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HERANÇA CULTURAL E PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO DE VITÓRIA DA CONQUISTA - BA
CRUZ, Marina David; FLORES, Ully Oliveira / SOUZA FILHO, Argemiro Ribeiro de
INTRODUÇÃO
Uma nova perspectiva de patrimônio histórico é apresentada no século
XXI. A racionalidade que marcou o século passado é diferente da racionalidade
socioespacial encontrada agora, já que novos sentidos e contornos foram
atribuídos aos patrimônios arquitetônicos.
Este texto destaca a importância em abordar o patrimônio arquitetônico
da cidade de Vitória da Conquista (localizada na região sudoeste do estado da
Bahia), sob aspectos históricos e culturais. Serão tratados aspectos identitários
de lugares já sacralizados e daqueles não patrimonializados ainda, como o
Solar dos Ferraz, atual propriedade da Casa da Cultura e da Prefeitura
Municipal.
A construção do patrimônio de cidades antigas, dá-se de tal forma que
se faz necessária a discussão, revitalização e refuncionalização do patrimônio
urbano. Entretanto, para cidades que nasceram no final do século XIX e século
XX, existe um certo cuidado na definição do que deve ser contemplado como
patrimônio material, visto que a cidade, como um todo, é um lugar de tensão,
negociação e conflito, dada sua recente temporalidade.
As construções mais antigas da cidade (erguidas há nove ou oito
décadas) também são atingidas pela renovação da paisagem urbana. É nesse
momento que as edificações consolidadas no imaginário arquitetônico são
colocadas em risco, na iminência de que sejam removidas da paisagem urbana
para dar lugar a estacionamentos ou novas construções.
A cidade transita entre a expansão territorial com tecnologias modernas
e a demolição de edificações consideradas antigas, mas que não possuem
memória suficiente para serem protegidas e, neste contexto, há uma separação
entre a estética arquitetônica e a história. Quando há uma preocupação
meramente estética sobre uma edificação, do ponto de vista da forma, a
perspectiva histórica acaba por se perder, visto que a estética de uma
construção pode apresentar uma repetição de expressões já existentes. No
entanto, no ponto de vista da história, o edifício está ligado a uma memória e a
herança do lugar. Quando tratamos de patrimônio, tratamos de vivência
histórica, identidade e lembrança afetiva.
A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DE PATRIMÔNIO CULTURAL
Ao analisarmos o sentido e as origens da palavra “patrimônio”, sabemos
que se deriva dos vocábulos latinos pater e moniu (SOUZA, 2011). Sendo a
primeira “pai” no sentido religioso e social, como herança, e a segunda uma
condição, estado. A definição da palavra como um todo seria equivalente a
herança passada por gerações. Dito isto, podemos afirmar que a noção atual
de patrimônio histórico ultrapassa a simples ideia de propriedade, alcançando
valores além do material, como a representação da história e identidade que
permaneceu ao longo do tempo (SANT’ANNA, 2003, p. 51).
A atual definição da palavra “patrimônio” constituiu-se no fim do século
XVIII, passada a Revolução Francesa (1789) e a congregação dos estados
nacionais. A discussão acerca do patrimônio no Brasil, como nos mostra
Fonseca (1997), deu-se início por parte de intelectuais advindos do movimento
modernista (1922), sendo este definido pelo desejo de renovar e desapegar do
passado, construindo novos conceitos de arte, música e literatura. Nesse
sentido, temos o trabalho de Mario Andrade, responsável por redigir um projeto
de lei durante o governo de Getúlio Vargas, em 1936, a pedido do ministro da
Educação Gustavo Capanema, onde definiu o conceito de patrimônio como
"todas as obras de arte pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou
estrangeira, pertencentes aos poderes públicos e a organismos sociais e a
particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil"
(CANANI, 2005).
No intuito de abranger tudo o que diz respeito à produção artística e
cultural no Brasil, o trabalho desse escritor modernista marca o ponto de
partida do surgimento de debates sobre a preservação dos patrimônios
históricos brasileiros. A atuação de Mario Andrade, em defesa da preservação
de uma herança para futuras gerações, foi de fato vista pela sua dualidade de
propósitos, incentivando não somente a renovação pela modernização, como
também o resgate de tradições (GONÇALVES, 2003, p. 21-29).
