História - Álgebra

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HISTÓRIA DA ÁLGEBRA (uma visão geral) Fonte: Tópicos de História da Matemática - John K. Baumgart Estranha e intrigante é a origem da palavra "álgebra". Ela não se sujeita a uma etimologia nítida como, por exemplo, a palavra "aritmética", que deriva do grego arithmos ("número"). Álgebra é uma variante latina da palavra árabe al-jabr (às vezes transliterada al-jebr ), usada no título de um livro, Hisab al-jabr w'al-muqabalah, escrito em Bagdá por volta do ano 825 pelo matemático árabe Mohammed ibn-Musa al Khowarizmi (Maomé, filho de Moisés, de Khowarizm). Este trabalho de álgebra é com frequência citado, abreviadamente, como Al-jabr . Uma tradução literal do título completo do livro é a "ciência da restauração (ou reunião) e redução", mas matematicamente seria melhor "ciência da transposição e cancelamento"- ou, conforme Boher, "a transposição de termos subtraídos para o outro membro da equação" e "o cancelamento de termos semelhantes (iguais) em membros opostos da equação". Assim, dada a equação: x 2 + 5x + 4 = 4 - 2x + 5x 3 al-jabr fornece x 2 + 7x + 4 = 4 + 5x 3 e al-muqabalah fornece x 2 + 7x = 5x 3 Talvez a melhor tradução fosse simplesmente "a ciência das equações". Ainda que originalmente "álgebra" refira-se a equações, a palavra hoje tem um significado muito mais amplo, e uma definição satisfatória requer um enfoque em duas fases: (1) Álgebra antiga (elementar) é o estudo das equações e métodos de resolvê-las. (2) Álgebra moderna (abstrata) é o estudo das estruturas matemáticas tais como grupos, anéis e corpos - para mencionar apenas algumas. De fato, é conveniente traçar o desenvolvimento da álgebra em termos dessas duas fases, uma vez que a divisão é tanto cronológica como conceitual. Equações algébricas e notação A fase antiga (elementar), que abrange o período de 1700 a.C. a 1700 d.C., aproximadamente, caracterizou-se pela invenção gradual do simbolismo e pela resolução de equações (em geral coeficientes numéricos) por vários métodos, apresentando progressos pouco importantes até a resolução "geral" das equações cúbicas e quárticas e o inspirado tratamento das equações polinomiais em geral feito por François Viète, também conhecido por Vieta (1540-1603). O desenvolvimento da notação algébrica evoluiu ao longo de três estágios: o retórico (ou verbal), o sincopado (no qual eram usadas abreviações de palavras) e o simbólico. No último estágio, a notação passou por várias modificações e mudanças, até tornar-se razoavelmente estável ao tempo de Isaac Newton. É interessante notar que, mesmo hoje, não há total uniformidade no uso de símbolos. Por exemplo, os americanos escrevem "3.1416" como aproximação de Pi, e muitos europeus escrevem "3,1416". Em alguns países europeus, o símbolo "÷" significa "menos". Como a álgebra provavelmente se originou na Babilônia, parece apropriado ilustrar o estilo retórico com um exemplo daquela região. O problema seguinte mostra o relativo grau de sofisticação da álgebra babilônica. É um exemplo típico de problemas encontrados em escrita cuneiforme, em tábuas de argila que remontam ao tempo do rei Hammurabi. A explanação, naturalmente, é feita em português; e usa-se a notação decimal indo-arábica em vez da notação sexagesimal cuneiforme. A coluna à direita fornece as passagens correspondentes em notação moderna. Eis o exemplo: [1] Comprimento, largura. Multipliquei comprimento por largura, obtendo assim a área: 252. Somei comprimento e largura: 32. Pede-se: comprimento e largura. [2] [Dado] 32 soma; 252 área. x+y=k xy=P } ... (A) [3] [Resposta] 18 comprimento; 14 largura. [4] Segue-se este método: Tome metade de 32 [que é 16]. k/2 16 x 16 = 256 (k/2) 2 256 - 252 = 4 (k/2) 2 - P = t 2 } ... (B) A raiz quadrada de 4 é 2. 16 + 2 = 18 comprimento. (k/2) + t = x. .:: História da Álgebra ::. http://www.somatematica.com.br/algebra.php 1 of 4 23/9/2011 16:02

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HISTÓRIA DA ÁLGEBRA(uma visão geral)

Fonte: Tópicos de História da Matemática - John K. Baumgart

Estranha e intrigante é a origem da palavra "álgebra". Ela não se sujeita a uma etimologianítida como, por exemplo, a palavra "aritmética", que deriva do grego arithmos ("número").

