Haesbaert_territorio e Multiterritorialidade

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    TERRIT~RIO E .MULTITERRITORIALIDADE:

    UM DEBATEROGRIO HAESBAERTUniversidade Federal Fluminense

    Este trabalho est ligado ao prosseguimento de diversos trabalhosanteriores sobre o conceito de territ6rio e sua derivao direta, a territorialidade, eque culminaram com a proposta da noo de "multiterritorialidade" (HAESBAERT,1997, 2001a, 2002a, 2004a). Trata-se de um debate sobre o desdobramento destanoo a partir de sua vinculao, em uma perspectiva mais sistematizada, com aconcepo de "mltiplos territrios" e as diversas abordagens daquilo que sedenomina territorialidade.A multiterritorialidade, comoj enfatizamos anteriormente (HAESBAERT,2004a), aparece como uma alternativa conceitual dentro de um processodenominado por muitos como "desterritorializao~'.Muito mais do que perdendoou destruindo nossos territrios, ou melhor, nossos processos de territorializao(para enfatizar a ao, a dinmica), estamos na maior parte das vezes vivenciandoa intensificao e complexificao de um processo de (re)territorializao muitomais mltiplo, "multiterritorial".Foi nesse sentido que reconhecemos a desterritorializao como "mito"(HAESBAERT, 1994,20Olb, 2004a). No no sentido de que simplesmente "noexista" desterritorializao,mas de que se trata de um processo indissociavelmenteligado sua contraface, os movimentos de (re)territorializao.Como afirmavamem seu "primeiro teorema" da desterritorializao os autores clssicos nestatemtica, Deleuze e Guattari (ainda que numa conotao filosfica muito ampla):

    '. Uma primeira verso deste artigo, intitulada "Dos mltiplos territrios multiterritorialidade"foi apresentada no I Seminrio Nacional sobre Mltiplas Territorialidades, promovido pelo Programade Ps-Graduao em Geografia da UFRGS, Curso de Geografia da ULBRA e AGB-Porto Alegre,em 23 de setembro de 2004.

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio HaesbaertJamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mnimo com doistermos (...). E cada um dos dois termos se reterritorializa sobre o outro.De forma que no se deve confundir a reterritorializaocom o retornoa uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela implicanecessariamente um conjunto de artifieios pelos quais um elemento, elemesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro quetambm perdeu a sua. (DELEUZE E GUATTARI, 1996[1980] 40-41)

    Geograficamente falando, no h desterritorializao semreterritorializao pelo simples fato de que o homem um "animal temtorial" (ou"territorializador", como afirmou o socilogo Yves Barel). O que existe, de fato, um movimento complexo de territorializao, que inclui a vivncia concomitantede diversos territrios - configurando uma multiterritorialidade, ou mesmo aconstruo de uma territorializao no e pelo movimento (HAESBAERT, 2004a).Por outro lado, na dimenso mais propriamente social da desterritorializao,to pouco enfatizada, que o termo teria melhor aplicao, pois quem de fato perdeo "controle" etou a "segurana" sobretem seus territrios so os mais destitudos,aqueles que se encontram mais "destemtorializados" ou, em termos mais rigorosos,mais precariamente territorializados.

    Assim, afirmamos que, especialmente para os mais privilegiados, ditospor muitos "desterritorializados", "mais do que a desterritorializaodesenraizadora, manifesta-se um processo de reterritorializao espacialmentedescontnuo e extremamente complexo". (HAESBAERT, 1994:214) Estesprocessos de (multi) territorializao precisam ser melhor compreendidos,especialmente pelo potencial de perspectivas polticas inovadoras que eles exigemou implicam.

    Para falar em multiterritorialidade precisamos, em primeiro lugar,esclarecer o que entendemos por territrio e por temtorialidade. Desde a origem,o territrio nasce com uma dupla conotao, material e simblica, poisetimologicamente aparece to prximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominao (jurdico-poltica)da terra e com a inspirao do terror, do medo - especialmente para aqueles que,com esta dominao, ficam alijados da terra, ou no "temtorium" so impedidosde entrar. Ao mesmo tempo, por outro lado, podemos dizer que, para aqueles quetm o privilgio de plenamente usufrui-lo, o territrio pode inspirar a identificao(positiva) e a efetiva "apropriao".

    Territrio, assim, em qualquer acepo, tem a ver com poder, mas noapenas ao tradicional "poder poltico". Ele diz respeito tanto ao poder no sentido

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    Territrio e Multiterritorialidade:Um Debate

    mais explcito, de dominao, quanto ao poder no sentido mais implcito ousimblico, de apropriao. Lefebvre distingue apropriao de dominao("possesso", "propriedade"), o primeiro sendo um processo muito mais simblico,carregado das marcas do "vivido", do valor de uso, o segundo mais concreto,funcional e vinculado ao valor de troca. Segundo o autor:

    O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espao, pois eleimplica "apropriao" e no '>ropriedade". Ora, a prpria apropriaoimplica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, smbolos e uma prtica.Tanto mais o espao funcionalizado, tanto mais ele dominado pelos"agentes" que o manipulam tomando-o unifuncional, menos ele se prestaa apropriao. Por qu? Porque ele se coloca fora do tempo vivido,aquele dos usurios, tempo diverso e complexo. (Lefebvre, 1986:411-412, grifo do autor)

    Como decorrncia desse raciocnio, interessante observar que, enquanto"espao-tempo vivido", o territrio sempre mltiplo, "diverso e complexo", aocontrrio do territrio "unifuncional" proposto e reproduzido pela lgica capitalistahegemnica, especialmente atravs da figura do Estado territorial moderno,defensor de uma lgica territorial padro que, ao contrrio de outras formas deordenao territorial (como a do espao feudal tpico), no admite multiplicidadelsobreposio de jurisdies e/ou de territorialidades.

    Podemos ento afirmar que o territrio, imerso em relaes de dominaoelou de apropriao sociedade-espao, "desdobra-se ao longo de um continuumque vai da dominao poltico-econmica mais 'concreta' e 'funcional' apropriao mais subjetiva e/ou 'cultural-simblica'". (Haesbaert, 2004a:95-96)Segundo Lefebvre, dominao e apropriao deveriam caminhar untas, ou melhor,esta ltima deveria prevalecer sobre a primeira, mas a dinmica de acumulaocapitalista fez com que a primeira sobrepujasse quase completamente a segunda,sufocando as possibilidades de uma efetiva "reapropriao" dos espaos, dominadospelo aparato estatal-empresarial elou completamente transformados, pelo valorcontbil, em mercadoria.

    Embora Lefebvre se refira sempre a espao, e no a territrio, fcilperceber que no se trata de espao num sentido genrico e abstrato, muito menosde um espao natural-concreto. Trata-se, isto sim, de um espao-processo, umespao socialmente construdo. Diferentemente de autores como Raffestin(1993[1980]), para quem o espao (fsico-natural) uma espcie de "matria-prima" para os processos de territorializao, como se o espao antecedesse aconstruo do territrio, para Lefebvre o espao, em sua trplice constituio'(enquanto espao concebido, percebido e vivido), sempre socialmente produzido.De certo modo, o que diferencia a produo do espao lefebvreana das dinmicas

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio Haesbaertde territorializao aqui enfocadas uma simples questo de foco, centralizadomais, aqui, nas relaes de poder que constituem aquele espao.

    Se o espao social aparece de maneira difusa por toda a sociedade e pode,assim, ser trabalhado de forma genrica, o territrio e as dinmicas de des-territorializao (sempre hifenizada) devem ser distinguidos atravs dos sujeitosque efetivamente exercem poder, que de fato controlam esse(s) espao(s) e,conseqentemente, os processos sociais que o(s) compe(m). Assim, o ponto cruciala ser enfatizado aquele que se refere s relaes sociais enquanto relaes depoder - e como todas elas so, de algum modo, numa perspectiva foucaultiana,relaes de poder, este deve ser qualificado, pois, dependendo da perspectivaterica, pode compreender desde o "anti-poder" da violncia2at as formas maissutis do poder simblico.Enquanto continuum dentro de um processo de dominao elouapropriao, o territrio e a territorializao devem ser trabalhados namultiplicidade de suas manifestaes- que tambm e, sobretudo, multiplicidadede poderes, neles incorporados atravs dos mltiplos sujeitos envolvidos (tantono sentido de quem sujeita quanto de quem sujeitado, tanto no sentido das lutashegemnicas quanto das lutas de resistncia - pois poder sem resistncia, pormnima que seja, no existe). Assim, devemos primeiramente distinguir osterritrios de acordo com aqueles que os constrem, sejam eles indivduos, grupossociais/culturais, o Estado, empresas, instituies como a Igreja etc. Os objetivosdo controle social atravs de sua temtorializao variam conforme a sociedade oucultura, o grupo e, muitas vezes, com o prprio indivduo (no caso da diferena degnero, por exemplo). Controla-se uma "rea geogrfica", ou seja, cria-se o"territrio", visando "atingirlafetar, influenciar ou controlar pessoas, fenmenose relacionamentos" (SACK, 1986:6).

