de Deus e a divindade das três pessoas. Aqui o perigo ainda não era muito grave.
Quem exaspera a unidade das pessoas divinas tem duas possibilidades, ou considerar o Filho
como simples homem, nascido de modo sobrenatural da Virgem e investido com intensidade
15
excepcional da graça e da potência (dynamics) de Deus, ou negar sua distinção como pessoa
do Pai, mesmo admitindo sua divindade, e assim considerar Pai e Filho como dois modos
diferentes de apresentação da mesma pessoa.
Os monarquianistas (que acentuam a unicidade de Deus) dividem-se em dois grupos:
os dinamistas ou adocionistas (Jesus é Filho adotivo revestido da dynamics divina) de um
lado e os monalistas (Pai, Filho e Espírito Santo são apenas três formas diferentes de
apresentação da mesma pessoa) do outro.
Os principais expoentes do monarquinianismo dinâmico foram Teodoro o curtidor (de
couro) que veio a Roma em 190 e foi excomungado pelo papa Vitor, Teodoro o Jovem ou o
Cambista, sobretudo Paulo de Samósata, tipo de pessoa oportunista que terá futuro e fará
muito estrago na história da igreja, bispos mundanos, carreiristas, esbanjadores. Foi
excomungado em 268 por um grande sínodo em Antioquia e não se submeteu e, graças ao
apoio da rainha Palmira, resistiu até que o imperador Aureliano conquistou a região. Foi
discípulo dele Luciano de Antioquia, notável exegeta, de cuja escola surgiu Ário.
O monarquianismo moderalista, de menor importância, foi defendido por Noeto de
Ismênia, Praxeas e Sabélio. Tinha-se presente que o vocábulo grego prosopon, em latim
persona, significa objetivamente a máscara que os autores usavam para interpretar e assim
poder compreender melhor o modalismo ou sabelianismo. Tertuliano no adversus praxeam
(depois de 213, no período montanismo) acusa Praxeas de “ter colocado em fuga do Paráclito
(enquanto se opunha ao montanismo) e ter crucificado o Pai... segundo ele o Pai nasce no
tempo, o Pai sofreu”.
Em meio a estes desvios, Tande de um lado como do outro, o pontificado romano
expôs uma doutrina de fato equilibrada, como demonstra outras fontes, a carta do papa
Dionísio ao bispo de Alexandria, seu homônimo, por volta de 260, condenando os modalistas
e os subordinacionistas e indicando com clareza as linhas fundamentais do mistério trinitário,
que a partir das heresias buscava um melhor esclarecimento.
1.7.4 Cisma
Se as heresias nasciam de motivos doutrinais, as cismas brotam de conflitos
disciplinares, muito mais freqüentes. Recordemos apenas dois: a controvérsia da data da
Páscoa e a questão dos lapsi. A festa da páscoa era celebrada em datas diferentes, no oriente e
no ocidente, 14 de Nissan [Oriente] (dia que Jesus morreu) ou o domingo seguinte [Ocidente],
respectivamente. O variado costume, cuja explicação se perde na noite dos tempos,
16
desembocou uma séria controvérsia no séc. II. Depois da tentativa falha de Policarpo em
conseguir um acordo com o papa Aniceto, no fim do séc. II o papa Vitor I, de caráter forte
conterrâneo Tertuliano, excomungou as comunidades da Ásia que não decidiam em adotar o
costume ocidental. Esse gesto exasperou ainda mais a tensão, aplacada pela mediação de
Irineu de Lião, é tudo que podemos deduzir das escassas notícias que temos.
Tem uma maior importância ao menos no campo porque ligado a uma eclesiologia
bem clara o cisma de Novaciano, que não aceitou as diretrizes moderadas do papa Cornélio
sobre a absolvição dos apóstatas; a igreja deveria tornar-se um pequeno grupo de eleitos.
Quase na época, em Cartago, Cipriano teve que enfrentar energicamente a oposição de
Novato e Felicíssimo, que queriam acolher na igreja sem nenhuma dificuldade e logo todos os
lapsos.
1.8 Quinta antinomia: entre escatologismo e encarnacionismo, entre ruptura e abertura
Desde os tempos apostólicos as comunidades cristãs mantêm uma viva espera do fim
do mundo ou, em termos técnicos, da parousia, isto é, da segunda vinda do Senhor, para onde
se orientam todas as aspirações, a ponto de perder o interesse pelas atividades temporais,
chegando ao ponto de se julgar severamente o estado e muitas outras instituições civis, sendo
a participação nelas ilícita a um cristão, pois são intrinsecamente más, muitas das cerimônias
civis eram unidas a funções pagãs. A colaboração com atividades da sociedade pagã era vista
com desconfiança e evitada ao máximo, e a polêmica contra o paganismo levava os mais
intransigentes a condenar a filosofia em bloco. Um exemplo típico dessa tendência a ruptura é
o Discurso aos gregos, de Taciano (segunda metade do séc. II) que condena implacavelmente
a arte, a filosofia, a eloqüência, a poesia grega como instrumento de perversão ou na melhor
das hipóteses charlatanismo. Mesmo eles sem uma coerência total e real continuidade em
todas as suas obras.
Também não falta a tendência oposta, favorável a uma maior colaboração com a
sociedade contemporânea aberta, a uma visão mais otimista das realidades terrestres, desejosa
de conciliar a espera do último dia com um empenho sério no tempo. Se Pedro e Paulo
ensinam a obediência às autoridades civis, Clemente de Roma invoca o Senhor certamente
“concórdia e estabilidade, para que possam exercer sem obstáculo a soberania conferida por
Ti a eles”. O autor da carta a Diogneto expõe com delicadeza o paradoxo da vida dos cristãos,
pois aceitam as condições comuns da vida, “participam em todos os deveres dos cidadãos...
obedecem às leis estabelecidas”, mas distinguem-se de todos por sua concepção particular da
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vida e espírito diverso por que realizam suas atividades: “Os cristãos são no mundo o que a
alma é no corpo”. Tertuliano em seu fragmento chamado Apologeticum apresenta-nos os
cristãos presentes nas cidades, nas vilas, nas decúrias militares, na corte, no senado, no foro e
rejeita a acusação, de improdutividade declarando: “Coabitamos convosco neste mundo
servindo-nos do foro, do mercado, dos banhos, dos negócios, dos laboratórios, das vossas
tabernas e de outros negócios. Também navegamos junto convosco e servimos o exército, a
agricultura e o comércio... vivemos convosco e de vós”. Mesmo nas lápides dos cemitérios
cristãos vemos os apaixonados por sua profissão que reproduzem no tumulo seus símbolos
característicos (os peixeiros, os forneiros, os aurigas famosos, um funcionário da corte
imperial e numerosos soldados), porque a objeção de consciência se foi insinuada por
Tertuliano no período bem próximo do montanismo (De corona militis) ou por algum outro.
Permaneceu uma opinião particular e não representa o pensamento comum das primeiras
gerações cristãs. Os próprios mártires alegaram muitas vezes nos processos sua lealdade ao
imperador e obediência às leis. Também a escravidão, que constituía a coluna do sistema
econômico, era considerada legítima e praticada por patrões cristãos, mesmo que o
relacionamento entre patrões e escravos era regido por um espírito novo. O cristianismo inicia
a abolição da escravidão.
Falou-se de um compromisso entre os postulados teóricos do cristianismo, e as
exigências práticas da vida, de uma adaptação da nova religião ao mundo em que vivia. De
uma progressiva evolução no sentido contrário às origens. É verdade que a tensão entre as
primeiras gerações pela parousia foi logo atenuada diante da realidade encontrada, mas para
além de uma evolução e de um compromisso pode-se falar de esclarecimento dos diversos
aspectos do próprio cristianismo, coisa difícil de juntar em uma síntese coerente; fé no além,
rejeição do temporal concebido como fim último e exclusivo, empenho no temporal como
plano querido por Deus para sua glória e, portanto, caminho para a vida eterna.
1.9 As Perseguições
1.9.1 As causas
O império romano, como todos os estados da antiguidade, se por um lado considerada
a religião como uma instituição pública a qual todos os cidadãos deveriam aderir nem que
fosse apenas externamente, por não se preocupava com o que os súditos pensavam no íntimo
de suas consciências, e deixava plena liberdade para qualquer culto que quiserem praticar
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juntamente com o oficial. Portanto, as religiões pagãs continuaram sempre impassíveis, bem
foi outra atitude daquela que reivindicava um exclusivismo absoluto, não tolerando junto
consigo nenhuma outra de culto e arrogava-se o monopólio da verdade. É verdade que os
judeus sempre foram tolerados gozaram de vários privilégios e desenvolve um notável
proselitismo. Explicável até certo ponto, pois o judaísmo apresentava-se como uma religião
ligada estritamente à vida de um determinado povo, não aspirava a um verdadeiro
universalismo, ficando assim restrito a um grupo pequeno, porém ativo. Diferente eram as
aspirações e as características do cristianismo. O choque era inevitável.
Dois fatores fortes geraram e fomentaram a surda hostilidade do mundo romano contra
os cristãos, vindo depois a desembocar nas perseguições. A questão política (o não
reconhecimento da competência do estado nas questões religiosas), algo mais vago, mas nem
por isso menos eficaz que era a antipatia popular que os cristãos atraem sobre si por causa da
sua conduta.
Os cristãos em geral são salvos, raríssima exceções não representativas mostraram-se
súditos leais em tudo aquilo que diz respeito à esfera estritamente política. Significativa a
nossos olhos são as declarações de vários mártires, e.g. dos solitanos (de Scillium na Numídia
e justiçados em Cartago em 180), que declararam ao procônsul que pagavam os impostos,
reconhecendo assim a autoridade estatal, e que se mantinham longe de violação de qualquer
lei. Todavia eles introduziram uma distinção totalmente nova para a civilização antiga entre
política não reconheciam o imperador como chefe supremo da religião reivindicava o direito
de seguir a própria consciência no que diz respeito à relação com Deus. A autoridade civil
perdia assim aquele caráter sacral, típica da idade antiga, que lhe dava plenos poderes no
campo político e religioso. Usando uma terminologia um tanto anacrônica porque reflete uma
mentalidade atual. Os cristãos foram os primeiros a defender a liberdade de consciência e a
laicidade do estado. Introduzira o dualismo entre o estado e igreja, entre religião e política. A
recusa em prestar culto ao imperador, prática difundida do oriente ao ocidente, era apenas
uma conseqüência ou um aspecto de uma questão mais ampla, uma concepção diferente da
natureza e finalidade do estado ao qual se negava pretenso direito de impor determinado culto
e se rejeitava o totalitarismo obsessivo, a dignidade e aos direitos da pessoa humana que se
declara submissa a uma lei transcendente. É falso dizer que por isso os cristãos constituíam
um perigo para o estado, como se diz comumente. É mais verdadeiro dizer que eles
introduziram uma visão totalmente renovada da política, visão esta que parecia subversiva
para as autoridades constituídas incapazes de acolher novas idéias.
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Mais eficácia teve, com toda probabilidade, a antipatia popular inicialmente atiçada
pelos judeus, que aparecem muitas vezes como propagandistas ativos contra os cristãos. Essa
antipatia desenvolver-se-á por motivo variado. Muitos se sentiam ameaçados em suas
profissões (sacerdotes, comerciantes que viviam na sombra do culto pagão, adivinhos,
antropólogos, professores) e eram naturalmente levados a precaver-se do perigo. Basta
recordar três episódios: o tumulto antipaulino levantado pelos vendedores de estátuas
idolátricas em Éfeso (At 19, 23ss), o pressentimento do filosofo Justino que seria denunciado
como cristão por um certo Crescente, ao qual fazia uma concorrência inevitável às aulas
mesmo que involuntariamente (isso se verificou literalmente), a ilusão de Plínio na sua carta a
Trajano, logo após as medidas repressivas anticristãs. “Novamente se vende a carne das
vítimas, que até então tinha escassos compradores”. Causava admiração e irritação a severa
conduta moral dos cristãos e sua castidade reservada que os afastava dos lugares de diversão e
dos espetáculos públicos, o véu de mistério que circundava sua fé e suas cerimônias (mais que
por lei eclesiástica, a disciplina do arcano, cujo real valor ainda hoje se discute, pelo temor de
expor-se a incompreensões e derrisões), sua difusão capilar e quase inexplicável Plínio em sua
citada carta recorda: “muitos de todas as idades e condições e de ambos os sexos são e estarão
em perigo” (de cair nas malhas da propaganda cristã).
A animosidade pagã era assim tão grande que acreditou facilmente nas mais
inverossímeis acusações. Minúcia Félix em sua obra Octavius, escrito por volta de 200,
coloca na boca de um protagonista, o pagão Cecílio, os boatos mais comuns sobre os cristãos,
infanticídio (ao neófito se apresenta um coberto de farinha para que ele o corte em pedaços
como um pão). Essa idéia pode ter nascido de qualquer frase mal-entendida, sobre a
eucaristia. Incesto (na escuridão que acompanha as reuniões acontecem coisas torpes),
adoração de um asno (acusação comprovada por um grafite no Palatino, que reproduz um
crucificado com cabeça de asno sob o qual está escrito: Alex Emano venera seu Deus),
Tertuliano no Apologeticum nos faz conhecer outra acusação, por causa do desprezo dos
cristãos pelas divindades acontecem às calamidades. Mais grave, porém, se bem que mais
verossímil era a acusação de ateísmo, “Morte aos ateus!” bradava a multidão reunida no circo
de Esmirna para estimular a condenação do velho Policarpo. Todas estas censuras, e poder-se-
ia acrescentar ainda outras e que causaram certos danos que os apologistas correram logo para
consertar, resumem-se em uma só. Os cristãos são culpáveis de “ódio ao gênero humano”.
Nem todos estes motivos tiveram sempre o mesmo peso. Provavelmente no início a
versão da opinião pública teve um papel importante no séc. III com o imperador Décio e,
sobretudo com Diocleciano, prevaleceu o fator político.
20
1.9.2 Principais fontes sobre as perseguições
Antes de adentrar na luta entre igreja e império é bom acenar alguns problemas
comuns, primeiramente, algo sobre a documentação autêntica que temos, seja para educar a
um senso crítico seja para dar a conhecer preciosíssimos textos da antiguidade cristã. Outro
problema em comum é a interpretação dos documentos.
São chamados Atos dos mártires, ou simplesmente Acta, os documentos de época
oficiais que reproduzem o processo com interrogatório e sentença final, juntamente com o
nome do magistrado e dos acusados. Já na época se acrescentou alguma frase para indicar o
cumprimento da sentença. As actas são caracterizadas por sua brevidade (poucas páginas),
sobriedade, excluindo qualquer intervenção extraordinária de Deus em defesa do mártir,
nenhum elemento acidental, nenhum esboço retórico. Nada de exposições longas, mas apenas
um rápido suceder-se de perguntas e respostas. Justamente por isso possuem beleza escultural
e frescor. Temos hoje cerca de trinta desses atos; lembramos especialmente os de S. Justino e
companheiros (Roma, 165), dos mártires Silitanos (Cartago, 180), Cipriano (Cartago, 258).
Diferente dos Atos são as Passiones, documentos da época de caráter restrito,
redigidos para edificação, mas com pleno respeito à verdade, junto aos Atos de Apolônio
(Roma, ‘180; é impróprio chamar de Atos), dos Stos. Carpo, Papilo e Agatão (pérgamo, 161-
169), destacam por seu valor o Martírio de Policarpo (Esmirna, 155), que conta o heroísmo do
bispo octogenário enviado “a todas as comunidades cristãs da santa igreja católica”, a carta
das igrejas de Lião e de Viena às da Ásia e Frigia com a comovente narração da morte dos
mártires de Lião de 177 (entre os quais Blandína, uma escrava de coragem superior ao seu
físico fraco), e finalmente a Paixão de Perpétua e Felicidade (Cartago, 203), um documento
único do gênero porque regido em sua maior parte (cerca de 2/3), por dois protagonistas na
penumbra do cárcere, perpétua e Saturo.
As Gestas são contrárias ao visto anteriormente (Actas e Passiones), narração surgidas
depois do fim das perseguições, talvez muitos séculos do acontecimento narrado, com justa
posição de elementos históricos e lendas onde o extraordinário e miraculoso ocupam grande
espaço, quase todos os mártires romanos mais famosos tem sua bela gesta, que tem o mérito
de bem pitoresca (Santa Inês, Santa Cecília, São Sebastião).
Não faltam testemunhos de outro gênero, que também possuem valor histórico.
Recordemos, sobretudo, da carta de Inácio de Antioquia aos romanos, onde o santo descreve
sua viagem para lá e seu desejo de morrer, o epistolário de Cipriano, que nos fornece um
21
quadro interessantíssimo das condições da igreja de Cartago quando a perseguição de Décio e
de Valeriano, com todas as polêmicas sobre o comportamento do bispo e sua atitude diante
dos lapsi, os opúsculos de Cipriano, os de Tertuliano, úteis para informar sobre problemas
acontecidos nas perseguições, e finalmente os calendários locais, com elencos sumários dos
mártires, fonte de ampliação atual do martirológio romano, mesmo com alguns erros. Outras
fontes exigem maior crítica, como por exemplo, as homilias de S. João Crisóstomo sobre
alguns mártires, ou as poesias composta pelo papa Damasco e também por Prudêncio.
Dos Atos, das Paixões, da correspondência de Cipriano emerge a figura verdadeira do
mártir cristão com toda a sua inteireza humana. Ele não busca o perigo, evitando-o sempre
que possível sem sentir-se acovardado, fugindo e se escondendo (“Nós não aprovamos
aqueles que se oferecem espontaneamente, porque o evangelho não ensina isso”, escreve o
redator do Martírio de Policarpo a propósito da apostasia de certo Quinto, que havia se
entregado espontaneamente aos carnífices). Longe de qualquer ostentação, da busca do
heroísmo (estilo de Nietzsche), o mártir afronte a morte as mais das vezes não num cortejo
triunfal, mas num lugar deserto, em pleno abandono, em lugares obscuros, de má fama, sem
que sua sorte se diferencie dos delinqüentes comuns. A representação do mártir lançado às
feras tendo a assistência de uma multidão sanguinolenta é algo que se deu de fato
rarissimamente, em sua maioria foram decapitados nos lugares onde comumente se
decapitavam os malfeitores e homicidas. Na penumbra imunda e, portanto, insalubre do
cárcere, que era para guardar e também torturar as pessoas, os prisioneiros perguntavam-se
qual seria o fim menos doloroso (era preferível morrer com um urso ou um leopardo?),
rezavam pela perseverança sabendo das muitas defecções, mesmo superando as primeiras
provações, choravam diante da incompreensão dos familiares, ainda pagãos. É raro encontrar
uma verdadeira definição sobre o martírio aparece excepcional o estado de ânimo de Inácio de
Antioquia que abraçava num único ato de amor, Cristo e os leões que abrem lhe o caminho
direto para Ele (carta aos Romanos, uma obra prima da antiguidade cristã). A fortaleza do
mártir surge não do anelo ao sofrimento e à morte, mas da serenidade com a qual ele vai ao
encontro do fim inevitável, confiando apenas na graça divina, não nas próprias forças. “Agora
sou eu que sofro estes tormentos – exclama Felicidade, companheira de Perpétua, em meio às
dores de parto na prisão de Cartago – lá fora estará em mim outro que sofrerá por mim, pois
estou disposta a sofrer por Ele”.
