Henrique Tibeiro - O Gadget Na Arte

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1 O gadget na arte Jorge Henrique Antunes Ribeiro, nº 5931 Teoria dos Media II, maio de 2014, Arte/Multimédia FBAUL, [2013/2014] Resumo Tendo como ponto de partida a comunicação feita por Shakil Yussuf Rahim "Mónica Cid e o(s) Desenho(s) de Observação no iPad/tablet", inserida no V Congresso Internacional CSO'2014, é analisado o fato do discurso do orador se centrar na "ferramenta", no objeto que serve de materialização da obra (o ipad) em detrimento desta, assumindo o seu papel de gadget, de objeto fetiche. É feita posteriormente uma reflexão à importância dos objetos e o crescente protagonismo que estes ganham na sociedade, apoiada na análise desenvolvida por Jean Baudrillard na obra A sociedade de consumo, sendo, por último, feita uma leitura ao modo como estes avanços tecnológicos influenciam a relação ferramenta/medium. Palavras-chave: desenho digital, gadget, tablet, medium, ferramenta. Introdução É um aspeto transversal à contemporaneidade, o fato de nos encontrarmos a assistir a uma gradual e constante transição dos processos artísticos para o "digital": na fotografia e no vídeo a consolidação da substituição do filme pelos sensores digitais é uma realidade; na escultura, este fenómeno já começou a dar os primeiros passos com o aparecimento das impressoras 3D; na pintura e no desenho este sintoma começa a ganhar expressão graças à vulgarização das mesas e canetas digitais. Posto isto, o que se pretende neste ensaio é refletir acerca da forma como esta transição, que mais do que uma simples evolução técnica, se insere num discurso ideológico de evolução contínua, de um ideal de progresso iniciado no fim do séc. XVIII com a revolução industrial. Para esse efeito, procede-se a uma breve análise à comunicação de Shakil Yussuf Rahim acerca dos desenhos de Mónica Cid, identificando o protagonismo que o objeto tecnológico ganha sobre o conteúdo, ou seja sobre o desenho em si mesmo. Esta problemática é complementada com o recurso ao pensamento de Jean Baudrillard sobre a sociedade de consumo, no qual este identifica e tece algumas considerações acerca do objeto enquanto gadget, começando precisamente por afirmar que este constitui o emblema da sociedade pós-industrial. (BAUDRILLARD, 2010) Finalmente, levantam-se algumas inquietações acerca da fronteira que separa a ferramenta do medium, no caso específico do desenho digital, uma vez que estes - os desenhos - apenas existem enquanto código informático, necessitando de um ecrã/projetor para serem fruídos através de luz, ou, no caso de passagem para uma forma matérica, do recurso à

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Tendo como ponto de partida a comunicação feita por Shakil Yussuf Rahim "Mónica Cid e o(s) Desenho(s) de Observação no iPad/tablet", inserida no V Congresso Internacional CSO'2014, é analisado o fato do discurso do orador se centrar na "ferramenta", no objeto que serve de materialização da obra (o ipad) em detrimento desta, assumindo o seu papel de gadget, de objeto fetiche. É feita posteriormente uma reflexão à importância dos objetos e o crescente protagonismo que estes ganham na sociedade, apoiada na análise desenvolvida por Jean Baudrillard na obra A sociedade de consumo, sendo, por último, feita uma leitura ao modo como estes avanços tecnológicos influenciam a relação ferramenta/medium.

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O gadget na arte Jorge Henrique Antunes Ribeiro, nº 5931

Teoria dos Media II, maio de 2014, Arte/Multimédia

FBAUL, [2013/2014]

Resumo

Tendo como ponto de partida a comunicação feita por Shakil Yussuf Rahim "Mónica Cid e o(s)

Desenho(s) de Observação no iPad/tablet", inserida no V Congresso Internacional CSO'2014, é

analisado o fato do discurso do orador se centrar na "ferramenta", no objeto que serve de

materialização da obra (o ipad) em detrimento desta, assumindo o seu papel de gadget, de objeto

fetiche. É feita posteriormente uma reflexão à importância dos objetos e o crescente protagonismo que

estes ganham na sociedade, apoiada na análise desenvolvida por Jean Baudrillard na obra A sociedade

de consumo, sendo, por último, feita uma leitura ao modo como estes avanços tecnológicos

influenciam a relação ferramenta/medium.

