Hermenêutica Jurídica

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Hermenutica Jurdica

ndicePRLOGO _______________________________________________________ 4 PRELDIO ______________________________________________________ 5 1. Hermenutica e interpretao _______________________________________ 5 2. Hermenutica e compreenso________________________________________ 8 3. A polifonia contempornea________________________________________ 13 4. Verdade e seduo _____________________________________________ 16 5. Estrutura do trabalho ___________________________________________ 19 CAPTULO I - DO NATURALISMO AO POSITIVISMO________________________ 20 1. O direito moderno _____________________________________________ 20 2. Crise do jusracionalismo _________________________________________ 26 3. A formao do positivismo ________________________________________ 30 CAPTULO II - O LEGALISMO POSITIVISTA _____________________________ 32 1. A reduo do direito lei_________________________________________ 32 2. A interpretao do novo direito _____________________________________ 37 3. A hermenutica imperativista ______________________________________ 41 4. A Escola da Exegese ___________________________________________ 44 CAPTULO III - O POSITIVISMO NORMATIVISTA _________________________ 50 1. Desenvolvimento de uma conscincia histrica ____________________________ 50a) Do imperativismo ao historicismo __________________________________________________ 50 b) Entre juristas e gramticos ________________________________________________________ 54

2. Do historicismo ao conceitualismo: Savigny _____________________________ 57a) A introduo do historicismo______________________________________________________ 57 b) Da histria ao sistema ___________________________________________________________ 61

3. A jurisprudncia dos conceitos______________________________________ 64a) Da tcnica cincia _____________________________________________________________ 64 b) Por uma cincia do direito ________________________________________________________ 67 c) Anlise dos conceitos: a cincia do direito como qumica jurdica __________________________ 71

4. Hermenutica sistemtica _________________________________________ 75a) Para alm da vontade do legislador _________________________________________________ 75 b) Dos conceitos ao cdigo _________________________________________________________ 80 c) A dupla sistematizao do direito___________________________________________________ 82

5. Teoria do ordenamento jurdico _____________________________________ 84a) Tipos de sistemas: orgnicos e lgicos _______________________________________________ 84 b) Caractersticas do sistema jurdico __________________________________________________ 86 Fechamento_________________________________________________________________ 86 Completude: o problema das lacunas _____________________________________________ 87 Coerncia: o problema das antinomias ____________________________________________ 88

CAPTULO IV - O POSITIVISMO SOCIOLGICO __________________________ 91 1. A introduo do argumento teleolgico ________________________________ 91a) Normativismo e liberalismo _______________________________________________________ 91 b) A crise da legislao novecentista___________________________________________________ 93

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c) Por uma verdadeira cincia do direito ______________________________________________ 105 d) Interpretao teleolgica ________________________________________________________ 110

2. Correntes de matriz sociolgico _____________________________________111a) Precursores de uma jurisprudncia teleolgica: Bentham e Jhering ________________________ b) A jurisprudncia sentimental do bom juiz Magnaud ___________________________________ c) A escola da livre investigao cientfica de Franois Gny _______________________________ d) O movimento do direito livre de Ehrlich e Kantorowicz________________________________ e) Escola sociolgica norte-americana ________________________________________________ 111 115 119 123 127

CAPTULO V - NEOPOSITIVISMO _____________________________________129 1. Entre poltica e direito___________________________________________129a) A politizao velada do discurso hermenutico _______________________________________ 129 b) O esclarecimento da politizao___________________________________________________ 132 c) O neopositivismo aplicado ao direito_______________________________________________ 135

2. A Teoria Pura do Direito ________________________________________139a) A estrutura do direito ___________________________________________________________ 139 b) A hermenutica kelseniana_______________________________________________________ 141 c) Recepo da teoria pura do direito _________________________________________________ 148

3. O Realismo jurdico ____________________________________________149 4. Os limites do neopositivismo _______________________________________153 CAPTULO VI - O SENSO COMUM DOS JURISTAS__________________________154 1. O novo senso comum ____________________________________________154 2. A Jurisprudncia dos interesses _____________________________________161 3. O sentido objetivo da lei__________________________________________165 Francesco Ferrara e a mens legis _________________________________________________ 167 Carlos Maximiliano e o sentido objetivo da lei ________________________________________ 169

4. Consolidao do argumento teleolgico_________________________________172 CAPTULO VII - O CRUZAMENTO DOS CAMINHOS: HERMENUTICA FILOSFICA E JURDICA __________________________________________________________175 1. Os limites metodolgicos da hermenutica tradicional _______________________175 2. Betti e a busca de uma metodologia para a hermenutica jurdica _______________179a) Definio dos problemas a serem enfrentados ________________________________________ b) O enquadramento da hermenutica jurdica nos quadros de uma hermenutica geral __________ c) Os tipos de interpretao ________________________________________________________ d) Os quatro cnones hermenuticos _________________________________________________ 179 180 181 182

3. Hermenutica e mtodo __________________________________________184 CAPTULO VIII - DA TEORIA DA INTERPRETAO TEORIA DA ARGUMENTAO _________________________________________________________________189 1. Entre verdade e validade _________________________________________189 2. Relendo Aristteles: o retorno da retrica_______________________________193 3. A reviravolta pragmtica no direito __________________________________199 4. A vertigem do abismo ___________________________________________202 5. Da impessoalidade moderna ao auditrio universal ________________________205 6. Do auditrio universal pragmtica universal ___________________________211 7. A teoria da argumentao de Alexy__________________________________220

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CAPTULO IX - PARA ALM DAS TEORIAS DA ARGUMENTAO ______________227 1. A falncia das teorias da argumentao _______________________________227 2. Entre perspectivas externas e internas_________________________________231 3. A fundao de uma nova mitologia jurdica _____________________________235 EPLOGO ______________________________________________________240

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ______________________245

PrlogoEste um trabalho sedimentar, pois ele constitudo de vrias camadas, escritas em tempos diversos, que reunidas contm as reflexes sobre hermenutica que tenho desenvolvido e reelaborado desde que me tornei professor desta matria, em 2000. Em sua conformao, os estratos mais antigos esto no centro do trabalho e, medida que nos aproximamos do incio e do fim, eles se tornam mais recentes. O crescimento do texto foi menos planejado que orgnico, pois seguiu as intuies e as necessidades de cada momento. Muitos dos trechos foram reescritos vrias de vezes ao longo dos anos, sofrendo grandes alteraes tanto de contedo quanto de estilo. E devo confessar que foi somente ao escrever o eplogo que ficou claro para mim que eu leio este livro como uma narrativa da gradual historicizao do pensamento hermenutico, tanto na filosofia quanto no direito. Durante o processo de escrita, o sentido geral permaneceu relativamente aberto, e sempre me foi difcil descrever a pesquisa de uma maneira unitria. Mas somente quando o crculo se fecha que elaboramos um sentido para a obra, e creio que isso s foi possvel porque agora eu posso olh-lo mais na perspectiva de leitor que na de autor. Por maior que seja o esforo autoreflexivo da hermenutica, o autor sempre muito opaco a si mesmo, aos seus motivos inconscientes, aos seus preconceitos silenciosos, s lacunas do seu horizonte de compreenso. Por isso mesmo que o olhar externo enriquece a interpretao das vozes alheias, de tal modo que o sentido de uma obra construdo nessa espcie de dilogo virtual que a leitura propicia e tambm no dilogo efetivo com os vrios envolvidos no processo da construo desses significados. E essa conscincia d um sentido especial para o rito da avaliao por uma banca em que se cruzam tantas leituras. Porm, antes de passar ao prprio texto, gostaria de agradecer a todos aqueles que me ajudaram a constru-lo, pois ele foi elaborado no constante dilogo com os meus alunos de hermenutica jurdica na Universidade de Braslia e os meus colegas da ps-graduao e do Grupo de Estudo em Direito e Linguagem (Gedling). Em4

especial, agradeo Luciana e ao Felipe, a quem devo uma cuidadosa reviso da maior parte dos captulos. E, por fim, gostaria de dedicar este trabalho a quem me acompanhou mais de perto em sua composio, que foi o meu irmo Henrique, que leu cada camada medida que foi sendo escrita e conversou comigo longamente sobre cada um dos pontos desta obra. Suas palavras foram o principal espelho em que eu pude compreender as minhas.

PreldioEste trabalho um discurso sobre os modos de compreenso do direito. Ele escrito em primeira pessoa, pois quem fala o meu eu concreto, e no um eu abstrato pretensamente objetivo que profere verdades impessoais. Assim, o que proponho no o traado de uma imagem objetiva do mundo, mas a elaborao de uma determinada narrativa, que no pode ser feita seno a partir da minha prpria perspectiva e do meu lugar. Por isso mesmo, tomo emprestadas algumas das palavras com que Descartes iniciou o discurso filosfico da modernidade: no proponho este escrito seno como uma histria, ou, se o preferirdes, como uma fbula.1 Ento, gostaria que este texto fosse lido como uma espcie de mitologia possvel, pois ele constitui uma narrativa que tenta dar sentido minha prpria experincia. No se trata de um relato que pretende desenhar uma imagem exata, pois a sua funo menos produzir a imagem fiel de fatos e mais contar uma histria que possa seduzir o leitor para que ele venha a determinar o seu modo de estar no mundo com o auxlio de alguns dos mapas aqui traados. Portanto, este no nem pretende ser um trabalho cientfico. Mais propriamente, ele poderia ser qualificado de hermenutico: uma mirada hermenutica sobre a hermenutica jurdica. Mas o que significa essa frase obscura, quase esotrica? Fazer essa pergunta j nos coloca no centro do problema, pois esta uma questo de interpretao. 1. Hermenutica e interpretao A interpretao uma atividade humana voltada a atribuir sentido a algo. Esse algo pode ser muitas coisas: frases, gestos, pinturas, sons, nuvens. No fundo, tudo pode ser interpretado, pois a qualquer coisa podemos atribuir algum sentido. Em

