Hermenêutica da Libertação

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Hermenêutica da LibertaçãoPablo Richard-RIBLA número 1

INTRODUÇÃO

A Leitura Popular da Bíblia é uma prática de leitura da Bíblia, realizada geralmente nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) inseridas, em meios populares na América Latina, que procura resgatar o sentido histórico e espiritual original da Bíblia, a partir da experiência da presença e revelação de Deus no mundo dos pobres e em função do discernimento e comunicação da Palavra de Deus. Quanto à Hermenêutica da Libertação, é simplesmente a teoria desta prática de leitura popular da Bíblia. No presente artigo procuramos em primeiro lugar analisar todos os momentos constitutivos da prática de leitura popular da Bíblia e, em segundo lugar, elaborar uma teoria hermenêutica libertadora a partir dessa prática de leitura popular da Bíblia. Este artigo terá três partes distintas: na primeira se aborda a raiz do processo hermenêutico; na segunda se fala do objetivo do processo hermenêutico; na terceira, enfim, trata-se da ruptura hermenêutica.

1. Raiz do processo hermenêutico. - Nesta parte se descrevem o novo sujeito histórico e a nova experiência espiritual que se acham na raiz da leitura popular da Bíblia e da Hermenêutica da Libertação. Esta raiz é ao mesmo tempo política e espiritual e isto explica o caráter radical de todo este novo processo hermenêutico na América Latina. Neste item se fala por conseguinte da ruptura política e da ruptura espiritual que está na base da ruptura hermenêutica que constitui a chamada Hermenêutica da Libertação.

2. Objetivo do processo hermenêutico, - Neste tópico se analisa a razão de ser da leitura popular da Bíblia, o para que desta Hermenêutica da Libertação. O povo pobre de Deus lê a Bíblia para discernir e comunicar a Palavra de Deus e, ao fazê-lo, recupera o sentido espiritual da Bíblia. Aqui se aprofunda também o sentido espiritual e sua relação dialética com o sentido literal. Mostra-se igualmente como este resgate do sentido espiritual da Bíblia responde a uma urgente necessidade do povo pobre e fiel, o que,explica a rápida e eficaz difusão da leitura popular da Bíblia.

3. Ruptura hermenêutica. - É o tópico mais analítico e conflituoso de introdução na dinâmica interna do processo hermenêutico libertador na América Latina. A ruptura política e espiritual descrita nos itens anteriores nos leva agora a esta ruptura hermenêutica. Mostra-se aqui a luta ou conflito de leituras ou teorias hermenêuticas, hoje, na América Latina, a partir da perspectiva de libertação política e espiritual dos pobres. Neste artigo não só tivemos o intuito de descrever e refletir criticamente sobre a leitura popular da Bíblia, mas também queremos convencer as CEBs sobre a sua importância e necessidade e entusiasmá-las para que se acerquem dela com se-riedade e constância. Este artigo quer servir em primeiro lugar às CEBs, mas também se destina aos biblistas profissionais chamados a um profundo processo de conversão espiritual e profissional.

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I. RAIZ DO PROCESSO HERMENÊUTICO

a) Novo sujeito histórico - ruptura política

Na raiz do processo hermenêutico latino-americano está o pobre como novo sujeito histórico. O pobre em sentido amplo: o operário, o camponês, o índio, o negro, a mulher, os jovens, todos os marginalizados e oprimidos do campo e da cidade. O pobre também em sentido dinâmico: o movimento popular organizado e consciente. Esse novo sujeito está emergindo lentamente, em processo demorado, doloroso, persistente, que desafia o conjunto da sociedade. Esse novo sujeito histórico entra em contradição sempre maior com o sujeito histórico dominador e opressor. Dá-se uma clara ruptura política no terreno econômico, político, social, cultural e ideológico com o sistema dominante. Forma-.-e também uma nova consciência.

Tudo isto é evidente e constitui o pressuposto teórico básico de nossa hermenêutica. Muitos poderão argumentar que a realidade é complexa e difícil de compreender, que não se pode simplificar demais. Isto é claro, mas é mais evidente ainda o mundo dos pobres, o clamor dos empobrecidos, a organização e consciência do pobre que vai esboçando e construindo um Não se trata aqui de demonstrar a existência do pobre como novo sujeito histórico. Este é para nós fato evidente e irrefutável. O importante agora é demonstrar como esse novo sujeito histórico está na raiz do processo hermenêutico como a nova interpretação bíblica que surge na América Latina tem radicalmente o pobre como sujeito ou se faz na sua ótica. Aí repousa a raiz, a originalidade e a força de nossa hermenêutica Em nenhuma outra teoria hermenêutica isto aparece com tanta clareza e vigor.

b) Nova experiência espiritual - ruptura espiritual

O mundo dos pobres não é apenas uma realidade econômica, política e cultural, mas é também - à luz da fé - o lugar privilegiado da presença e revelação de Deus. Deus vem hoje ao nosso encontro no mundo dos pobres, entendido no sentido amplo e dinâmico acima citado. Ir, nesse mundo que hoje fazemos nova experiência espiritual. Deus aparece neste contexto histórico com outro rosto e nos interpela com uma palavra diferente. A melhor definição teológica de pobre se encontra nesta frase do Evangelho: "Felizes os de coração limpo, porque eles verão a Deus" (Mt 5,8). O pobre que tem o coração limpo de idolatria,, fetichismo, ideologia, soberba e cobiça, é aquele que sente e toca a presença de Deus.

O mesmo acontece com todos aqueles fiéis que têm coração de pobre. Essa experiência espiritual significa uma ruptura com a idolatria, isto é, com toda a perversão do sentido de Deus ou com qualquer substituição de Deus por outros deu-ses. Para ser deveras fiel é preciso destruir toda idolatria. Tudo isto é tão claro que não precisamos demonstrá-lo. O que aqui nos interessa é frisar como esta nova experiência espiritual se acha na raiz do processo hermenêutico latino-americano. A leitura popular da Bíblia na América Latina encontra sua raiz, força e originalidade nesta presença e revelação de Deus no mundo dos pobres.