    A territorialidade, alm de incorporar uma dimenso mais estritamentepoltica, diz respeito tambm s relaes econmicas e culturais, pois est"intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas prpriasse organizam no espao e como elas do significado ao lugar". Sack afirma tambm:

    A territorialidade, como um componente do poder, no apenas ummeio para criar e manter a ordem, mas uma estratgia para criar cmanter grande parte do contexto geogrfico atravs do qual nsexperimentamos o mundo e o dotamos de signijkado. (1986:219)

    2. Enquanto autores co mo Castoriadis propem uma no o muito ampla de poder, envolvendo todainstituio da sociedade, distinguindo-o da "poltica" enquanto "questionamento explcito da 'instituio estabelecida da sociedade" (1 992: 135), outros, com o Hannah Arendt, restringem o poderao poder "legtimo", socialmente reconhecido, o que ex clui a violncia - justamente "a perda depoder", diz ela, que "traz a tentao de substitui-lo pela violncia" (Arendt, 2004: 131).

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    Temtrio e M ultitemtonalidade: Um DebatePortanto, todo territrio , ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em

    diferentes combinaes, funcional e simblico, pois as relaes de poder tm noespao um componente indissocivel tanto na realizao de "funes" quanto naproduo de "significados". O territrio "funcional" a comear pelo seu papelenquanto recurso, desde sua relao com os chamados "recursos naturais" -"matrias-primas" que variam em importncia de acordo com o(s) modelo(s) desociedade(s) vigente(s) - como o caso do petrleo no atual modelo energticodominante.

    Para Raffestin, "um recurso no uma coisa", a matria em si, ele " umarelao cuja conquista faz emergir propriedades necessrias satisfao denecessidades". (199353) Como "meio para atingir um fim" (p. 225), no umarelao estvel, pois surge e desaparece na histria das tcnicas e da conseqenteproduo de necessidades humanas. Milton Santos, inspirado em Jean Gottman,prope distinguir o temtrio como recurso, prerrogativa dos "atores hegemnicos",e o territrio como abrigo, dos "atores hegemonizados" (Santos et al., 2000:12).Se recurso "um meio para obter um fim" (a acumulao e o lucro, para ocapitalista, que pode abstrair-se da identificao com o espao em que estes sorealizados), para os "hegemonizados" o territrio, podemos dizer, seria "um fimem si mesmov3-para eles, assim, "perder seu temtrio ", efetivamente, em maisde um sentido, "desaparecer", como propuseram Bonnemaison e Cambrzy (1996).Para muitos "hegemonizados" ou, como preferimos, subalternizados, otemtrio adquire muitas vezes tamanha fora que combina com igual intensidadefuncionalidade e identidade.O temtrio, neste caso, como defendem Bonnemaisone Cambrzy (1996), "no diz respeito apenas funo ou ao ter, mas ao ser". interessante como estas dimenses aparecem geminadas, sem nenhuma lgica apriori para indicar a preponderncia de uma sobre a outra: muitas vezes, porexemplo, entre aqueles que esto mais destitudos de seus recursos materiaisque aparecem formas as mais vigorosas de apego a identidades temtoriais ou"territorialismos".

    Assim, poderamos falar em dois grandes "tipos ideais" ou referncias"extremas" frente s quais podemos investigar o territrio: um, mais funcional,pnorizado na maior parte das abordagens, e outro, mais simblico, que vem seimpondo em importncia nos ltimos tempos. Enquanto "tipos ideais" eles nuncase manifestam em estado puro, ou seja, todo temtrio "funcional" tem semprealguma carga simblica, por menos expressiva que seja, e todo territrio"simblico" tem sempre algum carter funcional, por mais reduzido que parea.Num esquema genrico dos extremos deste j aludido cont inuum entrefuncionalidade e simbolismo, podemos caracteriz-los da seguinte forma:

    '. Agradecemos aqui as sugestes de Carlos Walter Porto Gon alves.23

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio HaesbaertTerritrio de dominncia "funcional" Territrio de dominncia "simblica"Processos de Dominao Processos de Apropriao (Lefebvre)"Territrios da desigualdade" "Territrios da diferena"Territrio "sem temtonalidade" Territorialidade "sem territrio"(empricamente impossvel) (ex.: "Teria Prometida" dos judeus)Princpio da exclusividade Princpio da multiplicidade (?)(no seu extremo: unifuncionalidade) (no seu extremo: mltiplas identidades)Territrio como recurso, valor de troca Territrio como smbolo, valor simblico(controle fsico, produo) ("abrigo", "lar", segurana afetiva)

    Em bora a princpio parea caber ao gegrafo manter sem pre "os ps nocho" e enfatizar a dimenso material do territrio, a realidade contempornea,dominada pelo mundo das imagens e das representaes, acabou incorporandoco m certa nfase no prprio mbito das proposies geogrficas uma viso "maisidealista" de territrio.Para os gegrafos Bonnem aison e Cambrzy (1996), por exem plo, vivemoshoje sob uma "lgica culturalista" ou "ps-moderna" de base identitria e reticularque se impe sobre a lgica funcional e zona1 (estatal) moderna. Por isso, "oterritrio primeiro um valor", estabelecendo-se claramen te "uma relao forte,ou mesm o uma relao espiritual" com nossos espaos de vida. Numa distinobastante questionvel, o prprio "territrio cultural" precederia os territrios"poltico" e "econmico". (p. 10)4Na verdade, como fica mais ntido no seu grande trabalho emprico sobrea ilha de Tanna, no arquiplago de Vanuatu (Bonnem aison, 1997), trata-se mais d euma territorialidade -ou mesmo, em suas palavras, de uma "ideologia d o territrio"- do qu e do territrio em sentido estrito. Cabe aqui, ento, distinguirmos territrioe temtorialidade - especialmente para reconhecerm os que esta, independente ouno d a efetivao de um territrio, tem papel cada vez mais relevante.

    Seg und o o prprio Bonnem aison, os habitantes de Tuva no "possuem" oterritrio, mas se identificam com ele. Todos os conflitos, antigos ou recentes, somoldados por uma espcie de "ideologia do territrio" que remonta aos mitossobre a criao do povo local. Embora em bases muito distintas e num jogo deinfluncias sociais muito diverso das sociedades tradicionais, teramos hoje umcerto retomo s "ideologias territorialistas" que, em pleno mundo globalizado,4. necessrio lembrar que Bonnemaison (1997) inspirou-se aqui em sua tese sobre a sociedade da 'ilha de Tanna, bem pouco "ps-m odema", onde o territrio ("cultural") no um produto dessasociedade, mas um a entidade que a precede e a funda , os habitantes locais auto-definindo-se com oman-ples, "homens-lugares". (p. 77)

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    Tem tno e Multitemtonalidade:Um Debate

    manifestam-se com crescente importncia, a territorialidade, num sentidosimblico, impondo-se como argumento para a construo efetiva do territrio -ou o territrio tornando-se, provavelmente, como afirmam Bonnemaison eCambrzy (1996:14), o mais eficaz de todos os construtores de identidade.No jogo contemporneo dos processos de destruio e reconstruoterritorial fica muito claro o ir e vir entre territrios mais impregnados de umsentido funcional, de controle fsico de processos, e aqueles onde a dimensosimblica- a territorialidade, para alguns - adquire um papel fundamental. Aqui

    importante aprofundar o debate sobre os vnculos e as possveis distines entreas noes de territrio e de territorialidade.Alguns autores, numa viso mais estreita, reduzem a territorialidade dimenso simblico-cultural do territrio, especialmente no que tange aos processosde identificao territorial. Na maioria das vezes, porm, eles no fazem estadistino, a territorialidade sendo concebida abstratamente, numa perspectiva maisepistemolgica, como "aquilo que faz de qualquer territrio um territrio" (Souza,1995:99), ou seja, as propriedades gerais reconhecidamente necessrias existnciado territrio - que variam, claro, de acordo com o conceito de territrio queestivermos partilhando.A territorialidade, no nosso ponto de vista, no apenas "algo abstrato",num sentido que muitas vezes se reduz ao carter de abstrao analtica,epistemolgica. Ela tambm uma dimenso imaterial, no sentido ontolgico deque, enquanto "imagem" ou smbolo de um territrio, existe e pode inserir-seeficazmente como uma estratgia poltico-cultural, mesmo que o territrio aoqual se refira no esteja concretamente manifestado-como no conhecido exemploda "Terra Prometida" dos judeus, territorialidade que os acompanhou eimpulsionou atravs dos tempos, ainda que no houvesse, concretamente, umaconstruo territorial correspondente.

