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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, jul./dez. 2001 71 Hipóteses concretas de exclusão da responsa- bilidade civil do Estado Ana Cristina Nobre Martins de Souza Advogada I. Introdução O tema da responsabilidade civil do Estado pelo ressarcimento dos danos conseqüentes de sua atividade tem sido permeado por acirradas polêmicas, tanto na doutrina como na jurisprudência. Não obstante a vasta literatura jurídica e a extraordinária freqüên- cia com que os tribunais são chamados a decidir conflitos de interesse nessa área, ainda não se definiram satisfatoriamente os exatos parâme- tros que determinam esse dever de ressarcimento, remanescendo con- trovertidos inúmeros pontos, enquanto questões outras vão surgindo. A constante evolução dos valores sociais, associada à diversida- de de posicionamentos e teorias acerca do tema, torna imprescindível uma intensa e profunda averiguação no que pertine aos seus múltiplos aspectos. A atividade do Estado, exercida, em geral, pelos seus agentes, é marcada pelo constante risco de causar dano ao patrimônio alheio, fato que, ocorrendo, faz surgir para a Administração o dever jurídico de oferecer uma resposta à vítima. Inobstante a responsabilidade objetiva a que está sujeito, pode o Estado defender-se da imputação, suscitando excludentes dessa responsabilidade, como a culpa exclusiva da vítima ou circunstâncias de força maior ou caso fortuito.

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Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, jul./dez. 2001 71

Hipóteses concretas de exclusão da responsa-bilidade civil do Estado

Ana Cristina Nobre Martins de Souza

Advogada

I. Introdução

O tema da responsabilidade civil do Estado pelo ressarcimento dos danos conseqüentes de sua atividade tem sido permeado por acirradas polêmicas, tanto na doutrina como na jurisprudência.

Não obstante a vasta literatura jurídica e a extraordinária freqüên-cia com que os tribunais são chamados a decidir conflitos de interesse nessa área, ainda não se definiram satisfatoriamente os exatos parâme-tros que determinam esse dever de ressarcimento, remanescendo con-trovertidos inúmeros pontos, enquanto questões outras vão surgindo.

A constante evolução dos valores sociais, associada à diversida-de de posicionamentos e teorias acerca do tema, torna imprescindível uma intensa e profunda averiguação no que pertine aos seus múltiplos aspectos.

A atividade do Estado, exercida, em geral, pelos seus agentes, é marcada pelo constante risco de causar dano ao patrimônio alheio, fato que, ocorrendo, faz surgir para a Administração o dever jurídico de oferecer uma resposta à vítima. Inobstante a responsabilidade objetiva a que está sujeito, pode o Estado defender-se da imputação, suscitando excludentes dessa responsabilidade, como a culpa exclusiva da vítima ou circunstâncias de força maior ou caso fortuito.

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Tradicionalmente, dentro da concepção política do Estado abso-luto era inconcebível a idéia de reparação de danos causados pelo poder público, posto que não se admitia a constituição de direitos contra o Estado soberano. Entendia-se que, quando o Estado exige a obediência de seus súditos, não o faz para fins próprios, mas, justamente, para o bem dos mesmos.

Nesta fase, somente era admitida a responsabilidade pecuniária pessoal dos agentes da Administração, pois não se justificava a ficção de que os funcionários administrativos fossem órgãos imediatos do Estado e que, em conseqüência, os atos destes devessem ser tidos como atos do Estado. Esse modo de entender, na maioria das vezes, frustrava a ação de indenização ante a insolvência do funcionário.

A teoria civilista da responsabilidade estatal, conquanto os admi-nistrativistas de hoje insistam em repudiá-la, foi a grande contestadora inicial do princípio da irresponsabilidade absoluta. De acordo com a concepção civilista, tinha-se como certo que, ora o Estado procede na qualidade de “pessoa-pública”, no exercício do poder soberano, realizando as funções essenciais ou necessárias na qualidade de poder supremo (iure imperii), ora age como “pessoa-civil”, equiparando-se ao particular, quando age como gestor de interesses coletivos (iure gestionis).

No primeiro caso, os atos praticados nessa qualidade restariam incólumes a qualquer julgamento e, mesmo quando danosos para os súditos, seriam insuscetíveis de gerar direito à reparação. No segundo, sujeitar-se-ia da mesma forma que qualquer particular, podendo ter sua responsabilidade reconhecida nas mesmas condições de uma empresa privada, pelos atos de seus representantes ou prepostos lesivos ao di-reito de terceiros.

A despeito de representar um ataque ao conceito de irresponsabi-lidade, a teoria civilista gerava sérias dificuldades quando se cogitava de sua aplicação prática, tendo sido descartada em razão da insuficiência de seus enunciados.

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Particularmente no Direito brasileiro, a tese da responsabilidade do Poder Público sempre foi aceita como princípio geral e fundamental de Direito, mesmo à falta de disposição legal específica. Em verdade, em nosso Direito não passamos pela fase da irresponsabilidade do Estado.

Não obstante a inexistência de dispositivos que consagrassem expressamente a responsabilidade do Estado nas Constituições do Im-pério (1824) e Republicana (1891), entendia-se haver solidariedade do Estado em relação à atividade danosa de seus agentes. Entretanto, para ensejar a reparação era imprescindível a prova da culpa do funcionário, eis que se tratava de responsabilidade fundada na culpa civil. Dessa sorte, o Estado só responderia se restasse provado que o evento danoso teve lugar por conta da atuação culposa da Administração, que se deu com negligência, imprudência ou imperícia.

Atualmente, a responsabilidade do Estado pelos atos de seus repre-sentantes, pode-se dizer, é ponto incontestável em todas as legislações. Avulta como forma de defesa do indivíduo frente ao desenvolvimento crescente do Estado. No campo do direito público encontra-se o seu fundamento, que tem por base os princípios da eqüidade, política jurí-dica e, precipuamente, o da igualdade de ônus e dos encargos sociais. Proclamada a responsabilidade objetiva da Administração, responde a pessoa jurídica de direito público independente de qualquer falta ou culpa do serviço, mas simplesmente porque há relação de causalidade entre a atividade administrativa e o dano sofrido pelo particular.

II. A responsabilidade do estado no direito brasileiro

1. O Art. 15 do Código Civil

O Código Civil Brasileiro, acolhendo a doutrina subjetivista, estabeleceu em seu art. 15 que “as pessoas jurídicas de Direito Público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa

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qualidade causem dano a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito em lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”.

