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Helen Ferreira Nunes MEMÓRIA DA AUSÊNCIA EM CECÍLIA MEIRELES Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos da Linguagem, da Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos da Linguagem. Linha de pesquisa: Linguagem e Memória Cultural Orientadora: Professora Doutora Elzira Divina Perpétua MARIANA 2015

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Helen Ferreira Nunes

MEMÓRIA DA AUSÊNCIA EM CECÍLIA MEIRELES

Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras: Estudos da Linguagem, da

Universidade Federal de Ouro Preto, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Letras: Estudos da Linguagem.

Linha de pesquisa: Linguagem e Memória Cultural

Orientadora: Professora Doutora Elzira Divina Perpétua

MARIANA

2015

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por ser Aquele que É. Ao meu pai (in memorian), por todo

cuidado e amor; a minha mãe, por ser o amparo, a fortaleza e a alegria em minha vida, e ao

meu irmão, meu grande amigo. Aos meus tios (as) e primos (as), pelas conversas

esclarecedoras. A todos os amigos e colegas de curso que participaram comigo desta batalha.

Agradeço à Professora Elzira, pela orientação e apoio; ao professor Duda Machado, pela

grande importância nessa trajetória; aos professores Eclair Antonio Almeida Filho e Bernardo

Brandão, pelas dicas e amizades; à Universidade Federal de Ouro Preto por apostar na

pesquisa, e à CAPES, por promover este tempo de aprendizagem.

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RESUMO

Podemos encontrar na história de vida de Cecília Meireles vários elementos que caracterizam

sua poesia e em particular o elemento da ausência ou da perda, expressa através da memória

registrada em seus poemas. Percebemos que em sua obra o tema da ausência vai além da

perda de pessoas; trata-se de uma ausência que é transmitida a lugares, tempos e até mesmo

ao próprio eu. No primeiro capítulo da dissertação apresentamos um estudo da biografia da

autora e uma abordagem a respeito do que a crítica especializada aponta sobre a obra

ceciliana. No segundo capítulo apresentamos os conceitos de memória, tempo e esquecimento

traçados por estudiosos de Santo Agostinho a Derrida para, em seguida, associar tais

conceitos à lírica ceciliana. Já no terceiro capítulo, partindo da base teórica sobre poética e

hermenêutica, de Jonathan Culler, apresentamos uma leitura mais detida de alguns poemas

das obras Viagem, Vaga Música, Mar Absoluto e Solombra que possuem a temática da

ausência e outras temáticas recorrentes. Este estudo abarcará a passagem do teor mais

sensorial e concreto dos primeiros livros a um teor mais abstrato e metafórico do último, a

elaboração da linguagem e a estrutura da composição poética.

Palavras-chave: Cecília Meireles; memória; ausência; poesia.

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ABSTRACT

We can identify in Cecilia Meireles' life some elements that characterize her poetry and in

particular the element of absence or loss, expressed through the registered memory in her

poems. We realized that in her work the theme of absence goes beyond the loss of people; it is

an absence transmitted to places, times, and even the absence of herself. In the first chapter of

the dissertation we present the author‟s biography and an approach on what the critics explain

about Cecilia's work. In the second chapter we present the concepts of memory, time and

oblivion conceived by scholars from St. Augustine to Derrida and then we associate these

concepts to ceciliana‟s lyrical. In the third chapter, based on the theoretical basis on poetics

and hermeneutics, by Jonathan Culler, we present a careful review of some poems of Viagem,

Vaga Música, Mar Absoluto and Solombra that are about absence and other recurring themes.

This study will cover the passage of more sensory and concrete content of the first books to a

more abstract and metaphorical content of the latter, the development of language and the

structure of poetic composition.

Keywords – Cecília Meireles; memory; absence; poetry.

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SUMÁRIO

SUMÁRIO.................................................................................................................... 06

CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................... 08

CAPÍTULO I: CECÍLIA MEIRELES

1.1 Vida e obra; perdas e ausências............................................................................. 14

1.2 Formulações da crítica........................................................................................... 20

1.3 Cecília Meireles no contexto acadêmico............................................................... 24

CAPÍTULO II: SOBRE A MEMÓRIA

2.1 Memória, tempo e esquecimento........................................................................... 30

2.2 A memória em Cecília Meireles............................................................................ 38

2.3 Leitura de Cecília Meireles à luz da teoria............................................................ 43

CAPÍTULO III: VIAGEM, VAGA MÚSICA, MAR ABSOLUTO, SOLOMBRA

3.1 Poética e hermenêutica............................................................................................48

3.2 Um olhar sobre poesia – dinâmica das interrelações poéticas............................... 52

3.3 Viagem – Motivos para a poesia............................................................................ 54

3.4 Vaga Música – Canções de encontro ao etéreo...................................................... 63

3.5 Mar Absoluto – A efemeridade dos instantes..........................................................71

3.6 Solombra – Escuridão e luz.....................................................................................79

3.7 As temáticas recorrentes..........................................................................................86

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 90

REFERÊNCIAS............................................................................................................91

ANEXO – POEMAS COMPLETOS..........................................................................96

Elegia – Mar Absoluto ..................................................................................................96

Memória – Vaga Música...............................................................................................101

Agosto – Vaga Música..................................................................................................102

Medida da significação – Viagem.................................................................................103

Valsa – Viagem..............................................................................................................105

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Canções do mundo acabado – Vaga Música..................................................................105

Retrato falante – Vaga Música.......................................................................................106

Velho estilo – Vaga Música............................................................................................107

Mar absoluto – Mar Absoluto.........................................................................................108

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ainda que sendo tarde e em vão,

perguntarei por que motivo

tudo quanto eu quis de mais vivo

tinha por cima escrito "Não".

(Cecília Meireles)

A obra poética de Cecília Meireles, depois de um período de certo esquecimento, vem

recebendo a atenção crítica que lhe é devida, tendo em vista a importância e a qualidade que a

distinguem no conjunto da produção poética brasileira do século XX. Neste sentido vale a

pena destacar o livro Ensaios sobre Cecília Meireles (2007), organizado por Leila V. B.

Gouvêa, em que há trabalhos importantes como, por exemplo, o de Alfredo Bosi, que traz

uma visão de conjunto da poesia de Cecília, e o de João Adolfo Hansen sobre Solombra.

Também merecem destaque os livros Pensamento e „Lirismo Puro‟ na Poesia de Cecília

Meireles (2008), da própria Leila V. B. Gouvêa, e Oriente e Ocidente na Poesia de Cecília

Meireles (2006), de Francis Uteza e Ana Maria de Mello.

Embora haja novos e relevantes estudos sobre a poesia de Cecília Meireles, a

bibliografia crítica sobre a autora apresenta lacunas, como observa Davi Arrigucci Júnior no

prefácio de Pensamento e „Lirismo Puro‟ na Poesia de Cecília Meireles (2008). Em suas

palavras, “é como se Leila, angustiada diante das lacunas da bibliografia ideal e da falta de

um reconhecimento completo, quisesse cumprir de algum modo a tarefa de preenchê-los,

numa entrega generosa a seu objeto de estudo” (ARRIGUCI JR., 2008, p.11). Assim, de

modo geral, a contribuição pretendida por esta dissertação consiste na tentativa de responder

parcialmente ao estado de carência em que se encontra o trabalho de recepção crítica da obra

poética da autora.

Apesar de serem de grande importância os tópicos abordados pelos estudiosos de

Cecília, não encontramos um aprofundamento sobre aquilo que a meu ver é essencial para um

estudo da poética de Cecília Meireles: o tema da ausência arraigado na memória e expresso

em seus poemas. Embora haja algumas referências a essa temática em estudo da poética

ceciliana, elas me parecem insuficientes para tão importante questão. Por esse motivo, este é o

tema que desenvolveremos nesta pesquisa.

Leila V. B. Gouvêa dedica um capítulo de Pensamento e „Lirismo Puro‟ na Poesia de

Cecília Meireles à representação das ausências nos poemas de Cecília Meireles. Nesse texto

ela fala sobre a evocação ancestral de sua família ausente; demarca poemas que aludem ao

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pai, mãe e irmãos falecidos, os quais a poeta praticamente não conheceu. Um poema com o

qual Leila Gouvêa exemplifica essa questão chama-se “Memória”, do qual transcreverei a

primeira e a segunda estrofes:

Minha família anda longe,

com trajos de circunstância:

uns converteram-se em flores,

outros em pedra, água, líquen;

alguns, de tanta distância,

nem têm vestígios que indiquem certa orientação.

Minha família anda longe,

- na Terra, na Lua, em Marte -

uns dançando pelos ares,

outros perdidos no chão. 1

Sobre esse poema de Vaga Música (MEIRELES, 2001, p.372-374), Leila Gouvêa

(2008, p.131-133) observa a recorrência do verso “Minha família anda longe”, que acontece

por seis vezes, demonstrando a distância existente entre a família e o sujeito poético. Além

disso, Gouvêa observa a ausência de verossimilhança nas imagens usadas para representar a

“família”, já que as palavras não se encontram numa acepção denotativa, que seria

representado, por exemplo, em “cemitério” ou cercadas por sentimentos de tristeza. A palavra

“morte” também não é encontrada no poema, o que fortalece sua análise.

Já Alfredo Bosi (2007) no artigo “Em torno da poesia de Cecília Meireles” considera

que a ausência e a distância são acentos peculiares à lírica ceciliana. E João Adolfo Hansen

(2007) também trata do assunto com desenvoltura em “Solombra ou a sombra que cai sobre o

eu”.

Dentro de uma gama de poetas, como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de

Moraes, Murilo Mendes, entre tantos outros nomes representativos da poesia brasileira

moderna e contemporânea, Cecília Meireles se destaca pelo modo singular de tratar

sentimentos humanos. A melancolia, o sentimento de ausência e alheamento do mundo,

¹ Para transcrição dos poemas usamos a edição organizada por Antônio Carlos Secchin, em cuja apresentação ele

garante a correção da obra de Cecília: “Para o estabelecimento do texto, cotejamos todas as primeiras edições

dos livros avulsos da poeta com a versão estampada na Obra de 1958, a única, conforme assinalamos, publicada

em vida da autora. Consultamos, também, as primeiras edições de Cecília publicadas entre 1960 e 1965, bem

como os livros póstumos (a segunda parte de Ou isto ou aquilo, os Poemas italianos). Ressalte-se, como regra

geral, que, uma vez publicada em livro, a escritora não mais alterava os poemas. Isso não impediu que, ao longo

do tempo (e mesmo na edição de 1958), erros fossem acumulando, e de vária natureza: ausência ou troca e

palavras, equívocos de estrofação, truncamentos sintáticos. Todas as correções foram criteriosamente efetuadas

de acordo com a ortografia e as normas gramaticais vigentes, sempre respeitando a vontade autoral de Cecília,

aqui restituída depurada ao máximo das centenas de pequenas, médias ou grandes distorções que vinham

acompanhando as sucessivas edições de sua obra poética” (SECCHIN, 2001, p. xix).

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marcas fortes de sua poética, podem ser considerados o ponto inicial deste trabalho, o motivo

maior que gerou a busca desta pesquisa em torno da temática da ausência. Esta temática

aparece em toda obra da autora. Delimitaremos nossa investigação aos seus livros Viagem

(1939), Vaga Música (1942), Mar Absoluto (1945) e ao último, Solombra (1963).

A memória da poeta, que não deve ser confundida com o “eu-lírico” de seus poemas,

possui grande relevância quando pensamos em sua produção poética como um todo. Não

podemos descartar a influência da memória de Cecília Meireles em sua produção como

também não podemos generalizar e explicar sua poética simplesmente por seu passado. Em se

tratando do limite entre vida e obra, o ensaio “A crítica biográfica”, de Eneida Maria de Souza

(2011) é bastante esclarecedor. Neste ensaio, Souza estuda sobre a crítica biográfica,

observando o limite entre teoria e ficção, vida e obra; e para ela, é preciso haver uma distinção

e uma condensação nos polos da arte e da vida com vistas a não reduzir os acontecimentos

vivenciados pelo escritor. De acordo com ela, não se deve argumentar que a vida se reflete

diretamente na arte ou que a arte seja uma imitação da vida, constituindo assim o seu espelho.

Segundo ela, é preciso ter cuidado para não haver na biografia uma interpretação textual

baseada em soluções fáceis e superficiais. Em suas palavras:

A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis dos escritores

reside no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético ao

biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que

determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, deve-se

distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao

acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção

(SOUZA, 2011, p.19).

Para Souza, os fatos da vida do escritor adquirem sentido se eles forem filtrados e

transformados pelo olhar do crítico, passando por um processo de desrealização e de

dessubjetivação. Para ela existe a possibilidade de reunir teoria e ficção se for considerado

que os laços biográficos são criados a partir da relação metafórica existente entre a vida e a

obra. Em suas palavras: “O importante nessa relação é considerar os acontecimentos como

moeda de troca da ficção, uma vez que não se trata de converter o ficcional em real, mas em

considerá-los como cara e coroa da mesma moeda ficcional” (SOUZA, 2011, p.21).

Por isso, nesta pesquisa, teremos como trabalho apontar traços nos poemas de Cecília

Meireles que possibilitem a aproximação da memória das perdas com a temática da ausência

presente em praticamente toda sua obra. Analisaremos de que forma a ausência, tanto a que o

eu possui em relação ao mundo, quanto a ausência proveniente da perda de pessoas queridas,

de lugares e situações, pode ser tida como princípio estruturante dos poemas de Cecília

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Meireles. Entendemos que esta hipótese pode ser corroborada pela própria poeta, no trecho da

entrevista publicada por Eliane Zagury, concedida por Cecília à revista Manchete, no dia 03

de outubro de 1953, em que declara:

Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi

minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família

acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo, me deram, desde

pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações

entre o Efêmero e o Eterno que para outros constituem aprendizagem dolorosa e, por

vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me

espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o

fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que tudo isso explica tudo

quanto tenho feito, em Literatura, Jornalismo, Educação, e mesmo Folclore. Acordar

a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar.

Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas

por uma contemplação poética afetuosa e participante. (ZAGURY, 1973, p.161)

Nestas palavras, a poeta reconhece que a noção ou sentimento da transitoriedade é o

que fundamenta sua personalidade. Esta noção vem da experiência da perda e da percepção de

que o tempo passa às vezes em uma velocidade maior do que a desejada, trazendo com isso as

mudanças. Cecília diz no trecho acima que a experiência que ela teve com a morte formou sua

personalidade desde muito cedo. Como não chegou a conviver com o pai e os irmãos, essas

ausências trouxeram para sua vida a lacuna do desconhecido. A perda da mãe, quando ela

tinha apenas três anos de vida, juntou-se com as demais ausências que possivelmente fizeram

com que sua personalidade fosse nutrida com certa dose de melancolia2.

Contudo, a temática da ausência não se refere somente à ligação com a perda de

pessoas, e a seleção que faremos dos poemas nos mostrará as diferenciações nos traços da

temática proposta. Certos poemas parecem nos mostrar o predomínio do tema da ausência do

eu lírico em relação ao mundo, enquanto outros falarão diretamente da ausência do ser amado;

outros ainda, da ausência derivada do sentimento de perda, como uma mãe diante do filho,

outros da ausência associada, por exemplo, à perda das experiências do passado.

“Memória da ausência em Cecília Meireles” pretende ser um levantamento meticuloso

das possibilidades de estruturar a temática da ausência que percorreu a vida traduzida em

poesia de Cecília Meireles, em sua memória.

2 Freud, em Luto e Melancolia (2006), distingue o luto da melancolia. De acordo com ele, o luto ocorre quando

se tem um objeto amado e se perde esse objeto, e nessa perda, a pessoa se permite sofrer, se permite passar pelo

luto e, de certa forma, se permite enterrar o que perdeu, recuperando-se aos poucos. Já na melancolia, o luto não

acontece, a perda é sofrida, porém a pessoa vai guardando o sentimento negativo dessa perda que, de algum

modo a torna melancólica; a pessoa não se desfaz daquilo que perdeu.

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Nossa proposta sobre a temática da ausência inclui o cotejo de poemas de Viagem

(1939), Vaga Música (1942), Mar Absoluto (1945) e Solombra (1963), cuja leitura abarcará

não só à passagem do teor mais sensorial e concreto dos primeiros livros a um teor mais

abstrato do último, mas também à elaboração da linguagem e à estrutura de composição

poética.

Assim, no primeiro capítulo, faremos uma breve apresentação da vida de Cecília

Meireles e apresentaremos a abordagem que a crítica especializada aponta sobre a lírica

ceciliana. O estudo de Yudith Rosenbaum sobre a poética da ausência em Manuel Bandeira

nos ajudará a compreender melhor como a mesma temática aparece em Cecília Meireles.

Além disso, faremos também o levantamento da crítica acadêmica contemporânea, para

investigar se há grandes diferenças do que já foi dito sobre a obra poética.

No segundo capítulo faremos um levantamento teórico sobre memória, tempo e

esquecimento, embasado nos pensadores Santo Agostinho, Paul Ricoeur, Proust, Walter

Benjamin, Henri Bergson e Derrida. Em seguida, veremos como a memória aparece em

Cecília Meireles, de acordo com os críticos da poeta Alfredo Bosi e João Adolfo Hansen.

Depois faremos um entrelaçamento da poética ceciliana sob a luz da teoria sobre a memória, e

a crítica dos estudiosos da autora. Alguns estudos sobre a relação entre a memória pessoal e a

escrita memorialística servirão como apoio teórico à questão, como por exemplo, A traição de

Penélope, em cujo primeiro capítulo sua autora, Lúcia Castello Branco, explana sobre as

várias correntes de memória, de Santo Agostinho a Lacan. O ensaio de Walter Benjamin, “A

imagem de Proust”, será de grande valor para pensarmos a memória involuntária, e por isso

acrescentamos ao apoio teórico-crítico da dissertação. Cabe ainda ressaltar a contribuição da

dissertação de Silvana Maria Pessoa de Oliveira, Réquiem para um sujeito: a escrita da

memória em Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade, como um modelo teórico-crítico a

respeito das relações entre a poesia e a memória. Veremos também como a questão do

esquecimento está intimamente relacionada ao fazer poético.

No terceiro capítulo, tendo como base os princípios de Jonathan Culler a respeito da

poética e da hermenêutica, faremos uma leitura detalhada de alguns poemas, começando pelo

livro Viagem, em seguida Vaga Música e Mar Absoluto, que compõem a primeira parte da

lírica de Cecília Meireles que abordaremos nesta dissertação. Em seguida, partiremos para

uma leitura mais detida de Solombra, o último livro de poesia da autora. Por fim,

mostraremos as diferenças com relação à temática da ausência presente nas obras aqui

estudadas. Alguns poemas nos mostram o tema da ausência do eu lírico em relação ao mundo,

outros falarão da ausência do ser amado; outros ainda falarão da ausência derivada do

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sentimento de perda, e outros nos mostram o tema da ausência associado, por exemplo, à

perda das experiências do passado. Temas como o tempo, a efemeridade, a distância e o

alheamento do eu-lírico em relação ao mundo também comporão o estudo. Os poemas serão

tratados de acordo com o que Antonio Candido sugere em seus livros O estudo analítico do

poema e Na sala de aula. O estudo de Alfredo Bosi em Ser e Tempo da poesia contribuirá

para a leitura que propomos, principalmente na questão da repetição, ou recorrência. A base

teórica contida em dois capítulos de “Teoria Literária: uma introdução”, de Jonathan Culler –

“Linguagem, Sentido e Interpretação” e “Retórica, Poética e Poesia” é relevante para o

estudo. Ainda como apoio teórico, a colaboração de Northrop Frye, no capítulo “O ritmo da

Associação: a Lírica”, do livro Anatomia Crítica, será importante, além do estudo que

Octávio Paz faz em O arco e a lira sobre o poema.

Para a elucidação do estudo proposto, acrescentamos, como anexo, a transcrição

integral de cada poema referido, na ordem em que são citados ao longo da dissertação.

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CAPÍTULO I – CECÍLIA MEIRELES

1.1 – VIDA E OBRA; PERDAS E AUSÊNCIAS

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu no Rio de Janeiro dia 7 de novembro

de 1901 e teve sua infância e vida definidas pela morte de pais e irmãos, e da família restou

somente ela e a avó materna. Já adulta perdeu Fernando Correa Dias, seu primeiro marido,

cujo sofrimento por forte depressão o levou ao suicídio. Além dessas perdas, outra que a

marcou fortemente foi a da avó Jacinta, que a criou e foi seu suporte na vida. Para ela, Cecília

compôs a Elegia 1933-1937, publicada em Mar Absoluto:

(...)

Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos,

tua boca, onde a passagem da vida

tinha deixado uma doçura triste,

que dispensava palavras.

Ah, falta o silêncio que estava entre nós,

e olhava a tarde, também.

Nele vivia o teu amor por mim,

obrigatório e secreto.

Igual à face da Natureza:

evidente, e sem definição.

Tudo em ti era uma ausência que se demorava:

uma despedida pronta a cumprir-se.

(...)

(MEIRELES, 2001, p.591)

Percebemos na obra ceciliana que o tema da ausência vai além da perda de pessoas;

trata-se de uma ausência que é transmitida a lugares, tempos e até mesmo à ausência do

próprio eu. Talvez o reflexo do inexplicável, do não palpável, da mutabilidade de que seu

espírito é refém a tenham conduzido pelos caminhos da escrita. Podemos dizer que as faltas,

os vazios que a preencheram contribuíram para sua poética, e digamos que foram a força

motriz que a conduziram ao nome forte dentro da literatura brasileira. O aspecto melancólico,

aliado à sensibilidade e à beleza, deu forma a expressões que levaram seus poemas a

ganharem títulos e prêmios pela leveza, ritmo e métrica, numa junção peculiar.

Cecília Meireles cresceu em meio às observações do mundo ao seu redor, em meio às

histórias que sua avó lhe contava e enriquecia a sua vida com um alto grau de percepções.

Agamben (2005) diz que a linguagem tem sua origem na infância assim como a infância tem

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sua origem na linguagem, e é neste ciclo que devemos procurar o lugar da experiência

enquanto infância do homem. De acordo com ele, a experiência, a infância coexiste

originalmente com a linguagem. Cecília Meireles iniciou seu processo de escrita ainda criança

e, com isso, podemos presumir que o seu contato com a língua e a linguagem aconteceu de

modo espontâneo, bastante natural. No poema “Orfandade”, de Viagem, podemos encontrar

os possíveis primeiros contatos que o eu lírico se recorda de ter feito com a fala.

Orfandade

A menina de preto ficou morando atrás do tempo,

sentada no banco, debaixo da árvore,

recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,

e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,

murmurou: «A MAMÃE MORREU».

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.

O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,

escutando na terra aquele dia que não dorme

com as três palavras que ficaram por ali.

(MEIRELES, 2001, p.249-250)

Neste poema podemos entender o aspecto da linguagem, que se inicia partir da visão

que receberam os grandes olhos admirados. Em seguida, ao passar alguém de manso diante da

menina ela somente murmurou: “A MAMÃE MORREU”, sem que antes ninguém tivesse dito

nada. Diante disso, podemos perceber a experiência da perda que culminará na linguagem. Na

última estrofe temos no primeiro verso “Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também”.

O emudecimento causado pela experiência dolorosa pode ser percebido neste verso. E as três

palavras ficaram por ali junto com o olhar que caiu dos seus olhos.

Cecília começou a escrever seus primeiros versos por volta dos nove anos de idade e

lançou seu primeiro livro, Espectros, aos dezoito anos. Em seguida lançou Nunca mais... e

Poemas dos poemas (1923), Baladas para el-rei (1925), Cânticos (1927), A Festa das Letras

(1937), Morena, Pena de Amor (1939), Viagem (1939) e Vaga Música (1942). Segundo

Darcy Damasceno, a poeta eliminou a publicação de Espectros da sua bibliografia por se

tratar de composições da adolescência. Seu livro Viagem ganhou o prêmio de poesia da

Academia Brasileira de Letras no ano em que foi lançado, 1938. Publicou ainda Mar absoluto

e Outros Poemas (1945), Retrato Natural (1949), Amor em Leonoreta (1951), Doze Noturnos

de Holanda & O Aeronauta (1952) e Romanceiro da Inconfidência (1953), entre tantas outras

obras poéticas, ensaios, peças teatrais e livros infantis. Gostava de viajar, sendo a viagem para

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a Índia a que mais marcou a sua vida, onde aprendeu com a cultura local uma espiritualidade

que se faz presente em algumas obras, principalmente em seu último livro de poesia lírica,

Solombra (1963). A filosofia hindu que aprendera é caracterizada pelo desapego material e

em Solombra podemos perceber a decantação do material, fazendo do espiritual o mais

evidente em tal obra, que se diferencia neste aspecto das anteriores.

Segundo Ana Maria Lisboa de Mello3, a maior influência que Cecília teve na vida foi

a de sua avó Jacinta, pois ela a influenciou a olhar para a Índia e para o Oriente. Cecília teve

seu interesse despertado desde muito cedo, sua avó lhe incutia a linguagem e a cultura de

Camões. A sensibilidade de Cecília foi cultivada também pela pajem Pedrinha, figura

importante em sua história de vida, que juntamente com a avó lhe ajudara a entender e se

interessar pela cultura popular brasileira e pelo folclore. As duas permaneceram ao lado de

Cecília contribuindo para que ela pudesse ter, depois de adulta, muitas lembranças felizes de

sua infância. Para Mello, Olhinhos de gato é uma narrativa que pode ser considerada como

um “livro de memórias” de Cecília Meireles; foi publicado pela primeira vez durante os anos

de 1939 e 1940, em Portugal, pela Revista Ocidente.

A infância de Cecília lhe forneceu as condições necessárias para se tornar futuramente

uma grande escritora, sua infância foi regada a silêncio e solidão. Desde cedo ela cultivava o

gosto pela leitura, o que lhe facilitou em sua formação intelectual; mesmo antes de aprender a

ler já gostava de ouvir as histórias contadas pela avó e pela ama Pedrinha. Este terreno fértil

para a aprendizagem que é a infância, no futuro ajudou Cecília a pensar em se dedicar

também à literatura infantil e ter gosto em ensinar. Seu prazer pela leitura transformou-se em

vocação para o magistério. Os livros infantis de sua autoria são carregados ora de uma

preocupação pedagógica ora estética e outros estão no domínio da didática de ensino.

Espectros, seu primeiro livro de poemas, que foi excluído pela autora de sua Obra

Poética (1958), foi o único considerado pela crítica com dicção parnasiana; de acordo com

Darcy Damasceno, os livros posteriores seriam apontados com afinidades atribuídas à estética

simbolista, mais voltada para o espiritual, com tendência idealista. O crítico também atribui a

lírica de Espectros às influências que Cecília teria recebido, na Escola Normal, de mestres

como Alfredo Gomes e Osório Duque-Estrada, entre outros.

No mesmo período em que Cecília se casa com Fernando Correia Dias, ela se envolve

em grandes atividades literárias, fazendo parte já do primeiro número da revista Árvore Nova,

do mesmo grupo de escritores que em seguida funda a revista Festa. Dentre os escritores,

3 Os dados da vida de Cecília Meireles estão de acordo com o que Ana Maria Lisboa de Mello relata: (Cf.

MELLO; UTÉZA, 2006. p.14-15).

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nomes como o de Tasso Silveira, Andrade Mauricy e Adelino Guimarães se destacam. Eles

constituíam a chamada corrente espiritualista do Modernismo brasileiro. Cecília possuía

afinidades ideológicas com o grupo, que era independente das coordenadas gerais de 1922,

com tendência a ampliar os limites do projeto modernista em favor de uma arte mais

universalista.

Com o lançamento do livro Nunca Mais... e Poema dos Poemas, em 1923, e dois anos

depois, com Baladas para El-rei, sua obra passa a ser vista pelos críticos como marcadamente

espiritualista, revelando as influências que a cultura oriental exerceu sobre a autora. Nunca

Mais... e Poema dos Poemas foi em sua primeira edição ilustrada pelo marido, Fernando

Correa Dias. Nestas obras percebem-se a repercussão do movimento simbolista através da

sonoridade e o emprego de imagens imprecisas e o misticismo marcante neste movimento.

Segundo Ana Maria Lisboa de Mello, os simbolistas franceses sofreram influência da difusão

do pensamento indiano durante o século XIX.

Cecília, por se dedicar à educação infantil, lança ainda na década de 1920, a obra

infantil Criança, meu amor (1927), que foi mais tarde adotada como livro didático. Trabalha

também, entre 1930 e 1934, para o jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro, publicando

diariamente uma página sobre educação. Devido a este interesse pela educação infantil, é

indicada pela Secretaria de Educação da prefeitura do então Distrito Federal para dirigir um

Centro Infantil e, pouco depois, funda a primeira Biblioteca Infantil do Rio de Janeiro,

decorada por Fernando Correa Dias. Infelizmente, a biblioteca não teve uma longa duração,

pois, segundo Eliane Zagury, as autoridades da época, sob o governo de Getúlio Vargas,

consideravam os livros perigosos para a formação das crianças.

