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    As Formas Totalitrias na Anlise Poltica de Hannah Arendt

    As Formas Totalitrias na Anlise Poltica de Hannah Arendt

    Maria Gorete de Arajo Melo

    APRESENTAO E HOMENAGEM

    ... [Quando se est doente], tudo pode acontecer-lhe revelia, pois a essencial faculdade da vontade lhe suprimida, restando-lhe apenas a boa vontade.

    Maria Gorete, em carta ao seu orientador.

    O texto que se vai ler abaixo a Introduo da dissertao de Maria Gorete de

    Arajo Melo, que a escreveu sob minha orientao no Mestrado em Cincia Poltica daUniversidade Federal de Pernambuco e cuja defesa, com banca escolhida e data marcada(26 de maro de 2001), no chegou a se realizar. Duas semanas antes da data escolhida,Maria Gorete, que j tinha uma sade frgil, foi acometida por intensa dor de cabea,seguida de desmaio. Sem plano de sade, dependendo unicamente do sistema pblico desade, foi internada no Hospital da Restaurao, onde foi diagnosticado um rompimento deaneurisma bastante grave, a exigir interveno cirrgica. A partir da, entrou naquela viacrucis por que passam as pessoas nessas circunstncias e nesses locais: exames, urgentes,so marcados para da a uma semana, porque h uma fila de pessoas espera; no dia da suavez, so adiados porque o equipamento quebrou. E assim por diante. Finalmente, foi fixadaa data da cirurgia: 16 de abril de 2001. O pior, entretanto, ainda estava por vir. Alguns dias

    antes dessa data, Maria Gorete comeou a apresentar erupes na pele que forampaulatinamente cobrindo todo o seu corpo, sintomas de uma doena rara e terrvel, aNecrlise Epidrmica Txica, que a levou finalmente morte no dia 13 de maio de 2001,depois de enormes sofrimentos.

    Maria Gorete foi uma pessoa sem sorte. Ingressando no nosso Mestrado em 1996,no conseguiu termin-lo no tempo regimentalmente previsto, por causa de vrias desditaspessoais que sobre ela se abateu. Desligada do curso em 1998, voltou sua cidade natal Fortaleza , onde continuou trabalhando sozinha no tema que havia escolhido para suadissertao: o pensamento poltico de Hannah Arendt, autora por quem tinha umsentimento misto de admirao e afeto. No incio de 2000, com um esboo do que seria suadissertao j bastante avanada, submeteu-se a nova seleo e reingressou no curso. Sobminha orientao, terminou seu trabalho e se preparava para a defesa, quando oimpondervel aconteceu e Maria Gorete no obteve o ttulo por que tanto lutou e que tantomerecia.

    O Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, numa homenagem pstuma,deu o seu nome Sala de Estudos que existe em suas dependncias. Sua Dissertao,mesmo no tendo sido defendida, est depositada no nosso acervo disposio de quemqueira perfazer o caminho que ela palmilhou atravs de um dos pensamentos polticos maisinstigantes do nosso tempo. Dessa Dissertao, publicamos agora a Introduo nesse

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    primeiro nmero da nossa revista na sua nova fase. Nada disso, entretanto, anula osentimento de que o destino, na sua cegueira, muitas vezes injusto. Como escreveuAmariles Revordo, Secretria do nosso Programa e sua grande amiga no Recife, que aamparou e acompanhou durante o longo padecimento final, sinto por aqueles que avoracidade do cotidiano tenha subtrado a capacidade de enxergar sua alma; sinto por

    aqueles que foram seus amigos e que, sob um olhar cheio de angstia, viram a vida subtra-la de ns.

    Prof. Luciano Oliveira

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    INTRODUO

    Se o livro Origens do Totalitarismo1 tivesse recebido o mesmo ttulo da publicaoinglesa2 teramos de imediato uma melhor compreenso acerca das investigaes deHannah Arendt3 sobre o totalitarismo. Nossa autora, ao tratar do totalitarismo, est maispreocupada em avaliar a dimenso destrutiva da carga que esta forma de governo nosdeixou do que propriamente em avaliar suas origens. Esta melhor compreenso a respeitoda anlise de Arendt e, portanto, a respeito do totalitarismo a proposta desta dissertao.