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DESCARTES, Discurso sobre o mtodo, p. 32. 5

outras palavras, tudo pode ser tomado pelo intrprete como um texto, ou seja, como um objeto interpretvel. Uma mulher dos Blcs observa as linhas formadas pela borra do caf turco, no fundo da xcara que bebeu h pouco. Essa mulher l o seu futuro na rede desses traos. Quem interpreta normalmente atua como se estivesse a desvendar os sentidos contidos no texto. A crena de que o sentido imanente ao objeto faz parte do exerccio de quase toda atividade de interpretao. A mulher interpreta as figuras formadas na borra, acreditando que essas linhas tm um sentido. Ela no duvida de que, de algum modo, aqueles traos mostram o seu futuro. Ou melhor, talvez ela duvide, mas isso no faz diferena, desde que ela atue como se as linhas tivessem um sentido a ser desvendado. Retirar a venda que impede a viso do sentido. Trazer luz o que estava nas sombras. Esclarecer o mistrio. Mas que certeza pode haver acerca dos enunciados da pitonisa? As palavras do orculo so fugidias e muitas vezes so mal incompreendidas. Porm, elas no se colocam como portadoras de um mistrio, e sim como esclarecedoras de um segredo. De antemo, sabemos que os mistrios so inacessveis, e por isso mesmo eles dispensam interpretao. Os mistrios podem ser enunciados, mas no podem ser compreendidos. Os segredos, porm, so algo que ainda no sabemos, mas que podemos vir a conhecer. Assim, a compreenso desnatura o mistrio, pois o que veio a ser compreendido nunca pode ter sido verdadeiramente misterioso, mas apenas oculto. Ento, o sentido real das coisas permanece no mbito do segredo porque, ainda que seja obscuro e fugidio, ele algo a ser descoberto. Uma vez revelados, os segredos deixam de o ser. Porm, claro que nem todos tm as chaves para compreender os segredos do orculo. Assim, se o sentido interpretado apenas um segredo a ser desvendado, a capacidade de interpretao sempre envolta em mistrio, pois parece existir algo de mgico no processo interpretativo, algo que ultrapassa nossa capacidade de explicao. Ento, os grandes intrpretes so aqueles capazes de desvendar os sentidos que so inacessveis s pessoas comuns. Essa capacidade de compreender os segredos, de trazer luz o que permanece oculto, este o prprio mistrio da interpretao. Portanto, no toa que a interpretao sempre foi ligada s artes divinatrias. Nas narrativas fundantes de nossa cultura, esto grandes histrias de interpretao: os sonhos do fara, as palavras do orculo, as vsceras dos pssaros, os bzios. Em todas elas, o intrprete uma pessoa especial: Jos, Tirsias e as mes-de-santo vem o que os outros no vem. Todos eles desempenham papis semelhantes ao de Hermes, conectando o mundo dos deuses ao mundo dos homens. Entretanto, a6

sua funo no se confunde com a do profeta que enuncia as verdades que lhe foram reveladas por uma iluminao. O intrprete no tem acesso direto a uma verdade revelada, mas algum que sabe ler textos que so incompreensveis a outros olhares. Ele sabe entender vozes que so incompreensveis a outros ouvidos. Embaralhei as setenta e oito cartas do meu tar com cuidado. Perguntei ao vento que soprava as folhas da minha varanda o que significa interpretar e retirei como resposta a carta da Estrela. No meu tar, inspirado na mitologia grega, a Estrela a esperana da histria de Pandora que, depois de libertar os males da arca presenteada por Zeus aos homens, liberta tambm a esperana, que no afasta os males, mas mitiga a dor e possibilita a vida em meio s aflies humanas tais como as doenas, o trabalho e a velhice. Qual o sentido dessa resposta? Talvez aponte para o fato de que a interpretao seja apenas o reflexo de uma esperana, que no desvela os sentidos do mundo, mas nos possibilita conviver com a escurido do mistrio. Talvez a interpretao seja movida sempre por uma esperana de realizar o irrealizvel. Talvez esse entendimento seja reforado pelo fato de que a arca dos males, em algumas verses da histria, foi forjada justamente por Hermes. Ou talvez a carta no signifique resposta alguma, e tenha surgido em minhas mos apenas por acaso. Mas o meu ato de retirar a carta tem um significado, pois esta ao representa a proposio de uma pergunta, mesmo que ela tenha sido dirigida a um vento que talvez sequer possa compreend-la. E o ato de buscar um sentido para o fato de eu ter retirado justamente a Estrela talvez seja o reflexo de um velho hbito humano: o de atribuir sentido s coisas que ocorrem no mundo e crer que os sentidos atribudos so descobertos e no inventados. Esse velho hbito de negar o acaso que nada explica, mediante a afirmao de uma fatalidade que explica tudo a postura (talvez o vcio) que est na base da tradio interpretativa que domina o senso comum at os dias de hoje. E essa tendncia to arraigada que justamente a partir dela que Heidegger define a prpria especificidade do homem: o homem um ente que confere sentido ao ser e, com isso, converte a mera existncia em uma existncia significativa2. Esse um modo peculiar de ver o prprio homem: no se trata do animal racional, que se distingue pela sua racionalidade estratgica, pelo seu domnio do raciocnio abstrato, pelo seu logos. O que determina a especificidade do homem

Para Heidegger, o homem um ente que no se limita a por-se frente aos outros entes, mas que se caracteriza justamente por compreender o ser das coisas, especialmente o seu prprio, reconhecendo um sentido e no apenas existncia s coisas. [HEIDEGGER, Ser e tempo, pp. 39 e ss.]2

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justamente o fato de que ele compreende o mundo, no sentido de que ele confere sentido s coisas. justamente por isso que o homem habita um territrio simblico pleno de significados3, e no apenas um mundo emprico de objetos existentes. Para usar uma distino heideggeriana, o homem no meramente ntico (no sentido de que ele existe como ser), mas ontolgico (no sentido de que ele compreende o prprio ser). E o objetivo da rede de discursos que compem a Hermenutica4 justamente o de compreender os modos como o homem compreende o mundo. 2. Hermenutica e compreenso Compreender. Essa a palavra central, pois interpretamos para compreender o sentido (a interpretao, portanto, uma atividade que tem uma finalidade determinada). Mas ser que compreender o sentido descobri-lo? retirar o vu que o oculta e traz-lo luz? Sim, diriam tanto os representantes da tradio grega, quanto os modernos, cujos esforos culminaram no projeto Iluminista. E o iluminismo no recebe esse nome por acaso: compreender uma carta de tar iluminar a obscuridade que ela suscita. Embaralhei de novo o tar e retirei outra carta. Veio o dez de espadas, que simboliza o julgamento de Palas Atena que ps fim a uma antinomia das regras divinas que mandavam Orestes simultaneamente matar a sua me (para vingar a morte do seu pai, por ela assassinado) e no a matar (para no derramar o prprio sangue). Podemos entender esse fato como uma corroborao da tese da casualidade, pois a resposta mesma pergunta uma carta diversa (e isso j interpret-lo!). Mas tambm podemos enxergar nesse fato uma complementao da primeira resposta, pois o que Atenas faz justamente resolver uma antinomia normativa mediante uma deciso que absolve Orestes do matricdio afirmando a regra de que ningum pode ser punido pelo cumprimento de um dever. A interpretao, que aqui aparece como propriamente jurdica, pe fim a uma tenso semntica, mediante uma deciso. Talvez isso signifique que a interpretao no pode ser desvinculada da aplicao, e que a deciso que resolve a tenso entre entendimentos contrapostos uma parte do processo interpretativo.

Esse mundo pleno de significao chamado, na tradio fenomenolgica inspirada em Husserl, de Lebenswelt, ou seja, de mundo da vida. Assim, o mundo da vida no apenas uma viso de mundo (Weltanschaaung) que temos, mas um mundo no qual habitamos, o que chamamos mais propriamente de Realidade. 4 Sobre a Hermenutica, vide Livro I.3

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Todavia, isso talvez no queira dizer nada. Ainda mais considerando que a interpretao do tar nunca literal, pois o que as cartas possibilitam apenas uma integrao de sentidos de carter analgico, fundado em uma espcie de alegoria. Como os vaticnios misteriosos das pitonisas gregas, elas sempre podem admitir variados sentidos. Assim, o fato de a carta no se repetir no significa uma resposta que nega a primeira, mas que esclarece outros aspectos da questo. Ou talvez essas cartas apenas sirvam como um ponto de apoio para as nossas prprias anlises, de tal forma que as nossas tentativas de integrar a resposta das cartas ao nosso universo simblico terminam por desencadear um processo reflexivo que nos faa dar um sentido ocorrncia de uma carta especfica. Por isso, na abertura proporcionada por sua obscuridade semntica que est a sua fora significativa. O surgimento da carta suscita uma obscuridade, no uma evidncia. Nessa medida, o significado da carta se impe como um problema a ser resolvido por meio de uma interpretao. Essa interpretao exige o conhecimento dos sentidos tradicionais das cartas, pois cada uma delas remete para uma rede de significaes. Nesse tar que utilizo, tais sentidos so enriquecidos pela ligao das cartas a uma mitologia que povoa de mitos o nosso imaginrio: a grega. Prometeu, Pandora, Hermes, Atenas, Orestes, Narciso, dipo, todos esses personagens continuam fazendo parte do repertrio de mitos que organizam as nossas formas de compreender o mundo. Porm, tal conhecimento no o nico saber exigido dos intrpretes, na medida em que o sentido abstrato (rede de significados ligados a uma carta ou a um conceito jurdico) demasiadamente aberto e polifnico, diferente do sentido concreto (significado da carta para uma situao especfica). E um dos problemas fundamentais da hermenutica definir como se relacionam os sentidos concreto e abstrato de um texto. Na hermenutica moderna, essa tenso revela-se normalmente na oposio entre interpretao (apresentada como desvendamento do sentido abstrato) e aplicao (entendida como fixao do sentido concreto). Alguns dos primeiros tericos acentuaram essa distino para afirmar que h uma incomensurabilidade entre interpretao e aplicao, por tratar-se de atividades com objetivos diversos. Essa, porm, no uma sada tpica dos juristas, pois tipicamente implica uma negao da cientificidade da aplicao. Normalmente, os juristas buscaram afirmar a cientificidade das duas atividades, mas estabelecendo uma prioridade lgica entre interpretao e aplicao, na medida em que a fixao do sentido concreto pressupe a existncia de um sentido abstrato.9