Em 1935, Cecília Meireles passa por mais uma grande dificuldade, o suicídio de

Fernando Correa Dias. Esta perda acarreta dificuldades morais e materiais que ela tentou

sanar um pouco concorrendo a um prêmio com seus versos na Academia Brasileira de Letras.

Dessa forma, em 1938, Viagem é premiado pela Academia Brasileira de Letras, suscitando

polêmicas entre os intelectuais que criticavam o sistema de avaliação das obras. Mário de

Andrade avaliou positivamente a escolha de Viagem para ser premiado, pois, segundo ele, a

coletividade acadêmica descobrira uma obra valiosa, que consagrou Cecília entre os maiores

poetas nacionais. De acordo com Darcy Damasceno, “Viagem vale pela revelação definitiva

de uma natureza artística em sua plenitude e de um estilo poético em seu ponto de perfeição”

(DAMASCENO, 1967, p.20). Ainda, para Damasceno, Viagem traz em seus motivos uma

busca por uma lição de vida, marcada por reflexões e sustentada por uma exigente filosofia. O

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espírito atento da poeta busca nos detalhes cotidianos a sua reflexão, o repouso ou a agitação

em que nasce a poesia.

Cecília, em sua fase madura, com a premiação de Viagem, se desvencilha de grupos e

programas, rejeitando em sua Obra Poética as influências iniciais do grupo Festa, assumindo

em sua poesia uma feição própria, que se propunha a não seguir correntes. Algum tempo

depois da publicação de Viagem, em seu exercício de jornalista, conhece o engenheiro

agrônomo e professor Heitor Grillo, com quem se casa meses mais tarde.

A produção poética de Cecília ocorreu entre 1919 e 1963; e não podemos enquadrá-la

simplificadamente em um contexto neo-simbolista, de sua época, ou em um contexto

modernista, como querem alguns críticos. Observamos traços de variadas tendências estéticas,

mas limitá-la a um estilo seria simplificar sua identidade poética. Podemos dimensioná-la a

uma escrita contemporânea, que dará margem a várias possibilidades de leitura. Cecília

Meireles mergulha no contemporâneo por não se delimitar a previsibilidades de interpretações

e por apresentar um terreno fértil para sua própria construção. Apesar de a maioria de seus

poemas obedecer a alguns aspectos formais da métrica, como as redondilhas, e os

decassílabos, possui a grande marca de expressar o espírito livre de suas composições.

Mesmo estando inserida em um contexto de mudanças, com as manifestações

ideológicas e culturais políticas entre os anos 1920 e 1930 do movimento modernista, do qual

a Semana de Arte Moderna ficou sendo a principal referência, ela não se deixou enraizar pelas

preferências estéticas do movimento. Preferências estas que tinham como uma de suas

características a consciência coletiva, que propunha deixar de lado a antiga vertente da

tradição individualista dos românticos. Seu espírito criador livre e libertador não lhe permitia

prender-se a correntes literárias e estéticas de um movimento. De acordo com Valéria

Lamego, em A farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30 a ligação da poeta com as

revistas Árvore Nova em 1922, Terra de Sol, em 1924 e Festa (primeira fase de 1927-28,

segunda fase de 1934-35), se deu mais por uma ligação de identidade e de espírito do que pelo

movimento modernista ao qual estavam atreladas. Temístocles Linhares em Diálogos sobre a

poesia brasileira é bastante enfático quando diz:

O que sustento, afinal, é não ter Cecília Meireles pertencido nunca aos quadros do

modernismo, dentro das classificações correntes, sobretudo dessa que a filia ao

chamado grupo de Festa, encarnação do chamado modernismo espiritualista e

catolicizante, que tinha como um de seus corifeus e teóricos o poeta Tasso da

Silveira (LINHARES, 1976, p.268).

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O prêmio que Cecília ganhou da Academia Brasileira de Letras em 1939 por Viagem

foi criticado por alguns escritores, que se sentiam incomodados por serem “vencidos” por

uma recente poeta. Sua arte incomodava também por não fazer parte do contexto literário da

época, sendo vista como um modelo isolado, sem postura política definida dentro do

movimento. Por isso, é tida por uma parte da crítica como uma “figura solitária”, pois mesmo

inserida no contexto histórico que ela viveu, sua obra ficava como que à parte, brilhando

sozinha numa constelação de grupos e correntes literárias.

Diferentemente de outras intelectuais e artistas, Cecília não tinha um posicionamento

feminista em relação aos costumes e valores vigentes, apesar de ser contra alguns aspectos

específicos como o salário feminino inferior ao masculino. Segundo o estudo de Valéria

Lamego (1996), muitas artistas posicionavam-se contra os valores burgueses, que eram vistos

como retrógrados, e com isso se aliavam às lutas feministas. Lamego cita Anita Malfatti e

Tarsila do Amaral como exemplos desse modelo transgressor de participação da vida pública

no meio artístico. Cecília Meireles, por sua vez, de acordo com o estudo de Lamego, se

vinculava ao grupo dos espiritualistas, segundo ela, difusores de um modernismo

cosmopolita, que tinha como fundamento o imaterial, o desapego às coisas terrenas.

Apesar de toda sensibilidade poética, quando se tratava de defender sua postura

enquanto jornalista e educadora, ela se mantinha irredutível. Não tinha medo de permanecer

firme na sua posição contra a Igreja Católica e a favor de uma educação laica, pois acreditava

em uma democratização do acesso ao saber. De acordo com Beatriz Resende no prefácio de A

farpa na lira, de Valéria Lamego, Cecília não se intimidava em disparar farpas contra

autoridades como Francisco Campos, Getúlio Vargas, pois não concordava com o poder

ditador. Cecília acreditava na educação não como uma possibilidade de diferentes práticas

pedagógicas, mas sim como condição de acesso à cultura. Resende diz que esse foi um dos

motivos que fez Cecília se juntar ao Grupo do Manifesto para assinar, no ano de 1932, o

“Manifesto da nova educação ao Governo e ao Povo”, juntamente com Fernando de Azevedo,

Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Hermes Lima, entre outros. Sua ação na imprensa possuía

um caráter de denúncia, ela lutava por melhores condições de vida da população. De acordo

com Valéria Lamego, Cecília publicou cerca de 750 artigos jornalísticos no Diário de

Notícias, entre 1930 e 1933. A investigação de Lamego fez com que ela descobrisse outra

vertente de Cecília Meireles, uma corajosa escritora que queria levar à população uma visão

mais crítica a respeito da educação, que ela pretendia mais livre e moderna, sobre a política

nacional do país e sobre o movimento revolucionário de 1930. De acordo com ela, Cecília

sabia aproveitar bem as ocasiões para inserir nos assuntos uma crítica social ou cultural. Para

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escrever A Farpa na Lira, Lamego investigou na Biblioteca Nacional os artigos de Cecília

publicados no Diário de Notícias e as correspondências da poeta com Fernando de Azevedo.

Nas palavras de Valéria Lamego, “Diante do espírito da jovem jornalista e poeta podemos

afirmar que ela foi modernista carioca, cosmopolita, empenhada ao máximo em divulgar suas

ideias modernizadoras tanto no campo da educação como no da política” (LAMEGO, 1996,

p.21).

1.2 – FORMULAÇÕES DA CRÍTICA

Darcy Damasceno, estudioso de Cecília Meireles, em sua obra intitulada O mundo

contemplado (1967), toca em aspectos peculiares da lírica ceciliana, sendo a brevidade da

vida, a transitoriedade, a forma poética, a musicalidade de seus versos, a melancolia e a

nostalgia, uma constante na totalização da sua obra. A vida, segundo ele, é vista de forma

fugaz, passageira, e a certeza de que o homem é “pó da terra e poeira do mundo” traz

vestígios de consolação para a alma angustiada da poeta. A imaginação presente em sua lírica

amarra a certeza da brevidade da vida e a tentativa de apreensão do fugidio. Em Cecília

Meireles a existência carece de sentido e o tempo é escorregadio. Os estímulos exteriores do

mundo é o que move, segundo Damasceno, a questão da transitoriedade em sua poética. A

noção de que tudo é transitório, nada é fixo, aparece em sua escrita de maneira forte, está

sempre presente. As imagens poéticas dão lugar a uma linguagem mais abstrata na construção

dos poemas e os seus temas também possuem um valor mais eterno, menos fugaz. Damasceno

apresenta Vaga Música como uma obra que rompe com a forma poética que Cecília cultivava

antes de 1930, pois ultrapassa os modelos seguidos até então, como os versos alexandrinos e

as construções em decassílabos; Vaga Música ultrapassa esse campo limitado da lírica,

apresentando-se de forma fluida. Para o estudioso, Cecília Meireles quebra com o modelo

português de fazer poesia e se aventura em um campo novo, onde as possibilidades de

musicalidade e de expressão são mais abrangentes.

Ainda segundo Damasceno, a melancolia, nos versos cecilianos, tem sua origem na

impossibilidade de reter o fruto dos instantes, na antecipação do passado e projeção do

presente no futuro. Para o crítico, é na melancolia que se encontra a essência da canção

ceciliana. A nostalgia vem da necessidade de recorrer ao mundo interior, quando se encontra

submersa na exterioridade da realidade humana. De acordo com ele, é como a tristeza de um

exilado que não se conforma com a paisagem espiritual e física do seu exílio e busca em outro

lugar o seu descanso. Além disso, para Damasceno, Cecília Meireles é uma poeta visual, o

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que faz com que ela perceba todas as formas de manifestação da vida, desde uma flor até uma

pedra.4 A poética em Cecília é construída em torno de sua inquieta ânsia e de seu triste

desalento diante da vida. Aquilo que ela tenta tocar desaparece diante de suas mãos no

momento exato do toque, e aquilo que era sonho se desfaz diante dos seus olhos. Sua poesia

oscila entre a exaltação das coisas e a descrença nas mesmas. Ela consegue enxergar a

suprema beleza de tudo e fazer do que parece simples algo sublime; e ao mesmo tempo, como

é educada no desprendimento, no amor e na renúncia, nada retém próximo a si, mas mantém

uma harmonia com o mundo embasada no exercício da solidão e do espírito desprendido. A

poeta reinventa a vida não como negação da realidade, mas sim para torná-la um lugar mais

confortável.

Para Ana Maria Lisboa de Mello (2006, p.33), algumas características são marcantes

na poesia de Cecília Meireles. De acordo com Mello, a linha filosófica do pensamento

oriental conduz Cecília ao reconhecimento de um espírito universal, - o UM -, que seria a

origem de todas as coisas e seres, fazendo com que a divisão dos entes em um plano cósmico

seja tido como uma ilusão. Dessa forma, a diferenciação entre as coisas e os seres também

seria ilusória, já que tudo pertence à Realidade divina. Assim, o homem oriental se sente

integrante de toda matéria, pois sua alma é apenas a partícula de um todo. Além disso, de

acordo com Mello, encontra-se na poesia ceciliana vestígios de uma visão de mundo marcada

por princípios éticos próprios dos estoicos, no que se refere à forma de viver a existência

terrena, tendo por princípios básicos a virtude e a autossuficiência, o desapego dos bens

externos; princípios esses que coincidem com os do pensamento do Extremo Oriente. Mello

fala ainda da indagação do homem sobre o sentido da existência, a atitude contemplativa

diante desse sentido da vida; a comunhão com a natureza em suas manifestações,

desembocando todas essas questões no reconhecimento de um princípio fundamental, a

Realidade Suprema ou o Ser Absoluto, que é impessoal, eterno e ao mesmo tempo o “Um” e

o “Todo”.

Mello estuda as simbologias marcadas em sua na poética ceciliana. Para ela, a

simbologia aquática possui a dimensão do mutável, caracterizando o devir caos-cosmo e vice-

versa, as metamorfoses, os renascimentos. O mar seria a origem e se oporia à areia que

significaria o mundo, no plano físico, visto como uma ilusão, o que podemos fazer alusão

também ao eterno e ao efêmero, marcante na obra ceciliana. Em suma, Mello fala a respeito

4 No segundo capítulo aprofundaremos a questão dos sentidos, com base no conceito de memória involuntária de

Proust.

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de quatro eixos temáticos: os planos de vida superior e o inferior; as categorias de tempo

descritos como o tempo eterno da Realidade ou Ser Absoluto e o tempo fugidio e

irrecuperável da realidade terrena; o plano terreno contrastando com o plano transcendente e o

quarto eixo que trata da aceitação da existência terrena que deve ser acolhido com serenidade.

Nas dicotomias presentes nos poemas pode-se dizer que Cecília encontra seu refúgio

da dor de tantas ausências em um espaço etéreo, como se em uma fuga desse mundo pudesse

encontrar abrigo no Ser Superior, que se encontra fora deste mundo. Em uma explicação de

Ana Maria Lisboa de Mello podemos entender melhor:

Essa ausência do mundo constitui-se como um mecanismo de defesa contra o

sofrimento, mas a atitude contemplativa é preponderante, e observar o mundo e as

atitudes humanas é sofrer. Alhear-se completamente do espetáculo terrestre nem

sempre é possível. É significativo o número de poemas que denunciam o mundo

terreno como locus do sofrimento, ponto de vista que traz consigo um desencanto e

um sentimento de perda, de vazio. Contemplar o mundo, consciente dos equívocos e

malefícios humanos, e ver as criaturas enganarem-se a si próprias com a ilusão de

felicidade, é a condição do „transeunte‟ que olha melancolicamente o cenário

durante o seu percurso e busca um alívio no âmbito do sagrado, através da

construção da imagem divina (MELLO; UTÉZA, 2006, p.96).

Já Leila V. B. Gouvêa, em seu livro Pensamento e “lirismo puro” na poesia de

Cecília Meireles (2008), trata de temas como a temporalidade, a busca pela identidade e o

sentimento de exílio, de distância. Um aspecto que lhe é peculiar é a forma com que expõe em

sua pesquisa a busca que a poeta faz pelo “Ser divino”, por “Deus”. Para ela, Cecília tem

interesse nesse assunto e transforma isso em poesia, porém o eu-lírico reconhece que o

encontro com o Ser divino é algo impossível. O “Deus” que Cecília aborda não é o mesmo

dos cristãos e, segundo Gouvêa, ele se aproxima mais do deus platônico, o Deus ceciliano

seria um Deus sem rosto, um Deus abstrato. Assim como Platão teria abandonado o mundo

dos sentidos pelo fato de este colocar limites estreitos ao entendimento, Cecília Meireles

busca em seus poemas este mesmo fim. Gouvêa diz que é como se através de símbolos e

abstrações a poeta tentasse suprir a ausência de ideal no mundo das realidades concretas em

que viveu. Há tentativa de diálogo do eu lírico com Deus, porém Deus permanece calado.

As observações de Leila V. B. Gouvêa ligando a expressão da transitoriedade na

poesia de Cecília e as perdas efetivas que ela experimentou ao longo de sua vida podem ser

detectadas nos poemas de Viagem e Vaga Música, como a própria autora irá explorar.

Podemos relacionar a poética da ausência de Cecília Meireles com vários autores que

se expressaram através desta temática. Dentre eles, o que mais se destaca, possivelmente, é o

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poeta Manuel Bandeira. O estudo realizado por Yudith Rosenbaum, intitulado Manuel

Bandeira: uma poesia da ausência (1993), nos permite fazer algumas aproximações entre ele

e Cecília, relativamente à temática da ausência. Além desse aspecto, podemos elencar outros

como a morte, o tempo passado e a tríade poesia, melancolia e luto. Rosenbaum também

recorre à memória involuntária de Proust para demonstrar como Bandeira faz a viagem de

volta ao passado, como ele se desloca para imagens, objetos ou seres de seu fugidio próprio

mundo interior.

A ensaísta ressalta o sentimento de orfandade presente nos poemas de Bandeira, mas

esclarece que seus pais estiveram sempre presentes, principalmente na adolescência do poeta,

e ela supõe que a “ideia de orfandade seja mais um constructo poético ou, quem sabe, uma

lacuna que denuncia, pela própria ausência, a forte presença dos pais” (ROSENBAUM, 1993,

p.69). Já em Cecília Meireles, temos perdas concretas, e praticamente toda sua vida foi

marcada por perdas. O sentimento de morte em Bandeira é apontado por Rosenbaum como o

reflexo do desengano que sofrera aos dezoito anos, quando os médicos lhe revelaram sobre

sua tuberculose e o quadro grave que vivia. Dessa forma, Bandeira viveu até os oitenta e dois

anos com o sentimento de espera pelo momento de sua partida e, essa espera é de alguma

forma refletida em seus poemas. Rosenbaum diz que recorre a esse fato somente para ampliar

as possibilidades de compreensão da poesia de Manuel Bandeira.

Em Bandeira temos a ausência como raiz de um movimento que deseja a completude,

ou seja, temos a negação da ausência. Bandeira é impulsionado pela necessidade de recompor

uma individualidade destruída pelas perdas. O eu bandeiriano se reconstitui através do fazer

poético inundado pela melancolia, sendo esta a mola que impulsiona o resgate da vida pelo

viés da morte. A morte do outro é sentida pelo eu como a própria morte, o eu se apresenta

como extensão do outro. Rosenbaum exemplifica essa junção do eu ao outro com o poema “A

vida assim nos afeiçoa”, de Manuel Bandeira:

E a vida vai tecendo laços

Quase impossíveis de romper:

Tudo o que amamos são pedaços

Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,

Prende. Antes fosse toda fel!

Que ao se mostrar às vezes boa,

Ela requinta em ser cruel...

(ROSENBAUM, 1993, p.104)

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Para Rosenbaum a melancolia traz ao presente da enunciação o tema da morte, para

que a poesia dê vida ao objeto ausente pela sua nomeação. Ela trata a melancolia em Bandeira

embasada no estudo realizado por Freud em Luto e Melancolia, mas não aproxima Bandeira

no que tange ao aspecto da melancolia como autodepreciação, no qual o ego é empobrecido.

A temática deste poema de Manuel Bandeira possui certa correspondência com o

“Epigrama nº2”, do livro Viagem, de Cecília Meireles: “Felicidade, és coisa estranha e

dolorosa. / Fizeste para sempre a vida ficar triste: / porque um dia se vê que as horas todas

passam, / e um tempo, despovoado e profundo persiste” (MEIRELES, 2001, p.234). Em

ambos os poemas percebemos o contraste entre o prazer do momento vivido e a amargura da

realidade no tempo da enunciação. Em Bandeira o amor, a amizade, que é construída e que se

fortalece com os laços quase inseparáveis do eu, de repente, por alguma razão é interrompida;

e da mesma forma, em Cecília, a felicidade se apresenta durante um tempo para depois se

ausentar e fazer relembrar o quanto a vida pode ser triste. Esse contraste é comum em ambos

os poetas, e demonstra que o reflexo da vida retratado em seus poemas oscila entre a alegria e

a tristeza.

A distância, assim como em Cecília Meireles, também caracteriza a obra de Manuel

Bandeira. De acordo com Rosenbaum, a distância está atrelada à infância e à morte,

apontando para a falta, para aquilo que foi vivido, o passado e até mesmo aquilo que foi

somente desejado e não vivido. A distância seria, para ela, a materialidade da ausência, já que

na distância perpetua, entre o eu e o outro, o espaço da incompletude e do vazio. Existe a

polaridade entre o desejado, o sonhado e o realmente vivido, experimentado.

Rosenbaum faz um aprazível mapeamento da obra bandeiriana, tendo o núcleo

enraizado na experiência da ausência como poderosa energia criativa. Para ela, o poeta recria

seu próprio mundo perdido através de recordações, encontrando-se com suas perdas e

insatisfações.

1.3 – CECÍLIA MEIRELES NO CONTEXTO ACADÊMICO

Devido a vasta atuação de Cecília Meireles em diversos setores, como o jornalístico, o

educacional, o campo da literatura infantil e sua atuação nas artes e no folclore, encontramos

na crítica universitária atual várias dissertações e teses relevantes a respeito desta autora tão

importante para a cultura brasileira. Nos deteremos a mostrar um pouco do trabalho que esta

crítica acadêmica tem feito, mesmo sabendo que os aspectos a serem explorados da autora são

considerados inesgotáveis. O levantamento é apresentado em ordem cronológica a partir do

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ano de 2002 até 2013, porém finalizando com um trabalho de 2006, por considerá-lo relevante

para a presente pesquisa.

Em 2002, José Carlos Zamblolli defende sua dissertação de mestrado intitulada A

poeta ao espelho (Cecília Meireles e o Mito de Narciso) ao Departamento de Letras Clássicas

e Vernáculas Universidade de São Paulo. Zambolli analisa a presença do mito de Narciso na

poesia de Cecília Meireles partindo da reflexão sobre a vida e o sentido da existência, em que

o “eu” ceciliano, diante de um espelho, se funde a ele. Zambolli analisa esta perspectiva a

partir de uma postura reflexiva diante da crise de identidade sofrida pelas sociedades

modernas, que culmina no imediatismo e no superficialismo.

Jussara Neves Resende, no ano de 2006, apresentou ao Programa de Pós-Graduação

em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo,

a tese intitulada A simbolização nas imagens poéticas de Cecília Meireles e Sophia de Mello

Breyner Andresen: Tempo e espaço. Com tal trabalho, Resende pretendeu através da

comparação das temáticas tempo e espaço encontradas nas obras poéticas de Cecília Meireles

e Sophia de Mello Breyner Andresen, mostrar de que modo a poesia se apresenta como forma

de equilíbrio em uma sociedade marcada pela transitoriedade das coisas.

Ellizete Dall‟Comune Hunhoff apresentou a tese O tempo: fator de identidade nas

obras de Florbela Espanca e Cecília Meireles ao Programa de Pós-graduação em Estudos

Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo, no ano de

2008. Hunhoff fez uma comparação entre as temáticas comuns das escritoras Florbela

Espanca e Cecília Meireles. Tal comparação baseou-se no estudo das temáticas tempo,

efemeridade e transitoriedade, presentes em ambas as autoras. Ela iniciou sua tese dedicando

o primeiro capítulo ao estudo do tempo e suas formas. Em seguida ela contextualizou Florbela

Espanca na História e em sua crítica literária e da mesma forma contextualizou também

Cecília Meireles. No capítulo em que Hunhoff se dedicou especificamente a Cecília Meireles,

ela fez algumas consistentes análises de poemas da autora. Hunhoff finalizou sua tese dizendo

que o esgotamento de assuntos possíveis de serem tratados sobre as autoras é praticamente

impossível, visto que ambas possuem uma riqueza enorme de materiais disponíveis e várias

temática a serem estudadas.

Em 2012, Daniela Utecher Alves apresentou ao Programa de Pós-graduação em

Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, a dissertação intitulada A

crônica de Cecília Meireles: uma viagem pela ponte de vidro do arco-íris. Sua dissertação

visou um mapeamento da totalidade das crônicas de Cecília Meireles no intuito de

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compreender a continuidade das linhas traçadas por sua escrita ao longo de seu trabalho

jornalístico. Alves resgatou a prosa ceciliana para traçar o desdobramento de suas

colaborações para a imprensa. Para isso, dividiu sua dissertação sob dois vieses, o da vida de

Cecília pois, para Alves, grande parte das crônicas possuem cunho autobiográfico, e o viés

dos desdobramentos da própria cultura de Cecília, pois parte da sua escrita possuía um caráter

de reflexão social, que consequentemente reverberava em suas crônicas.

Ana Paula Leite Vieira apresentou ao programa de Pós-graduação em História da

Universidade Federal Fluminense, no ano de 2013, a dissertação intitulada Cecília Meireles e

a educação da infância pelo folclore (1930-1964). Ela estudou Cecília Meireles em sua

atuação social, como escritora, crítica, jornalista, e educadora. Sua proposta foi abordar o

folclore como base da educação que Cecília acreditava.

Um trabalho singular realizado por Kellen Benfenatti Paiva merece uma atenção mais

cuidadosa, pois seu trabalho é amplamente enriquecido com cartas de Cecília Meireles

enviadas a Henriqueta Lisboa. Por isso, acredito ser pertinente inserir um pouco mais do

contexto do trabalho de Paiva nesta parte da crítica acadêmica. Dessa forma, finalizo este

capítulo apresentando este trabalho que presta uma grande importância ao aporte crítico

ceciliano.

A dissertação Histórias de vida e amizade: as cartas de Mário, Drummond e Cecília

para Henriqueta Lisboa, apresentada à Universidade Federal de Minas Gerais no ano de

2006, realizado por Kellen Benfenatti Paiva, trata das cartas trocadas entre Mario de Andrade,

Carlos Drummond e Cecília Meireles com a escritora Henriqueta Lisboa. Em seu estudo,

Paiva foca no vasto arquivo pessoal de Henriqueta, no estatuto da carta no arquivo e na

relação entre público e privado. Ela norteia seu trabalho em três eixos, a amizade entre os

escritores, com ênfase em Drummond, a poética de recepção da obra de Henriqueta Lisboa e,

o que mais nos interessa, a questão da mulher, presente nas cartas trocadas com Cecília

Meireles. De acordo com Paiva, as cartas enviadas por Cecília Meireles a Henriqueta Lisboa

se encontram disponíveis na Sala Henriqueta Lisboa, parte integrante do Acervo de Escritores

Mineiros, localizado na Biblioteca Central da UFMG, porém as cartas enviadas a Cecília

Meireles por Henriqueta não puderam ser analisadas, pois a família de Cecília não as

disponibiliza, por isso, Paiva não dá certeza de que essas cartas estão preservadas. As cartas

de Cecília dirigidas à Henriqueta, segundo Paiva, são inéditas e retratam aspectos biográficos

e inquietações literárias.

Paiva destaca a fraternidade espiritual que existia entre Cecília e Henriqueta, mostrada

em uma carta enviada por Cecília no dia 16 de janeiro de 1945:

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Sabe o que eu acho cada vez mais admirável? A amizade entre gente de letras,

principalmente quando essa gente é do nosso sexo. O mundo vai ficando tão

horroroso que a amizade vai perdendo o sentido: há aproximações por interesses

grosseiros. Pensar que ainda podemos viver a doçura de uma bem-querença

puramente espiritual me enche de divina alegria. Mas com um travo de pena pelos

que não são capazes disso e desprezam o que desconhecem (PAIVA, 2006, p.55).

De acordo com a interpretação de Paiva, a Carta de Cecília dirigida à Henriqueta

demonstra o grande apreço que ela sentia por Henriqueta, apreço esse que não era comum nas

amizades que nutriam interesses grosseiros, somente ligados por interesses pessoais. A

amizade que as unia só era possível a partir de uma afinidade espiritual, que constitui a

verdadeira amizade, não uma amizade falsa, por interesses. Paiva enxerga na amizade entre

ambas um diálogo entre iguais, um diálogo entre mulheres que precisaram lutar por seus

ideais em um cenário intelectual predominantemente masculino. Elas pareciam nutrir uma

cumplicidade, de serem mulheres e escritoras, unindo suas forças para caminharem em meio a

tantas dificuldades. Esta amizade e cumplicidade eram refletidas em desabafos pessoais feitas

por Cecília e em dúvidas simples que a poeta gostaria de sanar com Henriqueta a respeito de

coisas que não eram convenientes de serem reportadas aos homens, como o clima da capital

mineira e a roupa mais propícia a ser usada em ocasiões específicas. Paiva diz que as duas não

tiveram oportunidade de nutrirem um convívio pessoal, mas que a amizade entre elas não era

menos intensa por isso.

Segundo Paiva, as cartas enviadas por Cecília Meireles somam um total de 42 além de

7 cartões enviados a Henriqueta, no período de 1931 a 1963, sendo mais intensa a troca de

cartas no período entre 1942 a 1949. Ambas poetas nasceram no mesmo ano, e de acordo com

Paiva, não se filiaram a nenhuma escola literária e possuíam temas, como a morte, a

fugacidade da vida, entre outros e áreas de interesse comuns, como o magistério, a educação.

Ambas foram bem aclamadas pela crítica da época. Mesmo em meio ao reconhecimento do

valor do trabalho de Cecília e Henriqueta, ambas foram criticadas e acusadas de não tomarem

posição em relação ao engajamento social e ao sentimento nacionalista.

Paiva apresenta em seu trabalho uma discussão travada na época sobre as poetas, sobre

a posição das escritoras em meio a um contexto amplamente dominado pelos homens. Uma

vertente da crítica da época diz que a posição de escritora assumida por mulheres de alguma

forma masculinizava as mulheres. Em uma carta enviada por Cecília a Henriqueta, ela diz que

se sente feliz em ver a superação da escrita feminina em um artigo publicado por Henriqueta

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em que esta demonstra grande habilidade, maior mesmo, segundo Cecília, do que a habilidade

de muitos escritores contemporâneos a elas.