1.9.3 As Catacumbas
22
A historiografia romântica do Oitocentos com certa complacência os cristãos
refugiados nas catacumbas para celebrar seus ritos e talvez para viver com maior
tranqüilidade, escondidos de seus perseguidores. As cores são mais sóbrias na pintura original
do que nos retoques, as catacumbas nunca serviram de moradia ou abrigo nem sequer eram
locais habituais de culto. Eram apenas cemitérios cristãos subterrâneos, cuja localização era
notória para a polícia romana. A existência de cemitérios reservados aos cristãos não deve
causar estranheza, pois é natural que quisessem ser sepultados junto com os irmãos de fé. O
uso de cemitérios subterrâneos era comum, os judeus, os etruscos e outros povos também
tinham o costume de sepultar seus mortos em túmulos escavados na rocha, logo passando para
o sepultamento sob a terra. E o solo ao redor de Roma tinha (ainda têm) características
peculiares; largas camadas de tufo negro, que se escava facilmente e é bastante sólido. A
palavra “catacumbas” por um fenômeno que acontece em outros casos, isto é, de um
significado particular passa para o geral, deriva do nome de então do cemitério hoje chamado
de S. Sebastião, ad, catacumbas (“junto da grande vala”, ainda está lá).
Os maiores cemitérios cristãos subterrâneos de Roma se encontram ao Sul, ao oeste e
nordeste da cidade, ao longo das grandes estradas consulares, na via Apia, S. Calixto, S.
Sebastião e a de Prestado, bem próxima delas, na via Ardeatina, encontramos a catacumba de
Domitila, na Sal ária a de Priscila, na via Nomentana a de Santa Inês. No início estes
cemitérios pertenciam às famílias cristãs donas dos terrenos, Domitila era a dona do lugar
onde surgiu o cemitério homônimo, a família dos Acílios Glabiões era dona do cemitério
depois chamado de Priscila, com muita probabilidade, Pomponia Grecina era dona do
cemitério depois chamado de Calisto. Mais tarde passaram a ser propriedade da igreja, no
pontificado de Calixto, quando se desenvolveu notavelmente seu aparato administrativo.
Muito se discute para comprovar como a igreja era proprietária, sob um regime de
perseguição. Para De Rossi, Mommsen, Allard, a comunidade eclesiástica assumia perante o
estado a figura jurídica de uma sociedade de mútuo socorro, que assegurava a seus sócios uma
sepultura (collegica funeraticia ou tenuiorum). De fato as catacumbas foram respeitadas até
Valeriano, em 257, quando se proibiu as reuniões em cemitérios. Mais tarde, sob Diocleciano
de 303 em diante, os cemitérios cristãos foram fechados e expropriados.
Ainda depois do termino das perseguições as catacumbas continuaram a ser usadas
para sepultamento, por todo o séc. IV; por isso as maiores partes dos túmulos são dessa época.
Somente depois do séc. V uns cemitérios antigos tornaram-se causa de veneração. Do séc. III
em diante, já nas invasões longobardas, vários corpos de mártires foram transportados para
igrejas dentro da cidade, e assim, as catacumbas foram entradas e o abandono geral (causa do
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desabamento? chuvas, tempestades, mato?). O interesse do renascimento pela antiguidade
despertou a atenção aos antigos cemitérios, dos quais havia vagas indicações topográficas.
Calcula-se que as galerias das catacumbas romanas perfazem um total de 100 km,
calculando-se cinco lóculos em cada metro, chega-se a um total de 500.000 corpos sepultados
em um período de dois séculos e meio de 150 a 400. Na realidade a comunidade romana não
superava 10.000 membros em 200 e 100.000 por volta de 313. Naturalmente são bem poucos
os túmulos que encerram com absoluta certeza o corpo de um mártir, e estudos recentes
invalidaram certos critérios de reconhecimentos usados anteriormente. Nos oitocentos
acreditava-se que as ampolas com poeiras vermelhas encontradas nalgumas sepulturas
continham sangue solidificado, sinal claro de túmulo de mártir, pois bem, hoje se sabe que as
mais das vezes essas ampolas continham perfumes e ungüentos, comparável ao nosso costume
atual de lançar flores aos túmulos. Ao invés, a historicidade de um mártir se prova com três
retiros: testemunhos diretos (Acta ou Passiones); inscrições especificam de Martyr (em
pouquíssimos casos, papa Cornélio, morto em 253, algum outro pontífice, S. Jacinto,
Novaciano) provas de culto antigo pelo mártir, venerado por isso mesmo (basílica funerária,
erguida sobre seu sepulcro inviolado, como aconteceu com São Pedro, São Paulo, Santa Inês,
São Lourenço, São Sebastião, São Pancrácio, Santos Nereu e Aquiles; menções nos antigos
martirológio; graffits antigos que invocam de um modo ou de outro o mártir).
1.9.4 O número dos mártires
Conforme os critérios supracitados pode-se afirmar que milhares de mártires cujos
nomes são conhecidos. É certo que muitos não tiveram veneração especial, visto que na época
não havia o interesse histórico atual com organização sistemática de notícias documentadas;
no mais, em cada cemitério era venerado apenas um mártir, o patrono do lugar, e os outros
eram esquecidos. Porém falavam impressionados dos numerosos exércitos dos santos
mártires; sabemos que é um absurdo falar de vários milhões de mártires porque nenhuma
fonte antiga dá esta cifra, e também porque se percebe uma sensível diminuição dos cristãos
no tempo de Diocleciano, que chegava a quase cinco milhões.
Tentemos chegar a um cômputo verossímil sobre o número dos mártires. Admitamos
que a perseguição de Diocleciano fizesse um número de vítimas igual a todas as perseguições
juntas (levando em conta que o número dos cristãos era inferior, que as perseguições do séc.
III foram limitadas a certas categorias, ou foram mais leves, que elas nos dois primeiros
séculos foram esporádicas, semelhantes a um estilicídio, como veremos adiante). Se hoje
24
calculamos cerca de 1000 comunidades no tempo de Diocleciano (cada comunidade tinha seu
bispo e podemos deduzir sua quantidade pela participação nos concílios mais importantes), e
que cada comunidade teve cerca de 50 vitimas, então houve 50.000 mártires; a esses números
podem-se acrescentar outros 40.000 supliciados nas quatro grandes cidades: Roma, Cartago,
Antioquia e Alexandria. Num total de 90.000 mártires, o número total dos outros três séculos
anteriores seria de 180.000. A soma total pode sofrer um aumento, calculando 1.800
comunidades sob Diocleciano, assim haveria 140.000 mártires na última fase, sendo um total
de 280.000. Os historiadores em geral preferem as taxas mais baixas e limitam o número dos
mártires dos três primeiros séculos a 100.000 no total.
Esta cifra parece exígua apenas se esquecermos de um lado que a população do
Império nunca ultrapassou os 50 milhões de habitantes do outro lado que junto ao extremo do
martírio devem-se contar também os exilados, torturados, os que tiveram seus bens
confiscados, e todos os que tiveram – mesmo sem perseguição – ameaçados de morte, real ou
remotamente.
1.9.5 As duas fases da perseguição
De Nero a Diocleciano a perseguição não teve um desenvolvimento ininterrupto e
uniforme. Houve pausas, períodos de paz, recrudescências e massacres. Já se dividiu as
perseguições em dez períodos, para comparar com as dez pragas do Egito, mas trata-se de um
esquema artificioso e inexato. Faz-se necessário distinguir com clareza das fases, que
correspondem de modo geral aos dois primeiros séculos e ao terceiro, ou se preferimos, aos
imperadores anteriores e posteriores a Sétimo Severo (193 – 211).
“No primeiro período se mantêm substancialmente imutável as normas dadas pelo
imperador Trajano ao pro cônsul Plínio num rescrito de 112 d.C. se devemos punir a pessoa
mesmo sem crime, ou apenas os crimes nos quais a pessoa esteja envolvida”. Trajano
respondeu na sua imperatória brevitas: “Não precisa procurá-los (os cristãos). Se forem
denunciados e estiverem convencidos do crime devem ser punidos com a seguinte restrição:
quem negar ser cristão e provar isso em fato, adorando os nossos deuses, poderá obter o
perdão com seu arrependimento, mesmo havendo suspeita do seu passado. As denuncias
anônimas não tem valor...”. O restrito, muito criticado por Tertuliano no Apologético,
mostrava de maneira clara a situação especial dos cristãos. Mesmo se o imperador não dava
resposta precisa ao questionamento de Plínio, se devia punir os delitos nos quais a pessoa
estivesse implicada ou apenas o nome de cristãos, isso foi na íntegra confirmado pelo
25
imperador Adriano numa resposta ao procônsul da Ásia, Minúcio Fundano sete anos depois:
porém ele se preocupava de que a autoridade legítima não fosse subjugada pelas pressões da
plebe, facilmente instigada por mal-intencionados, e realçava a necessidade de um
procedimento regular.
Portanto o estado romano não tomava iniciativa, não tanto pela dificuldade da matéria
quanto pela ausência do tipo em seu direito penal, que não temos hoje, o Ministério Público.
O magistrado romano sempre esperava que o delinqüente lhe fosse apresentado por um
acusado particular. Um processo contra um cristão abria-se apenas diante de uma denuncia
comum, que qualquer habitante do império podia fazer quando quisesse. Então o magistrado
intervinha. Todavia o processo então iniciado não visava esclarecer a existência do delito para
depois puni-los, mas sim persuadir os cristãos a renunciar a sua fé. Depois de um brevíssimoo
interrogatório, onde se assegurava se o imputado havia o não aderido à seita, o juiz se
esforçava de persuadir o cristão a abjurar, com promessas, ameaças, torturas (flagelados,
cepo, cavalete, fogo...). Tratava-se de um verdadeiro duelo entre o delito e o juiz, que se
sentia vencido moralmente caso quem lhe estava defronte não cedesse. Se para o mártir
bastava apenas uma palavra para evitar o perigo, os pagãos sequer compreendiam a atitude
que lhe parecia cega obstinação ou simples desejo de morrer, como observou algum
magistrado; nem Marco Aurélio, como todo o seu estoicismo compreendeu isso. Por outro
lado vemos que nem todos os juízes eram sedentos de sangue, e mais de um declarou
publicamente seu embaraço ao tratar essas questões. A característica fundamental da primeira
fase foi porém a esporadicidade: “não houve um de perseguições sanguinolentas seguido de
um processo contra ele, que poderia levá-lo ao martírio. O fato de passar longos anos sem
nenhum processo não dava nenhuma garantia, bastava um inimigo pessoal para tornar o
perigo iminente”. Nessa situação a conversão exigia um heroísmo incomum.
A situação foi modificada substancialmente a partir de Sétimo Severo: a iniciativa
processual não vem mais baixa, mas do alto, dos imperadores, com diversas leis que golpeiam
não cada cristão em particular, mas toda a categoria, toda a igreja. Todavia há períodos de
perseguições mais ou menos violentas e difusas, sucedem-se períodos de paz devido a
prorrogação das leis emanadas antes. Assim os cristãos gozaram de uma quarentena
ininterrupta de paz, entre 260 – 303.
1.9.5.1 Primeira fase das perseguições
26
O império romano deixou tranqüila a nova religião até Nero, isso se não levarmos em
conta algumas medidas contra os judeus expulsos de Roma sob Cláudio por causa dos
dissídios e desordens que dividiam sua comunidade (Cláudio expulsou de Roma aos judeus
que faziam freqüentes tumultos por causa de certo César). Certamente esse procedimento
atingiu os cristãos de origem judia. Segundo Tácito (Annales XV, c. 4), Nero (54 – 68), para
desviar a acusação de ter incendiado Roma em 19 de julho de 64, prendeu os membros mais
conhecidos da comunidade cristã e, pelos indícios fornecidos por ele, prendeu uma grande
multidão, que foi condenada não como incendiária, mas devido ao ódio pelo gênero humano,
execuções nos jardins do Vaticano, martírio com refinamento, representação real e cruel de
cenas mitológicos, crucificações, tochas vivas e caça as feras. Esta narrativa é confirmada
indiretamente, aos menos por causa do refinamento dos suplícios, Clemente de Roma aos
Coríntios, mas nem ele e nem os outros autores que falam dessa perseguição (Suetônio,
Tertuliano e outros) aludem a acusação de incêndio. Mesmo Tácito não é claro em sua
narrativa, pois apresenta a prisão como meio de afastar do imperador seus oponentes,
propondo assim como motivo da condenação não o incêndio da cidade, mas o ódio ao gênero
humano. O silêncio dos escritores e a obscuridade de Tácito levaram muitos historiadores a
deduzir que Nero, para além de jogar a culpa sobre os cristãos, buscasse uma distração da
opinião pública sobre os problemas – tática em voga na política até hoje. Perseguição restrita
a Roma, mas que durou até a morte de Nero. Entre as vítimas estão Pedro e Paulo, em data
imprecisa que a tradição fixou em 67. A professora Marta Sordi baseando-se primeiramente
no tom das últimas cartas de Paulo no segundo cativeiro romano diz que seu martírio foi
anterior ao incêndio, opinião pouco seguida. As escavações feitas na basílica de São Pedro
entre 1940 – 1950 demonstraram com propriedade que a basílica constantiniana foi erguida
sobre o túmulo do apóstolo Pedro, temos prova da veneração já na primeira metade do séc. II,
e não faltam indícios de um particular interesse por esse túmulo já na segunda metade do séc.
I. Tem-se dúvida das relíquias encontradas dentro: serão verdadeiramente do apóstolo Pedro?
O arqueólogo Margherita Guarducci diz que sim, e também vários outros arqueólogos.
A perseguição neroniana teve duas conseqüências, manchou os cristãos com a
infância, confirmados oficial e estavelmente à hostilidade da opinião pública e determinou a
praxe seguinte (a nova religião não é permitida).
Seria por demais minuciosos e até inútil seguir agora elencando cada imperador e
pergunta, caso por caso, qual foi o motivo da retomada da perseguição, que sempre houve
como vimos, mesmo que de maneira esporádica e intermitente. Limitaremos aqui aos
imperadores sob as quais choveram denúncias e citaremos os principais mártires. Sob
27
Dominicano a perseguição foi forte em Roma e nas províncias orientais, teve como vítimas
membros da aristocracia e até mesmo da família imperial (Tito Flávio Clemente, primo do
imperador, cônsul em 95, foi condenado por ateísmo, e Flávia Domitila, sua mulher, foi
deportada, também o ex-cônsul Acílio Glabrião). Na Ásia foi vitima Antipas, bispo de
Pérgamo. Sob Trajano foram mortos Simão e Inácio, bispos de Jerusalém e Antioquia,
respectivamente. Inácio foi trazido a Roma para ser lançado às feras nos jogos de 107, onde
foi comemorada a conquista da Dácia, no Coliseu (mas não temos certeza absoluta, pois
somente após o Seiscentos se passou a considerar esse lugar como banhado pelo sangue dos
mártires). Sob Adriano morreu o papa Telésforo. Sob Antonino Pio morreu pela fé Policarpo,
bispo de Esmirna e o catequista Tolo Mau com dois cristãos em Roma. Sob Marco Aurélio
houve um recrudescimento das perseguições, deve-se salientar, contra a superficialidade
apologética de Tertuliano, não apenas Nero, bons imperadores beneméritos ao estado como
Trajano, Marco Aurélio, e mais tarde, Décio e Diocleciano agiram com rigor contra os
cristãos. Morreu em Roma o filosofo e apologista Justino com seis companheiros, em Lião
onde a perseguição começou por instigação da massa, caíram cerca de cinqüenta cristãos,
entre eles o bispo Fotino, com mais de noventa anos, o martírio em Pérgamo do bispo Carpo,
do diácono Papilo e da cristã Agatonice, queimados vivos. Dias mais tranqüilos vieram com o
filho de Marco Aurélio, Cômodo, talvez por influência de sua concubina Márcia, mesmo
assim foram decapitados em Cartago seis cristãos: três homens e três mulheres, naturais de
Scillia, na Numídia, Sperato, Narzalo, Citimo, Donata, Vestia e Segunda em 180. Em Roma
foi condenado à morte o senador Apolônio, homem distinto, possuidor de uma rica cultura
filosófica, colocando assim seus juízes em apuros.
1.9.5.2 Segunda fase das perseguições (de Severo a Diocleciano)
Se bem que na maior parte do império continua a situação que podemos chamar de
trajana, para certa classe de pessoas inicia-se uma perseguição direta. Todavia até Décio a
perseguição não será generalizada, estando geograficamente limitada, com poucas vítimas.
Sétimo Severo cortou de forma de proselitismo, depois de uma sublimação judia, “proibiu sob
grave penalidade a conversão ao judaísmo, ficando o mesmo estabelecido para o
cristianismo”, escreve um dos autores das histórias Augusta. A perseguição atingiu sobretudo
neófitos e catecúmenos, especialmente na África onde morreu em Alexandria Leônidas, pai
do grande Orígenes, em Cartago Perpetua, Felicidade, Revocado, Saturnino e Secundino.
28
Seguiu-se o período dos imperadores Sírios, Caracala, Helogábalo, Alexandre Severo,
em cujos cortes várias mulheres tiveram influência, também por certo sincretismo reinante
não faltou simpatia pelos cristãos, o que não impediu a morte do papa Calisto (vimos algo de
sua figura na questão da disciplina penitencial e na propriedade das catacumbas).
Depois do assassinato de Alexandre Severo foi entronizado Maximizo a Trácio que,
segundo Eusébio de Cesaréia, primeiro historiador da igreja, que viveu no início do séc. IV,
“ordenou de matar o bispo, como responsável pela pregação evangélica”. Em Roma o papa
Ponciano foi exilado na Sardenha, vindo a falecer logo. Segundo uma tradição, naquele
período houve dois papas, um legítimo e outro ilegítimo, por causa da tendência moderada de
Calisto, sendo consagrado bispo Hipólito, que foi exilado junto com Ponciano, onde se
reconciliaram a seu ofício, morrendo no exílio. É algo muito questionado pelos historiadores
atuais porque há poucos documentos, é certo que Hipólito é venerado como mártir desde a
antiguidade, no mais são suposições infundadas.
Na metade do séc. III subiu ao poder Décio, militar pouco culto, porém enérgico, que
tentou uma política de restauração em grande estilo, indo contra tudo aquilo que julgava
perigoso para o império: bárbaros que forçavam as fronteiras, tendências orientalizantes
causadores da imoralidade difusa e os cristãos. Perseguição geral e sistemática, obrigação de
prestar um ato de culto pagão, num dia determinado e perante uma comissão que emitia
certificados (libellus). Temos papiros conservados nas areias secas do Egito que nos dão o
texto exato diante desse certificado. O imperador pensava que dessa maneira colocaria os
cristãos diante de uma alternativa inexorável, ou renunciar a própria fé ou morrer. De
qualquer forma o cristianismo será destruído. Nas grandes cidades como Roma, Alexandria e
Cartago várias comissões recebiam diuturnamente os cidadãos convocados, assistiam ao
sacrifício concediam o certificado. Não faltaram mártires, como o papa Fabiano, presbítero
Piônio de Esmirna, os bisntiquia e Alexandre de Jerusalém, também o velho Orígenes, um dos
maiores escritores da antiguidade cristã, que foi solto depois de muita tortura. Muitos
salvaram-se fugindo, também alguns bispos, entre eles Cipriano, persuadido de que nesse
momento difícil seria mais útil à comunidade o governo firme e seguro do que seu martírio.
Porém grande parte do cristãos atraiu sua fé, seja quem ofereceu verdadeiramente em
sacrifício (thurificati ou sacrificati), seja quem astuciosamente e com dinheiro conseguia um
certificado sem haver sacrificado. Não falou quem na confusão geral permaneceu
imperturbável. Quando Décio morreu combatendo os godos em junho de 251, a perseguição
parou. Durou um ano e meio, foi uma rajada sanguinolenta, mas breve. E qual foi o resultado
final? Décio havia se iludido de colocar a igreja diante de uma alternativa inexorável. A ele
29
escapou uma terceira hipótese, os cristãos que depois de apostatar, se arrependessem e
pedissem absolvição. Esta foi a verdadeira conseqüência da perseguição, não a destruição do
cristianismo, mas um grande número de caídos (lapsi) que pediam insistentemente a
absolvição. Vencedora de fato era a igreja, mesmo não tendo muitos que se alegram com uma
vitória desse tipo.
