Habitação social em cidades do Brasil

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Coleo HABITARE/FINEP

HABITAo soCIAl NAs mETRPolEs BRAsIlEIRAsUma avaliao das polticas habitacionais em Belm, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e so Paulo no final do sculo XXCoordenador

Adauto lucio Cardoso

Porto Alegre 2007

2007, Coleo HABITARE Associao Nacional de Tecnologia do Ambiente Construdo ANTAC Av. Osvaldo Aranha, 99 - 3 andar - Centro CEP 90035-190 - Porto Alegre - RS Telefone (51) 3308-4084 - Fax (51) 3308-4054 http://www.antac.org.br/ Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP Presidente Luis Manuel Rebelo Fernandes Diretoria de Inovao para o Desenvolvimento Econmico e Social Eliane de Britto Bahruth Diretoria de Administrao e Finanas Fernando de Nielander Ribeiro Diretoria de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Eugenius Kaszkurewicz Grupo Coordenador Programa HABITARE Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP Caixa Econmica Federal - CAIXA Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq Ministrio da Cincia e Tecnologia - MCT Ministrio das Cidades Associao Nacional de Tecnologia do Ambiente Construdo ANTAC Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas SEBRAE Comit Brasileiro da Construo Civil da Associao Brasileira de Normas Tcnicas - COBRACON/ABNT Cmara Brasileira da Indstria da Construo CBIC Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional ANPUR Apoio Financeiro Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP Caixa Econmica Federal - CAIXA Editores da Coleo HABITARE Roberto Lamberts - UFSC Carlos Sartor - FINEP Equipe Programa HABITARE Ana Maria de Souza Angela Mazzini Silva

Projeto grfico Regina lvares Texto de apresentao da capa Arley Reis Coordenao de reviso Claudio Cesar Santoro Revisores M. Cecilia G. Barbosa Moreira Vilma Homero Editorao eletrnica Amanda Vivan Imagem da capa Reproduo da obra de Candido Portinari Favela com Msicos 1957 Pintura a leo/madeira 46 X 55 cm Reproduo autorizada por Joo Candido Portinari Imagem do acervo do Projeto Portinari Fotolitos e impresso COAN - Indstria Grfica www.coan.com.brDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP). Associao Nacional de Tecnologia do Ambiente Construdo - ANTAC

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Habitao social nas metrpoles brasileiras: uma avaliao das polticas habitacionais em Belm, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e So Paulo no final do sculo XX / Organizador Adauto Lucio Cardoso. Porto Alegre : ANTAC, 2007. (Coleo Habitare) 552 p. ISBN 978-85-89478-19-9

1. Habitao de Interesse Social. 2. Poltica Habitacional Brasil. I. Cardoso, Adauto Lucio. II.Ttulo. III. Srie CDU 728.222

Coordenao da Coleo Adauto Lucio Cardoso Autores Adauto Lucio Cardoso, Andra Pinheiro, Betnia de Moraes Alfonsin, Danielle Duarte de Oliveira, Demstenes Moraes, Ivana Arruda da Silveira, Jan Bitoun, Jos Flvio Morais Castro, Jos Jlio Ferreira Lima, Lvia Miranda, Luciana de Oliveira Royer, Maria ngela de Almeida Souza, Maria Elvira Rocha de S, Maria Helena de Lacerda Godinho, Maria Vitria Paracampo, Marinella Machado Arajo, Moema Carneiro, Nelson Baltrusis, Patrcia Regina Saldanha de Oliveira, Rachel de Castro Almeida, Renato Godinho Navarro, Rosane Lopes de Arajo, Srgio Azevedo, Sheila Villanova Borba, Suzana Pasternak Taschner, Sylvia Antunes Gonzlez, Victor Rene Villavicencio Matienzo e Will Robson Coelho Coordenao Nacional do Projeto Rede Habitat Coordenador geral Adauto Lucio Cardoso Observatrio das Metrpoles/IPPUR/ UFRJ Orlando A. dos Santos Junior - Observatrio das Metrpoles/ IPPUR/UFRJ Gerncia de execuo Will Robson Coelho - Observatrio das Metrpoles/IPPUR/UFRJ Regio Metropolitana de Belm Equipe tcnica e apoio: Andrea Pinheiro, Maria Elvira Rocha de S, Jos Julio Lima, Maria Vitria Paracampo Bolsistas: Karina Cascaes Penanti, Ilkimy Aparecida Paixo Aranha, Rogrio da Silva Santos Regio Metropolitana de Belo Horizonte Coordenao: Maria Helena Navarro e Sergio Azevedo (consultor) Equipe tcnica e apoio: Renato Godinho Navarro, Victor Rene Villavicencio Matienzo, Alfio Conti, Elisete de Assis R. L. Ribeiro, Lena de Lacerda Godinho, Naiane Loureiro dos Santos, Rachel Almeida Bolsistas: Ana Paula de Oliveira, Daniele Duarte de Oliveira Regio Metropolitana do Rio de Janeiro Coordenao: Adauto Lucio Cardoso, Orlando A. dos Santos Junior Equipe tcnica e apoio: Will Robson Coelho, Cleber Lago, Tatiana Dahmer, Cynthia Campos Rangel, Peterson Leal Pacheco, Henrique R. de Castro Bolsistas: Adilton dos Santos Jesus, Ludmila Rodrigues, Danielle B. Ferreira