Destaco aqui que me prendi somente à parte em que a autora analisa a correspondência

enviada por Cecília Meireles a Henriqueta Lisboa. Paiva retoma as dificuldades descritas por

Cecília nas cartas, dificuldades em ser ao mesmo tempo escritora e dona de casa. Cecília usa

tons irônicos para descrever suas dificuldades e é perceptível o cuidado estético e as intenções

literárias. Fatigada por tanta pressão, ela desabafa em uma carta enviada a Henriqueta no dia

27 de abril de 1945: “Estou precisando muito libertar-me de tantos compromissos, de tantas

ocupações. Preciso aprender a dizer não”. Ainda, diante de tanta fadiga causada pelo excesso

de trabalho e pelos desencantos com seus pares e com a vida, em outra carta enviada no dia 12

de dezembro de 1944, Cecília diz: “Os homens são difíceis, a vida é difícil, tudo é difícil. Eu,

que sei que sou difícil até me acho fácil, diante de tanta complicação”. Cecília expressa nas

cartas seu desejo de descansar, de se aliviar do peso que é a vida, de se recolher à sua solidão.

Paiva relata também a amizade existente entre Cecília Meireles e a escritora chilena

Gabriela Mistral, que foi assunto de várias cartas enviadas a Henriqueta, em que a própria

Cecília revela muito de si mesma. Paiva observa que ao falar do outro, a própria poeta

encontra um bom pretexto para falar de si, do que sente, do que a incomodava. Em uma das

cartas enviadas a Henriqueta, Cecília fala sobre o abalo que a morte de Mario de Andrade

causou nela, ela conta que nem entende direito o porquê de tanto abalo, pois não eram assim

tão íntimos. Conta que um dia antes de sua morte tivera um sonho em que fechava a porta de

um cemitério, e no sétimo dia de sua morte, sonhara que se despedia de Mario vendo-o

caminhar pela areia da praia. Deste sonho se originaria o poema que dedicou a Mario de

Andrade. Para Paiva, estes são dados valiosos sobre o processo de criação poética de Cecília,

ela enviou o poema dedicado a Mário de Andrade para Henriqueta e ao comparar com a

publicada, Paiva viu que algumas alterações foram feitas, Cecília omitiu a última estrofe e

acrescentou mais duas. Sobre as mortes que rondaram a vida de Cecília Meireles, Paiva diz:

Em vários momentos, Cecília deixa transparecer certa amargura diante da vida e

também sua estreita experiência com a morte, pois, segundo seus depoimentos,

desde cedo teve de aprender a conviver com a perda, do pai e dos irmãos, antes

mesmo de seu nascimento; da mãe, aos três anos de idade; da avó, por quem fora

criada, e do primeiro marido, Fernando Correa Dias, que se matou em 1935

(PAIVA, 2006, 164).

Em carta enviada por Cecília a Henriqueta em 29 de outubro de 1947, prestando

condolências à amiga pela morte de seu pai, ela diz em um trecho “Embora a poesia prepare

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tanto para a dor, há dores, Henriqueta, que se nos afiguram muito maiores que a poesia. Não

nos resta mesmo senão amar a própria dor trazê-la em nossa companhia”.

Paiva faz observações de como as cartas escritas por Cecília Meireles dedicadas à

amiga Henriqueta Lisboa trazem informações biográficas, deixando em suas entrelinhas

espaço para futuras reflexões e trabalhos como, por exemplo, a influência do espaço físico na

escrita de Cecília ou a representação desse espaço nos versos cecilianos. As cartas enquanto

registro de uma memória cultural são válidas para um possível estudo reconstrutivo da nossa

memória literária.

As observações de Paiva quanto o olhar feminino sobre a época e os acontecimentos

que rodeavam Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, doura os estudos recentes acerca da

poética ceciliana. Além dos olhares femininos das poetas que percorreram o período de 1920

a 1960, aproximadamente, Paiva observa aspectos da construção da lírica ceciliana, os

motivos e as formas que marcaram sua poesia.

A partir deste levantamento da crítica acadêmica pudemos observar que praticamente

todos os autores consideram inesgotáveis as possibilidades de estudo da escritora, poeta,

cronista, jornalista, crítica, ensaísta, tradutora, entre tantas outras designações de Cecília

Meireles. Alguns temas continuam recorrentes nas análises, como a questão do tempo e do

espaço em sua obra, a efemeridade e a transitoriedade.

No próximo capítulo apresentaremos algumas teorias sobre memória, esquecimento e

tempo associados aos poemas de Cecília Meireles. A teoria atrelada aos poemas nos mostrará

como os teóricos podem nos ajudar a compreender a questão da memória presente nos

poemas cecilianos, tendo como base a temática da ausência, como elemento estruturante da

memória. Os estudos dos críticos Alfredo Bosi e João Adolfo Hansen sobre a memória

ajudarão a observarmos como tal tema é abordado por Cecília em seus poemas. Por fim, a

memória poética em Romanceiro da Inconfidência será abordada para observarmos como

traços da ausência aparecem em tal obra.

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CAPÍTULO II – SOBRE A MEMÓRIA

Este capítulo reserva um estudo mais detalhado a respeito dos temas tempo e memória,

visto que eles são importantes para aprofundarmos no conceito de ausência presente nos

poemas de Cecília Meireles. A poeta, ao abordar a ausência, aborda também a questão do

tempo, da impossibilidade de reter os instantes, da efemeridade, da transitoriedade, entre

outros. Isso pode ser melhor compreendido à luz das teorizações sobre a memória, tempo e o

sonho, presente nos estudiosos aqui apresentados, de Santo Agostinho a Derrida.

2.1 – MEMÓRIA, TEMPO E ESQUECIMENTO

O tempo, na visão de Santo Agostinho, é algo escorregadio: onde temos o presente,

logo teremos o passado, e o futuro é algo que não se abarca, pois ainda não existe. Para ele,

“uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela já debandou é passado. Tudo o

que ainda resta é futuro” (AGOSTINHO, 1999, p.324). Os fatos passados são vistos com a

alma, já que não são mais presentes e de alguma forma se escondem em algum lugar da

memória daqueles que os veem. Para Agostinho, se os fatos passados não existissem, eles não

poderiam mais ser vistos. Agostinho indaga onde está o passado e o futuro, ele questiona se

ambos possuem existência somente no presente, pois o passado só pode ser recordado no

presente, e o futuro só pode ser pensado também a partir do presente, pois fazemos planos

para o futuro a partir de um presente. Assim que as ações premeditadas para acontecerem no

futuro começam a acontecer, já é então em um tempo presente que acontecem.

Para Santo Agostinho, só o presente importa e é no espírito que ocorre a medição do

tempo, como pela medição das sílabas breves e longas de um poema pode-se ter uma noção

da duração do tempo. Medindo assim o tempo no espírito, tem-se a percepção de um sentido,

e algo na medição da temporalidade do poema permanece gravado na memória. É no espírito

que ficam registradas as memórias passadas, pois enquanto eram presentes foram medidas,

foram registradas. Ele exemplifica com a recitação de um hino que aprendeu de cor. Os três

tempos passam pela intenção de recitar o hino e essa ação pode ser dividida em memória, por

causa do que já foi recitado e em expectação, por causa do que irá recitar.

De acordo com Santo Agostinho:

É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez

fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente

das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente

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que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente

das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras (AGOSTINHO, 1999,

p.328).

A relação entre o passado e a memória também é especulada por Agostinho, para

quem a memória das coisas ausentes estão escondidas no espaço da recordação, quando os

objetos não estão presentes aos sentidos. O filósofo exemplifica: quando se diz pedra ou sol,

tais objetos nos vêm à lembrança porque já os vimos antes, são imagens que estão

impregnadas em nosso espírito pelo fato de as conhecermos. As imagens são gravadas em

nossa memória e quando solicitadas vêm à tona em nossa mente; desta forma, se não

reconhecemos os objetos é porque eles não foram registrados em nossa memória ou não nos

recordamos.

A privação da memória, para Santo Agostinho, é o próprio esquecimento. Ele deduz

que para se encontrar um objeto perdido, é preciso ter na memória sua imagem, é preciso

saber o que se procura. Se não se sabe o que procurar, dificilmente o reconhecerá se o

encontrar. Por isto a grande frase de Santo Agostinho se perpetua no tempo: “Tarde Vos amei,

ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu, lá

fora, a procurar-Vos!”. Santo Agostinho levou um tempo para conhecer ou reconhecer esta

sabedoria que estava dentro de si, o Deus que ele buscava se escondia dentro dele mesmo. Ele

reconheceu algo que estava em seu interior e era desconhecido para si próprio, então de

alguma forma havia a lembrança deste “objeto” perdido. Talvez possamos dizer que, com o

passar dos anos na vida de Santo Agostinho, a lembrança de Deus foi ficando perdida, quase

que esquecida por ele, até o momento que sente sua alma revisitada por essa lembrança,

fazendo com que reconheça o que já conhecia.

Já o estudioso Paul Ricoeur, em A memória, a história e o esquecimento (2007),

embasado na fórmula de Aristóteles de que “a memória é do passado”, declara que não

precisamos evocar o futuro para dar sentido ao presente, pois este está implicado no paradoxo

do ausente, à imaginação do irreal e à memória do anterior, e o futuro fica como posto entre

parênteses na formulação deste passado. Segundo Ricoeur “a temporalidade constitui a

precondição existenciária da referência da memória e da história do passado” (RICOEUR,

2007, p.360).

Paul Ricoeur introduz a noção de rastro, que seria a reminiscência daquilo que é

passado, que já não é presente, impregnado em nossa alma, sendo o esquecimento o

apagamento desse rastro. Em seu livro A memória, a História, o Esquecimento (2007),

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procura relacionar a ciência dos rastros mnésicos, do qual resulta a primeira forma de

esquecimento profundo pelo apagamento dos rastros, com a problemática da fenomenologia

da representação do passado. A partir do exemplo da impressão do anel marcado na cera5,

contido nos textos de Aristóteles e Platão, Ricoeur propõe três espécies de rastro: o rastro

escrito, o rastro documental e o rastro psíquico, que ele prefere chamar de “impressão” no

sentido de “afecção”. Os rastros são as formas que a memória permite ser atingida e

posteriormente reproduz em nós aquilo que são as marcas do passado. É o reconhecimento

das imagens do passado, aquelas que não foram definitivamente apagadas. O rastro mnésico

possui uma relação com o enigma da representação do passado ausente. Os rastros estão no

presente e não exprimem ausência e nem anterioridade, justificando que para pensar o rastro é

preciso pensá-lo como efeito presente e signo de sua causa ausente. Por isso, no rastro

material não há ausência, nele tudo é positivo e presença.

Já o reconhecimento da imagem pode ocorrer de várias maneiras, segundo Ricoeur:

Uma imagem me acode ao espírito; e digo em meu coração: é ele sim, e ela sim.

Reconheço-o, reconheço-a. Esse reconhecimento pode assumir diferentes formas.

Ele já se produz no decorrer da percepção: um ser esteve presente uma vez;

ausentou-se; voltou. Aparecer, desaparecer, reaparecer. Nesse caso, o

reconhecimento ajusta – ajunta – o reaparecer ao aparecer por meio do desaparecer.

(...) De muitos modos, conhecer é reconhecer. O reconhecimento também pode

apoiar-se num suporte material, numa apresentação figurada, retrato, foto, pois a

representação induz a identificação com a coisa retratada em sua ausência (...)

(RICOEUR, 1994, p. 437-438).

Estas reflexões nos remetem ao que Santo Agostinho já havia tratado sobre o

reconhecimento, que só é possível a partir do momento em que se conhece algo.

Por outro lado, Ricoeur explica que o reconhecimento é dado na “exata superposição

da imagem presente à mente e do rastro psíquico, também chamado de imagem, deixado pela

impressão primeira” (RICOEUR, 1994, p.438). Assim temos a representação de uma coisa

passada.

Para Ricoeur, o enigma da presença e ausência se resolve na efetividade do ato

mnemônico e na certeza que coroa essa efetividade. Se a impressão-afecção permanecer, ela

possibilita o reconhecimento. Por isso podemos pensar que Santo Agostinho reconheceu Deus

5 A ideia da impressão do anel marcado na cera é formulada a partir dos diálogos Teeteto e O Sofista, de

Aristóteles, em que ele associa a problemática da eikõn (teoria de Platão sobre o fenômeno da presença de uma coisa ausente) à impressão (tupos), sob o signo da metáfora do bloco de cera, no qual o erro é comparado a um apagamento das marcas, das semeia. Assim, o esquecimento é equiparado ao apagamento dos rastros, é como uma falta de ajustamento da imagem presente à impressão deixada, da mesma forma que por um anel na cera (RICOEUR, 2007, p.26-27).

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em si mesmo porque já o conhecia. A primeira impressão foi realizada para que o

reconhecimento fosse dado posteriormente. Ricoeur ainda afirma que, para Deleuze, o tempo

possui um paradoxo profundo enraizado na memória, sendo o passado contemporâneo do

presente que ele foi:

Se o passado tivesse de esperar para não mais ser, se ele não fosse passado

imediatamente e agora, „passado em geral‟, nunca poderia se tornar o que ele é,

nunca seria este passado. [...] o passado nunca se constituiria, se não coexistisse com

o presente do qual ele é o passado (RICOEUR, 2007, p.442).

Assim, é o reconhecimento que nos autoriza a acreditar em algo que nossa memória nos

trouxe, porque de fato em algum momento da vida vemos, ouvimos ou sentimos o ocorrido. A

questão que Ricoeur levanta diz respeito ao tempo-lugar onde ficam armazenadas essas

lembranças e cogita: em um passado? Ele diz que a verdade profunda da anamnésis grega

consiste em buscar, e nesta busca esperar reencontrar; e reencontrar é reconhecer o que uma

vez se aprendeu.

A relação entre a inteligência e a memória do objeto perdido é explicada por Proust,

em Contre de Saint-Beuve (1988). O desprendimento da inteligência é o que pode fazer com

que os registros da memória possam se aproximar do que foi vivido no passado. Para Proust,

aquilo que a inteligência nos permite atingir não é propriamente o passado. A alma encarna-se

em algum objeto material e fica dele cativa, até o momento em que encontramos o objeto e

libertamos a alma. O objeto em que a alma se oculta causa em nós uma sensação, e se esse

objeto jamais for reencontrado, a lembrança se torna inacessível. Proust relata em Contre

Sainte-Beuve que a sensação de sentir novamente o sabor que sentiu quando criança ao

experimentar a madeleine com chá fez com que se reacendessem, em todo seu ser, os sentidos

que tivera em seu passado. Outros sentidos são mencionados pelo autor, como a audição; ele

exemplifica com o episódio em que, ao jantar, deixou a colher cair no prato e o barulho que

ouviu remeteu ao som do martelo dos agulheiros que batiam nas rodas do trem nas estações.

O som fez com que ele voltasse àquele passado e pudesse reviver o que antes presenciou.

Para Proust, a tentativa de ressuscitar uma memória não é tão válida quanto o

momento em que, por alguma sensação associada a um dos sentidos básicos do ser humano, o

passado vem à tona. Isso se dá porque a inteligência não pode encontrar os objetos perdidos e,

segundo Proust, se por acaso a inteligência encontra esses objetos, eles estarão destituídos de

poesia. Ele associa uma boa dosagem de esquecimento à memória para que possa haver a

lembrança poética. A experiência amadurece no esquecimento até o exato momento em que

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ressurge através de alguma sensação. A poética de Proust, segundo Weinrich, seria “uma

poética de o lembrar surgida do fundo do esquecer” (WEINRICH, 2001, p.211). Ainda, de

acordo com Weinrich, a memória voluntária, ou seja, a que guardamos na consciência e

trazemos à tona quando queremos, para a poesia, não tem valor. Em suas palavras:

Só quando o esquecimento perdurou tempo suficiente e se tornou bastante profundo,

a memória involuntária pode agir e trazer à luz do fundo desse abismo do

esquecimento, sem controle de parte da razão e da força de vontade, coisas

impressentidas que, purificadas de toda a contingência pela longa duração do

esquecimento, são essencialmente humanas e fundamentalmente poéticas

(WEINRICH, 2001, p.212).

O sonho, de acordo com Walter Benjamin (1994), em seu ensaio “A imagem de

Proust”, possui papel relevante quando se trata da memória, pois, para ele, em Proust as

interpretações sintéticas devem partir necessariamente do sonho. Em Proust, as portas

imperceptíveis conduzem ao sonho e os verdadeiros signos que abrigam o domínio da

semelhança não estão onde são descobertos, mas a semelhança entre dois seres a qual estamos

habituados e que confrontamos em estado de vigília é apenas um reflexo da semelhança mais

profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos não são idênticos, mas

semelhantes. Benjamin exemplifica com o mundo das crianças, que pode estar estruturado

nesse mundo dos sonhos, onde o que importa não é a coisa em si, mas a imagem que essa

coisa evoca no eu.

A explicação apresentada por Henri Bergson, em Matéria e Memória (1999), sobre

duas formas que a memória apresenta é pertinente para pensarmos sobre a questão

memorialística. Ele diferencia as duas lembranças em lembrança da lição e lembrança da

leitura. Primeiro ele esclarece sobre a lembrança da lição, que pela repetição, pelo esforço de

se decorar se torna um hábito. Em seguida, sobre o caminho que a memória percorre em uma

mesma leitura, que sendo feita pela segunda ou terceira vez não ganha as características de

um hábito, visto que sua imagem imprime-se imediatamente na memória, já que as outras

leituras constituem lembranças diferentes por terem acontecido em momentos diferentes. Ele

exemplifica com um acontecimento que não se repete jamais, é único, pois este acontecimento

possui uma data e esta não pode repetir-se. Tudo o que se tentasse fazer para repetir tal

acontecimento só faria alterar sua natureza original. Para Bergson, a lembrança da leitura seria

uma representação, que poderia ser alongada ou abreviada de acordo com a vontade ou a

necessidade, e ao contrário desta, a lembrança da lição aprendida exige um tempo

determinado, portanto, já não se trata de uma representação, mas sim de uma ação. A lição

aprendida não revela suas origens e nem pode ser classificada em um passado, ela se

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incorpora ao presente da mesma forma que o hábito de caminhar ou escrever, de acordo com

Bergson “ela é „agida‟ mais que representada” (BERGSON, 1999, p.88).

Temos então uma memória que imagina e outra que repete, e, de acordo com Bergson,

a memória que repete pode substituir a que imagina e até dar a ilusão dela. Ele exemplifica

com um cão que acolhe seu dono com alegria, este cão o reconhece, e esse reconhecimento

implica necessariamente a evocação de uma imagem passada e a aproximação dessa imagem

à percepção presente. Bergson indaga se há neste reconhecimento uma consciência que o

animal adquire em seu corpo a partir das atitudes especiais que seu dono formou junto dele ao

longo de um tempo e que a simples aproximação do dono provoca mecanicamente no cão.

Para Bergson:

A lembrança espontânea é imediatamente perfeita; o tempo não poderá acrescentar

nada à sua imagem sem desnaturá-la; ela conservará para a memória seu lugar e sua

data. Ao contrário, a lembrança aprendida sairá do tempo à medida que a lição for

melhor sabida; tornar-se á cada vez mais impessoal, cada vez mais estranha à nossa

vida passada. (...) Das duas memórias que acabamos de distinguir, a primeira parece

portanto ser efetivamente a memória por excelência. A segunda, aquela que os

psicólogos estudam em geral, é antes o hábito esclarecido pela memória do que a

memória propriamente (BERGSON, 1999, p.91).

Para Bergson as imagens retidas pela memória são imagens de sonho e costumam

aparecer independentemente da vontade. Dessa forma, para ele, se há necessidade de saber

alguma coisa, se é preciso reter algo na mente, independente da vontade, é preciso que haja a

substituição da imagem espontânea por um mecanismo motor capaz de supri-la. Neste caso,

entra o trabalho da repetição, e assim não será mais preciso que se espere o acaso da repetição

acidental das situações para serem organizadas em hábito.

Mais adiante em seu estudo, Bergson nos apresenta o vínculo existente entre as duas

formas de memória, tal vínculo seria a ligação que ambas têm com o corpo. A memória

imaginativa e a memória repetitiva pairavam sobre o corpo, suspensas no vazio, e de acordo

com ele, se não percebemos nada além do nosso passado imediato e se a nossa consciência do

presente já é memória, os dois conceitos de memória se fundirão. Assim, o corpo será visto

como aquele que seria a parte invariável e renascente da nossa representação, a parte sempre

presente, aquele que a todo momento acaba de passar. Para Bergson, o corpo é a própria

imagem, e por isso não pode armazená-la, já que faz parte dela. Dessa forma, seria quimérica

a tentativa de localizar as percepções passadas no cérebro, já que elas não estão lá. É o próprio

cérebro que está nas imagens. O corpo, então, para Bergson, seria “o lugar de passagem dos

movimentos recebidos e devolvidos, o traço de união entre as coisas que agem sobre mim e as

coisas sobre as quais eu ajo, a sede, enfim, dos fenômenos sensório-motores” (BERGSON,

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1999, p.177). Constituída pelo conjunto dos sistemas sensórios-motores que o hábito

organizou, a memória do corpo é, portanto, uma memória quase instantânea à qual a

verdadeira memória do passado serve de base. Nas palavras de Bergson:

Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso com efeito que ela desça

das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras

palavras, é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos

elementos sensórios-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe

confere vida (BERGSON, 1999, p.179).

Bergson ressalta ainda que o nosso passado é mais facilmente recuperado através dos

sonhos, no qual nos colocamos desinteressadamente diante do nosso passado. As ocasiões

desse tipo proporcionam uma melhor ligação com as memórias, já que há um relaxamento

diante da tentativa de recuperar uma lembrança. Outros momentos semelhantes ao sonho são

casos em que, com indivíduos que se encontravam diante da morte, se passaram diante da

suas mentes vários momentos já esquecidos. Essas lembranças vinham como flashes rápidos

na própria ordem em que se reproduziram.

Ao pensar em lembranças podemos indagar: como reter algo na memória? Alguns

estudiosos, como Santo Agostinho, declaram que o mais espiritual de todos os sentidos é a

visão. Através da visão se pode recordar, conhecer e guardar no coração a imagem das coisas

e das pessoas que não se quer esquecer. Pelo contrário, se não há o desejo de guardar o que se

vê na memória, a visão passa sem apreender as imagens que se formam diante da retina; por

isso é possível que se passe por vários momentos que não são guardados por não possuírem

importância para quem os vive. Tomemos como exemplo uma pessoa apaixonada: ao olhar o

enamorado, ela demora seu olhar em seu rosto, a fim de aprender todos os sinais, todas as

expressões, com a intenção de decorar cada detalhe do ser amado. Decorar, etimologicamente,

vem do latim cor possuindo relação com o coração, que se pensava ser o órgão da memória.

Decorar é aprender, é guardar na alma e no coração para não esquecer mais. É ir além da

razão, da capacidade intelectual de aprender algo. Outro exemplo peculiar é uma mãe que

acaba de segurar nos braços seu filho recém-nascido. Durante muito tempo seu olhar se

demora nos detalhes da criança, seus pezinhos, narizinho, olhinhos, enfim, cada parte do

corpo da criança. Um ser seu, que cresceu dentro dela, ganhou peso, forma, cada órgão

formado no ventre materno. Um ser que por si só já possui importância ímpar na vida da mãe.

Esses são exemplos de como a memória trabalha para guardar, para apreender dentro do eu

pessoas e momentos especiais.

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Mais interessante para a perspectiva da memória é a noção de esquecimento. O estudo

de Derrida Mal de Arquivo (2001), que tem como base Além do princípio do prazer, de Freud,

traz noções singulares sobre a questão do esquecimento. Derrida explica que a noção de

arquivo é construída a partir de um desejo de memória, para se reter o que é importante. O

arquivo entra em ação quando a memória falta. A pulsão de morte, objeto definido por Freud,

de acordo com Derrida, é o impulso que leva à destruição do arquivo, tendo como intuito a

própria destruição; seria uma pulsão de anarquia, de aniquilamento a que o próprio ser se

impõe. Dessa forma, é a pulsão de morte que leva ao esquecimento, à amnésia, à aniquilação

da memória. Nas palavras de Derrida:

se não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a

possibilidade da memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então

lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica da repetição, e até mesmo a

compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte. Portanto,

da destruição (DERRIDA, 2001, p. 22-23).

A lembrança da lição, que exige certo tempo para ser aprendida e, por isso, não é

representação, mas sim ação, como Bergson tratou, é aproximada à noção de arquivo, que de

acordo com Derrida é ao que o desejo de memória leva no intuito de reter o que é importante.

Porém, apesar de existir a noção de arquivo como desejo de memória, existe também um

impulso que leva ao esquecimento, que de acordo com Freud é definido como pulsão de

morte.

Desta forma, temos algumas maneiras de pensarmos sobre o esquecimento. Para Santo

Agostinho, é a privação da memória, por isso é preciso ter em mente a imagem do objeto que

se procura, se não existe essa imagem não há como saber se o que procura será encontrado. Já

para Ricoeur, o esquecimento é o apagamento do rastro, e a forma de esquecimento mais

profunda seria o apagamento do rastro mnésico. Já para Proust, é no esquecimento que fica

guardada a mais transparente e real forma de memória, e é também através do esquecimento

que se chega à verdadeira poesia do passado registrado na memória. Por fim, o esquecimento

para Derrida, está atrelado ao conceito definido por Freud como pulsão de morte, que seria o

desejo de aniquilamento da própria memória. Não é possível dizer que lembramos algo que

ainda emerge, que ainda se faz presente em nossa consciência.

Só há memória porque há o esquecimento, só é possível lembrar o que foi esquecido,

porque senão, a lembrança seria o próprio pensamento, seria o próprio instante em que

acontece. Da mesma forma só há o passado porque há o presente, e é neste presente que se

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pode olhar o passado e rememorar o que nele foi presente um dia. É sob essa perspectiva que

apresentamos, a seguir, como a memória aparece na poesia de Cecília Meireles, à luz de seus

estudiosos e da teoria sobre a memória.

2.2 – A MEMÓRIA EM CECÍLIA MEIRELES

Darcy Damasceno, em O mundo contemplado (1967), fala sobre aspectos da lírica

ceciliana, como a brevidade da vida, a existência, que na visão do estudioso carece de sentido,

sobre a acuidade sensorial e sobre o cromatismo. Podemos dizer que Alfredo Bosi, no artigo

“Em torno da poesia de Cecília Meireles” (2007), complementa o estudo de Darcy

Damasceno porque Bosi vai tratar da memória, do sentimento de distância do eu em relação

ao mundo, sobre a relação entre o eu e o tu ceciliano, além de tratar sobre as viagens que

Cecília fez, e em especial as viagens para a Itália e a Índia, que marcaram profundamente a

vida e a lírica da poeta.

Bosi cita a “acuidade sensorial” presente no estudo de Damasceno, que ocorre quando

a memória se localiza no espaço e no tempo histórico. Para ele, quem percorre a obra inteira

de Cecília se surpreenderá com os aspectos que a matéria da memória ganha quando mais

tangível e visível, próxima às sensações.

É justamente Bosi que vai delinear o tema proposto nesta dissertação; o sentimento de

ausência e distância do eu em relação ao mundo como a constante ímpar em Meireles. Por

“mundo” se entende tudo o que a poeta viveu, todas as suas experiências, seus amores, dores,

imagens contempladas, enfim, todo o passado que, com o decorrer do tempo, só cresce, mas

que subsiste no eu graças ao trabalho da memória. Em suas palavras:

a condição de alheamento e ausência não significa amnésia, vazio interior, mas um

modo próprio de lembrar, um processo que torna quase espectral a matéria mesma

da rememoração: “A vida, a vida, a vida! e sendo apenas cinza / E sendo apenas

longe‟. Daí o termo „espiritualização‟ e os seus cognatos „espiritual‟,

„espiritualizado‟, virem sempre à tona do discurso sobre sua poesia (BOSI, 2007, p.

14).

Segundo Bosi, a memória fica à espera da sua realização pela poesia. O próprio

passado, em Cecília, recebe uma aura de distância,

como se paisagens e rostos vistos tivessem habitado em um tempo remoto, levado

pelo vento dos dias, e só revivessem quanto tocados pelo presente da palavra: Eu

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canto porque o instante existe. Fora do momento do canto e do seu encantamento, a

existência do mundo é como que suspensa (BOSI, 2007. p.15).

Aqui podemos pensar em dois aspectos da ausência em Cecília Meireles: este

alheamento do mundo fora do canto, sua suspensão no ato da composição poética, como nos

diz Bosi no trecho acima; e podemos pensar na ausência enquanto perda do próprio passado,

de pessoas, coisas e lugares. O traço de suspensão do mundo pode estar relacionado à

afinidade que Cecília tinha com a espiritualidade hindu, caracterizada por essa elevação, pelo

desejo de suspensão do próprio tempo. A passagem do tempo gera angústia, inquietação, por

isso, suspendendo-se o tempo, há também a suspensão das dores e desconfortos causados por

ele.