Em síntese: na raiz da leitura popular da Bíblia e da hermenêutica da libertação, tal como está hoje nascendo na América Latina, está o pobre como novo sujeito histórico e a experiência de Deus no mundo dos pobres como nova experiência espiritual. Isto ao mesmo tempo significa ruptura política com o sistema dominante e ruptura espiritual com a idolatria dominante. Todo o processo hermenêutico leva a marca desta dupla ruptura. Mais adiante iremos falar da ruptura hermenêutica, mas desde já podemos dizer como essa tem sua raiz na ruptura política e na ruptura

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espiritual de que falamos. Devemos acrescentar, também de saída, que a leitura popular da Bíblia não só tem sua raiz na realidade política e espiritual a que fizemos alusão, mas também essa leitura da Bíblia vem reforçar essa realidade política e espiritual. A nova leitura da Bíblia reforça o povo como sujeito da história e reforça essa nova experiência de Deus no mundo dos pobres. A ruptura hermenêutica radicaliza assim a ruptura política e espiritual que se acha em sua raiz. Existe estreita relação, que se reforça em todos os sentidos, entre a realidade política e espiritual do pobre e a leitura popular da Bíblia. A política, a espiritualidade e a hermenêutica se acham intimamente relacionadas e se influenciam profundamente. AI reside nossa força e originalidade.

II. OBJETIVO DO PROCESSO HERMENÊUTICO

A raiz do processo hermenêutico é o lugar onde tem origem esse processo e lhe dá força e orientação. Agora queremos indagar sobre o objetivo, a razão de ser ou o horizonte de sentido do processo hermenêutico. Por que e para que lemos a Bíblia no mundo dos pobres? Que desejamos conseguir com a leitura popular da Bíblia? Assim como a raiz política e espiritual orienta o processo hermenêutico, este também é orientado por seu objetivo ou finalidade, e por aquilo que me proponho conseguir com ele.

a) A Bíblia como critério de discernimento e meio de comunicação da Palavra de Deus

O povo pobre de Deus lê a Bíblia para discernir a presença e revelação de Deus. hoje em seu próprio mundo e para exprimir como é Deus e qual é hoje a sua Palavra. Usa-se a Bíblia, desta maneira, como critério de discernimento e meio de comunicação da presença e revelação atual de Deus. Se o mundo dos pobres é o lugar privilegiado da presença e da revelação de Deus, é mister discernir essa revelação e comunicá-la a outros. Não basta viver essa presença de Deus, é necessário também discernir e comunicar aos outros como é Deus e qual a sua Palavra. Se Deus está vivo entre nós, interessa-nos discernir sua maneira própria de agir hoje e, sobretudo, discernir e comunicar a outros sua Palavra, sua Mensagem, sua Vontade, seu Projeto ou Plano. Para realizar esse discernimento e comunicação o povo pobre e fiel usa a Bíblia.

O objetivo ou razão de ser da leitura popular da Bíblia não está portanto fundamentalmente na Bíblia mesma, mas no discernimento, e na comunicação da Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres. A Bíblia não é o objetivo, mas sim o instrumento para se alcançar tal objetivo. O objetivo reside além da Bíblia, mas, como iremos ver, a própria Bíblia é também transformada na realização desse objetivo. Para evitar confusão, recordemos duas verdades bem simples:

1. A distinção entre Bíblia e Palavra de Deus. A Bíblia não esgota a Palavra de Deus e esta por sua vez transcende o texto da Bíblia. A Bíblia foi escrita numa época e num espaço bem determinados. A Palavra de Deus transcende essa história e chega até nós ao longo de toda a história, pois cremos em um Deus vivo e de vivos que continua comunicando sua Palavra viva a todos os fiéis. 2. A segunda verdade evidente é esta: o único absoluto é a Palavra de Deus, e a Bíblia é algo relativo, um instrumento que se acha em função da Palavra de Deus, a seu serviço. É um instrumento necessário, mas não absoluto, e sim relativo. Ou seja, entende-se em relação à Palavra de Deus. Por isso a leitura popular da Bíblia se acha

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em relação a um absoluto; acha-se a serviço do discernimento e da comunicação da Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres.

b) O sentido espiritual da Bíblia. A Bíblia quando posta a serviço da Palavra de Deus sofre em si mesma contínua transformação. A leitura popular da Bíblia, ao discernir e comunicar a Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres, transforma o próprio sentido do texto bíblico. Em Hermenêutica Geral se afirma que a interpretação do texto é uma produção de sentido no seio de nossa história, capaz de influenciar o próprio texto. Nós dizemos a mesma coisa, mas acrescentamos algo mais fundamental: usando o texto bíblico, para discernir e comunicar a Palavra do Deus vivo que se faz presente e se revela no mundo dos pobres, fazemos uma releitura do texto, releitura que significa transfor-mação libertadora do próprio texto. Essa transformação libertadora do texto, quando usado como meio de discernimento e comunicação da Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres, é que recebe de modo geral o nome de Sentido Espiritual da Bíblia. Vamos esclarecer este conceito.

A Bíblia tem três sentidos: 1. o sentido textual, 2. o sentido histórico 3. o sentido espiritual.

O sentido textual é o sentido do texto considerado em si mesmo como realidade autônoma e com vida própria, com sua estrutura interna e externa.

O sentido histórico é o sentido do texto considerado como testemunho da Palavra revelada em uma história passada concreta. O sentido histórico nos leva à história do texto, tanto à história da produção como à história da redação do texto e nos leva também à história dentro da qual nasceu o texto e na qual esse texto fez história. A partir dessa história o texto adquire novo sentido que se chama sentido histórico.

O sentido espiritual, enfim, é o sentido que o texto adquire quando usado para discernir a Palavra de Deus em nossa história atual e para comunicar essa Palavra a outros. De certa forma pode-se afirmar que o sentido textual nos dá o presente do texto; o sentido histórico nos dá o passado do texto, e o sentido espiritual o futuro do texto. A ciência chamada Semiótica estuda sobretudo o sentido textual; o método histórico-crítico estuda sobre tudo o sentido histórico do texto; também trabalha fundamentalmente nesse sentido histórico o método denominado leitura materialista da Bíblia e a análise sociológica do texto. A Hermenêutica tomada em sentido estrito, trabalha essencialmente o sentido espiritual do texto. No Brasil é comum a distinção entre texto, contexto e pretexto, que aproximadamente corresponde aos sentidos textual, histórico e espiritual. Outros falam do sentido-em-si (textual) e do sentido-para-nós (espiritual).

c) Fundamento teológico do sentido espiritual : Muitas vezes achamos que Deus falou somente no passado e que depois emudeceu; tudo o que Deus tinha a dizer estaria na Bíblia e para escutar a Deus teríamos somente que ler o que diz a Bíblia. Dá-se assim a impressão de que a revelação e a Bíblia são coisas apenas do passado, e de um passado remoto. Isto é uma heresia e se chama normalmente de fundamentalismo. Há um fundamentalismo grosseiro que facilmente rejeitamos, mas existe outro fundamentalismo mais sutil que se apresenta como biblicismo: concentramos a Palavra de Deus só na Bíblia ou em torno da Bíblia; quando fazemos da Bíblia o "depósito" da Palavra de Deus; quando reduzimos a interpretação bíblica a pura explicação ou interpretação do texto etc. A verdade é bem outra: Deus está vivo e continua falando hoje, comunicando-nos hoje sua palavra, sua vontade, pensamento.