Pela primeira vez a linha adotada dos apóstolos constitui um grande problema,
agravado pelas pretensões intempestivas de muitos lapsi e pela arrogância de muitos
confessores, aquele cristão libertado dos cárceres no fim da perseguição ou por outros
motivos e que se gloriavam do heroísmo demonstrado, erigindo assim em juízes, usurpando
direitos concernentes apenas ao bispo. Já vimos anteriormente um pouco desse assunto. Entre
os dois extremos, o papa Cornélio em Roma e Cipriano em Cartago optaram por uma linha
moderada, testemunhada no riquíssimo epistolário de Cipriano e seu opúsculo De lapsi. Um
concílio acontecido em Cartago em 251 tomou as seguintes decisões os sacrificant e os
thurificati deviam fazer penitência por tempo indeterminado e receberiam absolvição apenas
no momento da morte, os libelatici seriam apenas absolvidos após cumprirem penitência a
eles imposta, aos que não mostrassem nenhum arrependimento, não seriam absolvidos sequer
in articulo martis, os eclesiásticos seriam reduzidos ao estado laical e receberiam o mesmo
tratamento. Na verdade um concílio de 252, prevendo novas perseguições, concedeu
absolvição a todos os lapsi indistintamente, que não cessassem de fazer penitência “para que
possam reunir-se nos acampamentos do Senhor todos os soldados de Cristo que pedem armas
e querem combater” (Cipriano, Epist. LVII 1). A perseguição voltou forte com o imperador
Galo, mas teve curta duração, foi quando o papa Cornélio morreu no exílio. É também desta
época Tarcísio, que conhecemos praticamente apenas dos versos do papa Damasco.
Um novo edito de 257, sob Valeriano, ordenou aos bispos e sacerdotes de sacrificarem
sob pena de exílio, proibição de visitas aos cemitérios e de reuniões culturais, sob pena de
morte. Edito de 258, suplício imediato aos bispos renitentes, confisco de bens, trabalhos
forçados e, em caso extremo, a morte às demais categorias. Em Roma o papa Sixto II foi
surpreendido nas catacumbas de São Calisto enquanto celebrava e foi decapitado
incontinentemente com quatro diáconos quatro dias depois o diácono Lourenço foi queimado
vivo. Na Espanha morreu o bispo Frutuoso de Terragona e na África Cipriano, com sua morte
serena, fechou a boca de quem o acusou de ter se escondido na perseguição de Décio.
Perseguição parou quando Valeriano caiu prisioneiro na guerra contra os persas, seu filho
Galieno (260 – 267) restitui aos cristãos os cemitérios e locais de culto confiscados. Tal
medida equivalia a um verdadeiro edito de tolerância.
30
Depois de quarenta anos de paz eclodiu a última perseguição sanguinolenta, a última
batalha. Quatro editos de 303 retomaram na íntegra as disposições das outras perseguições
ocorridas anteriormente, obrigatoriedade do sacrifício, sob a pena de morte, confisco dos
cemitérios, os sacerdotes deveriam entregar as escrituras sacras; destruição de igreja. Tais
editos vigoraram até 311, a fase crucial ocorreu entre 303 – 305. Perseguição violenta,
especialmente no oriente, mas que não encontrou apoio da multidão. Foi mesmo áspera na
Gália, onde Constâncio Cloro, pai de Constantino, sendo ele um dos dois césares designados
por Diocleciano, mostrou-se notavelmente moderado. Muito violenta em Roma, na Ásia
Menor, no Egito, onde uma testemunha ocular acostumada à pesquisa histórica, Eusébio de
Cesaréa, descreve cenas apavorantes, mais de 100 execuções num só dia, os algozes
extenuados sucedendo-se continuamente até os malvados acabam por ficar estupefatos. A
maior parte dos martírios romanos que hoje veremos é desta perseguição (Sebastião, Inês,
Emerenciana, Pancrácio, doutros lugares: Januário, Erasmo, Vitor, Luzia Brás, Cassiano). A
abdicação de Diocleciano em 305 desencadeou uma longa luta entre velhos e novos
candidatos à sucessão, culminando na batalha da Ponte Mílvia entre Constantino e Maxêncio,
com vitória do primeiro, em 312. Nestas circunstâncias Galério, próximo da morte por
doença, emanou em 311 um edito de tolerância, na Nicomédia, reconhecimento explícito de
falência das perseguições, liberdade de culto aos cristãos, mas sem restituição de seus bens
(os cristãos têm novamente o direito de existir e de se reunir, pois nada tramam contra a
ordem pública). Depois da vitória sobre Maxêncio, Constantino reuniu-se em 313 em Milão
com seu cunhado Licínio, que governava a parte oriental do império e juntos selaram um
acordo – Protocolo de Milão, para conceder liberdade de culto aos cristãos (o cristianismo foi
equiparado às demais religiões) e restitui-lhes os bens confiscados, em junho de 313, após a
vitória sobre Daia, Licínio publicou esse edito em Nicomédia:
“Eu, Constantino Augusto, assim como Lecínio Augusto, reunidos em Milão para
discutir os problemas relativos à segurança e ao bem público, cremos dever regularmentar,
em primeiro lugar, entre outras disposições ordenadas a assegurar o bem da maioria, as que
dizem respeito à divindade, ou seja, conceder aos cristãos, assim como a todos, a liberdade e
a possibilidade de seguir a religião de sua escolha, a fim de que tudo o que há de divino na
morada celeste possa ser benevolente e propício a nós mesmos e a todos aqueles que se
encontram sob nossa autoridade. Eis, pois que cremos de modo salutar e reto, ter de tomar a
decisão de não recusar tal possibilidade a todos, quer se apeguem à religião dos cristãos,
quer aquelas que crêem ser mais convenientes, afim de que a divindade suprema, a quem
espontaneamente prestamos homenagem, possa nos testemunhar em todas as coisas seu favor
31
e benevolência costumeiros. Convém, pois, que sua excelência saiba que decidimos,
suprimindo completamente as restrições contidas nos escritos enviados anteriormente os seus
Bureaux concernentes ao nome cristão, abolir as cláusulas que nos parecem mal dispostas e
estranhas à nossa mansidão e, doravante, permitir a todos os que têm a determinação de
observar a religião dos cristãos fazê-lo livre completamente, sem serem incomodados e
molestados...” (carta ao governador da Bitínia, conhecida tradicionalmente como Edito de
Milão, e transmitida por Lactâncio de De La mort dês pérsecuteurs, 48).
Este edito, mesmo com motivos complexos e não privados de interesses pessoais,
mudou práxes e mentalidades seculares, negando ao estado o direito de impor uma religião e
política, entre estado e religião. Em outras palavras, reivindicar a liberdade de consciência e a
legitimidade do estado laico.
2 A GUINADA CONSTANTINIANA E SEU SIGNIFICADO
2.1 A contraposição dos historiadores antigos e dos atuais
São Jerônimo, escrevendo de Belém para Letã, sua filha espiritual, em fins do séc. IV,
tomado de entusiasmo, delineia eficazmente as novas condições do cristianismo e do
paganismo com o fim das perseguições. “O Campidoglio quer era dourado, agora esta
minguado, todos os tempos romanos estão cobertos de fuligem e teia de aranha, a cidade vive
das habitações que tem e a multidão apressada passa indiferente diante dos santuários meio
decadentes para as catacumbas dos mártires. O paganismo está agora abandonado até em
Roma e aqueles que antes eram os deuses dos povos estão abandonados nas cumeeiras, entre
as corujas e um ou outro laciturno. Os vexilos dos soldados então ornados com a cruz. A
imagem do patíbulo de onde veio a salvação orna púrpuras reais e as coroas gemadas
fulgurantes. Também Serapis no Egito converteu-se ao cristianismo. Em Gaza chora Marna,
fechado em seu templo, temendo continuamente por sua destruição. Da Índia, da Pérsia da
Etiópia acolhemos todos os dias fileiras de monges. O armênio depôs suas flechas os unos
aprendem o saltério, o frio da Scicia foi vencido pelo calor da fé, o exército dos godos loiros e
ruivos é acompanhado de tendas da igreja, que mesmo combatendo com sucesso contra nós,
confia na religião...” (PL 22, 870).
Alguns anos antes Eusébio de Cesárea, o pai da historiografia eclesiástica, em suas
obras História da Igreja e Vida de Constantino exalta com o mesmo entusiasmo o triunfo do
cristianismo e o apoio de Constantino à igreja. Cantemos... o cântico novo, porque... Fomos
32
considerados dignos de ver e de celebrar que antes de nós muitos realmente justos e mártires
de Deus desejaram ver e não viram, desejaram ouvir e não ouviram. Todos os homens libertos
da opressão dos tiranos, cada lugar começa a reviver com pujança, as igrejas novamente se
erguem das ruínas, os imperadores supremos através das leis continuamente promulgadas a
favor dos cristãos estendem e multiplicam a grande graça que a divina liberlidade nos havia
concedido. Os bispos recebem cartas, honras em espécie de proveniência imperial (Hist. Eccl.
X, 2 – 3). Eusébio sublinha especialmente as benemerências de Constantino nos confrontos da
igreja, fato notório no concílio de Nicéia (325), convocado por ele mesmo, mostrando-se
generoso em meios para o desenrolar das discussões, pelo êxito final e pela aplicação das
decisões tomadas. “O imperador conseguiu no final obter o consenso e acordo em todos os
argumentos discutidos, declarou ter conseguido uma segunda vitória sobre os inimigos da
igreja e celebrou uma festa triunfal pela glória de Deus” (vitaconst. c, 13 – 14).
Ao otimismo dos contemporâneos se opõem a maior parte da historiografia atual. Os
historiadores filo-jansenistas dos Seiscentos compartilham desse otimismo um autor bastante
conhecido é Fleury, que muito influenciou – Rosmini em sua obra As cinco chagas da igreja,
exaltação unilateral da igreja antiga.
F.D’Avack pensa que “o apoio estatal foi o que de mais danoso e perigoso poderia
acontecer à igreja, teve sobre ela uma grande influência corruptora e nefasta”. A rápida
desintegração das comunidades da Ásia Menor e da África, uma vez tão florescentes diante da
primeira investida do Islã. “Bastaram dois séculos de proteção e favoritismo do estado para
esclerosar e atrofiar completamente essas comunidades” (P.D’Avack. II problema storico-
giuridico della liberta religiosa, Roma 1966, p. 29 – 30). Juízo igualmente negativo aparece na
Storia Del Cristianíssimo de Ernesto Buonaiuti, comentando um dito de Tertuliano que os
Césares poderiam crer em Cristo se não fosse necessário ao mundo, ou se um cristão pudesse
chegar a César, este autor observa que aquilo que para Tertuliano parecia absurdo aconteceu
com conseqüência inesperada – os Césares converteram-se ao cristianismo, mas como por
reflexo também o cristão converteu-se ao cesarismo, tornando-se instrumento e cooperador do
novo regime imperial instaurado por Diocleciano, e assim afastando-se cada vez mais de seu
espírito primevo. Esta nova “mundanização” aconteceu de fato com Constantino, que
representa, portanto uma etapa fatal na história do cristianismo, de uma religião que separava
valores e esfera política da religião, negando aqueles a preeminência e fundando estes no
amor, sucedia-se uma religião instrumentalizada pelo poder político e forçava a usar os meios
próprios à atividade política. Se para escritores de alta divulgação como, por exemplo, Falconi
a guinada constantiniana foi uma dramática revolução evolutiva que mesmo se julgarmos
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apenas potencialmente, paralisou a igreja na aurora do séc. IV, prevalecendo o elemento
jurídico sobre o carismático, a mistura do sagrado com o profano, o enriquecimento Paulo
Brezzi diz “o reconhecimento oficial do corpus chiristianoirum deveria favorecer a
reaproximação, a fusão cada vez mais estreita das melhores energias da sociedade, o que
vinha se nos realizando vários estratos da população. Ao contrario tudo isso foi imposto de
cima, com um ato de autoridade, tornando-se assim menos duradores e fecundos”
(Cristanesimo e impero romano, Roma, 1942, p. 188).
Hoje é moda falar da guinada constantiniana de forma duramente negativa, como se
fosse uma verdadeira traição do evangelho, de uma igreja pobre, sem apoio estatal e enraizado
apenas na força da verdade e na eficácia da graça, pronta a dar a vida, nunca usar de violência,
sucede-se uma igreja rica, muito apoiada e, portanto também muito instrumentalizada pelo
estado, inclinada a usar a coerção física para sustentar a verdade.
Vamos examinar desapaixonadamente os fatos, sem influência excessivamente
negativa da moda.
2.2 Constantino, o grande, primeiro imperador cristão
Nascido em cerca de 280 de Constâncio Cloro, general de Diocleciano, e de Helena,
Constantino regeu o império do ocidente de 311 até sua morte em 337, a partir de 324, todo o
império (oriente e ocidente). Diz-se que foi um imperador cristão, pode-se falar de uma fé
maquiavélica, servindo-se de uma religião na qual não acreditava, mas que se lhe apresentava
como útil instrumentum regni, em fim hipócrita ou sincrético. O filho de Helena e Constancio
Cloro foram no mais uma pessoa sempre em busca e em evolução, ao menos no que diz
respeito à sua disposição interior, nos primeiros e juvenis anos possuía um senso religioso
reviravolta de 312, onde é difícil medir a profundidade percebe-se a tendência ao cristianismo
nos anos seguintes. É verdade que esta traduziu-se em práticas imperfeitas, o imperador
manchou-se com graves violências, que se multiplicaram justamente na sua última década
(assassinato do seu filho Crispa e de sua mulher Faustina, do seu sogro e três cunhados).
Porém nenhum político de interesse poderia induzi-lo, já moribundo, a receber o batismo, este
ato, procrastinado até então, costume bastante difundido na cristandade do séc. IV, torna-se
compreensível apenas se admite uma fé sincera ou ao menos uma autêntica preocupação
religiosa. (A fé cristã era muito difícil porque não queriam sofrer as durezas do empenho, por
isso, os povos queriam o batismo perto da morte).
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Politicamente ele merece ser colocado junto aos grandes estadistas da antiguidade, o
que justifica a maior parte dos elogios recebidos pelos seus contemporâneos, mesmo se
excessivos, exprimem claramente admiração que sua personalidade despertava em quem o
conhecia, também Eusébio. Deve-se a ele uma reforma administrativa que no geral pode-se
dizer positiva, pois permitiu ao aparato estatal se reforçar e sobreviver, superando por um
século a crise militar que o ameaçava. Santo Mazzarino chefia o grupo de estudiosos que
fazem severas críticas a essa reforma, no plano econômico não incrementou a produção nem o
escambo e favoreceu apenas os ricos. O imperador de ditador passou a chefe de estado.
Mesmo motivo que a provocaram, como e.g., a fuga da oposição do senado romano, foi um
acontecimento geopolítico muito importante, pois permitiu ao império do oriente sobreviver
bem além do outro e que como se verá estudando história da igreja mais adiante, teve
conseqüências relevantes para nós, de um lado facilitando o crescimento da autoridade do
bispo de Roma, que torna-se única autoridade na velha cidade, mas que terminou opondo-o ao
bispo da segunda Roma, uma concorrência perigosa.
Constantino acreditava que tinha missão especial dada por Deus para o bem não só do
estado, mas também da igreja e estava convencido da necessidade de uma harmonia entre
esses dois âmbitos. É natural que não pudesse liberta-se da mentalidade da época, ligada
profundamente aos restos do paganismo, sentido relação à igreja como o chefe, mesmo se sua
forte vontade de domínio sabia esconder-se habitualmente em profundas reverências; ele
mandou cunhar moedas com o título de Pontifex Maximus! embora gostasse de apresentar-se
como “servo de Deus”, não hesitou em definir-se como bispo constituído por Deus para
humanidade que está fora da igreja”, e seu biografo Eusébio chama “bispo universal”. A visão
clara da utilidade desta aliança para o estado, este por sua parte apoiado no cristianismo, se
uni à convicção do bem que se fazia pela religião e pela igreja, que ele percebia a força e a
grandeza, mesmo imitando outros homens da época, que ficavam na soleira dela, como
simples catecúmenos.
Deve-se a Constantino por primeiro o fim das perseguições. Depois do Edito de Milão,
houve uma mudança importante em 380 com o edito de Tessalônica promulgado por
Teodósio, onde se impunha a todos os cidadãos a religião católica, que assim se tornava
religião estatal, assumindo o lugar que antes era ocupado pelo paganismo. Se esta evolução
era historicamente inevitável, o Edito de Milão fica como um marco fundamental da história
da liberdade.
Porém Constantino não se limitou a professar uma neutralidade de várias maneiras à
religião outrora perseguida. Assistimos assim a uma lenta, mais profunda, evolução na
35
legislação romana, que doravante não se inspiravam nos princípios pagãos, mesmo aqueles
“iluminado” (influenciados pelo estoicismo e pelo neoplatonismo), e sim na ética cristã.
Mesmo quem admite um paganismo evoluído como principal causa de evolução legislativa
reconhece que o cristianismo teve um papal importante na aceleração e no alargamento desse
processo, que se pode resumir em dois aspectos fundamentais, um maior respeito pela pessoa
e pela vida humana. Melhoram as condições, dos escravos (matar um escravo é assassinato, a
tortura é proibida, também a marca com ferro incandescente, bem como a separação da
família na retaliação de um patrimônio; favorecendo a emancipação simplificando a praxe, a
escravidão assim mitigada junto com as novas condições econômicas, caminha rápido para o
fim), foi proibida a crucificação (pelo próprio Constantino ou seus sucessores), matar uma
criança, mesmo conforme a autoridade paterna é equiparada ao parricídio. Foi também
proibida a exposição das crianças. Foi surpresa a faculdade concedida aos juízes de destinar
os culpados aos jogos com gladiadores. Foram abolidas as sanções introduzidas por Augusto
contra o celibato e a falta de prole. De vastas conseqüências foi o reconhecimento oficial do
domingo como dia festivo. Em suma, a igreja que durante o período das perseguições teve
uma vida social limitada, baseada no testemunho pessoal de cada fiel e sem qualquer
incidência nas estruturas, pode agora exercer uma influencia benéfica na sociedade
circundante, purificando e estimulando, tornando-se um dos fatores mais importantes de
progresso. Convém notar que essa ação social era realizada pelos leigos, não pelos
eclesiásticos, que apenas se limitavam a traçar as diretivas e lembrar os princípios a serem
aplicados em cada realidade. Concomitantemente, a uma igreja verdadeiramente pobre,
voltada para o além e confiante primeiramente na força da verdade e na eficácia da graça,
mais fechada em si mesma e impossibilita de contribuir com o progresso social, sucedeu uma
igreja com laços fortes com a sociedade circundante, aliada ao poder constituído, poderosa e
respeitada e justamente por esse fator de progresso. A uma igreja quase desencarnada sucede
uma muito mais encarnada.
Sob Constantino e seus sucessores a arte cristã floresceu com a liberdade de culto e as
subvenções do governo, com as orientações da corte, em Roma surge a basílica de São Pedro
(construída com material extraído do circo de Nero) que durou até o renascimento, a de São
João de Latrão, a retomada de Santa Constância, em Jerusalém a Igreja do Santo Sepulcro, em
Constantinopla uma igreja sobre a qual Justiniano erguerá Santa Sofia. Em um tom, talvez
muito otimista, quase triunfalista, que deixa um pouco de lado a complexidade da situação, o
historiador alemão Lortz escreve: “tudo isso significa muito mais que um ato de munificência
e mecenato, era uma manifestação de fé cristã diante do mundo inteiro, era a exaltação dos
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mártires feito pelo estado romano, o reconhecimento da vitória do primeiro bispo de Roma
sobre o estado perseguidor, ele mesmo reconhecendo o fato”. Mas esta louvação vindo dos
inimigos de outrora não era um perigo, como muito mais tarde a ereção da esplêndida basílica
de Assis não significou a crise do ideal do pobrezinho?