Aquilo que a memória dos versos não ressuscita fica adormecido esperando o

momento de sua realização pela poesia. Por isso, quando a poesia acontece, ela vem marcada

pelas perdas, pela nostalgia, por renúncias e resignação. O passado vem através da memória e

esta se faz na canção do presente, e quanto ao futuro, este parece não ter rosto. O alheamento

em Cecília Meireles se encontra fora ou distante no espaço e no tempo medido pelos

calendários e relógios, se encontrando dentro do eu, graças ao trabalho da memória.

Para Bosi, o eu fica à espera de compreensão, e também se encontra em um tempo

passado, sendo investigado pela memória. Por isso há em alguns poemas a tentativa de tocar o

eu, de compreender o eu. O tu ceciliano recebe vários rostos, ora pode ser a natureza, ora

paisagens e inúmeras faces, até mesmo figura um enigma, mas sempre é amado. O tu também

é sujeito à condição efêmera dos mortais e está sujeito à ação do tempo, o que faz com que em

alguns poemas ele ganhe uma aparência ainda mais enigmática. O poema “Medida da

significação”, de Viagem, mostra o eu em relação à memória.6 Deste poema transcreverei

alguns trechos para elucidar:

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, todas as minhas presenças

e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;

todos os dias sou meu completo desmoronamento:

e assisto à decadência de tudo,

nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,

conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.

6 Os poemas citados serão analisados no capítulo 3.

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Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,

pra veres o que deles resta

depois que chegarem a estes ermos domínios

onde figuras e horas se decompõem

(...)

(MEIRELES, 2001, p.287).

Cecília Meireles se lançou pelo mundo em inúmeras viagens e, segundo Bosi,

transmitiu em seus versos, de maneira sensorial, as imagens que seus olhos acolheram, os

aromas que no olfato se deliciaram, os sentidos em toda sua extensão e singularidade. Dessa

forma, as memórias ganham formas, imagens e sentidos únicos em seus poemas.

Anteriormente, ressalta Bosi, Darcy Damasceno já havia tratado da acuidade sensorial em

Cecília Meireles.

Bosi observa que, da visita que Cecília fez à Itália, nasceram os Poemas Italianos, e

por mais que se esperasse encontrar cores e formas encantadas em tais poemas, o que se

encontra, logo no primeiro verso, é o seu olhar para uma escultura sem nome, de mármore,

que se faz exposto para uma posteridade que somos nós hoje, e que futuramente estará

exposta para pessoas desconhecidas. E enquanto nos poemas hindus temos a contemplação da

não matéria, na Itália temos a contemplação da arte pela arte.

Bosi nota também que o desejo de suspensão da vida nasceu da experiência que

Cecília viveu na Índia. Esse desejo seria uma forma de permanência em que o tempo não

pudesse levá-la, como já havia levado muitas coisas. O olhar de Cecília, segundo Bosi,

conseguiu captar na profundidade da pobreza local uma sublimidade, algo divino. As

mudanças que causam sofrimentos aos mortais levam ao desejo da sublimação, do imutável,

do nirvana, onde não há mudança.

Para Bosi, a memória fica à espera da poesia, que se concretiza quando o passado se

repropõe no agora da enunciação, se fazendo mediante signos de perda, nostalgia, renúncia e

resignação. O estudioso observa que distância e ausência são acentos peculiares à lírica

ceciliana. O tu possui várias faces e é sempre fonte de beleza e encantamento, mesmo se

circundado de desassossego. O tu é enigma “porque a sua perenidade na memória

corresponde à sua transitoriedade no tempo” (BOSI, 2004, p.16). No trecho seguinte, Bosi

declara que “a memória luta contra a usura do tempo em defesa do ser, a construção da

presença é uma alegria difícil porque fundada na dor da ausência” (BOSI, 2004, p.16).

Temas como a efemeridade do tempo e das coisas, o eu e o tu, o alheamento, entre

outros, é abordado pelo estudioso João Adolfo Hansen, em seu ensaio “Solombra ou a sombra

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que cai sobre o eu” (2007). Ele faz essa abordagem sobre o último livro de poesia lírica de

Cecília Meireles de forma poética e meticulosa, se detendo somente em Solombra para

explicar algumas recorrências de sua lírica. Sua abordagem sobre a obra é bastante profunda,

visto que o livro que trata é o mais metafórico, o mais espiritual da poeta. Hansen inicia seu

ensaio explicando a origem do nome Solombra, que veio do português arcaico derivado da

expressão latina sub illa umbra, „sob aquela sombra‟, que origina o nosso termo atual,

sombra. Para Hansen, o núcleo da poética de Solombra é o tempo e as suas formas precárias.

Para ele, a ausência e a distância também são peculiares em sua poesia, assim como Alfredo

Bosi já havia tratado. Solombra significa o anônimo, o coletivo, e o que é muitas vezes

silenciado. De acordo com o estudioso, existe uma polaridade entre sombra e luz em seus

poemas, que figuram o objeto perdido e o ideal pressuposto. Dessa forma, o ideal e o material

se afastam na tentativa de figurar o infigurável da experiência de dor.

Hansen ressalta que os vinte e oito poemas que formam Solombra podem ser lidos

tanto sequencialmente como aleatoriamente, mas que se lidos sequencialmente pode ser

percebida a relação que liga um poema ao outro. Ele trata também sobre a forma e a

musicalidade que aparecem nos poemas; a ausência de títulos, para o estudioso, é um indício

de que cada poema não possui uma individualidade característica, podendo ser lido como um

todo. Hansen trata da enunciação e da memória; para ele, o tempo da enunciação, o aqui-

agora do poema, é o lugar de onde se volta ao “lá”, ao passado já ido, para repetir a

experiência da perda. A memória aparece em uma tensão com a imaginação, pois, para

Hansen, o passado é imaginado e não propriamente lembrado, ou seja, a memória é uma

ficção. O objeto amado é sempre inalcançável, está sempre em um lugar distante, o que faz

com que o eu o procure e ame cada vez mais. Hansen ressalta duas dimensões da perda, a

perda do objeto amado, que está sempre distante, e a perda do próprio eu em relação a si

mesmo.

De acordo com João Adolfo Hansen, além de a memória ser uma ficção, tudo passa

radicalmente, e até o esquecimento se esquece; assim as imagens que figuram a ausência do

objeto perdido dão forma ao que foi, forma que é desfeita por outras, dando movimento à

destruição do tempo e à repetição do eu, contrastando a calma da enunciação que vem de

dentro da mágoa. Para ele, “o lembrável é uma potência da imaginação” (HANSEN, 2007,

p.43). A experiência da dor, assim como a suposição do real ou o próprio imaginado aproxima

e afasta o ideal e o material, fazendo com que haja uma alternância de sombra e luz em seus

poemas. Para Hansen,

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A experiência nuclear da poesia de Cecília Meireles em Solombra é negativa, como

experiência da temporalidade. O sujeito da enunciação sofre de tempo e se ordena

poeticamente como desaparição ou suspensão obsessiva do tempo nas formas

poéticas que o figuram como melancolia de um eu contemplativo, um eu teórico

(HANSEN, 2007, p.39).

É como se o passado estivesse em uma dimensão totalmente inalcançável pelo eu,

estivesse em um “ontem” distante e ausente, e o presente da enunciação fosse como o tempo

da repetição, em que o objeto amado é repetido para que seja aprisionado em algum tempo,

mesmo que não se concretize.

Podemos ver esta tensão existente entre a memória e a imaginação no poema “Há mil

rostos na Terra: e agora não consigo”, que será analisado no capítulo 3:

Há mil rostos na Terra: e agora não consigo

recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te?

Só vejo o que não vejo e que não sei se existe.

Esperamos assim. Por esperança, a espera

vai-se tornando sonho afável; mas descubro

no olhar que te procura uma névoa de orvalho.

Qualquer palavra que te diga é sem sentido.

Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.

Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo.

Lá, constante presença em memória guardada,

percebo a tua essência – e não sei nem teu nome.

E à tentação de tantas máscaras felizes

se opõe meu leal, nítido sangue.

(MEIRELES, 2001, p. 1264)

A memória recebe um tratamento diferenciado em Bosi e em Hansen. Para Bosi, o

passado existe fora ou distante do espaço e do tempo medido por relógios e calendários, mas

subsiste dentro do eu da enunciação graças ao trabalho da memória. Já para Hansen, o mundo

do passado na poesia de Cecília tem o caráter imaginativo, isto é, o eu reconhece que não há

em seu passado o que possa ser efetivamente lembrado, por isso a matéria passada é só

imaginável, ou seja, a memória é uma ficção.

A linha mestra que Alfredo Bosi enfatiza na lírica ceciliana que é, como já dito, o

sentimento de distância em relação ao mundo, está atrelada ao que Adolfo Hansen diz sobre a

“enunciação feita do ponto de vista da distância e da ausência do que se perdeu” (HANSEN,

2007, p.34). Neste aspecto há convergência de análise de ambos os estudiosos. Também as

formulações de Darcy Damasceno sobre a brevidade da vida e a transitoriedade, além do

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fluxo constante do tempo que tudo corrói, engendra o tom melancólico que faz

correspondência com várias formulações de Bosi e Hansen.

É caso de mencionar também o tratamento dado por Bosi aos polos do eu e do outro,

que pode ser visto como motivo da ausência. Este outro pode ser o tu, quer a natureza, quer

as múltiplas paisagens, como é predominante nos primeiros livros. O tu é também o amado

em suas manifestações de beleza e maravilhamento, ainda que se apresente nas paixões como

desassossego. Por seu lado, o eu abrange as “tentativas de auto-retrato, de autobiografia, de

retrato natural”, um eu entendido como o “lugar atual dos afetos à procura de auto

compreensão”. Ainda para Bosi, “a memória reúne e concentra o que o tempo já dispersou ou

dissipou” (BOSI, 2007, p.16). Já na perspectiva de Hansen, limitada a Solombra, a própria

definição do tu muda completamente, pois o tu pertence ao que assombra o eu: a “memória

indefinida e inconsolável”. Trata-se, acrescenta Hansen, de uma memória já tocada pelo

esquecimento. Daí seu caráter indefinido, “por isso o eu vive a perda como „inconsolável‟”

(HANSEN, 2007, p.41).

2.3 – LEITURA DE CECÍLIA MEIRELES À LUZ DA TEORIA

A partir da leitura dos teóricos e dos críticos exposta, podemos fazer um breve

entrelaçamento da poética ceciliana com a teorização sobre o tempo, a memória e o sonho.

Além disso, é importante mencionar a questão do tu, apresentado pelos críticos, visto que o tu

possui uma boa carga de ausência. Cecília Meireles não busca teorizar, mas podemos fazer

uma leitura dos poemas a partir da teoria e da crítica que abordamos.

O tempo, na poética de Cecília Meireles, oscila entre o presente e o passado, trazendo

para o momento da enunciação aquilo que em uma época distante foi importante para o eu-

lírico. As imagens do passado voltam no agora da enunciação refazendo parte do contexto e

muitas são as marcas do que poderia ter sido, do que poderia ser amado. Os poemas são

lugares escondidos em tempos remotos, distantes do real, que levam o leitor para um não

saber que consola e preenche. A memória pode não abarcar de fato episódios ocorridos, como

nos sugere Hansen, mas abarca um mundo interior onde o encontro é possível, mesmo que

não aconteça efetivamente. “Epigrama nº2” de Viagem, nos mostra a forma como o tempo

aparece de forma fragmentada na trajetória de Cecília Meireles a partir do momento em que o

sujeito poético estabelece o vínculo entre a marcação do tempo e a felicidade, ou a ausência

desta: “És precária e veloz, Felicidade. / Custas a vir, e, quando vens não te demoras. / Foste

tu que ensinaste aos homens que havia tempo, / e, para te medir, se inventaram as horas”.

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Talvez possamos pensar que a essência do que encontramos na poesia de Cecília

Meireles esteja imerso no canteiro fértil da sensação, como vimos em relação aos sentidos que

conduzem à memória involuntária em Proust. Canteiro onde talvez houve o plantio da

realidade de sua vida, e colhemos no agora do poema a reminiscência de um fruto não

palpável. Sua poesia seria o fruto daquilo que viveu em seu passado, juntamente com os

resquícios da imaginação. Esta possibilidade de leitura nos é dada por Santo Agostinho, para

quem as memórias ficam guardadas no espírito e há a possibilidade de serem revisitadas

quando solicitadas, mesmo que demore um tempo ou que sejam aumentadas ou diminuídas.

Ao contrário, para Proust, a inteligência não contribui para que o passado seja

revisitado, sendo, para ele, as sensações o maior condutor às lembranças. A leitura de alguns

poemas cecilianos sob a luz da teoria proustiana nos revela versos em que a memória vem à

tona através de sensações apreendidas. No poema “Anunciação”, do livro Viagem; vemos

como a música apreendida pelos sentidos consegue trazer à tona imagens, fragmentadas, de

um tempo remoto “Toca essa música de seda, frouxa e trêmula / que apenas embala a noite e

balança as estrelas noutro mar”. O sentido do olfato aparece no poema “Excursão” como

aquele que revela dentro da noite os acontecimentos passados: “Estou vendo aquele caminho /

cheiroso da madrugada: / pelos muros, escorriam / flores moles da orvalhada; / na cor do céu,

muito fina, / via-se a noite acabada”. O mesmo sentido do olfato pode ser visto no poema

“Recordação”, de Vaga Música: “Agora, o cheiro áspero das flores / leva-me os olhos por

dentro de suas pétalas”.

Encontramos também, em certos poemas cecilianos, o lugar do sonho, dos verdadeiros

signos que abrigam o domínio da semelhança entre dois seres, que Benjamin esclarece ao

exemplificar com a leitura de Proust sobre o mundo onírico das crianças, onde o que importa

não é a coisa em si, mas a imagem que essa coisa evoca no eu. Um poema de Cecília que

reflete o lugar do sonho, do indefinido, é “Irrealidade”, de Mar Absoluto: “Como num sonho /

aqui me vedes: / água escorrendo por estas redes / de noite e dia. / A minha fala / parece

mesmo / vir do meu lábio / e anda na sala / suspensa em asas / de alegoria. // E estou de longe,

/ compadecida. / Minha vigília / é anfiteatro / que toda a vida / cerca, de frente. / Não há

passado / nem há futuro. / Tudo que abarco / se faz presente. // Se me perguntam / pessoas,

datas, / pequenas coisas / gratas e ingratas, / cifras e marcos / de quando e de onde / - a minha

fala / tão bem responde / que todos crêem / que estou na sala. // (...)”. (MEIRELES, 2001,

p.468).

Vemos nesse poema que o eu-lírico, ao mesmo tempo em que parece se encontrar no

lugar que evoca, está distante, sua presença está e ao mesmo tempo não está. Se questionada

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sobre pessoas, datas e pequenas coisas é capaz de responder e fazer com que pensem que se

encontra no mesmo lugar que eles. Encontramos aqui a questão do alheamento do eu-lírico

em relação ao mundo, que é apresentado por Alfredo Bosi. O corpo na sala não possui a

pretensão de reter a memória, o passado e o futuro não existem e o que ele pode oferecer é o

presente.

Observamos como o sonho aparece na poética ceciliana nos versos: “Qualquer palavra

que te diga é sem sentido. / Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço. / Quem me

vê não me vê, que estou fora do mundo”. E ainda em Solombra: “Falar contigo. Andar

lentamente falando / com as palavras do sono (as da infância, as da morte). / Dizer com

claridade o que existe em segredo”. Com estes últimos versos existe a possibilidade de

reforçar o paralelo que há entre os poemas cecilianos e a leitura que Benjamin faz de Proust,

em que ele menciona a ligação entre o mundo dos sonhos e o mundo das crianças. Este

mesmo paralelo pode ser feito com a teoria de Bergson, em que ele também acredita haver a

ligação entre a memória do passado e o sonho, já que no sonho não há intenção de visitar o

passado. De acordo com ele, outros momentos semelhantes ao sonho acontecem em casos em

que, com indivíduos que se encontravam diante da morte, se passaram diante de suas mentes

vários momentos já esquecidos; e no penúltimo verso transcrito temos justamente essa

ligação: “com as palavras do sono (as da infância, as da morte)”.

Em Cecília Meireles encontramos a alusão ao passado de forma involuntária e

fragmentada; pisamos em terreno dúbio quando pensamos em afirmar que o que é lembrado é

o que foi realmente vivido. E, como vimos, a memória voluntária anunciada por Proust não é

um terreno fértil para o cultivo da poesia. Ele já nos alertava para a importância do

esquecimento dentro da construção poética. Temos, na poética ceciliana, imagens que nos

remetem a lugares que podem ter sido visitados ou imaginados, mas lugares que são

importantes para o eu. No poema “Perspectiva”, de Viagem, o momento da rememoração se

fortifica na distância antiga do tempo que se esvai: “Tua passagem se fez por distâncias

antigas. / O silêncio dos desertos pesava-lhe nas asas / e, juntamente com ele, o volume das

montanhas e do mar”.

Observando como o tu ceciliano aparece nos poemas sob a forma de algo proveniente

da natureza, ou como o ser amado, ou como um lugar que ficou no passado, podemos

perceber que frequentemente há no tu a matéria do ausente, daquele/daquilo que foi amado e

que não corresponde mais ao apelo do eu. O tempo que separa o eu e o tu na poética ceciliana

é reconstruído a partir de fragmentos de memórias e imagens, a partir de proposições de

lembranças e reconstruções de espaços antes vazios. Há busca por uma recordação que foi

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deixada no espírito, como nos orienta Santo Agostinho; o eu se dirige a um tu conhecido,

mesmo que este não tenha nome e que talvez não seja real. No poema “Valsa”, de Viagem,

temos trechos que mostram essa reconstrução da memória: “O vento trouxe de longe tantos

lugares em que estivemos, / que tornei a viver contigo enquanto o vento passava”. O passado

foi marcado em seu espírito com tanta força que a recordação fez com que o eu-lírico

revivesse o que aconteceu.

A matéria da memória em Cecília Meireles, de acordo com Hansen, é fruto da

imaginação, e, dessa forma, temos um passado fictício que se propõe no presente, mas que

não deixa de ser amado pelo eu por ser fictício. Na poética ceciliana, as alegrias ou tristezas,

aliadas à certeza de ter encontrado o objeto perdido, passam pela confiança primeira de ter

encontrado o mesmo objeto em seu espírito, mesmo que este objeto não tenha forma, nome,

rosto. A essência espiritual do objeto impregnada no espírito do eu é o que faz com que haja o

“falso” reconhecimento. Assim, podemos fazer um paralelo com o que Paul Ricoeur explica

sobre o reconhecimento, que é dado na “exata superposição da imagem presente à mente e do

rastro psíquico, também chamado de imagem, deixado pela impressão primeira” (RICOEUR,

1994, p.438).

Os falsos reconhecimentos, como nos apresenta Ricoeur em sua teoria, são possíveis, e

é neste sentido que podemos pensar que as lembranças do eu-lírico em Cecília Meireles

podem não ser lembranças confiáveis, como nos sugere Hansen. Um poema que melhor traz

essa ideia de memória imaginativa é encontrado em Solombra: “Há mil rostos na Terra: e

agora não consigo / recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te? / Só vejo o que não vejo e

que não sei se existe”. O eu lírico não afirma que o tu que procura é real, e sim, questiona se

ele é inventado. De acordo com Hansen seus poemas são como feridas abertas que se repetem

e, pela repetição, não se deixam curar, cicatrizar, e por isso a dor parece não ter fim. Solombra

é perpassado por uma poética dissolvida em perdas, ruínas e transitoriedades, figurando a dor

que transcende o entendimento racional. A busca pelo tu e os desencontros do próprio eu

tornam a poesia de Cecília Meireles uma eterna procura por algo que não é evidente, que não

se sabe se será encontrado, mas esta busca é o que torna sua escrita diferenciada. Assim, seus

poemas revelam uma experiência que pode ou não ter sido vivida, o olhar sobre o tu pode ser

entendido como um olhar que busca algo idealizado, perdido ou imaginado, ou algo

experimentado no passado. É um tu que se faz presente mesmo sendo ausente.

No terceiro capítulo, observando os conceitos de hermenêutica e poética, de Jonathan

Culler, faremos a leitura de alguns poemas dos livros Viagem, Vaga Música e Mar Absoluto,

em relação ao que consideramos mais metafórico, Solombra. Abordaremos temáticas como o

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tempo, a memória, a transitoriedade além de mostrar as diferenças com relação à temática da

ausência presente nas obras aqui estudadas. Os autores e obras que tomaremos como apoio

são: Antonio Candido, com suas obras O estudo analítico do poema e Na sala de aula;

Alfredo Bosi, com Ser e Tempo da poesia; Jonathan Culler, com Teoria Literária: uma

introdução. Ainda contaremos com as colaborações de Northrop Frye, no capítulo “O ritmo

da Associação: a Lírica”, do livro Anatomia Crítica e Octávio Paz faz em O arco e a lira.

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CAPÍTULO III – VIAGEM, VAGA MÚSICA, MAR ABSOLUTO, SOLOMBRA

3.1 – POÉTICA E HERMENÊUTICA

No presente capítulo, partindo dos princípios de poética e hermenêutica, de Jonathan

Culler (1999), apresentaremos relações entre alguns poemas dos livros Viagem, Vaga Música,

Mar Absoluto e Outros Poemas e Solombra, de Cecília Meireles. De acordo com Jonathan

Culler em Teoria Literária: uma introdução (1999), os estudos literários possuem uma

divisão sob duas perspectivas, a poética e a hermenêutica, que serão explorados no decorrer

deste tópico.

Para Jonathan Culler, no capítulo “Linguagem, Sentido e Interpretação” (1999), a

literatura envolve as propriedades da linguagem juntamente com um tipo especial de atenção

que se dá a ela. Assim, será o sentido que norteará as principais questões sobre a linguagem.

Culler ressalta a diferença entre indagar sobre o sentido de um texto e o sentido de uma

palavra. Aquilo que o texto provoca em seu leitor é uma parte de seu sentido. Ele mostra

então, que há diferença entre o sentido de uma palavra e o sentido de um texto, sendo que seu

intermediário seria o que ele chama de sentido de uma elocução, “o sentido do ato de proferir

essas palavras em circunstâncias específicas” (CULLER, 1999, p.60). De acordo com ele, não

podemos simplesmente indagar a respeito do sentido, pois este assume pelo menos três

dimensões, o sentido de uma palavra, de uma elocução e de um texto. O sentido de uma

palavra contribui para o sentido de uma elocução, e o texto, que representa a elocução de um

autor, possui em seu sentido não uma proposição, mas sim a potencialidade de afetar seu

leitor. O sentido, para Culler, se baseia na diferença.

De acordo com o teórico, há uma distinção, bastante negligenciada nos estudos

literários, entre dois tipos de projetos, um embasado na linguística, que considera os sentidos

como algo que tem de ser explicado e a partir disso tenta resolver como eles são possíveis. O

outro projeto, por contraste, parte das formas e procura interpretá-las a fim de abarcar o que

significam. Nos estudos literários tal contraste se dá entre a poética e a hermenêutica.

Segundo Culler, a poética se origina a partir dos sentidos ou efeitos comprovados e questiona

como eles são obtidos. Exemplifica com a seguinte questão: o que faz com que um trecho de

um romance pareça irônico? O que nos faz interessar por um personagem em específico? E,

por que o final de um poema nos parece ambíguo? Já a hermenêutica, segundo Culler, começa

com o texto e questiona o seu significado, tentando descobrir interpretações novas e melhores.

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Os campos da lei e da religião originam os modelos hermenêuticos, porque as pessoas

geralmente procuram interpretar um texto legal ou sagrado a fim de decidir como devem agir.

O modelo linguístico, de acordo com Culler, sugere que os estudos literários devem

escolher a poética, que busca entender como as obras obtêm seus efeitos, mas a tradição

moderna escolheu a hermenêutica, fazendo da interpretação das obras o auge dos estudos

literários. Culler aponta que a razão desta escolha se justifica pela busca de informações

importantes que as pessoas acreditam que as obras querem transmitir. Portanto, essa busca

não se dá pelo interesse no funcionamento da literatura, como seria o caso da investigação

poética. A poética, por seu lado, não exige que conheçamos o sentido de uma obra, ela

pretende explicar os efeitos que possam ser comprovados. Culler exemplifica com o final de

um romance, que pode ser mais bem sucedido que outro, de acordo com a escolha do autor;

explica também que a combinação de imagens em um poema pode fazer sentido ao passo que

outra combinação não conseguiria resultado semelhante. Além disso, a poética busca explicar

como os leitores fazem para interpretar as obras literárias a partir das convenções que lhes

possibilitem entender as obras como entendem. Pensar em como os leitores percebem uma

obra literária levou à formulação teórica da estética da recepção que, de acordo com Culler

“afirma que o sentido do texto é a experiência do leitor (uma experiência que inclui

hesitações, conjecturas e autocorreções)” (CULLER, 1999, p.66).

O que é importante no jogo da interpretação, ainda segundo Culler, não é a resposta

que se propõe, mas sim como se chega a essa resposta, o que é feito com os detalhes do texto

ao relacioná-los com a resposta. Ele indaga como escolher entre diferentes interpretações e

como determinar o sentido, visto que o sentido é complexo e esquivo, além de não ser

determinado de uma vez por todas. Para ele, o sentido de uma obra não é exatamente o que o

escritor tinha em mente no ato da escrita, ou o que ele pensa que ela significa depois de

terminada, mas sim o que ele conseguiu corporificar na obra. O sentido é uma noção

inescapável porque não é simples ou simplesmente determinado. É simultaneamente a

experiência de um sujeito e a propriedade de um texto, é tanto o que compreendemos como o

que tentamos compreender no texto. Para o estudioso, o sentido é determinado pelo contexto,

ressaltando que o contexto é ilimitado.

Em “Retórica, Poética e Poesia”, quinto capítulo de Teoria Literária: uma introdução,

Culler trata da retórica, da poética e da poesia, em especial da poesia lírica, a que mais nos

interessa neste momento. Ele inicia o capítulo falando da divisão que Aristóteles fez entre

retórica e poética, tratando a retórica como a arte da persuasão e a poética como a arte da

imitação ou da representação. Para Culler, a poesia se relaciona com a retórica, pois utiliza

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figuras de linguagem buscando ser persuasiva. Segundo ele, “a poética poderia ser vista como

parte de uma retórica expandida que estuda os recursos para os atos linguísticos de todos os

tipos” (CULLER, 1999, p. 73). Ele lembra que a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a

ironia compõem a lista dos “quatro tropos principais” da linguagem. Em seguida, explana

sobre os gêneros literários, que seriam divididos em poética ou lírica, épica ou narrativa e

drama.

De acordo com o estudioso, muitos teóricos seguiram os gregos, que dividiram as

obras em três classes de acordo com quem fala: a poética ou lírica ocorre quando o narrador

fala em primeira pessoa; épica ou narrativa quando o narrador fala em sua própria voz

permitindo aos personagens falarem também; e drama, que ocorre quando somente os

personagens falam. Outra forma sugerida de fazer esta distinção é de acordo com a relação

entre o falante e o público. Na épica há recitação oral, em que um poeta se coloca diretamente

frente a um publico ouvinte; no drama, o autor está oculto do público e os personagens falam

no palco; já na lírica, o poeta, ao cantar ou entoar o poema, dá as costas ao ouvinte, como

quem finge falar consigo mesmo ou com outra pessoa, podendo ser um espírito da natureza,

uma musa, um amigo, um amante, um deus, uma abstração personificada e até um objeto

natural. De acordo com Culler, a lírica era identificada como a essência da literatura entre o

final do século XVIII e metade do século XX. Antes disso, era tida como uma forma de

elevada expressão, passando então a ser vista como uma forte expressão de sentimento,

lidando com a vida cotidiana e com valores transcendentes.

Na contemporaneidade, no entanto, os teóricos sugerem uma nova forma de tratar a

lírica; em suas palavras:

os teóricos contemporâneos passaram a tratar a lírica menos como expressão dos

sentimentos do poeta e mais como trabalho associativo e imaginativo com a

linguagem – uma experimentação com ligações e formulações linguísticas que torna

a poesia uma dilaceração da cultura ao invés de principal repositório de seus valores

(CULLER, 1999, p. 76).

De acordo com Culler, a vertente da teoria literária que enfoca a poesia discute, além

de outros assuntos, sobre as maneiras diferentes de observar os poemas; que podem ser vistos

como uma estrutura feita de palavras (um texto), ou um ato do poeta, uma experiência do

leitor, ou um evento histórico literário. Além das maneiras de observar os poemas, ao pensar

em lírica, de acordo com o estudioso, deve-se fazer uma distinção entre a voz que fala e o

poeta que faz o poema, criando dessa maneira, a figura da voz.