Palavras-chave: desenho digital, gadget, tablet, medium, ferramenta.

Introdução

É um aspeto transversal à contemporaneidade, o fato de nos encontrarmos a assistir a

uma gradual e constante transição dos processos artísticos para o "digital": na fotografia e no

vídeo a consolidação da substituição do filme pelos sensores digitais é uma realidade; na

escultura, este fenómeno já começou a dar os primeiros passos com o aparecimento das

impressoras 3D; na pintura e no desenho este sintoma começa a ganhar expressão graças à

vulgarização das mesas e canetas digitais.

Posto isto, o que se pretende neste ensaio é refletir acerca da forma como esta

transição, que mais do que uma simples evolução técnica, se insere num discurso ideológico

de evolução contínua, de um ideal de progresso iniciado no fim do séc. XVIII com a

revolução industrial. Para esse efeito, procede-se a uma breve análise à comunicação de

Shakil Yussuf Rahim acerca dos desenhos de Mónica Cid, identificando o protagonismo que

o objeto tecnológico ganha sobre o conteúdo, ou seja sobre o desenho em si mesmo.

Esta problemática é complementada com o recurso ao pensamento de Jean Baudrillard

sobre a sociedade de consumo, no qual este identifica e tece algumas considerações acerca do

objeto enquanto gadget, começando precisamente por afirmar que este constitui o emblema

da sociedade pós-industrial. (BAUDRILLARD, 2010)

Finalmente, levantam-se algumas inquietações acerca da fronteira que separa a

ferramenta do medium, no caso específico do desenho digital, uma vez que estes - os desenhos

- apenas existem enquanto código informático, necessitando de um ecrã/projetor para serem

fruídos através de luz, ou, no caso de passagem para uma forma matérica, do recurso à

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impressão mecânica.

Desenvolvimento

1. A ferramenta enquanto tema central do discurso

Na sua comunicação "Mónica Cid e o(s) Desenho(s) de Observação no iPad/tablet",

inserida no V Congresso Internacional CSO'2014, Shakil Yussuf Rahim, apesar de ter a

observação dos desenhos da Arquiteta e desenhadora Mónica Cid como mote, não é nestes

que centra a sua atenção, mas sim nas funcionalidades presentes na conjugação entre o

periférico utilizado - tablet e caneta - e o software escolhido, a aplicação de distribuição

gratuita Brushes da empresa Taptrix, compatível com os dispositivos iphone e ipad da Aplle:

Neste contexto tecnológico, Mónica Cid utiliza o tablet iPad (Apple, IOS,

241,2x185,7x8,8mm, ecrã de 9,7', 1024x768 px, 132 pixels por polegada, 24 bits). Ainda que

existam disponíveis muitas aplicações orientadas para produção gráfica (...) Cid desenha

com uma app de distruibuição livre, a Brushes. Esta aplicação funciona como um estirador.

(RAHIM, 2014).

Ao longo do seu artigo, Rahim descreve alguns princípios metodológicos da

desenhadora, nomeadamente a forma como esta reparte o seu processo construtivo em três

elementos (a atenção à perspetiva, a localização das figuras na composição e a descrição das

formas), e como a artista parte do geral para o particular nos desenhos que executa; mas, em

nenhum momento, existe uma confrontação com as alterações/diferenças provocadas pela

utilização da ferramenta digital versus processos manuais, assim como também não é tido em

conta o conteúdo dos desenhos, nem as motivações da artista, resumindo-se então o orador a

aspetos formalistas, a processos transversais a qualquer medium ou desenhador. Nunca se

chega a perceber quem é a desenhadora Mónica Cid. Posto isto, o que se destaca é a ênfase

reforçada nas variáveis que o software disponibiliza, com a curiosidade de o palestrante se

referir aos desenhos feitos através desta ferramenta como idesenhos (RAHIM, 2014),

categorizando estas obras, separando-as de trabalhos executados por outras ferramentas de

desenho digital, atribuindo-lhes uma conotação elitista, uma vez que o prefixo i funciona

como uma referência aos periféricos da marca Apple.