A este ponto da discussão sobre história, patrimônio, memória, passado,
sabemos todos que nenhuma destas palavras tem um sentido único
(SANT’ANNA, 2003, p. 47). Em seu conjunto, estes vocábulos formam um
espaço de sentido múltiplo, onde diferentes versões contrariam saídas de uma
cultura plural e conflitante. A noção de “patrimônio histórico” deveria também
evocar estas dimensões múltiplas da cultura como imagens de um passado
vivo: acontecimentos e coisas que merecem ser preservadas porque são
coletivamente significativas em sua diversidade. Isso, no entanto, não é o que
parece acontecer.
Como bem assevera Maria Célia Paoli, ao falarmos de patrimônio
histórico, infelizmente, a imagem que nos vem à cabeça seria de um objeto
congelado no passado, paralisado em museus, monumentos arquitetônicos e
obras de arte, preservados em meio à paisagem urbana, sendo documentos
que interessam apenas a historiadores. Atitude esta revela que a preservação
do patrimônio, como produção simbólica e material, está longe de expressar as
experiências sociais do seu significado coletivo. A memória, bem como seu
legado e sua herança, apresentam-se sem referência direta ao presente, e sem
ligações significativas com as modificações da cidade e das relações humanas.
O patrimônio histórico, portanto, permanece no passado (PAOLI, 1992, p. 25).
A rigor a palavra patrimônio compõe um léxico contemporâneo de
expressões cuja característica principal é a multiplicidade de sentidos e
definições que a elas podem ser atribuídos (FERREIRA, 2006). Atualmente,
palavras múltiplas e contraditórias ganham cada vez mais espaço no cotidiano.
Quando se fala de patrimônio o sentido comumente encontrado é o da
permanência do passado, a necessidade de guardar algo que foi e ainda é
significativo no que se refere à questão de identidades. Cabe dizer, então, que
essa relação de patrimônio com processos identitários pode ser comumente
entendida, com aquilo que Dominique Poulot informa ao dizer que "a história do
patrimônio é a história da construção do sentido de identidade e mais
particularmente, dos imaginários de autenticidade que inspiram as políticas
patrimoniais" (POULOT,1997, p. 36).
Conforme Daniel Sibony, o reconhecimento de algo como patrimônio
histórico, exige conhecimento de noções no que concerne ao tempo e à
identidade. Neste caso, a preocupação subliminar é a de garantir o presente de
cada herança, e não de reconstruir um passado supostamente conservado. Daí
a ideia de que o patrimônio não é um lugar de passado contido, mas sim de
presente e futuro. Simboliza uma forma de vida fixada, algo que se realizou
naquele objeto ou construção; ou seja, “a acepção de patrimônio é portadora
de tempo e vivências”. Segundo o autor, esses espaços patrimoniais trazem
também certa liberdade, devido à maleabilidade de se tornarem qualquer outra
coisa, e, além disso, acabou gerando outros movimentos possíveis, inclusive
suscitando outra função da memória, a do esquecimento (SIBONY, 1998).
HERANÇA E IDENTIDADE
O reconhecimento do direito à memória está, portanto, ligado ao
significado presente da generalização da cidadania por uma sociedade que
evitou até agora fazer emergir o conflito e a criatividade como critérios para a
consciência de um passado comum. Não teme restaurar e preservar o
patrimônio edificado sem pretender conservar o “antigo” ou fixar o “moderno”.
Orienta-se pela produção de uma cultura que não ignore sua própria história,
mas que se dê conta da participação nos símbolos da cidade, como o
sentimento de fazer parte de um todo. Por isto, inventa novos meios de operar
e de se produzir como espaço público, onde possam estar inscritas todas as
significações de que é feita uma cidade. Passado, presente e futuro conversam
entre si (PAOLI, 1992, p.25).