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A voz que ecoa do poema, segundo Culler, é indeterminada. Ler o poema é se colocar

em posição de pronunciá-lo ou imaginar uma voz dizendo-o, desse modo, temos de um lado o

indivíduo histórico que compôs o poema e de outro lado a voz da elocução. Assim, ao

ouvirmos uma elocução, de acordo com ele, imaginamos ou reconstruímos um falante e um

contexto, o que pode coincidir com o que sabemos do autor. Em suas palavras: “essa tem sido

a abordagem da lírica no século XX e uma justificativa sucinta poderia ser que as obras

literárias são imitações ficcionais de elocução do „mundo real‟. Os poemas líricos são,

portanto, imitações ficcionais de elocução pessoal” (CULLER, 1999, p.77). De acordo com o

estudioso, as interpretações de poemas têm sido feitas a partir das indicações do texto e dos

conhecimentos gerais sobre os falantes e situações comuns, como a natureza das atitudes do

falante. As escolas e universidades em geral, de acordo com ele, têm dado foco às

complexidades da atitude do falante em um poema, o poema tem sido estudado como

dramatização de pensamentos e sentimentos de um falante que foi reconstruído a partir de

conhecimentos que se têm a respeito dele.

Por outro lado, ainda de acordo com Culler, existem atos de falas encontrados em

poemas que não são facilmente reconhecíveis, ele exemplifica com poemas líricos famosos

como a “Ode to the West Wind”, de Shelley, ou “The Tiger”, de Blake, que sugerem

dificuldades nos versos “O wild West Wind, thou breath of Autumn‟s being!” ou “Tiger,

Tiger, burning bright /In the forests of the night”. Nestes versos não é fácil imaginar que tipo

de situação levaria alguém a falar dessa maneira. O que ele sugere é que esses falantes estão

sendo arrebatados, estão ficando poéticos ou estão assumindo atitudes extravagantes. Assim,

se tentarmos entender esses poemas como imitações ficcionais de atos comuns de fala,

provavelmente o ato parecerá ser o de imitar a própria poesia. Ele completa seu raciocínio

dizendo que a lírica possui certa extravagância, com poemas que parecem dispostos a dirigir-

se para um público irreal (o vento, um tigre, minha alma), de uma forma exagerada. Quando

os poemas líricos se dirigem ao que não é realmente um ouvinte, isso pode significar um

sentimento forte que leva o falante a irromper em fala, e essa intensidade pode se ligar ao ato

de elocução que frequentemente deseja um estado de coisa e tenta criá-lo pedindo a objetos

inanimados que se curvem ao desejo do falante. Assim, esses poetas são vistos como sublimes

ou visionários, por terem a capacidade de se dirigir à Natureza e a quem ela pode responder.

De acordo com Culler, não se deve tratar o poema como se trata um trecho de

conversa ou um fragmento que precisa de um contexto amplo para explicá-lo, pois o poema

possui uma natureza única e deve ser tratado como tal, único. Podemos nos aproximar de um

poema como um todo estético, sendo diferenciado dentro de uma tradição estética por

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diversos modelos teóricos disponíveis, como é o caso do modelo dos formalistas russos, os

teóricos românticos, os New Critics ingleses e americanos, as leituras pós-estruturalistas, e as

concepções recentes dos poemas como construções intertextuais.

3.2 – UM OLHAR SOBRE POESIA – DINÂMICA DAS INTERRELAÇÕES

POÉTICAS

Entre os críticos da obra de Cecília Meireles, é comum encontrar observações acerca

dos recursos de composição poética empregados: métrica, ritmo, jogos de sonoridade e

repertório de figuras de linguagem. Como também acerca das relações entre a poesia ceciliana

e o simbolismo, assim como entre simbolismo e modernismo em sua poesia. Darcy

Damasceno refere-se a uma mudança no emprego da métrica entre Viagem e Vaga Música;

segundo o estudioso, no primeiro livro a adesão à métrica tradicional comporta algumas

medidas de liberdade, como se constata no poema “Noções”, com versos que chegam a variar

de onze a dezesseis sílabas: “Entre mim e mim há vastidões bastantes/para navegação dos

meus desejos afligidos. // Descem pela água minhas naves desvestidas de espelhos./Cada

lâmina arrisca um olhar, investiga o elemento que a atinge.” Damasceno então acrescenta que

“na poesia de uma Cecília Meireles, muito mais musical que plástica, a arquitetura do verso

parece cingir-se às leis clássicas da versificação portuguesa, foneticamente a palavra

empregada não tem o mesmo valor”. (DAMASCENO, 1967, p.72). Com Vaga Música se dá

uma aliança entre métrica tradicional e a fluidez musical do simbolismo, ao lado de uma nova

concepção prosódica que irá se afastar da inflexão portuguesa e que, de acordo com o autor de

O Mundo Contemplado, se consolida em Retrato Natural.

Seguindo um caminho aberto por Damasceno, que também indicou a presença de um

veio barroco ou maneirista nos primeiros livros de Cecília, Leila V.B. Gouvêa faz um

comentário sugestivo: “algumas das obsessões lexicais cecilianas, que com freqüência são

atribuídas ao simbolismo (nácar, alabastro, cristal, aljôfar, brunida, alfombra, ouro, prata,

mesmo rosas) talvez lhe advenham de Góngora, Quevedo e outros autores do Seiscentismo,

os quais também reaproveitam Petrarca” (GOUVÊA, 2008, p.77). Por fim este veio barroco

anotado por Damasceno a respeito do dualismo entre conceito e sensorialidade, é mais um

fator que repercute sobre a orientação simbolista da autora, conferindo-lhe mais um traço de

certa estranheza e singularidade.

É ainda Damasceno que sublinha uma certa tendência à abstração da linguagem em

Vaga Música, que romperia os “compostos imaginísticos”. Alfredo Bosi, por sua vez, acentua

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a peculiaridade do simbolismo ou pós-simbolismo ceciliano, integrando-o a uma ampla

vertente da modernidade que conseguiu absorvê-lo e fazer dele um uso particular. Diz o

crítico:

Não direi que as vozes vibrantes de Cruz e Sousa e, mais particularmente, a música

em surdina de Alphonsus de Guimarães, estivessem alheias à dicção inicial de

Cecília. Mas, quando se pensa no seu percurso inteiro, é preciso ampliar muito o

repertório de afinidades, pois o simbolismo foi um manancial inesgotável de

imagens e modulações que penetraram a poesia moderna até meados do século

vinte: Yeats, Rilke, Valéry, Blok, Eliot, Juan Ramón Jiménez, García Lorca, Tagore,

Gabriela Mistral, José Régio, os poetas da Presença em Portugal... (BOSI, 2007,

p.14).

Na conclusão de Pensamento e Lirismo na Poesia de Cecília Meireles, Leila V. B.

Gouvêa interpreta esse vínculo de Cecília com o pós-simbolismo internacional em termos da

conexão de seus poemas com o inconsciente e com a memória. Por outro lado, ao reivindicar

a modernidade poética de Cecília, Bosi se refere aos “traços mais obviamente epidérmicos de

simbolismo da sonoridade de seu verso” (BOSI, 2007, p.47). Nesta linha, Bosi mostra com

agudeza a presença dos traços de modernidade na poesia ceciliana na medida em que “seus

poemas dissolvem unidades e unificações ideológicas, com as da pessoa, as da memória e as

da comunicação a todo preço da ideologia” (BOSI, 2007, p.48).

Além dessas considerações, é importante destacar a recorrência de algumas formas

poéticas na obra ceciliana, como epigramas, elegias e canções, e fazer um breve levantamento

conceitual a respeito de tais recorrências.

De acordo com o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés (1997), o termo

epigrama significava inicialmente a inscrição em verso ou em prosa sobre túmulos,

monumentos, estátuas, medalhas, moedas, etc., com o intuito de lembrar um acontecimento

memorável ou uma vida exemplar. Mais tarde tornou-se breve e conciso e passou a abranger

outros temas, como o culto à liberdade, o ódio aos tiranos, o vinho e o amor, a sátira.

Passando por algumas mudanças ao longo dos tempos, como a diminuição dos versos e o

repúdio a temas políticos e sociais, atualmente o epigrama tende a apresentar uma quadra

dividida em duas secções, o nó, que visa a incitar a curiosidade do leitor, e o desenlace, que

satisfaz sua curiosidade. O epigrama enuncia pensamentos engenhosos, delicados, às vezes

crítico, concluindo sempre por uma expressão aguda ou picante. O que se exige em um

epigrama é a brevidade, a energia e uma simplicidade sem arte, talvez uma contraposição de

ideias e em todo caso uma dicção perfeita.

Já a elegia vem do grego elegeía, vocábulo de obscura etimologia. Formalmente a

elegia caracterizava o emprego de dísticos formados de versos hexâmetros, ou seja, de seis

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pés, e pentâmetros, de cinco pés. Algum tempo depois a gênese da elegia passou a ser

atribuída a um refrão usado nas antigas lamentações fúnebres acompanhadas de flautas de

bambu. Derivada da poesia épica, manteve semelhança com o gênero e apresenta variados

assuntos, como o louvor, a moralização e a exortação. Consiste em uma das formas líricas em

que a pessoa do poeta se expressa mais francamente, em que ele se coloca mais em cena. Aos

poucos a elegia foi desfazendo o vínculo com a flauta e com a música, até se destinar à

simples leitura ou recitação. Vários foram os poetas que se utilizaram da elegia para compor

seus versos e, a partir do século XVI, simultaneamente com a utilização do dístico segundo os

moldes greco-latinos, houve outras experimentações estróficas e métricas, dentre as quais a

terza rima e o quarteto pentamétrico de rima cruzada (abab) se destacam. No geral, os temas

da elegia são os sentimentos, principalmente os dolorosos, como os amores mal

correspondidos, a perda da pátria ou quaisquer outras dores do coração.

O termo canção vem do latim cantatione, que quer dizer canto, cantiga. De um modo

genérico, o termo designa toda composição poética destinada ao canto ou que possui alguma

relação com a música. Há distinção entre a canção popular e a canção erudita. A popular

assume apelativos como o idioma (nordestino, modinha, saga, etc.), limitando-se ao folclore e

à música sem apresentar moldes definidos. Já a canção erudita caracteriza-se pela obediência

a esquemas cultos e precisos. A temática da canção vai desde temas guerreiros até os morais,

sendo que o mais constante é o amor, de modo que a palavra canção invoca o amor e vice-

versa. A canção, o tema do amor e o lirismo, de acordo com Massaud Moisés (1997), são

categorias literárias vizinhas e interinfluentes.

Não poderíamos deixar de mencionar a repetição temática que ocorre nas obras aqui

estudadas. A repetição, de acordo com Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (2000),

pode ser interpretada como uma arma da memória, do eterno retorno como tentativa de

distrair a consciência do tempo e da contradição. Na repetição pode ser encontrado o desejo

de recuperar, através do signo, aquilo que foi vivido, por isso, na repetição dos temas

cecilianos pode haver uma tentativa de explicar, através de sua evocação e nomeação, aquilo

que já passou. Os temas mais recorrentes que abordaremos estão de acordo com estudiosos da

autora já mencionados, como Darcy Damasceno, Alfredo Bosi e Leila V.B. Gouvêa. São eles:

a efemeridade, a transitoriedade, a brevidade da vida, o sentimento de ausência e distância, a

temporalidade, o retorno ao passado, às memórias e a busca pela identidade.

3.3 – VIAGEM – MOTIVOS PARA A POESIA

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Lançado em 1939, Viagem foi um dos livros que mais marcaram a poética de Cecília

Meireles, que anteriormente havia escrito Espectros (1919), Nunca Mais... e Poema dos

Poemas (1923), Baladas para El-rei (1925), Cânticos (1927), A Festa das Letras (1937), e

Morena, pena de amor (1939). De acordo com Darcy Damasceno, “Viagem vale pela

revelação definitiva de uma natureza artística em sua plenitude e de um estilo poético em seu

ponto de perfeição”. (DAMASCENO, 1967, p.20). Para ele, Viagem traz em seus motivos, a

busca por uma lição de vida, marcada por reflexões e sustentada por uma exigente filosofia. O

espírito atento da poeta busca nos detalhes cotidianos a sua reflexão, o repouso ou a agitação

em que nasce a poesia. Viagem é composto por cem poemas, e dos livros aqui estudados, traz

em seu conjunto, o maior número reunido de epigramas, cujos temas são reflexões sobre o

tempo, a felicidade, a ressurreição e o sentimento de vazio causado por alguma perda. A

epígrafe que abre este trabalho: “Ainda que sendo tarde e em vão, / perguntarei por que

motivo / tudo quanto eu quis de mais vivo / tinha por cima escrito „Não‟”, é o décimo

primeiro poema de Viagem, “A última cantiga”, e pode representar na imagem da morte do eu

lírico e na forma que este se dirige ao tu, as perdas desde sempre sofridas.

Iniciaremos a leitura de Viagem com um poema que traz a temática da ausência em

relação ao ser amado, em seguida apresentaremos dois epigramas, a fim de observarmos as

temáticas propostas por eles e em seguida nos deteremos em poemas que possuem como

temática o tempo e a memória.

No poema “Perspectiva” encontram-se características que podem representar a

ausência do ser amado demonstrado pelas metáforas sobre a perda daquele que se foi. O

momento da rememoração ganha força ao trazer para o presente da enunciação o que se

encontra na distância antiga do tempo:

Tua passagem se fez por distâncias antigas.

O silêncio dos desertos pesava-lhe nas asas

e, juntamente com ele, o volume das montanhas e do mar.

Tua velocidade desloca mundos e almas.

Por isso, quando passaste, caiu sobre mim tua violência

e desde então alguma coisa se aboliu.

Guardo uma sensação de drama sombrio, com vozes de ondas lamentando-me,

e a multidão das estrelas avermelhadas fugindo com o céu para longe de mim.

Os dias que vêm são feitos de vento plácido e apagam tudo.

Dispersam a sombra dos gestos sobre os cenários.

Levam dos lábios cada palavra que desponta.

Gasta o contorno da minha síntese.

Acumulam ausência em minha vida...

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Oh! um pouco de neve matando, docemente, folha a folha...

Mas a seiva lá dentro continua, sufocada,

nutrindo de sonho a morte.

(MEIRELES, 2001, p.238-239)

“Perspectiva” é um poema no qual encontramos um marco divisor de dois momentos

do eu poético. A passagem do tu é o que divide tais momentos, como podemos perceber

através dos versos “Por isso, quando passaste, caiu sobre mim tua violência / e desde então

alguma coisa se aboliu.” As metáforas “distâncias antigas” e “silêncio dos desertos” possuem

uma dimensão espacial que demonstra o tempo decorrido e a solidão que passou a imperar a

partir da passagem do tu pelo eu. Os versos finais da primeira estrofe – “O silêncio dos

desertos pesava-lhe nas asas / e, juntamente com ele, o volume das montanhas e do mar” –

pode significar o peso da vida que o tu carregava, o que é transmitido através das metáforas

deserto, o volume das montanhas e do mar, que podem dar um aspecto de vastidão do peso

que ele carregava sobre os ombros, ou sobre as asas. Os versos “Os dias que vêm são feitos de

vento plácido e apagam tudo. / Dispersam a sombra dos gestos sobre os cenários. / Levam dos

lábios cada palavra que desponta. / Gasta o contorno da minha síntese. / Acumulam ausência

em minha vida...” parecem demonstrar a passagem do tempo pela vida do eu poético, que vai

levando toda memória para o passado, o tempo desfaz os cenários, apaga as palavras e

acumula as ausências na vida do eu poético. O que fica dessa passagem são as sensações, e o

que poderia ser memória passa junto com o vento que leva para o esquecimento. O

esquecimento leva dos lábios as palavras e acumula ausência no eu. Os invernos passam

levando o que poderia ser memória para o mais profundo esquecimento.

Vejamos a temática de dois epigramas. O de nº 7 traz uma reflexão sobre a diferença

entre dois mundos aparentemente opostos representados pela “raça” que quer conquistar o

mundo e aquela que não se adequa a ele:

Epigrama nº 7

A tua raça de aventura

quis ter a terra, o céu, o mar.

Na minha, há uma delícia obscura

em não querer, em não ganhar...

A tua raça quer partir,

guerrear, sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.

A minha raça quer passar.

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(MEIRELES, 2001, p.272)

O epigrama acima, composto por quatro dísticos com rimas alternadas, traz em seu

tema o desinteresse pelas coisas mundanas, em que o eu poético adota o ponto de vista de

outra “raça” não material, incorporando uma cosmovisão diferente da adotada pelo tu. Há

alternância entre eu e tu nos dísticos, sugerindo a diferença ideológica entre ambos, a “raça”

do tu é aquela que compete e deseja, enquanto a “raça” do eu quer simplesmente passar, não

deseja nada para si, é indiferente às coisas que o circundam. Não podemos deixar de lembrar

que o desapego material é uma das características da filosofia hindu, a qual Cecília Meireles

possuía maior aproximação. Neste sentido observamos que a indiferença expressa pelo eu

poético pode fazer referência ao desapego que influenciou a espiritualidade da poeta. O

último dístico “A minha, não quer ir nem vir. / A minha raça quer passar” ilustra a

indiferença, o desinteresse do eu lírico intensificado pelo itálico na palavra “passar”.

Já no Epigrama nº 2 vemos como o tempo aparece na trajetória de Cecília Meireles,

quando o sujeito poético estabelece o vínculo entre a marcação do tempo e a felicidade, ou a

ausência desta:

És precária e veloz, Felicidade.

Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.

Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,

e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.

Fizeste para sempre a vida ficar triste:

porque um dia se vê que as horas todas passam,

e um tempo, despovoado e profundo persiste.

(MEIRELES, 2001, p.234)

O poema, dividido em dois quartetos, ganha velocidade pela presença das consoantes

fricativas /v/ e /f/ e pelas sílabas nasalizadas que instituem o prolongamento dos versos. Isso

promove uma indicação de que o tempo não se demora naquilo que traz a felicidade.

Notemos também que o tu, aqui, é representado pela personificação da Felicidade, escrita em

maiúscula, a quem o sujeito poético se dirige em discurso direto. Há rimas no segundo e

quarto versos de ambas as estrofes.

No “Epigrama nº 7” o eu poético se identifica como pertencente a uma “raça”

diferenciada das demais, uma “raça” que demonstra indiferença às coisas deste mundo. Já no

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“Epigrama nº 2”, o eu poético estabelece a relação entre a felicidade e a passagem do tempo.

Em ambos os epigramas podemos observar a presença da efemeridade, no “Epigrama nº 7”

representado pela “raça” que somente deseja passar; e no “Epigrama nº 2”, representado pelo

tempo que naturalmente passa levando a felicidade.

De acordo com Darcy Damasceno, os primeiros livros da lírica de Cecília Meireles

trazem uma maior recorrência sensorial. No poema “Anunciação” podemos ver de que modo

a memória é despertada através de sensações auditivas; temos um exemplo de como a música

consegue trazer à tona imagens fragmentadas de um tempo remoto:

Toca essa música de seda, frouxa e trêmula

que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,

com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.

E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,

e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;

e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.

Cessará essa música de sombra, que apenas indica valores de ar.

Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,

E em navios novos homens eternos navegarão.

(MEIRELES, 2001, p.229)

“Anunciação” é um poema composto por sete estrofes, sendo dísticos as três primeiras e as

três últimas, separados por um verso único. O título pode indicar a música que o rito católico

toca para anunciar a hora do Angelus e a proximidade da noite. Da escuridão da memória

surgem navios de ouro e corpos quase desmanchados no vento. No verso que separa dois

dísticos temos as palavras “areias”, “nuvens” e “espumas” que sugerem a efemeridade e a

transitoriedade daquilo que se esvai, possuem “valores de ar”, como é dito no poema. Este

poema é imagético, cujos fragmentos de imagens são construídos de metáforas marinhas, nos

remetendo a uma embarcação em alto mar. O título pode ser também a anunciação do fim,

pois o poema é construído nas quatro primeiras estrofes no tempo presente do indicativo e nas

três últimas no tempo futuro; o que indica que o que é presente no momento atual da

enunciação será passado quando o futuro chegar.

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Já o poema “Excursão” (MEIRELES, 2001, p.230-231) nos leva a uma viagem no

tempo, de onde podemos perceber que o presente reconstrói as memórias de um passado,

mesmo que o eu poético se encontre um pouco alheio a essa reconstrução. Nele encontramos

elementos sensíveis à lembrança do eu poético, elementos que ficaram impregnados, como

que colados à essência, para que no momento exato pudessem ser trazidos de volta ao

presente. Este poema, constituído por seis sextilhas, pode ser lido como um retorno a um

passado pela via do presente:

Estou vendo aquele caminho

cheiroso da madrugada:

pelos muros, escorriam

flores moles da orvalhada;

na cor do céu, muito fina,

via-se a noite acabada.

“Estou vendo aquele caminho” está no presente do indicativo, o que nos permite

constatar que o eu parte do presente para buscar o passado. O verbo “escorriam” do verso

“pelos muros, escorriam / flores moles da orvalhada” parece indicar que o eu retorna ao

passado para fazer significar o presente da enunciação. O passado passa diante dos seus olhos

e as sensações que trazem são múltiplas, o cheiro da madrugada, as flores moles, a cor fina do

céu. Nesta estrofe percebemos uma forte presença da natureza através dos elementos flores,

céu, noite, o que nos remete aos estudiosos Darcy Damasceno e Leila V.B. Gouvêa, que

apontaram a presença da natureza como elemento marcante na poesia ceciliana. Os sentidos

estão representados pela visão (estou vendo), pelo olfato (caminho cheiroso) e pelo tato

(flores moles). Na estrofe seguinte temos:

Estou sentindo aqueles passos

rente dos meus e do muro.

As palavras que escutava

eram pássaros no escuro...

Pássaros de voz tão clara,

voz de desenho tão puro!

Os dois primeiros versos da segunda estrofe partem da mesma perspectiva dos dois

primeiros versos da estrofe anterior, o tempo presente. Em seguida, o verbo “escutar”, do

verso “as palavras que escutava / eram pássaros no escuro”, novamente faz a recorrência ao

passado, de onde é transportado ao presente o material da memória. Temos algumas rimas

alternadas, como muro/escuro/puro e, além disso, encontramos a sinestesia nos elementos de

“voz tão clara”, e de “voz de desenho tão puro”. Temos o sentido da audição representado

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pelos versos “as palavras que escutava” e “pássaros de voz tão clara”. Na próxima estrofe

encontramos elementos secos, duros e elementos fluidos:

Estou pensando na folhagem

que a chuva deixou polida:

nas pedras, ainda marcadas

de uma sombra umedecida...

Estou pensando o que pensava

nesse tempo a minha vida.

A expressão “estou pensando” nos localiza no presente, de onde se enxerga a folhagem que a

chuva deixou polida e, nos últimos versos, de onde se busca lembrar o que pensava no

passado. O elemento pedra se opõe semanticamente ao elemento chuva, pois o duro da pedra

se opõe ao macio da chuva; e, além disso, podemos observar como o elemento etéreo

“sombra” conseguiu deixar marcas nas pedras. Isso nos leva a observar que mesmo as coisas

imutáveis, duras, como é o caso da pedra, pode ser mudado ou marcado pelo encontro de um

elemento etéreo, como a sombra. Na quarta estrofe, a volta ao passado é marcada pela dúvida

de não saber mais se o lugar que rememora ainda existe:

Estou diante daquela porta

que não sei se ainda existe...

Estou longe e fora das horas

sem saber em que consiste

nem o que vai nem o que volta...

sem estar alegre nem triste,

Os dois primeiros versos também partem do presente, porém o segundo verso demonstra

dúvida de saber se a situação permanece a mesma, se a porta ainda existe. O eu -lírico se

encontra fora, distante do mundo real e aqui podemos fazer um paralelo ao que Alfredo Bosi

diz ser o sentimento de distância, de alheamento do mundo. Estar longe e fora das horas pode

significar que o tempo passado se fundiu ao presente, mesmo que a marcação dos tempos

pareça fixa. Podemos perceber uma certa indiferença que o eu lírico demonstra com relação

ao tempo e ao espaço, já que não sabe “nem o que vai nem o que volta...”. O último verso

“sem estar alegre nem triste” está presente em “Motivo” (Viagem) – “não sou alegre nem sou

triste: / sou poeta” – em que o conceito de poeta é formado no momento da enunciação. A

correspondência com o verso de “Motivo” parece indicar que “Excursão” também pode ser

interpretado como metalinguístico. Além disso, este poema pode ser lido como uma

representação do sentimento de ausência derivado da perda das experiências do passado, já

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que o eu lírico volta a ele, mesmo que não demonstre desejo de reencontrar o que lá deixou,

como se lê nas duas últimas estrofes:

sem desejar mais palavras

nem mais sonhos, nem mais vultos,

olhando dentro das almas

os longos rumos ocultos,

os largos itinerários

de fantasmas insepultos...

- itinerários antigos,

que nem Deus nunca mais leva.

Silêncio grande e sozinho,

todo amassado com treva,

onde os nossos olhos giram

quando o ar da morte se eleva.

Em todas as estrofes de “Excursão” podemos observar que as rimas alternadas se dão

nos 2º, 4º e 6º versos. Além disso, a composição é toda em redondilha maior, o que

formalmente facilita a musicalidade da poesia. O título “Excursão” pode sugerir uma volta ao

passado, às memórias, e os primeiros versos de cada estrofe parecem nos indicar essa volta:

“Estou vendo aquele caminho / cheiroso da madrugada”, na próxima estrofe “Estou sentindo

aqueles passos / rente dos meus e do muro”, em seguida “Estou pensando na folhagem / que a

chuva deixou polida:”. Os verbos “vendo”, “sentindo”, “pensando” podem ser vistos como

válvulas que ativam a memória guardada pelo eu poético.

Nos poemas cecilianos, há recorrências de um passado que retorna ao presente. O

poema “Valsa” focaliza o olhar do eu lírico para o passado, o olhar que conhecia o objeto e o

reconhece no presente por um vento que passa trazendo a lembrança do mesmo objeto hoje

perdido. Tal reconhecimento presente neste poema “Valsa” pode ser articulado paralelamente

ao reconhecimento demonstrado por Santo Agostinho, pois, para ele, só é possível reconhecer

algo se em algum momento houve o conhecimento deste algo. É um poema dividido em três

estrofes de quatro versos cada, sem rima e alternando versos longos e breves, do qual

transcreveremos a primeira e a última estrofe:

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos

e nas tuas antigas palavras.

O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,

que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

O eu lírico volta a viver com o tu as lembranças de um tempo que não existe mais. O termo

reiterado em “antigos olhos” e “antigas palavras” retoma o significado de passado, de

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nostálgico. Contudo, o poema é finalizado com a noção de que o tempo muda aquilo que fica,

alterando a realidade das coisas perenes:

Coitado de quem pôs sua esperança

nas praias fora do mundo...

-- Os ares fogem, viram-se as águas,

mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

(MEIRELES, 2001, p. 262)

A pedra simboliza o que é duro, o que inicialmente parece imutável, mas o tempo, com sua

característica de ser aquele que passa, aquele que leva tudo para o passado e que traz de volta

ao presente, possui a capacidade de mudar até o que parece imutável. No poema “Excursão”,

analisado anteriormente, temos nos versos “nas pedras, ainda marcadas / de uma sombra

umedecida...” uma característica similar ao do tempo representada pela sombra que marca a

pedra, demonstrando que aquilo que é duro, sólido, pode ser marcado por algo efêmero como

a sombra.

O poema “Medida da significação”, do qual transcreverei alguns trechos; é um poema

dividido em quatro partes, enumeradas em algarismos romanos, cada uma distinta da outra

com relação à forma: cada estrofe possui um número diferente de versos livres e brancos. É

um poema que trata da memória, se fazendo fragmentada em praticamente sua totalidade.

Inicialmente há uma procura pelo eu; na primeira parte do poema, temos inicialmente os

seguintes versos: “Procurei-me nestas águas da minha memória / que povoa todas as

distâncias da vida”; vemos que essa busca está sendo feita na tentativa de uma identificação

maior com o próprio eu, identificação dificultada pelas distâncias. Mais adiante, ainda na

primeira parte, temos o verso: “Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência

absoluta”; podemos pensar que não há um pertencimento do eu consigo e a que ausência de si

predomina. A partir da segunda parte aparece o elemento da voz, que chama em vão pelo eu,

já que este disse ser de “ausência absoluta”: “Voz obstinada, por que insiste chamando / por

um nome que não corresponde mais a mim?” Continuando na segunda parte temos, na quarta

estrofe, os seguintes versos: “As aparências dispersam-se de mim, / como pássaros: / que sol

se pode fixar nesta existência, / para te definir a minha aproximação?”, onde encontramos a

efemeridade e a transitoriedade que Darcy Damasceno havia tratado: não há nada de fixo,

tudo é transitório, passageiro. Encontramos neste poema o sentimento de ausência do eu lírico

em relação a si mesmo e em relação ao mundo.

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IV

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, todas as minhas presenças

e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;

todos os dias sou meu completo desmoronamento:

e assisto à decadência de tudo,

nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,

conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.

Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,

pra veres o que deles resta

depois que chegarem a estes ermos domínios

onde figuras e horas se decompõem.

(...)