    Em conseqncia de nossa proposta, examinamos nesta dissertao a anlise dasformas totalitrias realizada por Arendt. Tendo por objetivo a afirmao da singularidadedo conceito de totalitarismo elaborado por esta autora.

    Arendt publica Origens do Totalitarismo empenhada no em oferecercientificidade ao conceito de totalitarismo, 4 mas em desenvolver um aparato conceitualcapaz de olhar apropriadamente os acontecimentos aps a derrota de Hitler. Arendt diz:

    Era, pelo menos, o primeiro momento em que se podia elaborar earticular as perguntas com as quais a minha gerao havia sidoobrigada a viver a maior parte de sua vida adulta. O que haviaacontecido? Por que havia acontecido? Como pode ter acontecido? 5

    Fazendo uma anlise sistemtica do nazismo e do stalinismo6, Arendt busca umalegitimidade para o conceito de totalitarismo. A autora defende uma simetria entre nazismoe stalinismo, e em sua anlise recusa-se a aceitar a investida contra este conceito realizadapor alguns tericos, que afirmam a especificidade do fenmeno ocorrido sob Hitler e sobStalin, mas no o qualificam de totalitrio. Tal investida pretende defender que estefenmeno apenas representa um aspecto forte do autoritarismo. Contra tais assertivasArendt afirma:

    Confundir o terror total com um sintoma de governo tirnico tofcil porque o governo totalitrio, em seus estgios iniciais, tem deconduzir-se como uma tirania e pe abaixo as fronteiras da lei feita

    1 ARENDT. Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. So Paulo: Companhia das Letras,1989.2The Burden of Our Times, London, Secker and Warburg, 1951.3 Hannah Arendt, judia alem, nasceu em Hannover em 1906. Estudou Filosofia nas Universidades deMarburgo, Freiburg e Heidelberg (respectivamente sob a orientao de Heidegger, Husserl e Jaspers). Aautora refugiou-se nos Estados Unidos em 1941, onde lecionou filosofia e cincia poltica por quase duasdcadas, l permanecendo at sua morte em 1975. No Brasil podemos encontrar ricos dados bibliogrficos de

    Arendt em: LAFER, Celso. A reconstruo dos Direitos Humanos - Um dilogo com o pensamento deHannah Arendt. So Paulo: Companhia das Letras, 1988; ADEODATO, Joo Maurcio L. O Problema daLegitimidade - No rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989.4 A no cientificidade do conceito de totalitarismo afirmada pela esquerda a partir da argumentao de queeste conceito baseia-se num duplo erro terico: no admitir que o nazismo foi um fenmenoindissoluvelmente ligado ao capitalismo e ao imperialismo, e no ter considerado que o Estado sovitico umEstado operrio, e no um Estado de classes.5 ARENDT, OT, p. 339-340.6 Arendt restringe sua anlise do fenmeno totalitrio exclusivamente aos regimes de Hitler a partir de 1938at o final da guerra, e ao regime de Stlin a partir de 1930 at sua morte.

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    pelos homens. Mas o terror total no deixa atrs de si nenhumailegalidade arbitrria, e a sua fria no visa o beneficio do poderdesptico de um homem contra todos, e muito menos uma guerra detodos contra todos. Em lugar das fronteiras e dos canais decomunicao entre os homens individuais, constri um cinturo de

    ferro que os cinge de tal forma que como se a sua pluralidade sedissolvesse em Um-S-Homem de dimenses gigantescas 7.

    A anlise de totalitarismo realizada por Arendt precedida por uma anlise doanti-semitismo e do imperialismo. A autora encontra nestes dois fenmenos nopropriamente a gnese do totalitarismo, o que a impediria de inicio de pens-los comoorigens do comunismo, mas percebe estes fenmenos como correntes subterrneas damentalidade europia que se cristalizaram8 no totalitarismo.