Sob o influxo de Constantino desenvolveram e foram reforçados algumas instituições
eclesiástica, mormente aquelas que reuniam várias comunidades, sendo modeladas conforme
a estrutura estatal favorecendo a criação de províncias regidas por metropolitas, muitas já
existia, e de circunscrições maiores chamadas de patriarcados. Mesmo o Concílio de Nicéia
(325) convocado por Constantino por motivos político-religiosos contribuiu para desenvolver
na igreja um clima de fato católico.
2.3 Efeitos negativos da guinada constantiniana
Juntamente com os efeitos positivos não poderiam faltar os negativos, pois são claras
as conseqüências periclitantes.
Umas das medidas tomadas por Constantino e que teve muita influência na história da
igreja foi a lei de 318 autorizando os bispos a julgarem causas não apenas entre os cristãos,
mas também entre os pagãos, em qualquer estágio que o processo se encontrasse, quando as
partes aceitassem esta solução, mais cômoda e de custo menor. A sentença do bispo era
reconhecida pelo estado que por sua vez garantia a execução. Se esta concorrência de duas
jurisdições melhorava a administração da justiça, no mais das vezes corrupta, a extensão dos
poderes do bispo constituía um precedente significativo e grande mudança na configuração da
chefia da diocese, o pastor das almas, o centro da vida religiosa da comunidade (como aparece
nas cartas de Inácio de Antioquia), assume funções claramente temporais, que lhe absorvem o
tempo e os interesses; e se por um lado são aumentadas a autoridade e o prestígio, de outro
são ofuscadas as características espirituais, e há uma tendência forte e perigosa, se não de
transformá-los num funcionário estatal, ao menos de ligá-lo estreitamente à sorte do regime
dominante. A jurisdição de concorrência para as causas civis, se acrescentará sob os
imperadores seguintes – ao menos no Império do Oriente – a jurisdição exclusiva para as
causas eclesiástica; assim nasce o foro eclesiástico e o clero tende a constituir-se numa casta
especial, dotada de privilégios particulares. A especulação teológica e canônica nas épocas
posteriores, gradualmente elaboradas, sempre defendeu até os nossos dias que o foro
eclesiástico, como outros privilégios ou imunidades do clero, não deriva de uma concessão
estatal, mas constitui um direito inerente à própria condição do clérigo.
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Ao crescimento de poder e autoridade segui-se rapidamente um aumento de riqueza. O
imperador não se limitou a doar à igreja prédios inteiros, como o palácio de Latrão, mas
estabeleceu para cada lugar para cada lugar de culto por ele criado uma grande doação,
destinada à manutenção do imóvel e dos clérigos que aí serviam. Dessa forma a basílica de
São Pedro teve posses em Antioquia, em Alexandria e na região do Eufrates, a de São Paulo
no Egito, em Tiro e em Tarso. De qualquer maneira os bens eclesiásticos procederam da
transferência às igrejas cristãs do patrimônio dos templos pagãos suprimidos, mas também de
generosas doações das famílias cristãs. Qual seja a origem, o patrimônio eclesiástico foi
exonerado das taxas de Constantino em diante, este novo privilégio favoreceu
automaticamente o incremento das riquezas nas mãos da igreja. Nascia a “mão morta”
eclesiástica.
Este conspícuo incremento de propriedade permitiu à igreja potenciar as iniciativas
assistenciais e caritativas já em uso destes os primeiros séculos, mais claramente limitadas
pela escassez de meios, desenvolveram-se assim várias obras, algumas inéditas ao mundo
antigo (hospitais, asilos de velhos, brefótrofos, hospícios, recolhimentos), coisas hoje comum
e universalmente difundidas (na realidade nem tanto...), mas ao mesmo tempo era cada vez
mais difícil manter o equilíbrio entre o uso e destinação destas riquezas, arriscando-se perder
o espírito das origens.
A tentação da riqueza une-se o uso da força que o braço secular estava sempre pronto
a usar levando vantagem sobre a igreja. Também neste caso Constantino não fez nada além do
que abrir caminho, seus sucessores chegariam à temeridade. Se ele havia se limitado a proibir
o arúspice (com significado político de oposição) e a fechar alguns templos no Líbano e na
Fenícia onde se praticavam cultos imorais, Constâncio proibiu todos os sacrifícios e ordenou
o fechamento de todos os templos pagãos, Teodósio no final do século equiparou um
sacrifício pagão a um ato de alta traição. Justiniano encerrou qualquer
desenvolvimento/acomodação ordenando que todos os direitos civis e arresto dos bens. Não
faltou aqui e ali episódios de violência fanática, como o assassinato da filósofa Hipásia pelo
populacho cristão de Alexandria, em 415. Mais grave ainda foi a execução de prisciliano,
herege espanhol, em 385, por ordem do imperador Máximo, foi o primeiro caso de
condenação à morte por heresia. Muitos bispos deploraram o fato. Convém lembrar que foram
fatos esporádicos, que não tiveram o caráter sistemático das perseguições sofridas pelo
cristianismo, e o número de vítimas sequer pode ser comparado com as que o paganismo
causou. Naturalmente, com a legislação imperial cada vez mais favorável aos cristãos e
também as ameaças aos pagãos, aumentou o número das conversões, mas enfraqueceu
38
perigosamente o fervor das gerações cristã precedentes. O cristianismo tornou-se um
fenômeno de massa, onde o interesse e o conformismo influenciavam muito mais do que a
convicção sincera. A partir desse momento multiplicam-se os bispos que ficam cada vez mais
ausentes da sua diocese, mais interessados em conquistar a benevolência imperial e conseguir
cargos importantes na corte, e nem se educar/formar os seus fiéis.
Doravante torna-se mais grave, pesada e freqüente a intervenção do estado. Diante da
controvérsia donatista na África Constantino evoca para si a função de árbitro e protetor de
ambas as partes convocaram vários sínodos (Roma em 314, Arles em 314), promoveu várias
pesquisas por meio de seus funcionários, exilou os chefes da seita. Ainda mais decisiva foi a
intervenção imperial na controvérsia ariana; o concílio de Niceía foi convocado o imperado,
não pelo papa, ficando aquele como árbitro da situação. Sem sua aprovação os bispos nada
podiam concluir. Eusébio, apesar de todo seu entusiasmo por Constantino, não nos deixa
dúvida da intenção dele; não era de ser levados por motivos religiosos, não compreendiam e
nem poderiam compreender o nível teológico das discussões, era movido pelo perigo político
que as dissensões religiosas causavam, mesmo em germe e desejava apenas uma coisa:
restabelecer a unidade de qualquer maneira. E se em 325 o apoio estatal alegrou a ortodoxia,
nos anos seguintes viu-se o perigo de tal tutela, logo depois do exílio de Ário, veio o seu
maior adversário, Atanásio. Pior ainda sob seus sucessores, de Constancio e Valente, durante
toda a controvérsia entre as duas tendências que o arianismo se dividiu. Constantino lançou
sim as bases de um estado cristão, mas também de uma igreja de estado e do cesaropapismo,
que se tornou desde então, no oriente grego, uma norma estável e irremovível.
2.4 Tentativa de um julgamento histórico (análise crítica atual)
Se todos os historiadores são unânimes em reconhecer a importância do novo rumo
mundial feito por Constantino, bem diferente é o julgamento do significado real disso tudo. A
discrepância e juízos vem dos pressupostos de cada um, bem como da concepção que se tem
de igreja. Trata-se de uma instrumentalização da igreja pelo estado romano, primeiro passo de
um caminho cheio de erros, afastamento do ideal evangélico que implica na distinção entre
âmbito religioso e político e a aceitação do poderio terreno como meio indispensável para
cumprir a missão salvífica.
Faz-se necessário observar primeiramente que a pretensa “guinada” na verdade apenas
consagrou um processo em curso a décadas, mesmo antes de 313, pelo menos durante todo o
terceiro século, o cristianismo procurou estabelecer um sistema de relação toleráveis nos
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embates com o império. Depois é impossível pretender de um estado totalitário do séc. IV
fosse indiferente com a igreja, seria anacronismo supor naquela época o separatismo típico da
idade moderna. Na mentalidade antiga a religião estava ligada a toda vivência, seja particular
ou coletiva. É natural que muitos fiéis quisessem que, em relação ao estado, o cristianismo
ocupasse o lugar do paganismo. Os perigos reais e graves desse novo rumo, num primeiro
momento, passaram inobservados a quem tinha uma concepção de autoridade típica do mundo
antigo, onde confiava a ela a tutela da religiosidade também.
Substancialmente a “guinada” permitiu à igreja empregar com liberdade toda sua
energia, seja em seu desenvolvimento interno (possibilidade de realizar o culto sem temor e
sem vínculos, formação dos fiéis através de uma catequese intensa) seja externo (influência na
sociedade, na evolução legislativa e no fermento de uma nova cultura, antes impermeável ao
cristianismo). A igreja finalmente saiu do seu gueto! Mas, concomitantemente, o cristianismo
perdia muito de sua tensão e pureza originais, arriscando-se em tornar (e depois tornar-se-á)
uma religião social, com sua hierarquia estreitamente ligada ao estado. Nas primeiras décadas
o episcopado não se deu conta desse perigo; apenas depois das amargas experiências sob o
imperador Constâncio, acirrado da heresia ariana, muitos abrigam os olhos.
Como sempre o balancete definitivo é complexo, variado, cheio de nuances. Hubert
Jedin, historiador alemão, diz que tratou-se de “um desenvolvimento condicionado pela
situação histórica, que teve suas graves zonas de sombra, mas que possibilitou sucessos que
de outra forma não seriam possíveis, mesmo com grande esforço em superar as dificuldades”.
2.5 Reação pagã
Desde a morte de Constantino em 337 o poder foi exercido por seus filhos,
Constantino II, Constante e Constâncio, até que, eliminados os dois primeiros Constâncio
reinou sozinho a partir de 354. Ele passou à história com o sobrenome de Ariano, se por um
lado reprimiu com maior energia que seu pai os últimos restos do culto pagão, de outro tentou
impor o arianismo a todo o estado, e não obteve sucesso, apesar da sua pertinácia. Foram anos
de lutas novas e fortes, que emprenharam, sobretudo o episcopado. Em 361 o exército das
Gálias proclamou Augusto e Juliano, primo do imperador, Constâncio morreu
improvisamente, com apenas quarenta anos, enquanto preparava a resistência. O caminho do
poder estava agora livre para Juliano, que aguardava a muito tempo esse momento, pois foi
alvo do massacre de sua família, mandado por seus imperiais parentes, e foi mantido em semi-
prisão por Constato e posteriormente enviado para longe, com a intenção secreta de torná-lo
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inócuo e apressar seu fim em alguma batalha. O apaixonado estudante de filosofia revelou-se
um comandante excepcional e o entusiasmo dos soldados apressou sua ascensão. Se na longa
espera havia se mostrado um cristão convicto, alcançado ao trono tirou a máscara e mostrou
toda sua profunda aversão por aquela religião a qual atribuía, de um jeito ou de outro, o
massacre de sua família. General hábil, era mais apto para isso do que para reger o império,
era utópico, impulsivo, faltava-lhe senso histórico e contato com a realidade, por isso não se
deu conta de que a restauração do paganismo constituía uma tentativa anacrônica, fadada à
falência. Neste caso, prescindindo das convicções pessoais, Constantino mostrou-se muito
mais sabedor da irreversibilidade de processo histórico.
Juliano começou por abolir os privilégios concedidos ao cristianismo, todos foram
exonerados de altos cargos. Foi proibido o ensino dos clássicos pagãos por mestre cristão na
esperança de induzir os cristãos a freqüentar as escolas pagãs, ou mesmo para impedir de
fazer o estudo superior depois do ensino secundário. Assim ele mostrava que compreendia a
importância das escolas cristãs no plano de uma educação verdadeiramente religiosa.
Favoreceu a heresia para enfraquecer a igreja, sobretudo o donatismo e o arianismo,
fomentando assim as divisões internas. Cá e lá não faltaram episódios cruentos, seja pelo zelo
de algum funcionário, seja pelo fanatismo da massa.
Porém o fator do paganismo não se limitou a combater a igreja, tentou uma renovação
da velha religião romana. Se o politeísmo com sua mitologia fantástica não atrai mais
ninguém, poder-se-ia aproveitar apenas um pouco do neoplatonismo para um aprofundamento
religioso, buscando assim elevar a moral do povo, também copiando instituições cristãs que se
mostraram positivas e benéficas. Então ele promoveu asilos, recolhimentos para os pobres
estrangeiros, prescreveu instruções religiosas para o povo, insistiu na conduta dos sacerdotes
pagãos, até introduziu uma forma de disciplina penitencial.
Com apenas dois anos de reinado, em 363, Juliano tombou em uma das tantas guerras
contra os Partos, que o império sustentava cronicamente, assim desapareceu rapidamente a
“pequena nuvem”, como lhe chamava Atanásio. No mais, os pagãos assistiram com notável
indiferença esse intento, mesmo seu intento de abolir os desperdícios e abusos na
administração pública não foi acolhido com simpatia.
Sob um de seus sucessos, Graciano, a ordem de remover o altar da deusa Vitória do
vestíbulo do senado causou grande agitação no partido pagão, chefiado pelo senador Símaco,
que por duas vezes tentou revogar tal disposição. Essa confusão repetiu-se sob Valentiniano
II, irmão de Greciano, um jovenzinho de treze anos. A palestra de Símaco o bispo de Milão,
Ambrósio, opõe uma cerrada confutação, para nós. Muito interessante porque mostra como os
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cristãos acolhiam com serenidade as velhas acusações feitas contra eles com ar de
superioridade para a velha religião pagã. Quando Teodósio subiu ao poder, primeiro no
oriente e depois no império todo, encerraram-se os estertores do paganismo, como vimos. O
edito de Tessalônica em 380 fez do cristianismo religião do estado. O prestígio moral da
igreja ficara claro quando Ambrósio impôs ao imperador a disciplina imperial comum para
expiar a matança que ele em um acesso de ira, promoveu em Tessalônica. A lenda posterior
embelezou o episódio imaginando o bispo que barra o imperador na porta do templo, a
verdade mais sóbria, não tem menor significado. Ambrósio de próprio punho em uma
eloqüente carta pediu ao imperador de não aparecer na igreja até que tivesse decidido em
fazer penitência.
2.6 Primeiras controvérsias do século IV: Ário
Enquanto parecia que a igreja pudesse finalmente gozar de verdadeira paz interna e
externa, muito pelo contrário, preparavam-se e agravaram também pelas contínuas
ingerências imperiais. Isso favoreceu para que os contrastes teológicos assumissem um
aspecto de luta política. Ao período de obscurecimento da verdadeira doutrina correspondeu
um florescimento de enormes talentos que muito contribuíam para defender, explicar e
desenvolver os dogmas, e aconteceu também uma série de grandes concílios ecumênicos onde
os pontos controversos foram discutidos a fundo e decididos. O séc. IV – V é, portanto, um
conjunto de grandes heresias, de apaixonadas discussões teológicas, dos mais célebres
concílios, dos maiores padres da igreja.
Os embates teológicos podem ser classificados cronológicos e logicamente em três
grupos principais. Em um primeiro momento, pouco mais da metade do séc. IV, volta à tona a
questão trinitária, surgida do séc. III com as discussões dos subordinacionistas. Trata-se de
definir a relação entre o Pai e o Filho, entre as duas pessoas e a terceira. Voltando à velha
idéia subordinacionista, Ário negava a divindade do verbo, enquanto os pneumáticos
atacavam a igualdade do Espírito Santo com as outras duas pessoas. Essa controvérsia foi
decidida nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381).
Da controvérsia trinitária desenvolveu-se a Cristologia. Estourada a tese que o Verbo
não assumiu uma natureza humana completa, contra Apolinário de Laodicéia, devia-se
determinar a relação das duas naturezas de Cristo, condenando seja os nestorianos, que
exasperavam a distinção das duas naturezas até chegar a duas pessoas completas e distintas,
seja os eutiquianos, que combatendo os nestorianos terminavam, porém negavam a distinção
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das duas naturezas. Essas duas heresias opostas foram condenada em Éfeso (431) em
calcedônia (451). A controvérsia teve continuidade em algumas tentativas de mostrar sob
novas formas a doutrina sobre a unidade da natureza ou monofisismo, por isso aconteceu o V
e o VI concílio ecumênico (Constantinopolitano II e III).
Entretanto no ocidente acendia-se a disputa sobre as capacidades do homem, sobre as
conseqüências do pecado original, sobre a relação entre graça e liberdade. Aos pelagianos e
aos semipelagianos opuseram-se a Agostinho do séc. V e Cesário de Arles no início do séc.
VI.
3 AS CONTROVÉRSIAS TRINITÁRIAS E CRISTOLÓGICAS NOS SÉCS. IV – VII
3.1 O arianismo depois do Concílio de Nicéia
A controvérsia ariana, resolvida formalmente em Nicéia (325) estava apenas
adormecida e continuou de modo dramático até 381. Contribuiu para prolongar a disputa não
só a inferência estatal (imperadores ignorantes em teologia que impuseram suas teses
sugeridas por prelados cortesãos), mas também a imprecisão dos termos. Por muito tempo
teve-se por sinônimo as palavras gregas “houssia” e “hypostasis”, esta última que em latim
corresponde à substância, indica aquilo que informa que sustém da origem, força e realidade.
Gradativamente adquiriu o significado de pessoa, ser responsável. O contrário “houssia”,
derivado do grego “eimi”, ser vem desde a muito sendo utilizado para indicar a essência,
aquilo que constitui a realidade, com duas concepções diferentes: ora no sentido de
substância, natureza e essência; ora no sentido de pessoa.
Em Nicéia “houssia” foi usado como sinônimo de “hypostasis”, e os padres ensinaram
solenemente que o Verbo, eterno como o Pai, incriado, era da mesma “hypostasis ou oussia”
do Pai. E de fato no ocidente essas duas palavras haviam conservado o mesmo significado de
substância ou natureza.
Diversamente no oriente onde elas foram sendo cada vez mais distinguidas, e
enquanto hypostasis assumia o significado de pessoa, oussia aproximava-se cada vez mais de
substância ou natureza. De modo que, por causa desta ambigüidade, quando os orientais falam
de três hypóstases, corriam o risco de entender três divindades separadas; quando os
ocidentais falavam de uma substancia os orientais entendiam uma única essência não
caracterizada pessoalmente. Em outras palavras, os orientais, profundamente hostis ao
modalismo que percebiam vestígios em toda parte, não aceitavam pacificamente o termo
43
“homooussios” que, por causa do significado que ele dava à palavra “oussia”, acabava tendo
um sabor modalista. Quer dizer, a palavra “consubstancial”, que para os ocidentais não
implicava nenhuma confusão de pessoa, para os orientais parecia inclinar-se a esta posição;
agora eles (nicenos) brigam por essa palavra que resume sua fé, e nós a refutamos e propomos
outras que eles, por sua vez, não acatam.
Os anos de 325 a 381 apresentaram um rede intrincada de vicissitudes. Multiplicaram-
se concílios locais, que é difícil seguir na íntegra até porque logo já vinha outro, a facção
ariana ou semiriana, apoiada pelo estado, recorre facilmente à violência, com perseguições e
exílios, sendo as primeiras vítimas os bispos mais importantes, aparecem muitas fórmulas de
fé, que poderiam até ser aceitas no sentido de ortodoxia, mas todas com o grave defeito de
evitar voluntariamente o termo “homooussios”, continuando assim ambíguas.