Este dispositivo consagrou a teoria da culpa como fundamento da responsabilidade civil do Estado. Todavia, sua redação ambígua propi-ciou larga divergência doutrinária no que diz respeito à sua interpretação e aplicação. Tanto é assim que alguns juristas e parte da jurisprudência já vislumbravam admitida a teoria do risco, a ensejar a responsabilidade civil sem culpa em determinados casos de atuação lesiva do Estado.

Segundo a observação de Hely Lopes Meirelles, “o questionado art. 15 nunca admitiu a responsabilidade sem culpa, exigindo sempre e em todos os casos a demonstração desse elemento subjetivo para a responsabilização do Estado” 1. O insigne Professor cita ainda a lição de Alvino Lima, que escreve: “o Código Civil Brasileiro, seguindo a tradição de nosso Direito, não se afastou da teoria da culpa, como princípio genérico regulador da responsabilidade extracontratual” 2.

A orientação adotada pelo legislador civil para a composição dos danos causados pela Administração Pública permaneceu até o advento da Constituição de 1946, a qual consagrou a teoria objetiva do risco ad-ministrativo. A Constituição de 1988, art. 37, § 6º, acolheu, igualmente, a doutrina objetiva com algumas inovações, como a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, de forma a harmonizar os postulados da responsabilidade civil da Administração com as exigências sociais dos tempos de hoje.

2. Responsabilidade subjetiva do estado

Hodiernamente, não é necessária a identificação de uma culpa individual para deflagrar-se a responsabilidade do Estado, porquanto essa noção civilista foi ultrapassada pela idéia de culpa do serviço ou 1 MEIRELLES, Hely Lopes. Responsabilidade civil do estado. p. 534 2 LIMA, Alvino apud MEIRELLES, Hely Lopes. Da culpa ao risco. p. 174.

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falta do serviço (faute du service entre os franceses).

Nesta linha, a responsabilidade civil do Estado tem sido preconiza-da no pressuposto de existência de uma falta ou omissão administrativa na realização de obras que tenham por fim prevenir, evitar ou atenuar os danos resultantes de fenômenos da natureza, como enchentes oca-sionadas por chuvas torrenciais, inundações, deslizamento de encostas, desabamentos, etc.. Ou, nos casos de fatos de terceiros, que nada tem a ver com a atividade dos agentes do Estado, não podendo ser invoca-da, destarte, a responsabilidade objetiva da Administração, como nas hipóteses de atos predatórios de terceiros, saques em estabelecimentos comerciais, assaltos em via pública, etc.

Tais fatos são estranhos à atividade administrativa, e não guardam nenhuma relação de causalidade entre esta e o dano daí resultante. Des-sa feita, não lhes é aplicável o princípio constitucional que consagra a responsabilidade objetiva do Estado, vez que a nossa constituição não adotou a teoria do risco integral.

Nesses casos, a Administração Pública só poderá vir a ser respon-sabilizada se provado que sua omissão, ou atuação deficiente, concor-reu decisivamente para o evento, eis que deixou de realizar obras que razoavelmente lhe seriam exigíveis. Emerge, assim, a responsabilidade subjetiva do Estado determinada pela teoria da culpa anônima ou falta do serviço.

Merece destaque a lição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo”.

Em seguida, prossegue:

“Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cum-

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pre ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre argüir que o ‘serviço não funcionou’. A admitir-se responsabilidade objetiva nessas hipóteses o Estado estaria erigido em segurador universal! Razoável que responda pela lesão patrimonial da vítima de um assalto se agentes policiais relapsos assistiram à ocorrência inertes e desinteressados ou se alertados a tempo de evitá-lo omitiram-se na adoção de providências cautelares. Razoável que o Estado responda por danos oriundos de uma enchente se as galerias pluviais e os bueiros de escoamento das águas esta-vam entupidos ou sujos, propiciando o acúmulo da água. Nestas situações, sim, terá havido descumprimento do dever legal na adoção de providên-cias obrigatórias. Faltando, entretanto, este cunho de injuridicidade, que advém do dolo, ou da culpa tipificada na negligência, na imprudência ou na imperícia, não há cogitar de responsabilidade pública” 3.

3. As pessoas jurídicas do art. 37, § 6.º, da Constituição. As pessoas jurídicas responsáveis

A Constituição de 1988, alterando as disposições do Direito ante-rior, deslocou a responsabilidade civil para o âmbito do serviço público prestado, dispondo em seu artigo 37, § 6.º, que: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Nesse contexto, é de se notar que o legislador deu menor importância à natureza jurídica da entidade prestadora do serviço, se pública ou privada, superando, assim, a discussão que girava em torno da aplicabilidade do art. 107, da Carta Federal de 1969, às empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações gover-namentais, permissionárias e concessionárias de serviços públicos e empreiteiras de obras públicas.

Anteriormente, discutia-se em sede doutrinária e jurisprudencial a

3 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 344-346.

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extensão do art. 107 da Constituição de 1969 às demais pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, mesmo que tipicamente privadas, vez que o referido dispositivo trazia em seu bojo a expressão “pessoas jurí-dicas de direito público”. Com a inovação trazida pela Constituição de 1988, o enfoque da responsabilidade objetiva deslocou-se para o âmbito da natureza pública do serviço prestado, estendendo a incidência do art. 37, § 6.º, às demais pessoas jurídicas mencionadas alhures.

Com efeito, o princípio da responsabilidade do Estado por ato de seus agentes, causadores de danos a terceiros, consagrado nas Constitui-ções anteriores, foi ampliado na de 1988, para abranger todas as pessoas jurídicas, inclusive as de direito privado prestadoras de serviços públicos, ressalvado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

4. As autarquias e sua responsabilidade civil

As autarquias, escreve Hely Lopes Meirelles,

“são entes administrativos autônomos, criados por lei, com personalidade jurídica de direito público interno, patrimônio próprio e atribuições estatais específicas. São entes autônomos, mas não são autonomias” 4.

No dizer de Bandeira de Mello, são

“órgãos indiretos da Administração, dotados de personalidade; as autarquias são pessoas jurídicas, criadas pelo Estado, com capacidade específica de direito público, com atribuições que lhes são conferidas pelo Estado como próprias, e, dessa forma, correspondem a órgãos indiretos do Estado, do-tadas de personalidade. Na verdade, o interesse peculiar de uma autarquia é, outrossim, interesse do Estado” 5.