Regio Metropolitana de Recife Coordenao: Lvia Izabel B. de Miranda, FASE-PE Equipe tcnica e apoio: Jan Bitoun, Maria Angela de A. Souza Bolsistas: Marja Mariane, Sergio Ximenes Silva Regio Metropolitana de So Paulo Coordenao: Rosngela Paz Consultorias de coordenao: Suzana Pasternak, Lucia Bogus Equipe tcnica e apoio: Nelson Baltrussis, Luciana Royer, Paula Santoro Bolsistas: Vagner Izaguire do Amaral, Juliana Abramides dos Santos Regio Metropolitana de Porto Alegre Coordenao: Betania Alfonsin, Sheila Borba Equipe tcnica e apoio: Sylvia Gonzalez, Rosetta Mammarela, Rede Habitat (Porto Alegre) Bolsistas: Flvio Augusto, Rodrigo Rocha Souza Instituies de apoio Co-executores do Projeto Rede Habitat Observatrio Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional (FASE-RJ, FASE- Belm e FASE-PE) Fundao de Economia e Estatstica - Ncleo de Estudos Regionais e Urbanos - FEE/NERU Departamento de Sociologia e Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais Pontifcia da Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo - FAU/USP Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Observatrio das Metrpoles/IPPUR/UFRJ Departamento de Servio Social, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, e Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Observatrio de Polticas Urbanas PROEX/PUCMINAS Observatrio Pernambuco de Polticas Pblicas e Praticas Scio Ambientais - NESC/ CpqAM - CMG/ UFPE - FASE PE Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Par UFPA Instituto de Estudos, Formao e Assessoria em Polticas Sociais PLIS ACESSO Cidadania e Direitos Humanos - Cidade de Porto Alegre

sumrioApresentao Adauto Lucio Cardoso 1 Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias Srgio Azevedo 2 Habitao Social na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro Adauto Lucio Cardoso, Rosane Lopes de Araujo e Will Robson Coelho 3 Um olhar sobre a habitao em So Paulo Suzana Pasternak Taschner e Nelson Baltrusis 4 Poltica habitacional para os excludos: o caso da Regio Metropolitana do Recife Maria ngela de Almeida Souza 5 A questo habitacional na Regio Metropolitana de Belm Andra Pinheiro, Jos Jlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de S e Maria Vitria Paracampo 6 Poltica Municipal de Habitao na Regio Metropolitana de Belo Horizonte Maria Helena de Lacerda Godinho, Marinella Machado Arajo, Rachel de Castro Almeida, Renato Godinho Navarro e Victor Rene Villavicencio Matienzo 7 Anlise de experincias alternativas de habitao popular em municpios da Regio Metropolitana de Porto Alegre Sheila Villanova Borba, Betnia de Moraes Alfonsin e Sylvia Antunes Gonzlez 8 A poltica de urbanizao de favelas no municpio do Rio de Janeiro Adauto Lucio Cardoso e Rosane Lopes de Araujo 9 As reas Especiais de Interesse Social (Aeis) em Diadema. Viabilizando o acesso terra urbana Nelson Baltrusis 10 Mutires desenvolvidos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de So Paulo (CDHU) no municpio de So Paulo Luciana de Oliveira Royer 362 324 276 236 194 150 114 82 42 12 5

11 O Plano de Regularizao das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis) do Recife: democratizao da gesto e planejamento participativo Lvia Miranda e Demstenes Moraes 12 Programa Camaragibe em Defesa da Vida: um novo desenho para a ao habitacional em municpio da periferia metropolitana do Recife Jan Bitoun 13 Experincias de promoo de habitao de interesse social na Regio Metropolitana de Belm: estudos de caso Conjunto Paraso dos Pssaros e Vila da Barca Andra Pinheiro, Jos Jlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de S, Maria Vitria Paracampo e Moema Carneiro 14 Democratizao na gesto da poltica de moradia popular em Belo Horizonte, anos 1990: uma experincia possvel de ser disseminada Renato Godinho Navarro 15 Poltica municipal de habitao em Belo Horizonte - o Residencial Asca: um estudo do Programa de Autogesto Danielle Duarte de Oliveira, Ivana Arruda da Silveira e Maria Helena de Lacerda Godinho 16 Oramento Participativo da Habitao em Belo Horizonte o caso do Conjunto Granja de Freitas III Patrcia Regina Saldanha de Oliveira, Jos Flvio Morais Castro e Maria Helena de Lacerda Godinho 532 514 480 456 436 414