    O anti-semitismo e o imperialismo tomaram-se elementos catalisadores dofenmeno totalitrio. Este fenmeno sustentado pelo terror e pela ideologia torna-se umanova forma de governo que, como afirma Arendt, pode coincidir com a destruio dahumanidade, pois onde quer que tenha imperado, minou a essncia do homem. 9

    Arendt indica tambm o pangermanismo e o pan-eslavismo como os movimentosde unificao tnica que inspiraram respectivamente o nazismo e o comunismo. Sobre asteorias geopolticas destes movimentos, Arendt afirma:

    Pangermanistas e pan-eslavistas concordavam em que, vivendo emEstados continentais e sendo povos continentais, tinham queprocurar colnias no continente e expandir-se de modogeograficamente contnuo a partir de um determinado centro depoder; que contra a idia da Inglaterra expressa nas palavras:Dominarei o mar est a idia da Rssia expressa nas palavras:Dominarei a terra; e que mais cedo ou mais tarde, a tremenda

    superioridade da terra sobre o mar (..) e o significado maior do poderterrestre em relao ao poder martimo se tornariam evidentes.10

    Arendt acredita ter sido o significativo desinteresse da sociedade burguesa pelarealidade poltica que permitiu que o anti-semitismo fosse desvelado na poltica mundialsomente depois de se tomar agente catalisador do nazismo. Da mesma forma estedesinteresse da burguesia pela poltica permitiu que a disparidade entre causa e efeito doimperialismo fosse vista somente depois da Segunda Guerra11. Enfim, a desintegrao doEstado nacional concomitante ao desenvolvimento imperialista colonial europeu continha,segundo Arendt, quase todos os elementos necessrios ideologia totalitria.

    7 ARENDT, OT, p. 517-18.8 Podemos tambm entender este processo como sinergia: a concatenao de fatos que noesto relacionados internamente, mas coexistem externamente e provocam o aparecimentode fenmenos que de longe transcendem suas causas.9 ARENDT, OT, p. 12.10Ibidem, p. 254.11 Arendt entende que o imperialismo enquanto fenmeno poltico mundial engendrou a pretenso totalitriade domnio global.

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    A anlise das formas totalitrias realizada por Arendt parte do pressuposto de quequando o anti-semitismo e o imperialismo foram desnudados, eles j estavam cristalizadosem foras destrutivas irrevogveis. Para uma imagem deste pensamento de Arendt, nosparece ser adequada idia de uma alta onda que surge inesperadamente diante de umbanhista, no percebida antes pelo fato de este banhista no ter observado os pequenos

    movimentos do mar sua frente. A reflexo de Arendt permitiu-lhe construir um esquematerico capaz de captar o anti-semitismo no somente como dio aos judeus, oimperialismo no somente como conquista e o totalitarismo no apenas como ditadura.

    Com relao ao conceito de totalitarismo, a principal discusso se este conceitopode referir-se a autocracias antigas e aos despotismos orientais, ou deve designar somenteuma nova forma de governo. Raymond Aron toma um argumento bastante eficaz paradefender sua oposio ao uso do termo totalitarismo para designar as autocracias antigas eos despotismos orientais. Aron afirma que o despotismo asitico no implica a criao deum novo homem, nem a espera do fim da pr-histria.12

    O modelo de sndrome, isto , a identificao de caracteres essenciais como sefossem sintomas para apresentar o sistema totalitrio, avaria o conceito de totalitarismo,porque confunde, ou no esclarece bem, quais so as propriedades definidoras e aspropriedades contingentes deste conceito. Por exemplo, o monoplio governamental dasarmas no uma propriedade definidora, posto que as democracias tambm possuem estemonoplio; a ideologia oficial tambm caracterstica dos sistemas autoritrios; acentralizao da economia dirigida um trao tanto do nazismo quanto do comunismo.Estas dificuldades no tratamento do conceito durante a dcada de cinqenta passaram a serconsideradas, na dcada de sessenta, no mais como incorrees, mas como motivo para seobjetar o uso do conceito.

    Os argumentos levados a cabo pela esquerda para justificar o repdio ao conceitono obtiveram sustentao suficiente para alcanarem seu objetivo: a impugnao doconceito. A objeo de que o conceito teria uma funo ideolgica, facilmente pode serdesbancada pelo argumento simples de que a tentativa de impugnao do conceito tambmtem uma funo ideolgica. A defesa de que o uso do conceito somente era vlido no ps-guerra imediato, j que o nazismo, fascismo e stalinismo acabaram, e que o comunismo nopode ser formulado em somente uma linha, no suficiente, pois segundo este raciocnioteramos ento de deixar de usar todos os termos conceituais que indicam sistemas polticosj extintos ou que sofreram grandes diversificaes.