Álgebra é uma variante latina da palavra árabe al-jabr (às vezes transliterada al-jebr), usadano título de um livro, Hisab al-jabr w'al-muqabalah, escrito em Bagdá por volta do ano 825 pelo

matemático árabe Mohammed ibn-Musa al Khowarizmi (Maomé, filho de Moisés, deKhowarizm). Este trabalho de álgebra é com frequência citado, abreviadamente, como Al-jabr.

Uma tradução literal do título completo do livro é a "ciência da restauração (ou reunião) e

redução", mas matematicamente seria melhor "ciência da transposição e cancelamento"- ou,conforme Boher, "a transposição de termos subtraídos para o outro membro da equação" e "o

cancelamento de termos semelhantes (iguais) em membros opostos da equação". Assim,dada a equação:

x2 + 5x + 4 = 4 - 2x + 5x3

al-jabr fornecex2 + 7x + 4 = 4 + 5x3

e al-muqabalah fornecex2 + 7x = 5x3

Talvez a melhor tradução fosse simplesmente "a ciência das equações".Ainda que originalmente "álgebra" refira-se a equações, a palavra hoje tem um significado

muito mais amplo, e uma definição satisfatória requer um enfoque em duas fases:(1) Álgebra antiga (elementar) é o estudo das equações e métodos de resolvê-las.

(2) Álgebra moderna (abstrata) é o estudo das estruturas matemáticas tais como grupos,anéis e corpos - para mencionar apenas algumas.

De fato, é conveniente traçar o desenvolvimento da álgebra em termos dessas duas fases,uma vez que a divisão é tanto cronológica como conceitual.

Equações algébricas e notação

A fase antiga (elementar), que abrange o período de 1700 a.C. a 1700 d.C.,

aproximadamente, caracterizou-se pela invenção gradual do simbolismo e pela resolução deequações (em geral coeficientes numéricos) por vários métodos, apresentando progressospouco importantes até a resolução "geral" das equações cúbicas e quárticas e o inspirado

tratamento das equações polinomiais em geral feito por François Viète, também conhecido porVieta (1540-1603).

O desenvolvimento da notação algébrica evoluiu ao longo de três estágios: o retórico (ou

verbal), o sincopado (no qual eram usadas abreviações de palavras) e o simbólico. No últimoestágio, a notação passou por várias modificações e mudanças, até tornar-se razoavelmente

estável ao tempo de Isaac Newton. É interessante notar que, mesmo hoje, não há totaluniformidade no uso de símbolos. Por exemplo, os americanos escrevem "3.1416" comoaproximação de Pi, e muitos europeus escrevem "3,1416". Em alguns países europeus, o

símbolo "÷" significa "menos". Como a álgebra provavelmente se originou na Babilônia, pareceapropriado ilustrar o estilo retórico com um exemplo daquela região. O problema seguinte

mostra o relativo grau de sofisticação da álgebra babilônica. É um exemplo típico deproblemas encontrados em escrita cuneiforme, em tábuas de argila que remontam ao tempo

do rei Hammurabi. A explanação, naturalmente, é feita em português; e usa-se a notaçãodecimal indo-arábica em vez da notação sexagesimal cuneiforme. A coluna à direita fornece as

passagens correspondentes em notação moderna. Eis o exemplo:

[1] Comprimento, largura. Multipliquei comprimento por largura, obtendo assim a área: 252.Somei comprimento e largura: 32. Pede-se: comprimento e largura.

[2] [Dado] 32 soma; 252 área. x+y=kxy=P } ... (A)

[3] [Resposta] 18 comprimento; 14 largura.

[4] Segue-se este método: Tome metade de32 [que é 16]. k/2

16 x 16 = 256 (k/2)2

256 - 252 = 4 (k/2)2 - P = t2 } ... (B)

A raiz quadrada de 4 é 2.

16 + 2 = 18 comprimento. (k/2) + t = x.