    Realizando uma reviso terica sobre as diversas formas com que aconcepo de territorialidade foi proposta, podemos sintetizar atravs do seguinteelenco de posies:1) Territorialidade num enfoque mais epistemolgico:"abstrao", condio genrica (terica) para a existncia do territrio(dependendo, assim, do conceito de territrio proposto)2) Territorialidade num sentido'mais ontolgico:

    a. Como materialidade (ex. controle fsico do acesso atravs doespao material, como indica Robert Sack)b. Como imaterialidade (ex. controle simblico, atravs de umaidentidade territorial ou "comunidade territorial imaginada")c. Como "espao vivido" (frente aos espaos - neste caso,'territrios, formais-institucionais), conjugando materialidadee imaterialidade.

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 RogrioHaesbaertComo essas concepes devem estar sempre associadas a concepesde territrio correspondentes, igualmente relevante "mapear" as distintaspossibilidades de se trabalhar com a relao entre territrio e territorialidade, quese estende desde a indistino at a completa separao entre eles. Agrupando

    estas leituras teramos desde a temtorialidade como uma concepo mais amplado que territrio at a territorialidade como algo mais restrito, uma simples"dimenso" do territrio, passando pela abordagem diferenciadora, que separa edistingue claramente temtorialidade e temtrio. Da:a) Territorialidade como concepo mais ampla que territrio, que oengloba (a todo territrio corresponderia uma temtorialidade, masnem toda territorialidade teria, necessariamente, um territrio),territorialidade tanto como uma propriedade de territriosefetivamente construdos quanto como "condio" (terica) paraa sua existncia (neste caso, renem-se as concepes 1 e 2acima aludidas).b) Territorialidade praticamente como sinnimo de territrio: aterritorialidade como qualidade inerente existncia, efetiva, do

    territrio, condio de sua existncia.C Territorialidade como concepo claramente distinta de territrio,em dois sentidos:

    1 . temtorialidade como domnio da imaterialidade, comoconcepo distinta de temtrio, necessariamente material,concreto; a territorialidade definida na conjugao entreas concepes 1 e 2b, acima, ou seja, enquanto"abstrao" analtica e enquanto dimenso imaterial ouidentidade territorial.

    2. territorialidade como domnio do "vivido" (concepo 2c)ou do no institucionalizado, frente ao territrio comoespao formal institucionalizado (implicando assim umaviso mais estrita de territrio, a partir de sua dimensojurdico-poltica, formal)d) Territorialidade como uma das dimenses do territrio, a dimensosimblica (ou a "identidade temtorial"), conforme utilizado algumasvezes no mbito da Antropologia (neste caso a territorialidadeseria tratada exclusivamente no sentido 2b, acima identificado).

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    Territrio e Multitemtoriaiidade: Um DebateAssim, quando falamos em "territorialidade sem territrio'' devemos tomar

    cuidado para esclarecer a que concepo de territorialidade ou a q ue relao entreterritrio e territorialidade estamos nos referindo. Optamos aqui por tratar aterritorialidade num sentido mais am plo do que territrio (relao I), mas semprecom o cuidado de identificar, a cada momento, se estamos nos referindo territorialidade com o condio genrica para a existncia de um territrio, tenhaele existncia efetiva ou no (concepo l ) , ou se estamos nos reportando ?dimenso simblica (concepo 2b) ou "vivida" do territrio (concepo 2c).O que parece diferenciar nossa definio d e territrio em relao a outrasdisciplinas que no caracterizamos, nunca, territrio apenas pela sua dim ensosimblica - ao contrrio da territorialidade, ele sempre envolve uma dimensomaterial-concreta. Assim, distinguimos duas dimenses principais do territrio,uma mais funcional e outra mais simblica. Por isso, no quad ro em que propusemos"territrio de dominncia funcional" e "territrio de dominncia simblica",identificamos com o possibilidade, num extremo (pois o esquem a deve ser vistodentro de um continuum), a territorialidade "sem territrio", embora, no outroextremo, um temtrio "sem territorialidade" seja emprica - e teoricamente -inconcebvel, dentro da concepo aqui proposta de q ue pode existir territorialidadesem territrio, m as no o contrrio.

    Envolvendo sem pre relaes de poder, evidente que nossa concepo deterritrio tambm inclui o poder no seu sentido simblico (tal com o proposto porBourdieu, 1989). justamente por fazer uma separao demasiado rgida entreterritrio a partir de relaes de poder num sentido mais concreto, "funcional", etem trio a partir de relaes de poder mais simblico que muitos ignoram a riquezadas m ltiplas territorialidades em que estam os mergulhados. Propusem os assimdefinir territrio:

    (...) a partir da concepo de espao como um hbrido - hbridoentre sociedade e natureza, entre poltica, economia e cultura, e entrematerialidade e "idealidade", numa complexa interao tempo-espao,como nos induzem a pensar gegrafos como Jean Gottman e MiltonSantos, na indissociao entre movimento e (relativa) estabilidade -recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulao e "iconografias"[na acepo de Jean Gottman], ou o que melhor nos aprouver. (...) oterritrio pode ser concebido a partir da imbricao de mltiplasrelaes de poder, do poder mais material das relaes econmico-polticas ao poder mais simblico das relaes de ordem maisestritamente cultural. (Haesbaert, 2004a:79)

    Na verdade, hoje, mais do que nunca na histria do capitalismo, a "sociedadedo espetculo" (na famosa expresso cunhada por Guy Dbord) inst i tuiu oamlgama, tambm no interior da "funcionalidade" capitalista, dos processos culturaisd e identificao e (re)criao de identidades. C ompramos um produto muitas vezes

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 RogrioHaesbaertmais pela sua imagem (valor simblico) do que pela sua "funo" (material). O"marketing" em tomo destas imagens criadas sobre os objetos ampliou-se de talforma que o prprio espao geogrfico, enquanto paisagem, tambm transformadoem mercadoria e vendido, como ocorre no "mercado de cidades" (e de regies,deveramos acrescentar) global.O "temtrio simblico" invade e refaz as "funes"num carter complexo e indissocivel em relao funcionalidade dos territrios,ou seja, a dominao lefebvriana toma-se, mais do que nunca, tambm, simblica- um simblico, porm, que no advm do "espao vivido" da maioria, mas dareconstruo identitria em funo dos interesses dos atores hegemonicos.

    Mais importante, portanto, do que esta caracterizaoproblemtica, porquegenrica e aparentemente dicotmica, perceber a historicidade do territrio, suavariao conforme o contexto histrico e geogrfico - inclusive, como jressaltamos, dentro das diversas fases do capitalismo. Os objetivos dos processosde territorializao, ou seja, de dominao elou de apropriao do espao, variammuito ao longo do tempo e dos espaos. Assim, grande parte das sociedadestradicionais conjugava a construo material ("funcional") do territrio como abrigoe base de "recursos" com uma profunda identificao que recheava o espao dereferentes simblicos fundamentais manuteno de sua cultura. J na sociedade"disciplinar" moderna (at o sculo XIX, pelo menos) dominava a funcionalidadede um "enclausuramento disciplinar" individualizante atravs do espao - nodissociada, claro, da construo das identidades-suporte da modemidade, a doindivduo e a da nao (ou da "nao[enquanto]-Estado").