Por que, então, nos incomodamos tanto com a questão da identidade,
da autenticidade e da originalidade dos patrimônios culturais? A condução à
memória de um passado, assim como a impressão de um novo valor cultural às
formas pretéritas, ainda são a aura que envolve o significado do patrimônio.
Walter Benjamin observara que a autenticidade dos objetos de arte vinculou-se
às técnicas modernas de reprodução. Portanto, o autêntico foi associado ao
original e o inautêntico à cópia ou reprodução – embora esta concepção tenha
se estruturado em um período onde a técnica não permitia a banalização da
reprodução como vemos hoje (BENJAMIN, 1975). Com a modernidade, as
novas formas de arte, como o cinema e a fotografia, desqualificam esta
discussão.
Após uma análise sistemática sobre a Modernidade, o filósofo judeu
alemão retorna à categoria de experiência que assume um papel relevante
quando se analisa a situação da sociedade e da cultura. Benjamin considerava
que o patrimônio histórico e cultural havia se adensado na mesma proporção
em que há um empobrecimento considerável da experiência. Qual o valor do
patrimônio cultural se a experiência não o vincula mais a nós? (1975, p. 11-
15).
Ainda para Walter Benjamin, a pobreza da vivência na Modernidade
consistiu na impossibilidade da elaboração e comunicação da prática coletiva,
visceral. A ausência de uma experimentação autêntica evidencia um modo de
perceber e de sentir próprio da Modernidade. Nesse sentido, a experiência, nos
tempos modernos, foi substituída pela erlebnis (experiência inautêntica) – a
vivência do indivíduo isolado (1975, p. 23-30).
O patrimônio cultural é objeto de disputa econômica, política e simbólica
entre o Estado, o setor privado e a sociedade civil. Afinal de contas,
as contradições no uso do patrimônio têm a forma que assume a
interação entre estes setores em cada período. Conciliar os
diferentes usos e primar pela permanência das populações
locais, observando as possibilidades de sobrevivência
econômica e de acesso à moradia destas, sem excluir os
visitantes, nem o caráter público dos bens tombados, devem
constituir-se em uma preocupação central do planejamento
turístico (CANCLINI, 1994, p. 100).
Nessa acepção a urbanização, a mercantilização, a indústria cultural e o
turismo não devem ser considerados, necessariamente, inimigos do patrimônio
(Cf. CANCLINI, 1994, p.95). Desde que representem as reais características da
contemporaneidade que, de um modo ou de outro, contextualizam a natureza
da atual valorização do patrimônio cultural. Como nos lembra a historiadora
Françoise Choay (2001, p.207) “a mundialização dos valores e das referências
ocidentais contribuiu para a expansão ecumênica das práticas patrimoniais”, ao
considerar a Assembleia Geral da UNESCO, do ano de 1972, como o marco
inicial desta expansão.
Responsável por especificar o conceito de patrimônio cultural universal
de acordo com o patrimônio histórico, esta Assembleia determinou uma série
de exigências aos países dispostos a considerar os princípios por ela
instituídos, entre esses identificação, proteção, conservação, valorização e
transmissão do patrimônio cultural às futuras gerações (CHOAY, 2001, p.208).
Há uma necessidade da valorização e democratização das diferentes
formas e representações culturais de um espaço, já que um lugar nunca se
estabelece como pertencente somente ao passado. Renzo Piano, arquiteto
italiano e ganhador do Prêmio Pritzker em 1998, colocava em questão a
valorização patrimonial quando diz que
um lugar não pode ser politicamente correto. Ele é sempre, e ao
mesmo tempo, sagrado e profano, igreja e bordel. Devemos
aprender a incorporar estas construções híbridas do nosso
tempo e superar a dicotomia fácil dos conceitos puros:
local/global, natural/artificial, autêntico/inautêntico,
natureza/cultura.
Não obstante, o recente modo de intervir urbanisticamente preocupa-se
em não inibir a modernidade e o desenvolvimento econômico de espaços
urbanos degradados. A revitalização impõe uma nova atitude que diverge dos
métodos invasivos da renovação, assim como aos costumes excessivamente
conservacionistas. Essa postura não alude a sacralização de toda a construção
antiga, mas pondera os atributos econômicos, culturais e sociais tolerados e
refletidos pelas cidades.