(MEIRELES, 2001, p.287)

Na quarta parte do poema, acima transcrita, temos o elemento água relacionado à

memória, que talvez possa dar a compreensão de que a memória é fluida, que é também

transitória, assim como a água. Nos versos da terceira estrofe, “é inútil o meu esforço de

conservar-me; / todos os dias sou meu completo desmoronamento”, temos o indício da

dispersão do eu, já que nem mesmo o eu lírico se mantém intacto. Neste verso podemos fazer

referência ao que João Adolfo Hansen diz a respeito do sentimento de ruína, de

desmoronamento na poesia ceciliana. Seu estudo é sobre Solombra, porém, neste poema de

Viagem podemos observar este tema que é recorrente em ambas as obras. Na continuidade do

poema vemos que diariamente o eu se desmorona e, exteriormente a si, assiste “à decadência

de tudo”. Novamente reaparece a voz obstinada, que é convidada a acompanhar o eu para seu

próprio interior para que possa compreender sua ausência.

Os poemas de Viagem trazem, como já havia comentado Darcy Damasceno, temas

como a efemeridade, a brevidade da vida e a incompreensão humana. Mas, buscamos aqui

apontar traços que mostram como a memória pode ser um lugar visitado através de sentidos

como a visão e a audição; além de apresentar a ausência causada pela perda de entes queridos

e o sentimento de ausência derivado da perda das experiências do passado.

3.4 – VAGA MÚSICA – CANÇÕES DE ENCONTRO AO ETÉREO

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Vaga Música, publicado no ano de 1942, seguido à publicação de Viagem, possui

cento e dois poemas ritmados, dos quais vinte e três possuem no título o termo “canção” e

trinta e um possuem em seu título alguma relação com a musicalidade. O próprio título do

livro faz referência direta com a musicalidade presente em seus poemas. De acordo com

Miguel Sanches Neto, em “Cecília Meireles e o tempo inteiriço” (2001), Vaga Música é uma

extensão do livro anterior, que intensifica a questão melódica, fortalecendo o clima de

rarefação da obra da autora, que, segundo ele, é próprio de sua “estética aérea” (SANCHES

NETO, 2001, p.xxxviii), que, por não confiar no racional, se deixa levar pelo ritmo, o que, de

acordo com Sanches Neto, confirma sua condição de andarilha solitária e de exilada sem

parada fixa.

De todos os motivos para o fazer poético, neste livro em especial se destacam os

elementos da natureza, o mar e os elementos marítimos como conchas, algas marinhas,

barcos, âncoras, embarcações; a natureza com suas árvores, musgos, o céu, as nuvens, o sol, a

lua. Mas também podemos destacar a busca pela identidade do eu e a presença do tu em

vários poemas. O olhar sobre o eu ganha uma dimensão mais aguçada, mais especulativa. E

até mesmo o olhar sobre o outro é significado a partir da visão do eu.

Começaremos nossa leitura de Vaga Música com dois poemas que possuem em sua

temática a ausência, para, em seguida, mostrarmos como a distância do eu lírico em relação

ao mundo compõe a poesia ceciliana. Depois veremos como a impossibilidade de reter os

instantes e a transitoriedade, temas estudados por Darcy Damasceno, aparecem nos poemas.

Por fim, analisaremos como o tempo e a memória são representados nesta obra.

“Canções do mundo acabado”, primeiro poema aqui estudado, parece mostrar a busca

pelo objeto perdido e a recordação do que no presente é ausente. O poema é dividido em duas

partes, a primeira com quatro tercetos e a segunda com seis tercetos sendo a penúltima estrofe

um dístico. Transcreveremos as estrofes que melhor elucidam a questão do ausente:

Certamente não há nada

de ti, sobre este horizonte,

desde que ficaste ausente.

Mas é isso que me mata:

Sentir que estás não sei onde,

mas sempre na minha frente.

A imagem do objeto perdido se, de alguma forma, encontra-se sempre à frente do eu, é

porque constantemente o acompanha. Ainda no mesmo poema temos:

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Penso no que me dizias,

e como falavas, e como te rias...

Tua voz mora no mar.

A mim não fizeste rir

e nunca viste chorar

(Por que o tempo sempre foi

longo para me esqueceres

e curto para te amar).

(MEIRELES, 2001, p. 346)

O tempo interfere no presente do eu lírico mostrando o que no passado foi amado, e

que no agora da enunciação deixa as marcas da ausência. Há forte presença da antítese nos

elementos presente e ausente, rir e chorar, esquecer e amar; o que parece demonstrar uma

tentativa de fusão dos opostos, ou talvez um choque entre o desejo do eu lírico e sua

realidade. É notável também neste poema a musicalidade marcada pelos versos curtos. As

reticências ao final do verso “penso no que me dizias / e como falavas, e como te rias...”

podem ser vistas como um sinal de que a lembrança se demorou um pouco mais no riso do

objeto amado. E em seguida, o verso “tua voz mora no mar”, pode sugerir a imensidão que foi

a lembrança da voz, uma vez que outros elementos marítimos compõem o espaço onde o eu

busca o ausente: “dos altos mastros”, “praias”, “águas salgadas”. “Canções do mundo

acabado” é um poema que já traz em seu título o termo canção, que, como sabemos, designa a

relação que o poema traz com a música, com o ritmo, de fato presentes no poema.

Outro poema que parece nos trazer indícios da ausência do ser amado é “Monólogo”,

em que podemos presumir uma tentativa frustrada de conexão entre o eu lírico e o tu:

Monólogo

Para onde vão as minhas palavras,

se já não me escutas?

Para onde iriam, quando me escutavas?

E quando me escutaste? Nunca.

Perdido, perdido. Ai, tudo foi perdido!

Eu e tu perdemos tudo.

Suplicávamos o infinito.

Só nos deram o mundo.

De um lado das águas, de um lado da morte,

tua sede brilhou nas águas escuras.

E hoje, que barca te socorre?

Que deus te abraça? Com que deus lutas?

Eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,

com as minhas perguntas.

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Para quê? Para quê? Rodas tontas,

em campos de areias longas

e de nuvens muitas.

(MEIRELES, 2001, p. 416-417)

O tu não está presente aos apelos do eu lírico, que se indaga a respeito das palavras

dirigidas a ele. Tudo foi perdido, tudo foi extinto. Nos versos “de um lado das águas, de um

dado da morte, / tua sede brilhou nas águas escuras” talvez possa ser feito a leitura de que o tu

se encontrou com a morte; sua sede de água brilhou nas águas escuras da morte. E nos versos

“eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,/ com as minhas perguntas”, podemos interpretar que o

eu lírico se encontra sozinho, em meio ao que continua sendo transitório como as areias e as

nuvens. A cesura entre “eu, nas sombras. Eu, pelas sombras” nos indica duas possibilidades

de leitura, uma permanência, o estar nas sombras, na escuridão no primeiro verso em paralelo

com “eu, pelas sombras”, que pode nos indicar o caminho, a direção que o eu toma pelas

sombras, pela escuridão, o caminhar só, na ausência do tu. O desejo de eternidade em

contraposição com o que é possível ter está presente nos versos “suplicávamos o infinito / só

nos deram o mundo”. A metáfora do infinito pode ser comparada ao desejo de suspensão do

tempo, de eternização do instante, o nirvana, alvo da espiritualidade hindu, como sabemos,

muito presente na poesia ceciliana. “Mundo”, por sua vez, pode ser metaforicamente

comparado àquilo que é passageiro, transitório, aquilo que é fadado à morte, à extinção.

A distância do eu em relação ao mundo, como sugere Alfredo Bosi, pode ser

encontrada em “Retrato falante”, um poema composto por doze quadras constituídas de rimas

alternadas. O retrato do qual o poema fala é o retrato falante do título, que durante o dia se

mira e à meia-noite em ponto fala. Cada retrato possui sua raridade, provavelmente o motivo

de ter sido tirado, como um selo, uma flor, um dente de elefante. Pela sala onde os retratos

estão expostos passaram muitas pessoas, que chegaram, falaram, contaram coisas às quais o

eu lírico se encontrava alheio, desinteressado, fatigado, distraído:

(...)

Minha vida foi sempre cheia

de visitas inesperadas,

a que eu me conservo alheia,

mas com as horas desperdiçadas.

Chegam, descrevem aventuras,

sonhos, mágoas, absurdas cenas.

Coisas de hoje, antigas, futuras...

(A maioria mente, apenas.)

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E eu, fatigada e distraída,

digo sim, digo não – diversas

respostas de gente perdida

no labirinto das conversas.

Ouço, esqueço, livro-me – trato

de recompor o meu deserto.

Mas, à meia-noite, o retrato

tem um discurso pronto e certo.

Vejo então por que estranho mundo

andei, ferida e indiferente,

pois tudo fica no sem-fundo

dos seus olhos de eternamente

(...)

(MEIRELES, 2001, p.375-377)

Talvez um motivo para tal desinteresse possa ser encontrado no verso “a maioria mente,

apenas”. O alheamento, o distanciamento do eu em relação ao mundo pode ser lido nos versos

“ouço, esqueço, livro-me – trato / de recompor o meu deserto”. Aparentemente a companhia

de si mesmo parece ser o que mais o agrada, o deserto onde se sente mais à vontade.

Observando os versos “vejo então por que estranho mundo / andei, ferida e indiferente, / pois

tudo fica no sem-fundo / dos seus olhos de eternamente”, encontramos nas rimas “mundo/sem

fundo” e “indiferente/eternamente” elementos semânticos que sugerem afastamento, distância

e uma grande indiferença do eu lírico em relação ao que se passa ao seu redor.

Relacionada à temática da ausência é a impossibilidade de reter os instantes e a

constatação da transitoriedade, características que Darcy Damasceno apresenta a respeito da

lírica ceciliana. Podemos encontrá-las em “Agosto”, composição em redondilha maior,

dividida em cinco estrofes, que sofrem alternações de cinco e quatro versos, das quais

transcreverei a primeira e as duas últimas:

Sopra, vento, sopra, vento,

ai, vento do mês de agosto,

passa por sobre meu rosto

e sobre o meu pensamento.

Vai levando meu desgosto!

(...)

Mova entre a lua inconstante

e a inconstantíssima areia,

que todo o mundo assim creia

meu sonho morto e distante,

morto, distante, acabado,

ó vento do céu profundo!

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que tudo é bom, no passado,

que nos fez sofrer, no mundo,

ao ter de ser suportado...

(MEIRELES, 2001, p.334)

Neste poema podemos perceber no primeiro verso “Sopra, vento, sopra, vento”, a

força do transitório, que passa pelo rosto e pelos pensamentos e vai levando o desgosto. As

vírgulas, que separam vocativo e verbo e reduplicam o efeito da frase imperativa, mostram, na

singularidade de cada elemento, o vento em movimento. Nos elementos lua e areia podemos

ter uma referência do transitório, pois, como sabemos, a lua possui fases e está em constante

mudança; já as mudanças que ocorrem com a areia podem ser originadas pelo vento, pela

temperatura, ou pela ação da natureza. E por fim, na última estrofe “morto, distante, acabado,

/ ó vento do céu profundo! / que tudo é bom, no passado, / que nos fez sofrer, no mundo / ao

ter de ser suportado...” há a reafirmação da impossibilidade de reter os instantes, momentos

que se esvaem e sempre findam.

Nos próximos poemas, buscaremos mostrar como o tempo é trabalhado em Vaga

Música, além de apresentar a composição da memória. Em “Recordação” vemos como os

sentidos conduzem à memória:

Recordação

Agora, o cheiro áspero das flores

leva-me os olhos por dentro de suas pétalas.

Eram assim teus cabelos;

tuas pestanas eram assim, finas e curvas.

As pedras limosas, por onde a tarde ia aderindo,

tinham a mesma exalação de água secreta,

de talos molhados, de pólen,

de sepulcro e de ressurreição.

E as borboletas sem voz

dançavam assim veludosamente.

Restitui-te na minha memória, por dentro das flores!

Deixa virem teus olhos, como besouros de ônix,

tua boca de malmequer orvalhado,

e aquelas tuas mãos dos inconsoláveis mistérios,

com suas estrelas e cruzes,

e muitas coisas tão estranhamente escritas

nas suas nervuras nítidas de folha

- e incompreensíveis, incompreensíveis.

(MEIRELES, 2001, p. 344-345)

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A construção da memória é feita através dos sentidos apreendidos pelo eu lírico, que

através da metáfora da flor, o conduzem às lembranças do tu. “Agora, o cheiro áspero das

flores / leva-me os olhos por dentro de suas pétalas. / Eram assim teus cabelos; / tuas pestanas

eram assim, finas e curvas”. O momento da enunciação indicado pelo adjunto adverbial de

tempo “agora” demarca o início do momento da rememoração. O cheiro, sinestesicamente,

ganha característica do que é palpável: “cheiro áspero”; o cheiro leva o eu a olhar por dentro

das pétalas, e lá, como se estivesse dentro das pétalas, ele pode enxergar os cabelos, as

pestanas; o eu encontra a lembrança do que é no presente a memória do passado. “As pedras

limosas” possuíam “a mesma exalação de água secreta, / de talos molhados, de pólen, / de

sepulcro e de ressurreição”. A “ressurreição” pode ser um indício de que a memória é, no

momento da enunciação, reavivada, como indica o título do poema. No último verso,

“incompreensíveis, incompreensíveis”, a repetição da palavra sugere que este trabalho da

memória, de trazer ao presente o passado, é inexato, fragmentado, inexplicável.

Já o poema “O tempo no jardim” retrata o olhar do eu para o passado, e este mesmo

olhar no presente da enunciação, para mostrar como a memória se apresenta:

Nestes jardins – há vinte anos – andaram os nossos

[muitos passos,

e aqueles que então éramos se contemplaram nestes lagos.

Se algum de nós avistasse o que seríamos com o tempo,

todos nós choraríamos, de mútua pena e susto imenso.

E assim nos separamos, suspirando dias futuros,

e nenhum se atreveria a desvelar seus próprios mundos.

E agora que separados vivemos o que foi vivido,

com doce amor choramos quem fomos nesse tempo antigo.

(MEIRELES, 2001, p. 487)

O eu se apresenta em sua forma plural, nós, neste olhar para o passado, e rememora com

nostalgia e certa mágoa, por estar em um presente insatisfatório, do qual “Se algum de nós

avistasse o que seríamos com o tempo, / todos nós choraríamos, de mútua pena e susto

imenso”. Na continuidade do poema podemos perceber que a construção do passado foi mais

prazerosa do que a realidade do presente. Constatamos isso nos versos: “E agora que

separados vivemos o que foi vivido, / com doce amor choramos quem fomos nesse tempo

antigo”.

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Em Vaga Música o título “Velho estilo” aparece consecutivamente por duas vezes; no

primeiro poema temos a temática da brevidade da vida e da efemeridade expressa pelo corpo,

que passa sem ser visto, sem ser notado, a não ser pelo próprio eu lírico do poema, que

acredita que um dia o corpo será “símbolo, ideia, sonho” (MEIRELES 2001, p 357). O poema

seguinte, também intitulado “Velho estilo” será lido mais atentamente, e nele há indícios de

que a memória predomina sobre o tempo que passa. Em ambos os poemas podemos observar

a temática da efemeridade. Ele é constituído de oito quadras das quais transcreverei as

seguintes:

Velho estilo

Coisa que passas, como é teu nome?

De que inconstâncias foste gerada?

Abri meus braços para alcançar-te:

fechei meus braços – não tinha nada!

De ti só resta o que se consome.

Vais para a morte? Vais para a vida?

Tua presença nalguma parte

é já sinal da tua partida.

Nestas duas primeiras estrofes podemos perceber a passagem do que é efêmero, e isto pode

nos indicar a passagem do tempo. Aquilo que passa não recebe uma definição, há somente a

indagação de seu nome. Não é possível reter aquilo que por sua essência é efêmero, por isso o

verso “de ti só resta o que se consome”, pode nos indicar o tempo presente, que se esvai a

todo instante. Outro sinal da efemeridade do tempo está os versos “tua presença nalguma

parte / é já sinal da tua partida”. Na primeira estrofe não encontramos rima, já no segundo

temos a presença de rimas no segundo e no quarto verso. A rima nesta posição da estrofe é

recorrente nas outras próximas sete estrofes do poema. Temos a repetição do verso “como é

teu nome, coisa que passas”? na quarta e na última estrofes do poema, e esta repetição pode

ser indício daquilo que Alfredo Bosi explica em O ser e o tempo da poesia (2000) sobre

repetição como arma da memória. Na repetição pode ser encontrado o desejo de recuperar,

através do signo, aquilo que foi vivido, por isso, na repetição da indagação “como é teu nome,

coisa que passas”, pode haver a tentativa de explicar, através de sua nomeação, aquilo que já

passou. As duas últimas estrofes parecem indicar certo triunfo da memória sobre a corrosão

do tempo:

No ardente nível desta experiência,

sem rogo, lágrima nem protesto,

tudo se apaga, preso em sigilos:

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mas no desenho do último gesto,

há mãos de amor para a tua ausência.

e esse é o vestígio que não se some:

resto de todos, teu próprio resto.

- coisa que passas, como é teu nome?

(MEIRELES, 2001, p.357-358)

“Tudo se apaga, preso em sigilos” precede a adversativa “mas”, o que indica que o tudo não

foi completamente tudo; dentre aquilo que foi apagado resiste o que não se apaga. Os restos,

os resquícios da memória, os vestígios do passado em meio àquilo que se apaga, é o que fica,

recuperado pelo amor, se fazendo presente ao momento da enunciação. No final de ambos os

poemas temos a constatação de que mesmo havendo o apagamento, há algo maior que um dia

trará de volta ao presente aquilo que se foi. Talvez o título empregado nos dois poemas possa

ser interpretado como uma recorrência, uma velha forma de se perder e recuperar algo através

da memória.

As observações acima apresentadas demonstram que os elementos comuns aos poemas

de Vaga Música são o deslocamento do eu na natureza, o sentir-se alheio ao mundo e às

coisas ao redor, a busca pelo objeto perdido, a força do transitório e a forma como a memória

trabalha em busca do tempo ido.

3.5 – MAR ABSOLUTO – A EFEMERDADE DOS INSTANTES

Mar Absoluto e Outros Poemas foi publicado no ano de 1945 e é dividido em outras

três partes: “Mar Absoluto”, “Os dias felizes” e “Elegia”. De acordo com Eliane Zagury em

Cecília Meireles (1973), essas duas partes anexadas a “Mar Absoluto” estão fora de contexto,

pois fogem da carga de misticismo e simbologia até então presentes nas obras cecilianas.

Entretanto, sua colocação ao final do livro ajuda a formar uma ponte que permite um melhor

entendimento de Retrato Natural (1949), próximo livro da poeta. Enquanto “Mar Absoluto” é

composto por cento e três poemas, “Os dias felizes” contém dezessete, e “Elegia” apenas oito

poemas. Os poemas escolhidos para serem estudados são os da primeira parte, pois possuem

maior relação com Viagem e Vaga Música. Assim como Vaga Música, em “Mar Absoluto”

também encontramos os elementos marítimos, com a presença de oceanos, caracóis, águas

borbulhantes – metáforas que nos remetem à transitoriedade da vida, sua efemeridade e sua

fluidez. Há também cinco poemas sobre “o motivo da rosa” que, de acordo com Eliane

Zagury em seu estudo, “são 5 poemas que delimitam 6 partes, em simetria não absoluta.

Cecília Meireles recria o motivo clássico da rosa-fugacidade-da-vida, inserindo-o na função

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mística da „canção‟”. (ZAGURY, 1973, p.38). Para ela, a transcendência apontada pelos

motivos da rosa trazem como símbolo da vida a beleza e a fugacidade, seria a colocação

extrema da pan-mística desenvolvida nesta fase da poesia ceciliana.

Iniciaremos o estudo dessa parte mostrando a constituição do eu lírico presente no

primeiro poema, “Mar absoluto”, e em “Constância do deserto”; em seguida observaremos a

ausência de lugares e pessoas presente no poema “Nós e as sombras” e, por fim, analisaremos

dois poemas, “O tempo no jardim” e “Aparecimento”, que possuem o tempo e a memória

como foco.

O poema que abre a primeira parte e dá título ao livro reverbera a repetição em sua

nomeação: “Mar Absoluto” pode indicar uma tentativa de aproximação entre o mar e o eu

lírico. Ele é composto por vinte estrofes de versos livres, que mostram as características do

mar e as semelhanças que o eu lírico apresenta com relação a ele. Transcreverei algumas

estrofes a fim de exemplificar tal comparação.

Logo no início do poema, o eu lírico se refere a seus antepassados: “E o rosto de meus

avós estava caído” (...) “Então, é comigo que falam, / sou eu que devo ir. / Porque não há mais

ninguém, / não, não haverá mais ninguém / tão decidido a amar e a obedecer seus mortos. // E

tenho de procurar meus tios remotos afogados”. Além de se referir a seus mortos, parece

haver interação entre eles, o eu lírico parece obedecer a eles. A relação entre o eu lírico e os

seus familiares póstumos é similar à relação que a autora tinha com os seus parentes. De

acordo com Sanches Neto (2001), em Mar Absoluto, a poeta procura um solilóquio

memorialístico com as águas, pois, de acordo com ele, o mar é para ela a região de convívio

com os seus familiares remotos, fazendo do encontro com eles uma recuperação, através dos

mecanismos de sugestão, de todo um tempo morto. O eu lírico parece se preocupar com o

estado em que se encontram seus antepassados, dedicando-lhes rezas e velas. Nos versos

transcritos abaixo percebemos a influência que os mortos exercem sobre o eu lírico, fazendo

com que se apresse a executar o que pedem. Há no verso “E apressam-me, e não me deixam

sequer mirar a rosa dos ventos” indícios de que os mortos se dirigem ao eu lírico. Entre as

aspas, podemos perceber a fala dos antepassados, talvez dando instruções de como se

comportar para se integrar ao mar:

E fico tonta,

acordada de repente nas praias tumultuosas.

E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa dos ventos.

“Para adiante! Pelo mar largo!

Livrando o corpo da lição frágil da areia!

Ao mar! – Disciplina humana para a empresa da vida!”

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Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.

A solidez da terra, monótona,

Parece-nos fraca ilusão.

Queremos a ilusão grande do mar,

multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,

uma solidão para todos os lados,

uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,

e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O verso “livrando o corpo da lição frágil da areia”, que vem entre aspas, pode ser interpretado

como uma ordem para o desprendimento das coisas mundanas para tomar a feição daquilo

que é fluido como o mar. Isso pode se confirmar no verso seguinte “Ao mar! – Disciplina

humana para a empresa da vida!”, fala que pode ser atribuída aos familiares falecidos. A

próxima estrofe transcrita acima sugere a superioridade do mar “queremos a ilusão grande do

mar” em comparação com a inferioridade da terra “a solidez da terra, monótona, / parece-nos

fraca ilusão”. A estrofe seguinte indica o que o eu lírico parece querer com essa aproximação

com o mar: “queremos a sua solidão robusta, / uma solidão para todos os lados, / uma

ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo”. O verbo “querer” pode

indicar que o eu lírico almeja o mesmo que as “vozes poderosas”; seus próprios antepassados,

que querem “a ilusão grande do mar” e “a sua solidão robusta”. Nesta estrofe podemos

perceber também a ausência constitutiva do eu lírico, que se refugia do formigar do mundo

em seu próprio alheamento. Nos versos seguintes veremos a personificação do mar:

O mar é só mar, desprovido de apegos,

matando-se e recuperando-se,

correndo como um touro azul por sua própria sombra,

e arremetendo com bravura contra ninguém,

e sendo depois a pura sombra de si mesmo,

por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,

ele que, ao mesmo tempo,

é o dançarino e a sua dança.

O mar é desprovido de apegos, mata-se e recupera-se, traça ele mesmo seu próprio caminho,

sem precisar do destino fixo da terra, “ele que, ao mesmo tempo, / é o dançarino e a sua

dança”. Talvez seja este o movimento que o eu lírico deseja dar à sua própria vida, talvez ele

queira traçar o seu próprio caminho e se conduzir por ele, sem se deixar guiar por outros

passos, outros modos de ser. O eu lírico escuta o mar e o admira:

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Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:

água de todas as possibilidades,

mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.

atira-me búzios, como lembranças de sua voz,

e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,

nem por dentro de si:

mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.

Não me quer arrastar como meus tios outrora,

nem lentamente conduzida,

como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:

plástica, fluida, disponível,

igual a ele, em constante solilóquio,

sem exigências de princípio e fim,

desprendida de terra e céu.

(...)

(MEIRELES, 2001, p. 448-451)

No verso “mas sem fraqueza nenhuma” observamos uma característica do mar e,

como o eu lírico deseja se converter no próprio mar, talvez possamos presumir que tal

característica se aplica também a ele. Nos versos “não me chama para que siga por cima dele,

/ nem por dentro de si: / mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom”,

percebemos que o eu lírico não se satisfaz somente por se assemelhar ao mar, ele deseja ser o

mar, deseja se converter a ele, tomar a essência do mar como sua essência. Há uma

comparação entre a aceitação do mar com as influências que seus parentes aparentemente

desejavam exercer sobre ele: “Não me quer arrastar como meus tios de outrora, / nem

lentamente conduzida, / como meus avós, de serenos olhos certeiros”. Ele traz para a

enunciação os seus tios e avós, que queriam traçar seu caminho, queriam conduzi-lo, e, em

contraposição aos antepassados, ele apresenta o desprendimento do mar, que o aceita

convertido em sua própria natureza, que elenca “plástica, fluida, disponível, / igual a ele, em

constante solilóquio, / sem exigências de princípio e fim, / desprendida de terra e céu”.

No final do poema, o eu lírico falará de si, retificando as impressões anteriores a

respeito do mar: “plástica, fluida, disponível / igual a ele, em constante solilóquio, / sem

exigências de princípio e fim, / desprendida de terra e céu.”.

O eu lírico suspeita ter se enganado com relação aos seus parentes e com relação ao

mar ao qual eles o mandavam. Os antepassados, que aparentemente possuíam uma grande

similaridade com ele, buscando a ilusão grande do mar, sua solidão robusta e a ausência

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humana, por fim se apresentam como aqueles que querem arrastar, conduzir o eu lírico. Já o

mar o aceita apenas. Em suas recordações encontra tudo “sobre-humano” e o mar se mostra

em uma face espantosa. Suspeita que o mar “Não é apenas este mar que reboa nas minhas

vidraças, / mas outro, que se parece com ele”, um outro mar, o “Mar Absoluto”, que pode

simbolicamente ser visto como um mar metafísico.

Ainda tratando do eu lírico, em “Mar Absoluto”, o poema “Constância do deserto” nos

apresenta sua constituição, descrevendo como as ausências foram se formando e a partir de

que época foi percebendo sua própria constituição; o eu lírico demonstra na metáfora do

deserto a matéria da qual ele é formado. Podemos observar aqui, que ele não toma o mar

como referência para se descrever; a metáfora praia e areia se transmudam em deserto, mas

nos versos finais há recorrência do verbo “navegar”, o que pode indicar a imensidão na qual

está imerso:

Constância do deserto

Em praias de indiferença

navega o meu coração.

Venho desde a adolescência

na mesma navegação.

- Por que mar de tanta ausência,

e areias brancas de tão

despovoada inconsistência,

de penúria e de aflição?

(Triste saudade que pensa

entre a resposta e a intenção!)

Números de grande urgência

gritam pela exatidão:

mas a areia branca e imensa

toda é desagregação!

Em praias de indiferença

navega meu coração.

Impossível, permanência.

Impossível, direção.

E assim por toda a existência

navegar navegarão

os que têm por toda a ciência

desencanto e devoção.

(MEIRELES, 2001, p.548)

“Constância do deserto” é marcado por rimas alternadas em uma única estrofe de vinte e dois

versos, em redondilha maior. Já no primeiro verso temos a metáfora do coração, que

geralmente é usada para designar os sentimentos, as emoções, o que não se pode controlar

racionalmente. O eu lírico se reconhece navegando “no mar da indiferença” desde a

adolescência. Este mar, também é lugar que abriga a ausência sentida, que causa penúria e

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aflição. A areia pode ser tida como símbolo de desagregação, do que se desfaz com facilidade.

A recorrência dos versos “em praias de indiferença / navega meu coração” parece afirmar que

os sentimentos não têm nenhum valor para o mundo. Isto pode ser confirmado pelos dois

últimos versos do poema que nos leva a pensar que aqueles que não se deixam seduzir pelo

mundo continuarão navegando por toda a existência neste mar de indiferença: “os que têm por

toda a ciência / desencanto e devoção”.