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A Bíblia não apenas dá testemunho da Revelação de Deus no passado, mas também nos mostra onde e como Deus hoje no meio de nós. A Bíblia é como uma lanterna, que não só contém energia (pilhas), mas nos ilumina para encontrarmos o caminho. O mesmo com a Bíblia: ela não só contém a Palavra de Deus mas com ela também se nos revela a Palavra de Deus em nossa história atual. Os fundamentalistas colocam a lanterna bem na frente dos olhos e assim vêem menos do que quando a lanterna estava apagada. O sentido espiritual é a força e a luz que saem do texto para descobrirmos a Palavra de Deus hoje; quando descobrimos essa Palavra, o texto mesmo ganha por sua vez novo sentido.

Também se esclarece o sentido espiritual da Bíblia quando se parte do conceito de "cânon bíblico". (do grego) significa literalmente "norma" e se usa para designar a lista de livros do AT e do NT considerados livros inspirados, que são os livros que configuram aquilo que chamamos de Bíblia. A comunidade judaica primeiro e, depois, a Igreja cristã fixou a lista ou o cânon dos livros inspirados após longa história, por vezes demasiadamente humana, onde ocorreram muitas discussões, em que julgamos ter influído o próprio Espírito Santo. Foi um longo trabalho de discernimento e experiência no manejo espiritual e profético dos textos bíblicos. Existe uma opinião teológica vulgar que acredita, com a fixação do cânon se encerrou o tempo da revelação divina. Quando se fixa o cânon certamente se rejeita que apareçam novos livros inspirados com a pretensão de serem bíblicos, mas com tal rejeição não se dá por fechada a revelação de Deus. Deus não emudece pelo fato de se ter fechado o cânon bíblico. Deus continua vivo e conosco e, se é um Deus vivo, é um Deus que fala, um Deus que se revela e se comunica. Cânon significa "norma", ou seja, "medida", "critério".

O cânon é instrumento para se trabalhar, para abrir e não para fechar ou encerrar. Em linguagem humana existe algo semelhante, por ex., existe o "metro", padrão de medida estabelecido e convencional, com o qual posso medir uma coisa e dizer por ex. que uma rua tem 2O metros de largura. De forma análoga, quando se fixa o cânon, a Igreja aceita como "medida" ou "critério" para "medir" ou "discernir" a Palavra de Deus, um número determinado de livros bíblicos. Esses livros e nada mais que eles podem ser usados para discernir a Palavra de Deus. A Bíblia contém a revelação de Deus e é Palavra de Deus, mas ao mesmo tempo é, enquanto tal, critério de discernimento da Palavra viva de Deus que se revela ao longo de todos os tempos.

A Bíblia não só nos revela a Palavra de Deus, mas também nos revela onde e como Deus se revela hoje em nossa história. O sentido textual ou literal da Bíblia dá testemunho da revelação da Palavra de Deus referida a um tempo e espaço determi-nados, mas o sentido espiritual da Bíblia permite-nos descobrir essa revelação da Palavra de Deus em situações históricas posteriores ao tempo bíblico da revelação. Deste modo aquilo que denominamos "cânon" corresponde ao que chamamos de "sentido espiritual da Bíblia".

Muitas vezes damos a impressão de que para escutar a Palavra de Deus é mister ler com fé o texto bíblico, como se apenas lendo um texto se pudesse escutar a Palavra de Deus. Acha-se que Deus falou a Abraão, a Moisés e aos profetas... que Deus falou claramente e em plenitude em Jesus e depois deixou de falar. Deus teria falado só no passado e tudo o que teria a dizer aos homens deixou por escrito no texto da Bíblia. Agora só nos restaria ler a Bíblia para poder escutar a Palavra de Deus. Isto está errado e corresponde à heresia do fundamentalismo. O Deus do fundamentalismo é um morto, ou pelo menos mudo e distante. Não é o Deus vivo que continua a se comunicar com seu povo e a lhe revelar a todo momento sua Palavra. Uma cristologia falsa também apresenta muitas vezes Jesus cume ou ponto culminante da revelação divina. Tudo teria sido dito e feito em Jesus. Só nos restaria explicar ou repetir o que

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Jesus disse e fez. Muito mais correto seria dizer que em Jesus certamente ocorreu a plenitude da revelação, mas plenitude aqui não significa fim da revelação e comunicação de Deus. Jesus como plenitude da revelação do Pai é a chave hermenêutica por excelência para se discernir a Deus em nossa história. Com Jesus se inaugura novo tempo onde se dá uma comunicação muito mais abundante de Deus com seu povo.

Espírito de Jesus que nos conduz a toda a verdade (cf. Jo 16,13). Jesus veio para abrir a tória a maior proximidade e comunicação com Deus; Jesus não veio para fechar a revelação e sim para torná-la mais transparente, mais próxima, ffiais abundante. A Bíblia não é um "depósito" fechado, de onde só podemos "tirar" a Palavra de Deus. O fundamentalismo reduz a Bíblia a uma letra sem Espírito e faz da Bíblia um objeto morto meramente arqueológico. Tampouco podemos cair no extremo oposto de negar à Bíblia sem caráter "canônico", isto é, normativo para discernir a Palavra de Deus. Temos que fazê-lo com critérios bem determinados, e é a Bíblia enquanto "cânon" que nos oferece esses critérios e, sobretudo, o critério por exce-lência - Jesus. Mais adiante voltaremos a este ponto.

d) O sentido espiritual nos Santos Padres

Na tradição patrística tornou-se clássica a distinção entre sentido literal e sentido espiritual da Bíblia. O sentido literal nos ensina o já passado e dito na história, mas é o sentido espiritual que cria em nossa história atual novo espaço para a Palavra de Deus. O sentido espiritual, por sua vez, era visto sob três dimensões: o sentido alegórico, o moral ou tropológico e o anagógico ou escatológico. Existe um antigo dito latino que resume de forma precisa a teoria dos sentidos da Bíblia: Littera gesta docet, quid credas allegoria moralis quid agas, quo tendas anagogia. (A letra ensina os fatos, o que deves crer ensina-o a alegoria, o que deves fazer ensina-o o sentido moral, e a anagogia aponta para onde te deves encaminhar).