A CIDADE DE VITÓRIA DA CONQUISTA E A IMAGEM DO PATRIMÔNIO
EDIFICADO
O loco espacial para este estudo tomou como marco o município de
Vitória da Conquista, localizado no sudoeste da Bahia e fundado em 1873. A
origem da cidade está relacionada à busca do ouro, à introdução da atividade
pecuária e ao interesse da metrópole portuguesa em criar um aglomerado
urbano entre a região litorânea e o interior do Sertão (Cf. SOUSA, Maria
Aparecida Silva de, 2001). Pode-se considerar que a cidade foi
parte da expansão do ciclo de colonização dos fins do século XVIII.
A cidade de Vitória da Conquista possui traços valiosos da sua memória,
dentre os quais estão o seu acervo arquitetônico. O centro histórico e
geográfico, onde a cidade teve início, possuem casas e monumentos que
evidenciam o valor histórico dessas construções para a memória da cidade.
Essas características podem ser notadas pelas construções que circundam a
atual Praça Tancredo Neves, além da importância trazida pela própria praça.
Edificações como a Casa Memorial Régis Pacheco, a igreja matriz
Nossa Senhora das Vitórias (1932), a casa do cineasta Glauber Rocha (1938),
são alguns exemplos dentre tantos imóveis que fazem parte do conjunto
patrimonial da cidade.
Portanto, a preservação de edificações históricas, não só na urbe de
Vitória da Conquista, mas em qualquer outro lugar, é demasiada importante
para um contexto de crescimento e desenvolvimento da própria cidade. A
preservação da memória e dos referenciais culturais é uma demanda social tão
importante quanto qualquer outra a ser atendida pelo serviço público.
Esta preservação das edificações é garantida por meios legais. À luz do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o tombamento é
um ato administrativo realizado pelo Poder Público, nos níveis federal, estadual
ou municipal. Este pode ser feito pela União, através do IPHAN, pelo Governo
Estadual, por meio da Secretaria de Estado da Cultura – CPC, ou pelas
administrações municipais que dispuserem de leis específicas (MINISTÉRIO
DA CULTURA, 2000).
A Lei Municipal nº 707/93 é responsável por instituir normas sobre
tombamento de bens móveis e imóveis situados no território do
município. Segundo dados da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista,
apesar da lei estar em vigor há mais de 20 anos, apenas dois imóveis foram
tombados na cidade. São esses o prédio da antiga Câmara de Vereadores
(1910) e a Casa de Dona Jeny de Oliveira Rosa, conhecida como D. Zaza
(1896) (PMVC, 2016).
FIGURA 01: Praça Tancredo Neves
Foto: Acervo Pessoal
A Câmara de Vereadores teve seu prédio edificado em 1910, pelo
mestre de obras Luiz Alexandrino de Melo, também conhecido como Luiz
Pedreiro, e já foi residência, hotel, Fórum e Justiça do Trabalho (PMVC, 2016).
A Casa de D. Zaza, por sua vez, é uma edificação construída no ano de
1896 e situada atual Rua Dois de Julho. A residência de Dona Zaza, líder
política e conselheira de importantes personagens da história da cidade, possui
platibanda com tratamento de estilo neoclássico, vãos em arcos plenos, uma
porta quase ao meio que dá entrada ao edifício, seguida à esquerda por seis
janelas de caixilharia em guilhotina que foi substituída pela metade em forma
de veneziana (PMVC, 2016).
Os demais imóveis de propriedade do governo municipal, como a Casa
Henriqueta Prates, Casa Régis Pacheco e o próprio prédio da Prefeitura
Municipal são apenas preservados pela administração, de acordo com dados
governamentais.