Essa idia perpassa tanto as teorias subsuntivas mais simplrias quanto as teorias metodolgicas mais complexas, que introduzem a metodologia como uma mediao objetiva entre o sentido abstrato e o concreto. Todas essas perspectivas pressupem a existncia de um sentido a ser desvendado e implicam um certo primado do sentido abstrato, do qual o concreto deve ser deduzido por algum tipo de procedimento controlvel. Porm, desde meados do sculo XX, as reflexes da hermenutica filosfica acentuaram a existncia de uma co-relao circular entre interpretao e aplicao, de tal forma que a prioridade lgica tem sido substituda pela idia de que existe uma complementaridade circular entre interpretao abstrata e aplicao concreta, pois essas duas atividades fazem parte de um mesmo processo de compreenso.5 Nesse ponto, fica especialmente caracterizada a distino entre a linearidade dos discursos cientficos e a circularidade dos discursos hermenuticos. Essa circularidade se mostra em um jogo completo de tar, em que o consulente retira dez cartas, que ocupam espaos de significao determinados pela ordem em que aparecem6 e, a relao desses significados gera uma rede quase infinita de interaes semnticas possveis. Assim, o sentido de uma carta somente dado na sua correlao com as demais, embora o significado do todo seja derivado das potencialidades semnticas de cada uma delas. Vale aqui, portanto, o cnone hermenutico fundamental: as partes devem ser compreendidas pelo todo, que deve ser compreendido pelo sentido das partes que o compem. Essa circularidade semntica inafastvel, o que torna irresolvel o problema do sentido. Ento, interpretar uma atividade digna do Baro de Munchhausen, que consegue sair da areia movedia puxando-se a si prprio pelos cabelos. Por isso mesmo h algo de mgico na hermenutica7, algo que no se explica cientificamente, ou seja, por meio de uma seqncia finita de causas organizadas de maneira linear. Assim, o discurso cientfico se difere do discurso hermenutico. Visto do ponto de vista da hermenutica, o discurso cientfico mostra-se como uma forma especfica de dar sentido ao mundo, que adota um olhar externo e ordena os fenmenosVide GADAMER, Verdade e mtodo. 6 Por exemplo: a primeira carta define o tema geral, a terceira complementa o sentido da primeira, a stima fala da situao atual do consulente e a nona relaciona-se com os seus medos e desejos. [Vide GREENE, O Tar mitolgico, p. 215] 7 Gadamer dizia que tarefa da hermenutica esclarecer o milagre da compreenso [Vide GADAMER, Verdade e mtodo II, p. 73].5

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mediante relaes de causalidade, esclarecendo uma ordem objetiva dos fatos do mundo. Porm, como a hermenutica nega a possibilidade de uma externalidade e uma objetividade, a cincia aparece no campo hermenutico como um discurso ingnuo ou cnico (embora til), baseado em uma mitologia que nega a prpria relatividade dos critrios de racionalidade que organizam o saber cientfico8. Por outro lado, visto do ponto de vista da cincia, a hermenutica mostra-se como um discurso impreciso, uma espcie de mistificao, cujas afirmaes so confusas e no se deixam avaliar adequadamente porque no se submetem a qualquer metodologia determinvel. Essa oposio deixa claro que no h na hermenutica um lugar adequado para a verdade, pois a verdade normalmente caracterizada por uma espcie de ultrapassagem de todos os contextos. Assim, uma verdade contextual tipicamente no considerada uma verdade propriamente dita9. E como os discursos internos so sempre contextuais, ao menos em relao cultura em que surge e ao seu momento histrico, o discurso hermenutico somente pode admitir a prpria categoria de verdade na medida em que o desveste do carter incondicionado que lhe tradicionalmente atribudo, reduzindo a verdade a uma espcie de adequao a um sistema interpretativo especfico. Portanto, a verdade hermenutica medida em relao a um determinado conjunto de critrios histrica e lingisticamente definidos. Esse tipo de historicismo obviamente no abre espao para uma objetividade incondicional, mas apenas para uma objetividade relativa a uma determinada tradio cultural. Justamente por isso, a hermenutica anti-iluminista, exatamente na medida em que o iluminismo anti-tradicional. Existe, portanto, uma tenso fundamental entre os pensadores que se inscrevem na continuao do projeto racionalista do iluminismo (como Habermas, Dworkin e Alexy) e os que se opem a ele (como Heidegger, Foucault, Gadamer e Rorty). Porm, seria um erro pensar que a hermenutica uma mera aceitao da tradio, pois enquanto a modernidade ataca a tradio de fora (por ser externo o seu olhar), a hermenutica possibilita um ataque tradio feito por dentro (na forma de uma espcie de autocrtica que abre espao para o novo).

Por mais que os cientistas saibam que o saber cientfico histrico e provisrio, ele visto tambm como uma espcie de aprendizado e evoluo, que representa um esclarecimento constante e crescente da realidade objetiva, por meio do uso de uma racionalidade cujos critrios no so histricos, mas necessrios. 9 HABERMAS, Verdade e Justificao, pp. 282 e ss.8

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Essa crtica interna no normalmente vista como revolucionria, justamente porque revoluo o nome dado pelos herdeiros do Iluminismo oposio entre dois discursos totalizantes. Lyotard chama de modernos os discursos organizados em torno de grandes narrativas, que oferecem sistemas monolticos de atribuio de sentidos ao mundo10. O Iluminismo um desses projetos, e os seus herdeiros so aqueles que continuam a propor utopias totalizantes de carter racionalista. Na medida em que todas essas grandes narrativas propem um ideal de unidade e identidade, o seu calcanhar de Aquiles costuma ser o seu modo de tratar a pluralidade e a diferena. A Modernidade, em todas as suas verses, admite que a pluralidade de interesses individuais um fato que precisa ser levado em considerao, pois nenhuma pessoa pode pretender que o seu interesse pessoal valha mais do que o de um outro qualquer. Essa admisso da diferena gera um abismo entre o individual e o coletivo, que tenta ser suplantado mediante alguma espcie de vontade geral ou de interesse coletivo. Porm, tambm claro que no existe uma vontade geral de fato, pois a nica coisa que existe no mundo uma pluralidade de interesses pessoais entrelaados. Como enfrentar essa situao? De Hobbes a Habermas, passando por Rousseau, Kant e Rawls, a modernidade, a enfrenta mediante o estabelecimento de uma vontade geral ideal, baseada em critrios que precisam ser impessoais. E essa impessoalidade sempre medida pela sua racionalidade, pois, no obstante os pensadores modernos reconhecerem que a imensa diversidade dos interesses humanos, eles pressupem que os homens compartilham uma nica racionalidade. E justamente essa racionalidade que afirmada como nico elemento unificador de uma humanidade dividida por seus desejos e valores, motivo pelo qual ela erigida como critrio para transcender os interesses pessoais e servir como base para a organizao das sociedades. Nessa medida, a necessidade de legitimao do poder interpretada pelos pensadores modernos como a necessidade de fundamentao da validade de determinados padres de organizao social, sejam eles morais, polticos ou jurdicos. Assim, o discurso filosfico da modernidade, no que toca s questes normativas, est inteiramente voltado elaborao de discursos fundamentadores que so construdos a partir do dogma de que tudo o que racional vlido. Esse o pressuposto que a modernidade no pode tematizar sem desnaturar-se em um relativismo em que se perde a possibilidade de fixar padres objetivos de verdade e validade. Por isso mesmo, considero que esta a fronteira do pensamento

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LYOTARD, A condio ps-moderna, pp. 58 e ss. 12

moderno e a melhor linha demarcatria entre a modernidade e a ps-modernidade. E justamente nessa fronteira que se insere a hermenutica filosfica que, radicalizando o historicismo, rejeita a possibilidade de fundamentao racional de qualquer ordem de poder. 3. A polifonia contempornea Os discursos que a modernidade oferece so grandes narrativas totalizantes, que apresentam um projeto de mundo que se caracteriza pela imposio de um determinado modelo de organizao social que se pretende objetivamente vlido. E cada uma das grandes narrativas modernas produziu um discurso hermenutico, na medida em que propunham um modo especfico de atribuir sentido ao mundo social. Essa multiplicidade de discursos hermenuticos revela-se com especial fora dentro do campo jurdico, em que as disputas entre os discursos esto diretamente relacionadas com a definio dos critrios de exerccio do poder poltico organizado. E os ltimos duzentos anos foram repletos de teorias hermenuticas contrapostas, sendo que cada uma delas se inspirava em noes diversas de legitimidade e oferecia diferentes vises acerca das funes a serem desempenhadas pelos atores jurdicos. Cada uma dessas teorias buscava afirmar-se como objetivamente vlida, de tal forma que elas sempre lutaram por hegemonia, ou seja, pela conquista total do mundo da vida que define nossos padres de auto-compreenso. Apesar disso, a situao contempornea justamente a de que nenhuma das grandes narrativas conseguiu impor-se de maneira hegemnica. Na hermenutica jurdica isso no foi diferente, pois a situao contempornea a da permanncia de uma multiplicidade de discursos. Assim, para usar metaforicamente um termo tomado da teoria do Estado, nenhuma das teorias hermenuticas conquistou soberania. O que vivemos, ento, uma pluralidade de narrativas. Essa pluralidade normalmente apresentada pelas teorias da modernidade como um momento de transio para a poca em que se fixar uma nova narrativa hegemnica, ou, para usar uma metfora de origem epistemolgica quase gasta pelo uso excessivo, um novo paradigma. Esse novo paradigma dever adotar a forma de uma nova utopia totalizante, ou seja, de um novo sistema. Uma das teses centrais defendidas neste texto a de que o surgimento das variadas teorias da argumentao significou justamente uma tentativa de reunificar um discurso jurdico que j no era capaz de lidar com todos os problemas que enfrentava. Tal re-sistematizao precisava ser feita de modo compatvel com a descrena generalizada de que as narrativas anteriores eram capazes de organizar um13

discurso jurdico racional. E as teorias da argumentao me parecem a mais nova tentativa moderna de oferecer um modelo totalizante de racionalidade crtica, cujo principal terico atualmente o alemo Jrgen Habermas. Pessoalmente, porm, no aposto minhas fichas em uma retomada dessa reductio ad unum racionalista que marca as teorias modernas, inclusive a habermasiana. Em vez enfrentar a pluralidade por meio da fixao de um critrio totalizante, creio que a melhor opo justamente a busca da construo de espaos para a coexistncia das diferenas, mediante processos de autonomia e singularizao. Assim, em vez de canalizar esforos para a construo de um meta-sistema que afirme um critrio universal e objetivo de legitimidade, prefiro dedicar-me a compreender as tenses existentes entre as narrativas contemporneas, inspirado pela idia de que o desafio atual no o de construir um novo paradigma unificador, mas a de traar mecanismos de convivncia da diversidade. Mas como realizar uma mono-grafia que respeite a poli-fonia? Ser possvel uma poli-grafia acadmica? Um sistema cuja unidade no seja construda com base na subordinao de todos os elementos a um elemento definido, mas que envolva a coordenao de perspectivas no apenas diferentes, mas contrapostas. Ou, para usar uma metfora de Deleuze e Guattari que muito me encanta, um sistema rizomtico e no radicial, como todo o pensamento totalizante da modernidade e seus grandes discursos construdos imagem e semelhana dos sistemas axiomticos da matemtica? Uma das possibilidades construir sempre obras coletivas, que equilibrem vrias vises simultneas sobre um mesmo tema. Mas essa sada no compatvel com este trabalho, no s por razes burocrticas (porque uma tese de doutorado precisa ter um nico autor), mas tambm porque cada um de ns individualmente faz uso de discursos mltiplos. Nosso nome legio, porque so vrios os discursos e devires que nos atravessam. A subjetividade monoltica que est na base da viso moderna de mundo parece incompatvel com a pluralidade do mundo contemporneo, que admite a pluralidade como uma caracterstica humana e no como um problema a ser resolvido. Em cada um dos meus discursos, equilibro vrias das minhas personas: o Professor, o Advogado, o Filsofo, o Amante, o Artista. Engano pensar que um juiz decide apenas como Juiz, que o professor fala como Professor, que a tese acadmica escrita pelo Cientista.