ApresentaoAdauto Lucio Cardoso

ste livro o resultado de um trabalho de pesquisa em rede envolvendo instituies acadmicas e organizaes no-governamentais, com o objetivo de avaliar aes voltadas para enfrentar o problema da habitao social em seis Regies Metropolitanas do Brasil. Essa abordagem tem como justificativa o fato de que a literatura especializada que analisou a poltica habitacional ressalta uma forte tendncia, no perodo ps-BNH, de descentralizao e, ao mesmo tempo, de inovao em polticas habitacionais, como pode ser evidenciado no texto de Sergio Azevedo, includo nesta obra, que busca, do ponto de vista da poltica federal de habitao, contextualizar a pesquisa. Essa descentralizao tem sido encarada sob um duplo aspecto: por um lado, evidenciam-se possibilidades de maior eficincia e democratizao das polticas e, por outro, apontam-se evidncias de clientelismo e corrupo na alocao de recursos. Com relao s prticas alternativas, verifica-se uma grande propenso adoo de solues inovadoras nessas experincias descentralizadas, enfatizadas em bibliografia que trata das experincias bem-sucedidas. Nesse caso, observa-se uma nfase por vezes exagerada no seu potencial de reprodutibilidade e em sua capacidade de ultrapassar a etapa dos projetos-piloto. Pesquisa anteriormente desenvolvida pelo Observatrio das Metrpoles, intitulada Municipalizao de Polticas Habitacionais: uma avaliao da experincia brasileira recente (1993-199), mostrou, em primeiro lugar, a presena de um expressivo movimento de descentralizao das polticas habitacionais, todavia com grande desigualdade entre os municpios em funo dos recursos disponveis, e, em segundo, a existncia de experincias significativas e inovadoras no mbito dessas polticas. A pesquisa teve, originalmente, como objetivos bsicos mapear, sistematizar, avaliar e disseminar experincias de gesto de processos de implementao de solues habitacionais para baixa renda, podendo ser includas as desenvolvidas a partir tanto da iniciativa do poder pblico quanto da sociedade civil (cooperativas, organizaes no-governamentais, movimentos de moradia etc.), do setor privado ou, ainda, de parcerias entre esses diferentes agentes, dando destaque participao dos usurios como agentes do processo, seja ao nvel da produo, seja ao nvel da gesto dos empreendimentos. Esse universo deveria incluir programas ou experincias alternativas (assim consideradas a partir de seu potencial de inovao) no campo da proviso de oportunidades habitacionais construo ou reforma de unidades, proviso de lotes urbanizados, fornecimento de materiais de construo ou em outras esferas de atuao habitacional urbanizao de assentamentos, regularizao fundiria e utilizao de instrumentos normativos visando facilitar o acesso terra. O trabalho abrangeu municpios de seis Regies Metropolitanas (Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belm). Para isso, foi ampliada e consolidada a rede cooperativa de pesquisa, com ncleos estruturados nas capitais, formada a partir da experincia do Observatrio das Metrpoles incluindo o Ncleo Rio de Janeiro (uma parceria entre o Ippur/UFRJ e a Fase), o Observatrio Nordeste (uma parceria entre o Instituto de