O sentido literal (littera) nos conta os fatos (gesta), mas estes fatos não têm sentido para nós se não lhes descobrimos o sentido espiritual. Uma primeira dimensão do sentido espiritual é o sentido alegórico (allegoria), que nos indica o que devemos crer, isto é, constitui uma nova interpretação, funda uma nova teologia, uma nova maneira de entender. Uma segunda dimensão do sentido espiritual é o sentido moral (moralis) ou sentido tropológico ou antropológico, que nos ensina o que devernos fazer, isto é, este sentido cria uma nova prática, uma nova maneira de ser ou agir na história. Enfim, temos a dimensão dada pelo sentido anagógico (anagogia) ou escatológico, que nos indica para onde devemos caminhar ou tender, isto é, cria uma nova esperança, novo projeto histórico, nova utopia.

Em síntese: O sentido espiritual da Bíblia cria em nós nova maneira de compreender, viver e esperar (quid credas, quid agas, quo tendas), o que significa uma nova experiência da Palavra de Deus. A Palavra de Deus é vivida em nova teologia, em nova práxis e em novo projeto histórico ou utopia. Se o sentido literal descobre a história passada da Palavra de Deus, o sentido espiritual revela essa Palavra de Deus em nosso pensamento, prática e esperança. A Bíblia lê na história passada a Palavra de Deus, mas também lê essa Palavra em nossa realidade, em nossa maneira de ser, pensar e esperar. Nós lemos a Bíblia (sentido literal), mas também a Bíblia nos lê a nós (sentido espiritual), isto é, revela em nossa práxis, em nossa teologia e em nossa utopia a Palavra de Deus.

e) Relação dialética entre sentido literal e sentido espiritual O povo pobre e crente tem especial capacidade para captar e desenvolver o sentido espiritual da Bíblia. O povo compreende o texto bíblico quando pode com ele iluminar

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sua própria realidade. Compreende-se o texto quando através do texto se revela na história atual a Palavra de Deus. Este é precisamente o sentido espiritual. No descobrimento desse sentido espiritual está atuando de forma direta e eficaz, o próprio Espírito Santo. O Mestre que ensina e conduz à plena verdade é o Espírito que opera de forma eficaz no povo simples que busca a Palavra de Deus. Muitas vezes as CEBs descobrem um sentido profundo nas Escrituras, que nenhum exegeta ou agente de pastoral , jamais suspeitara. Os pobres, os de coração puro, os que têm fome e sede de justiça são os primeiros a captar a Palavra viva de Deus que se revela hoje em nossa história. A partir desse descobrimento da Palavra de Deus, realizado com a força do sentido espiritual da Bíblia, chega-se a uma compreensão também muito mais profunda do sentido histórico e textual da própria Bíblia.

O sentido espiritual da Bíblia geralmente não se acha nas obras dos grandes exegetas ou especialistas. Por isso as suas obras muitas vezes não dizem nada àqueles que procuram em sua vida descobrir a Palavra de Deus. São obras cheias de erudição, mas mortas, sem espírito. Como disse alguém: "Quanto mais leio os comentários bíblicos, menos entendo a Bíblia, e quanto mais leio a Bíblia menos entendo os comentários bíblicos". O que acontece é que os especialistas só procuram entender o sentido textual e histórico da Bíblia e descuidam o sentido espiritual. Muitos exegetas são apenas arqueólogos do texto bíblico, homens do passado, sem Espírito. Os eruditos devem aprender muito mais do trabalho exegético espiritual do povo simples que, com a ajuda do Espírito Santo e do próprio texto bíblico, têm às vezes maior capacidade de escutar a Palavra de Deus e finalmente maior capacidade para entender a própria Bíblia.

Tudo o que se disse acima quer valorizar a importância do sentido espiritual da Bíblia. No entanto, essa importância e eficácia do sentido espiritual não invalidam a necessidade do sentido literal. Não se pode prescindir do sentido literal e do trabalho exegético para "controlar" o sentido espiritual. O sentido espiritual da Bíblia só se pode desenvolver a partir do sentido literal e tendo o sentido literal como norma e critério (cânon) de discernimento da Palavra de Deus. O sentido espiritual deve ser sempre o sentido do texto. Da mesma forma o exegeta profissional deve entrar como "vigilante" do processo hermenêutico, para vigiar pelo sentido textual e histórico do texto. Antigamente muito se abusou do sentido espiritual do texto bíblico. Com o texto se fazia todo tipo de alegorias, descaracterizando-o totalmente. Pode-se cair assim numa espécie de espiritualismo bíblico. Por isso é mister - a intervenção constante e vigilante tanto do exegeta como do sentido textual e histórico do texto. Essa relação dialética e fecunda entre povo fiel e exegeta, entre sentido espiritual e literal, ocorre normalmente no seio da comunidade cristã e no seio da Igreja. A comunidade põe em diálogo o exegeta vigilante do sentido literal e histórico do texto e o povo pobre de Deus que, com ajuda do Espírito Santo, cria sem cessar o sentido espiritual na história, descobrindo e incansavelmente comunicando a Palavra de Deus.

Dissemos que o mestre por excelência do sentido literal o histórico é o exegeta profissional. Do mesmo modo, o Mestre por excelência do sentido espiritual do texto é o Espírito Santo. Mas isto não deve provocar exageros na "divisão social do trabalho". O exegeta profissional deve também pôr-se à escuta do Espírito para descobrir o sentido espiritual do texto. Igualmente, o povo pobre, que é leitor simples do texto, que nele procura sobretudo o sentido espiritual, deve na medida do possível ter conhecimentos exegéticos que lhe dêem acesso direto ao descobrimento do sentido histórico e textual da Bíblia. O exegeta deve aprender da leitura espiritual da Bíblia, feita pelo povo, e o povo deve também aprender com a leitura histórica e textual do exegeta. Claro que cada um há de manter seu próprio espaço e carisma de leitura e discernimento.