Criadas sob regime puro de direito público, para a prestação de ser-viços públicos, às autarquias sempre se aplicaram os parâmetros do art. 4 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 307 5 Mello, Oswaldo Aranha Bandeira de apud CAHALI, Yussef Said. Princípios gerais de direito administrativo. II/185, n.21.2

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107 da Constituição de 1969, e atualmente, art. 37, § 6º, da Constituição de 1988. As soluções se revestem de maior complexidade, no entanto, quando são distorcidas as finalidades do órgão autárquico, quando este passa a exercer atividades econômicas, comerciais ou industriais.

Apresentando sua opinião, Cretella Júnior assevera que:

“as posições assumidas pelo direito positivo revelam que a autarquia princi-piou, no Brasil, a gerir normalmente serviços públicos, sob regime jurídico de direito público, passando mais tarde a gerir anomalamente outros tipos de serviços: economia, crédito, previdência, indústria. Tanto assim que vários autores brasileiros, ao classificarem as autarquias quanto à função ou quanto ao objetivo, criaram as denominações autarquias econômicas, autarquias industriais (Erima Carneiro, Mário Mazagão, Barros Leite e Nóbrega Filho). Ou “indústria”, “comércio”, “previdência”, “crédito”, “atividades econômicas” são serviço público – e, nesse caso, as autarquias estariam desempenhando atividades adequadas à sua peculiar natureza –, ou aquelas atividades não se enquadram na expressão serviço público e, nessa hipótese, a autarquia está com a finalidade “distorcida”” 6.

Ao desempenhar atividades tipicamente de natureza privada, vale dizer, atividade econômica de finalidade especulativa, despida de qual-quer conotação de serviço público, entendem os autores que as autarquias devem ser vistas sob a perspectiva da responsabilidade civil do direito comum, e não da responsabilidade objetiva da regra constitucional, eis que nesses casos importa inquirir o conteúdo da atividade ou do serviço prestado.

5. Entidades paraestatais e sua responsabilidade

Hely Lopes Meirelles, ao proceder a distinção entre autarquia e entidade paraestatal, ressalta que

“aquela é pessoa jurídica de direito público, com Função pública própria e típica, outorgada pelo Estado; esta é pessoa jurídica de direito privado, com função pública atípica, delegada pelo Estado; a autarquia integra o

6 Serviços comerciais e industriais do Estado. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. n. 81, p. 97-987 MEIRELLES, op. cit. p. 307

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organismo estatal; a entidade paraestatal (empresa pública, sociedade de economia mista e outras) justapõe-se ao Estado, sem com ele se identificar; aquela é intra-estatal; esta é extra-estatal; a autarquia está no Estado; o ente paraestatal situa-se fora do Estado, ao lado do Estado, paralelamente ao Estado”. 7

Acrescenta o ilustre Professor:

“entidades paraestatais são pessoas jurídicas de direito privado cuja criação é autorizada por lei específica (CF, art. 37, XIX e XX), com patrimônio público ou misto, para realização de atividades, obras ou serviços de in-teresse coletivo, sob normas e controle do Estado [...] Tem personalidade privada, mas realiza atividades de interesse público” 8.

Alguns autores chegam a contestar a natureza privada indiscrimi-nadamente reconhecida a tais entidades, tendo em vista as conotações publicísticas que, sob vários aspectos, apresentam.

Examinada a questão sob a perspectiva de incidência da regra constitucional do art. 37, § 6º, afirma, com propriedade, Yussef Said Cahali:

“Ora, desde que o Estado, na amplitude de seu poder discricionário, trans-fere a atividade concernente a serviços públicos propriamente ou a serviços próprios do Estado para outra pessoa jurídica – dotando-a de personali-dade jurídica pública ou privada, pouco importa –, mas compondo o seu patrimônio inteiramente com o dinheiro público, com a sua constituição acionária partilhada entre pessoas jurídicas de direito público, já se tinha como admissível, mesmo em face do art. 107 da Constituição de 1969, o reconhecimento da responsabilidade civil dimensionada nos moldes do citado preceito constitucional: a simples transferência do exercício daquelas atividades para entes dotados simplesmente por lei de personalidade jurídica privada, ainda que constituídos de capital inteiramente público, deixava incólume o princípio constitucional da responsabilidade objetiva pelos danos causados longa manu aos particulares. Daí termos concordado com Hely Lopes Meirelles quando pretendia que ‘não é justo e jurídico que a só transferência da execução de uma obra ou de um serviço originariamente público a particular descaracterize sua intrínseca natureza estatal e libere

8 Op. cit. p. 307

9 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p.128-129

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o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente, criando maiores ônus de prova ao lesado’.

Em condições tais, já se permitia afirmar que as empresas públicas, as so-ciedades de economia mista e as próprias fundações públicas, constituídas com recursos governamentais, desde que cometidas de serviços públicos propriamente ou de serviços próprios do Estado, transferidos pelo Poder Público, responderiam objetivamente pelos danos que nessa atividade viessem a causar aos particulares” 9.

Releva acrescentar, ao final, que, entendida a fundação pública, a empresa pública e a sociedade de economia mista como personalidades jurídicas de direito privado, torna-se necessário quanto a estas o exame da atividade que lhe foi cometida pelo Estado como finalidade de sua instituição. Prestando a entidade serviço público de qualquer natureza, não mais se permite que seja excluída da responsabilidade objetiva da regra constitucional.

6. Responsabilidade civil do Estado pelos atos do concessionário e do permissionário de serviço público

Em primeiro lugar, cumpre assentar que são inteiramente aplicá-veis ao permissionário de serviço público os princípios da responsabili-dade civil objetiva relativos ao concessionário do serviço público, tendo em vista a similitude das situações propiciadas por ambos os institutos de direito administrativo. Sendo assim, e exclusivamente por uma questão didática, faremos referência apenas a esse último instituto.

Ao proceder à análise da questão da responsabilidade civil pela reparação dos danos causados em razão das atividades das concessio-nárias de serviço público, dissentem a doutrina e a jurisprudência.

Paulo de Gusmão assinala que “como o concessionário age em nome próprio, sendo-lhe delegados pela Administração os poderes ne-cessários indispensáveis ao exercício do serviço público, segue-se ser ele 10 GUSMÃO, Paulo Dourado de apud CAHALI, Yussef Said. Textos Selecionados de Admi-nistração Pública, II/37

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responsável pelo serviço, respondendo também por todos os riscos”. 10 Esse modo de entender, todavia, deve ser visto com temperamentos.