FIGURA 03: Casa de Dona Zaza
Foto: Acervo Pessoal
FIGURA 04: Detalhe de Esquadrias
Foto: Acervo Pessoal
FIGURA 02: Câmara de Vereadores
Foto: Acervo Pessoal
Neste ponto, é importante lembrar o que foi dito ao iniciar este texto: em
cidades relativamente novas, tudo se faz em um tempo tão próximo que não
dispomos de instrumentos oferecidos pelo distanciamento histórico para definir
o que é necessário ser considerado patrimônio histórico e cultural. Entretanto,
não se pode preservar tudo, e já que a cidade é caracterizada por sua
demolição e construção permanentes, o que eleger como um edifício
merecedor de patrimonialização?
Há lugares na cidade que nos dizem coisas e outros não, e procuramos
entender por que nossas lembranças são constantemente ameaçadas por
novas edificações. Para responder a essa questão, destacamos como objeto
de estudo dessa pesquisa uma residência da década de 1920, conhecida como
Solar dos Ferraz, a fim de mostrar que, apesar do seu atual abandono, essa
pode ser integrante do patrimônio edificado da cidade de Vitória da Conquista.
O SOLAR DOS FERRAZ
O termo solar é utilizado para definir uma residência de família
supostamente nobre, que fosse herdada por gerações. A palavra em si, é
derivada do “solo”, por apresentar uma conexão com a terra por laços afetivos
e antigos, que foram conquistados ao longo do tempo pelos primeiros
descendentes (Cf. FERREIRA, 1999). Atualmente esse tipo de edificação é
pouco preservado, apesar de compor importante valor cultural no cenário
histórico de muitos centros urbanos.
As informações preliminares dão conta que João de Oliveira Lopes,
nascido na Bahia, mais precisamente em Aratuipe, na data de 03 de novembro
de 1897, veio a ser uma das figuras mais destacadas na vida comercial, social,
política e religiosa de Vitória da Conquista. Casou-se em 24 de janeiro de 1923
com Ana Ferraz Lopes, de tradicional família conquistense, filha de Virgílio
Ferraz de Oliveira. A união do casal deu origem a edificação.
O Solar dos Ferraz, pertence à engenharia urbana da década de 20 e é
um edifício-símbolo de grande interesse arquitetônico e histórico. Situada na
Praça Virgílio Ferraz, número 110, na vizinhança da Catedral Nossa Senhora
FIGURA 05: Praça Virgílio Ferraz (Janeiro, 1960) Fonte: Fotos de Vitória da Conquista
FIGURA 06: Solar do Ferraz (Janeiro, 1960) Fonte: Fotos de Vitória da Conquista
das Vitórias, esta edificação representa um protótipo inequívoco da antiga
arquitetura de inspiração portuguesa no Município, com finalidade estritamente
residencial.
Ainda se veem nele aspectos típicos que remetem a meados da década
de 1919, que compõem a ambiência da descida da Rua dos Fonsecas, como
ramificação da Praça Tancredo Neves. Na área, a predominância das
edificações é o estilo eclético, da virada do século XIX para o XX (Cf.
BENEVOLO, 2001)
Não se trata de uma estrutura de concreto, mas de uma casa construída
de tijolos de olaria em um vão livre, situada em uma área territorial de onde se
pode extrair uma concepção histórica dos primeiros solares da cidade,
especialmente construídos pelo mestre Luiz Pedreiro, também construtor de
outros monumentos arquitetônicos da cidade, tais como: Quartel de Polícia,
atual Prefeitura Municipal; sobrado Maneca Santos, hoje Câmara de
Vereadores; sobrado do Coronel Paulino Fernandes, demolido para construção
do Banco do Brasil; e o casarão do Coronel Gugé, tudo para atender a
aristocracia rural de Vitória da Conquista, que então se expandia por força da
economia advinda da exploração agropastoril.
O Solar traz peculiaridades geométricas nas instalações internas do
imóvel, sobressaindo-se dos demais edifícios da Praça pelo imponente
frontispício vazado em perfil neoclássico, apresentando paredes emolduradas,
em alto relevo, com motivos florais ao lado das quais se encontram janelas
com belas caixilharias e vitrais.