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f) Urgência e necessidade do sentido espiritual da Bíblia

Queremos terminar este item, sobre o objetivo ou a razão de ser do processo hermenêutico, mostrando como o sentido espiritual da Bíblia responde a uma necessidade espiritual do povo pobre e que vive da fé. Quando fazemos a leitura popular da Bíblia para discernir a Palavra de Deus em nossa história e para comunicá-la a outros, estamos respondendo a uma necessidade real do povo de Deus. Pelo fato de responder a uma necessidade real, o povo procura essa leitura espiritual da Bíblia e a considera urgente e importante. Não é luxo ideológico ou espiritualista, mas responde de fato a uma necessidade profunda do povo empobrecido. Vejamos por quê.

O povo dos pobres sofre normalmente profunda contradição entre sua experiência de Deus e a teologia dominante. Quando o povo se organiza e começa a tomar consciência e, por um processo de evangelização, descobre a Deus em seu próprio mundo, então normalmente tal experiência de Deus entra em contradição com as concepções dominantes de Deus. Isto é especialmente certo na América Latina, continente profundamente religioso e ao mesmo tempo tremendamente oprimido. No mundo dos pobres fazemos a experiência de um Deus libertador, um Deus vivo e transcendente, o Deus dos empobrecidos e pobres que reconhecemos como o Deus de Jesus, o Deus da Bíblia. Mas no mundo opressor encontramos uma espiritualidade e teologia profundamente idolátrica, onde se manipula a Deus ou se substitui o Deus verdadeiro por falsos deuses.

Quanto mais o povo pobre ganha consciência da presença e revelação de Deus entre os pobres, tanto mais se sofre essa contradição com a teologia idolátrica dominante. Por isso é que o povo precisa da leitura popular da Bíblia, justamente para resolver essa contradição. Lendo a Bíblia para discernir a presença e a revelação de Deus em sua própria história, o povo pobre e que vive da fé tem, a partir dessa experiência espiritual, força para desmascarar e destruir a idolatria dominante. O povo pobre de Deus, através da leitura da Bíblia, desenvolve todo o seu potencial evangelizador e profético para libertar sua consciência e sua comunidade de toda idolatria. A leitura popular liberta assim o povo da dominação religiosa e lhe permite desenvolver sua fé a partir de sua própria espiritualidade, a partir de sua própria experiência da presença e da revelação de Deus.

A leitura da Bíblia se torna urgente e necessária para a libertação espiritual do povo pobre de Deus. Importante ainda acrescentar que esta libertação espiritual do povo pobre de Deus, através da leitura popular da Bíblia, tem necessariamente força libertadora no político, ideológico e cultural. Quando o povo pobre de Deus liberta sua consciência religiosa e desencadeia todo o seu potencial libertador, todo o povo goza integralmente da libertação.

III. RUPTURA HERMENÊUTICA

Nos dois tópicos anteriores vimos a raiz e o objetivo da leitura popular da Bíblia. Essa raiz e esse objetivo orientam radicalmente o sentido de todo o processo hermenêutico implicado na leitura popular da Bíblia. O processo hermenêutico nasce da experiência de Deus no mundo dos pobres (raiz) e se realiza para discernir a Palavra de Deus e comunicar essa Palavra no mundo dos pobres (objetivo). Tanto a raiz como o objetivo têm por sua vez um contexto político. A experiência de Deus se efetua no mundo do pobre que emerge como sujeito de sua própria história e com uma consciência histórica própria (o pobre não é mais objeto nem tem consciência alienada). Por outro lado, o discernimento profético da Palavra de Deus no mundo dos pobres resolve a contradição entre consciência religiosa popular e teologia idolátrica

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dominante; a leitura popular da Bíblia purifica e liberta a fé do povo e desencadeia vigorosamente todo o potencial evangelizador dos pobres, o que tem certamente suas conseqüências libertadoras no campo político, ideológico e cultural. Tudo isto é o que vimos nos capítulos anteriores e constitui, como dissemos acima, a raiz e o objetivo (horizonte) do processo hermenêutico implicado na leitura popular da Bíblia. Tudo isto é importante e determinante do mesmo processo hermenêutico, desde sua raiz até seu horizonte, mas agora urge entrar na dinâmica interna do próprio processo hermenêutico.

Anteriormente falamos de uma ruptura política e espiritual, chegamos aqui ao que denominamos ruptura hermenêutica. Não podemos falar de uma hermenêutica da libertação sem entrar em contradição com uma hermenêutica opressora e esta certamente existe, embora não se fale nunca desse tema. Existe uma teoria dominante da interpretação bíblica e uma leitura dominante da Bíblia que a torna instrumento de dominação. Por isso falamos de ruptura hermenêutica ou de luta hermenêutica entre diversas teorias e leituras bíblicas conflitantes. Vamos agora entrar na análise dessa ruptura para mostrar como o povo pobre e empobrecido de Deus está hoje lutando contra interpretações e leituras bíblicas opressoras e se está re-apropriando do texto bíblico e marcando-o com sua própria espiritualidade.

Essa ruptura hermenêutica permite ao povo pobre de Deus apropriar-se da Bíblia e usá-la como instrumento de discernimento da Palavra de Deus e como um meio de comunicação dessa Palavra a outros no mundo dos pobres. Nessa ruptura ou luta hermenêutica o Povo de Deus está desencadeando todo o seu potencial evangelizador e libertador e fazendo assim ressoar em toda a América Latina a Palavra Viva do Deus vivo. Deve-se lembrar que essa luta ou ruptura hermenêutica tem como raiz a experiência de Deus no mundo dos pobres e está a serviço do discernimento e comunicação da Palavra de Deus no mesmo mundo dos pobres. A luta hermenêutica é portanto luta profundamente espiritual, embora na raiz e no contexto dessa luta exista certamente uma ruptura e conseqüência de caráter político.

a) Uma Bíblia expropriada, cativa e alienada

Como já se viu, o povo de Deus usa a Bíblia como instrumento para discernir a Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres e para comunicá-la a outros. Mas o problema que normalmente encontramos é que a Bíblia como instrumento, para realizar tal discernimento e comunicação, não está nas mãos do povo, está cativa de outro mundo que não é o mundo do pobre e é alheio à sua própria consciência. A Bíblia, tal qual existe, não é um livro neutro, mas um livro ora lido, ora interpretado, ora transformado segundo um sentido que contradiz o povo como sujeito, contradiz-lhe a consciência histórica e, sobretudo, contradiz sua espiritualidade, isto é, sua própria experiência de Deus. Sente-se uma contradição entre espiritualidade popular e Bíblia.