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16 + 2 = 18 comprimento. (k/2) + t = x.16 - 2 = 14 largura (k/2) - t = y.[5] [Prova] Multipliquei 18 comprimento por14 largura.18 x 14 = 252 área

((k/2)+t) ((k/2)-t)= (k2/4) - t2 = P = xy.

Nota-se que na etapa [1] o problema é formulado, na [2] os dados são apresentados, na [3] aresposta é dada, na [4] o método de solução é explicado com números e, finalmente, na [5] a

resposta é testada.A "receita" acima é usada repetidamente em problemas semelhantes. Ela tem significado

histórico e interesse atual por várias razões.

Antes de tudo não é a maneira como resolveríamos hoje o sistema (A). O procedimentopadrão nos atuais textos escolares de álgebra é resolver, digamos, a primeira equação para y

(em termos de x), substituir na segunda equação e, então, resolver a equação quadráticaresultante em x; isto é, usaríamos o método de substituição. Os babilônios também sabiam

resolver sistemas por substituição, mas frequentemente preferiam usar seu métodoparamétrico. Ou seja, usando-se notação moderna, eles concebiam x e y em termos de uma

nova incógnita (ou parâmetro) t fazendo x=(k/2)+t e y=(k/2)-t.

Então o produtoxy = ((k/2) + t) ((k/2) - t) = (k/2)2 - t2 = P

levava-os à relação (B):(k/2)2 - P = t2

Em segundo lugar, o problema acima tem significado histórico porque a álgebra grega

(geométrica) dos pitagóricos e de Euclides seguia o mesmo método de solução - traduzida,entretanto, em termos de segmentos de retas e áreas e ilustrada por figuras geométricas.

Alguns séculos depois, outro grego, Diofanto, também usou a abordagem paramétrica em seutrabalho com equações "diofantinas". Ele deu início ao simbolismo moderno introduzindoabreviações de palavras e evitando o estilo um tanto intrincado da álgebra geométrica.

Em terceiro lugar, os matemáticos árabes (inclusive al-Khowarizmi) não usavam o métodoempregado no problema acima; preferiam eliminar uma das incógnitas por substituição e

expressar tudo em termos de palavras e números.Antes de deixar a álgebra babilônica, notemos que eles eram capazes de resolver uma

variedade surpreendente de equações, inclusive certos tipos especiais de cúbicas e quárticas- todas com coeficientes numéricos, naturalmente.

Álgebra no Egito

A álgebra surgiu no Egito quase ao mesmo tempo que na Babilônia; mas faltavam à álgebraegípcia os métodos sofisticados da álgebra babilônica, bem como a variedade de equações

resolvidas, a julgar pelo Papiro Moscou e o Papiro Rhind - documentos egípcios que datam decerca de 1850 a.C. e 1650 a.C., respectivamente, mas refletem métodos matemáticos de um

período anterior. Para equações lineares, os egípcios usavam um método de resoluçãoconsistindo em uma estimativa inicial seguida de uma correção final - um método ao qual os

europeus posteriormente deram o nome umtanto abstruso de "regra da falsa posição". Aálgebra do Egito, como a da Babilônia, era retórica.

O sistema de numeração egípcio, relativamente primitivo em comparação com o dosbabilônios, ajuda a explicar a falta de sofisticação da álgebra egípcia. Os matemáticoseuropeus do século XVI tiveram de estender a noção indo-arábica de número antes de

poderem avançar significativamente além dos resultados babilônios de resolução de equações.

Álgebra geométrica grega

A álgebra grega conforme foi formulada pelos pitagóricos e por Euclides era geométrica. Por

exemplo, o que nós escrevemos como:(a+b)2 = a2 + 2ab + b2

era concebido pelos gregos em termos do diagrama apresentado na Figura 1 e eracuriosamente enunciado por Euclides em Elementos, livro II, proposição 4:

Se uma linha reta é dividida em duas partes quaisquer, o quadrado sobre a linha toda é igualaos quadrados sobre as duas partes, junto com duas vezes o retângulo que as partes

contém. [Isto é, (a+b)2 = a2 + 2ab + b2.]Somos tentados a dizer que, para os gregos da época de Euclides, a2 era realmente um

quadrado.Não há dúvida de que os pitagóricos conheciam bem a álgebra babilônica e, de fato, seguiamos métodos-padrão babilônios de resolução de equações. Euclides deixou registrados essesresultados pitagóricos. Para ilustrá-lo, escolhemos o teorema correspondente ao problema

babilônio considerado acima.