O edifício tem forma arquitetônica retangular com cobertura em três
águas e peitoris laterais. Consta de salas de estar íntima e jantar, quartos
frontais, ocupados por alcovas e camarinhas, banheiros, cozinha, despensa e
um amplo quintal. Todos os cômodos são forrados com tábuas de cedro e
pisos assoalhados de jacarandá.
Segundo a tradição, fazia parte da praxe aristocrática da época primar
pela elegância e estética dos solares edificados, de forma que neles
perpetuassem a cultura burguesa de uma sociedade hermética. O Solar dos
Ferraz, pela solidez de sua construção e pelas suas características
FIGURA 07: Esquadrias Internas
Foto: Acervo Pessoal
FIGURA 08: Detalhe das Pinturas
Foto: Acervo Pessoal
arquiteturais, representa, em sua integridade física e cultural, o melhor
exemplar da cultura regional.
A PATRIMONIALIZAÇÃO DO OBJETO
O casario da família Ferraz, como se assinalou, é localizado próximo à
Praça Tancredo Neves, para onde se voltam os olhos dos moradores e
FIGURA 09: Cômodo Interno/Sala de Jantar
Foto: Acervo Pessoal
FIGURA 10: Fachada do Solar
Foto: Acervo Pessoal
usuários do centro da cidade. O geógrafo e arquiteto Kevin Lynch acredita que
nós desenvolvemos quadros mentais para nos deslocarmos pela cidade. Essas
imagens possibilitam a um pedestre, por exemplo, se deslocar pelo centro de
Vitória da Conquista em direção ao Solar dos Ferraz, sem pedir muitas
orientações, porque esse usuário teria um quadro mental referente ao espaço e
ao tempo de deslocamento até as edificações mais antigas, que ficam
próximas a Praça Tancredo Neves. Este mapa intelectual é formado pelo
convívio cotidiano com a cidade, e assim formamos a imagem urbana.
Quando o usuário fica um tempo sem visitar o local, e retorna a ele, a
paisagem pode parecer estranha, mas a lembrança que o indivíduo tem sobre
esse espaço não demora a ser percebida. Ou seja, nossa memória e nosso
quadro mental estão sempre em contato. Neste sentido, é necessário
entendermos que as imagens urbanas são formas de refletir a cidade, e
mesmo que sejam conceitos individuais, referem-se ao todo da cidade e a cada
um que elaborou Vitória da Conquista mentalmente. A existência de uma
cultura urbana é feita pela imagem determinada pelos moradores por meio das
suas lembranças, seus sentidos, impressões e sentimentos vividos nesse
espaço.
Visto assim, a cidade é composta por um conjunto de objetos físicos,
que abrangem edifícios, praças, ruas, viadutos, pontes, lagos, sinais etc, e as
imagens destes objetos podem ser visualizadas por um conjunto de pessoas
ou de forma individual, como já foi apontado. Essa imagética é tão significativa
para quem vive a cidade, que este conjunto de elementos pode ser
patrimonializado. É necessário que a localidade seja lida, que nessa leitura
sejamos capazes de imagina-la, e este conhecimento é aprimorado a medida
em que usufruímos do espaço urbano.
Segundo Gonçalves (1988, p.267) “os chamados patrimônios culturais
podem ser interpretados como coleções de objetos móveis e imóveis, através
dos quais é definida a identidade de pessoas e de coletividades como a nação,
o grupo étnico etc.”, pois o patrimônio transmite fidelidade à simbologia e às
edificações nacionais, a partir do momento em que se tornam reconhecidos
pelo coletivo.
O Solar dos Ferraz é, dentre tantas outras, um dos elementos da
construção da identidade da cidade de Vitória da Conquista, remete à memória
do passado e conecta-se com as rememorações da época em que foi
construído. Portanto, essa edificação contribui na compreensão de como a
cidade foi construída, como se desenvolveu sua arquitetura e como ela passou
a ser parte do imaginário da população.
Por fim, questiona-se sobre a finalidade desta preservação/conservação
como fomentadora de uma cidadania, procurando observar a existência ou
não, de uma articulação entre a concepção de memória como algo provido de
um sentido social, portanto coletivo, não excludente, norteador de ações que
visam ao desenvolvimento igualitário e de uma tomada de consciência crítica
sobre o passado, além da construção de um patrimônio decorrente dessa
concepção.