    Mais recentemente, nas sociedades ditas "de controle" ou, para ns, "desegurana" (e, para outros, num outro sentido, "ps-modernas"), vigora o controleelou a conteno da mobilidade, dos fluxos (redes) e, conseqentemente, dasconexes -o territrio passa ento, gradativamente, de um temtrio mais "zonal"ou de controle de reas (lgica tpica do Estado-nao) para um "territrio-rede"ou de controle de redes (lgica tpica das grandes empresas). A, o movimento oua mobilidade passa a ser um elemento fundamental na construo do territrio.

    Podemos, simplificadamente, falar em quatro grandes "fins" ou objetivosda territorializao, que podem ser acumulados elou distintamente valorizados aolongo do tempo:

    - abrigo fsico, fonte de recursos materiais elou meio de produo;- identificao ou simbolizao de grupos atravs de referentes espaciais (a

    comear pela prpria construo de fronteiras);- controle elou disciplinarizao atravs do espao (fortalecimento da idiade indivduo atravs de espaos tambm individualizados, no caso do

    mundo modemo);- construo e controle de conexes e redes (fluxos, principalmente fluxos '

    de pessoas, mercadorias e informaes). importante que ressaltemos agora, ento, dentro dessa multiplicidade

    territorial em que estamos mergulhados, quais os traos fundamentais que28

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    Tem trio e Multitemtorialidade: Um Debatedistinguem a atual fase des-reterritorializadora de carter dito mais flexvel docapitalismo e da modemidade (para alguns "ps-modernidade", para outros"modernidade radicalizada" [Giddens, 19901 ou "lquida" [Bauman, 20011).Entendemos que uma marca fundamental , ao lado da existncia de mltiplostipos de territrio, a experincia cada vez mais intensa daquilo que denominamosmultitenitorialidade.2. Mltiplos territrios

    Inicialmente necessrio distinguir aquilo que denominamos "mltiplosterritrios" e "multitenitorialidade" - a multiplicidade de territrios como umacondio sine qua non, necessria mas no suficiente, para a manifestao damultiterritorialidade. Rompendo com o dualismo entre fixidez e mobilidade,territrio e rede, propusemos uma primeira distino, muito importante naconstituio dos "mltiplos territrios" do capitalismo, entre territrios-zona, maistradicionais, e territrios-rede, mais envolvidos pela fluidez e a mobilidade. Maisdo que suas formas, entretanto, importa o tipo de poder e os sujeitos nelesenvolvidos.Poderamos mesmo, generalizando ao extremo, afirmar que o capitalismose funda, geograficamente, sob dois grandes "paradigmas" territoriais- um maistpico da lgica estatal "tradicional", preocupada com o controle de fluxos pelocontrole de reas, quase sempre contnuas e de fronteiras claramente definidas;outro mais relacionado lgica empresarial, tambm controladora de fluxos, pormprioritariamente atravs de sua "canalizao" em dutos e ndulos de conexo (asredes), de alcance, em ltima instncia, global. Arrighi (1996), de formageograficamente questionvel, distinguiu dois "modos opostos de governo ou delgica do poder" em relao dinmica entre capital (ou espao econmico) e a"organizao relativamente estvel do espao poltico", duas estratgiasgeopolticas (e geo-econmicas) que ele denomina de "capitalismo" e"territorialismo":Os govemantes territorialistas identificam o poder com a extenso e adensidade populacional de seus domnios, concebendo a riqueza10 capital comoum meio ou um subproduto da busca de expanso territorial. Os governantescapitalistas, ao contrrio, identificam o poder com a extenso de seu controlesobre os recursos escassos e consideram as aquisies territoriais um meio e umsubproduto da acumulao de capital. (p. 33)5 . "Historicamente, o capitalismo, com o sistema mundial de acumulao e governo, desenvolveu- ,se simultaneamente nos dois espaos. No espao-de-lugares (...) ele triunfou ao se identificar comcertos Estados. No espao-de-fluxos, em contraste, triunfou por no se identificar com nenhumEstado em particular, mas por construir organizaes empresariais no temtoriais que abrangiam omundo inteiro". (p. 84)

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio HaesbaertEssas duas lgicas de poder dentro do sistema mundial de acumulaoaparecem tambm associadas a dinmicas espaciais distintas -uma, o "capitalismo"em sentido estrito, seria marcada sobretudo pelo "espao dos fluxos" das grandesorganizaes empresariais, enquanto a outra, o "territorialismo", marcado pela

    lgica estatal, seria tambm o domnio do "espao dos lugares"*.O autor destaca, contudo, que so duas lgicas no-excludentes, poishistoricamente funcionariam em conjunto, "relacionadas entre si num dado contextoespao-temporal". (p. 34)Desde o exemplo dado por Arrighi como "prottipo doEstado capitalista", a Veneza do final da Idade Mdia e outras cidades-Estado donorte italiano, percebe-se com clareza a constituio de "territrios-rede" onde ocontrole era exercido tanto sobre o que o autor denomina de "enclaves anmalos"(as cidades-Estados), loci principais das poderosas oligarquias mercantis, quantosobre suas redes de atuao, que envolviam o domnio direto ou indireto (pelocomrcio) sobre outras reas (territrios-zona) e o domnio das rotas martimasque permitiam a sua interconexo.Bourdin (2001), comentando Balligand e Maquart, afirma:

    (...) sempre houve territrios descontnuos, os dos comerciantes e seusbalc es , os das peregrinaes e de suas igre jas de rom aria ,"territrios-rede" de que o Imprio de Veneza oferece uma perfeitailustrao. Hoje, este t ipo de territrio domina, dando um outrosignificado aos recortes tradicionais, sobretudo polticos. ( p . 167)Assim, dentro da diversidade temtorial do nosso tempo devemos levar emconta, em primeiro lugar, essa distino crescente entre uma lgica territorial zonale uma lgica territorial reticular6.Elas se interpenetram, se mesclam, de tal modoque a efetiva hegemonia dos territrios-zona estatais que marcaram a grande colchade retalhos poltica, pretensamente uniterritorial (no sentido de s admitir a formaestatal de controle poltico-territorial) do mundo moderno, v-se obrigada, hoje, a

    conviver com novos circuitos de poder que desenham complexas territorialidades,em geral na forma de territrios-rede, como o caso das territorialidades donarcotrfico e do terrorismo globalizado.Isso no significa, entretanto, que uma lgica reticular se imponhainexoravelmente dentro de uma "sociedade em rede", e que defendamos, de formasimples, a preponderncia desta forma de organizao territorial. A lgica zonalno s no desapareceu como um constituinte indissocivel das prticas sociais,na medida em que sempre existiro relaes sociais (de poder) que iro requisitar

    Para uma discusso m ais aprofundada desta temtica, bem como da noo de territrio-rede, vero item 7.1 (Territrios, redes e territrios-rede) em Haesbaert, 2004a. pp. 279-3 11. ' Ainda que esta "legislao" seja de exceo, com o discutido por Agamben (2002), e esteja inserida em processos de uma renovada "recluso" ou, num termo provavelmente mais consistente, "conteno" temtorial (Haesbaert, 2004b). por referir-se mais a uma lgica territorial reticular ("conteno de fluxos") do que zonal.