Apresentando uma concepção mais mitigada, Celso Antônio Bandeira de Mello escreve que:

“o concessionário gere o serviço por sua conta, risco e perigos; daí que incumbe a ele responder perante terceiros pelas obrigações contraídas ou por danos causados, sem que ao Estado caiba o dever jurídico de acorrer para saldá-los; pode dar-se o fato, contudo, de o concessionário encontrar-se em situação de insolvência; uma vez que atuava “em nome do Estado”, conquanto por sua conta e risco, poderá ter lesado a terceiros por força do próprio exercício que o Estado lhe pôs em mãos, isto é, os prejuízos que causar poderão ter derivado diretamente do exercício de um poder cuja utilização só lhe foi possível por investidura estatal”.

Mais adiante, adverte:

“Neste caso parece indubitável que o Estado terá que arcar com os ônus daí provenientes. Pode-se, então, falar em responsabilidade subsidiária (não solidária) existente em certos casos, isto é, naqueles em que os gra-vames suportados por terceiros hajam procedido do exercício, pelo con-cessionário, de uma atividade que envolveu poderes especificamente do Estado. É razoável, então, concluir que os danos resultantes de atividade diretamente constitutiva do desempenho do serviço, ainda que realizado de modo faltoso, acarretam, no caso de insolvência do concessionário, responsabilidade subsidiária do poder concedente. O fundamento dela está em que o dano foi efetuado por quem agia em nome do Estado e só pôde ocorrer em virtude de estar o concessionário no exercício de atividade e poderes incumbentes ao cedente” 11.

A questão é de fato de extrema complexidade. Yussef Cahali, acolhendo, em parte, as ponderações de Bandeira de Mello, consigna que:

“a exclusão da responsabilidade objetiva e direta do Estado (da regra cons-titucional) em reparar os danos causados a terceiros pelo concessionário (como também o permissionário ou o autorizatário), assim admitida em princípio, não afasta a possibilidade do reconhecimento de sua respon-

11MELLO, op. cit. p. 57-58

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sabilidade indireta (por fato de outrem) e solidária, se, em razão da má escolha do concessionário a quem a atividade diretamente constitutiva do desempenho do serviço foi concedida, ou de desídia na fiscalização da maneira como este estaria sendo prestado à coletividade, vem a concorrer por esse modo para a verificação do evento danoso”.

E, assim, conclui:

“a questão insere-se em contexto mais amplo, de perquirição da ‘responsa-bilidade do Estado por omissão na fiscalização’; aqui, a responsabilidade do Poder Público é de ser deduzida em função da omissão de fiscalização na execução pela empresa privada de serviço concedido, autorizado ou permitido, sujeito à fiscalização” 12.

E, nessa contextura, pretende o autor que o Poder Público con-cedente responda objetivamente, na forma do art. 37, § 6.º, da Consti-tuição Federal, pelos danos causados pelas empresas concessionárias, em razão da presumida falha da Administração na escolha da conces-sionária ou na fiscalização de suas atividades, desde que a concessão tenha por objeto a prestação de serviço público. Assim, com espeque no princípio da causação adequada, responde direta e solidariamente, desde que demonstrado que a falha na escolha ou na fiscalização deu causa ao evento danoso.

Sergio Cavalieri 13, ao revés, entende que o Estado responde apenas subsidiariamente, não sendo possível falar em solidariedade, vez que esta decorre da lei ou do contrato. Inexistindo norma legal que atribua solidariedade ao Estado com os prestadores de serviços públicos, sua responsabilidade se reveste de caráter subsidiário, e advém da falha na escolha do prestador do serviço.

Em se tratando de danos oriundos de comportamentos alheios à própria prestação do serviço público, Yussef Cahali entende que, nesse ponto, a responsabilidade do Poder Público é subsidiária ou

12 CAHALI, op. cit. p. 150-151

13 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 173-174

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complementar, em função da omissão culposa na fiscalização das atividades da empresa concessionária.

Após a Constituição de 1988, a jurisprudência vem se firmando no sentido da responsabilidade objetiva das empresas concessionárias em face da regra constitucional do art. 37, § 6.º. Alguns julgados isolados, entretanto, ainda fundamentam a responsabilidade objetiva da prestadora de serviço público em função da teoria do risco ligado à exploração de um serviço perigoso.

Ao final, transcrevam-se alguns julgados que têm por fim elucidar os pontos acima desenvolvidos.

“A responsabilidade da concessionária de serviço público, pela fiscalização da rede transmissora de energia elétrica, é inquestionável. Como tem sido reiteradamente proclamado, a empresa concessionária de fornecimento de energia elétrica explora um serviço perigoso, devendo responder, por isso, pelos danos ligados à exploração” 14.

“A CEEE (Cia. Estadual de Energia Elétrica – sociedade de economia mista), pessoa jurídica equiparada à de direito público, agente de presta-ção de serviço de produção e distribuição de energia elétrica, responsável é pela reparação dos danos causados a terceiros, em decorrência do mau funcionamento do serviço (queda de fios sobre o leito de rua – art. 37, § 6.º, da CF)” 15.

“Responsabilidade civil – Danos causados por concessionária a terceiro em virtude de ato unilateral da concedente – Art. 37, § 6.º, da Constituição – Ação procedente. Ainda que indiretamente os danos sobrevenham por ato unilateral da concedente, perante os subcontratantes a responsabilidade cabe à concessionária. De outro modo se denegaria proteção aos direitos subjetivos dos contratantes de boa-fé” 16.

“A responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito privado, prestadora do serviço público de transporte coletivo de passageiros é, nos termos do art. 37, § 6.º, da Constituição, objetiva. O referido dispositivo constitucional

14 TJSP, 5.ª C., 16.3.8915 TARS, 1.ª C., 14.8.90 – Julgados 77/21316 TJSP, 2.ª C., 1.3.9417 TJDF, 1.ª T., 3.8.94. DJU, III, p. 8.750.

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abrigou a doutrina do risco administrativo e não a do risco integral. Fica a vítima dispensada de provar a culpa ou dolo do agente. Pode, todavia, o Poder Público ou concessionário alegar a culpa exclusiva da vítima que, se demonstrada, afasta a responsabilidade civil ”.17

7. Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função legislativa

A questão da responsabilidade civil do Estado legislador é posta em termos controvertidos, mostrando-se que de um lado há os que sus-tentam a tese da irresponsabilidade, pretendendo que em caso algum a ação normativa danosa do Poder Público possa ensejar o ressarcimento, pelo Estado, de prejuízos causados a particulares, e de outro, os que entendem que, se do procedimento legislativo resulta lesão aos inte-resses de um cidadão, ou de um certo número de indivíduos, o Estado está sujeito à reparação, nos moldes do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

No tocante ao exercício inconstitucional da função de legislar e aos prejuízos porventura decorrentes do ato inconstitucional, doutri-na e jurisprudência, há muito, reconhecem o direito de o indivíduo, prejudicado pela atuação legislativa danosa, pleitear a reparação do injusto sofrido. A discussão gira em torno da necessidade ou não da declaração de inconstitucionalidade pelos Tribunais para ensejar a pretensão indenizatória.