    A este estudo no interessa a abordagem do fascismo em si, visto que nossa autoraem seu conceito de totalitarismo no recepciona o nazismo e o stalinismo como fascismos.O tratamento do fascismo torna-se necessrio em nosso estudo somente quando importadiferenci-lo do que Arendt entende como empreendimento totalitrio.

    Arendt, ao restringir o totalitarismo experincia nazista e stalinista, lanou oscomunistas no para onde eles mais temiam ir, isto , para o rol dos regimes fascistas, maslanou-os para o seletssimo rol dos regimes totalitrios. Como os nazistas estavamliquidados, pareceu aos comunistas que o conceito de totalitarismo fora feito porencomenda para atingi-los. Foi sempre incmoda aos comunistas a comparao de Hitler a

    12 ARON, Raymond.Dmocratie et Totalitarisme, Paris: Gallimard, l965, p. 319.

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    Stlin, ou a comparao do fascismo ao comunismo13. Os comunistas nunca entenderampor que os conservadores liberais insistiam tanto em criticar o que eram apenas excessos docomunismo. Enfim, nenhum conceito de totalitarismo causou tanta averso esquerdaquanto o conceito elaborado por Arendt na sua anlise das formas totalitrias.

    A concepo de esfera pblica uma parte privilegiada do esquema intelectual de

    Arendt. Esta concepo foi determinante na sua anlise das formas totalitrias. Nessemesmo esquema intelectual, que podemos chamar de a poltica dos mortais, Arendt ressaltaduas dimenses da sociedade moderna que so partcipes destas formas de governo.

    A recepo destas dimenses impretervel para a assimilao do conceitoarendtiano de totalitarismo. A primeira dimenso consiste na estrita conexo entre aopoltica e compreenso da realidade. Arendt rechaa a tendncia de se pensar a aopoltica como fator independente da compreenso da realidade. A autora assegura que onosso sentimento de realidade surge a partir do mbito pblico. A esfera pblica a esferada aparncia, da visibilidade, espao de iluminao, do ver e ser visto. o lugar onde amentira est a descoberto. A esfera pblica a medida que ensina ao homem, pela suaexperincia interdependente, a reconhecer, aceitar ou no aceitar, o acidental, o necessrio eo arbitrrio. O senso comum, cuja existncia se d na vida pblica, o alicerce da conexoque Arendt faz entre ao poltica e compreenso da realidade.

    A segunda dimenso consiste no carter radicalmente subjetivo da sociedademoderna, ou seja, a inslita preocupao com o eu, que resultou no solitrio homem demassa cuja mentalidade alheia ao mundo. A destruio da esfera pblica fora o homemsolitrio de massa a ir em busca de um universo de garantias, de certezas; onde a existnciade um sistema consistente e absolutamente coerente no permita a presena do acaso.Todos que com este universo fazem contato, dele j fazem parte. Mas tal ventura exige umaopo: o abandono irrestrito da realidade factvel por este mundo fictcio. Nele, e somentenele realiza-se a coerncia absoluta. Os fatos, a contingncia e o acaso, que sempre atingema realidade, no alcanam este mundo onipotente, que guiado somente por uma lgica deirredutvel coerncia. As leis deste mundo fictcio abarcam todas as possibilidades. Em atosde no-liberdade este mundo fictcio realiza o fim da distino entre o possvel e oimpossvel.

    O mundo fictcio ofertado pelo movimento totalitrio tem um carter deintransponvel irracionalidade. Na conduta irracional dos regimes totalitrios exprime-se anegao do auto-interesse, da noo de utilidade e do princpio de identidade, pressupostosfundamentais do pensamento tico ocidental. Sob a dominao total o homem posto nummovimento incessante que visa destruio dos processos individuais. Neste movimentoincessante o homem perde todos os parmetros e j no consegue reconhecer sua prpriacondio de homem.

    No aceitar que o totalitarismo investiu contra a natureza humana, para Arendtsignifica estimar que mesmo mediante a destruio dos elementos essenciais da vidahumana natalidade, individualidade e pluralidade14 , ainda seria possvel se falar denatureza humana. A no destruio da natureza humana sob a dominao total somente

    13 Leandro Konder afirma em seu livroIntroduo ao Fascismo que a equiparao Hitler =Stalin o objetivo da doutrina do totalitarismo, e que isto exemplarmente empreendidopor Ralf Dahrendorf em Soziologie und Nationalsozialismus.14 Arendt desenvolve amplamente seu pensamento sobre a individualidade e a pluralidade em A condio

    Humana. (Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1993.)