Disse alguém: "O Evangelho não transforma o mundo, porque o mundo transformou o Evangelho". Certo: o mundo, com seu poder ideológico e cultural, transformou em grande medida o Evangelho e a Bíblia, e por tal motivo a Bíblia perdeu sua força espiritual de transformar o mundo. Os únicos que poderão resgatar a Bíblia são os pobres, enquanto povo cheio de fé em Deus. Esse resgate da Bíblia por parte da fé dos pobres recebe o nome de luta hermenêutica. Para entender a profundidade e o significado dessa luta, é mister analisar em que medida a Bíblia foi roubada e expropriada ao mundo dos pobres a que pertence. Essa luta hermenêutica por parte dos pobres, para resgatar a Bíblia, é um processo antigo que talvez já tenha começado no mesmo processo histórico de produção do texto bíblico e vai continuando ao longo de toda a história do cristianismo.

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b) Como a Bíblia foi expropriada do povo pobre de Deus O processo de expropriação da Bíblia do Povo pobre de Deus seguiu diversos caminhos, que não necessariamente seguem uma ordem lógica ou cronológica, mas chegam certamente ao mesmo resultado. 1. Um primeiro caminho é o do fundamentalismo. O método aqui foi o de separar o texto bíblico da sua história. A leitura fundamentalista da Bíblia transforma-a em livro sem história. Para tanto se faz identificação total da Bíblia e da Palavra de Deus, e com isso se faz da Bíblia um sujeito absoluto, a-histórico e universal. Não existe mais a história na qual o texto veio à luz e na qual o mesmo texto fez história. Tampouco existe a história atual na qual se lê hoje o texto. Assim dá na mesma que o texto seja lido no século oitavo, catorze ou na atualidade, que seja lido na América Latina, na Alemanha ou na Finlândia, ou lido num contexto de miséria/opressão ou de opulência/dominação. A Bíblia, para os fundamentalistas, totalmente à margem do espaço e da história, sempre nos comunica de maneira absoluta a Palavra de Deus.

2. Caminho diferente, mas que pode chegar a resultado análogo, é o caminho do estruturalismo. Quando se faz uso exclusivo do método estrutural, ressaltando de modo quase absoluto o peso do texto em si, à margem da história, pode-se chegar a uma des-historicização do texto, semelhante à dos fundamentalistas. A isto chegam aqueles que fazem da semiótica ou da análise estrutural um método todo-poderoso, que se torna quase exclusivo e auto-suficiente para entender o sentido do texto.

3. Outro caminho que também menospreza a história do texto é o concordismo. Quando se faz concordar, de modo simplista e direto, situações bíblicas, com situações atuais, também se banaliza a história e se peca por falta de seriedade. O concordismo, da mesma forma que o fundamentalismo, des-historiciza o texto.

4. Outro caminho para se expropriar a Bíblia do povo de Deus tem sido historicismo que reduz o sentido do texto ao seu mero significado histórico. Se o fundamentalismo tirava do texto a dimensão histórica, o historicismo priva o texto de seu sentido espiritual, de sua força espiritual. O texto cai prisioneiro de seu passado, e seu sentido fica também preso a esse mesmo passado histórico. O texto bíblico fica então reduzido a mera peça arqueológica, sem futuro algum. Quando se absolutiza o texto bíblico como "depósito" da Palavra de Deus, do qual só se pode "sacar" um sentido, então caímos também no historicismo. Negamos à Bíblia sua capacidade de ler a Palavra de Deus em nossa atual história e portanto a possibilidade de "colocar" no texto bíblico um novo sentido

Uma leitura fundamentalista da Bíblia, que faça da Bíblia um texto sem história, e uma leitura historicista da Bíblia, que faça da Bíblia um texto sem espírito, têm necessariamente o mesmo efeito: a Bíblia se torna uma coisa abstrata. Temos uma Bíblia abstrata, sem história e sem força espiritual. Essa Bíblia chega a ser totalmente alheia à história e à força espiritual dos pobres. Perde essa Bíblia suas raízes históricas no mundo dos pobres, situando-se por cima da história dos pobres e à margem da consciência dos oprimidos. A Bíblia sem história e sem força espiritual deixa de ser a memória histórica dos pobres e empobrecidos.

A Bíblia, como texto abstrato, sem memória histórica e sem espírito criador de sentido dentro do mundo dos pobres, pode ser agora alienada e expropriada radicalmente do povo de Deus. A Bíblia abstrata, sem raízes históricas e desfibrada de sua força espiritual, pode ser agora facilmente manipulada pelas forças dominantes e opressoras. A Bíblia, sem suas raízes históricas e espirituais no mundo dos pobres, começa a ser lida a partir do sujeito histórico dominante e sua consciência religiosa. Fica a Bíblia agora cativa do mundo histórico dominante e de sua força religiosa de

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dominação. O fundamentalismo e o historicismo não são assim inocentes, pois expropriaram a Bíblia do povo e a entregaram ao sistema dominante. Uma Bíblia assim expropriada, cativa e alienada, perde o sentido histórico e espiritual e portanto toda a capacidade de dar testemunho histórico da Palavra de Deus ou sua capacidade de discernir essa Palavra de Deus hoje no mundo dos pobres.

c) Conseqüências da expropriação da Bíblia do povo pobre de Deus A Bíblia, expropriada do povo pobre e cativa do sistema e da consciência histórica dominante, sofre uma série de distorções. Aqui só vamos enumerar e exemplificar algumas.

1. Distorção na tradução.

Toda tradução sempre é trabalho de reconstrução de um texto noutra língua e cultura. Quando se traduziu a bíblia hebraica para o grego (a chamada Septuaginta), houve um trabalho de reconstrução do texto hebraico em outra língua, mas sobretudo noutro mundo cultural. Houve um trabalho tão profundo e amplo de reconstrução que muitos consideram a Septuaginta como novo texto, fruto de uma inspiração especial do Espírito Santo. Uma situação semelhante aconteceu com o texto bíblico ao ser vertido para o latim. A tradução de Martinho Lutero (séc. XVI) para o alemão foi também um imenso e necessário trabalho de reconstrução do texto bíblico. Hoje a Bíblia está sendo continuamente traduzida para línguas modernas. Mas a língua não é um mundo neutro: exprime a dimensão cultural, ideológica e espiritual de um sujeito e uma consciência histórica determinadas. Surge então a pergunta: Quando se traduz hoje a Bíblia para as línguas modernas, assume-se o mundo cultural, ideológico, espiritual das classes dominantes ou o mundo cultural, ideológico e espiritual das classes oprimidas?