Levada a matéria aos tribunais, predomina o entendimento de que a sentença que simplesmente recusa aplicação da lei no caso concreto, a pretexto de sua inconstitucionalidade, deixa incólume a norma legal, e não enseja a responsabilidade do Poder Público, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei exige quorum e procedimento específicos.

Em julgado de 30 de maio de 1944, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo deixou assentado que:

“Sem dúvida, as leis inconstitucionais podem legitimar o pedido de re-

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paração de dano que porventura tenham causado. Mas é indeclinável que essa inconstitucionalidade tenha sido reconhecida e declarada pelo Poder Judiciário: “uma vez reconhecida a inconstitucionalidade pelo tribunal”, como diz Carvalho Santos, repetindo Pedro Lessa – Do Poder Judiciário, p. 164”. (RDA 8/133)

Merece consideração, igualmente, a questão da responsabilidade do Estado por ato legislativo regular. Para Themistocles Cavalcanti:

“não parece sustentável a responsabilidade do Estado por ato legislativo, ou, em outras palavras, que o Poder Judiciário obrigue o Estado a indenizar os efeitos dos atos legislativos, porque ao Poder Legislativo cabe, como função específica, a criação das normas de convivência social, e não seria lícito atribuir a outro Poder esta competência”.

Adiante, arremata:

“se o ato legislativo produz dano a terceiros, se as suas conseqüências podem causar prejuízo, ao próprio legislador cabe verificar e determinar os danos sujeitos a indenização e fixar as normas de equilíbrio econômico, a fim de restabelecer a justa distribuição dos prejuízos e dos encargos pela coletividade”. 18

Com efeito, se os encargos rompem a devida proporcionalidade em decorrência do ato legislativo, a reparabilidade dos prejuízos cau-sados pela medida não pode restar entregue ao arbítrio do legislador, sob pena de se corroborar o princípio da irresponsabilidade do Estado, quando não prevista expressamente a obrigação de indenizar.

Num ponto, aliás, parece haver harmonia entre os autores. Sempre que o provimento legislativo implique ruptura da igualdade dos cidadãos relativamente aos encargos públicos, mister se faz o reconhecimento da responsabilidade do Estado, a sugerir o direito à reparação. Gerard Cornu doutrina que a responsabilidade do Estado, pelo fato de suas leis, “compensa o rompimento da igualdade dos 18 CAVALCANTI, Themistocles apud CAHALI, op. cit. p. 666.

19 CORNU, Gerard apud PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 137.

20 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 631

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cidadãos diante da lei”. 19

A todas as luzes, a ressarcibilidade do dano injusto decorrente da atividade legislativa não pode ser colocada em termos de sobera-nia do Poder Legislativo e de imunidades parlamentares, porquanto conduziria à irresponsabilidade. Aguiar Dias, amparado no Magistério de Duez, assevera que, “se é preciso tolerar que os indivíduos sejam sacrificados à razão do Estado, que se lhes conceda a compensação pecuniária do sacrifício imposto”. 20

III. Excludentes da responsabilidade civil do Estado

8. Nexo de causalidade. Dano. Atividade administrativa.

A Constituição da República de 1988, a exemplo das Consti-tuições anteriores, abraçou a teoria da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas elencadas em seu art. 37, § 6º. Ocorre, entretanto, que a chamada teoria do risco administrativo não leva à responsabilidade objetiva integral do Poder Público. Na verdade, dispensa-se à vítima a prova da culpa do agente da Administração ou do particular prestador do serviço público, cabendo a esta (Administração) a demonstração da culpa total ou parcial do lesado, com vistas à exclusão ou atenuação de sua responsabilidade.

Ao ofendido basta a prova do nexo causal entre o dano e a ati-vidade exercida pelo agente público. Sendo assim, torna-se imperioso demonstrar a conexão causal, pois se o dano provém de outra circunstân-cia, o Estado não pode ser responsabilizado, vez que ausente a relação de causa e efeito.

Nesse ensejo, convém lembrar o entendimento esposado pelos Ministros da 2ª Turma da Suprema Corte, no julgamento do Recurso

21 RT 743/175

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Extraordinário n.º 121.130-0/SP, relator Ministro Francisco Rezek, decisão publicada no Diário de Justiça da União, de 09.05.97: 21

“A detenção por policiais de agente que se encontrava em estado de embria-guez e promovendo desordens na via pública não gera o dever do Estado de indenizar a família pelo fato de o preso se suicidar nas dependências da cadeia pública onde estava recolhido, pois inexiste a demonstração da ocorrência de relação de causa e efeito entre o ato do Estado e o evento danoso”.

Em determinadas situações o nexo de causalidade não aparece com a necessária precisão e clareza. Isso se dá, precipuamente, nos casos de atos omissivos da Administração, também identificados como falha anônima do serviço. Nessas hipóteses, impende observar se o ato omitido seria razoavelmente exigível, tendo o evento danoso causa ex-clusiva na deficiência ou falha do serviço público. Assim vêm decidindo os nossos Tribunais. Vejamos a seguir algumas ementas de acórdão das Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“A Municipalidade responde por danos causados por enchentes a imóvel, se decorrentes de mau funcionamento do serviço a que se obrigou.” 22

“Enchente do rio Tamanduateí, na Capital, que causa dano a particulares – Responsabilidade civil da Prefeitura Municipal de São Paulo decorrente da culpa administrativa ou culpa anônima do serviço.” 23

“Não viola a Constituição, nem nega vigência ao Código Civil, o acórdão que condena Município a indenizar prejuízos sofridos por particulares em conseqüência do transbordamento das águas de rio em virtude de chuvas torrenciais que, apesar de registradas no passado, não foram objeto de cautelas técnicas da Prefeitura, a fim de aumentar-lhe a capacidade de descarga – Culpa anônima do serviço público.” 24

22 TJSP, 5ª C., 5.4.79, RT 530/70 23 TJSP, 6ª C., 28.5.71, RJTJSP 17/173 24 STF, 1ª C., 23.10.93, RTJ 70/70425 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Responsabilidade extracontratual do Estado por compor-tamentos administrativos. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 70, n. 552, p. 19, ago. 1981

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A responsabilidade civil do Estado, compreendida num con-texto mais amplo, pode ser definida como sendo a obrigação legal de ressarcir os danos causados a terceiros por suas atividades. Nesse contexto, compreende-se a reparação dos danos causados pelos atos ilícitos, como também os danos injustos causados por uma atividade lícita da Administração.