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    Temtrio e Multitemtonalidade:Um Debateo domnio de espaos contnuos e delimitados onde se "legisle" em nome de todosos integrantes desses espaos/territrios7.As organizaes em rede, como todossabem, nunca preenchem o espao social em seu conjunto, inserindo-se, portanto,"naturalmente", dentro de dinmicas sociais excludentes. A defesa de um "espaode todos" (ou o "espao banal" de Milton Santos), de um territrio efetivamente aservio de processos crescentes de democratizao, no pode nunca se restringirapenas modalidade de territrios-rede.Dentro dessa complexa relao entre redes e reas ou zonas como os doiselementos fundamentais constituintes do territrio (para Raffestin, duas das trs"invariantes" territoriais-a terceira seriam os plos ou ns, que no nosso ponto devista so, juntamente com os "dutos" e/ou fluxos, constituintes indissociveis dasredes), devemos destacar a enorme variedade de tipos e nveis de controle e/ouconteno territorial. Se o territrio moldado sempre dentro de relaes de poder,em sentido lato, ele envolve sempre, tambm, no dizer de Robert Sack, o controlede uma rea pelo controle da sua acessibilidade. Este controle, contudo, dependendodo tipo (mais funcional ou mais simblico, por exemplo) e dos sujeitos que opromovem (a grande empresa, o Estado, grupos tnico-culturais, etc.), adquirenveis de intensidade os mais diversos. Assim, com base em discusses anteriores(Haesbaert, 2002b e 2004a), propomos identificar "mltiplos territrios" - oumelhor, "mltiplas territorializaes", atravs das seguintes modalidades:

    a) Territorializaes (para quem efetivamente exerce seu controle,espaos de "excluso inclusiva", "territrios de exceo" dentroda ordem vigente) mais desterritorializantes,"desidentificadoras" ("espaos de indistino") e destituidorasde cidadania (porque a a exceo e a biologizao da "vidanua" se tornam a regra [Agamben, 2002]), como os campos derefugiados e outros espaos atravs dos quais se tenta conter amassa de "excludos" que Agamben define genericamente como"campos" (tendo no seu extremo o efetivo fechamento doscampos de concentra~)~.

    b) Territorializaes mais fechadas, quase "uniterritoriais" nosentido de imporem a ,correspondncia entre poder poltico eidentidade cultural, ligadas ao fenmeno do territorialismo,como nos territrios defendidos por grupos tnicos que sepretendem culturalmente homogneos, no admitindo umapluralidade territorial de poderes e identidades.

    8. Para Agamben, o "campo" 6 o "mais absoluto espao biopoltico de poder que jamais tenhasido realizado, no qual o poder tem diante de si seno a pura vida nua, sem qualquer mediao"(2002)

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio Haesbaertc) Territorializaes poltico-funcionais mais tradicionais, como ado Estado-nao que, pelo menos quando referido mais aoterritrio do que ao "sangue" (do contrrio equivaleria ao casoanterior), mesmo admitindo certa pluralidade cultural (sob a

    bandeira de uma mesma "nao" enquanto "comunidade[territorialmente] imaginada" (Anderson, 1989), no admite apluralidade de poderes.d) Territorializaes mais flexveis, que admitem a sobreposioterritorial, seja sucessiva (como nos territrios temporrios ouespaos multifuncionais na rea central das grandes cidades)ou simultaneamente (como na sobreposio "encaixada" deterritorialidades poltico-administrativas relativamente

    autnomas).e) Territorializaes efet ivamente mltiplas - uma"multite~torialidade"em sentido estrito, construda por gruposque se territorializam na conexo flexvel de territrios-redemultifuncionais, multi-gestionrios e multi-identitrios, comono caso de disporas de migrantes.Precisamos ento, a partir da, distinguir entre "mltiplos territrios" e"multiterritorialidade". O antroplogo colombiano Zambrano (2001), numaperspectiva semelhante, traz contribuies interessantes. Ele distingue entre"territrios plurais" e "pluralidade de territrio^"^. Com base na complicadarealidade scio-poltica e cultural da Colmbia, Zambrano reconhece amultiplicidade de territrios atravs dos prprios movimentos sociais e das lutastravadas por diferentes grupos e instituies. Assim, afirma ele:No mbito poltico o pertencimento gera o sentido de domnio sobreum lugar, sent ido que est imu la o aparecimen to de formas deautor idade e t r ibu ta o sobre o esp ao , conf iguran do a rea l

    perspectiva territorial: percepes de atores diversos, geralmentealheios aos contornos territoriais locais (Estado , guerrilhas, ONGsetc.) que inserem suas vises, confrontando-se com as dos residentes(organ izao social, formas de parentesco, uso do espao etc.) quedevem lutar pela hegemonia de u m modo part icular de exercerleg it imam ente o dom nio ou es tabe lec - lo com as pautas dedominao intervenientes que lhes so alheias. A propriedade da

    9. O autor parte d e uma definio de territrio com o "o esp ao terrestre, real ou [? I imaginado, queum povo (etnia ou nao) ocupa ou utiliza de alguma maneira, sobre o qual gera sentido depertencimento, que confronta com o de outros, e organiza de ac ordo com os padres de diferenciaoprodutiva (riqueza econmica), social (origem de parentesco) e sexolgnero (diviso sexual dosespao s) e [sobre o qual] exerce jurisdio". (Zambrano, 2001:29)

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    Territrio e Multiterritorialidade:Um Debateterra co mo fundam ento do terri trio deslocada pela noo desoberania que ao de domnio sobre o espao de pertencimento,real ou imaginad o. Sem a s am arras da propriedade, o territorialsurge com ma is nitidez enquanto espao de relaes entreas distintas representaes que legitimam as aes de domnio sobreele (...). A jurisdio tem fronteiras difusas que no so fisicas, isto, so desterritorializadas, poltica e sociklmen te falando, razopela qual o sentido de domnio se translada com os atores que deixamsuas m arcas na s loca l idades . Aparecem ass im a s jur i sd iesguerr i lhe i ras , parami l i t ares , munic ipa i s , i nd genas , a f ro -colom bianas, ecolg icas, judiciais, eclesisticas etc., n um m esmolugar, configurando nele uma arena prpria para a luta territorial.(p . 17, traduo livre)

    Ainda que questionemos este carter "desterritorializado" das jurisdies(cujo termo pode m uitas vezes ser substitudo por "territorialidades"), evidente,na anlise do autor, a multiplicidade de territrios - e tambm, num sentido maisamplo, territorialidades - que podem conviver num mesmo espao, alimentandoou no as lutas pelo territrio. o prprio Zambrano quem afirma, mais adiante,que o espao pode ser concebido com o "um cenrio de pugna entre territorialidades,isto , entre jurisdies, reais e imaginadas, que incidem sobre os territriosestruturados e habitados". Sugere ento que "os territrios plurais so umamultiplicidade de espaos diversos, culturais, sociais e polticos, com contedosjur isdicionais em tenso, que produzem formas par t iculares de ident idadeterritorial" (p. 18), um pouco como se todo territrio (formalmente institudo)implicasse o conv vio de mltiplas territorialidades.

    Distingue-se assim "pluralidade de territrios" e "territrios plurais", que,longe de uma "armadilha semntica", permite enfocar, segundo o autor, duasqualificaes distintas:

    A pluralidade de territrios indica sua multiplicidade: " a superfcieterrestre com o suporte est sujeita a u m processo permanente deorganizao/diferenciao,processo centra l para a reproduosis tmica. (...)" Os terr i tr ios p lurais , a lm de conceberem amultiplicidade descrita anteriormente, concebem todo espao terrestreocupado por distintas representaes sobre ele, que tendem a legitimara jurisdio sobre os habitantes que nele residem, configurando a sriede relaes sociais entre as diferentes percepes de domnio. (....) Osterritrios plurais permitem percebel; em cada unidade do mltiplo, apluralidade de percepes territoriais estruturadas [a cotidianeidadedos habitantes], estruturando [processo de construo] e estruturantes[ex.: judiciais, eclesis ticas e algumas guerrilheiras, formadas pela

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 RogCno Haesbaertprogressiva ao dos movimentos sociais]. (p. 29-30)

    Contendo a pluralidade de territrios, os temtrios plurais se manifestariampelo menos de duas formas (p. 31):- multiplicidade de territrios: temtrio plural como reunio de vriosterritrios (e territorialidades, poderamos acrescentar); .- pluralidade de jurisdies: territrio plural por abranger diferentesjurisdies (incorporando-as parcialmente ou por sobreposio).A pluralidade de temtrios pode estar compreendida de duas formas nos"territrios plurais" (noo mais prxima de nossa concepo demultitemtorialidade) - uma, vista a partir do "territrio plural" como conjuntojustaposto de diversos territrios compreendidos no seu interior, outra, a partir do

    "territrio plural" como conjunto superposto de vrios temtrios (ou temtorialidades)cuja abrangncia pode ir bem alm dos seus limites. como se fossem duas perspectivas distintas: na primeira, o olhar vaimais dos limites do "territrio plural" para o seu interior, na segunda o olharprioriza as relaes deste territrio com aqueles que se encontram para alm ouL'acima" dele. Tanto num caso como no outro o convvio de mltiplasterritorialidades implica sempre disputas. Como afirma Zambrano, "o territrio seconquista", sendo assim "luta social convertida em espao". (2001:31) Trata-se,

    a, de duas manifestaes daquilo que desdobraremos no prximo item como"multiterritorialidade" - tanto pela justaposio (sucesso) quanto pelasobreposio (simultaneidade) territorial. Se o territrio "luta social" enquanto"conquista pelo espao", como indica Zambrano, ela envolve sempre, como jdestacamos, jogos mais concretos, materiais-funcionais, e jogos mais simblicosde poder.3. Multiterritorialidade