Concomitantemente foram-se quatro correntes. Os “nicenos” são fieis ao “homooussios”,
defensores do credo de Nicéia, avessos a qualquer comprometimento com outros, sobretudo
Atanásio, bispo de Alexandria, o grande campeão da ortodoxia, por isso mesmo sempre
caçado pela polícia imperial, exilado cinco vezes, intransigente na fé mais pronto a perdoar e
esquecer o passado. Junto dele merecem ser lembrados Hilário de Poítiers, Eusébio de
Vercelli, Eutaquio de Antioquia, todos não menos importantes que Atanásio pela tenácia e
pelas provas suportadas heroicamente. No campo oposto temos os arianos mais ferrenhos, os
eunomianos ou anomeus, assim chamados por causa do seu representante maior que Eunômio
e também por causa da fórmula que proferiam anomoios, dessemelhante; o Verbo tem uma
essência, uma substância diferente do Pai. Mais que um partido, uma heresia, povos mais
decididos. Há duas facções: próximos dos arianos os “homeístas”, defensores da fórmula
“homoios”, semelhante (o Filho é semelhante ao Pai porque mesmo tendo uma substância
diferente, porque conformasse perfeitamente à vontade Paterna), próximos aos nicenos os
“homeussianos”, fautores da fórmula “homoiussios”, semelhante na substância (o Filho é
semelhante ao Pai também na substância, i.e., em tudo), estes últimos estavam
fundamentalmente de acordo com os nicenos, mesmo se hesitavam de aceitar aquela fórmula
na íntegra, pelos motivos que já expomos, Hilário de Poitiers procurará persuadi-los a aceitar
sem meio termo o credo niceno, observando perspicazmente: (“Vós não sois arianos, irmão. E
então por quê, evitando a palavra Homooussios” daí a impressão de ser arianos?” (De synodis,
história da controvérsia ariana, cap. 89, PL, 10, 541).
Enquanto Constantino viveu, ninguém teve coragem de combater frontalmente a
definição de Nicéia, apenas multiplicou-se as intrigas contra seus defensores. Eusébio de
Nicomédia, figura pouco simpática, voltou do exílio mais interessado em fazer carreira;
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Atanásio foi deposto no sínodo de Tiro (335) de baixo de uma enxurrada de acusações falsas e
Ário, chamado de volta do exílio, foi admitido na comunhão da igreja, aceitando dele uma
profissão de fé equivocada. Apenas dez anos de Nicéia estava praticamente destruída toda a
obra do concílio ecumênico.
Quando Constantino morreu em 337 o poder foi dividido por pouco tempo entre seus
dois filhos, Constante e Constâncio, e sumindo o primeiro, o segundo assegurou sua
autoridade em todo o império. Em Sardica (Sofia) a dissensão entre os bispos ocidentais
(nicenos) e orientais (antinicenos) levou a assembléia a uma cisão insanável, aconteceu dois
sínodos distintos onde excomungaram-se mutuamente. Dentre os vários sínodos subseqüentes
tiveram certo relevo os que aconteceram nos Balcãs, onde foram propostas quatro fórmulas de
fé, chamadas de Sírmio, lugar do encontro, a segunda é claramente ariana (não existe dúvida
que o Pai é maior que o Filho...), e as demais chegam a ser até ortodoxas, no mais, uma certa
ambigüidade.
No entanto quando Constâncio tornou-se o único imperador, aproveitou-se da nova
situação para impor sua vontade, favorável ao arianismo. O papa Libério foi de noite em
Roma e levado à força para Milão, onde em um diálogo com o imperador refutou qualquer
compromisso e toda dilação, continuou impertérrito a defender Atanásio (que se tornou sinal
de contradição, a figura ao redor da qual as duas partes brigavam) e terminou sendo exilado
em Beréia, na Trácia. Sem ninguém, amargurado, cansado, em um momento de fraqueza,
depois de três anos de resistência resolveu assinar uma fórmula comprometedora e pode assim
retomar à Roma. Não é claro o que ele assinou. A questão depende unicamente do valor de
quatro cartas, que seu defensores negam a autenticidade. Vários historiadores contemporâneos
admitem a autenticidade desses documentos e assim, podemos admitir que Libério cedeu na
excomunhão de Atanásio e subscreveu a primeira fórmula de Sírmio e provavelmente também
a terceira. Se a excomunhão de Atanásio trouxe-lhe indubitavelmente uma culpa moral grave,
a adesão à primeira fórmula de Símio pode ser justificada como um ato de diplomacia com os
homeístas (entre eles Basílio de Ancira), para induzi-los assim a separar-se definitivamente
dos anomeus. De toda forma não foi uma definição excathedra, mas um ato privado.
Sob a pressão dos arianos mais intransigentes Constâncio reuniu em 339 em Rimini os
ocidentais, e em Selêucia, na Ásia Menor os orientais, com ameaças e violência impôs-se aos
padres a fórmula: “similis secudum Scripturas”. Era o triunfo dos homeistas e a condenação
do concílio de Nicéia, Constâncio queria que fosse o credo oficial do império. No ocidente
quase todos aceitaram, exceto Libério, que voltou de exílio, e Hilário de Poitiers, no oriente
houve maior resistência. Muitos bispos, também entre homoussianos, foram exilados e
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substituídos, “ingemuit totus orbis et arianum se esse miratus est), comentou São Jerônimo.
Na verdade apenas a violência e o engano permitiram estes triunfo momentâneo, que
mostrava assim debilidade do episcopado atrelado à corte e as conseqüências do
cesaropapismo. Bastou Constâncio morrer (361) para que a fé nicena voltasse a prevalecer,
passados apenas dois anos dos concílios de Rimini e de Selêucia.
Sob Juliano Apóstata os bispos ortodoxos puderam reentrar em suas sedes. Santo
Atanásio, que retornou triunfalmente a Alexandria, fez um sínodo importante, pois decidiu-se
de reintegrar em seus cargos todos os bispos que subscreveram fórmulas heterodoxas, desde
que reparassem o passado aderindo ao símbolo niceno. Essa decisão honra Atanásio, mas não
foi acolhida por todos, provocando o cisma de Lucífero de Cagliari, renovando assim as
tendências rigoristas de Novaciano. Ainda uma vez mais, depois de forte luta, reabria-se a
discussão entre rigoristas e moderados. Felizmente o exasperado rigorismo de Lucífero
permaneceu um fenômeno isolado.
Com a ascensão de Valente eclodiram novas perseguições e o primeiro a deixar sua
igreja foi, como de costume, Atanásio. Na verdade a perseguição aproximou homeoussianos e
ordodoxos, ambos atingidos pelo imperador. E então, sobretudo por obra de três capadócios:
São Basílio, São Gregório de Nissa e São Gregório de Nazianzo, chegava-se finalmente uma
aclaração definitiva da terminologia com a fórmula: “uma natureza, três pessoas” (mia oussia,
treis hypostaseis).
Morto Valente na batalha de Adrianópolis contra os Godos (378), o novo imperador,
Teodósio, logo mostrou-se favorável à fé nicena e, para resolver todas as controvérsias, reuniu
em Constantinopla um concílio ecumênico (381). Os 150 padres presentes condenaram de
forma geral os “semiarianos ou pneumatômacos”, que na última etapa da polêmica ariana
atacaram a divindade do Espírito Santo e todos os outros erros acontecidos depois de Nicéia,
declararam a consubstancialidade e a distinção das três pessoas divinas, a perfeita encarnação
do Verbo, confirmaram o símbolo de Nicéia, aceitaram os acréscimos introduzidos desde a
muito (em relação ao Espírito Santo, as palavras “Senhor e vivificador, que procedo do Pai e,
juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, ele que falou por meio dos profetas”).
Também foi reconhecida a primazia de honra do bispo de Constantinopla, depois de Roma.
Era uma decisão contra os bispos de Antioquia e Alexandria, não contra Roma, eles queriam
vangloriar-se de antiguidade e exigir maior respeito. Porém vê-se claramente a tendência do
bispo da nova capital reivindicar uma autoridade cada vez maior.
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O concílio de Constantinopla foi reconhecido ecumênico pelo oriente em 451, no
concílio de Calcedônia.no ocidente apenas no séc. VI. Somente então as decisões de 381 e
particularmente o símbolo niceno-constantinolopolitano adquiriram valor dogmático.
O arianismo foi um grande perigo para a igreja, se no aspecto dogmático, negando a
divindade de Cristo, esvaziava o valor da Redenção, e consequentemente invalida a
possibilidade de uma real divinização do homem, do lado prático reduzia a igreja ao
instrumento de governo, sem independência. O povo compreendeu a importância da discussão
e participou apaixonadamente. Como conta Gregório de Nazianzo, se em Constantinopla se
entrasse num estabelecimento para comprar pão, “o padeiro, antes de dizer o preço,
argumentou que o Pai é maior que o Filho, o cambista discutia sobre o Gerado e o Eterno,
antes de contar seu dinheiro e, se quisesse tomar um banho, o dono do estabelecimento
asseverava que o filho não precede do nada”. Mesmo a arte não ficou isenta destes rumores da
opinião pública. Uma imagem comum no oriente reproduz São Pedro de Alexandria diante de
Cristo despojado da túnica e trêmulo. O bispo interroga-o com o olhar, “Quem reduziu-te a
isso. Ário, o ímpio de Ário despejou-me da túnica”. “Até que tenha vida, levantarei minha voz
contra o ímpio Ário...”.
O perigo foi superado nos confins do Império Romano, graças ao providencial
estímulo de Roma, mas o arianismo sob a forma de homeísmo foi difundido entre os Godos e
outros Bárbaros, recebendo o cristianismo com esta roupagem. O arianismo dos Ostrogodos,
dos Visigodos, dos Vândalos, dos Borgúndios e de outros povos retardou a fusão daquilo que
estava com as antigas populações, enfraqueceu a estrutura dos estados e, definitivamente,
facilitou a conquista islâmica.
3.2 Apolinário de Laodicéia e o Concílio de Éfeso (431)
Uma vez estabeleceu-se que o Verbo era igual ao Pai, ficava por esclarecer a relação
entre a divindade de Cristo e sua humanidade.
Apolinário de Laodicéia (+390) havia ensinado que em Cristo o Verbo uni-se a um
corpo sem alma; mais tarde, quando foi-lhe demonstrado que tal tese contrastava com a
Escritura, onde apresenta Cristo com uma vida humana autêntica, ele afirmou que o Verbo
assumiu um corpo e uma alma vegetativa e sensitiva, mas que o próprio Verbo exercitava a
função de primeiro intelectivo; apenas assim, segundo ele pode-se explicar seja a unidade da
pessoa de Cristo (problema que está na raiz das heresias de Nestório e estiques), seja sua
impecabilidade (porque onde há vontade humana sempre estará presente o pecado). Seja a
47
frase joanina “o Verbo se fez carne (carne, não homem, replicava Apolinário sem conhecer o
sentido hebraico de carne). Sua doutrina dói condenada em Constantinopla (381). Ela realçava
muito a unidade de Cristo acentuando a natureza divina. Encontrava nesta linha a oposição da
escola antioquina, que insistia não apenas na exegese literal, mas acentuava a distinção das
naturezas de Cristo, com o perigo de divisar suas pessoas. Representante mais notável dessa
escola foi Nestório, provavelmente discípulo de Teodoro de Mopsuéstia, elevado à cátedra
episcopal de Constantinopla em 428. Divulgado sem muita originalidade as idéias de seu
mestre bem como da escola teológica de Antioquia, ele ensinava que em Cristo as duas
naturezas formam duas pessoas, dois sujeitos responsáveis, uno dos entre si apenas de modo
extrínseco. Trata-se de um unidade moral, volitiva, ligação exterior, análogo àquela do
matrimônio, ou então o templo com seu ídolo. O Verbo habita neste homem, como em uma
tenda ou em um templo. Conseqüentemente, Maria não pode ser considerada Mãe do Verbo,
mas da pessoa humana de Cristo, e deve por isso ser chamada não de “theotokos”, mãe de
Deus, mas de “Cristotokos”, mãe de Cristo. Outra conseqüência: não foi Deus encarnado que
morreu, mas apenas o homem no qual Deus havia se encarnado. Essa morte, para Nestório,
nas Escrituras seria sempre um atributo do Cristo, do Filho, nunca de Deus. Pode-se falar de
uma única pessoa de Cristo, mas apenas como analogia (uma pessoa moral, resultado de uma
união extrínseca de duas pessoas físicas).
Essa nova teoria causou enorme comoção, onde também o povão tomou parte na
discussão com vivo interesse de maneira inusitada para nós, modernos, não eram idéias
confirmadas num determinado grupo teológico, mas foram divulgadas a partir do púlpito pelo
presbítero Anastácio, que chegou na capital com o novo bispo, vindo de Antioquia. Despertou
cirrada oposição principalmente pelo fato que negavam à Virgem o título de Mãe de Deus, já
em uso no oriente desde o séc. III.
O eco dessa controvérsia chegou à Alexandria, onde era bispo Cirilo, homem de vasta
cultura e zelo sincero, mas combativo e duro, não livre de certa hostilidade para com a sede
constantinopolitana, que em 381 arrogou-se primazia no oriente. O bispo de Alexandria, para
dissipar qualquer equivoco entre os monges de Egito que estavam desorientados pelas teses
nestorianas, enviou-lhes rapidamente uma longa carta, onde comunicava diretamente, também
a Nestório um pouco depois (430) noutra carta, um verdadeiro tratado onde esclarece bem a
doutrina tradicional: “não queremos dizer que a natureza do Verbo, transformou-se e fez-se
carne, nem que foi transformada num homem completo, formado de alma e corpo, ao
contrário sustentamos que o Verbo, unindo-se hipostaticamente (na sua pessoa) com carne
animada pela racional, tornou-se homem de maneira inexprimível e incompreensível, e
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chamou-se Filho do homem, não apenas por boa vontade por beneplácito, nem mesmo
assumindo apenas uma pessoa... aquele que existe antes de todos os tempos, gerado do Pai,
diz-se que nasceu da carne através de mulher... porque para nós de uma mulher foi gerado
segundo a carne. Da mesma forma dizemos que o Verbo sofreu e ressuscitou, não no próprio
momento em sua natureza divina, mas porque o impassível estava num corpo capaz de
sofrer”. (Em outras palavras Cirílo replicou que ações e sofrimentos da natureza humana de
Cristo podem ser atribuídas diretamente à pessoa divina do Verbo, porque a natureza humana
foi assumida como própria pessoa divina).
Cirilo e Nestório recorreram ao papa Celestino, que condenou o bispo de
Constantinopla como herético, ameaçou de deposição se não retratasse em dias e encarregou
Cirílo da execução da sentença. Este, ultrapassando as instruções recebidas, quis primeiro
reunir um sínodo na sua cidade, onde foi aprovada outra carta a Nestório, cujo teor, além da
exposição da doutrina ortodoxa, condenava a doutrina nestoriana em doze pontos
reproduzindo o primeiro “Quem não reconhece que o Emanuel é verdadeiramente Deus, e que
a Santa Virgem é Mãe de Deus, pois ela gerou segundo a carne o Verbo de Deus encarnado,
seja anátema”. A escola nestoriana replicou excomungando quem sustentava que Emanuel era
verdadeiramente Deus e não apenas Deus conosco, “enquanto inabitou a natureza humana
unindo-se à nossa matéria, recebida de Maria Virgem”. A diferença de posições resume-se
nisto: para Cirílo união “hipostática”, i.e., uma única pessoa com duas naturezas, onde a
natureza humana é instrumento conjunto da pessoa divina e suas operações podem e devem
ser atribuídas à pessoa divina, união apenas acidental para Nestório. Porém Cirilo usava em
vários pontos expressões ambíguas como “união natural” (no sentido não de fusão da natureza
humana, mas de união real), e “uma natureza do Verbo Encarnado” (para reforçar a união das
duas naturezas). Dessa maneira, ele também dava motivo para as objeções dos seus
adversários.
Entretanto o imperador Teodósio II, provavelmente por sugestão de Nestório e
também não querendo dobrar-se à vontade de Cirilo, convidou todos os metropolitas orientais
e alguns bispos ocidentais para um concílio geral em Éfeso, em pentecostes de 431. O papa
deu seu consentimento; todavia enquanto para Celestino o concílio confirmaria a condenação
já acontecia a persuadiria Nestório a fazer penitência, para o imperador a assembléia atingiu
Cirilo, por quem ele não nutria simpatia. Era inevitável uma luta ferrenha entre as partes.
O papa enviou dois delegados, que deviriam apenas assistir Cirilo, seu legítimo
representante. Na data estabelecida para a abertura estavam presentes Cirilo e Nestório, cada
um assistido por um importante grupo de bispos, faltavam ainda os legados que foram
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atrasados pelo mau tempo na travessia e o patriarca de Antioquia. João, fautor de Nestório,
que pensava em intervir em um último momento decidindo a sorte da batalha. Cirilo
fortificado pela posição de representante do papa, desafiando a oposição de cerca de setenta
bispos, decidiu não protelar nada e em 22 de junho abriu o Concílio na presença de 153
bispos. Numa longa sessão que durou o dia inteiro, Nestório, que não interviu, foi destituído,
considerado “novo Judas” por causa da sua doutrina e “desobediência aos cânones”. Foi
aprovada por unanimidade a segunda carta de Cirilo a Nestório, que pode ser considerada a
definição dogmática deste concílio; não houve mais nenhuma outra aprovação além dos doze
anatemismos. O povo acolheu a sentença com alegria e levou os bispos para seus alojamentos
com uma grande procissão luminosa.
Quatro dias depois chegou João de Antioquia acusou os bispos dissidentes,
excomungou Cirilo e seus partidários de haver renovado com os doze anatemísmos os erros
de Ário e Apolinário.
Em 10 de julho chegaram os legados papais, aprovaram a deposição de Nestório e
assistiram as duas sessões seguintes e a excomunhão de João de Antioquia. Um dos legados, o
padre Filipe, evocou o significado do primado romano “Pedro recebeu as chaves do reino, é
ele que agora vive e julga em seus sucessores”.
O imperador encontrou-se em uma situação no mínimo ambígua, em um primeiro
tempo bandeou para o lado de Nestório, condenando o concílio presidido por Cirilo; depois
tentou um compromisso reconhecendo a deposição dos dois adversários, tanto um como o
outro. Cirilo reagiu energicamente e não exitou de valer-se de meios discutíveis mandando
ricos presentes aos dignitários da corte mais influentes, o que lhe valeu a acusação de
tentativa de corrupção. No fim Teodósio II abandonou Nestório a seu destino, permitindo que
fosse eleito um sucessor para a sede de Constantinopla, deixando Cirilo imperturbável em
Alexandria.
Permaneceu porém a cisão no episcopado oriental. Indignados pelo tratamento dado a
Nestório, relegado a um mosteiro, os antioquenos continuaram a acusar Cirilo de arianismo e
de apolinarismo e pronunciaram novamente a excomunhão contra ele e seus seguidores.
Apenas em 433 dois anos após Éfeso, chegou-se à reconciliação, João de Antioquia aceitou as
decisões de 431 e Cirilo abandonou as fórmulas ambíguas que defendia antes e que podiam de
fato ser mal interpretadas. Esse acordo foi anunciado por Cirilo em uma carta “Laetntur
coeli”, onde se expunha pela enésima vez a fé ortodoxa, “Professamos que Nosso Senhor
Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, é perfeito Deus e perfeito homem composto de alma,
quanto é gerado do Pai antes de todos os tempos, quanto à humanidade nasceu de Maria
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Virgem no fim dos tempos, para nós e para nossa salvação, consubstancial ao Pai segundo a
divindade, consubstancial a nós segundo a humanidade, por causa desta união, isenta de
mistura, reconhecemos que a Santa Virgem é mãe de Deus, porque Deus-Verbo encarnou-se e
se fez homem, e uniu a si, desde o momento da concepção, o tempo (i.e. a humanidade) que
ele mesmo assumiu”. Justamente esta última expressão, o tempo, de sabor nestoriano, foi
criticada por muitos e apenas com autoridade imperial obteve reconhecimento e consenso de
todos.