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Geografia da UFPE e a Fase Recife), o escritrio regional da Fase Par, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o Ncleo de Estudos Urbanos (Nepur) ligado ao Departamento de Sociologia da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo , o Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da Pontifcia Universidade Catlica de Belo Horizonte e a Federao de Economia e Estatstica do Estado do Rio Grande do Sul.A rede tem como mbito de investigao os municpios das Regies Metropolitanas de Belm, do Recife, de Belo Horizonte, de So Paulo, de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. Em cada um desses pontos, a rede conta com uma equipe de pesquisadores e infra-estrutura necessria para sua participao em todas as etapas da pesquisa. A metodologia previa que a produo analtica da pesquisa se desenvolveria em dois planos. Em um primeiro momento, foram feitas a caracterizao e a anlise mais geral das experincias habitacionais praticadas nos municpios das Regies Metropolitanas escolhidas, buscando identificar o papel desempenhado pelas administraes municipais e incluindo uma sondagem sobre experincias inovadoras para baixa renda oriundas da sociedade civil (movimentos de moradia, ONGs) e do setor privado que serviram de referncia para a avaliao. Em um segundo momento, aprofundou-se a anlise por meio de estudos de caso nos quais procurou-se explorar as particularidades das experincias selecionadas, a fim de sistematizar e avaliar os mtodos adotados. O primeiro momento da pesquisa foi dedicado consolidao das relaes entre os diferentes parceiros das redes, formao das equipes locais para o trabalho de campo e ao desenvolvimento e discusso coletiva da metodologia a ser aplicada nas diferentes etapas do processo. Essa fase preliminar culminou com a realizao de um workshop, no Rio de Janeiro, para o fechamento final da programao de trabalho do primeiro ano. Aps essa fase preliminar, passou-se ao trabalho de pesquisa no plano local. Como atividade a ser desenvolvida ao longo de toda a primeira etapa, foram realizados o levantamento e a sistematizao de referncias bibliogrficas relativas s polticas e s experincias habitacionais desenvolvidas em cada regio.A Coordenao Geral se encarregou de fazer o mesmo para as bibliografias no plano nacional. Como as experincias inovadoras a serem sistematizadas deveriam ser avaliadas no mbito das polticas habitacionais locais, foram necessrios o levantamento e a sistematizao dessas polticas, implementadas nos municpios selecionados (por iniciativa da administrao local ou dos governos estaduais e federal) durante os ltimos cinco anos. Para isso, utilizou-se um primeiro questionrio, que foi aplicado aos responsveis pelo setor de habitao das prefeituras, com o objetivo de recolher dados relativos poltica habitacional em geral, assim como elementos especficos de cada programa/projeto habitacional implementado no municpio nesse perodo. Alm disso, foi desenvolvida uma sondagem em cada local, para identificar experincias inovadoras oriundas da sociedade ou do setor privado, que resultou em um segundo questionrio (Q2), aplicado aos agentes da sociedade civil ou da iniciativa privada daqueles locais. Uma vez preenchidos esses questionrios, foram montados bancos de dados, na esfera local, com as informaes coletadas, para que fosse desenvolvida a anlise dos resultados. Essa anlise se materializou em relatrios parciais, que foram apresentados e discutidos coletivamente num segundo workshop. Esses relatrios parciais, revistos aps o workshop, esto apresentados no livro na forma de texto introdutrio sobre a problemtica habitacional

em cada Regio Metropolitana. Partindo de uma abordagem comum, necessria para manter a homogeneidade, os textos deste livro aproveitam-se tambm da rica experincia de cada equipe local, o que os diferencia e os qualifica como importantes contribuies para pesquisadores e tcnicos locais.Alm disso, podem-se verificar, a partir da sua leitura, uma certa sincronicidade e homogeneidade de aes e polticas, pela influncia dos programas federais, e, ao mesmo tempo, a especificidade das experincias locais ou regionais. Os textos referidos so: 1. Habitao Social na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, por Adauto Lucio Cardoso, Rosane Lopes de Araujo e Will Robson Coelho. 2. Um olhar sobre a habitao em So Paulo, por Suzana Pasternak Taschner e Nelson Baltrusis. 3. Poltica habitacional para os excludos: o caso da Regio Metropolitana do Recife, por Maria ngela de Almeida Souza. 4. A questo habitacional na Regio Metropolitana de Belm, por Andra Pinheiro, Jos Jlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de S e Maria Vitria Paracampo. . Poltica Municipal de Habitao na Regio Metropolitana de Belo Horizonte, por Maria Helena de Lacerda Godinho, Marinella Machado Arajo, Rachel de Castro Almeida, Renato Godinho Navarro e Victor Rene Villavicencio Matienzo. O workshop supracitado teve ainda como objetivos, alm dos expostos: a apresentao e a discusso de proposta de indicadores de necessidades habitacionais na esfera local, utilizando a base municipal do Censo de 1991, atualizada segundo projees desenvolvidas a partir da Contagem Populacional de 199 e das PNADs, cuja metodologia de clculo foi ento repassada aos membros das equipes locais;

a discusso de critrios de seleo de experincias inovadoras e de propostas de casos a serem estudados em detalhe. Esses critrios envolveram os seguintes aspectos: a diversidade das experincias quanto tipologia do produto (por exemplo: lote, produo habitacional, regularizao fundiria etc.) e quanto aos modelos de gesto (autogesto, cooperativas etc.); a representatividade regional do conjunto; a priorizao dos projetos em estgio avanado de implementao, passveis de mais elementos para avaliao; a escala dos projetos; o potencial de eficcia e inovao dos projetos, ou seja, sua sustentabilidade econmica (baixos nveis de inadimplncia, retorno de financiamentos, prestaes acessveis populao de baixa renda etc.); sua sustentabilidade ambiental (se respeita o ecossistema no processo de execuo e gesto, entre outras questes);