De peculiar relevância é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“no caso de dano por comportamento comissivo, a responsabilidade do Estado é objetiva. Responsabilidade objetiva é aquela para cuja irrupção basta o nexo causal entre a atuação e o dano por ela produzido. Não se cogita de licitude ou ilicitude, dolo ou culpa” 25.

O dano injusto, ainda que decorrente de uma atividade regular do Estado, enseja a responsabilidade. Essa assertiva encontra fundamento no princípio segundo o qual a atividade do Estado se exerce no interesse de toda a coletividade, de modo que os danos que dela resultem não podem pesar mais fortemente sobre uns e menos sobre outros. Se, da intervenção estatal, resulta prejuízo para alguns, a coletividade deverá repará-lo, exista ou não culpa por parte dos agentes públicos. Não seria justo que apenas certos administrados sofressem sozinhos os danos acaso resultantes da atividade exercida em benefício da coletividade.

Com muita propriedade leciona Caio Tácito:

“A ação do Estado é juridicamente perfeita, constituindo forma regular de limitação administrativa ao direito individual; a causa determinante da indenização não é a mesma que fundamenta a reparação do dano pelo emprego anormal ou excessivo do poder administrativo; tratando-se de um benefício à coletividade, desde que o ato administrativo lícito atende ao interesse geral, o pagamento da indenização redistribui o encargo, que, de outro modo, seria apenas suportado pelo titular do direito”. 26

26 TÁCITO, Caio. Tendências atuais sobre a responsabilidade civil do Estado. Revista de Direito Administrativo, n. 55, p. 271.

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Pode ocorrer, no entanto, que o dano não resulte de qualquer atividade ou omissão do Poder Público. Quando o processo causal advém de caso fortuito ou de força maior, ou, ainda, quando a culpa pelo evento deve ser imputada à própria vítima, desfigura-se a respon-sabilidade estatal, posto que, neste caso, o vínculo de causa e efeito encontra origem nas forças incontroláveis da natureza ou na conduta temerária do próprio lesado.

Colha-se a decisão da E. 3ª. Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, citando Planiol, in Traité Élémentaire de Droit Civil, 3. ed., 1949, t. II, n. 728:

“E, logo adiante enumera as causas estranhas, insuperáveis e imprevisíveis, que exoneram o devedor: eventos atmosféricos, tempestade, neve, geleira, inundação, tremor de terra. Por aí já se deduz que a inundação conseqüen-te de chuvas muito fortes escapa da responsabilidade da Administração Pública, sobretudo da Administração Municipal, porque são estranhas às suas atividades, ainda que fossem previsíveis, mas, insuperáveis, ante a impossibilidade de a Prefeitura evitar a enchente dos rios, e seu trans-bordamento, com trabalhos normais de defesa contra as inundações, no perímetro urbano, ou no território a ela sujeito, em face do extraordinário e incontrolável crescimento da metrópole paulista.” 27

Na mesma linha, entenderam a 4ª e a 7ª Câmara do mesmo Tri-bunal:

“Responsabilidade civil do Estado – Menor que morreu fulminado por raio enquanto se abrigava sob uma árvore – Hipótese em que a vítima não agiu com prudência – Inexistência, ademais, de obrigação legal da Muni-cipalidade na mantença íntegra de um pára-raios adrede instalado no local. Não pode o Estado em qualquer de seus degraus ser responsabilizado por evento indubitavelmente lastimável, mas que porém não ensejou nem por ação nem por omissão” 28.

“Indenização – Fazenda Pública – Responsabilidade civil – Morte de menor em razão de correnteza provocada por enchente – Hipótese em que houve imprudência da vítima – Inexistência de relação causal entre a pretendida

27 TJSP, 3.ª C., 26.4.73, RJTJSP 30/3628 TJSP, 4ª C., 30.12.93, JTJ 154/9329 TJSP, 7ª C., 30.8.87, RJTJSP 111/133

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omissão da Municipalidade e o dano” 29.

9. Caso fortuito ou de força maior

No âmbito da responsabilidade civil do Estado, ao contrário do que ocorre no plano do direito privado, o caso fortuito e a força maior não se confundem nas suas conseqüências. Importa, nesse momento, fazer a distinção entre os dois institutos.

Yussef Said Cahali, valendo-se dos ensinamentos de Themistocles Cavalcanti, consigna que:

“se a força maior decorre de um fato externo, estranho ao serviço, o caso fortuito provém do seu mau funcionamento, de uma causa interna, inerente ao próprio serviço; admite-se, por conseguinte, a exclusão da responsabili-dade no caso de força maior, subsistindo, entretanto, no caso fortuito, por estar incluído este último no risco do serviço; na força maior, nenhuma interferência tem a vontade humana, nem próxima nem remotamente, enquanto que, no caso fortuito, a vontade aparecia na organização e no funcionamento do serviço.” 30

No mesmo diapasão assevera Themistocles Cavalcanti:

“caso fortuito e força maior têm elementos comuns, a imprevisibilidade e a irresistibilidade, mas separam-se quanto à interioridade (caso fortuito) ou exterioridade (força maior); enquanto na força maior é um elemento estranho à atividade exercida, e da qual decorre a obrigação, que determina o dano, no caso fortuito é uma causa interna, inerente ao próprio serviço, à própria atividade, que ocasionou o dano: força maior será a tempestade, será a inundação, será o raio; caso fortuito será o cabo de uma instalação que se rompe, será a peça de uma máquina que se despenca, produzindo acidente e danos materiais ou pessoais”. 31

Ponto curial nessa discussão diz respeito à inevitabilidade do

30 CAVALCANTI, Themistocles apud CAHALI, Yussef Said. Tratado de direito administra-tivo. p. 415 31 CAVALCANTI, op. cit. p. 417. 32 FONSECA, Arnoldo Medeiros. Caso fortuito ou de força maior, n. 103, p. 148-149.