Antes de concluir este assunto é bom recordar duas coisas. Como muitas vezes
aconteceu na história das heresias, Nestório, exilado na Arábia, depios na Líbia e, finalmente,
no Alto Egito, e que morreu às vésperas do concílio de Calcedônia, negou de haver ensinado
algum dia a doutrina que foi condenada, na realidade, mesmo admitindo boa fé da parte dele e
usando de caridade para com aqueles que o haviam impugnado, sua concepção das duas
pessoas (divina e humana) tornadas únicas por uma terceira pessoa unitiva comum,
dificilmente pode-se entender como união real e não apenas moral das duas naturezas, prova
disso a sua confutação de atribuiu à pessoa as propriedades das outras duas naturezas. O
nestorianismo no império romano extingui-se rapidamente, mas teve certa difusão na Pérsia, e
dali chegou à Índia e até à China. Ainda hoje há núcleos de nestorianos na Síria, na ilha de
Chipre e no Iraque, cerca de 150.000 caldeus do Iraque desde a muito abraçaram a fé católica,
mesmo conservando seu rito; a maior parte dos nestorianos da Índia voltou a igreja católica
em 1941.
3.3 Êutiques e o Concílio de Calcedônia (451)
Enquanto os nestorianos separavam as duas naturezas de Cristo, minando sua unidade
pessoal, alguns de seus adversários caíram no erro oposto, acentuando a divindade em
detrimento da humanidade até misturar as duas naturezas ou a natureza humana ser absorvida
pela divina. Cristo resulta, assim, da composição de duas naturezas, mas não subsiste distinto
em duas naturezas; depois da encarnação pode-se falar de uma única natureza apenas. O corpo
de Cristo não é da mesma natureza do nosso, pois é divinizado: Cristo é “ex duabus, non in
duabus” (naturis).
A nova doutrina encontrou forte sustentador em um arquimandrita (chefe de mosteiro)
de Constantinopla, Êutiques, venerável por idade e seguro da proteção imperial, mas como
disse São Leão Magno, imprudens et nimis imperitus. Era do partido de Cirilo, como todos os
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monges de Constantinopla, apresentando-se como defensor do concílio de Éfesio, mas
terminou em uma posição contrária à de Nestório.
Atacado por vários teólogos (entre os quais merece ser lembrado Teodoreto de Ciro, o
último grande campeão da escola antioquena, que sempre se manteve na ortodoxia, e Eusébio
de Dorilea) em um sínodo acontecido na capital em fins de 448 sob a presidência do patriarca
Flaviano. Êutiques foi excomungado, suspenso do sacerdócio, deposto do cargo e,
arquimandrita, ele refutou as fórmulas de Cirilo, as quais dava um sentido diferente do que
queria o bispo de Alexandria. A severa condenação foi sim motivos teológicos, mas não
estava isenta do desejo de humilhar quem justamente em Constantinopla, professava-se
seguidor zeloso do bispo de Alexandria. Ele apelou ao papa, apoiado também pelo imperador
Teodósio II, para resolver esta questão foi convocado um novo concílio em Éfeso, em 449.
Leão Magno teve de se inclinar à vontade do imperador, designou alguns legados e enviou um
breve tratado ao patriarca Flaviano Constantinopla que passou à história com o nome de
Tomus ad Flavianum. O opúsculo é uma obra-prima literária e teológica onde a doutrina
ortodoxa é exposta com extrema clareza, unindo precisão dogmática com verdadeira piedade:
“Permanecendo integras as propriedades das duas naturezas e das duas substâncias, unidas em
uma única pessoa, a majestade restiu-se da baixeza, a força da debilidade, a eternidade da
mortalidade... o Deus verdadeiro nasce com natureza completa e perfeita de verdadeiro
homem, perfeito em sua natureza divina e perfeito na nossa... aquela é invisível por sua
natureza torna-se visível pela nossa; quem estava fora de qualquer espaço, quais estar limitado
nem espaço; aquela que existia antes do tempo começa a existir no tempo... o Deus impassível
digna-se de tornar um homem sujeito ao sofrimento, o Deus imortal submete-se à lei da
morte... aquele que é Deus verdadeiro é também verdadeiro homem... como Deus não mudou
por sua misericordiosa condescendência, assim o homem não foi suprimido pela dignidade
divina... cada uma das duas naturezas opera em comunhão com a outra naquilo que lhe é
próprio... uma pessoa e mesma pessoa é ao mesmo tempo verdadeiramente Filho de Deus e
Filho do homem... No Senhor Jesus Deus e homem formam uma única pessoa, mas a
humilhação e a glória, que refletem-se nele, provêm de fontes diversas...” (Tomus ad
Flavianum, c. 3 – 4). Documento dogmático importantíssimo, pois também mostra como
Roma se desvencilha da aliança outrora seguida com Alexandria.
O concílio foi aberto em Éfeso no início de agosto de 449 na presença de uma centena
de bispos, sob a presidência de Dióscoro de Alexandria, designado pelo imperador. Logo
apareceu a intenção do patriarca de Alexandria: a reabilitação de Êutiques. Dióscoro
pressionou bastante todos: os legados papais foram impedidos de ler a carta enviada ao
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Concílio, onde reafirmava os direitos da Sé Romana. Confirmava a convocação da assembléia
e traçava as diretrizes dos trabalhos no que tocava a condenação e readmissão de Êutiques na
igreja. Sequer o Tomus ad Flavianum pode ser lido. Sem levar em consideração os protestos
de Flaviano e de Eusébio de Dorilea, o arquimandrita foi declarado ortodoxo e reintegrado das
suas dignidades. Dióscoro quer ainda uma vitória total; pediu a deposição de Flaviano e de
Eusébio. Para vencer a resistência de grande parte da assembléia, o presidente fez adentrar na
sala os soldados imperiais, Flaviano foi ultrajado e mandado ao exílio, morrendo na viagem,
logo depois do fim da assembléia. Os bispos, aterrorizados, firmaram a condenação dos dois
defensores da distinção das naturezas em Cristo. Com se tudo isso não bastasse, o presidente
encerrou a sessão com estas aclamações: “Deus falou por meio de Dióscoro! Quem calúnia
Dióscoro blasfema contra Deus! Aqueles que calam são hereges!”.
Antes de morrer Flaviano havia apelado ao papa, e Eusébio seguiu seu exemplo; Leão
reagiu imediatamente contra aquilo que chamou “não sínodo, mas latrocínio de Éfeso” e
propôs um novo concílio, sob seu controle, não do imperador. Teodósio II tergiversou
habilmente, malgrado as reiteradas insistências do papa, que lhe lembrava como a condenação
de Nestório partiu de Roma. Apenas a morte improvisa do imperador desbloqueou a situação;
sua irmã Pulquéria, que lhe sucedeu no trono, aliou-se ao velho general Marciano, que aceitou
a idéia do concílio, que aconteceria sob a direção do papa, mas seria no oriente. Em
Constantinopla se respirava outros ares, e quase todos os velhos sustentadores de Êutiques,
prevendo a mudança procuraram alinhar-se com os novos rumos. O arquimandrita foi forçado
a deixar seu mosteiro, os espólios de Flaviano foram trazidos solenemente a capital em
reparação às afrontas e morte súbita do velho patriarca, muitos bispos aderiram ao Tomus ad
Flavianum. Apenas Dióscoro de Alexandria resistia com um pequeno grupo de fidelíssimos.
Por um instante Leão pensou não ser mais necessário um concílio, uma vez que os
condenados em Éfeso foram reabilitados, além do que os Hunos estavam nas fronteiras da
Itália tirando toda a tranqüilidade necessária para uma discussão teológica aprofundada.
Porém Marciano manteve-se firme nesse propósito e Leão cedeu, o concílio foi aberto em
Calcedônia, as margens do Bósforo, defronte a Constantinopla, no início de outubro de 451 na
presença de cerca de 600 bispos, dos quais, apenas cinco ocidentais. Foi o concílio mais
numeroso da antiguidade.
As sessões desenvolveram-se sob a presidência dos legados pontifícios. Foram
reconhecidos como ecumênicos os concílios de 325, 381 e de 481. Foram aprovados mais
uma vez o símbolo niceno e niceno-constantinopolitano e ainda o Tomus ad Flavianum
(“Leão e Cirilo ensinaram a mesma doutrina, Pedro falou pela boca de leão”). Após violentas
53
discussões foram cassadas as decisões tomadas em Éfeso, em 449, e Dióscoro foi deposto.
Malgrado alguma oposição, decidiu se redigir uma nova fórmula de fé, onde retomasse
substancialmente o Tomus leonino, com algum ajuste, confessando “um apenas e idêntico
Cristo, Filho, Senhor, Unigênito em duas naturezas, sem confusão, sem mutação, sem divisão,
sem separação, pois que a diferença das naturezas não é em nada suprimida pela união, antes
a s propriedades de cada uma são salvaguardar e reunidas numa só pessoa e numa só
hipóstase”. Dos quadros adversos (em latim: inconfuse, immutabiliter, indivise,
inseparabiliter) aos dois primeiros se opõem à doutrina de Êutiques, os dois últimos à
Nestório.
O concílio emitiu no final trinta cânones disciplinares em relação a várias questões: a
relação dos monges com os bispos, a jurisdição do patriarca de Jerusalém, etc. De importância
especial foi o Cânon 28: “Seguindo em tudo os decretos dos Santos Padres e reconhecendo o
Canon dos cento bispos (Concílio de Constantinopla), tomamos as mesmas resoluções em
relação aos privilégios da santíssima igreja de Constantinopla, a nova Roma. Os Padres de
fato acordaram com razão os privilégios da antiga Roma, posto que era a cidade imperial.
Pelo mesmo motivo ao cento e cinqüenta bispos acordaram na nova Roma, honrada pela
residência do imperador e do senado e com os mesmo privilégios da antiga cidade imperial,
deve haver as mesmas vantagens na ordem eclesiástica e ser a segunda depois daquela, de
maneira que apenas os metropolitas das dioceses do Ponto da Ásia e da Trácia e os bispos dos
lugares ocupados pelos bárbaros serão consagrados na santa Sé de Constantinopla...”.
O cânon 28 de Calcedônia tem uma teórica, como aparece na leitura – afirmação de
um princípio e de uma dedução teórica. O princípio exposto atribuiu a origem do primado
romano um motivo puramente histórico, o bispo de Roma seria chefe da igreja enquanto bispo
da capital. Essa afirmação entrava em contradição com a tradição até então consolidada, que
via nas promessas feitas a Pedro o fundamento do primado romano, e também com muitas
outras afirmações feitas durante o concílio dos bispos orientais, que explicava apenas com a
vivíssima preocupação de Constantinopla em justificar de uma maneira ou de outra a
preeminência que ela se arrogava diante dos outros patriarcas, orientais, melhor dizendo,
sobre Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Se esse princípio fosse entendido em toda a sua
gravidade, a conseqüência lógica seria a transferência de primado da antiga para a capital de
Roma para Constantinopla, de Leão para Anatólio. Na verdade as conseqüências foram muito
mais modestas: o patriarca de Constantinopla arroga-se o direito de consagrar os metropolitas
de diversas áreas do Oriente. Naturalmente, se a aplicação era limitada, o princípio continuava
54
revolucionário, transformando assim a constituição da Igreja. Aqui está em germe o cisma da
Igreja no ano 1000.
Os legados papais pediram em vão a anulação desse Canon, e insistiram para que seus
protestos estivessem nas atas. A reunião foi encerrada com um contraste entre os legados e o
concílio; mesmo assim, a assembléia endereçou a Leão uma carta obsequiosa, reconhecendo-o
como presidente do concílio, e pedindo lhe que aprovasse aquilo que foi acordado em
Constantinopla. Porém São Leão protestou contra o Cânon 28, recordando superficialmente a
diferença da ordem eclesiástica e civil (“alia est ratio rerum saecularium, alia divinarum”), e
detendo-se, sobretudo em razões práticas (históricas e jurídicas) contrárias aos privilégios
reivindicados por Constantinopla. Em outras palavras parece que para alguns historiadores
Leão exagerou numa questão secundária (privilégios e honraria), deixando de lado o problema
essencial, a natureza e o fundamento do primado romano. Nas cartas dele à Imperatriz
Pulquéria não falta menções suficientes da origem divina do primado romano. Concluindo: as
circunstâncias concretas e o contexto histórico permitem nos asseverar que a declaração de
princípio do Cânon 28 não era então entendida literalmente pelos autores, solícitos apenas em
granjear de qualquer maneira novas honrarias para Constantinopla, sem negar a supremacia de
Roma. Na verdade cedo ou tarde era fatal que o contexto histórico fosse esquecido e se
baseasse apenas na letra da declaração; o cisma de 1054 está virtualmente presente no Cânon
de 451.
Se o nestorianismo não exerceu grande influência no império, o monofisismo,
malgrado as condenações de Calcedônia, manteve sua força de atração quase intacta,
sobretudo na Síria, no Egito, na Armênia e na Abissíma. A persistência do movimento se deve
a fatores religiosos e políticos. Grassava em todo o oriente forte hostilidade ao nestorianismo,
e muitos, inadvertidamente, suspeitavam de traços de nestorianismo onde que se falasse de
duas naturezas, também por causa da confusão entre a natureza e pessoa, não de todo
superada. Doutro lado os movimentos religiosos uniram-se freqüentemente à correntes
políticas paralelas: cisma grego em 1054, a heresia de João Huss na Boêmia do séc. XV e o
luteranísmo. Nos dias de hoje o monofisismo constitui-se na oposição de todas as províncias
do Oriente a centralização Bizâncio. No Egito seu nome é copta, na Síria e países limítrofes
jacobistas, de Jacob Bardai, bispo de Edessa.
3.4 Tentativas de acordo: últimas controvérsias cristológicas
55
Preocupados com a divisão doutrinal que dividia o Império e refletia perigosamente na
política, e continuando com a mania de interferir em questões dogmáticas, os imperadores dos
séc. V – VII tentaram duas maneiras opostas de estabelecer a unidade da fé. Luta ferrenha
contra o nestorianismo demonstrando a todos que podia ser plenamente católico aceitando
Calcedônia sem cair em heresia. Uma série de acordos com o monofisismo a procura de uma
via média que contentasse todos. A primeira foi seguida por Justiniano e levou os três
capítulos a condenação em 553. A segunda por Zenão com Henoticon em fins do séc. V, e
pelos imperadores do séc. VII apoiando o monoenergismo e o monotelismo, formas mitigadas
de Monofisismo. Naturalmente essas duas maneiras mostram-se erradas e entre outras
conseqüências, agravaram a tensão já existente entre Roma e Bizâncio.
Em 482 Zenão promulgou o Henoticon, uma profissão de fé que condenava Nestório e
Êutiques, mas também Calcedônia, aceitando o símbolo Nicenoconstantinopolitano, os doze
anatemismos de Cirilo e as definições de Éfeso. Fórmula destinada a contentar todos e que
não agradou ninguém, originou um novo cisma, chamado acaciano, por causa do nome do
patriarca de Constantinopla, verdadeiro autor dessa fórmula. Essa confusão acabou apenas em
519, após 35 anos, com o imperador Justino e o papa Ormisda; a fórmula de união ou Libellus
Hormisdae condenava Nestório e Êutiques, mas aceitavam Calcedônia e além disso
reconhecida explicitamente o primado papal declarado que na Sé Romana e religião católica
sempre foi conservada imaculada.
Justiniano, como acentuamos acima, tentou o caminho diverso condenando os escritos
de Teodoreto de Ciro, de Teodoro de Mopsuésta, de Ilbas de Edessa (estes são considerados
“três capítulos”). De fato esses escritos eram permeados de nestorianismo. Mas Teodoreto e
Ibas, adversários ferrenhos de Êutiques, foram reintegrados às suas sedes. Foram depostos em
449 pelo Concílio de Calcedônia. Por isso a condenação desses escritos dava aos ocidentais a
impressão de um atentado contra o edifício erigido em Calcedônia, de um novo acordo com o
monofisismo. Assim se explica as incertezas do Papa Vigilio que, levado a força à
Constantinopla, não aprovou as decisões do Concílio aí reunido em 553 (passou à história
como Constantinopolitano II, ecumênico V) e apenas mais tarde, debaixo de fortíssimas
pressões, enfermo e sem seus conselheiros, mudou de idéia e aderiu às deliberações
conciliares, morrendo na viagem de retorno em Siracusa. A situação era paradoxal, porque o
Papa se opunha a uma atitude fundamentalmente justa por temor e reações negativas no
Ocidente, e o imperador propunha uma decisão teologicamente boa, mas para fins políticos e
na linha do cesaropapismo. Que os temores de Vigilio não fossem infundados apareceu no
56
cisma “tricapitolino”, ao qual aderiu Milão e Aquiléia. Isso tudo acabou apenas no fim do séc.
VII, e tornou mais difícil a conversão dos Longobardos à ortodoxia.
O último estertor do monofisismo aconteceu com o monoenergismo (em Cristo existe,
sim duas naturezas, mas a natureza humana é puramente passiva, não age de forma algima), e
com o monotelismo (a natureza humana de Cristo é privada de uma vontade própria, distinta
da divina). O monoenergismo, defendido pelo patriarca Sérgio de Constantinopla no início do
séc. II. Provocou uma resposta no mínimo ambígua do Papa Onório (625 – 638), pois ele, sem
perceber a importância da questão, recomendava evitar a nova terminologia de uma ou duas
energias e declarava que em Cristo existe apenas uma vontade (mesmo contexto da carta
permite se interpretar a asserção no sentido de uma perfeita subordinação da vontade humana
de Cristo à vontade divina). Nesta altura o Imperador Heráclio impôs uma enésima profissão
de fé, a Ecthesis, que exprimia um puro e simples monotelismo. O Papa Martinho I (649 –
653), que se havia oposto ao monotelismo em um grande Concílio em Roma, foi exilado na
Crimédia, onde chegou a falecer pelos maltratos sofrido. O novo Imperador Constantino IV
Pogonato, de acordo com o Papa Agatão, convocou em 680 um outro Concílio em
Constantinopla (Constantinopolitano III, ecumênico VI), que condenou o monotelismo e o
monoenergismo mas, não sem exagero histórico, enumerou entre os heréticos o Papa Onório
“porque seguiu em tudo as teses de Sérgio e conformou os dogmas dos ímpios”. O sucessor
de Agatão, Leão II, confirmado em 682 os atos do Concílio, expressou-se de forma mais
moderada sobre as vicissitudes de Onório, “que não ilustrou esta catedral apostólica com a
doutrina tradicional, mas permitiu que fosse ofuscada a fé verdadeira”. O caso de Onório,
muito discutido quanta da definição da infalibilidade pontifícia, não constitui de fato nada
contra esse dogma, seja porque ele não fez um pronunciamento excathedra, seja porque, se
usou expressões ambíguas, admitiu de forma bastante clara duas vontades de Cristo.
A condenação feita em 680 assinala o fim das controvérsias cristológicas, que
favorecem o aclareamento do dogma, mas também a conclusão de um capítulo da história da
igreja, que viu um aprofundar-se do sulco entre Roma e Bizâncio e perdeu algumas das
províncias uma vez florescentes e cheias de vida: Egito Síria e Armenia. O suceder-se das
várias definições conciliares, preparado e brotado dos opúsculos dos Padres, das cartas de
Cirilo, do Tomus ad Flavianum, constitui um autêntico progresso que permitiu à igreja
aprofundar mais o patrimônio revelado. Infelizmente este enriquecimento foi pago com uma
animosidade crescente entre ocidente e oriente, cada vez mais falarão uma linguagem
diferente até não se entenderem mais. Bastará uma faísca para provocar a ruptura definitiva.
Nem se pode desmerecer a perda do Egito, da Síria e da Armênia (monofisistas) e da Pérsia
57
(nestoriana), seja pelo fator numérico (4 – 5 milhões, um quarto da população cristã da
época), seja pelo fim de uma tradição gloriosa (que remonta a Orígenes e a Efrém, só para dar
dois nomes apenas), seja pela perda insubstituível de uma base missionária em direção do
Oriente (a expansão será retomada no séc. XVI com a circunavegação da África), seja porque,
separadas de Roma, estas igrejas perderam muito de sua vitalidade e terminaram dessa forma
por perder qualquer possibilidade de resistência diante do iminente ataque do Islã, a partir da
metade do séc. VII da Arábia para a Ásia Menor até a África Mediterrânea. Essas igrejas,
orgulho dos tempos apostólicos, estavam irremediavelmente arruinadas.