sua sustentabilidade tcnica (exeqibilidade no tempo, viabilidade de incorporao de tcnicas alternativas pelos (as) executores (as), capacidade de remunerao da mo-de-obra envolvida etc.); incorporao de um enfoque de gnero; o potencial de reprodutibilidade dos projetos, ou seja, em que medida as inovaes ou a eficcia alcanada se devem a caractersticas locais ou a iniciativas passveis de generalizao em outros contextos socioculturais. Uma vez identificadas as experincias significativas, passou-se etapa dos estudos de caso, primeiramente por meio da aplicao de roteiro de pesquisa especfico, em que se buscou explorar as particularidades das experincias selecionadas, sistematizando e avaliando os mtodos adotados. A pesquisa foi realizada com o agente organizador de cada experincia, que permitiu reconhecer os elementos necessrios sua caracterizao e classificao, para posterior avaliao. Esse roteiro inclua as seguintes questes: caracterizao do modelo de gesto do empreendimento; caracterizao detalhada do pblico-alvo, com recorte de gnero e de etnia; reconhecimento do nmero de famlias chefiadas por mulheres beneficirias das aes, assim como da forma e do status de participao das mulheres no processo de tomada de deciso quanto ao perfil dos projetos, gesto, execuo e ao acesso titularidade do produto dos programas; identificao da estrutura funcional utilizada para implementao do projeto. Isto , capacidade de previso e gesto dos recursos no tempo: se h estrutura de planejamento, transparncia na gesto de recursos e projetos, implantao destes ltimos etc; caracterizao do modelo de organizao da produo (quando for o caso); caracterizao da tipologia do produto e da tecnologia construtiva utilizada; identificao dos agentes envolvidos (assessoria tcnica, financiadores, gestores, executores de obras etc.) e do perfil de sua participao no projeto; identificao dos recursos utilizados: fontes, forma de captao, aplicao etc.; caracterizao das formas de financiamento adotadas. Uma vez caracterizadas as experincias, foi feita coleta de informaes complementares s levantadas nos questionrios, por meio de anlise mais qualitativa, recolhendo-se outros depoimentos dos agentes envolvidos, realizando-se visitas aos locais dos projetos e anlise de documentao disponvel. Nessa etapa buscou-se aprofundar alguns elementos das experincias, tais como: 1. o processo de formulao do projeto;9

2. o processo de insero do grupo no projeto: critrios para seleo das famlias beneficiadas, nveis de participao das famlias, capacitao dos beneficirios para participao no processo, resistncias sua implantao; 3. o modo como se desenvolveu a relao entre agentes executores (as) e assessorias tcnicas; 4. o detalhamento do mtodo de gesto: gerenciamento das finanas, tomada de decises, formulao, nvel de participao do grupo etc. . o nvel de satisfao das famlias beneficiadas quanto aos produtos e a avaliao delas sobre sua participao na execuo e gesto dos mesmos; . os problemas identificados no processo: inadimplncia, custos, atraso nos cronogramas, no-envolvimento das famlias, discriminao das mulheres no processo, grau dos conflitos interpessoais entre agentes etc. O mapeamento das experincias significativas nas Regies Metropolitanas analisadas mostrou que so pouco relevantes os casos em que no ocorre iniciativa de algum mbito de governo, o que levou a que todos os casos selecionados apresentassem esse perfil.Todavia, as avaliaes tambm mostram a importncia crescente das organizaes no-governamentais e do papel relevante dos movimentos de moradia. Os estudos de caso selecionados esto igualmente includos neste livro, seguindo-se ao texto mais geral que trata da habitao social em cada metrpole: A poltica de urbanizao de favelas no municpio do Rio de Janeiro, por Adauto Lucio Cardoso e Rosane Lopes de Araujo. As reas Especiais de Interesse Social (Aeis) em Diadema.Viabilizando o acesso terra urbana, por Nelson Baltrusis.10

Mutires desenvolvidos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de So Paulo (CDHU) no municpio de So Paulo, por Luciana de Oliveira Royer. O Plano de Regularizao das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis) do Recife: democratizao da gesto e planejamento participativo, por Lvia Miranda e Demstenes Moraes. Programa Camaragibe em Defesa da Vida: um novo desenho para a ao habitacional em municpio da periferia metropolitana do Recife, por Jan Bitoun. Experincias de promoo de habitao de interesse social na Regio Metropolitana de Belm: estudos de caso Conjunto Paraso dos Pssaros e Vila da Barca, por Andra Pinheiro, Jos Jlio Ferreira Lima, Maria Elvira Rocha de S, Maria Vitria Paracampo e Moema Carneiro. Democratizao na gesto da poltica de moradia popular em Belo Horizonte, anos 1990: uma experincia possvel de ser disseminada, por Renato Godinho Navarro.