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evento. Trata-se de questão de fato, a ser investigada em cada caso concreto, considerando-se as possibilidades humanas, bem como o grau de diligência a que o agente estivesse obrigado. A esse respeito, leciona Arnoldo Medeiros da Fonseca: “Às vezes, a imprevisibilidade do acontecimento, o modo súbito e inesperado pelo qual se verifique, será a razão determinante de sua inevitabilidade. Outras vezes a própria irresistibilidade do evento é o que o torna inevitável”. 32

Impende observar que a Administração não poderá ser respon-sabilizada pela reparação do dano sofrido pelo particular, quando pro-vocado por eventos inevitáveis da natureza, e se nenhuma participação concorrente lhe pode ser imputada, seja porque razoavelmente não seria de exigir-se do Estado a realização de obras que pudessem evitar o resultado danoso, seja porque as realizadas seriam as únicas razoavel-mente exigíveis. Releva acrescentar, entretanto, que tanto o caso fortuito quanto a força maior representam exceção substancial, e, como tal, o ônus probatório é atribuído à defesa ex vi do art. 333, II, do CPC.

A propósito, ajusta-se perfeitamente ao tema a lição do saudoso publicista Hely Lopes Meirelles, in verbis:

“O que a Constituição distingue é o dano causado pelos agentes da Ad-ministração (servidores) dos danos ocasionados por atos de terceiro ou fenômenos da natureza. Observe-se que o art. 37, § 6.º, só atribui respon-sabilidade objetiva à Administração pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte só cobriu o risco administrativo da atuação ou inação dos servidores públicos; não responsabilizou objetivamente a Administração por atos predatórios de terceiros nem por fenômenos naturais que causem danos aos particulares. Para a indenização destes atos ou fatos estranhos à atividade administrativa observa-se o princípio geral da culpa civil, manifestada pela imprudência, negligência ou imperícia na realização do serviço público que causou ou ensejou o dano. Daí porque a jurisprudência, mui acertadamente, tem exigido a prova de culpa da Administração nos casos de depredações por multidões e de enchentes e vendavais que, superando os serviços públicos existentes, causam danos aos particulares. Nessas hipóteses, a indenização

33 MEIRELLES, op. cit. p. 331

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pela Fazenda Pública só é devida se se comprovar a culpa da Administra-ção. E na exigência do elemento subjetivo culpa não há qualquer afronta ao princípio objetivo da responsabilidade sem culpa, estabelecido no art. 37, § 6.º, da CF, porque o dispositivo constitucional só abrange a atuação funcional dos servidores públicos, e não os atos de terceiros e os fatos da natureza. Para situação diversa, fundamentos diversos”. 33

10. O fortuito interno e o externo

Além da distinção entre caso fortuito e força maior, pretende a doutrina mais moderna proceder à divisão do caso fortuito em interno e externo. Outrossim, a jurisprudência vem se utilizando da referida terminologia em diversos julgados.

Entende-se por fortuito interno o fato que, embora imprevisível e, por assim dizer, inevitável, se relaciona com os riscos da atividade desenvolvida pelo agente. Já o fortuito externo, não obstante a sua im-previsibilidade e inevitabilidade, é fato estranho à atividade do agente, e não guarda qualquer relação com esta, como fenômenos da natureza. De se observar que o fortuito externo acaba por se confundir com a força maior, razão pela qual alguns autores preferem se utilizar dessa última denominação.

Em acórdão da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no julgamento da Apelação Cível n.º 4.510/97, o relator – Des. Sergio Cavalieri Filho, procedendo à distinção entre o fortuito interno e o externo, deixou assentado que:

“Sem entrar na polêmica questão de se fazer distinção entre o caso fortui-to e a força maior, que o Código Civil parece ter equiparado (art. 1058, parágrafo único), cumpre, todavia, registrar que os modernos civilistas e a melhor jurisprudência, tendo em vista a presunção de responsabilidade do transportador, dividem o fortuito em interno e externo. Entende-se por fortuito interno o fato imprevisível, e por isso inevitável, que se liga à or-ganização da empresa, que se relaciona com os da atividade desenvolvida pelo transportador. O estouro de um pneu do caminhão, o incêndio do veículo, o mal súbito do motorista, etc. são exemplos do fortuito interno,

34 CAVALIERI, op. cit. p. 247.

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por isso que, não obstante acontecimentos imprevisíveis, estão ligados à organização do negócio explorado pelo transportador.

O fortuito externo é também fato imprevisível e inevitável, mas estranho à organização do negócio. É fato que não guarda nenhuma ligação com a empresa, como fenômenos da Natureza, enchentes, tempestades, etc. Alguns autores reservam ao fortuito externo a denominação de força maior.

À luz destes princípios, urge indagar: onde se situa o assalto à mão armada, do qual resulta o roubo de carga e do próprio caminhão que a transportava, como na espécie dos autos? Não obstante alguma jurisprudência em sentido contrário, o entendimento consagrado pela Suprema Corte e pelo colendo Superior Tribunal de Justiça é no sentido de considerar o fato doloso do terceiro, também chamado de fato exclusivo de terceiro, como configurador do fortuito externo, excludente da responsabilidade do transportador. E as-sim é porque, além de inevitável, é fato estranho à organização do negócio; não guarda nenhuma ligação com os riscos do transportador. O transporte, em casos tais, não é causa do evento; é apenas a sua ocasião” 34.

11. Culpa exclusiva da vítima ou culpa concorrente

Outro fator determinante de exclusão da responsabilidade estatal concerne ao procedimento doloso ou gravemente culposo do próprio ofendido, sem que nenhuma falha da Administração ou culpa anônima do serviço possa ser identificada como causa na verificação do evento danoso, ainda que indiretamente concorrente.

Demonstrado que o evento ocorreu por culpa exclusiva da vítima, não tendo a administração concorrido de qualquer modo para o mesmo, não há que se cogitar da responsabilidade indenizatória do Estado.

Colha-se, no ensejo, o entendimento esposado pela 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal:

“Embora tenha a Constituição admitido a responsabilidade objetiva, acei-tando mesmo a teoria do risco administrativo, fê-lo com temperamentos, para prevenir os excessos e a própria injustiça. Não obrigou, é certo, à

35 STF, 2ª T., 5.12.89, rel. Francisco Resek, RTJ 131/417 e RDA 179/18036 RSTJ 22/386

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vítima e aos seus beneficiários, em caso de morte, a prova da culpa ou dolo do funcionário, para alcançar a indenização. Não privou, todavia, o Estado do propósito de eximir-se da reparação, alegando que o dano defluíra do comportamento doloso ou culposo da vítima” 35.

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, por sua 1.ª Turma, decidiu:

“Nosso ordenamento jurídico constitucional acolheu a teoria do risco ad-ministrativo, que só exige, para configurar a responsabilidade do Estado, a existência do dano e do nexo de causalidade, embora permita seja feita a prova da culpa da vítima para atenuar ou ilidir a responsabilidade da Administração” 36.