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Do livro VI dos Elementos, temos a proposição 28 (uma versão simplificada):

Dada uma linha reta AB [isto é, x+y=k], construir ao longo dessa linha um retângulo comuma dada área [xy = P], admitindo que o retângulo "fique aquém" em AB por uma quantidade

"preenchida" por outro retângulo [o quadrado BF na Figura 2], semelhante a um dadoretângulo [que aqui nós admitimos ser qualquer quadrado].

Na solução desta construção solicitada (Fig.2) o trabalho de Euclides é quase exatamenteparalelo à solução babilônica do problema equivalente. Conforme indicado por T.L.Heath /

EUCLID: II, 263/, os passos são os seguintes:

Bissecte AB em M: k/2

Construa o quadrado MBCD: (k/2)2

Usando VI, 25, construa o quadrado DEFGcom área igual ao excesso de MBCD sobre aárea dada P:

t2 = (k/2)2 - P

Então é claro que y = (k/2) - t

Como fazia frequentemente, Euclides deixou o outro caso para o estudante - neste caso,x=(k/2)+t, o que Euclides certamente percebeu mas não formulou.

É de fato notável que a maior parte dos problemas-padrão babilônicos tenham sido "refeitos"desse modo por Euclides. Mas por quê? O que levou os gregos a darem à sua álgebra esta

formulação desajeitada? A resposta é básica: eles tinham dificuldades conceituais comfrações e números irracionais.

Mesmo que os matemáticos gregos fossem capazes de contornar as frações, tratando-ascomo razões de inteiros, eles tinham dificuldades insuperáveis com números como a raizquadrada de 2, por exemplo. Lembramos o "escândalo lógico" dos pitagóricos quando

descobriram que a diagonal de um quadrado unitário é incomensurável com o lado (ou seja,diag/lado é diferente da razão de dois inteiros).

Assim, foi seu estrito rigor matemático que os forçou a usar um conjunto de segmentos de retacomo domínio conveniente de elementos. Pois, ainda que raiz quadrada de 2 não possa serexpresso em termos de inteiros ou suas razões, pode ser representado como um segmento

de reta que é precisamente a diagonal do quadrado unitário. Talvez não seja apenas umgracejo dizer que o contínuo linear era literalmente linear.

De passagem devemos mencionar Apolônio (c. 225 a.C.), que aplicou métodos geométricosao estudo das secções cônicas. De fato, seu grande tratado Secções cônicas contém mais

geometria analítica das cônicas - toda fraseada em terminologia geométrica - do que oscursos universitários de hoje.

A matemática grega deu uma parada brusca. A ocupação romana tinha começado, e nãoencorajava a erudição matemática, ainda que estimulasse alguns outros ramos da cultura

grega. Devido ao estilo pesado da álgebra geométrica, esta não poderia sobreviver somentena tradição escrita; necessitava de um meio de comunicação vivo, oral. Era possível seguir o

fluxo de idéias desde que um instrutor apontasse para diagramas e explicasse; mas asescolas de instrução direta não sobreviveram.

Álgebra na Europa

A álgebra que entrou na Europa (via Liber abaci de Fibonacci e traduções) havia regredidotanto em estilo como em conteúdo. O semi-simbolismo (sincopação) de Diofanto e

Brahmagupta e suas realizações relativamente avançadas não estavam destinados a contribuirpara uma eventual irrupção da álgebra.

A renascença e o rápido florescimento da álgebra na Europa foram devidos aos seguintesfatores:

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fatores:

facilidade de manipular trabalhos numéricos através do sistema de numeraçãoindo-arábico, muito superior aos sistemas (tais como o romano) que requeriam o uso do

ábaco;invenção da imprensa com tipos móveis, que acelerou a padronização do simbolismo

mediante a melhoria das comunicações, baseada em ampla distribuição;ressurgimento da economia, sustentando a atividade intelectual; e a retomada do

comércio e viagens, facilitando o intercâmbio de idéias tanto quanto de bens.

Cidades comercialmente fortes surgiram primeiro na Itália, e foi lá que o renascimentoalgébrico na Europa efetivamente teve início.

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