Dado que a Bíblia se apresenta de forma abstrata, cortada de suas raízes históricas e espirituais no mundo dos pobres, e dado que normalmente a tradução é feita por peritos que respiram o mundo cultural, ideológico e espiritual do sistema dominante, surge a suspeita de que toda tradução da Bíblia para uma língua moderna seja normalmente reconstrução do texto original na cultura, ideologia e espiritualidade do sistema dominante. Por isso geralmente as traduções são tão alheias ao mundo cultural e espiritual dos pobres. Toda tradução bíblica normalmente contém distorções que vão contra o sentido histórico e espiritual original do texto bíblico. Não se trata de distorções, inocentes, pois a tradução muitas vezes corresponde a uma reconstrução do texto que significa real expropriação do texto do povo pobre de Deus. A Bíblia muitas vezes perde na tradução a força histórica e espiritual do texto original. O texto já não transmite a Palavra de Deus, mas uma cultura ou ideologia dominante. Hoje, felizmente, possuímos traduções melhores, que reconstroem mais fielmente o sentido histórico e espiritual do texto original e nas quais o povo pobre e cheio de fé se sente mais à vontade e tem melhor capacidade para discernir a Palavra de Deus. Vai-se avançando, mas ainda muito timidamente. A Bíblia Latino-americana é um passo neste sentido.

2. Distorção semântica. Esta distorção começa normalmente na própria tradução, mas é um fenômeno mais amplo e duradouro. Ocorre essa distorção quando certos conceitos bíblicos fundamentais são interpretados nas categorias da ideologia dominante. Através dessa distorção de conceitos-chave, toda a Bíblia fica distorcida. Não é preciso tomar todos os conceitos bíblicos, mas aqueles que estruturam em profundidade o pensamento bíblico. Vamos dar um exemplo: os conceitos sarx e pneuma que, literalmente, se traduzem por "carne" e "espírito expressão de duas tendências fundamentais do ser humano: a carne exprime a tendência para a morte, e o espírito a tendência para a

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vida. O pecado reforça a tendência para a morte. O Espírito Santo faz triunfar a tendência para a vida. Sarx-pneuma, portanto, devem ser traduzidos no código da oposição morte-vida Mas o que acontece normalmente é uma distorção semântica: sarx-pneuma é interpretado no código semântico marcado pela oposição corpo-alma. Ninguém ignora que o dualismo "corpo-alma", de Aristóteles até hoje, é a estrutura fundamental da ideologia dominante: a alma deve dominar o corpo, como o homem livre ao escravo, o homem à mulher, o ser humano ao animal etc.

Ao traduzir sarx-pneuma no código corpo-alma, e não no código morte-vida, não somente se distorcem estas palavras, mas toda a Bíblia sofre uma distorção comprometedora pela ideologia dominante. Essa ideologização da Bíblia ocorre não somente na interpretação do texto, mas no próprio texto.

A ideologização não ocorre em todas as palavras ou versículos da Bíblia, mas naqueles lugares bíblicos que são mais vulneráveis e pervertíveis. Por exemplo, Mt 5,3: "Bem-aventurados (felizes) os pobres de espírito..." Se traduzimos "espírito" usando o código "corpo-alma", já reduzimos a bem aventurança aos que são "pobres em sua alma", distorcendo não somente este versículo mas todo o Sermão da Montanha, para nem dizer que isso distorce todo o Novo Testamento ou a Bíblia inteira. O mesmo acontece com Mc 12,13-17 ("O que é de César, devolvei a César...").

Se traduzimos a oposição "Deus-César" usando o código "religião-política", então chegaremos a esta brilhante conclusão: não se deve misturar religião e política, o que corresponde ao pensamento liberal dominante, mas deforma profundamente todo o Evangelho. Outros versículos vulneráveis e normalmente manipulados são Mt 10,28 ("Não temais, os que matam o corpo... " Jo 18,30); ("Meu reino não é deste mundo..."); Me 14,7 (.. "sempre tereis os pobres convosco...") etc. Manipulando assim conceitos e versículos-chave, a ideologia dominante pode chegar a manipular a Bíblia inteira e pô-la a serviço da dominação, contradizendo o sentido histórico e espiritual do texto e incapacitando-o para comunicar a Palavra de Deus. Há textos bíblicos que entram no discurso corrente da cultura e da ideologia dominantes, aí são reestruturados e depois usados para ideologizar a Bíblia e expropriá-la, da consciência religiosa dos pobres que procuram discernir a Palavra de Deus.

3. Distorção estrutural. Pode ser múltipla e variada. Trata-se, por ex., da classificação e estruturação dos livros bíblicos, privilegiando este e relegando aquele a um lugar secundário. Hoje, por ex., redescobrimos o Livro de Rute, a carta de Paulo a Filêmon ou a carta de Tiago, que durante muito tempo foram livros esquecidos ou menosprezados. Até no texto de um livro se podem por vezes criar estruturas que privilegiam certos passos e subestimam outros; privilegiam estas personagens e esquecem outras. Por ex., no livro do Gênesis se despreza a figura de Agar ou, no Evangelho de Marcos, subestima-se a cena em Betânia onde Jesus é ungido por uma mulher (cap. 14).

Também se distorce o sentido dos textos, deslocando o seu interlocutor. Um exemplo, o mandamento: "Não roubarás" (Ex 20,15). Em sua estrutura original é um mandamento dado aos ricos para proteger os pobres: seu sentido é mais ou menos este: "Não roubarás do pobre o que ele precisa para manter sua vida e de sua família". Ora, hoje a ideologia dominante modificou sua estrutura e o usa como um mandamento dirigido aos pobres para proteger a propriedade privada dos ricos. Com isso se desfigura todo o sentido da lei no AT. Há muitos outros textos da Bíblia que estão estruturalmente retorcidos e distorcidos, o que lhes perverte o sentido histórico e espiritual original.