Como exemplo da ténue linha que delimita a pertinência da ferramenta para o

resultado final, temos os desenhos que servem de ilustração à Revista Croma 3, precisamente

da autoria de Mónica Cid: se estes desenhos forem visionados através da reprodução

monocromática e de pequena dimensão inserida no artigo de Rahim, não é percetível qual a

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técnica empregue na sua criação; no entanto, ao serem observados na imagem de capa, de

maior escala e inclusão de cor, são evidentes as irregularidades ao nível do traço, assim como

da informidade característica da mancha provocada pela aguada. Estes, e ao contrário do tema

do artigo, são desenhos feitos com recurso a caneta e aguada sobre papel. Qual então a razão

que leva à substituição das ferramentas/media manuais para outras de cariz mecânico e

digital? Ao se considerar que o cariz dos desenhos não se altera, ou de outro prisma, se não

existe um ganho evidente, tendo inclusive a própria qualidade pictórica tendência a se

uniformizar, e deste modo (talvez) a perder um cunho mais subjetivo, mais autoral, então é

sinal que estamos perante outra coisa, e essa prende-se com a emergente presença do objeto,

na qual a sua inutilidade potencial e o valor combinatório lúdico o definem como gadget

(BAUDRILLARD, 2010, p.142).

2. O gadget segundo Jean Baudrillard

Precisamente, no capítulo que dedica à teorização do gadget, Jean Baudrillard (1929-

2007) começa por revelar a dificuldade que encerra a criação de uma definição global para o

termo: segundo ele, todos os objetos podem ser transformados em gadgets, ao se assistir à

perda da sua função objetiva em prol de uma função de signo. Logo, desta forma, se todos os

objetos são potenciais gadgets, como é que então se pode estabelecer a separação entre estes e

o utensílio? Segundo o autor, é precisamente a partir do momento em que um objeto perde o

valor de uso e a sua função simbólica, que emerge a sua função lúdica, manifestada pela

exaltação da novidade. Esta, a novidade, passa a constituir o prazo de validade do objeto,

conduzido deste modo à condição de gadget: O gadget define-se de facto pela prática que

dele se tem, a qual não é nem de tipo utilitário, nem do tipo simbólico, mas lúdico.

(BAUDRILLARD, 2010, p.145).

Na análise que faz acerca da publicidade a um bloco de notas desenvolvido pela

I.B.M., análise que podia muito bem ser aplicada ao tablet da Aplle, Baudrillard tem a

seguinte apreciação:

Imagine um pequeno aparelho de 12x17 cm, que o acompanha por todo o lado, em viagem,

no escritório, no fim de semana. Pega nele com uma só mão, folheia-o à pressa e sussurra-

lhe as suas decisões, dita-lhe as suas directivas, proclama-lhe as suas vitórias. Tudo o que

disser ficará consignado na sua memória [...] Nada de mais útil, nada de mais inútil: o

próprio objecto técnico se toma gadget, quando a técnica se reduziu a prática mental de tipo

mágico ou a prática social de moda. (BAUDRILLARD, 2010, p.142-143)

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É neste enquadramento que se coloca o tablet enquanto máquina de desenho:

desempenha simultaneamente o papel de objeto fetiche, de elemento de prestígio, em que a

sua função passa a ser algo que responde a uma necessidade inconsciente de significação, e

também de gadget, tendo o seu período de vida garantido enquanto o seu efeito de

novidade e de encantamento perdurar, ou seja, até ao aparecimento de um outro

modelo/aparelho que o substitua nessa função: De certa maneira, a novidade constitui o

derradeiro período do objeto, sendo capaz, nalguns casos, de atingir a intensidade, se é

que não a qualidade, de emoção amorosa. (BAUDRILLARD, 2010, p.144)

3. A ferramenta versus medium: consequências da alteração de dispositivo

Não é de forma inconsciente que no decorrer deste ensaio é referido o tablet e respetivo

software como ferramentas: é na separação entre ferramenta e medium que reside outra das

alterações introduzidas pelo digital na produção de imagens, favorecendo o aparecimento de

outros gadgets.