4 CONCÍLIOS ECUMÊNICOS NA HISTÓRIA
I Concílio de Nicéia – 325
I Concílio de Constantinopla – 381
I Concílio de Éfeso – 431
I Concílio de Calcedônia – 451
II Concílio de Constantinopla – 553
III Concílio de Constantinopla – 680
IV Concílio de Constantinopla – 692
II Concílio de Nicéia – 786
Lataranense I – 1123
Lataranense II - 1139
Graciano e a virada da metade do Século XII
Lataranense III – 1179
Lataranense IV – 1215
Lionense I – 1245
II Concílio de Leão – 1274
Lionense II – 1275
Vianense – 1311
Concílio de Constança – 1414
Concílio de Basiléia – 1431
Concílio de Ferrara – Florênça – Roma – 1438
Concílio de Latrão – 1512
Concílio de Trento – 1530
Concílio Vaticano I – 1869
58
Concílio Vaticano II – 1962 (no dia 11 de outubro de 1962, apresentaram-se
para a sessão inaugural 2540 padres conciliares. Os bispos chegavam de todo o
mundo a cerca de 4000. Somente na Europa reunia 1060 bispos, dos quais 423
italianos, seguia-se 144 franceses, 87 espanhóis, 59 poloneses, 29
portugueses... A Ásia estava presente com 408 padres, a África com 351, a
América do Norte com 416, a América do Sul com 620 e a Oceania com 74.
Nem devem ser esquecidos os 129 religiosos superiores gerais de seus
institutos).
5 CONTROVÉRSIAS SOBRE A GRAÇA: PELAGIANISMO E SEMI-
PELAGIANISMO
5.1 Gênese, Protagonistas, Lugares comuns do Pelagianismo
Enquanto no oriente o interesse principal era pela pessoa do Cristo (natureza), no
ocidente estava voltado para o problema da salvação e os fatores que decidiam-na.
Faz parte dessa escolha a diferença do caráter ocidental, romano e latino, inclinado
mais ás questões que tangiam a vida corrente do que a especulação pura, essa mentalidade
influenciou decididamente Roma em fins do séc. IV. A muito tempo cessaram as
perseguições, o cristianismo tornou-se uma religião de estado com o Edito de Tessalônica, as
conversões multiplicaram-se. A multidão que lotava as igrejas era formada por cristãos em
sua maioria convertidos a pouco, catecúmenos insuficientemente instruídos e todos viviam em
um ambiente ainda bastante impregnado de costumes pagãos. Esta multidão proclamava sua
fé em Cristo e invocava sua proteção, mas preocupava-se principalmente em obter de um
modo ou de outro o perdão dos pecados e a garantia de uma felicidade no além. Raramente,
senão de todo ausente como prova a existência de pequenas comunidades de consagrados, era
persuasão da necessidade de uma renovação pessoal interior, de uma metanomia que fosse de
encontro à pessoa inteira. Essas tendências eram reforçadas em parte pelo ensinamento de
Joviniano, para quem a graça do batismo era inadmissível, as boas obras inúteis, a castidade
não valoriza o matrimônio; outra parte vinha dos maniqueus, fatalistas. Neste momento chega
a Roma vindo da Britânica um indivíduo alto, de ombros largos, pescoço taurino, testa
ameaçadora, Pelágio (c. 350 – 425). Tem uma força de vontade excepcional que lhe permitiu
adquirir sozinho uma notável cultura teológica, um profundo sentido do dever, uma
eloqüência arrebatadora que o impele a freqüentes e violentos ataques à tepidez e hipocrisia
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de muitos cristãos. Cristão é quem em todas as coisas imita Cristo, ser verdadeiramente
cristão significa portanto renunciar as riquezas, praticar a castidade perfeita. “No dia do juízo
piedade para os pecadores e injustos, que serão queimados no fogo eterno...”. “Não existe
nada que um cristão deve desejar mais e querer com todas as suas forças que afastar o mal do
seu coração, conservar, guardar a limpidez de alma. Seja sem pecado, se quer viver com
Deus...”.
Ao redor do monge britânico, que nunca foi ordenado sacerdote, logo se formou um
grupo de amigos, entre os quais sobressaiu por sua personalidade o monge Celesti e Juliano,
bispo de Eclano (perto de Benevento). Pelágio era condescendente e astucioso, Celestio
ardoroso e perigoso Juliano perpicaz ideólogo, que deu forma racional as tendências ainda
não ordenadas por Pelágio, deduzindo suas conseqüências mais radicais, exercendo sobre ele
uma influência negativa. Não satisfeitos com as exortações verbais, tentaram fazer um
renovamento moral através dos escritos. Pelágio publicou um Comentário às Cartas de São
Paulo durante sua estadia em Roma, Celestio um tratado sobre o pecado original, Contra
traducem peccati (contra a transmissão do pecado). Era fácil que o rigor moral, que deveria
constituir uma admonição e reprovação para os tépidos, não conseguisse evitar uma certa
condescendência consigo mesmo que aparecesse, por exemplo, nesta oração composta por
Pelágio: “Tu conheces, Senhor, o quanto santas são, o quanto inocentes e livres de toda
fraude, injustiça e ladroagem estas mãos que elevo a ti, o quão justos, limpos e livres da
mentira os lábios com os quais imploro tua misericórdia...”. A insistência na coerência moral,
pressuposto de qualquer oração que queira ser aceita pelo Senhor, degrada aqui em uma
segurança em si próprio que recorda-nos a oração do Fariseu, “A igreja somos nós...”
(Ecclesia utique nos sumus). De uma sadia ração à tepidez dos neocristãos se caía em uma
confiança exagerada nas próprias forças a chamada ao sentido do dever, a uma religião ativa e
operante, provoca uma inconsciente soberba.
O próprio Pelágio contribuiu para acentuar cada vez mais esta postura. Mesmo
querendo ser primeiramente um reformador social, ele teve que lançar os princípios teóricos
que justificassem seu comportamento e seu caráter impetuoso, alienado de qualquer
compromisso, levou-o a posições unilaterais insistindo muito sobre um dos elementos que
brincam com o homem, por assim dizer, a vontade livre e deixando de lado outro, ainda mais
importante, a graça.
São dois os princípios fundamentais do sistema pelagiano: a vontade humana é
totalmente livre, depende apenas dela evitar o pecado, de outro lado, Deus é justo e não pode
impor nada que supere nossas forças, não pode dar a algum um auxílio maior que aos outros,
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Ele não faz distinção de pessoas, todos somos iguais diante d’Ele. Deste dois princípios
(liberdade absoluta e autosuficiência humana, e infinita justiça de Deus) Pelágio tira
rigorosamente várias conseqüências. Primeiramente, não é necessário nenhum auxilio divino
para observar os mandamentos nenhuma graça íntima sobrenatural. “Ou faço uso de um poder
que foi dado uma vez por todas, e assim a liberdade é um dom, uma graça de Deus, mas é um
único dom uma única graça e, assim, salva-se a liberdade. Ou então acontece uma ajuda
estranha à minha vontade e assim minha liberdade está destruída”. Então por palavras ele
admite a existência de uma graça, mas nega resolutamente de uma graça íntima sobrenatural
que nos torne capazes de compreender e executar aquilo de que não somos capazes apenas
com nossos esforços. Em segundo lugar, o pecado original não nos enfraqueceu e agora
estamos nas mesmas condições de Adão quando foi criado; no mais Deus seria injusto de
imputar-nos uma culpa cometida por outros. Também Adão foi criado mortal, com as mesmas
concupiscências que nós, que porém em nós são mais fortes por causa dos maus costumes e
maus exemplos começando pelos de Adão. Em terceiro lugar, a Redenção consiste apenas no
bom exemplo que Jesus nos deu vivendo entre nós, coisa que para pessoas como Pelágio é
quase inútil. Finalmente, o batismo é necessário para os adultos, para o perdão dos pecados
pessoais, não para as crianças mortas antes do uso da razão e que podem entrar na vida eterna
sem ele, Pelágio para fugir de uma dificuldade exegética (Jo 3,5) distinguia o Reino de Deus
de modo acidental.
No fundo o cristianismo de Pelágio, se constituía uma reação à fé sem obras própria de
Joviniano e ao pessimismo maniqueísta, reduzia-se a um conjunto de preceitos morais e a um
vago estoicismo e perde uma das características fundamentais do cristianismo verdadeiro; o
sentido e a necessidade de uma salvação que desce do alto. Pelágio é o contrário do Paulo,
que na cara dos romanos exprime de forma dramática a impotência do homem e a necessidade
absoluta de uma ajuda divina (Rm 8, 24). Ressonância daquela experiência pessoal que em
um segundo arrancou-o do judaísmo para fazê-lo um apóstolo. O comentário de Pelágio às
cartas paulinas mostra a total incompreensão do (monge britânico) que minimiza os passos
dogmáticos e exaspera os passos morais. Também é o contrario de Agostinho com sua longa,
exaustiva e estéril luta contra a carne, terminada em um ótimo improvisamento com o fulgurar
da graça, onde ele sentiu toda a impotência em observar a lei divina com as próprias forças.
Está também muito distante de Ambrósio que, bem menos entusiasmado que Agostinho,
nutria os mesmos sentimentos: “Atraia-nos a Ti, desejamos seguir-te, mas dado que não
podemos seguir Teus passos, agarra-no a Ti, para que com tua ajuda possamos caminhar nas
tuas sendas!”.
61
5.2 Polêmica agostiniana a vitória cabal
Depois do saque de Roma por Alarico (410), Pelágio refugiu-se na África, em
Cartago, deixando aí Celestio e prosseguindo para a Palestina. Em Cartago Celestio pediu
para ser ordenado sacerdote, mas foi acusado de heresia por quem o havia conhecido na Itália
e por sua obstinação, foi excomungado por um sínodo aí reunido em 411, provocou a
condenação sobretudo a intervenção de Agostinho, tornado desde o primeiro instante
adversário implacável não da pessoa de Pelágio (“Ouvi falar com grandes elogios” ...,
escreverá), mas da sua doutrina que demoliu ponto de quinze tratados, numerosas cartas e
constantes discursos. Entre as teses condenadas encontramos estas afirmações: “Adão foi
criado ele morreria seja se houvesse pecado ou não. Seu pecado trouxe dano apenas para si e
não a todo o gênero humano. O homem se quiser pode viver sem pecado. As crianças, mesmo
se não batizadas, têm a vida eterna. Se os ricos batizados... não renunciam a tudo, não podem
entrar no Reino dos Céus”. Nesse ínterim Celestio havia fugido para Éfeso onde conseguiu
fazer-se ordenar, enquanto Pelágio era acolhido com todas as honras em Jerusalém e
continuava sua propaganda. No De peccatorum meritis et remissione et de baptismo
parvulorum insiste sobremaneira na transmissão real do pecado original a todos os homens e
sobre o fato que todos, menos o Redentor, são de fato manchados por ele. No De spiritu et
litera rebate que a graça consiste na santificação interior da nossa vontade, enquanto no De
natura de spiritu et littera rebate que a graça consiste na santificação interior da nossa
vontade, enquanto no De natura et gratia, em reposta ao opúsculo de Pelágio De natura
recorda que o homem tem total necessidade da graça porque com o pecado original perdeu a
força e a inocência primevas (ele coloca-se em um ponto de vista mais histórico que teórico, e
não se fixa muito em demonstrar a necessidade da graça também para libertar-se do pecado
original), e sublinha o caráter absolutamente gratuito da graça, concedida non meritis sed
grátis.
Nesse período Pelágio gozava de certos tempos no oriente devido, sobretudo aos
subterfúgios com os quais escondia sua verdadeira doutrina. É verdade que em Jerusalém
Jerônimo atacou-o violentamente no Dialogus contra Pelaginos, diferente de Agostinho, não
evitava uma áspera polêmica pessoal e parece até que gostava muito mais da virulência dos
ataques. E a conversão que reuniu-se no verão de 415 chegou a nada, também por causa do
excessivo furor de ambas as partes. Após alguns meses, em Diópoli (hoje Lida), um outro
sínodo de quatorze bispos proclamou a ortodoxia do imputado. Que aconteceu? Pelágio havia
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se comportado ambiguamente, atribuindo a seus discípulos as asserções mais audazes,
recusando-se assumir qualquer responsabilidade por ensinamentos que não fossem seus,
negou ser o autor da tal oração supracitada, declarou-se perfeitamente alinhado com a
doutrina tradicional da igreja. Concorreram em seu favor a incompetência dos meios orientais
– problemas inéditos para eles – e a precaução (desconfiança) que eles nutriam pelos
adversários mais vivazes do monge britânico, Jerônimo e o jovem padre espanhol Orósio,
discípulo de Agostinho, recém chegado da África, Jerônimo definiu esse sínodo como
“miserabilis synodus”. Isto não impediu Pelágio de publicar outros escritos e de provocar
muitos problemas aos seus adversários.
A sentença de Dióscoli provocou uma verdadeira consternação na África, onde se
conhecia o pensamento de Pelágio na sua forma verdadeira e radical, difundida por Celestio.
Agostinho pegou de novo a pena e compôs De gestis Pelagi onde desmascarava a conduta
ambígua dele. Não contente com este novo e feliz ataque convocou dois sínodos em Cartago e
em Mileni, ambos em 416. Pelágio e Celestio foram condenados absolutamente. Inocêncio I
(402 – 417), mesmo deixando aberto aos imputados o caminho do arrependimento, aprovou as
decisões africanas, dando à famosa exclamação de Agostinho ao fim de uma pregação: “agora
chegaram da Santa Sé os escritos e a questão acabou, praza a Deus que acabe também o erro”,
isto foi divulgado em uma forma mais sintética, mas substancialmente fiel “Roma locuta est,
causa finita est” Roma falou, a causa parou.
Na realidade a causa ainda não havia acabado. Aproveitando a morte de Zózimo,
impulsivo e fácil de seguir conselho do último locutor, Celestio retornou a Roma para obter
do novo Pontífice a reabilitação sua e de Pelágio, ao menos provisoriamente. O Papa escreveu
sem mais às igrejas da África exortando-as a alegrarem-se porque Pelágio e Celestio não
estava fora da verdade católica. A encenação de Celestio foi boa pois o papa, recordando aos
bispos africanos as declarações dos dois imputados, exclama ingenuamente: “alguns retinham
as lágrimas com esforço ao pensar que homens de fé tão íntegra fossem caluniados”,
Agostinho e os bispos africanos advertiram sobre a real gravidade da situação. Uma nova obra
do hiponense, De gratia Christi et de peccato originali, rebateu a ambigüidade do conceito de
graça para Pelágio. “Ele estabeleceu e distingue três coisas necessárias a fim de cumprir a
vontade divina o poder, a vontade, a ação... ele reconheceu que a primeira destas coisas é dada
pelo Criador da natureza, e não depende de nós, mas nós temos mesmo sem querer. As outras
duas, ao invés, i.e., a vontade e a ação, ele assevera que vêm de nós... pare de enganar-se e aos
outros, disputando contra a graça. Precisa reconhecer que a graça de Deus não é necessária
apenas para conquistar a possibilidade de querer e fazer o bem, mas ela nos dá também a
63
vontade e a força de fazer o bem... aquele que quer confessar verazmente a graça de Deus...
deve reconhecer que sem ela não se pode fazer nenhum bem, pois é dada para tornar mais
fácil o cumprimento dos preceitos divinos, revela bastante do seu pensamento sobre isso, que
sem ela podemos, mesmo se menos facilidade, cumprir os preceitos”.
Outros dois sínodos cartaginenses entre 417 e 418, condenaram novamente Pelágio e
Celestio. Foi replicado que a morte é conseqüência do pecado original, que foi transmitido
efetivamente a todos os homens tornando assim necessário o batismo até das crianças que a
graça não é concedida para agilizar nossa vontade, mas simplesmente para tornar possível de
aquilo que sozinha não poderia realizar. “O senhor não disse sem mim podeis fazer mesmo
com certa dificuldade. Mas simplesmente sem mim nada podeis fazer”.
Concomitantemente os bispos africanos obtiveram do Imperador Honório um rescrito
contra Pelágio e Celestio, acusados de perturbar a ordem pública. Zózimo, melhor informado,
retratou-se e numa longa carta encíclica do verão de 418 expôs as vicissitudes da questão e
intimou o episcopado inteiro a professar a doutrina dos africanos e condenar o pelagianismo,
essa carta passou a história com nome de Epistula tractoria Agostiniana, que foi a alma das
várias assembléias reunidas em Cartago desde 411 pode assim respirar, ele que passou por
momentos angustiantes da incerteza de Roma. Depois de dez anos prósperos de Aquitânia
enfatizava o papel da África na luta contra os pelagianos: “Ó África, és tu quem defendes com
maior ardor nossa fé, e que junto à Sé Apostólica, afastas do teu caminho inimigos
derrotados! Aquilo que decretas é aprovado por Roma e seguido em todo o império”. A
epistula tractoria foi refutada por uma vintena de bispos, que por isso foram exilados por
Honório. Entre eles destacava-se Juliano de Eclana que,refugiado no oriente com Teodoro de
Mopsuéstia, continuou sua propaganda. O pelagianismo que surgiu na extremidade ocidental
do império, na Britânia, chegou assim aos confins do oriente, aliando-se perigosamente com
os teólogos da Antioquena, o que acabou por provocar uma nova condenação do movimento
em Éfeso (431). Juliano mudava sempre o foco da polêmica, mas principalmente sobre as
conseqüências que a seu ver trazia a doutrina do pecado original, i.e., uma desvalorização do
matrimônio. Agostinho defendeu-se em uma outra série de opúsculos onde se destacam
sobretudo o De nuptiis et concupiscentia, mas se suas últimas intervenções felizmente
esclareceram ainda mais seu pensamento, também é verdade que algum ponto o doutor da
graça acabou por enrijecer-se em fórmulas que talvez ultrapassassem sua fé profunda e
certamente não mais correspondiam in Toto à doutrina professada pela igreja, que sempre
manteve-se longe das posições extremadas de alguns tratados antipelagianos, que vários
64
pensadores tomarão ao pé da letra afastando-se da ortodoxia, e.g., Wicleff, Lutero, Baio (séc.
XVI) e sobremaneira Jansen (séc. XVIII).
5.3 Polêmica posterior: o agostinianismo rígido, o semipelagianismo, o agostinianismo
moderado
Na longa luta contra o pelagianismo o pensamento de Agostinho evoluiu para formas
cada vez mais rígidas como vimos. Até 396 ele defendia decididamente a vontade salvífica de
Deus a atribuía a incredulidade de uns e a fé de outros à vontade humana. Mais tarde ele
insistiu sobre a eficácia irresistível da graça ao ponto de fazer sombra a vontade savífica
universal de Deus, propondo interpretações inaceitáveis da frase “Deus quer que todos os
homens se salvem”. Provavelmente ele não negava os dois elementos, vontade salvifica
universal e liberdade humana, mas nem chegava a reconciliá-las e clareza no conceito de
graça suficiente. As linhas essenciais do pensamento (ou, em termos técnicos agostinianismo
rígido, que se opõem absolutamente ao pelagianismo). Pode-se resumir nestas teses:
necessidade absoluta da graça; enfraquecimento do homem pelo pecado original; gratuidade
absoluta da graça; também a tendência a restringir a vontade salvífica universal, sublinhando
mais os dons que Deus faz aos eleitos; admissão das crianças mortas sem batismo a uma pena
do sentido (além da pena da condenação, a exclusão da visão beatífica), mesmo que
levíssima; tendência de considerar a concupiscência (instintos que prevalecem sobre a razão)
como má em si mesma; e de considerar a humanidade como totalmente perdida ao inferno - se
não houvesse a redenção.
Contra estas teses logo insurgíramos monges observando que os eventuais defeitos
segundo que os eventuais defeitos, segundo Agostinho, devem ser imputados à falta da graça,
não à vontade má. Para tranqüilizá-los o santo escreveu: De gratia et libero arbítrio e de
corrptione gratia.