Também em Mar Absoluto encontramos a memória da ausência representada pela

menção à ausência de lugares, de pessoas. O passado que se foi há muito tempo é o que

compõe a memória do eu poético em “Nós e as sombras”, refletindo no presente enunciativo

algumas dúvidas. Podemos fazer uma breve analogia entre “Nós e as sombras” e o Mito da

caverna, de Platão. É um poema composto por quatro quintilhas de versos livres que rimam

somente nos dois últimos versos de cada estrofe, sendo brancos os demais:

Nós e as sombras

E em redor da mesa, nós, viventes,

comíamos, e falávamos, naquela noite estrangeira,

e nossas sombras pelas paredes

moviam-se, aconchegadas como nós,

e gesticulavam, sem voz.

Éramos duplos, éramos tríplices, éramos trêmulos,

à luz dos bicos de acetileno,

pelas paredes seculares, densas, frias,

e vagamente monumentais.

Mais do que as sombras éramos irreais.

Sabíamos que a noite era um jardim de neve e lobos.

E gostávamos de estar vivos, entre vinhos e brasas,

muito longe do mundo,

de todas as presenças vãs,

envoltos em ternura e lãs.

Até hoje pergunto pelo singular destino

das sombras que se moveram juntas, pelas mesmas paredes...

Oh, as sem saudades, sem pedidos, sem respostas...

Tão fluidas! Enlaçando-se e perdendo-se pelo ar...

Sem olhos para chorar...

(MEIRELES, 2001, p.557-558)

As paredes, as sombras, as pessoas representadas pelo pronome “nós”, ficaram em um

passado remoto, em um lugar distante de toda realidade que poderia ser vivida naquele

momento rememorado. Essa distância, que está representada nos versos “muito longe do

mundo, / de todas as presenças vãs / envoltos em ternuras e lãs”, é repleta de encanto, e

permite confirmar o gosto do eu lírico em ser ou estar distante e ausente do mundo. O último

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verso da segunda quintilha – “mais do que as sombras éramos irreais” – permite pensar de que

matéria o “nós” era feito. A sombra é reflexo imaterial de algum objeto material, e, se mais do

que as sombras, o sujeito da frase “nós” se coloca como irreal, isso permite deduzir que o

objeto “nós” é algo tão imaterial ou mais imaterial do que a sombra que reflete o objeto “nós”

na parede. Esta matéria que dava vida ao sujeito “nós” parece ser confirmada pelo segundo

verso da terceira quintilha “e gostávamos de estar vivos, entre vinhos e brasas”. As reticências

que finalizam os quatro últimos versos parecem dar continuidade à ausência de resposta para

os questionamentos do eu lírico, além de permitir um mergulho mais profundo em uma

memória importante. A memória que o eu lírico apresenta é a memória das sombras, é a

sombra imortalizada que multiplica as pessoas em “duplos e tríplices”, e porque são sombras,

não há lamentos na última estrofe.

Podemos fazer uma analogia entre esse poema e o Mito da Caverna, de Platão, que se

encontra no Diálogo A República e é proferido por Sócrates. Este texto trata de um grupo de

pessoas que viviam aprisionadas em uma caverna sem poderem movimentar seus pescoços, de

forma que só podiam ver a parte da caverna que refletia o que a claridade do exterior

proporcionava. No exterior passavam homens carregando estátuas trabalhadas em madeira

representando diversos tipos de coisas, e dentro da caverna os homens podiam ver as sombras

dessas coisas e podiam ouvir o barulho que os carregadores faziam. Dessa forma, os

prisioneiros pensavam que as sombras que viam, que eram cópias imperfeitas de objetos reais,

correspondiam à realidade, já que nunca viram nada diferente daquilo. Achavam também que

o eco das vozes que ouviam correspondia às vozes reais. Supondo que um conseguisse sair e

com alguma dificuldade compreendesse a realidade que via ao seu redor, provavelmente teria

o desejo de retornar para contar aos seus companheiros, estes habituados à ignorância das

sombras, provavelmente desprezariam o que conseguiu compreender a realidade. A analogia

do mito com o poema “Nós e as sombras” está nos indícios de que o eu lírico se enquadra em

uma ilusão ainda maior do que as sombras, em uma realidade enganosa, por isso não real, eles

estariam vivendo em uma utopia, em um mundo de fantasia e não um mundo concreto, da

mesma forma que os prisioneiros da caverna. Os versos “E gostávamos de estar vivos, entre

vinhos e brasas, / muito longe do mundo, / de todas as presenças vãs, / envoltos em ternuras e

lãs.” intensifica esta ideia. Os versos “Até hoje pergunto pelo singular destino / das sombras

que se moveram juntas, pelas mesmas paredes...” dão margem para pensarmos que talvez o eu

lírico possa ter “saído da caverna” – da mesma forma que o homem que conseguiu escapar da

prisão da caverna – e possa ter visto a luz e, assim esclarecido, se questiona sobre o estado

daqueles que lá se encontram. A última estrofe do poema marca a diferença entre dois

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tempos: o da enunciação e o da rememoração do passado; e também distingue as sombras,

presas num tempo sem sofrimento, do eu-lírico subitamente expresso em primeira pessoa do

singular.

Já o poema “O tempo no jardim” retrata o olhar do eu para o passado, e este mesmo

olhar no presente da enunciação, para mostrar como a memória se apresenta:

Nestes jardins – há vinte anos – andaram os nossos muitos passos,

e aqueles que então éramos se contemplaram nestes lagos.

Se algum de nós avistasse o que seríamos com o tempo,

todos nós choraríamos, de mútua pena e susto imenso.

E assim nos separamos, suspirando dias futuros,

e nenhum se atreveria a desvelar seus próprios mundos.

E agora que separados vivemos o que foi vivido,

com doce amor choramos quem fomos nesse tempo antigo.

(MEIRELES, 2001, p. 487)

Como no poema anteriormente apresentado, em “O tempo no jardim” também o eu se

apresenta em sua forma plural, nós, neste olhar para o passado, o qual rememora com

nostalgia e certa mágoa, por estar em um presente aparentemente insatisfatório, como assinala

os versos: “se algum de nós avistasse o que seríamos com o tempo, / todos nós choraríamos,

de mútua pena e susto imenso”. Na continuidade do poema podemos perceber que a

construção do passado foi mais prazerosa do que a realidade do presente: “E agora que

separados vivemos o que foi vivido, / com doce amor choramos quem fomos nesse tempo

antigo”. “Nós e as sombras” e “O tempo no jardim” possuem o olhar voltado para o passado,

rememorando fatos, formas e sentimentos que no momento da enunciação se evidenciam,

tanto para trazer alegria como certa melancolia do que foi vivenciado em grupo.

Tratando ainda da memória, o poema “Aparecimento” demarca a passagem do tempo

que traz a imaginação do prolongamento da presença. O eu lírico conta com os sonhos

interrompidos para fazer ressurgir a presença esperada.

Aparecimento

Divide-se a noite, para que me apareças

e prolongues tua presença entre sonhos cortados.

Vejo o céu que ao longe caminha.

As montanhas respiram a luz das estrelas,

e, na ausência dos homens,

o caule do tempo sobe com felicidade.

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Sobre a noite que resvala,

conservo-te imóvel entre meus olhos e a vida.

Penso todos os pensamentos,

e nenhum me auxilia.

E escuto sem querer as lágrimas

que germinam sozinhas,

e seguem sozinhas um subterrâneo curso.

Ah, meu sorriso morreu, por tristezas antigas.

Como te hei de receber em dia tão posterior?

(MEIRELES, 2001, 539-340)

A ausência do ser amado é percebida já nos versos iniciais: “Divide-se a noite, para que me

apareças / e prolongues tua presença entre os sonhos cortados”. O “aparecimento” que

originou o título do poema parece fazer referência à lembrança de alguém que já não se

encontra junto do eu poético. O verso “vejo o céu que ao longe caminha” parece transmitir o

sentimento de distância entre o momento da enunciação e o instante do momento que foi um

dia vivenciado. A memória do eu poético parece manter-se inabalável na tentativa de

sustentar o tempo passado guardado na memória do presente. Encontramos resquícios dessa

memória nos versos “conservo-te imóvel entre meus olhos e a vida”. Podemos constatar parte

de uma grande solidão nos versos “e escuto sem querer as lágrimas / que germinam sozinhas,

/ e seguem sozinhas um subterrâneo curso”. O dia posterior ao sonho do aparecimento traz a

reflexão de como conviver com a ausência à luz do dia: “Ah, meu sorriso morreu, por

tristezas antigas. / Como te hei de receber em dia tão posterior?”.

Na primeira parte de Mar Absoluto e Outros Poemas pudemos observar a partir de

quais elementos metafóricos o eu poético é constituído; do mar, com suas ilusões e solidão,

“desprovido de apegos, matando-se e recuperando-se”, sem o destino fixo da terra; do deserto,

com suas praias de indiferença e o mar de ausência. Também encontramos a memória da

ausência representada por sombras e sonhos.

3.7 – SOLOMBRA – ESCURIDÃO E LUZ

Solombra é o último livro de poesia lírica publicado por Cecília Meireles, pouco

tempo antes de sua morte. É composto por vinte e oito poemas não intitulados, que podem ser

lido aleatoriamente, pois cada poema possui características independentes, ou pode ser lido

em sequência, apresentando dessa forma a possibilidade de diálogo temático entre os poemas.

A estrutura de todos os poemas de Solombra são quatro tercetos e um verso solto no final, o

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estrambote. Eles são construídos sob a forma de versos alexandrinos e como nos aponta João

Adolfo Hansen (2007), nos 5º, 8º e 25º poemas os versos são decassílabos.

Os temas tratados em Viagem, Vaga Música e Mar Absoluto são encontrados em

Solombra, porém, Darcy Damasceno, que identifica o começo da mudança em certos aspectos

na poesia ceciliana a partir de Mar Absoluto, afirma que a obra de Cecília irá modificar-se no

sentido de uma depuração do envolvimento sensorial. Os traços que caracterizam este novo

movimento poético seriam: o culto da beleza imaterial, a preferência pela abstração, o

desapego do ambiente real, a dissimulação do lirismo, a predominância de motivos musicais e

pictóricos. Verifica-se então a desvinculação do sensível para a fixação no intelectual. Nas

palavras de Darcy Damasceno: “A realidade exterior, que sempre oferecera a Cecília Meireles

os elementos de sustentação metafórica, foi quase banida de Solombra, dando lugar a uma

dolorosa reflexão que se eleva em cântico de aspiração à eternidade” (DAMASCENO, 1967,

p.137). O ponto máximo da depuração sensorial é, portanto, Solombra, cuja linguagem torna-

se mais abstrata, refinando a elaboração imagística e assim aprofundando seus temas centrais,

assim elencados pelo crítico:

(...) a consideração do mundo em fluxo contínuo, a casualidade da existência e sua

sem-razão de ser; a aceitação melancólica da condição humana; a sobrevivência,

precária, pelo canto; a ânsia de encontrar resposta às indagações transcendentais; o

alheamento da vida e a imersão no sonho ultraterreno; a expressão do arrebatamento

e êxtase místico. (DAMASCENO, 1967, p. 138)

Iniciaremos Solombra partindo do primeiro poema que abre o livro “Vens sobre noites

sempre. E onde vives? Que flama”, que trata do tema da ausência. Em seguida, com o poema

“Sobre um passo de luz outro passo de sombra” veremos como a memória do eu lírico é

construída a partir da tensão existente entre a memória e a imaginação e, logo após,

analisaremos o poema “Há mil rostos na Terra: e agora não consigo”, buscando os mesmos

efeitos desta tensão. Já no poema “Dizei vosso nome! Acendei vossa ausência”, observaremos

a construção do tempo na poética de Solombra, neste caso, o olhar do eu lírico para o passado.

E em “Se agora me esquecer, nada que a vista alcança”, observaremos a questão do

esquecimento, de acordo com a teoria sobre o apagamento do rastro, apresentada por Paul

Ricoeur.

O primeiro poema que abre o livro traz no elemento da água o poder de levar todos

encontros para a ausência. João Adolfo Hansen explica em seu ensaio sobre Solombra que a

ausência seria o cume ao qual os poemas chegam.

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Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama

pousa enigmas de olhar como, entre céus antigos,

um outro Sol descendo horizontes marinhos?

Jamais se pode ver teu rosto, separado

de tudo: mundo estranho a estas festas humanas,

onde as palavras são conchas secas, bradando

a vida, a vida, a vida! e sendo apenas cinza.

E sendo apenas longe. E sendo apenas essa

memória indefinida e inconsolável. Pousa

teu nome aqui, na fina pedra do silêncio,

no ar que frequento, de caminhos extasiados,

na água que leva cada encontro para a ausência

com amorosa melancolia.

(MEIRELES, 2001, p,1263)

Podemos perceber que neste poema ocorre o cavalgamento (enjambement), que

consiste na separação dos versos em discordância com a sintaxe, pela separação de palavras

estreitamente unidas em um grupo fônico. O enjambement ocorre tanto entre versos de uma

mesma estrofe quanto entre diferentes estrofes. O primeiro verso do poema é uma afirmativa

“vens sobre noites sempre” separado por uma cesura que precede à interrogativa “e onde

vives?”. Essa afirmativa precedida pela dúvida pode sugerir que ao longo de toda leitura o

leitor se deparará com o constante não saber imerso a um terreno que pode parecer palpável.

O tu a quem o eu lírico se dirige é uma incógnita, mas, de acordo com a análise feita por João

Adolfo Hansen, esse tu corresponde à “memória indefinida e inconsolável”, que vem

assombrar o eu. De acordo com o crítico, neste momento o eu enuncia que a matéria de sua

poesia é a memória do que está morto. Além deste aspecto do tu, de acordo com Hansen, há

ainda uma cena básica encontrada em todos os poemas de Solombra, a da enunciação

organizada no tempo presente do aqui-agora da leitura, de onde o eu lírico constitui um “lá”

no tempo passado como tempo de uma experiência de amor e beleza idos. A palavra enigma

aparece nesta primeira estrofe precedendo “céus antigos” e “um outro Sol descendo

horizontes marinhos”, o que pode insinuar o enigma que circunda o universo antigo do

passado e continua a circundar o universo do presente, já que “um outro Sol descendo” está

no gerúndio.

Na terceira estrofe o verso “a vida, a vida, a vida! e sendo apenas cinza” sugere uma

falta de vibração, de alegria na vida, que ganha metaforicamente a cor cinza. Os termos

“apenas longe” e “memória indefinida e inconsolável” podem remeter ao “lá” que Hansen

explica como sendo o tempo passado, tempo de experiência e amor idos. A pedra aparece no

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verso “pousa // teu nome aqui, na fina pedra do silêncio” precedendo o termo abstrato

“silêncio”.

Darcy Damasceno explica a respeito de Solombra que é justamente a preposição “de”

que liga comparativamente o termo concreto, no caso a pedra, à noção do abstrato. Dessa

forma, o elemento concreto entra metaforicamente no poema para reforçar a noção abstrata

deste. Damasceno exemplifica com as noções abstratas presentes em outros poemas “‟chão de

adeuses‟, „superfícies de adeuses‟, „campos de ausências‟, „rios de espanto‟ (...)”

(DAMASCENO, 1967, p.138). A água, como elemento fluido, possui a função de conduzir

todos os encontros para a ausência: “na água que leva cada encontro para a ausência”. A

ausência, neste verso, não está solta, mas sim ligada a um adjunto adverbial de lugar “para a

ausência”, o que pode significar que este é o lugar onde desemboca cada encontro levado pela

água. O cenário marítimo está presente na primeira estrofe: “um outro sol descendo

horizontes marinhos”, em que o crepúsculo pode também remeter à ausência.

A construção da memória em Solombra, de acordo com Hansen, é significada a partir

da imaginação. No vigésimo primeiro poema de Solombra – “Sobre um passo de luz outro

passo de sombra” (MEIRELES, 2001, p.1277) –, temos versos que podem ser compreendidos

como a construção da memória sob os signos de vários fragmentos emergidos por ela:

Sobre um passo de luz outro passo de sombra.

Era belo não vir; ter chegado era belo.

E ainda é belo sentir a formação da ausência.

Nada foi projetado e tudo acontecido.

Movo-me em solidão, presente sendo alheia,

com portas por abrir e a memória acordada.

A acordada memória! esta planta crescente

com mil imagens pela seiva resvalantes,

na noite vegetal que é a mesma noite humana.

Vejo-me longe e perto, em meus nítidos moldes,

em tantas viagens, tantos rumos prisioneira,

a construir o instante em que direi teu nome!

Que labirintos bebem meu rosto?

(MEIRELES, 2001, p.1277)

“Sobre um passo de luz outro passo de sombra” é construído a partir de oposições, como é o

caso de luz/sombra, presente/alheia, longe/perto, entre outros termos. Neste poema temos uma

metáfora em que a memória é descrita como uma planta que cresce “com mil imagens”, e que

é ativa e fragmentada. Essas mil imagens podem ser interpretadas como a impossibilidade de

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a memória se fixar, pois é lacunar, fragmentária. Os tempos verbais se misturam no decorrer

do poema indicando mudança; no início temos o tempo passado “era belo não vir...”, e em

seguida o presente “e ainda é belo sentir a formação da ausência” e em seguida temos a

construção do futuro “a construir o instante em que direi teu nome”. E o último verso “Que

labirintos bebem meu rosto?”, traz a relação final do labirinto que se une à memória, que é,

por ela mesma, labiríntica.

Temos também nos versos de “Há mil rostos na Terra: e agora não consigo”, um

exemplo que comprova o que o João Adolfo Hansen propõe a respeito da tensão existente

entre a memória e a imaginação, e é até mesmo o que ele usa para elucidar tal questão:

Há mil rostos na Terra: e agora não consigo

recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te?

Só vejo o que não vejo e que não sei se existe.

Esperamos assim. Por esperança, a espera

vai-se tornando sonho afável; mas descubro

no olhar que te procura uma névoa de orvalho.

Qualquer palavra que te diga é sem sentido.

Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.

Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo.

Lá, constante presença em memória guardada,

percebo a tua essência – e não sei nem teu nome.

E à tentação de tantas máscaras felizes

se opõe meu leal, nítido sangue.

(MEIRELES, 2001, p. 1264)

Neste poema temos a dúvida expressa pelo próprio eu lírico, dúvida se o que procura possui

um rosto, uma forma, ou é inventado. No verso “só vejo o que não vejo e que não se se

existe” temos uma antítese formada pela afirmativa de ver precedendo a negativa de não ver.

A repetição do verbo esperar e do seu cognato esperança, na segunda estrofe, pode sugerir que

o eu lírico nutre uma expectativa de desvendar o tu, talvez de encontrá-lo. Nos versos “Lá,

constante presença em memória guardada, / percebo a tua essência – e não sei nem teu nome”

podemos presumir que existia alguém, em algum lugar, talvez em outro “mundo”, uma

presença que se fixou pela constância, mas que no momento da enunciação se torna um

mistério, pois nem mesmo o seu nome é revelado ao eu. Este “lá” pode ser entendido como o

“lá” que Hansen nos apresenta, o lá que guarda o passado amado, distante e ausente. Nos dois

últimos versos, há oposição semântica em “máscaras felizes”, e “leal, nítido sangue”.

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Podemos perceber que o eu lírico prefere estar neste lugar não nomeado no poema do que

conviver com as “máscaras felizes”. Nos versos “quem me vê não me vê, que estou fora do

mundo” encontramos a distância que o eu lírico apresenta com relação ao mundo, essa mesma

distância que encontramos nos versos de “Excursão”, de Viagem: “Estou longe e fora das

horas / sem saber em que consiste / nem o que vai nem o que volta... / sem estar alegre nem

triste”.

Já no poema “Dizei vosso nome! Acendei vossa ausência” o eu lírico se dirige ao tu

questionando sobre o passado. O nome do tu esclareceria a ausência:

Dizei-me vosso nome! Acendei vossa ausência!

Contai-me o vosso tempo e o coração que tínheis!

De que matéria é feito o passado infrutífero?

Que lírico arquiteto arma longos compassos

para a curva celeste a que os homens se negam?

Dizei-me onde é que estais, em que frágil crepúsculo!

Minha pena é maior que o silêncio da vida.

Não sei se tudo entendo: e nada mais pergunto.

Assisto – amarga: recordando-me e esquecendo-me.

Quem fostes vós? Quem sois? Quem vimos, nos lugares

da vossa antiga sombra? E por quem procuramos?

Que pretendem concluir impossíveis diálogos?

Longe passamos. Todos sozinhos.

(MEIRELES, 2001, p. 1279).

Este passado que pode ser feito dos frutos da imaginação é tido como infrutífero,

talvez por ser inútil para trazer novamente aquele/aquilo que está perdido, ou que é

desconhecido. Os versos “dizei-me vosso nome! Acendei vossa ausência!” sugerem essa

esperança de reviver o perdido a partir do contato com o tu no presente da enunciação. O

“lírico arquiteto que arma longos compassos / para a curva celeste a que os homens se

negam”, da segunda estrofe, pode ser uma referência ao Ser Supremo que Leila V. B. explica

que aparece com certa recorrência na poesia ceciliana. A imagem do crepúsculo aparece

novamente aqui “Dizei-me onde é que estais, em que frágil crepúsculo”, como no poema

“Vens sobre noites sempre. E onde vives? Que flama / pousa enigmas de olhar como, entre

céus antigos, / um outro Sol descendo horizontes marinhos?”, trazendo novamente o lugar

labiríntico de uma memória que não atende ao apelo do eu. Na continuidade do mesmo

poema, na terceira estrofe o sofrimento se faz maior do que o silêncio, o silêncio da vida que

não traz respostas, e sim, a vontade de não ser, de não saber, só observar, recordando e

esquecendo. Na quarta estrofe o eu se dirige ao tu questionando quem é, de onde veio, quem

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viram, nos lugares de sua antiga sombra. O eu se junta ao tu como se fossem antigos

companheiros, que até mesmo procuravam por algo, “E por quem procuramos?” mesmo sem

saber quem é o tu. O poema é finalizado com o verso “Longe passamos. Todos sozinhos”,

verso que é quebrado ao meio pelo ponto, que também é menor que os demais, sugerindo que

a distância e a solidão imperam sobre o “eu”. Aqui o eu não está mais em primeira pessoa

questionando a respeito do tu como no primeiro verso “Dizei-me vosso nome! Acendei vossa

ausência”, mas sim em forma plural “Longe passamos. Todos sozinhos”. Talvez isso possa

sugerir que mesmo que pareça que o eu possui alguma relação com o tu, que de alguma forma

ele não seja mais singular e sim plural, no final, todos estão sós, passando ao longe como em

uma imagem de uma rua com vários transeuntes que não se conhecem.

No poema “Se agora me esquecer, nada que a vista alcança”, a ausência se relaciona

ao esquecimento:

Se agora me esquecer, nada que a vista alcança

parecerá mudado. E a sombra, exata e móvel,

seguirá com sossego o caminho dos vivos.

A noite selará com minúcia meus olhos

e à cinza de meu rosto o mais agudo sonho

vestígio não trará dos derrotados mitos.

No meu dia seguinte encontrareis aquela

Consequência de ser clarividente e pronta

- livre continuação de destinos antigos.

(Ah, mas se eu te esquecer ficará pelo mundo,

morto e desenterrado, um vago prisioneiro,

entregue à dúbia lei dos seus cinco sentidos!

Amarga morte: suposta vida...)

(MEIRELES, 2001, p.1275)

A primeira estrofe já enquadra a questão do esquecimento, sendo algo esquecido, não

há possibilidade de retorno consciente a esse algo, pois se ele foi esquecido, não há lembrança

dele, não se pode recuperá-lo. Por isso os versos: “Se agora me esquecer, nada que a vista

alcança / parecerá mudado”. E em sua continuidade: “E a sombra, exata e móvel, / seguirá

com sossego o caminho dos vivos”. Se não há consciência de que se esqueceu, a vida

continua em sua normalidade. Aqui podemos pensar no esquecimento como apagamento do

rastro mnésico, apresentado por Paul Ricoeur, pois o poema não sugere qualquer forma de

lembrança. Na penúltima estrofe temos no verso: “ah, mas se eu te esquecer...” uma sugestão

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de que o esquecimento pode apagar completamente os rastros. A continuidade da estrofe “ah,

mas se eu te esquecer ficará pelo mundo, / morto e desenterrado, um vago prisioneiro, /

entregue à dúbia lei dos seus cinco sentidos” sugere que o tu só possui importância para o eu

lírico, é como se sua existência só fosse possível porque o eu o reconhece. Se o esquecimento

acontecer, o tu não terá vida e se tornará prisioneiro de si mesmo. O último verso – “Amarga

morte: suposta vida...” – finaliza o poema sugerindo que a morte pode ser amarga se não

houver quem se lembre daquele que morreu, enquanto a suposta vida continua para aquele

que fica vivo. As reticências aparecem finalizando somente este poema de Solombra, o que

abre espaço par interpretar que além da morte amarga e da suposta vida existem várias

possibilidades de continuação, a morte pode não ser o fim, enquanto a vida pode

supostamente ser o fim.

Solombra, com seus vinte e oito poemas, apresenta em seus temas a efemeridade, a

transitoriedade, a brevidade da vida, o sentimento de ausência e distância, a temporalidade, o

retorno ao passado, às memórias e a busca pela identidade; mesmos temas recorrentes em

Viagem, Vaga Música e Mar Absoluto. Porém, podemos perceber em Solombra, uma forma

de escrita mais abstrata, ainda mais metafórica que os livros anteriormente estudados. A

forma com que o eu poético trabalha a memória é ainda mais enigmática, pois essa memória é

tensionada com a ficção, com a imaginação.

3.7 – AS TEMÁTICAS RECORRENTES

A leitura dos quatro livros propostos nesta pesquisa mostrou que a temática da

ausência desenvolve-se nos poemas relacionando-se à busca pelos lugares e situações vividas.

Essas e outras ligações temáticas colaboraram para a produção de uma poética reconhecida

por sua singularidade por variados críticos, como expusemos nos quatro livros aqui estudados,

que também trazem fortes traços memorialísticos relacionados à temática da ausência.

No poema “Perspectiva”, de Viagem, por exemplo, há o tema da ausência em relação

ao ser amado, em que o eu poético se dirige a um tu que passou por sua vida há tempos: “tua

passagem se fez por distâncias antigas”, onde percebemos que o eu não está presente. Em

Vaga Música temos o mesmo tema presente no poema “Canções do mundo acabado”:

“certamente não há nada / de ti, sobre este horizonte, / desde que ficaste ausente”, porém,

nesta ausência o eu lírico enxerga o tu em sua frente, mesmo sabendo que ele não está lá:

“mas é isso que me mata: / sentir que estás não sei onde, / mas sempre na minha frente”. Já

em Mar Absoluto o tema da ausência aparece no primeiro poema do livro, que também recebe

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o nome de “Mar Absoluto”; é um poema que marca a passagem dos “parentes” pela vida do

eu lírico, que no início do poema sentia aproximação ideológica com seus tios e avós, e por

isso fala por eles se dirigindo ao mar: “Queremos a sua solidão robusta, / uma solidão para

todos os lados, / uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo, / e faz

o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia”. A “ausência humana” pode ser entendida como

uma vontade de desligamento com tudo o que é humano, o transmudar-se para o que pode

estar além deste mundo. Há também neste poema o traço do alheamento do eu lírico em

relação ao mundo, a fuga do que é ordinário e o refúgio no próprio alheamento. Já em

Solombra, temos a constituição da ausência sendo formada a partir de elementos metafóricos

como luz e sombra: “Sobre um passo de luz outro passo de sombra. / Era belo não vir; ter

chegado era belo. / E ainda é belo sentir a formação da ausência”. Ainda no mesmo poema

podemos observar o alheamento do eu: “Movo-me em solidão, presente sendo alheia”; e a

formação da memória “A acordada memória! esta planta crescente / com mil imagens pela

seiva resvalantes, / na noite vegetal que é a mesma noite humana”.

Em Mar Absoluto podemos encontrar a ausência de lugares no poema “Nós e as

sombras”: “sabíamos que a noite era um jardim de neve e lobos”; de pessoas: “E em redor da

mesa, nós, viventes, / comíamos, e falávamos, / naquela noite estrangeira”. Também

encontramos o tema do distanciamento em relação ao mundo: “muito longe do mundo, / de

todas as presenças vãs”. Temos em elementos como “noite” e “mesa”, uma característica do

teor concreto presente na obra Mar Absoluto. Também em “O tempo no jardim”, de Vaga

Música, encontramos a ausência e a distância de lugares marcada nos versos “Nestes jardins –

há vinte anos – andaram os nossos / muitos passos, / e aqueles que então éramos se

contemplaram nestes lagos”. Novamente temos a presença do “jardim”, como no poema “Nós

e as sombras”, de Mar Absoluto. Porém, neste poema, o jardim delimita um lugar, enquanto

em “Nós e as sobras, o jardim é um lugar metafórico. Esta ausência intrínseca ao eu poético

ganha um aspecto diferenciado em Solombra, que em seu primeiro poema já traz a ausência

como o lugar ao qual chegam todos os encontros: “pousa // teu nome aqui, na fina pedra do

silêncio, / no ar que frequento, de caminhos extasiados, / na água que leva cada encontro para

a ausência”. O nome que o eu poético deseja conhecer parece ser tão frágil quanto a fina

pedra do silêncio. A pedra, que nos poemas de Viagem, Vaga Música e Mar Absoluto possui

um teor mais concreto, neste poema é metaforizada em um local que abriga o silêncio, o local

propício para guardar o nome que se quer conhecer.