Se na fotografia se continua a assistir à contínua transição dos processos manuais1 para

os digitais, no desenho e pintura pode-se estabelecer uma semelhante analogia com a

introdução das imagens produzidas através de computador. Nestes casos, deixa de existir um

original físico (à imagem do que acontece com a fotografia captada através de sensores

digitais). Assim, nos desenhos digitais de Mónica Cid, o ipad e o Brushes serão as

ferramentas, enquanto a função de medium está reservada ou para o ecrã/projetor enquanto

dispositivos de visionamento, não atingindo neste caso o desenho valor matérico, háptico,

"desaparecendo" a obra quando se desliga o dispositivo, ficando então o processo de

materialização permanente dependente de um outro gadget: a impressora, que em conjunto

com os seus consumíveis, não representam mais do que o media através dos quais a obra é

identificada.

Nas fotografias originalmente digitais ou digitalizadas2 a identificação da obra faz

menção ao tipo de impressão e em que papel é feito, ignorando no entanto qual a máquina e

que software foi utilizado no seu processamento.

1 Entende-se ser mais correta a utilização dos termos manuais ou mecânicos em detrimento de analógicos, uma

vez que analógica, designação derivada do grego analogom, é toda a fotografia na sua essência.

2 Assiste-se por parte dos fotógrafos adeptos dos processos tradicionais, a um gradual recurso à digitalização das

películas; apesar de estes continuarem a fazer o registo em filme, optam por meios digitais para posterior edição,

ampliação e reprodução das imagens.

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Notas Finais

Não é intenção deste ensaio tecer quaisquer juízos de valor em relação às diferentes

técnicas artísticas, existindo inclusive a convicção de que o recurso a novos meios resultam

em novas experiências e consequentemente em novos resultados. O que se pretende é a

identificação de sinais que conduzem a uma gradual substituição do homem pelo objeto, a

diferentes formas de reificação.

Não é também o recurso a meios mecânicos e/ou informáticos que se torna preocupante,

mas sim o fato desses meios se tornarem essenciais à produção, neste caso artística, não

existindo, até prova em contrário, hipótese de retrocesso. Não parece ser exercício de grande

genialidade futurológica, afirmar que nas gerações vindouras os meios digitais se tornarão

incontornáveis à prática artística, sendo o aumento da dependência da atualização de gadgets

exponencial, assim a necessidade de formas de alimentação energética para a sua produção e

funcionamento.

Assim, conforme é demonstrado, Shakil Yussuf Rahim na sua intervenção toma o

dispositivo como alvo preferencial de atenção, em substituição do produto final resultante da

sua utilização, a criação artística. É a este tipo de equívoco que o deslumbramento do objeto

enquanto veículo fetichista pode conduzir. E, ao faze-lo, está-se a atribuir ao objeto a figura

de protagonista, papel que este já desempenha na atual sociedade.

Vivemos o tempo dos objectos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em

conformidade com a sua sucessão permanente. Actualmente, somos nós que os vemos nascer,

produzir-se e morrer, ao passo que em todas as civilizações anteriores eram os objectos,

instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas.

(BAUDRILLARD, 2010, p.14)

Referências

BAUDRILLARD, Jean. (2010) A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70.

RAHIM, Shakil Yussuf. (2014) Mónica Cid e o(s) Desenho(s) de Observação no iPad/Tablet: as

heterodoxias intencionais do olhar e do gesto para lá da janela de Alberti in Revista croma, vol. 2,

nº 3. Lisboa: FBAUL & Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes. ISSN:2182-8547.

P.111-120