    Para entendermos a multitemtorialidadecontempornea preciso remontars suas "origens". Na verdade, especialmente levando em conta as concepes detemtrio e de territrios mltiplos anteriormente discutidas, podemos afirmar quesempre vivemos uma multiterritorialidade:

    (...) a existncia do que estamos denominando multiterritorialidade, pelomenos no sentido de experimentar vrios territrios [elouterritorialidades] ao mesmo tempo e de, a partir da, formular umaterritorializao efetivamente mltipla, no exatamente uma novidade,pelo simples fato de que, se o processo de territorializao parte donvel individual ou de pequenos grupos, toda relao social implica umainterao territorial, um entrecruzamento de diferentes territrios. Em

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    Territrio e Multitemtorialidade: Um Debatecerto sentido, teramos vivido sempre uma "multiterritorialidade".(Haesbaert , 2004a:344)

    Fica evidente, a partir da, a necessidade de distinguir, inicialmente,multiterritorialidade num sentido amplo, ligada propriedade genrica damultiplicidade territorial (que, por sua vez, faz eco "multiplicidade" do espao, nosentido enfatizado por Massey,2004),e multitemtorialidade num sentido mais estrito,que envolve a experincia efetiva de m ltiplos territrios elou territorialidades -reconhecidas as distines anteriormente apresentadas.Um dos primeiros cientistas sociais a falar de multi-pertencimentoterritorial e multitemtorialidade foi o socilogo francs Yves Barel. Ele parte deuma noo demasiado ampla e "sociologizante" de temtrio, definido como o"no-social dentro do qual o social puro deve imergir para adquirir existncia"(Barel, 1986:13 ), para afirmar que:

    (...) o homem , por ser uma animal poltico e um animal social, tambmum animal territorializador [poderia ter dito tambm "temtorial", poisno h hom em sem territrio, este como imanente ao carter humano].Diferentemente, talvez, de outras espcies animais, seu trabalho deterritorializao apresenta, contudo, uma particularidade marcante: arelao entre o indivduo ou o grupo humano e o territrio no umarelao biunvoca. Isto sign$ca que nada impede este indivduo ou estegrupo de produzir e de "habitar" mais de um territrio. (...) raro queapenas um territrio seja suficiente para assumir corretamente todas asdimenses de uma vida individual ou de um grupo. O indivduo, porexemplo, vive ao mesmo tempo ao seu "nvel" , ao nvel de sua famlia,de um grupo, de uma nao. Existe portanto multipertencimentoterritorial. (p. 135)

    Trata-se, contudo, daquilo que podemos denominar multiterritorialiadeem um sentido mais tradicional, resultante de uma sobreposio lgica de territrios,hierarquicamente articulados, "encaixados". Os exemplos citados por Barel, umpouco como na espacialidade diferencial de Yves Lacoste, comentada a seguir,deixam claro que s e trata de uma m ultiteriitorialidade pelo "encaixe" de territriosem diferentes dimenses ou escalas.Assim, Barel d com o exem plo de "multiterritorialidade contempornea"a poltica d e emprego - exem plo coerente com sua am pla concepo de territrio.A luta contra o desemprego no pode mais ficar subordinada s iniciativas decarter estatal-nacional, pois se trata de um fenmeno internacional ou mesmo.global. As polticas nacionais, assim, "se tom am polticas locais, frequentementeineficazes por causa de seu localismo". (p. 137-138)

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio HaesbaertSeria ento a multiterritorialidade uma questo de escala ou, nos termosde Lacoste, uma questo de espacialidade diferencial? Neste sentido, interessanteque reflitamos um pouco sobre as relaes entre multiterritorialidade eespacialidade diferencial.Lacoste (1988) ressalta a diferena entre a espacialidade alde ou rural ea espacialidade urbana. Mesmo sem usar o termo, ele j antecipa a "compressotempo-espao" (Harvey, 1992), profundamente diferenciada conforme as"geometrias de poder" (Massey, 1993) em que esto situados os grupos sociais, aoafirmar que "nos dias de hoje, (...) tudo aquilo que est longe sobre a carta bemperto por determinado meio de circulao. (...) Hoje, n6s nos defrontamos comespaos completamente diferentes, caso sejamos pedestres ou automobilistas (ou,com mais razo ainda, se somarmos o avio)". Assim, na nossa vida cotidiana,referimo-nos, "mais ou menos confusamente, a representaes do espao detamanhos extremamente no-semelhantes (...) ou, antes, a pedaos derepresentao espacial superpostos, em que as configuraes so muito diferentesumas das outras".Essa "multi-escalaridade" das prticas-e representaes- socioespaciaisimplica a vivncia de mltiplos "papis" que "se inscrevem cada um em migalhasde espao", descontnuo, multiescalar:

    Vivemos,apartir d o momento atual, numa espacialidade diferencial eitade um a multiplicidade de representaes espaciais, de dimenses muitodiversas, que correspondem a toda uma srie de prticas e de idias,mais ou menos dissociadas (...).(Lacoste, 1988:49)O autor reconhece ento as diferentes representaes do espao referidas

    nossa mobilidade mais restrita, cotidiana (a nvel de bairro, cidade, deslocamentosde fim de semana); as configuraes espaciais no-coincidentes das redes dasquais dependemos (redes administrativas, de comercializao, de influncia urbana,financeiras); e as representaes espaciais de mais ampla escala, veiculadas pelamdia e pelo turismo, e que frequentemente abarcam o globo no seu conjunto.Assim:

    O desenvolvimento desse processo de espacialidade diferencial se traduzpor essa proliferao de representaes espaciais, pela multiplicaodas preocupaes concem entes a o espao (nem que seja por causa damultiplicao dos deslocamentos). Mas esse espao do qual todo mundofala, ao qual nos referimos todo tempo, cada vez mais dificil deapreender globalmente para se perceber suas relaes com uma polticaglobal. (Lacoste, 198850)

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    Temtrio e Multitemtorialidade: Um Debate

    A dificuldade em "apreender globalmente" nossa experincia espacialcontempornea, destacada por Lacoste, tem a ver com a descontinuidade dosespaos - e dos territrios, organizados muito mais em rede do que em termos dereas. Provm da um srio dilema poltico, a ser retomado em outro trabalho:como organizar movimentos polticos de resistncia atravs de um espao tofragmentado e, em tese, multi-escalar e... desarticulado'?Se para Lacoste "as prticas sociais se tornaram mais ou menosconfusamente multiescalares" (p. 48-49), muitos de n6s, contudo, encarregam-sede desfazer a confuso deste novelo e, retomando seus fios, tecer sua prpria rede,ou melhor, seu(s) prprio(s) territ6rio(s)-rede(s) -que implicam, sem dvida, assim,a vivncia de uma multiterritorialidade, pois todo territrio-rede resulta daconjugao, em uma escala diferente, de territrios-zona,descontnuos.Alm disso,mais do que de superposio espacial, como enfatiza o autor, trata-se hoje,principalmente com o novo aparatotecnolgico-informacional nossa disposio,de uma rnultiterritorialidadeno apenas por deslocamento fsico como tambm por"conectividade virtual", a capacidade de interagirmos distncia, influenciando e,de alguma forma, integrando outros territrios.Distinguimos ento pelo menos duas grandes perspectivas de tratamentoda multitemtorialidade:

    (...) aquela que diz respeito a uma multiterritorialidade "moderna",zona1 ou de territrios de redes, embrionria, e a que se refere multiterritorialidade "ps-m oderna", reticular ou de territrios-redepropriamente ditos, ou seja, a m ultiterritorialidade em sentido estrito.(Haesbaert, 2004a:348)A rnultiterritorialidade contempornea inclui assim uma mudana noapenas quantitativa - pela maior diversidade de territrios que se colocam aonosso dispor (ou, pelo menos, das classes e grupos mais privilegiados) - mastambm qualitativa, na medida em que temos hoje a possibilidade de combinar deuma forma indita a interveno e, de certa forma, a vivncia, concomitante, deuma enorme gama de diferentes territrios elou temtorialidades.A chamada condio ps-modema inclui assim uma rnultiterritorialidade:(...) resultante do domnio de um novo tipo de territrio, o territrio-rede em sen tido estrito (...). Aqui, aperspectiva euclidiana de um espao-superfcie contnuo praticamente sucumbe descontinuidade, fragmentao e simultaneidade de territrios que no podemos maisdistinguir claramente onde com eam e onde terminam ou , ainda, onderiro "ec lodir", pois formaes rizomticas tambm so possveis. (...)(Haesbaert, 2004a:348)