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    seria possvel se esta natureza correspondesse a algo partcipe das essncias eternas,portanto de carter imutvel.

    Podemos ressaltar a invisvel ligao entre o tudo possvel da dominao total,onde todo e qualquer princpio utilitrio abolido, e a afirmao da superfluidade humana.Esta invisvel ligao caracterizar tambm a presena da superfluidade do humano e a

    ocorrncia do mal radical.

    15

    Para Arendt o mal radical no se enraizava em motivos perversos, e com issonegava toda concepo tradicional que se tinha a respeito do mal, mas foi com Eichmann 16

    que Arendt se v frente a frente com o que ela passaria a chamar de banalidade do mal.Arendt, em Origens do Totalitarismo, como j referido, no trata da gnese do

    totalitarismo, trata dos fatos convergentes que acabaram por se cristalizar no fenmenototalitrio, pois que, como indica a autora, este fenmeno carece de origens histricas comocausas eficientes. Em Arendt o fenmeno totalitrio deve ser pensado a partir das origensdo totalitarismo: o anti-semitismo e o imperialismo; dos elementos do totalitarismo: aideologia e o terror estes elementos devem ser entendidos como os dois pilares dototalitarismo; e a partir tambm dos componentes do totalitarismo: o isolamento e odesenraizamento.

    Arendt, tendo a convico de que a experincia totalitria foi absolutamente nica,debrua-se em busca da compreenso deste fenmeno. Seu pensamento manter-se- unido auma reflexo que leva em conta o declnio da esfera pblica e seu significado para asociedade moderna. Partindo do fato simples de que somos todos mortais, e registrando quepor causa da busca pela imortalidade os antigos realizavam seus atos atravs dacontemplao pura ou feitos hericos, e que os cristos faziam o mesmo atravs dadevoo, Arendt lembra que aos modernos restou, como fim em si mesma, somente apoltica.

    Na esfera pblica permanece ainda a possibilidade de transcendncia eimortalidade. Para os modernos, a poltica dos mortais tem seus passos prprios, que nopensamento de Arendt devem permear a negao do conceito de final da histria, portanto arecusa de qualquer poltica escatolgica, redentora; a dimenso antropolgica, que seafigura nos atos de liberdade, fundamentados na confiana e integridade; e o ato poltico,em funo da posteridade, ou seja, a criao de instituies livres e perdurveis. ParaArendt, os homens no nascem iguais, somente a construo um artifcio humano deum sentido igualitrio pode afirmar a igualdade entre os homens. Os direitos inalienveisdo homem, ressaltando-se o direito vida, a liberdade e a busca de felicidade so verdadesevidentes que, no entanto, precisam ser constantemente reafirmadas pelo artifcio humanodo consenso na comunidade poltica.

    Arendt reflete sobre a liberdade e a ao poltica atravs da noo de comeo. Aautora recolhe a temtica do comeo em Sto. Agostinho: o homem foi criado para quehouvesse um comeo.17 Para Arendt, pensar significa sempre um novo comeo, um initiumque corresponde capacidade humana de agir. Ao e comeo coexistem na liberdade,

    15 Se a utilizao do termo mal radical em Origens do Totalitarismo (1951) e banalidade do mal em Eichmann em Jerusalm (1963) redunda num antagonismo, contradio, contraste ou seqncia, tem sidoalvo de muitos debates. Elisabeth Young-Bruehl, Margaret Canovan e Richard Bernstein so os principaiscomentadores deste tema.16 Eichmann foi o perito de Hitler nas manobras de evacuao e extermnio dos judeus a fim de que serealizasse a soluo final.17 Santo Agostinho,De civitate Dei, livro 12, captulo 20.

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    atravs desta liberdade que a ao aparece no mundo, e deixa seus vestgios. O homem initium, pois somente o seu querer realiza o primeiro movimento ou o interrompe.