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4. distorção ambiental. Sob este título procuro englobar muitas coisas que por falta de espaço não posso aqui detalhar. Trata-se da distorção que se introduz indiretamente no texto, quando se distorce o ambiente em que existe o texto ou onde se comenta o texto. Por ex., distorção nos títulos que se dão às diversas perícopes bíblicas; distorção nas notas de rodapé; nos textos citados como paralelos; distorção nos dicionários bíblicos, nos comentários, nos modelos estabelecidos de pregação etc. A própria maneira de ordenar liturgicamente as leituras bíblicas deixa no olvido textos importantes ou orienta o seu comentário em uma direção contrária a seu sentido histórico ou espiritual original.

d) Re-apropriação da Bíblía pelo povo pobre de Deus O povo dos pobres, dos tempos bíblicos até hoje, teve que lutar para resgatar os livros bíblicos, por recuperar-lhes o sentido histórico e espiritual. Desde muito tempo existiu uma casta de sacerdotes e escribas e, hoje, uma casta de peritos e intelectuais, que têm o poder de expropriar o povo de sua espiritualidade, memória e escritos inspirados. São normalmente os poderosos que têm o poder de escrever e dominar a consciência do povo. O povo não tem esse poder ideológico, mas tem uma tremenda força espiritual, cuja raiz é a experiência da presença e da revelação de Deus no seu meio. A partir dessa experiência espiritual o povo pobre de Deus luta para resgatar o sentido histórico e espiritual da Bíblia. A isto denominamos luta hermenêutica, que o povo está efetuando através da chamada leitura popular da Bíblia. Recordamos que essa leitura tem uma raiz e um horizonte (a experiência de Deus e o interesse por sua Palavra) onde o povo efetivamente encontra a força espiritual necessária para resgatar a Bíblia. Se perdemos de vista essa raiz e esse horizonte, não poderemos compreender a capacidade e a sabedoria da fé do povo que luta para encontrar a palavra de Deus e anunciá-la a toda a sociedade. O povo de Deus em geral resgata primeiramente o sentido espiritual do texto e depois aprofunda o sentido textual e histórico. Vejamos os dois passos:

1. Resgate do sentido espiritual do texto bíblico - Quando o povo pobre de Deus lê a Bíblia para discernir a palavra desse Deus que se faz presente e se revela entre o povo e quando usa o texto bíblico para comunicar essa experiência da Palavra de Deus, então o texto adquire um novo sentido. A isto chamamos sentido espiritual do texto. Esse sentido transforma profundamente o texto: purifica-o primeiro de todas as distorções ideológicas e idolátricas do sistema dominante e, segundo, faz com que o texto comunique de modo claro e direto a Palavra de Deus. Já dissemos que nesse trabalho o povo pobre tem como Mestre imediato o próprio Espírito Santo que não opera de modo anárquico e espiritualista, mas se faz presente no seio da comunidade eclesial onde se lê e interpreta o texto. Esse resgate espiritual da Bíblia, da parte do povo pobre de Deus, é realidade hoje evidente e significativa na América Latina. É uma realidade que nos surpreende e ultrapassa. A leitura popular da Bíblia está hoje liberando força espiritual entre os pobres, com inúmeras conseqüências teológicas, eclesiais e pastorais, igualmente também profundas conseqüências culturais, ideológicas e políticas. Falamos hoje do potencial evangelizador dos pobres, que revela e anuncia a Palavra viva de Deus no meio do povo. Todo esse movimento espiritual libertador tem como mediação instrumental fundamental a leitura popular da Bíblía. O resultado hermenêutico e exegético é igualmente evidente: o texto da Bíblia está sendo profundamente transformado por essa leitura popular da Escritura. Como se diz muitas vezes nas CEBs: a leitura popular da Bíblia está selando os textos, imprimindo neles uma marca, dando-lhes novo caráter: os textos lidos pelo povo pobre de Deus já não são os mesmos, são diferentes. O povo da América Latina está resgatando o livro do Êxodo, dos Profetas, o livro de Jó, os Salmos, os Evangelhos, o Apocalipse. Todos esses livros foram resgatados e transformados pela prática da Leitura Popular da Bíblia.

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Todos esses livros já levam o selo e a marca da experiência espiritual dos pobres. Com esse resgate do sentido espiritual da Bíblia também o próprio texto está sendo resgatado em seu sentido textual e histórico. O sentido espiritual ilumina e purifica o sentido histórico e textual da Bíblia.

2. Resgate do sentido histórico e textual da Bíblia - A primeira coisa que o povo que vive da fé realiza é resgatar o sentido espiritual do texto bíblico. Logo porém começa a se interessar igualmente pelo seu sen tido histórico e textual. Já explicamos a relação dialética entre o sentido textual e histórico e o sentido espiritual. Todo sentido bíblico é sentido de um texto e esse texto tem uma história. Quando se descuida a densidade própria do texto como texto, e quando não se leva a sério a história do texto e a história na qual vem à luz o texto, então o sentido espiritual tende a desvanecer-se no subjetívismo, espiritualismo e arbitrariedade. O sentido textual e histórico deve sempre controlar o sentido espiritual para que este se torne deveras fecundo. Por isso o povo pobre também se interessa e sempre mais por obter conhecimentos bíblicos (exegéticos e hístóricos) que lhe permitam apropriar-se da Bíblia em sua dimensão textual e histórica. Cada dia são mais numerosos os grupos populares de estudo da Bíblia, onde o povo aprende métodos exegéticos. O povo se apropria desses métodos a partir de sua própria experiência espiritual (raiz e horizonte do processo hermenêutico) e a partir de sua experiência acumulada de leitura popular da Bíblia. Ocorre então um resgate popular e libertador dos métodos bíblicos básicos e estes se vêem purificados de toda ideologização e manipulação por parte do sistema dominante.

3. Resgate da exegese e dos exegetas profissionais A leitura popular da Bíblia, que resgata o sentido espiritual textual e histórico da Bíblia é o movimento bíblico fundamental que tem raiz e horizonte bem determinados. Mas esse movimento bíblico fundamental não exclui um trabalho exegético profissional ou aquilo que se costuma chamar de "exegese segunda", isto é, a exegese que trabalha com os textos bíblicos em sua língua original e usando todos os instrumentos científicos da exegese. A leitura popular da Bíblia precisa dessa exegese profissional e nunca a descartou. Mas aqui a força espiritual dos pobres teve que desencadear e aplicar todo o seu potencial libertador para resgatar a exegese e os exegetas profissionais. O trabalho exegético normalmente se fez em academias fechadas, distantes do povo pobre de Deus e muitas vezes infeccionadas por um orgulho intelectual insuportável. Por isso o trabalho exegético profissional fracassou grandemente na sua capacidade de descobrir e anunciar hoje a Palavra de Deus. É um trabalho intelectual a-histórico e sem espírito, cortado da experiência e da revelação de Deus no mundo dos pobres. Mas hoje isto vem mudando. A força espiritual e evangelizadora dos pobres está resgatando a exegese e os exegetas profissionais, que se colocam a serviço do povo pobre de Deus. Sem abandonar toda a sua capacidade e seu conhecimento, os exegetas profissionais podem também unir-se às fileiras de todos os que se engajaram no movimento bíblico popular.