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No podemos misturar o personagem conceitua11l com o sujeito real, pois o primeiro um arqutipo e o segundo e uma pessoa, incoerente e mltipla como todos ns feliz ou infelizmente somos. claro que esses arqutipos so importantes para a estruturao e compreenso dos discursos e que a introduo de um novo personagem conceitual pode ter conseqncias revolucionrias (como a inveno grega do Filsofo), mas no pretendo repetir aqui o esquecimento moderno do sujeito, reduzido ao arqutipo do indivduo racional egosta. Tudo bem que todo discurso tem seus esquecimentos, suas zonas de silncio e obscuridade, que o constituem tanto quanto as zonas de iluminao. No posso pretender que o meu no as tenha. E por isso que me incomoda o discurso pretensamente objetivo da modernidade, construdo sobre bases pouco transparentes para a prpria obscuridade. E a obscuridade pode ser transparente (a afirmao do vazio e do mistrio), assim como a claridade pode ser opaca. Edgar Alan Poe conta a histria de um sujeito que, ao saber que sua casa ia ser revistada, escondeu uma carta colocando-a no lugar mais evidente, e por isso mesmo menos propenso a ser identificado por quem procura elementos ocultos12. Na modernidade, por exemplo, os valores ideolgicos so escondidos no conceito mais evidente: o de Razo. E esse simples procedimento torna to difcil tal percepo que muitos no vem, por exemplo, que tanto a razo transcendental kantiana quanto a razo comunicativa habermasiana contm um elemento tico em sua prpria conformao. E a igualdade colocada como um imperativo racional, e no como um imperativo tico, dificilmente identificada como tal. Essa mistura entre valores e razo, contudo, s um problema para quem pretende atuar de maneira neutra. Para quem postula uma razo neutra a valores (e, portanto objetiva), esse um problema srio. Porm, toda teoria crtica fundada na afirmao de um critrio de legitimidade, que no pode deixar de ser valorativo. Assim, da estrutura dos discursos crticos a sua no-neutralidade, a sua parcialidade, o fato de estar ligada a posies valorativas que no so impessoais. E a alternativa criticidade de uma teoria no existe, pois mesmo o positivismo realiza uma espcie de sacralizao da neutralidade, e a neutralidade no deixa de ser um valor13.O conceito de personagem conceitual eu tomo emprestado de Guattari e Deleuze. Vide DELEUZE e GUATTARI, O que a filosofia?, p. 10. 12 POE, A carta. 13 Por acaso, um valor que tanto pode ser conservador (quando conduz descries compatveis com a tradio dominante) quanto revolucionrio (quando se contrape a elas,11

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Portanto, no h um lugar neutro para falar de uma teoria. O enfoque externo no um enfoque imparcial e nunca faz justia s concepes tericas descritas. Isso ocorre especialmente porque todo terico engajado (isso , todo terico) concorda com algumas poucas tendncias e discorda de todas as demais, e normalmente falamos das idias que nos desagradam oferecendo uma verso enfraquecida, til apenas para a crtica que a ela faremos em seguida. Construmos esteretipos para guerrear contra eles e, com isso, atacamos inimigos imaginrios. Travamos assim uma batalha fcil e cuja vitria pode ser bastante til, na medida em que todos querem estar ao lado dos vencedores. Quando no signo de simples ignorncia, esse tipo de pseudo-vitria, to caracterstica das academias, revela uma espcie de covardia intelectual. Mas o normal que ele seja apenas fruto da nossa viso distorcida das idias que no so as nossas e que, por isso, so erradas. Convencidos pela modernidade de que a verdade una, no podemos chamar seno de falso tudo o que colide com as nossas crenas. E, com isso, a descrio externa de uma teoria que no nossa perde justamente o que essa teoria tem de mais importante: a capacidade de seduzir. 4. Verdade e seduo Ningum adota uma teoria por causa da sua verdade, mas por causa de uma apreciao esttica: somos seduzidos por ela! Pela sua elegncia, pelos seus resultados, por ela estar na moda, pela sua beleza, pela sua justia, por elementos valorativos que nos encantam e estimulam o nosso engajamento. Assim, para sermos justos com uma teoria, ela tem de ser defendida em primeira pessoa, como uma espcie de teatro, pois a sua fora est na capacidade de seduzir o auditrio (persuadi-lo, para usar uma palavra de Perelman) e no de convenc-lo, dado que somente convencemos as pessoas que j acreditam nos nossos valores. Assim, o convencimento uma operao tautolgica como as demonstraes matemticas: um procedimento til apenas frente aos que compartilham a crena nos mesmos axiomas. E, no verdadeiro choque entre teorias, o que est em jogo a

especialmente falsa neutralidade que muitas concepes se arrogam). Assim, o carter conservador/revolucionrio do positivismo no est na prpria teoria, mas na sua relao com as demais teorias. Um positivismo dominante conservador, tanto quanto um positivismo contra-hegemnico pode ser profundamente revolucionrio, por colocar em questo o valor das tradies consolidadas. 16

adeso a um axioma, que nunca se d por critrios de coerncia (seno no seriam axiomas...), e sim por critrios de seduo. Como essa seduo tende a se perder em todo discurso externo, creio que a melhor forma de lidar com ela formular discursos pseudo-internos, em que nos deixemos atravessar pela voz do sujeito arquetpico de uma teoria. Interpretar a teoria como um ator que interpreta seu papel, e no como um cientista que a descreve. Isso envolve a construo de narrativas sedutoras, que incorporem a paixo que perdida toda vez que tentamos ser verdadeiramente imparciais. A imparcialidade mata a paixo. Uma descrio imparcial dos pontos fortes e fracos de uma teoria um discurso importantssimo. Mas ele faz parte de uma economia discursiva de quem sustentar apaixonadamente uma outra concepo terica. Assim, uma monografia pode ser construda como um canto pessoal de uma teoria especfica, mas raramente esse tipo de enfoque dar margem a boas cartografias, que melhor se adaptam a poligrafias, em que cada mapa possa guardar seu poder de encantamento. E por isso que tentarei defender cada ponto como um discurso interno ou, melhor dizendo, pseudo-interno, que o mximo que podemos fazer com teorias que no so as nossas. E o objetivo da cartografia aqui exposta no ser apenas a elaborao de modelos tericos, mas a elaborao de discursos internos potencialmente capazes de seduzir os juristas para esses modelos. Ento, no se trata aqui propriamente de uma reconstruo dos modos de interpretao do direito. A realizao de um projeto desse tipo exigiria um esforo diferente, pois envolveria o estudo de fontes primrias (especialmente dos discursos jurdicos de cada momento histrico), o que no o caso, ao menos em grande medida. As referncias s decises judiciais nos serviro muito mais como exemplos heursticos, pois o trabalho centrado nas teorias hermenuticas modernas e contemporneas, e no nas prticas interpretativas desse perodo. Portanto, esta pesquisa mais ligada filosofia do direito do que sociologia jurdica. E a filosofia jurdica justamente um discurso centrado na questo da legitimidade. No caso especfico deste trabalho, a discusso ser concentrada no debate acerca dos critrios de legitimidade que organizam os discursos de aplicao do direito, cujo paradigma tpico o discurso judicial. Se os legisladores normalmente tentam justificar a legitimidade dos seus atos com base em alguma espcie de representatividade popular ou de adequao aos valores sociais, os juzes contemporaneamente justificam a legitimidade das suas decises na aplicao

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correta do direito legislado. Portanto, os critrios hermenuticos funcionam, no direito, como critrios de exerccio legtimo da autoridade judicial. Assim, por mais que o discurso hermenutico normalmente se organize em torno de critrios de verdade (na busca da interpretao correta), esses critrios definem simultaneamente o exerccio de um poder social, que no pode ser exercido seno em nome da lei. Portanto, o debate acerca dos padres hermenuticos no pode ser visto como uma discusso nefelibata acerca de critrios abstratos de verdade, pois essa a arena em que se definem os conceitos jurdicos que organizam a aplicao normativa do poder. Com isso, fica claro que a identificao foucaultiana das inevitveis relaes entre saber e poder14 mostra-se com especial clareza no plano da hermenutica jurdica, em que toda afirmao de verdade implica uma afirmao de validade, em que todo debate acerca da correo implica a afirmao de padres de legitimidade para o exerccio do poder poltico. Essas relaes entre legitimidade e discurso judicial suscitam vrias abordagens. Uma delas, de inspirao mais sociolgica, seria o de investigar a prtica discursiva efetiva e desvendar os critrios de legitimidade que lhe subjazem, o que poderia trazer luz as mitologias dominantes no imaginrio dos juristas. Outra, de inspirao mais filosfica, seria investigar esse mesmo imaginrio a partir das teorias hermenuticas consolidadas, o que implica uma avaliao dos discursos tericos sobre o direito. E justamente este o desafio do presente trabalho, cujo objeto de estudo a hermenutica jurdica (entendida como uma rede de discursos tericos acerca da prpria interpretao) e no a interpretao do direito propriamente dita (atividade prtica de atribuio de sentido aos textos jurdicos). Essa opo pela filosofia remete a uma anlise indireta do imaginrio dos juristas, mediada pelos modos de compreender que se consolidaram na forma de teoria. E todos sabem que a prtica, por mais que seja inspirada em alguma teoria, no pode ser reduzida a uma simples aplicao ao mundo de uma teoria determinada. Porm, mesmo uma anlise filosfica que tome por objeto as teorias hermenuticas no pode ser realizada sem uma ntima conexo com a histria e aCom Plato, se inicia um grande mito ocidental: o de que h antinomia entre saber e poder. Se h o saber, preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e cincia com sua verdade pura, no pode mais haver poder poltico. Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche comeou a demolir ao mostrar, em numerosos textos j citados, que por trs de todo saber, de todo conhecimento, o que est em jogo uma luta de poder. O poder poltico no est ausente do saber, ele tramado com o saber. (FOUCAULT, A verdade e as formas jurdicas, p. 51)14