A controvérsia continuou deslocando-se agora da África para Gália, onde definiram-se
duas correntes. Contra o agostianismo rígido levantaram-se João Cassiano, um dos principais
organizadores do monaquismo na Gália meridional. São Vicente de Lerins (um dos centros da
polêmica antiagostiniana foi o mosteiro de Lirins, perto da Marselha), Fausto de Riez, o único
deles que viveu entre os sécs. IV e V e foi contemporâneo de Agostinho, todos os outros
viveram e morreram no séc. V. A doutrina deles receberá muito posteriormente, já no séc.
XII, o nome de semipelagianismo, até então os sustentadores de suas teses eram chamados
genericamente de massilienses, marselhenses porque suas vidas e obras desenrolaram-se ao
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redor dessa cidade, reagindo contra as perigosas conseqüências do agostinianismo rígido, que
introduzia o fatalismo e a renúncia da luta contra o pecado, os semipelagianos sustentam que
a graça não é necessária no inititum fidei, i.e., para um primeiro e vago e incerto desejo de
Deus,, o homem não está com suas forças apenas, chega a atos sobrenaturais, mas pode
desejá-los e buscá-los nas buscas pode invocar Deus, continuam, quer a salvação de todos os
homens e oferece a todos a graça para salvarem-se, todos, se quiserem, podem corresponder à
graça e se salvar. A perseverança final depende apenas da vontade livre. Portanto a
predestinação consiste apenas na previsão que Deus tem dos méritos e deméritos de cada um.
O ponto essencial do sistema donde substancialmente deriva-se todos os outros, era o
primeiro, esforça de atribuir ao homem a primeira iniciativa, o primeiro passo no caminho da
salvação, o primeiro apelo a Deus, que o agostinianismo atribuía sem dúvida nenhuma a
Deus, o contrário.
Cassiano, por exemplo, no n. XIII das suas collationes (conferências monásticas) se
por um lado afirma que não apenas o princípio dos atos bons, mas também dos bons
dependem de Deus, que nos inspira o princípio da vontade e nos dá além disso a força e
condições oportunas para cumprir nossos santos desejos “Todo presente e todo dom perfeito
vem do alto, e vem do Pai dos astros, o qual inicia, prossegue e leva a cabo em nós qualquer
bem” (c. 3), por outro lado esforça-se por deixar alguma iniciativa ao homem, com um
compromisso entre agostianismo e pelagianismo. O homem pode desejar a virtude, mas é um
desejar sem a graça: “Do bem da natureza doado a nós pela bondade do Criador, provêm as
vezes início de boa vontade, na qual porém não se cumpre uma virtude completa, se o próprio
Senhor não a dirige”. Não faltaram sínodos locais na Gália que apoiaram as tendências
semipelagianas, sobretudo para defenderem-se do livre arbítrio e para evitar a difusão da
teoria de uma reprovação positiva de fato humanos por Deus.
As doutrinas agostinianas, mesmo depois de purgadas de seus pontos extremos,
tiveram seus defensores nos sécs. V e VI, próspero de Aquitânia, monge leigo que a sua vida
só fez multiplicar opúsculos em defesa de Agostinho, confutando uma a uma acusações contra
ele, invocando a ajuda do Papa Celestino, e mais tarde trabalhando em Roma como teólogo da
cúria, Flagêncio de Ruspe, bispo africano muitas vezes exilado na Sardenha, e o maior de
todos, São Cesário, bispo de Arles (470 – 542), um insigne pastor de almas, um bispo que por
sua personalidade forte dominou a história da igreja na Gália no início do séc. VI, no período
difícil da transição entre a autoridade romana e dos novos estados romano-barbáricos. Se pela
sua atividade pastoral e pela sua relação com Teodorico, rei dos ostrogodos, ele recorda
Ambrósio de Milão, na controvérsia semipelagiana ele ocupa o lugar que Agostinho tem na
66
luta contra os pelagianos (e, se quisermos, também o lugar de um outro santo muito posterior
na luta contra o jansenismo na Itália, na metade do séc. XVIII, santo Afonso Maria de
Ligório). Opondo-se às decisões semipelagianas de um sínodo em Valença, Cesário fez
em529, junto com outros bispos e oito autoridades civis convoca um outro sínodo em Orange
(Arausicanum II). Evocando várias teses que Próspero de Aquitânia redigiu enquanto
trabalhava em Roma na chancelaria papal e que chegaram à Gália (passaram à história com o
nome de Indiculus Caelestíni), o concílio propôs um agostimianismo moderado que acolhia os
principais defendidos pelo bispo de Hipona, mas passando as asperezas perigosas. Orange
ensina assim a necessidade absoluta da graça intima sobrenatural para todo o ano salutar,
também para o princípio da salvação e para perseverança no bem até o fim, o
enfraquecimento do homem depois do pecado original e a impossibilidade de merecer a graça.
Então abandonou-se a doutrina da vontade salvifica particular de Deus e da pena leve
reservada às crianças morta sem o batismo. Alguns cânones traduzidos por Bosio: “se um
sustenta que o pecado de Adão trouxe dano apenas a seu autor e não à sua descendência... está
em contradição com o apóstolo (São Paulo)”; “Se um sustenta que a graça divina é concedida
porque o homem a pede, mas não é por efeito da própria graça que invocamos o socorro
divino, este está em contradição com o profeta Isaías e com o Apóstolo que dizem a mesma
coisa. Foi encontrado por aqueles que não me procuravam...”; “Se um sustenta que podemos,
apenas com as forças da nossa natureza ou escolher convenientemente qualquer coisa boa em
relação à salvação... sem a iluminação e a inspiração do Espírito Santo... este... não
compreende a palavra de Deus que diz no Evangelho, ‘sem mim nada podeis fazer’”.
Os cânones de Orange, aprovados por Roma e tornados assim expressão de um
magistério infalível, inspiraram enormemente a liturgia, largamente impregnada da idéia da
graça, preveniente, pensemos não apenas no Veni Creator (com a estrofe “ductore sic te
prévio”, precedidos pela tua guia), mas também nas orações dominicais do tempo comum 1,
3, 28, 31 e na oração da festa da Páscoa do antigo missal de Pio V. Seria interessantíssimo
estabelecer com precisão a data de criação destes textos (eucologia). Com os cânones do
concílio cartaginense de 418, com assim chamado Indiculus Caelestini, temos exposto de
forma clara e eficaz o ensinamento da igreja, retomado e completado mais tarde, diante da
acentuação exasperada da graça por Lutero no Concílio de Trento. Promana desta doutrina
notável esforço de equilíbrio para salvaguardar a liberdade e a responsabilidade humana, mas
também para atribuir à graça um papel preponderante, decisivo, em todo o processo da
salvação, do início à consumação. A afirmação forte destes dois termos (cuja coexistência por
si só já é um mistério) foi fruto positivo das controvérsias havidas primeiro na África depois
67
da Gália. De Agostinho a Cesário a igreja esclareceu gradualmente seu ensinamento, evitando
paulatinamente o pelagianismo e o semipelagianismo, e também alguns aspectos caducos do
pensamento agostiniano.
5.4 Alguns aspectos da vida da igreja nos primeiros Séculos: vida sacramental,
costumes...
Querendo completar rapidamente o quadro traçado da vida da igreja nos primeiros
séculos, acrescentamos agora algumas particularidades nesses dois aspectos: vida sacramental
e moral. Não falaremos da disciplina penitencial, assunto abordado anteriormente, advertimos
que pela concisão deste trabalho e até para mais clareza não distinguiremos muito entre antes
e depois de 313, se bem que, pelo já estudamos, é possível subentender o que e quanto.
Sobre o batismo três pontos principais chamam nossa atenção. Era conferido com que
idade. Distingamos no início, na primeira geração, era ministrado logo depois da conversão
(At 8, 37 etc), no segundo e terceiro séculos era conferido seja aos neonatos (filhos de
cristãos) seja aos adultos (convertidos, sendo nesse caso precedido de um catecumenato de
dois ou três anos). Apenas no séc. IV difundiu-se o uso de retardar o batismo até a idade
adulta (assim aconteceu com Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, Santo Agostinho, São
Basílio, isto para citar apenas os exemplos mais ilustres). Tratava-se de um verdadeiro abuso,
combatido pelos pastores mais zelosos, isso também por causa da disciplina penitencial da
qual se procurava fugir, caindo obviamente em um relaxamento moral; a conseqüência
positiva foi a seriedade da preparação ao batismo, que aparece nas belas catequeses de Cirilo
de Jerusalém, Santo Ambrósio, São Gregório de Nissa.
Em que dia era conferido o batismo? Duas vezes ao ano, na vigília da Páscoa e de
Pentecostes. Que rito era praticado? O sacramento era ministrado pelos bispos, pelos
sacerdotes, diáconos ou leigos. Praticava-se a imersão, símbolo da morte da nossa morte e
ressurreição em Cristo; havendo necessidade, bastava a infusão ou aspersão. A partir do séc.
III Tertuliano e Hipólito acenam a várias cerimônias que acompanham o ato essencial: jejum
no dia anterior, imposição do sinal da cruz, renúncia ao demônio, exorcismos, unção com
óleo, récita da profissão de fé, tríplice imersão, nova unção. Ao batismo seguia-se
imediatamente o crisma, com uma terceira unção, diferente das precedentes pelo seu
significado e com a imposição das mãos, e a comunhão. Depois os neófitos recebiam uma
mistura de leite e mel, e vestiam-se de branco por oito dias (até Dominica in albis
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deponendis). Pode-se ver este rito na Traditio Apostolica de Hipólito, composta por volta de
215, o mais antigo texto litúrgico que conhecemos depois da Didaqué Apostolarum.
Quando se multiplicaram as heresias e cismas nasceu o problema da validade de um
batismo ministrado por um herege. A questão, conexa com aquela metade do séc. III entre as
igrejas africanas chefiadas por Cipriano de um lado, que sustentava a necessidade de reiterar o
batismo, e Roma doutro lado, onde principalmente o Papa Estevão vetou qualquer repetição
do sacramento: “se qualquer herege vier convosco, não se frenova nada fora do rito
tradicional, de impor as mãos em sinal de penitência” (“Nihil innovetur, nisi quod traditum
est...”). A agitação foi enorme, as duas partes traçaram palavras pesadas, e parece que Estevão
excomungou os bispos africanos. Em todo caso, o martírio de Cipriano, a morte de Estevão, a
chegada de Sisto II impediram uma maior complicação da questão; o novo Papa renovou os
laços com as igrejas africanas.
No início a celebração eucarística era unida à ceia ou ágape, e acontecia regularmente
a tarde, no início da noite. Porém logo no início do séc. II o ágape foi separado da celebração
eucarística, como percebemos na carta de Plínio a Trajano, e assim surgiu duas cerimônias,
uma pela manhã e outra a tarde. Da celebração apenas nos dias de domingo passou-se logo à
celebração também nos dias de jejum (séc. III); Cipriano fala de celebração cotidiana. Seja
como for, reinava grande variedade de costumes, também em relação ao rito, quem em caso
de necessidade poderia ser reduzido ao mínimo essencial, mas que é descrito com vários
particulares na primeira Apologia de Justino, na Traditio Apostólica de Hipólito, na
Didascália, obra anônima composta na Síria no séc. III e que chegou a nós em várias cópias.
Segundo Justino o sacrifício começava som leitura de trechos do Antigo e Novo Testamento,
seguindo com a homilia, prece litânica, procissão do ofertório do pão e do vinho. O rito
continuava com um longo agradecimento e distribuição da comunhão. Ele sublinha a presença
real mesmo se passa por alto sobre a consagração. Hipólito porém mais detalhista remete as
orações do cânon, muito semelhantes ao que hoje chamamos de Cânon Romano (Oração
Eucarística I). a celebração em um todo devia ser mais cumprida do que fazemos hoje; tinham
um sentido de reverência muito agudo até beirava ao temor; um número restrito de orações
eram fixas, reinando uma liberdade para as demais. Não havia paramentos; velas, incensos,
música, o celebrante vestia suas roupas comuns.
A comunhão era sob as duas espécies, exceto em dois casos: se era conferida aos
enfermos e se os fiéis levassem as partículas para casa (como comprovam de passagem mais
claramente Tertuliano e Cipriano), em uma caixinha, quase sempre guardada no quarto de
dormir, sem muita cerimônia. O jejum eucarístico aparece desde as primeiras gerações de
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forma bastante rigorosa. Porém a freqüência da comunhão variou muito, primeiro todos
os........................................................ relaxamento, acentuado na Idade Média, onde a
comunhão era recebida poucas vezes ao ano, até pelas almas consagradas. Até o séc. XII
conservou-se o costume de dar alguma gota de sangue consagrado às crianças que recebiam o
batismo, mesmo que ainda não tivessem o uso da razão.
Até Leão Magno em todas as comunidades e até nos dias de festa celebrava-se uma
única missa nas diversas igreja, sinal de unidade, mas pelos inconvenientes foi abolida pelo
Papa. Apenas em Roma se celebrava várias missas nos dias de festas nas diversas igrejas.
É notória a falta, até o séc. III, de uma liturgia do matrimônio cristão porém os fiéis
sabiam que se uniam diante de Cristo, como se vê nos baixo-relevos onde Cristo é
representado abençoando a noiva e juntando a mão dos esposos. Mais comumente pedia-se a
benção do bispo. Tertuliano fala do “matrimônio que a igreja aprova, que a oblação confirma,
que a bênção sela, que os anjos reconhecem, o Pai ratifica”. E bem antes Inácio de Antioquia
escrevia a Policarpo de Esmirna: “É dever dos esposos enlaçar sua união com a aprovação do
bispo, para que o matrimônio seja segundo o Senhor e não segundo a concupiscência”.
Discutiu-se muito no passado se existiu realmente uma proibição de falar com os não
batizados sobre os principais mistérios cristãos (disciplina de arcano). Algumas frases dos
padres, como Agostinho (que trata de algumas questões de modo velado, fazendo entender
que são conhecidas apenas dos fiéis, não dos outros), o costume de dispensar os catecúmenos
antes do rito propriamente eucarístico alusões à frase de Mateus “não lançar pérolas aos
porcos” (Mt 7, 6), o próprio simbolismo usado na arte das catacumbas, tudo isso pode
constituir argumentos que sustente essa tese (tese de Arcano - Mistério). Os argumentos
tomados isoladamente não são cabais, pois as expressões adotadas podem ser interpretadas de
diversas formas sem um sentido retórico. Tudo estava ligado ao catecumenato e desapareceu
com ele no início do séc. V.
A moral cristã suscitava imediatamente vários problemas para os cristãos em contato
com uma sociedade que se inspirava em princípios diametralmente opostos. Uma das questões
mais graves e urgentes era aquela da liceidade ou não do exercício de várias profissões. Não
faltavam os rigoristas, como Tertuliano, Hipólito e alguma vez também Orígenes, que
condenavam a participação na .......................... estatal e no serviço militar, todavia
encontramos vários cristãos em tarefas desde fins do séc. II. Num sarcófago que hoje está na
Vila Borghese, em Roma, tem a lápide de um certo Marco Aurélio Proxene, adido à casa
imperial como toureiro, organizador dos jogos, administrador dos bens pessoais do imperador.
De um acréscimo esculpido bem pequeno em um dos lados do sarcófago, brota a certeza de
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que ele era um cristão, somente assim se explica a frase: “receptus ad Deum”, aceito recebido
por Deus. É fácil supor a complexa situação deste homem que , a cada dia, encontrava-se no
dilema de trair sua fé ou cumprir menos seu dever de ofício, tanto que para ele tocava a
preparação dos espetáculos no anfiteatro e jogos de gladiadores. Provavelmente não faltaram
outros casos congêneres. Todavia a opinião comum não proibia os exercícios destas
profissões, mas julgava ilícitas aquelas que poderiam causar escândalos ou cooperassem
proximadamente com a idolatria: pintor, escultor, ator, professor, gladiador, etc. Para ser
catecúmeno deveria abandoná-las, menos se lucrativas.
A caridade era considerada uma atividade conatural para a igreja desde seu
surgimento, basta-nos recordar na assistência descrita nos primeiros capítulos dos Atos.
Tratava-se muito mais de uma atividade coletiva que individual. “Dar aos pobres” equivalia a
deixar os próprios bens para a igreja, para que ela dispusessem em favor dos pobres. As
comunidades mais importantes, como Roma, tinha um registro apropriado dos pobres,
“tesserados” ou “matriculados” (fichados). Na Roma de 215 encontramos 1500 pobres
cadastrados; em 190 existia um elenco de condenados a trabalhos forçados na Sardenha
regularmente assistidos. Os órfãos provavelmente eram acolhidos nas casas particulares. A
assim chamada Constituição Apostólica recomenda procurar trabalho para que é capaz, antes
de dar esmola. A caridade era praticada também para com os pagãos Juliano Apóstata achava
indecoroso que pagãos fossem ajudados por cristãos. Não se tratava porém de um tipo de
propaganda para obter mais conversões à igreja; tinha uma consciência muito alta de si
mesma e da sua missão para recorrer a expediente mesquinho, baixo e contraproducente. É
interessante para ilustrar isso no caso exposto por Cipriano numa carta (Ep 61, Pl 4.374): foi
recomendado ao bispo de Cartago um ator que, tornado cristão, renunciou a sua profissão e
encontrava-se em sérias dificuldades econômicas. Cipriano replicando com incompatibilidade
entre a profissão de estrião (comediante) e a fé cristã prometeu ajudar aquele neófito (“que, se
ele apresenta sua pobreza e sua necessidade, poderá ser socorrido como todos aqueles que são
mantidos pela caixa eclesiástica, porém contemplando-se com uma vida frugal, mas longe de
qualquer culpa”), e conclui com firmeza, sublinhando as respectivas posições: “Não pense
porém que tenha direito de receber recompensas porque renunciou a pecar, visto que isso é
serviço que prestou não à igreja, mas a si mesmo”.
Em meio a desenfreada corrupção do império, os cristãos ofereciam um testemunho
eficaz da sua castidade, que considerava ilícito o ato pré-matrimonial, obrigava os esposos a
uma fidelidade recíproca absoluta, i.e., reconhecia ao homem e a mulher direitos iguais no
matrimônio, em uma inovação inédita para o mundo antigo, condenava o aborto e o
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infanticídio, desaconselhava o segundo matrimônio, exaltava a castidade perfeita. O médico
Galeno (+200), cerca) notava que os cristãos por seu desprezo pela morte e pela castidade
mostrava-se não inferiores a qualquer filósofo (estóico). A igreja sustentou longa luta,
também depois do séc. IV para inculcar a indissolubilidade do matrimônio; apenas a partir do
ano mil, com o prevalecimento dos princípios canônicos na legislação civil esse princípio
prevaleceu ao menos na teoria.
Diante da escravidão a igreja não proclamou nenhuma luta frontal contra ela, antes
impôs aos escravos a obediência a seus patrões (cf. Carta a Filêmon). Não havia a consciência
que temos hoje sobre a dignidade humana, nem sensibilidade social. Será abolida de
Constantino pela mentalidade cristã.
É anacrônica e romântica (atemporal, irreal) a representação de uma igreja antiga
composta apenas de santos e mártires, sem qualquer bem material, lançada unanimente para o
martírio. Não faltam sombras e lacunas até nos primeiros séculos; no séc. III foram
numerosos mos lapsi, depois de 313 a moralidade da massa cristã deixava muito a desejar e os
bispos mais eloqüentes verberavam contra a paixão de seus fiéis pelos espetáculos em uma
linguagem que pode ser válida hoje e que mostra indiretamente o escasso sucesso de seus
esforços pastorais. Na prática pastoral, no dogma e na piedade seria fácil sublinhar as lacunas
desse tempo, que apenas lenta a gradualmente serão superadas. É justo reconhecer todos os
enormes progressos desde então até hoje, mesmo entre incertezas, lentidões, debandadas e,
algum caso, perdas. Seria também os exemplos de tesouros que a ela nos deixou.