A importância do objeto de análise desse artigo é indiscutível e esses
pontos como memória e patrimônio nos remetem ao tempo como sendo um
objeto estranho. Estranho, pois não fixa a imagem do passado, é vivo,
perecível, efêmero, reprodutível. Segundo Daniel Sibony, citado por Françoise
Dubost (1998), novos patrimônios, novos desafios ao pesquisador, novas
formas de compreender a relação do homem com o universo no qual se
encontra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta desse texto foi, entre outros, questionar a cidade quanto
espaço híbrido, a interação da arquitetura com a população, com foco no
município de Vitória da Conquista, de maneira que possa conceber a
importância do acervo arquitetônico como um dos principais agregados da
cultura e história da urbe, fomentando a conscientização sobre as formas de
difusão, preservação e restauração de bens culturais. Desde que o valor
cultural das referências não é dado somente pelos técnicos especializados,
mas principalmente pelo testemunho histórico e de concentração de
significados atribuídos pelo grupo social ao bem tombado.
Constatou-se que a urbanização, a mercantilização, a indústria cultural e
o turismo não devem ser considerados, necessariamente, opositores ao
patrimônio, mas sim características deste período, que acabam por
contextualizar e debater a origem da recente valorização destes monumentos
históricos. A ausência de um programa de ideias, capaz de coordenar a
hibridação da cultura, se deve pelo receio da sociedade acerca do
desenraizamento ou homogeneização cultural, que o mundo seria submetido
na propagação do neoliberalismo. Os estudiosos, ou apenas interessados pela
cultura e arte expressados em monumentos físicos, admitem apreciar a
capacidade das técnicas reprodutivas, conscientes que a cultura é, de fato,
uma mistura de aspectos materiais e simbólicos, que definiram suas feições
originais há bastante tempo, deixando de ser exclusivas ou autênticas de um
único grupo social.
Como estudiosos e pesquisadores temos o importante dever de
descobrir as diversas funções de um bem cultural na região, além de
compreender como um “lugar de cumplicidade cultural” (CANCLINI, 1994, p.
96), quando apreciado pelo olhar externo, de outras localidades, provoca
territorialidades segregadas ao lugar em si.
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Questão, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 237-251, jul./dez. 2011.
UNESCO e Ministério da Cultura (2000) Informe mundial sobre a cultura:
diversidade cultural, conflito e pluralismo. São Paulo: Moderna
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB), Textos.
Disponível em: <http://www.uesb.br/catalogo/textos.asp?cod=2>. Acesso em
27 de fevereiro de 2016.
FONTES AUDIOVISUAIS
Figura 01: Praça Tancredo Neves. Fonte: Acervo pessoal de Marina David,
2016.
Figura 02: Câmara de Vereadores. Fonte: Acervo pessoal de Marina David,
2016.
Figura 03: Casa de Dona Zaza. Fonte: Acervo Pessoal de Ully Flôres, 2016.
Figura 04: Detalhe de Esquadrias. Fonte: Acervo Pessoal de Ully Flôres, 2016.
Figura 05: Praça Virgílio Ferraz (Janeiro. 1960). Fonte: <https://fotosdevitoriadaconquista.wordpress.com/1960/01/08/praca-virgilio-ferraz/>. Acesso em 07/07/16.
Figura 06: Solar do Ferraz (Janeiro. 1960). Fonte: <https://fotosdevitoriadaconquista.wordpress.com/1960/01/08/praca-virgilio-ferraz/>. Acesso em 07/07/16. Figura 07: Esquadrias Internas. Fonte: Acervo pessoal de Marina David, 2016.
Figura 08: Detalhe das pinturas. Fonte: Acervo pessoal de Ully Flores, 2016.
Figura 09: Cômodo Interno/Sala de Jantar. Fonte: Acervo pessoal de Marina
David, 2016.
Figura 10: Fachada do Solar. Fonte: Acervo pessoal de Ully Flores, 2016.