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sociologia do direito, pois o esclarecimento das implicaes entre as posturas tericas e o contexto social fundamental para a adequada compreenso das teorias e dos imaginrios que as inspiram. Como todo modo de olhar, esta perspectiva gera campos de esclarecimento e de ocultao, e a conscincia disso pode contribuir para que certas distores sejam minimizadas. Em especial, creio que optar pelo estudo das teorias tem a desvantagem de muitas vezes sub ou superdimensionar o impacto de uma teoria no contexto social. Certas concepes, como a de Kelsen, tm uma grande repercusso no pensamento de outros autores, mas no nas prticas sociais. Outras, como a jurisprudncia dos interesses, acabam por ter uma grande relevncia prtica, apesar de (ou justamente por) no oferecer grandes inovaes tericas. De um modo ou de outro, o direcionamento filosfico deste trabalho implica uma certa concentrao das anlises nas relaes das teorias entre si, especialmente nas inovaes conceituais propostas por cada uma e das tenses existentes entre elas, tanto no nvel dos modelos tericos propostos como das narrativas mitolgicas nela implcitas. E, como em toda discusso filosfica, o aspecto sincrnico tende a predominar sobre o diacrnico, pois no presente que se realizam as tenses contemporneas entre os modos de interpretao. Porm, para contrabalanar um pouco esse desequilbrio, creio que importante oferecer uma descrio das teorias que as contextualize historicamente. 5. Estrutura do trabalho Creio que todas essas consideraes explicam porque as duas primeiras partes do trabalho so reconstrues histricas que tentam explicar o sentido contemporneo de uma perspectiva hermenutica, bem como uma espcie de arqueologia das teorias hermenuticas do direito, mostrando os modos da sua formao, suas influncias recprocas e suas relaes com os contextos sociais em que elas surgiram. Com esse objetivo, o primeiro livro traa uma reconstruo histrica da hermenutica filosfica enquanto o segundo traa uma narrativa acerca da hermenutica jurdica, desde o incio do sculo XIX at os dias de hoje. Com isso, creio ser possvel entender como a noo de historicidade radicalizada pela hermenutica filosfica, que termina por se constituir como um modelo de compreenso alternativo ao cientfico, e avaliar em que medida essa mesma historicidade capaz de permear as reflexes sobre a hermenutica jurdica. Seguindo o olhar meta-hermenutico do trabalho, este livro propor uma avaliao dos modos como as teorias hermenuticas contemporneas atribuem sentido realidade que elas apresentam, e das tenses existentes entre algumas das19

perspectivas tericas relevantes no panorama atual. E, especialmente porque o debate contemporneo envolve uma indispensvel autocrtica do olhar hermenutico, considero que essa parte fecha um ciclo de leitura hermenutica da hermenutica jurdica, e que esse retorno possibilita a abertura de novas perspectivas para que atribuamos sentido atividade interpretativa que constitui a prtica do direito.

Captulo I - Do naturalismo ao positivismo1. O direito moderno Houve momentos histricos em que o direito era a expresso dos costumes consolidados em sociedades que ocupavam territrios relativamente pequenos e dotados de homogeneidade cultural. No imaginrio tpico dessas culturas, como em toda organizao tradicional, os valores tinham um carter absoluto e inquestionvel, e os modos corretos de agir eram aqueles reconhecidos pelos costumes. E o costume ningum tinha autoridade para modificar, nem mesmo os chefes polticos, que no podem alterar os valores sobre os quais se assentam tanto o seu poder. Essas autoridades at podiam transgredir certas regras sem sofrer punies, mas no fazia parte do seu imaginrio a possibilidade da mudana da norma, pois a tradio sagrada, inclusive aos seus prprios olhos. A sacralidade da tradio impede o seu questionamento e, nessa medida, no possibilita o surgimento de uma mentalidade reflexiva e histrica, capaz de perceber que somente existem valores criados pelo prprio homem15. Isso no quer dizer que os homens criam intencionalmente os seus prprios valores, mas que eles surgem como resultado de processos culturais que ocorrem na convivncia humana. Porm, em toda sociedade tradicional, os valores no so percebidos como culturais, mas como naturais, no sentido de que a sua validade independe da cultura e que, por isso, tampouco pode ser alterada por meio de decises polticas. Por isso mesmo, o processo de modernizao do direito pode ser encarado como uma destradicionalizao do direito, que gradualmente trasladado do campo dos costumes para o campo da poltica, em uma passagem que modifica profundamente a percepo das relaes entre o direito e o indivduo. Como expresso coletiva, o direito consuetudinrio era a expresso de uma determinada

Essa uma das crenas fundamentais que orienta esta pesquisa e ela no admite fundamentao. Por isso, aqui me limito a enunci-la.15

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tradio cultural, cuja imposio heternoma s pessoas que compem a comunidade dispensava qualquer tipo de justificao, pois estava no campo da obviedade. Quer dizer, no existe, nas sociedades tradicionais, a construo de um lugar de fala a partir do qual o indivduo poderia questionar a validade das obrigaes que lhe eram impostas pelo costume. Com isso, a fixao das normas jurdicas no era um atributo da poltica (exceto para o direito acerca da prpria administrao do poder), pois no era uma questo de deciso. Esse era o mundo do Capito Rodrigo Cambar, que, no comeo do sculo XIX, bateu-se em duelo de facas com o filho do Coronel Amaral, chefe poltico de Santa F, uma cidade no interior dos pampas gachos16. A luta foi travada em um lugar ermo, pois o duelo era proibido pelo direito estatal, embora reconhecido pelos costumes. Ambos os participantes haviam deixado suas pistolas na cidade e prometido lutar apenas com armas brancas. Porm, ao sentir que era inevitvel a derrota, Bento Amaral atirou contra o Capito e fugiu. Essa traio no era admitida nos cdigos jurdicos e morais vigentes e, por mais que ningum tenha punido o jovem filho do Coronel, a imoralidade da traio era evidente para todos, inclusive para seu pai. Assim, a regra que veda a traio no era percebida por nenhum dos personagens deste drama como uma norma que pudesse ser alterada por meio de uma deciso poltica. E as regras costumeiras sobre o duelo continuavam sendo vlidas, apesar de serem excludas pelo direito estatal vigente, pois rico Verssimo situa esses acontecimentos numa poca em que poder central no tinha a possibilidade de se impor sobre a rede de autoridades locais que governava cada regio do Brasil. O desenvolvimento do direito moderno vai mudando gradualmente essa situao, pois ele faz parte de um processo de unificao do poder, em que as normas legisladas passaram a excluir cada vez mais eficazmente os costumes locais que lhe eram contrrios. Esse foi o caso da proibio do duelo, uma das primeiras atitudes dos Estados em sua tentativa de monopolizar o uso da violncia social. Tambm foi o caso da excluso das milcias armadas que atuavam em nome das autoridades no-estatais, como era o caso dos cangaceiros, contada com maestria no Grande Serto: Veredas, cujo pano de fundo a substituio do poder descentralizado dos coronis pelo poder centralizado do Estado, que imps uma nova ordem ao Serto, com sua polcia e seu exrcito. E quem nos conta essa estria Riobaldo,

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VERSSIMO, Um Certo Capito Rodrigo. Em: VERSSIMO, O continente. 21

convertido de chefe de bando em um respeitvel fazendeiro na nova ordem estatal e legislada17. Na Europa, porm, a passagem do direito costumeiro para o legislado, foi mais lenta, mais antiga e no se deu de maneira direta. Se o Estado brasileiro do incio do sculo XX j impunha seu poder por meio de um direito codificado (e a codificao do direito civil antecedeu inclusive a estatizao do direito em muitas regies do pas), isso foi porque ele atuava inspirado por um modelo cuja consolidao na Europa foi fruto de processo de centralizao longo e gradual, em que foram moldados os Estados modernos. Esse processo remonta ao sc. XIII, marcado por uma srie de transformaes sociais e polticas que determinaram a decadncia do feudalismo na Europa ocidental e um paulatino fortalecimento do poder do Estado, acompanhado por uma crescente centralizao do poder poltico nas mos dos monarcas e do poder econmico nas mos da burguesia. Essa nova sociedade que surgia no se fundava na afirmao das autoridades locais, mas na criao de Estados compostos por territrios amplos e integrados por regies com costumes e valores diferentes. O que dava unidade a esses estados no era a homogeneidade cultural, mas a submisso a um nico soberano, o que exigia estratgias jurdicas que superassem o localismo das solues consuetudinrias e dessem margem a uma organizao mais homognea dos Estados nascentes. Era preciso incorporar elementos jurdicos que superassem a dimenso notadamente local dos costumes, que tipicamente estruturam a vida de sociedades culturalmente homogneas e tm um estreito mbito de validade territorial. Porm, quando vrios ordenamentos consuetudinrios passam a ser regidos pela a mesma autoridade poltica, o exerccio do poder exige uma certa uniformidade de regulao, o que faz com que ganhem relevo elementos que tm a potencialidade de oferecer uma certa unidade jurdica a comunidades heterogneas e a grandes territrios. Tais elementos so justamente aqueles fundados na autoridade central, e no nos costumes locais. Assim, na medida em que os reinos europeus passaram a abranger reas de costumes jurdicos muito diversos, o que ocorreu especialmente a partir do sculo XIII, adquiriram relevncia os elementos que poderiam servir como padres de unificao que permitissem o exerccio centralizado do poder em uma sociedade heterognea. Naquela poca, o grande modelo que se mostrou capaz de organizar essa nova sociedade foi o direito romano, que era o direito de um imprio unificado e que foi

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ROSA, Grande Serto: Veredas. 22

utilizado como uma espcie de modelo para a orientao do desenvolvimento de um novo direito, mais adaptado realidade poltica e econmica que se consolidava. Houve, ento, um renascimento dos estudos romansticos. Especialmente na recm fundada universidade de Bolonha, passou-se a estudar o Corpus iuris civilis, uma compilao de textos romanos realizada no sculo V por ordem do imperador Justiniano, a qual passou a ser a base da formao dos juristas e serviu como alicerce para a construo do direito europeu moderno. Assim, comeou a ser formada uma classe de juristas que tinhas sua formao baseada no direito romano, o que implicou a transio de um modo de pensar enraizado no particular (pois os costumes eram fruto das concepes e valores cristalizados na sociedade medieval) para um pensamento de matriz universalizante, que buscava retirar do direito romano padres aplicveis de maneira universal. Essa universalidade rompe os padres de pensamento do direito tradicional, que no pretende ter aplicao fora do seu prprio campo de abrangncia cultural. O direito romano no vlido porque est baseado nas tradies, mas porque se trata de um direito superior, cuja validade no deriva dos costumes, mas do fato de tratarse de padres jurdicos corretos. Essa adoo de um padro de correo que suplanta os valores das tradies enraizadas localmente um dos principais elementos da construo do direito moderno. Porm, no se tratou de uma ruptura com o modelo anterior, mas de uma transformao gradual, que partiu inicialmente de um certo equilbrio entre o universal e o particular, de uma harmonizao entre a tradio local (representada pelo direito costumeiro) e de uma idia de universalidade (implcita no estudo do direito romano). Esse equilbrio era obtido especialmente porque durante muito tempo o direito romano somente foi aplicvel de maneira subsidiria, ou seja, ele somente era utilizado onde o direito costumeiro local era insuficiente para resolver os conflitos. Porm, o direito romano foi gradualmente ganhando espao na mentalidade dos juristas, o que gerou uma perspectiva cada vez mais vinculada aos imperativos de universalidade e abstrao que culminaram no jusracionalismo do sculo XVIII. Inicialmente (sc. XIII e XIV), os textos romanos foram tratados praticamente como textos sagrados, com incontestvel autoridade, pois traziam o conhecimento de uma poca urea do passado e eram dotados de uma sofisticao jurdica inigualvel nos tempos de ento. O tratamento dado a esses textos era o de um respeito cerimonioso e a primeira grande escola de juristas a estud-los limitava-se a explicar, mediante glosas (comentrios colocados s margens dos textos), o sentido de cada uma das frases e expresses usadas no Corpus iuris civilis, motivo pelos quais