Poltica municipal de habitao em Belo Horizonte: o Residencial Asca: um estudo do Programa de Autogesto, por Danielle Duarte de Oliveira, Ivana Arruda da Silveira e Maria Helena de Lacerda Godinho. Oramento Participativo da Habitao em Belo Horizonte o caso do Conjunto Granja de Freitas III, por Patrcia Regina Saldanha de Oliveira, Jos Flvio Morais Castro e Maria Helena de Lacerda Godinho. Anlise de experincias alternativas de habitao popular em municpios da Regio Metropolitana de Porto Alegre, por Sheila Villanova Borba, Betnia de Moraes Alfonsin e Sylvia Antunes Gonzlez. O conjunto das experincias relatadas e avaliadas nesta obra revela o importante potencial tcnico e poltico que vem sendo acumulado por agentes tanto governamentais quanto no-governamentais no desenvolvimento de experincias de habitao social.Verifica-se forte capacidade de inovao, que muitas vezes disseminada entre municpios vizinhos, como nos casos de Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre. Muitas vezes essa disseminao deriva da migrao de tcnicos, a partir das alternncias de partidos ou grupos polticos no poder em municpios diversos. Sem dvida, porm, inegvel o efeito-demonstrao de certos programas que exercem influncia no apenas no mbito regional mas em escala nacional, como o caso do Favela-Bairro, do Rio de Janeiro. As inovaes identificadas ocorrem sob diversos aspectos. Do ponto de vista tcnico, observa-se a melhoria significativa nas tcnicas e na qualidade do trabalho em mutires, como demonstram o texto de Luciana Royer sobre So Paulo e o texto de Maria Helena Godinho et al. sobre os casos em Belo Horizonte, embora tais avaliaes reconheam ainda a permanncia de problemas significativos. A importncia do estudo adequado das alternativas de projeto e seu possvel impacto sobre as relaes sociais no ps-obra so tambm enfatizados no estudo sobre a urbanizao de favelas em Porto Alegre.Todavia, mais significativa que o aspecto tcnico parece ser a dimenso da gesto. Em vrios municpios puderam-se constatar inovaes significativas, com ampla participao da populao, destacando-se os casos de Recife e Belo Horizonte. As avaliaes mostram tambm algumas limitaes nas aes desenvolvidas localmente, seja pelo aspecto tcnico seja por problemas no modelo de gesto adotado. Permanece, no entanto, como grande problema, a carncia de recursos, que na maioria dos casos impede a ampliao da escala de atuao, fazendo com que, no geral, ainda estejamos limitados a festejar experincias bem-sucedidas cujo alcance toca apenas de leve o problema. Mesmo no caso do Favela-Bairro, em que se pode comprovar uma ampliao mais efetiva da abrangncia do programa, as limitaes oramentrias resultaram em perdas da qualidade final das urbanizaes, como evidencia o texto de Cardoso, Araujo e Coelho. Por fim, cabe ressaltar a enorme distncia que ainda existe entre os municpios-ncleo das metrpoles e a maioria da periferia. Enquanto as capitais e, eventualmente, algumas cidades da periferia imediata apresentam capacidade de inovao e iniciativa, a maioria das administraes locais nos outros municpios permanece sem condies tcnicas ou administrativas para desenvolver aes que tenham algum significado para o atendimento das enormes necessidades habitacionais de suas populaes.A avaliao empreendida traz, assim, para o centro da anlise o problema da gesto metropolitana, ainda sem soluo institucional.11

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Coleo Habitare --Habitao Social nas Metrpoles Brasileiras --Uma avaliao das polticas habitacionais em Belm, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro eeSo Paulo no final do sculo XX Coleo Habitare Habitao Social nas Metrpoles Brasileiras Uma avaliao das polticas habitacionais em Belm, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro So Paulo no final do sculo XX

1.Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendnciasSrgio Azevedo

O

artigo busca realizar um balano da poltica habitacional brasileira recente, para, posteriormente, refletir sobre as tendncias e alguns dos novos desafios que se apresentam nesse incio de sculo. Para tanto, na primeira seo discutimos as interfaces da questo habitacional com as13

demais polticas urbanas. A segunda seo dedicada a contrastar de forma sucinta a retrica e a prtica da poltica habitacional logo aps o perodo de redemocratizao do pas. Na terceira parte do texto, analisar-se- a trajetria da poltica habitacional nos anos 1990, seus impasses, constrangimentos e desafios. Por fim, a ltima seo do artigo ser dedicada avaliao de algumas das alternativas de enfrentamento da questo habitacional com nfase nos setores populares e reflexo sobre as possibilidades e perspectivas de atuao dos diferentes nveis de governo nessa rea.Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

1. As interfaces da questo habitacional com as demais polticas urbanasA maioria das unidades habitacionais construdas no pas nos ltimos anos no contou com linhas de crdito governamentais, e a autoconstruo foi o tipo predominante do sistema construtivo1. Ao definir formas de apropriao e utilizao do espao permitidas ou proibidas no contexto de uma economia de mercado extremamente hierarquizada e marcada por profundas desigualdades de renda, a legislao urbana brasileira termina por separar a cidade legal ocupada pelas classes mdias, grupos de alta renda e apenas por parte dos setores populares da cidade ilegal destinada maior parte das classes de baixa renda. Assim, a legislao acaba por definir territrios dentro e fora da lei, ou seja, configura regies de plena cidadania e regies de cidadania limitada (Rolnik, 1997, p. 13). Essa hierarquizao espacial agrava tambm as condies sociais dos mais pobres, ao desvalorizar fortemente tanto no plano simblico quanto no econmico as reas no reguladas pelo Estado. Nesse sentido, pode-se dizer que a ilegalidade sem dvida um critrio que permite a aplicao de conceitos como excluso, segregao ou at mesmo apartheid ambiental (Maricato, 1996, p. 57).