Também nesse contexto a decisão da 3.ª Câmara do Tribunal de Alçada Cível de São Paulo:

“A teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da Administração quanto aos danos causados por seus agentes a terceiro, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir ou atenuar a indenização. Isto porque o risco administrativo não chega ao extremo do risco integral, não significando que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular. Significa apenas e tão-somente que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização” 37.

Com efeito, não há que se falar em exclusão da responsabilidade estatal quando o dano resulta de ação conjunta do Estado e do lesado, mas por uma questão didática será o tema melhor abordado nesse ca-pítulo.

Concorrendo ambos para a geração do resultado lesivo – Estado e administrado, haverá atenuação do quantum indenizatório, a ser de-cidido na proporção em que cada um haja contribuído para a produção do evento.

37 RT 677/13838 TJSP, 1.ª C, RT 259/227

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Assim:

“Se a Municipalidade, ao executar obras de nivelamento de via pública, não obedeceu ao perfil aprovado por lei, e, por seu lado, o proprietário do terreno, nela situado, ao fazer a construção, não obedeceu ao nível de so-leira determinado no alvará, a responsabilidade deles pelo desnivelamento é fixada proporcionalmente” 38.

Aduzam-se os ensinamentos de Themistocles Cavalcanti sobre o tema:

“a própria teoria objetiva precisa ser dosada, por uma justa distribuição dos encargos decorrentes da responsabilidade do Estado, e deve atingir até a própria vítima, cujos prejuízos devem ser reparados eqüitativamente, evitando-se o aproveitamento, o locupletamento indevido ou excessivo, fonte de enriquecimento sobre a coletividade. À jurisprudência, em espe-cífico – aos Tribunais, cabe a tarefa de verificar o justo limite da reparação, levando também em conta a participação da vítima no fato danoso, fazendo também sobre ela recair, por meio de uma redução da indenização, a parte de responsabilidade que lhe deve ser atribuída. Nisso é que consiste o critério objetivo, na distribuição dos encargos, de acordo com a realidade dos fatos, e das circunstâncias que os cercarem, a apreciação objetiva, real, da responsabilidade” 39.

Sobre o princípio da igualdade dos ônus e encargos entendeu o Supremo Tribunal Federal, 2.ª T., relator Min. Carlos Velloso, dando provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, in verbis:

“A consideração no sentido da licitude da ação administrativa é irrelevante, pois o que interessa é isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais” 40.

12. Concorrência de causas

Em se tratando de causas concorrentes, a responsabilidade do Es-39 CAVALCANTI apud CAHALI, op. cit. p. 445.40 RTJ 164/143, JSTF 164/143, RT 682/23941 RJTJSP 23/173 e RT 455/74

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tado pode ser mitigada, ou até mesmo elidida, conforme a circunstância. Nas hipóteses em que o evento lesivo tiver origem numa pluralidade de fatores concorrentes, todos os fatores devem ser considerados na determinação da indenização. A responsabilidade indenizatória do Estado deve ser atenuada por força do princípio da divisão dos riscos, o qual se coaduna com a teoria objetiva, especificada pelo risco admi-nistrativo, vez que esta não impõe à Administração o reconhecimento do risco integral.

A 2ª. Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo vem enfrentando a questão nos seguintes termos:

“Ademais, apresentando-se as inundações periódicas em causa como fato da Natureza que configura a força maior, a Administração Pública só responde pela agravação dos danos oriundos de falha de seus serviços”.

(...) “Se o evento natural não tiver sido causa exclusiva mas concausa, ha-verá lugar a uma indenização limitada à parte de dano devida unicamente à falta de obra pública” 41.

“Como os danos provocados resultaram não só da violência das chuvas, mas, também, de culpa de prepostos da CESP, que não deram ao problema do excessivo afluxo de águas às barragens da Usina de Barra Bonita o tratamento técnico compatível com as circunstâncias do momento, a empresa só deve ser condenada a pagar a metade da indenização devida, pois sua culpa concorreu com fato da Natureza, imputável a quem quer que seja”. 42

“Responsabilidade civil do Município – Desmoronamento de muro por in-vasão de águas de córrego ribeirinho – Má conservação do córrego – Muro lateral de propriedade vizinha construído sem observância das exigências técnicas – Concorrência de culpas – Indenização devida por metade” 43.

Tradicionalmente, o Tribunal de Justiça de São Paulo perfilhava

42 RT 564/73 e RJTJSP 79/171 43 RT 550/106 44 TJSP, Cs. Reuns., 10.12.69 – RJTJSP 13/241 45 RT 453/97

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entendimento diverso: “pouco importa a existência de concausas quando os danos provêm de faltas anônimas nos serviços públicos de várias entidades públicas, ainda que uma daquelas provenha de um suposto fato fortuito, qual uma chuva anormal” 44.

Esse modo de entender, no entanto, levaria a Administração a uma responsabilidade que excede os limites delimitados pela nossa Consti-tuição Federal. A responsabilidade estatal, como já foi dito alhures, se consubstancia na verificação do nexo de causalidade entre o dano e a atividade administrativa. A concausa, como causa paralela ou conco-mitante, concorrente com outra para a produção do efeito, não exime o responsável da obrigação de reparar. Mas, ocorrendo a concorrência de culpas, essa responsabilidade há de ser atenuada, e a indenização fixada proporcionalmente.

“O entendimento segundo o qual o nosso direito constitucional, no tocante à responsabilidade civil do Estado, ignora a existência de concausas ou fatores estranhos concorrentes não é o que prevalece na doutrina e na ju-risprudência. A coexistência de fatores concorrentes poderá, conforme as circunstâncias, elidir ou atenuar a responsabilidade da Administração” 45.

Do mesmo modo foi o posicionamento da 3ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o recurso de Apelação n.º 175975, em 27.3.89:

“Responsabilidade civil do Estado – Danos causados a estabelecimento comercial pelo transbordamento das águas do rio Tamanduateí – Coexis-tência de fatores na provocação do evento: interveniência de fenômenos naturais e mau funcionamento no serviço público – Redução do quantum indenizatório. A coexistência de tantos fatores no evento impõe a redução do quantum indenizatório. É o que a doutrina mais recente vem recomen-dando” 46.

Nota-se, enfim, que não importa o fundamento da responsabilida-de da Administração, se fundada no risco, em qualquer das modalidades enumeradas pela doutrina, na culpa anônima ou na falha individualizada

46 TJSP, 3.ª C., 27.3.89.

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do funcionário, todas as demais concausas devem ser consideradas com vistas à atenuação dessa responsabilidade, sob pena de se extravasarem os limites da responsabilidade objetiva.

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