    A natalidade e a novidade imprimiro a exigncia de que a essncia de toda aopoltica seja um engendrar de um novo comeo, o que resulta na perspectiva da autoranuma ligao entre poltica e compreenso compreender significa assimilar o sentido de

    algo que tem um sentido. A criao do sem-sentido totalitrio levou a autora a relutarincessantemente em aceitar a idia de que o totalitarismo foi um acidente superado18.Arendt requer a compreenso deste fenmeno, para que aceitemos o irrevogvel.

    Foi a necessidade de compreender este no-comeo do totalitarismo que levouArendt a elaborar sua poltica dos mortais e a colocar o mundo moderno diante da tradio.No que a tradio possa oferecer categorias para pensar tal acontecimento, as categoriastradicionais no se adequam anlise da novidade totalitria, pois esta se imps justamentea partir do rompimento com a tradio.

    Neste sentido Arendt evidencia a perspectiva que tem da experincia totalitria:cumpre no somente especific-la mediante comparaes com outras formas de governo,ou defini-la estritamente dentro dos padres acadmicos. Arendt conseguiu nomear oacontecimento nazista e stalinista no por causa do bvio: ser contempornea destesacontecimentos; mas por no permitir que em sua anlise terror e ideologia fossem tomadossomente como caracteres destas formas de governo, mas como sua essncia. O fato queesta experincia em seu ineditismo exige novas categorias de pensamento para refletir sobreela, e que a assertiva final sobre esta experincia deve levar inequivocamente afirmaode que o domnio total a nica forma do governo com a qual no possvel coexistir.19Esta concluso o cerne da concepo arenditiana do totalitarismo.

    O acontecimento totalitrio entrou definitivamente para o mbito dos estudos dapoltica, sobretudo porque passou a fazer parte do imaginrio de todos os povos que deletomaram conhecimento. Isto ocorreu devido ao impacto deste acontecimento sobre o ethoshumanitrio da civilizao.

    A anlise conceitual utilizada por Arendt em Origens do Totalitarismo e nas suasdemais obras indica muito aproximadamente o que se inscreve no documento de Avaliaoe Perspectivas da rea de Cincia Poltica realizada pelo CNPq:

    Conceitualmente, uma parte central da Cincia Poltica opensamento filosfico mais ou menos rigoroso aplicado aoentendimento do convvio humano em sociedade. Esta tradio seinicia talvez com A Repblica de Plato, passa por Maquiavel,Locke, Hobbes, e chega aos nossos dias com Hannah Arendt... Estalista somente exemplificativa, mas permite marcar a idia de que acincia poltica est intimamente ligada tradio do pensamentofilosfico e prtico sobre o homem em sociedade 20.

    A anlise conceitual de Arendt comporta um carter semntico-etimolgico,histrico e ontolgico. Este mtodo volta-se para a anlise da circularidade entre palavras e

    18 ARENDT, OT, p. 343.19 ARENDT, OT, P. 34320 Documento preparado pelo comit em Cincias Sociais do CNPq. Relator: Simon Schawartzman, abril,1977.

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    fatos, e para a condio de existncia do pensamento discursivo. Joo Maurcio Adeodatoexpressa-se muito bem a respeito desta circularidade:

    Uma das maiores crticas de Arendt s cincias sociaisdominantes que, segundo ela, estas no se preocupam com aspalavras j existentes, preferindo criar um jargo artificial, de

    significado preciso em relao s mentes de seus criadores mas semligao com a realidade dos fenmenos. (..) A palavra um meio,no porque mostra completa ou definitivamente o significado de umfenmeno, mas porque revela algo de percepes passadas, sejamestas lmpidas ou distorcidas21.

    Arendt preocupa-se com a verdade factual, entende que a funo da histria nopermitir que os acontecimentos sejam esquecidos. No mundo dos fatos, o bem ou o mal nodeve ser esquecido. a existncia de palavras dotadas de significado que permite areconciliao do homem com a experincia da realidade.

    As vrias consideraes contidas nesta Introduo objetivaram oferecer uma

    conduo para a leitura dos captulos que se seguem, e para a conseqente concluso. NestaIntroduo foram anunciadas todas as temticas que esto contidas no texto dissertativo.Esperamos, pois, abrir caminhos de aproximao com o pensamento poltico de Arendt esua anlise das formas totalitrias.

    21 ADEODATO, p. 102-103