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esses juristas so chamados de glosadores. Porm, com o tempo, foi ganhando espao a idia de que no bastava esclarecer o texto de forma fragmentria, pois, por maior que fosse a sabedoria jurdica romana, a aplicao do direito romano aos casos concretos ocorridos na Europa do sc. XV (perodo de transio entre a Idade Mdia e a Idade Moderna) exigia uma adaptao dos textos s novas situaes. Assim, os juristas que enfrentaram os problemas da adaptao do direito romano realidade da poca se impuseram o desafio de superar o modo tradicional de anlise fragmentria dos textos e passaram a construir um conhecimento jurdico mais sistematizado, induzindo conceitos gerais a partir das regras romanas, conceitos esses cuja generalidade e abrangncia permitia sua aplicao s situaes contemporneas. No se tratava mais de simplesmente aplicar as regras romanas s situaes atuais, mas de entender os institutos romanos, constitudos por conceitos extrados da multiplicidade fragmentria dos textos do Corpus iuris, e no pelas prprias regras. essa passagem do nvel dos textos em si para os nvel mais abstrato dos institutos que podiam ser extrados dos textos que marca o surgimento da escola dos comentadores ou ps-glosadores (sc. XV e XVI), cujo principal trabalho foi o de proporcionar uma anlise integrada das fontes romanas, criando um conhecimento jurdico cada vez mais sistematizado e abstrato18. Passou-se, gradualmente, de um estudo exegtico constitudo basicamente de comentrios a textos isolados, para uma anlise sistematizada do direito romano. Alm disso, cada vez mais os juristas passavam da simples descrio das fontes histricas do direito romano, para um estudo do ento denominado usus modernus pandectarum, ou seja prtica atualizada do direito romano, que implicava uma leitura renovada das fontes romanas adaptandoo s novas necessidades sociais e relacionando-o com o direito legislado e consuetudinrio19. Esse esforo de sistematizao prosseguiu nas escolas jurdicas at o sculo XVII, momento em que o passo definitivo no sentido da construo de um sistema jurdico autnomo foi dado pelos jusracionalistas, que libertaram o direito de sua vinculao estrita ao direito romano e defenderam a criao de um sistema jurdico baseado na prpria razo. Tal processo de autonomizao entre o sistema jurdico e o direito romano comea com Hugo Grcio no sculo XVII, passa por Hobbes, Leibniz, Puffendorf e culmina na obra de Christian Wolff, que, inspirado nos ideaisSobre a metodologia dos comentadores, vide HESPANHA, Panorama histrico da cultura jurdica europia, p. 129. 19 Sobre o usus modernus, vide WIEACKER, Histria do direito privado moderno, pp. 225 e ss.18

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racionalistas do iluminismo e no modo matemtico de argumentar mediante dedues, elaborou em meados do sculo XVIII uma exposio sistemtica do direito more geometrico (ao modo dos gemetras), por meio de uma deduo exaustiva dos princpios de direito natural a partir de axiomas superiores at os mnimos detalhes20. Contudo, como bem adverte o historiador portugus Antnio Hespanha, apesar de os jusracionalistas do sculo XVIII se oporem ao modelo romanista que os precede, eles somente puderam elaborar um sistema jurdico autnomo porque estavam calcados na progressiva construo sistemtica do usus modernus. Assim, se Wolff foi capaz desenvolver um sistema dedutivo to sofisticado, era porque naquele momento o sistema j estava praticamente perfeito, com seus axiomas elaborados: era possvel, ento, que o pensamento jurdico se limitasse a explic-los de forma dedutiva.21 E justamente esse passo que inaugura o pensamento jurdico moderno: construdo a partir de uma depurao dos conhecimentos tradicionais, o jusracionalismo negou precisamente o seu apego tradio, rejeitou sua ligao com a autoridade tradicional e buscou reconstruir seus fundamentos a partir de referncias meramente racionais. Na medida em que se opem tradio que lhe deu vida e busca afirmar-se como uma teoria universalizante fundada na razo objetiva, o jusracionalismo se afirma como radicalmente moderno. Mas a contribuio mais perene do jusracionalismo no foram os mltiplos sistemas de direito natural (que, no fundo, repetem basicamente a tradio romanista e, portanto, no trazem grande inovao), mas o oferecimento das bases para o desenvolvimento da teoria de justificao mais relevante da modernidade, que o contratualismo. O contratualismo uma argumentao que assenta seus fundamentos em uma viso jurdica de mundo, pois ele acentua o fato de que os vnculos que estabelecem a base da sociedade so estabelecidos por um contrato, ou seja, por um instrumento jurdico derivado da vontade individual das partes envolvidas. Dado que os homens eram entendidos como indivduos livres e iguais, a nica legislao vlida seria uma espcie de auto-legislao, estabelecida por meio de uma deciso poltica fundada em critrios racionais. Assim, j no se trata mais da mera aceitao das verdades tradicionais, nem da justificao das autoridades constitudas, nem da afirmao de que a sociedade uma derivao espontnea da natureza humana. Frente crescente heterogeneidade das sociedades modernas e ao individualismo que as marca, era preciso uma teoria que religasse o homem 20 21

WIEACKER, Histria do direito privado moderno, p. 362. HESPANHA, Panorama histrico da cultura jurdica europia, p. 123. 25

sociedade, e a nica sada que se mostrou plausvel foi a de estabelecer um vnculo jurdico, fundado no uso autnomo da razo. Hobbes, por exemplo, que elaborou pela primeira vez um sistema contratualista slido, articula em seu conceito de direito natural os dos dois conceitos que sustentam as teorias contratualistas, que so o interesse e a razo individuais, afirmando, no Leviat, que o direito da natureza, a que os autores normalmente chama de jus naturale, a liberdade que cada homem possui de usar seu prprio poder, da maneira que quiser, para a preservao de sua prpria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqentemente de fazer tudo aquilo que seu prprio julgamento e razo lhe indiquem como meios adequados para esse fim.22 Essa razo autnoma e livre, utilizada pelos sujeitos no sentido de garantir os seus interesses individuais, uma marca do pensamento moderno que se mostra claramente no contratualismo e no seu carter propriamente revolucionrio, que o de recusar veementemente todas as justificaes tradicionais do poder oferecidas pelas vertentes jusnaturalistas precederam o jusracionalismo. Com isso, o jusracionalismo ofereceu uma linguagem na qual foi possvel formular a idia do contrato social abstrato, vinculado razo e ao interesse individuais, e no tradio e autoridade posta. Essa tentativa de assentar a validade do contrato em uma lei natural derivada da prpria razo humana foi repetida, com variaes relevantes, por Locke (que sustentou um jusnaturalismo liberal contra o absolutismo hobbesiano) e por Rousseau (que construiu uma teoria contratualista democrtica). Porm, em todos esses casos, a razo humana foi colocada na base de um contrato que estabelecia as bases para a organizao de uma autoridade social legtima. E, na base da sociedade, no estava mais a autoridade, nem o sagrado, nem a tradio, nem a solidariedade, nem o vnculo com os antepassados, mas a norma, com sua abstrao e generalidade. Portanto, foi o jusracionalismo que fixou a norma como o elemento jurdico fundamental, abrindo espao para o positivismo normativista que veio a tornar-se a concepo jurdica hegemnica do sculo XIX. 2. Crise do jusracionalismo Os sculos XVII e XVIII foram o pice do jusracionalismo, ou seja, das correntes jurdicas que entendiam ser possvel descobrir regras jurdicas racionalmente necessrias e, nessa medida, universalmente vlidas. Antes dessa poca, o direito natural era entendido como um conjunto de princpios genricos, ligados idia de justia, que serviam como padro para aferir a legitimidade do22

HOBBES, Leviat, p. 113. 26

direito positivo23. Era assim, por exemplo, em So Toms, que afirmava que o direito natural resumia-se basicamente no princpio faz o bem e evita o mal, sem decomp-lo em um sistema de regras especficas e hierarquicamente estruturadas, tal como vieram a fazer vrios dos jusnaturalistas da Idade Moderna24. Ademais, como ensina o historiador francs Michel Villey, tanto na Antigidade clssica como na Idade Mdia, o prprio termo direito no se referia a um conjunto de regras. Nessa poca, a palavra empregada para designar o direito era derivada do adjetivo latino jus, sendo que o direito no era tratado como uma coisa (ou conjunto de coisas), mas como um predicado a ser atribudo. Assim, o termo direito no era utilizado como um substantivo que designava um objeto determinado, mas como um adjetivo que indicava aquilo que justo, sendo que esse modo de emprego, derivado da cultura greco-romana, permaneceu na cultura europia at a poca do jusracionalismo iluminista, quando se consolidou o uso substantivo da palavra.25 Um dos motivos dessa mudana foi que, na modernidade, construiu-se a noo de que cada sujeito individualmente poderia estudar o mundo utilizando-se de sua prpria razo e descobrir, a partir da observao acurada e da anlise cuidadosa, as regras que o regiam. Era isso o que fizeram os fsicos, como Newton, reduzindo a complexa natureza a reflexos da aplicao de um punhado de regras muito gerais. Era isso o que tentaram fazer os juristas, que utilizavam a razo para extrair da natureza das coisas os princpios fundamentais que eram vlidos porque racionais. Dessa maneira, o direito natural tornou-se no s uma mera coleo de algumas

Sobre esse tema, ver ROSS, Direito e justia, pp. 287. 24 Vide ROSS, Direito e justia, pp. 287 e ss. 25 Cf. VILLEY, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 23 [traduo livre]. E continua Villey: Esse fato mostra-se bastante claramente em um dos conceitos de direito mais repetidos da histria: a do jurisconsulto romano Celso, que definia o direito como a arte do bom e do eqitativo. Quase toda vez que essa frase dita nos dias de hoje, antiga concepo de direito repetida, mas no compreendida. O direito no era entendido como o conjunto de regras boas e eqitativas, mas como uma qualidade das decises e condutas que so boas e eqitativas. A concepo do direito como conjunto de regras bastante recente, mas introduziu-se de tal modo em nosso senso comum que difcil perceber que possvel pensar de modo diverso. Certas regras so jurdicas porque so justas. Certas decises so jurdicas porque so boas. Certas condutas so jurdicas porque so eqitativas.23