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    Esta flexibilidade tem torial d o mundo dito "ps-modemo", embora noseja uma marca universalmente difundida (longe disso), permite que alguns grupos,em geral os mais privilegiados, usufruam de uma multiplicidade indita deterritrios, seja no sentido da sua sobreposio num mesmo local, seja da suaconexo em rede por vr ios pon tos do mundo . Aqui podemos lembrar amultiterritorialidade m ais funcional da organizao terrorista A1Qaeda, j analisadaanteriormente (Haesbaert, 2002a), e a multitemtorialidade funcional e simblicada elite ou da "burguesia" globalizada.Ao contrrio da "extraterritorialidade" dos globetrotters ou "turistas"globalizados de Bauman (1999), destacamos a multiterritorialidade da nova eliteplanetria. Partindo do pressuposto de que todo poder social um poder sobre oespao, o s socilogos Pinon e Pinon-Charlot (2000) afirmam q ue a "burguesia"(conceito polmico) contempornea s e reproduz ao mesmo tem po pela proximidaderesidencial (em bairros elou condomnios seguros e plenos de amenidades) -"temtrio-zona" no seu sentido mais tradicional - e pela multiterritorialidade, ouseja, pelo usufruto de mltiplos temtrios, reveladores de uma dupla inserosocial, tanto no sentido de uma profunda memria fam iliar quanto de um a intensavida mundana. E sta mu ltitemtorialidade tambm seria visvel atravs do carterde "classe internacional", tanto no sentido da internacionalizao da vidaprofissional ou de negcios quanto de lazer, via turismo internacional.O soc i logo Ul r i ch B eck (1999 ) chega mesmo a fo r j a r o t e rmo"topoligamia" para se referir a este fenomeno de "casamento com diversos lugares",para ele muito difundido, mas que aqui enfatizamos como um fenmeno maiscaracterstico dos grupos mais privilegiados. Citando o ca so de uma senhora quedivide anualmen te sua vida en tre uma casa na Alemanha e outra no Qunia, eleconstata que ela "tem uma vida topoligmica,est afeioada a coisas que parecemexcludentes, frica e Tutzing. Topoligamia transnacional, estar casado com lugaresqu e pertencem a mundos distintos: esta a porta de entrada da g lobalidade da vidade cada um (...)". (p. 135) Num sentido mais amplo do que o nosso paramultitemtorialidade , e le trabalha com processos de "pluri" ou "multilocalizao","a altemncia e a escolha dos lugares" como "padrinhos da globalizao". (p.137) importante acrescentar a esta m obilidade fsica extremam ente facilitadade que usufrui a classe hegemnica contempornea, que podemos denominar, numsentido de mobilidade fsica, uma "multi terri torialidade sucessiva", a sua"mobilidade virtual" ou uma "multitemtorialidade simultnea".Como diz Bauman, a maioria das pessoas "est e m movim ento mesmo sefisicamente parada" (1999:85). Para estas, o espao enquanto distncia pareceimportar muito pouco. Por outro lado, a acessibilidade geogrfica ampliada deque d ispe a elite planetria no impede que ela tenha no s que se "proteger"em termos d e espao residencial com o tambm d e manter as conexes, fsicas e/

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    Territrio e Multiterritorialidade:Um Debate

    ou informacionais, entre os mltiplos territrios que, combinados, conformam a suamultiterritorialidade.

    Tal como afirmamos em trabalho anterior (Haesbaert, 2004a), dentro dessasnovas articulaes espaciais em rede surgem territrios-rede flexveis onde o queimporta ter acesso, ou aos meios que possibilitem a maior mobilidade fsicadentro da(s) rede(s), ou aos pontos de conexo que permitam "jogar" com asmltiplas modalidades de territorialidade existentes, criando a partir da uma nova(mu1ti)territorialidade.

    Trata-se assim de vivenciar essas mltiplas modalidades, de formasimultnea (no caso da mobilidade "virtual", por exemplo) ou sucessiva (no casoda mobilidade fsica), num mesmo conjunto que, no caso dos indivduos ou dealguns grupos, pode favorecer mais uma vez, agora no mais na forma de territrios-zona contnuos, um novo tipo de "experincia espacial integrada". Esta novaexperincia, que a experincia da multiterritorialidadeem sentido estrito, inclui:

    - uma dimenso tecnol6gico-informacional de crescente complexidade,em tomo daquilo que podemos denominar uma reterritorializao via ciberespao(e no uma desterritorializao,como defende Lvy, 1996,1999), e que resulta naextrema valorizao da maior densidade informacional extremamente seletiva dealguns pontos altamente estratgicos do espao;

    - como decorrncia dessa nova base tecnol6gico-informacional, umacompresso espao-tempo de mltiplos alcances ou "geometrias de poder" (como fenmeno do alcance planetrio instantneo ou em "tempo real"), com contatosglobais de alto grau de instabilidade e imprevisibilidade;- uma dimenso cultural-simblica cada vez mais importante dos processosde temtorializao, com a identificao territorial ocorrendo muitas vezes no/com o prprio movimento e, no seu extremo, referida prpria escala planetriacomo um todo (a "Terra-ptria" de Morin e Kem, 1995).Nesse contexto:

    A principal novidade que hoje temos uma diversidade ou um conjuntode opes muito maior de territrios/territorialidadescom o s/as quaispodemos 'Ijogar", uma velocidad e (o u facilidade, via Intem et, porexem plo) muito m aior ( e mais mltipla) de acesso e trnsito por essasterritorialidades - elas prprias muito mais instveis e mveis .- e,dependendo de nossa condio social, tambm muito mais opes paradesfazer e refazer constantemente essa multiterritorialidade. Haesbaert,2004a:344)

    O mais importante a destacar na nossa experincia multiterritorial.contempornea o fato de que no se trata simplesmente, como j ressaltamos, daimbricao ou da justaposio de mltiplos territrios que, mesmo recombinados,

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio Haesbaertmantm sua individualidade numa espcie de "todo" como produto ou somatriode suas partes. A efetiva rnulti territorialidade, hoje, seria uma experinciaprofundam ente inovadora a partir da compresso espao-temporal qu e permite

    (...) pela comunicao instantnea, contatar e mesmo agir [como nocaso de grandes empresrios que praticamente '.'dirigem" suas fazend asou firmas distncia , via Internet e outras modalidades informacionais]sobre territrios completamente distintos do nosso, sem a necessidadede mobilidade fsica. Trata-se de uma multiterritorialidade envolvidanos diferentes graus daquilo que poderamos denominar como sendo aconectividade elou vulnerabilidade informacional (ou virtual) dosterritrios. (Haesbaert, 2004a:345)

    importante distinguir a, claramente, a dimenso mais propriamentematerial e a dimenso simblica da multiterritorialidade. Assim como concebemo so tem trio dentro de um contnuo d o mais funcional ao mais simblico (no extremo,um a territorialidade "sem territrio"), tambm a multiterritorialidade pode ter umadimenso concreta mais incisiva, com o no caso da tele-ao ou ao distncia,anteriormente aludida, e uma maior carga simblica, como no caso da chamada"hibridao" de referncias identitrio-territoriais (Haesbaert, no prelo), numamlgama capaz de recriar, mesmo no hibridismo, processos de identificao e(re)construo terr i tor ial (a identif icao com "lugares hbridos", mult i -identitrios).