O sentimento de alheamento do eu lírico em relação ao mundo está presente em

Viagem, no poema “Excursão”, em que o eu lírico declara estar alheio às horas e ao tempo:

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“estou longe e fora das horas / sem saber em que consiste / nem o que vai nem o que volta... /

sem estar alegre nem triste”. Este sentimento de alheamento o acompanha em vários poemas,

como em “Retrato falante”, de Vaga Música: “Minha vida foi sempre cheia / de visitas

inesperadas, / a que eu me conservo alheia, / mas com as horas desperdiçadas”. Já em

“Constância do deserto” temos na constituição do eu lírico indícios dos motivos que o

levaram ao alheamento “e assim por toda a existência / navegar navegarão / os que têm por

toda a ciência / desencanto e devoção”. Este desencanto com relação ao mundo e às coisas

que o constituem pode ser visto como um motivo que leva o eu lírico a se refugiar em seu

próprio mundo: “muito longe do mundo, / de todas as presenças vãs, / envoltos em ternura e

lãs” (“Nós e as sombras” – Mar Absoluto). Em Solombra, o alheamento do eu lírico aparece

nos versos “movo-me em solidão, presente sendo alheia, / com portas por abrir e a memória

acordada” e ainda nos versos “quem me vê não me vê, que estou fora do mundo”.

A efemeridade, um tema importante abordado pelos estudiosos de Cecília Meireles,

pode ser encontrado em vários poemas. Veremos brevemente como tal tema, que se relaciona

com a passagem do tempo, entra na constituição da memória do eu lírico. Em Viagem temos

no “Epigrama nº 2” um poema que apresenta o passar do tempo, mostrando que a felicidade é

coisa passageira: “És precária e veloz, Felicidade. / Custas a vir, e, quando vens, não te

demoras. / Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, / e, para te medir, se

inventaram as horas”. Com a passagem do tempo, no poema “Excursão”, de Viagem, o eu

lírico faz a seguinte reflexão: “Estou pensando o que pensava / nesse tempo a minha vida” ao

olhar para momentos que se enquadram no passado. No poema “Valsa”, de Viagem, o vento

traz de lugares antigos a memória do que o eu lírico viveu: “O vento trouxe de longe tantos

lugares em que estivemos, / que tornei a viver contigo enquanto o vento passava”. Temos em

“O tempo no jardim”, de Mar Absoluto, um poema que retrata o olhar do eu lírico para o

passado, de onde “Se algum de nós avistasse o que seríamos com o tempo, / todos nós

choraríamos, de mútua pena e susto imenso” e ainda “E agora que separados vivemos o que

foi vivido, / com doce amor choramos quem fomos nesse tempo antigo”. A efemeridade,

característica do que é passageiro, do que não dura por muito tempo, é evidente nos versos de

“Velho estilo”, Vaga Música: “Coisa que passas, como é teu nome? / De que inconstâncias

foste gerada?” Já em Solombra temos nos versos: “Dizei-me vosso nome! Acendei vossa

ausência! / Contai-me o vosso tempo e o coração que tínheis! / De que matéria é feito o

passado infrutífero?” um olhar que a partir do presente se dirige a um tu questionando sobre o

passado.

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Podemos registrar em alguns poemas a constituição da memória, talvez como sendo

algo escorregadio e de difícil compreensão. Em “Medida da significação”, de Viagem, temos

a memória como aquela que devora todos os reflexos: “A água da minha memória devora

todos os reflexos. // Desfizeram-se, por isso, todas as minhas presenças / e sempre se

continuarão a desfazer” desfazendo, com isso, as presenças que um dia existiram. Em Vaga

Música, no poema “Recordação”, a memória é ativada através do sentido do olfato: “Agora, o

cheiro áspero das flores / leva-me os olhos por dentro de suas pétalas”, de forma que o tu é

reconstituído na memória: “Restitui-te na minha memória, por dentro das flores / Deixa virem

teus olhos, como besouros de ônix, / tua boca de malmequer orvalhado, / e aquelas tuas mãos

dos inconsoláveis mistérios, / com suas estrelas e cruzes”. Já nos poemas de Solombra, a

construção da memória possui um aspecto ainda mais metafórico, como podemos perceber

nos versos “A acordada memória! esta planta crescente / com mil imagens pela seiva

resvalantes / na noite vegetal que é a mesma noite humana”. Temos também, em Solombra a

tensão entre a memória e a imaginação, como percebemos nos versos “Há mil rostos na Terra:

e agora não consigo /recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te? / Só vejo o que não vejo e

que não sei se existe.”.

Em Viagem o eu lírico volta ao passado procurando pelo tu, que foi amado e que no

agora da enunciação é ausente. O reconhecimento do eu lírico como distante do mundo e

como indiferente a este também são recorrentes em Viagem. O tema da ausência refletido na

busca pelo ser amado e na distância do eu lírico em relação ao mundo são traços

característicos de Vaga Música. A impossibilidade de reter os instantes, a transitoriedade, o

tempo e a memória também são temas que marcam esta obra. Mar Absoluto possui relação

temática e formal com Viagem e Vaga Música, nele encontramos temas como a constituição

do eu lírico, a ausência de lugares e pessoas, o tempo e a memória, que são focos deste

estudo. Já em Solombra temos o que considero uma travessia entre as três obras estudadas e o

último livro de Cecília Meireles. Nos poemas dos livros Viagem, Vaga Música e Mar

Absoluto, observamos um teor mais concreto, em que encontramos, por exemplo, a pedra

bruta, os sentidos mais latentes, enquanto em Solombra este teor sensorial dá lugar ao

metafórico, ao imaterial, como a decantação da pedra em areia, e até mesmo a própria sombra.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através deste caminho que percorremos refletindo sobre a poética de Cecília Meireles

em Viagem, Vaga Música, Mar Absoluto e Solombra pudemos chegar aos lugares da

memória, em que se fizeram presentes temáticas como a ausência, o alheamento do eu lírico

em relação a si e em relação ao mundo, a transitoriedade, a efemeridade entre várias outras. A

presença ausente do eu lírico e a busca pelo tu, sempre amado, mas poucas vezes encontrado,

são características marcantes nos livros estudados.

As ausências que marcaram a vida de Cecília ajudaram na construção de uma das

maiores poetas que o nosso tempo contemplou. Ora seus poemas são aparentemente

compreensíveis, ora são enigmas passíveis de serem apreendidos através de uma leitura mais

atenta.

A métrica, as rimas, a sonoridade, o ritmo, as imagens, os símbolos e tudo o que

abarca seus poemas nos conduzem ao momento da enunciação, porta de entrada para lugares

distantes, que nos remetem a cenas recuperadas pela lembrança, vividas ou imaginadas, a uma

eterna procura por algo que não se permite encontrar, o lugar do sonho e do belo. Trazer para

o momento da enunciação aquilo que ficou registrado em algum lugar do interior do eu lírico

parece ser o intuito de cada poema. Refletir no agora da enunciação o que foi passado, o que é

presente e o que poderá vir a ser o futuro.

A construção da memória poética de Cecília é marcada por ausências e perdas, mas

também por aprendizagens únicas vivenciadas ao lado de pessoas como a sua avó Jacinta e

sua ama Pedrinha, além das aprendizagens adquiridas em vários lugares como a Índia, que

culminou com a publicação do livro Poemas Escritos na Índia, no ano de 1953. As memórias

de Cecília Meireles contribuíram para formar a grande poeta, traduzida em várias línguas e

ganhadora de prêmios.

Percorrendo a biografia de Cecília Meireles, pudemos perceber em seu caráter uma

força que vem da entrega à vida, da crença e da luta por seus ideais. Uma mulher que não se

deixou abater pelas aparentes derrotas, mas que inverteu situações e conseguiu transformar

suas experiências em poesia, que ela sintetizou de forma magnífica em “Eu canto porque o

instante existe”, verso célebre que marca sua singularidade como poeta.

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RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa Tomo I. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas,

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RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa Tomo II. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP:

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96

ANEXO – POEMAS COMPLETOS

Elegia

(Mar Absoluto e Outros Poemas)

1

Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.

Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.

No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,

modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua.

Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,

e a voz dos pássaros e das águas correr,

- sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.

Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto?

Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho.

E tristemente te procurava.

Mas também isso foi inútil, como tudo mais.

2

Neste mês, as cigarras cantam

e os trovões caminham por cima da terra,

agarrados ao sol.

Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas,

e depois a noite é mais clara,

e o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão.

Mas tudo é inútil,

porque os teus ouvidos estão secos como conchas vazias,

e a tua narina imóvel

não recebe mais notícia do mundo que circula no vento.

Neste mês, sobre as frutas maduras cai o beijo áspero das vespas...

- e o arrulho dos pássaros encrespa a sombra,

como água que borbulha.

Neste mês, abrem-se cravos de perfume profundo e obscuro;

a areia queima, branca e seca,

junto ao mar lampejante:

de cada fronte desce uma lágrima de calor.

Mas tudo é inútil,

porque estás encostada à terra fresca,

e os teus olhos não buscam mais lugares

nesta paisagem luminosa,

e as tuas mãos não esse arredondam já

para a colheita nem para a carícia.

Neste mês, começa o ano, de novo,

e eu queria abraçar-te.

Mas tudo é inútil:

eu e tu sabemos que é inútil que o ano comece.

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3

Minha tristeza é não poder mostrar-te as nuvens brancas,

e as flores novas, como aroma em brasa,

com suas coroas crepitantes de abelhas.

Teus olhos sorririam,

agradecendo a Deus o céu e a terra:

eu sentiria teu coração feliz

como um campo onde choveu.

Minha tristeza é não poder acompanhar contigo

o desenho das pombas voantes,

o destino dos trens pelas montanhas,

e o brilho tênue de cada estrela

brotando à margem do crepúsculo.

Tomarias o luar nas tuas mãos,

fortes e simples como as pedras,

e dirias apenas: “Como vem tão clarinho!”

E nesse luar das tuas mãos se banharia a minha vida,

sem perturbar sua claridade,

mas também sem diminuir minha tristeza.

4

Escuto a chuva batendo nas folhas, pingo a pingo.

Mas há um caminho de sol entre as nuvens escuras.

E as cigarras sobre as resinas continuam cantando.

Tu percorrerias o céu com teus olhos nevoentos,

e calcularias o sol de manhã,

e a sorte oculta de cada planta.

E amanhã descerias toda coberta de branco,

brilharias à luz como o sal e a cânfora,

tomarias na mão os frutos do limoeiro, tão verdes,

e entre o veludo da vinha verias amarrar-se o cristal dos bagos.

E olharias o sol subindo ao céu com asas de fogo.

Tuas mãos e a terra secariam bruscamente.

Em teu rosto, como no chão,

haveria flores vermelhas abertas.

Dentro do teu coração, porém, estavam as fontes frescas,

sussurrando.

E os canteiros viam-te passar

como a nuvem mais branca do dia.

5

Um jardineiro desconhecido se ocupará da simetria

desse pequeno mundo em que estás.

Suas mãos vivas caminharão acima das tuas, em descanso,

das tuas que calculavam primaveras e outonos,

fechadas em sementes e escondidos na flor!

Tua voz sem corpo estará comandando,

entre terra e água,

o aconchego das raízes tenras,

a ordenação das pétalas nascentes.

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À margem desta pedra que te cerca,

o rosto das flores inclinará sua narrativa:

história dos grandes luares,

crescimento e morte dos campos,

giros e músicas de pássaros,

arabescos de libélulas roxas e verdes.

Conversareis longamente,

em vossa linguagem inviolável.

Os anjos de mármore ficarão para sempre ouvindo:

que eles também falam em silêncio.

Mas a mim – se te chamar, se chorar – não me ouvirás,

por mais perto que venha, não sou mais que uma sombra

caminhando em redor de uma fortaleza.

Queria deixar-te aqui as imagens do mundo que amaste:

o mar com seus peixes e suas barcas;

os pomares com cestos derramados de frutos;

os jardins de malva e trevo, com seus perfumes brancos e vermelhos.

E aquela estrela maior, que a noite levava na mão direita.

E o sorriso de uma alegria que eu não tive,

mas te dava.

6

Tudo cabe aqui dentro:

vejo tua casa, tuas quintas de frutas,

as mulas deixando descarregarem seirões repletos,

e os cães de nomes antigos

ladrando majestosamente

para a noite aproximada.

Range a atafona sobre uma cantiga arcaica:

e os fusos ainda vão enrolando o fio

para a camisa, para a toalha, para o lençol.

Nesse fio vai o campo onde o vento saltou.

Vai o campo onde a noite deixou seu sono orvalhado.

Vai o sol com suas vestimentas de ouro

cavalgando esse imenso gavião do céu.

Tudo cabe aqui dentro:

teu corpo era um espelho pensante do universo.

E olhavas para essa imagem, clarividente e comovida.

Foi do barro das flores, o teu rosto terreno,

e uns liquens de noite sem luzes

se enrolaram em tua cabeça de deusa rústica.

Mas puseram-te numa praia de onde os barcos saíam

para perderem-se.

Então, teus braços se abriram,

querendo levar-te mais longe:

porque eras a que salvava.

E ficaste com um pouco de asas.

Teus olhos, porém, mediram a flutuação do caminho.

Por isso, tua testa se vincou de alto a baixo,

e tuas pálpebras meigas

se cobriram de cinza.

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7

O crepúsculo é este sossego do céu

com suas nuvens paralelas

e uma última cor penetrando nas árvores

até os pássaros.

É esta curva dos pombos, rente aos telhados,

este cantar de galos e rolas, muito longe;

e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,

ainda sem luz.

Mas não era só isto o crepúsculo:

faltam os teus dois braços numa janela, sobre flores,

e em tuas mãos o teu rosto,

aprendendo com as nuvens a sorte das transformações.

Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos,

tua boca, onde a passagem da vida

tinha deixado uma doçura triste,

que dispensava palavras.

Ah, falta o silêncio que estava entre nós,

e olhava a tarde, também.

Nele vivia o teu amor por mim,

obrigatório e secreto.

Igual à face da Natureza:

Evidente, e sem definição.

Tudo em ti era uma ausência que se demorava:

uma despedida pronta a cumprir-se.

Sentindo-o, cobria minhas lágrimas com um riso doido.

Agora, tenho medo que não visses

o que havia por trás dele.

Aqui está meu rosto verdadeiro,

defronte do crepúsculo que não alcançaste.

Abre o túmulo, e olha-me:

dize-me qual de nós morreu mais.

8

Hoje! Hoje de sol e bruma,

com este silencioso calor sobre as pedras e as folhas!

Hoje! Sem cigarras nem pássaros.

Gravemente. Altamente.

Com flores abafadas pelo caminho,

entre essas máscaras de bronze e mármore

no eterno rosto da terra.

Hoje.

Quanto tempo passou entre a nossa mútua espera!

Tu, paciente e inutilizada,

contando as horas que te desfaziam.

Meus olhos repetindo essas tuas horas heroicas,

no brotar e morrer desta última primavera

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que te enfeitou.

Oh, a montanha de terra que agora vão tirando do teu peito!

Alegra-te, aqui estou,

fiel, neste encontro,

como se do modo antigo vivesses

ou pudesses, com a minha chegada, reviver.

Alegra-te, que já se desprendem as tábuas que te fecharam,

como se desprendeu o corpo

em que aprendeste longamente a sofrer.

E, como o áspero ruído da pá cessou neste instante,

ouve o amplo difuso rumor da cidade em que continuo,

- tu, que resides no tempo, no tempo unânime!

Ouve-o e relembra

não as estampas humanas: mas as cores do céu e da terra,

o calor do sol,

a aceitação das nuvens,

o grato deslizar das águas dóceis.

Tudo o que amamos juntas.

Tudo em que me dispersarei como te dispersaste.

E mais esse perfume de eternidade,

intocável e secreto,

que o giro do universo não perturba.

Apenas não podemos correr, agora,

uma para a outra.

Não sofras, por não te poderes levantar

do abismo que reclinas:

não sofras, também,

se um pouco de choro se debruça nos meus olhos,

procurando-te.

Não te importes que escute cair,

no zinco desta humilde caixa,

teu crânio, tuas vértebras,

teus ossos todos, um por um...

Pés que caminham comigo,

mãos que me iam levando,

peito do antigo sono,

cabeça do olhar e do sorriso...

Não te importes. Não te importes...

Na verdade, tu vens como eu te queria inventar:

e de braço dado desceremos por entre pedras e flores.

Posso levar-te ao colo, também,

pois na verdade estás mais leve que uma criança.

- Tanta terra deixaste porém sobre o meu peito!

irás dizendo, sem queixa,

apenas como recordação.

E eu, como recordação, te direi:

- Pesaria tanto quanto o coração que tiveste

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o coração que herdei?

Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos?

E hoje era o teu dia de festa!

Meu presente é buscar-te.

Não para vires comigo:

para te encontrares com os que, antes de mim,

vieste buscar, outrora.

Com menos palavras, apenas.

Com o mesmo número de lágrimas.

Foi lição tua chorar pouco,

para sofrer mais.

Aprendi-a demasiadamente.

Aqui estamos, hoje.

Com este dia grave, de sol velado.

De calor silencioso.

Todas as estátuas ardendo.

As folhas, sem um tremor.

Não tens fala, nem movimento nem corpo.

E eu te reconheço.

Ah, mas a mim, a mim,

quem sabe se me poderás reconhecer!

Memória

(Vaga Música)

Minha família anda longe,

com trajos de circunstância:

uns converteram-se em flores,

outros em pedra, água, líquen;

alguns, de tanta distância,

nem têm vestígios que indiquem

uma certa orientação.

Minha família anda longe,

- na Terra, na Lua, em Marte –

uns dançando pelos ares,

outros perdidos no chão.

Tão longe, a minha família!

Tão dividida em pedaços!

Um pedaço em cada parte...

Pelas esquinas do tempo,

brincam meus irmãos antigos:

uns anjos, outros palhaços...

Seus vultos de labareda

rompem-se como retratos

feitos em papel de seda.

Vejo lábios, vejo braços

- por um momento persigo-os;

de repente, os mais exatos

perdem sua exatidão.

Se falo, nada responde.

Depois, tudo vira vento,

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e nem o meu pensamento

pode compreender por onde

passaram nem onde estão.

Minha família anda longe.

Mas eu sei reconhecê-la:

um cílio dentro do oceano,

um pulso sobre uma estrela,

uma ruga no caminho

caída como pulseira,

um joelho em cima da espuma,

um movimento sozinho

aparecido na poeira...

Mas tudo vai sem nenhuma

noção de destino humano,

de humana recordação.

Minha família anda longe.

Reflete-se em minha vida,

mas não acontece nada:

por mais que eu esteja lembrada,

ela se faz de esquecida:

não há comunicação!

Uns são nuvens, outros, lesma...

Vejo as asas, sinto os passos

de meus anjos e palhaços,

numa ambígua trajetória

de que sou o espelho e a história.

Murmuro para mim mesma:

“É tudo imaginação!”

Mas sei que tudo é memória...

Agosto

(Vaga Música)

Sopra, vento, sopra, vento,

ai, vento do mês de agosto,

passa por sobre meu rosto

e sobre o meu pensamento.

Vai levando meu desgosto!

Lança destes altos montes

às frias covas do oceano

meu sonho sem horizontes,

claro, puro e sobre-humano.

Sem saudade mais nenhuma

te ofereço meus segredos,

para serem flor de espuma

que a praia mova em seus dedos,

quando se vestir de bruma...

Mova entre a lua inconstante

e a inconstantíssima areia,

que todo o mundo assim creia

meu sonho morto e distante,

morto, distante, acabado,

ó vento do céu profundo!

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que tudo que é bom, no passado,

que nos fez sofrer, no mundo,

ao ter de ser suportado...

Medida da significação

(Viagem)

I

Procurei-me nesta água da minha memória

que povoa todas as distâncias da vida

e, onde, como nos campos, se podia semear, talvez,

tanta imagem capaz de ficar florindo...

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,

para sentir, na noite, o aroma da minha duração.

Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:

desapareci como aquele – no entanto, árduo – ritmo

que, sobre fingidos caminhos,

sustentou a minha passagem desejosa.

Acabei-me como a luz fugitiva

que queimou sua própria atitude

segundo a tendência do meu pensamento transformável...

Desde agora, saberei que sou sem rastros.

esta água da minha memória reúne os sulcos feridos:

as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.

E aquilo que restaria eternamente

é tão da cor destas águas,

é tão do tamanho do tempo,

é tão edificado de silêncios

que, refletidos aqui,

permanece inefável.

II

Voz obstinada, por que insiste chamando

por um nome que não corresponde mais a mim?

Não é do meu propósito que fiques ao longe sozinha.

Nem tu sabes que espécie de saudade abrolha na noite

e como o silêncio tenta mover-se inutilmente,

quando diriges teus ímãs sonoros,

sondando direções!

Não é do meu propósito, ó voz obstinada,

mas da minha condição.

As aparências dispersaram-se de mim,

como pássaros:

que sol se pode fixar nesta existência,

para te definir a minha aproximação?

Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:

como podes saber onde me circunscrevo,

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e de que modo me pode o teu desejo atingir?

Eu mesma deixei de entender a minha substância;

tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.

Como podes chamar por mim como às coisas concretas,

e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?

III

Pela experiência do teu contentamento,

crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,

e modelo fisionomias com que te possa aparecer.

Pisarei minha solidão com renúncia e alegria

e, por entre caminhos assombrados,

resoluta virei até onde te encontres,

cortando as sombras que crescem como florestas.

Eu mesma me sentirei alucinada e esquisita,

com esse alento das nebulosas sinistras

que se desenvolvem nas febres.

Não saberei precisamente quando me verás,

nem si compreenderei a linguagem que falas,

e os nomes que têm as tuas realidades

e o tempo dos outros acontecimentos...

Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza

é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,

embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,

e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,

e eu não possa prosseguir mais...

IV

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, todas as minhas presenças

e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;

todos os dias sou meu completo desmoronamento:

e assisto à decadência de tudo,

nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,

conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.

Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,

para veres o que deles resta

depois que chegarem a estes ermos domínios

onde figuras e horas se decompõem.

Não precisaremos falar mais nem sentir:

seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.

E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,

olhando para esta água interminável e muda,

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que não floriu, que não palpitou, que não produziu,

de tanto ser puramente imortal...

Valsa

(Viagem)

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos

e nas tuas antigas palavras.

O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,

que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto

e modelou tua voz entre as algas.

Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege

e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança

nas praias fora do mundo...

-- Os ares fogem, viram-se as águas,

mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Canções do Mundo Acabado

(Vaga Música)

1

Meus olhos andam sem sono

Somente por te avistarem

de uma tão grande distância.

De altos mastros ainda rondo

tua lembrança nos ares.

O resto é sem importância.

Certamente não há nada

de ti, sobre este horizonte,

desde que ficaste ausente.

Mas é isso que me mata:

Sentir que estás não sei onde,

mas sempre na minha frente.

2

Não acredites em tudo

que disser a minha boca

sempre que te fale ou cante.

Quando não parece, é muito

quando é muito, é muito pouco,

e depois nunca é bastante...

Foste o mundo sem ternura

em cujas praias morreram

meus desejos de ser tua.

A água salgada me escuta

e mistura nas areias

meu pranto e o pranto da lua.

Penso no que me dizias,

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e como falavas, e como te rias...

Tua voz mora no mar.

A mim não fizeste rir

e nunca viste chorar

(Por que o tempo sempre foi

longo pra me esqueceres

e curto pra te amar.)

Retrato falante

(Vaga Música)

Não há quem não se espante, quando

mostro o retrato desta sala,

que o dia inteiro está mirando,

e à meia-noite em ponto fala.

Cada u tem sua raridade:

selo, flor, dente de elefante.

Uns têm até felicidade!

Eu tenho o retrato falante.

Minha vida foi sempre cheia

de visitas inesperadas,

a quem eu me conservo alheia,

Mas com as horas desperdiçadas.

Chegam, descrevem aventuras,

Sonhos, mágoas, absurdas cenas.

coisas de hoje, antigas, futuras...

(A maioria mente, apenas.)

E eu, fatigada e distraída,

digo sim, digo não – diversas

respostas de gente perdida

no labirinto das conversas.

Ouço, esqueço, livro-me – trato

de recompor o meu deserto.

Mas, à meia-noite, o retrato

tem um discurso pronto e certo.

Vejo então por que estranho mundo

andei, ferida e indiferente,

pois tudo fica no sem-fundo

dos seus olhos de eternamente.

Repete palavras esquivas,

sublinha, pergunta, responde,

e apresenta, claras e vivas,

as intenções que o mundo esconde.

Na outra noite me disse: “A morte

leva a gente. Mas os retratos

são de natureza mais forte,

além de serem mais exatos.

Quem tiver tentado destruí-los,

por mais que os reduza a pedaços,

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encontra os seus olhos tranquilos

mesmo rotos, sobre os seus passos.

Depois que estejas morta, um dia,

tu, que és só desprezo e ternura,

saberás que ainda te vigia

meu olhar, nesta sala escura.

Em cada meia-noite em ponto,

direi o que viste e o que ouviste.

Que eu – mais que tu – conheço e aponto

quem e o quê te deixou tão triste.”

Velho estilo

(Vaga Música)

Coisa que passas, como é teu nome?

De que inconstâncias foste gerada?

Abri meus braços para alcançar-te:

fechei meus braços – não tinha nada!

De ti só resta o que se consome.

Vais para a morte? Vais para a vida?

Tua presença nalguma parte

é já sinal da tua partida.

E eu disse a todos desse teu fado,

para esquecerem teu chamamento,

saberem que eras constituída

da errante essência da água e do vento.

Todos quiseram ter-te, malgrado

prenúncios tantos, tantas ameaças.

Grande, adorada desconhecida,

como é teu nome, coisa que passas?

Pisando terras e firmamento,

com um ar de exausta gente dormida,

abandonaram termos tranquilos,

portas abertas, áreas de vida.

E eu, que anunciei o acontecimento,

fui atrás deles, com insegurança,

dizendo que ia por dissuadi-los,

mas tendo a sua mesma esperança.

No ardente nível desta experiência,

sem rogo, lágrima nem protesto,

tudo se apaga, preso em sigilos:

mas no desenho do último gesto,

há mãos de amor para tanta ausência.

E esse é o vestígio que não some:

resto de todos, teu próprio resto.

– Coisa que passas, como é teu nome?

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Mar Absoluto

(Mar Absoluto)

Foi desde sempre o mar,

E multidões passadas me empurravam

como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam

da revolta dos ventos,

de linhos, de cordas, de ferros,

de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído

pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,

e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam,

sou eu que devo ir.

Porque não há ninguém,

não, não haverá mais ninguém,

tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.

Tenho de levar-lhes redes de rezas,

campos convertidos em velas,

barcas sobrenaturais

com peixes mensageiros

e cantos náuticos.

E fico tonta.

acordada de repente nas praias tumultuosas.

E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.

"Para adiante! Pelo mar largo!

Livrando o corpo da lição da areia!

Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"

Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.

A solidez da terra, monótona,

parece-nos fraca ilusão.

Queremos a ilusão grande do mar,

multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,

uma solidão para todos os lados,

uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,

e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,

que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,

matando-se e recuperando-se,

correndo como um touro azul por sua própria sombra,

e arremetendo com bravura contra ninguém,

e sendo depois a pura sombra de si mesmo,

por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,

ele que, ao mesmo tempo,

é o dançarino e a sua dança.

Page 109: Helen Ferreira Nunes MEMÓRIA DA AUSÊNCIA EM ÃO... · PDF fileAo meu pai (in memorian), por todo cuidado e amor; ... parcialmente ao estado de carência em que se encontra o trabalho

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Tem um reino de metamorfose, para experiência:

seu corpo é o seu próprio jogo,

e sua eternidade lúdica

não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:

cavalo, épico, anêmona suave,

entrega-se todos, despreza tudo,

sustenta no seu prodigioso ritmo

jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos,

mas é desfolhado,cego, nu, dono apenas de si,

da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:

água de todas as possibilidades,

mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.

Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,

e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,

nem por dentro de si:

mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.

Não me quer arrastar como meus tios outrora,

nem lentamente conduzida.

como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:

plástica, fluida, disponível,

igual a ele, em constante solilóquio,

sem exigências de princípio e fim,

desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa,

por procurar gente passada,

suspeito que me enganei,

que há outras ordens, que não foram ouvidas;

que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,

e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,

mas outro, que se parece com ele

como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.

E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,

e encontro tudo sobre-humano.

E este mar visível levanta para mim

uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.

E é logo uma pequena concha fervilhante,

nódoa líquida e instável,

célula azul sumindo-se

no reino de um outro mar:

ah! do Mar Absoluto.