Em funo da interdependncia da questo da moradia com outras esferas recorrentes e complementares, nem sempre um simples incremento dos programas de habitao se apresenta como a soluo mais indicada para melhorar as condies habitacionais da populao mais pobre. Em primeiro lugar, porque esses programas podem ser inviabilizados caso outras polticas urbanas, como as de transporte, de energia eltrica, de esgotamento sanitrio e de abastecimento de gua, no estejam integradas (Azevedo, 1990). Em segundo lugar, porque em certas ocasies, em funo do trade-off entre diversas polticas pblicas, mudanas em outros setores] como maior investimento em saneamento bsico (esgoto e gua), incremento no nvel de emprego, aumento do salrio mnimo, regularizao fundiria, entre outras podem ter um impacto muito maior nas condies habitacionais das famlias de baixa renda do que um simples reforo dos investimentos no setor. Diante de um contexto desse tipo, no por acaso que nas grandes metrpoles brasileiras os programas de regularizao fundiria vinculados a melhorias urbanas tm sido crescentemente vistos como um instrumento de poltica habitacional extremamente importante na luta de um grande contigente de moradores de favelas e de bairros clandestinos em busca da integrao socioeconmica.

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Mesmo no perodo do Banco Nacional da Habitao (BNH) (1964/86), quando foi marcante a presena do Estado, calcula-se que cerca de 26% das novas construes contaram com financiamento do Sistema Financeiro da Habitao (Melo, 1988).1

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2. Poltica habitacional e redemocratizao: retrica e prticaNo incio de 1985, quando se implantou a ento chamada Nova Repblica, o quadro existente no setor habitacional apresentava, resumidamente, as seguintes caractersticas: baixo desempenho social, alto nvel de inadimplncia, baixa liquidez do sistema, movimentos de muturios organizados nacionalmente e grande expectativa de que as novas autoridades pudessem resolver a crise do sistema sem a penalizao dos muturios. Em maro daquele ano, foi formado, por iniciativa do ento presidente do Banco Nacional da Habitao (BNH), um grupo de trabalho de alto nvel, com atribuies de propor um encaminhamento para o problema. Participavam desse grupo representantes da Comisso Nacional dos Muturios (CNM), do Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos (Dieese), da Associao Brasileira das Companhias Habitacionais (ABC) e da Associao Brasileira das Entidades de Crdito Imobilirio e de Poupana (Abecip). Aps trinta dias de negociaes, as entidades envolvidas no lograram chegar a um consenso sobre a melhor de forma de enfrentar a inadimplncia, a falta de liquidez e o dficit do SFH. Aps presses e contrapresses, mobilizao de parlamentares e partidos, e muita discusso interna, o governo finalmente tomou a deciso final. Todos os muturios teriam um reajuste de 112%, desde que optassem pela semestralidade das correes (Unicamp, 1991).

Os que desejassem manter as indexaes anuais teriam um aumento correspondente correo monetria plena, ou seja, de 246,3%. Desnecessrio dizer que, excetuando uma minoria de mal-informados e de decises no-racionais, a quase totalidade dos muturios optou pela primeira alternativa, que incorporava a principal reivindicao da Coordenao Nacional dos Muturios (112% de reajuste). Analisemos brevemente os impactos dessa deciso para o SFH e para os vrios atores envolvidos nas negociaes. Ressaltando inicialmente os aspectos positivos, podemos dizer que, no essencial, o pleito dos muturios foi atendido, tanto que podemos considerar o primeiro ano da administrao Sarney (1985) como o fim das mobilizaes e dos movimentos regionais e nacionais de muturios. As entidades, quando no se desintegraram, continuaram a existir exclusivamente no papel, sem maior capacidade de aglutinao. O SFH e as entidades de crdito imobilirio tiveram a curto prazo uma melhora sensvel, pois diminuram-se os ndices de inadimplncia e cresceu substancialmente a liquidez do sistema. Entretanto, os efeitos perversos no podem ser subestimados. Primeiramente, ao se conceder um subsdio dessa magnitude aos muturios, sem nenhuma outra medida compensatria de receita, agravouse substancialmente o j existente dficit do SFH. Em segundo lugar, como a maioria dos muturios do ento BNH era composto por famlias de renda mdia e alta, um subsdio nico para todas as faixas de financiamento, na prtica, converteu-se numa polticaDesafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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pblica de redistribuio de rendas s avessas. Alis, de conhecimento pblico que o valor da maioria das prestaes de imveis situados em bairros nobres das principais cidades brasileiras adquiridos atravs do SFH, poucos anos antes do citado reajuste no era, alguns anos depois, suficiente para alugar casas relativamente modestas em reas de periferia. No mbito institucional, o governo Sarney tomou diversas medidas iniciais que aparentemente indicavam uma predisposio a profundas reformas. Foi criada uma comisso de alto nvel para propor sugestes, e, mais tarde, sob patrocnio federal e com o apoio da Associao dos Arquitetos do Brasil, desenvolveram-se debates regionais sobre as propostas em pauta, envolvendo setores universitrios, entidades de classe e associaes de muturios (Valena, 1992). Os temas abordados eram os mais variados possveis: discutiam-se medidas de descentralizao do BNH, com o fortalecimento das delegacias regionais, e at mudanas no sistema de financiamento, operao e receita do sistema. Em funo da complexidade da questo, da forma de encaminhamento das discusses e dos diferentes interesses envolvidos, estava-se ainda longe de se alcanar consenso sobre pontos bsicos da reforma, quando o governo decretou a extino do Banco (Melo, 1990). A forma como se deu essa deciso foi motivo de surpresa para as entidades envolvidas na reformulao do SFH, uma vez que ocorreu de maneira abrupta e sem margem para contrapropostas. Esse procedimento se chocava com as declaraes de intenes e encaminhamentos anteriores, feitos pelo