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idias importantes ou dogmas, mas um sistema jurdico detalhado semelhante quele do direito positivo26. Porm, embora cada jurista considerasse que as regras que descobria eram universalmente vlidas, cada um deles construa um sistema diferente, fundado em seus prprios preconceitos. Afirmando descobrir regras universais a partir de critrios de evidncia27, terminavam por afirmar como vlidas (porque lhe pareciam evidentes) as regras fundamentais de sua cultura e/ou ideologia.28 Como afirmou Michel Villey, por mais que soe absurdo aos ouvidos contemporneos (acostumados com o relativismo de valores que se implantou desde o momento em que se tentou levar s ltimas conseqncias o direito de liberdade), houve um tempo em que as mentes mais brilhantes acreditavam que a racionalidade humana, fundada em raciocnios pensados conforme as regras da lgica, poderia nos mostrar quais eram os valores naturalmente corretos, porque racionalmente necessrios. 29 Torna-se, ento, evidente o importante papel desempenhado pelo jusracionalismo na derrubada do antigo regime, pois muitos dos grandes jusracionalistas do sc. XVIII defendiam a naturalidade dos direitos vinculados ao iderio liberal. Nesse campo, especial destaque deve ser dado a Locke, que qualificou como naturais os direitos ligados concepo liberal. To forte era essa ligao com a idia de direitos naturais que, na clebre Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, os revolucionrios franceses resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienveis e sagrados do homem30, entre os quais a liberdade, a igualdade e a propriedade. Entretanto, vitoriosa a revoluo contra o antigo regime, um jusracionalismo muito livre transformava-se em um elemento de instabilidade, pois os juristas vinculados a essa corrente poderiam buscar, individualmente, os princpios do direito natural e, com isso, sobrepor as regras que encontrasse (ou pensasse

ROSS, Direito e justia, p. 288. 27 A evidncia era o critrio bsico de verdade para as cincias e para a filosofia desde Descartes (sc. XVII). 28 Sobre esse tema, convm ler o modo como Thomas Hobbes enuncia as vrias regras do direito natural nos captulos XIV e XV do Leviat. 29 VILLEY, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 23 e ss. [traduo livre] 30 www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html26

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encontrar) ao direito positivo imposto pelo Estado31. Com isso, o jusnaturalismo de combate que animou os revolucionrios precisava ser convertido em um jusnaturalismo conservador, que justificasse a ordem de poder instaurada pela revoluo. A justificao de todo poder envolve uma espcie de mitologia, e as revolues liberais substituram o mito do direito divino dos reis pelo mito da representao popular. Os deputados franceses no eram mais representantes do povo do que Lus XIV era representante do deus cristo, mas era impossvel articular dentro da ideologia liberal um discurso que questionasse a sua legitimidade, pois as bases ideolgicas que justificavam a instaurao dos Estados Liberais, fundados no princpio da representao democrtica, no permitiam a elaborao de uma crtica a modelo de organizao poltica. Alm disso, no plano da filosofia, foi-se consolidando paulatinamente a idia de que a razo no era capaz de discernir o justo do injusto, mas tratava-se de um instrumento capaz apenas de discernir o verdadeiro do falso32. Aos poucos, foi sendo minada a confiana em que um indivduo seria capaz de identificar as regras justas por natureza, mediante critrios de evidncia racional. Assim, embora no tenha sido abandonada a idia do direito natural enquanto fundamento da ordem positiva, perdeu terreno a idia jusracionalista de que cada jurista poderia descobrir os princpios justos por natureza, mediante um esforo individual de reflexo. Especialmente a partir da Revoluo Francesa de 1789, somente ao legislador cabia a revelao do direito natural, restando ao juiz apenas o papel de aplicar o direito legislado aos casos concretos. Portanto, o juiz agia em nome do direito natural (que justificava a autoridade que o povo transmitia ao legislador), mas no poderia invocar o direito natural contra as decises legislativas. Foi, ento, abandonado o ideal cartesiano, deveras revolucionrio, do indivduo que buscava identificar racionalmente na natureza as suas leis, e consolidou-se a idia de que as normas jurdicas vlidas eram aquelas determinadas pelos poderes sociais estabelecidos. Assim, o jusnaturalismo liberal deixou de ter uma funo iconoclasta, pois j no era mais uma arma para combater uma tradio hegemnica, mas a base mtico-ideolgica para a instaurao de uma nova tradio. Essa converso exigiu que fosse inviabilizada uma ligao direta entre o juiz e o direito natural, estabelecendo-se entre esses dois elementos uma relao necessariamente

Tal como veio a fazer, por exemplo, o bom juiz Magnaud, no final do sculo XIX. Vide PERELMAN, Lgica jurdica, pp. 96. 32 CF. VILLEY, Seize essais de philosophie du droit dont un sur la crise universitaire, p. 24.31

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mediada pela lei: a lei deveria refletir as regras naturais, mas os juristas no poderia questionar a validade da lei com base em argumentos jusnaturalistas. E, como no incio do sculo XIX no havia um discurso crtico para alm do jusnaturalismo iluminista, a perda do sentido revolucionrio do jusnaturalismo privou o discurso jurdico de seus instrumentos de crtica. Assim, como todo revolucionrio que ascende ao poder, o jusnaturalismo tornou-se um conservador bastante inflexvel, pois o que o movia no era o respeito relativista s diversidades, mas a afirmao apaixonada da utopia que ele ergueu contra a tradio que destronou. E, como esse jusnaturalismo propunha uma espcie de sacralizao do direito positivo, a sua cristalizao como discurso legitimador do direito moderno foi primeiro grande passo para a formao da mentalidade positivista, que veio a tornar-se hegemnica na teoria jurdica desde o sculo XIX. 3. A formao do positivismo O positivismo jurdico normativista a segunda grande matriz do pensamento jurdico moderno e, em suas diversas variaes, tornou-se a concepo dominante no direito no decorrer do sculo XIX e ainda hoje domina o senso terico dos juristas. Para manter essa posio hegemnica por tanto tempo, esse positivismo teve de modificar-se vrias vezes, incorporando parcela das crticas que outras teorias concorrentes levantaram, mas sempre mantendo um certo ncleo: a pretenso de constituir em uma avaliao objetiva do direito positivo. O positivismo maduro um discurso que se pressupe cientfico, na medida em que elege um objeto emprico determinado (o direito positivo), um arsenal terico comum (a teoria geral do direito) e um mtodo especfico (os mtodos de interpretao apresentados por cada escola para proporcionar uma compreenso objetiva do direito positivo). Na medida em que adota o discurso cientfico, o positivismo aparentemente se liberta do jusracionalismo, pois enquanto este precisava justificar racionalmente a validade das normas que seus tericos elaboravam, os positivistas percebem sua funo como a de simplesmente descrever o direito vigente. Na medida em que se desoneram da necessidade de justificar metafisicamente a validade das normas positivas (o que conduz fatalmente a raciocnios metafsicos) e se limitam a uma postura descritiva (ligada ao discurso cientfico da modernidade), os positivistas resolvem o problema da fundamentao do direito de modo bastante peculiar: eles simplesmente abandonam o problema, por entender que se trata de uma questo filosfica e no cientfica.

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Essa separao entre filosofia e cincia permite que um mesmo jurista harmonize dentro de si o jusracionalismo contratualista dominante na filosofia jurdica (que lhe refora o compromisso com o sistema e assegura um sentido tico para sua prpria atividade) e o positivismo dominante no discurso prtico (que limita-se construo de uma dogmtica que exclui de si mesma todo debate filosfico). No por outro motivo que Alf Ross afirma que os normativistas dogmticos so normalmente jusnaturalistas disfarados, pois o seu positivismo se assenta sobre um jusnaturalismo implcito, que no encontra espao na linguagem dogmtica, mas que est na base do edifcio de crenas ideolgicas que organizam a atividade prtica dos juristas. Trata-se, portanto, de uma concepo eminentemente moderna, tanto no tipo de racionalidade que o estrutura (cientificista, monolgica e unitria) quanto no tipo de cegueira ideolgica que o caracteriza (e que o torna incapaz de enxergar em si suas prprias bases filosficas). Cumpre ressaltar que embora o positivismo tenha se instaurado tanto no Common law quanto na tradio romano-germnica, ele adquiriu feies peculiares em cada uma dessas tradies. No Common law, por mais que a autoridade do parlamento tenha sido afirmada pelas constituies burguesas, o direito comum, de matriz jurisprudencial continuou sendo hegemnico, mesmo que o direito legislado ganhasse espao em uma srie de mbitos do jurdico. Porm, tal como o statutory law (direito legislado), o common law estatal, escrito e positivo ( inferido da jurisprudncia dos tribunais, a partir da leitura das suas decises). Na Europa continental e em sua rea de influncia, a implantao dos Estados liberais envolveu um processo de reduo do direito lei, que erigiu ao status de fonte primria o direito legislado pelos parlamentos. Nessa nova realidade, o direito romano perdeu sua funo de direito subsidirio e o direito costumeiro foi reduzido a fonte secundria, subordinada lei. Esse direito legislado moderno (no sentido do direito caracterstico das sociedades modernas) imp-se em grande parte da Europa continental antes que fosse possvel desenvolver um arsenal de conceitos adequados sua compreenso e aplicao. Portanto, era preciso elaborar algo que ainda no existia: uma teoria jurdica capaz de lidar com o direito legislado, o que forou uma ruptura com o jusnaturalismo e a tradio costumeira, pois a dogmtica do direito moderno j no mais podia admitir como fonte primria seno o prprio direito legislado. Nessa medida, vrias correntes do positivismo contemporneo podem ser vistas, ao menos parcialmente, como uma forma de adaptao da teoria jurdica a31

uma mudana efetiva na realidade poltico-jurdica subjacente. Ressalte-se que isso no significa afirmar uma espcie de primazia do emprico sobre o simblico, como se o conhecimento jurdico fosse apenas uma superestrutura voltada sustentao ideolgica do direito existente. Em grande medida, o direito moderno foi moldado pelas pretenses jusnaturalistas, com suas pretenses de clareza e sistematicidade. Portanto, as concepes modernas de mundo esto inscritas na prpria estrutura do direito, no se tratando apenas de uma forma derivada de justificao ideolgica. Porm, o direito que nasceu influenciado pelas presses ideolgicas da modernidade escapava dos critrios tradicionais dos saberes jurdicos, o que fez com que, nesse caso especfico, a teorizao sobre o direito legislado fosse posterior ao seu prprio surgimento. Peculiarmente, as bases metodolgicas para pensar o direito legislado no foram desenvolvidas nos pases de direito codificado, mas nos pases germnicos, onde predominou at o final do sculo XIX uma mistura de direito costumeiro e de direito romano. A inexistncia de um direito codificado fez com que a modernizao do direito passasse por uma espcie de cientifizao dos saberes jurdicos, que se organizaram sob inspirao das cincias exatas e adquiriram um novo patamar de rigor sistemtico e conceitual. Porm, essa sistematizao dos saberes jurdicos terminou por consolidar-se na forma do Cdigo Civil alemo de 1900, que uniu as duas grandes vertentes do positivismo oitocentista: o legalismo de origem francesa e o formalismo conceitual de origem germnica, que foram os grandes vetores da formao do senso comum que dominou o senso comum dos juristas no sculo XX.