    A realizao da rnultiterritorialidade contempornea, evidente, envolvecom o condies bsicas a presena de uma grande multiplicidade de territrios eterritorialidades (incluindo territrios/territorialidadesmais "hbridos"), bem co mosua articulao na forma, principalmente, de territrios-rede. Estes , com o j vimos,so por definio, sempre, territrios mltiplos, na medida em qu e podem conjugarterritrios-zona (manifestados numa escala espacialmente mais restrita) atravsde redes d e conexo (numa esca la mais ampla). A partir da se desenham tambmdiferenciaes dentro da prpria dinmica de "multiterritorializao". Mesmoexigindo um desdobramento futuro, necessrio distinguir, por exemplo:

    - os agentes que promovem a mult i terr i tor ial izao e as profundasdistines em termos de objetivos, estratgias e escalas, sejam eles indivduos,grupos, instituies, o Estado ou a s empresas.- o carter mais sim blico ou m ais funcional da rnultiterritorialidade - talcom o no que se refere definio de territrio, ela aparece ora com uma maiorcarga simblica (como no caso das grandes disporas de imigrantes), ora commaior carga funcional (como no caso das redes do megaterrorismo global); noprimeiro caso importante analisar tambm as mltiplas identidades territoriais

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    Temtrio e Multitemtorialidade: Um Debate(territorialidades num sentido cultural) nela envolv idas.

    - os nveis de compresso espao-tempo (e, conseqentemen te, de "tele-ao") nela incorporados, ou seja, as mltiplas "geometrias de poder" dessacompresso, bem com o o sentido potencial ou efetivo de sua realizao.

    - o carter contnuo ou descontnuo da multitenitorialidade, at que pontoela ocorre pela justaposio (ou "encaixe"), num mesmo espao, de mltiplosterritrios (O U, or ou tro lado, pela vivncia de "territrios mltiplos"), e a t queponto ela corresponde conexo d e mltiplos tem trios , em rede (identificandoento, tal como na dist ino entre terri trios-zona e terri trios-rede, umarnultiterritorialidade "zonal" mais "tradicional" ou em sentido lato, e umarnultiterritorialidade "reticular" em sentido mais estrito).

    - a combinao de "tempos espaciais" incorporada rnultiterritorialidade-devendo-se discutir assim, tambm, de alguma forma, as implicaes das mltiplasterritorialidades acumuladas desigualmen te ao longo do tempo (Santos, 1978)1naconstruo da rnultiterritorialidade.4. (No) concluindo: implicaes polticas do conceito

    Numa breve (in)concluso, apontando tambm para desdobramentosfuturos, podemos afirmar que o mais importante neste debate diz respeito simplicaes polticas d o conceito de m ultitenitorialidade, suas repercusses emtermos de interveno na realidade concreta ou e m termos estratgicos de poder.C o m o j a fi rm a m o s , n e c e s s r i o d i s t i n g u i r , p o r e x e m p l o , e n t r e arnultiterritorialidade potencial (a possibilidade de ela se r constru da ou acionada)e a multitenitorialidade efetiva, real-izada:

    As implicaes polticas desta distino so importantes, pois sabemosque a disponibilidade do "recurso" multiterritorial-ou a possibilidadede ativar ou de vivenciar concomitantemente mltiplos territrios - estrategicamente muito relevante na atualidade e, em geral, encontra-se acessvel apenas a uma minoria. Assim, enquanto uma eliteglobalizada tem a opo de escolher entre os territrios que melhor lheaprouvel; vivenciando efetivamente uma rnultiterritorialidade, outros,na base da pirmide social, no tm sequer a opo do "primeiro"'O. Milton Santos sugeriu a noo de tempo espacial para dar conta do "problema das superposies"tanto no tempo quanto no espao, j que "cada varivel hoje presente na caracterizao de umespao aparece co m uma data de instalao diferente, pelo simples fato de que no foi difundida aomesmo tempo". Assim, cada lugar seria "o resultado de aes multilaterais que se realizam emtempos desiguais sobre cada um e e m todos o s pontos da superfcie terrestre". (Santos, 1978:Zll)

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    GEOgraphia - Ano IX - No17 - 2007 Rogrio Haesbaertterritrio, o territrio como abrigo, fundamento mnimo de suareproduo fisica cotidiana. (Haesbaert, 2004a:360)

    Pensar, com o inmeros autores nas Cincias Sociais, que estamos cadavez mais imersos em processos de desterritorializao, demasiado simplista e,de certa forma, politicamente "imobilizante", pois imagina-se que, num mundoglobalm ente mvel, sem estabilidade, marcado pela imprevisibilidade e a fluidezdas redes e pela virtualidade do ciberespao, estamos quase todos merc dospoucos que efetivamente controlam estes fluxos e redes - ou, num a posio aindamais extremada, nem m esmo eles podendo m ais exercer, a, algum tipo de controle.

    S e o discurso da desterritorializao serve, antes de mais nada, quelesque pregam a destruio d e todo tipo de controle ou barreira espacial, ele claramentelegitima a fluidez global dos circuitos do capital, especialmente do capital financeiro,num mundo em que o ideal a ser alcanado seria o enfraquecimento e, no limite, odesaparecimento do Estado, delegando todo poder s foras do m ercado (ver, porexemplo, as teses de um "guru" da g lobalizao como O hmae [1990, 19961 sobreo "fim das fronteiras" e o "fim do Estado-nao").

    F a l a r n o s i m p l e s m e n t e e m d e s t e r r i t o r i a l i z a o m a s e mmultiterritorialidade e territrios-rede, moldados no e pelo movimento, implicareconhecer a importncia estratgica do espao e do territrio na dinmicatransformadora da sociedade. Inspiramo-nos aqui no "sentido global de lugar"proposto por Doreen M assey (2000[1991]). Criticando as vises mais reacionriasque vem o lugar apenas com o um espao estvel, de fronteiras bem delimitadas eidentidades bem definidas, um pouco como em alguns territrios-zona aquicomentados, a autora prope uma viso "progressista" de lugar, "no fechado edefensivo", voltado para fora e adaptado a nossa era de compresso de espao-tempo.

    Devem os, contudo, complexificar esta leitura, na m edida em q ue nem sd e "nveis" de m ultiterritorialidade vive a sociedade contempornea. Velhasestratgias de "recluso" territorial tambm se reconfiguram e s e multiplicam, aolado de mov imentos reacionrios de (relativo) fechamento territorial e m tom o d erelaes biunvocas entre territrio e identidades culturais essencializadas. Oaumento da precarizao econmica e temto rial planetria tambm tem estimuladodiscursos neo-territorialistas em tom o d a segregao e mesm o d o isolamento emnome da "segurana". Mas estes so temas que estamos aprofundando em umoutro trabalho.O territrio, como espao dominado elou apropriado, manifesta hoje umsentido multi-escalar e multi-dimensional que s pode ser devidamente apreendidodentro de uma concepo de multiplicidade, tanto no sentido da convivncia de -" m l t ip los " ( t i pos ) de t e r r i t r io qu a n to da c ons t r u o e f e t i va damultiterritorialidade. Toda ao que se pretenda efetivamente transformadora, hoje,

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    Territrio e Multiterritorialidade:Um Debate

    necessita, obrigatoriamente, encarar esta questo: ou se trabalha com a multiplicidadede nossas territorializaes, ou no se alcanar a transformao que almejamos.Os movimentos contra o neoliberalismo e por uma outra globalizao que o digam.Geograficamente falando, pensar multiterritorialmente significa pensar tanto emmltiplos poderes (ou "govemanas") quanto em mltiplas identidades (em espaosculturalmente mais hbridos) e mesmo em mltiplas funes (a "multifuncionalidade"econmica)- em sntese, um debate complexo em prol da perspectiva maior deconstruo de uma outra sociedade, ao mesmo tempo mais universalmente igualitriae mais multiculturalmente reconhecedora das diferenas humanas.Resumo: Este trabalho desdobra proposta anterior sobre a concepo demultiterritorialidade, a partir de um debate em torno dos conceitos de territrio,

    . temtorialidade e mltiplos temtrios, aprofundando as vrias manifestaes das formascontemporneas de multitemtorialidade.Palavras-chave: Temtrio -Temtorialidade -MultitemtorialidadeTERRITORY AND MULTITERRITORIALITY: A DEBATE.Abstract: This work aims to develop the conception of multitemtoriality, which we havealready proposed, regarding always the debate of other concepts, as temtory, territorialityand "multiple temtories". In so doing, we stress the severa1 manifestations of contemporaryfoms of multitemtoriality.Keywords: Temtory -Temtoriali9 - MultitemtorialityBIBLIOGRAFIA

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    GEOgraphia - Ano IX - No 17 - 2007 Rogrio Haesbaert