Captulo II - O legalismo positivista1. A reduo do direito lei O primeiro grande marco do modo contemporneo de elaborar normas jurdicas foi o Cdigo Civil francs de 1804, cuja histria revela bastante de como o desenvolvimento de novos padres de legalidade33 colaborou para o surgimento de uma mentalidade positivista. Quando a Revoluo de 1889 irrompeu na Frana, as leis ainda no haviam sido sistematizadas na forma de cdigos, de forma que o direito se encontrava em grande

E houve alteraes tanto no contedo e abrangncia das leis (que abarcaram uma maior gama de assuntos e passaram a trat-los de modo mais exaustivo), quanto nos modos de se legislar e de se ensinar o direito.33

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medida esparso em costumes locais e leis extravagantes34. Essa configurao jurdica, que o senso moderno tende a perceber como atrasada e precria, era tpica de um momento em que os Estados no tinham pretenso de regular minuciosamente todas as relaes sociais. Mesmo que os regimes absolutistas tenham ampliado a relevncia da legislao, dentro deles ainda prevalecia a pluralidade de fontes que marcou o direito medieval. Assim, a organizao absolutista do Estado implicava um projeto de hegemonia das leis (vistas como superiores s outras fontes do direito positivo), mas no de monoplio do direito legislado. Essa situao comeou a mudar com o despotismo esclarecido, por meio do qual algumas monarquias ingressaram no processo de modernizao pregado pelo iluminismo. Exemplo paradigmtico desse perodo foi uma lei portuguesa promulgada em 1769: a Lei da Boa Razo, que alterou o sistema de fontes do direito portugus luz do despotismo esclarecido, impondo a todos os juzes a observao estrita das leis editadas pela coroa35. Naquele momento, ainda eram vigentes as Ordenaes Filipinas, de 1603, cujo livro III, ttulo LXIV, determinava minuciosamente a hierarquia das fontes de direito, estabelecendo que os casos que no fossem pela prpria ordenao deveriam ser julgados com base nas leis, na jurisprudncia das cortes ou no direito consuetudinrio local. Na hiptese de essas trs fontes serem omissas, o caso deveria ser julgado com base no direito romano ou, se a questo envolvesse pecado, de acordo com o direito cannico. Porm, se o Corpus iuris civilis no determinasse uma soluo precisa para o caso, deveria ele ser julgado com base nas glosas de Acrsio e de Brtolo. Por fim, se os juzes no encontrassem em nenhuma dessas fontes subsdios adequados para o julgamento, a questo deveria ser remetida ao prprio rei, para que ele a decidisse. A Lei da Boa Razo veio modificar esse sistema de fontes, mediante o fortalecimento da autoridade da lei, a excluso do direito cannico, a conteno do direito consuetudinrio e, principalmente, a limitao ao uso do direito romano, cuja aplicao pelos juzes chegava a funcionar como um limite prpria autoridade real. Tanto era assim que o historiador portugus Antnio Hespanha afirma que em relao doutrina, a lei no era apenas um fenmeno minoritrio, era tambm um fenmeno subordinado36.Lei extravagante a denominao normalmente utilizada na linguagem jurdica para designar as leis que no so cdigos, ou seja, leis que tratam de um ponto especfico de uma determinada matria, em vez de sistematizar todo um campo do direito. 35 Vide GILISSEN, Introduo histrica ao direito, p. 335. 36 HESPANHA, Justia e litigiosidade, p. 13.34

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A Lei da Boa Razo assim foi batizada porque ela se justifica pelo fato de que, embora as Ordenaes Filipinas mandassem obedecer ao direito romano apenas na medida em que ele era fundado na boa razo, muitos juzes tomaram essa permisso por pretexto para aplicar quaisquer normas romanas, sem fazer diferena entre as que eram baseadas na boa razo e as que tm visvel incompatibilidade com a boa razo, ou no tem razo alguma, que possa sustent-las, ou tm por nicas razes, no s os interesses dos diferentes partidos, que nas revolues da Repblica, e do Imprio Romano, governaram o esprito dos seus Prudentes, e Consultos, segundo as diversas faces, seitas, que seguiram37. Com isso, em vez de insistir na tendncia medieval de sacralizao do direito romano, os iluministas do final do sculo XVIII acentuavam a incompatibilidade da Europa moderna com os costumes particulares dos romanos, que nada podem ter de comuns com os das Naes, que presentemente habitam a Europa, como supersties prprias de Gentilidade dos mesmos Romanos, e inteiramente alheias da Cristandade dos sculos, que depois deles se seguiram38. Nesse sentido, especial ateno o fato de que foram vedadas as referncias s glosas de Brtolo e Acrsio, sob o argumento de que esses autores foram destitudos; no s de instruo da Histria Romana, sem a qual no podiam bem entender os textos que fizeram os assuntos dos seus vastos escritos, e no s do conhecimento da Filologia, e da boa latinidade, em que foram concebidos os referidos textos; mas tambm das fundamentais regras do Direito Natural, e Divino, que deviam reger o esprito das Leis, sobre que escreveram39. Assim, a Lei da Boa Razo representa um momento em que os Estados tentavam estabelecer a lei como a fonte de maior hierarquia e a referncia jurdica primria para o exerccio da jurisdio. Porm, a vitria das revolues burguesas trouxe uma radicalizao desse projeto, dentro do esprito de reductio ad unum da modernidade, desencadeando o que o historiador portugus Antnio Hespanha chama de projeto de reduo do pluralismo40: a tentativa de reduzir o todo o direito social

ALMEIDA, Ordenaes Filipinas, p. 728. Atualizei o texto desta citao e das demais para o portugus moderno, pois o texto publicado um fac-smile de uma edio publicada em 1870, editada por Candido Mendes de Almeida e republicada pela Fundao Calouste Gulbenkian. 38 ALMEIDA, Ordenaes Filipinas, p. 728. 39 ALMEIDA, Ordenaes Filipinas, p. 729. 40 Sobre esse tema, vide HESPANHA, Justia e litigiosidade, captulo I.37

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ao direito do Estado e todo o direito estatal lei.41 J no bastava garantir a soberania do Estado e a preponderncia da lei, mas era preciso conquistar o monoplio da legislao estatal sobre o direito. Assim, para alm do direito estatal, eram apenas admissveis discretas referncias ao direito natural, mas no aos direitos cannico e romanstico, pois estes configuravam heranas feudais incompatveis com o iluminismo. Alm disso, mesmo que ainda se admitisse a aplicao do direito consuetudinrio, a multiplicao das leis reduziu os costumes a uma fonte supletiva de pouca importncia prtica. Assim, o projeto no se resumia a unificar o direito sob a bandeira do Estado, mas envolvia a criao de um novo direito, adequado ao projeto de organizao social vinculado ao projeto poltico do iluminismo, que j se manifestava no despotismo esclarecido, mas cuja maior expresso foi o Estado de Direito fundado em princpios liberais. Alm disso, com a ascenso da burguesia ao poder e ganhou espao a garantia da segurana jurdica almejada pelos ideais liberais, especialmente ligados garantia de que os contratos devem ser cumpridos e de que a interveno estatal nos negcios privados deveria limitar-se ao estabelecimento das regras gerais claras e homogneas. Dentro desse esprito de unificao e de racionalizao, houve um movimento de sistematizao do direito na forma de cdigos. O processo de codificao era uma demanda originada do jusracionalismo iluminista, que defendia a elaborao de um direito positivo organizado e completo, que cristalizasse na forma de lei o direito natural42. Essa foi a inspirao dos primeiros cdigos, feitos ainda durante os regimes de despotismo esclarecido e

Essa relevncia especial da segurana jurdica serve como pano de fundo para o desenvolvimento de todo o positivismo formalista posterior, sendo comuns afirmaes como as do jurista portugus Domingues de Andrade, no sentido de que a vida e o esprito postulam um direito recto, quer dizer, justo e oportuno: um direito que harmonize a pura justia que valore e julga a realidade existente, aspirando a estrutur-la segundo um modelo ideal, com o efectivo e relativo condicionalismo dessa mesma realidade, um direito, no fim de contas, que estabelea a justia do possvel ou a possvel justia. Mas por outro lado a vida pede tambm, e antes de tudo, segurana, e portanto um direito certo, ainda que seja menos recto. A certeza do direito, sem a qual no pode haver uma regular previsibilidade das decises dos tribunais, na verdade condio evidente e indispensvel para que cada um possa ajuizar das consequncias de seus atos, saber quais os bens que a ordem jurdica lhe garante, traar e executar os seus planos de futuro. [DOMINGUES DE ANDRADE, Ensaio sobre a teoria da interpretao das leis, p. 54] 42 Sobre este ponto, vide OLIVECRONA, Law as fact, p. 35.41

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fundados nas obras dos grades jusracionalistas, como Christian Wolff. Na Prssia, por exemplo, aps uma gestao de algumas dcadas, entrou em vigor em 1794 o Allgemeines Landrecth (direito territorial geral), um cdigo construdo a partir do modelo jusnaturalista de Puffendorf e Wolff e que englobava tanto o direito pblico como o privado. Essa codificao representava a verso prussiana do absolutismo esclarecido tardio43 e, unindo o racionalismo naturalista ao centralismo absolutista, ela pretendeu reduzir toda atividade jurdica aplicao direta e literal da lei. A supresso do papel da doutrina e da jurisprudncia chegou a tal ponto que, em 1798, editou-se um decreto proibindo a interpretao atravs de precedentes, de comentrios ou de especiosidades eruditas e determinou que quaisquer dvidas deveriam ser submetidas a uma comisso legislativa para que ela as resolvesse por meio de uma interpretao autntica44. Uma concepo jurdica igualmente naturalista, embora inspirada pelos princpios liberais da revoluo francesa, foi a inspirao dos primeiros projetos franceses de codificao, elaborados por Cambacres antes da subida de Napoleo ao poder45. Porm, com a subida de Nap