prprio governo. No referente ao contedo, a perplexidade foi ainda maior, j que quase nada se resgatou do controvertido processo de discusso em curso. A maneira como o governo incorporou o antigo BNH Caixa Econmica Federal tornou explcita a falta de proposta clara para o setor. Em outras palavras, nenhuma soluo foi encaminhada para os temas controvertidos que permeavam o debate anterior. Nesse sentido, a pura desarticulao institucional do Banco, sem o enfrentamento de questes substantivas, somente agravou os problemas existentes. Constrangimentos como o do desequilbrio financeiro do sistema no foram sequer tocados (Azevedo, 1988; Melo, 1988). A incorporao das atividades do BNH Caixa Econmica Federal fez com que a questo urbana, e em especial a habitacional, passasse a depender de uma instituio em que esses temas, embora importantes, fossem objetivos setoriais. Do mesmo modo, ainda que considerada como agncia financeira de vocao social, a Caixa possui, como natural, alguns paradigmas institucionais de um banco comercial, como a busca de equilbrio financeiro, retorno do capital aplicado etc. Nesse contexto, tornou-se difcil, por exemplo, dinamizar programas alternativos, voltados para os setores de menor renda e que exigem elevado grau de subsdios, envolvimento institucional, desenvolvimento de pesquisas etc. Evidentemente, poder-se-ia argumentar que a poltica urbana e habitacional estar sempre a cargo do respectivo ministrio, atuando a Caixa apenas como rgo gerenciador do sistema. Convm lem-

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brar, entretanto, que tambm no passado a poltica urbana e habitacional esteve vinculada formalmente a outros rgos Servio Federal de Habitao e Urbanismo (Serfhau), Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) e Ministrio do Desenvolvimento Urbano. Apesar disso, na prtica, por ter controle sobre recursos crticos, couberam ao BNH a definio e a implementao concreta da poltica. No havia por que supor que com a Caixa Econmica ocorresse uma situao muito diferente. Assim, apesar dos discursos e das diversas mudanas ministeriais Ministrio do Desenvolvimento Urbano, Ministrio da Habitao e Urbanismo, Ministrio da Habitao e Bem-Estar Social , a Caixa Econmica Federal foi o carro-chefe da poltica habitacional vinculada ao Sistema Financeiro da Habitao. Ressalte-se que no primeiro ano aps a extino do BNH 1987 as Companhias Habitacionais (Cohab) financiaram 113.389 casas populares. Durante o primeiro semestre de 1988, esse nmero caiu drasticamente para 30.646 unidades devido s mudanas da poltica habitacional a partir da Resoluo 1464, de 26/02/88, do Conselho Monetrio Nacional, e normas posteriores (CAIXA, 2000). Sob a alegao da necessidade de controle das dvidas dos estados e municpios, essa resoluo criou medidas restritivas ao acesso a crditos por parte das Cohab. Do mesmo modo, ao criar novas normas para se adaptar citada resoluo e a outras que lhe sucederam, a Caixa Econmica Federal terminou, na prtica, no s por transferir iniciativa privada os crditos para a habi-

tao popular, como tambm diminuiu a capacidade dos estados e municpios em disciplinar a questo habitacional. Assim, a transformao das Cohab de agentes promotores em simples rgos assessores e a obrigatoriedade dos muturios finais de assumirem os custos totais dos terrenos e da urbanizao acarretaram inmeras conseqncias negativas no final dos anos 1980. Entre elas, podem-se citar: a) a paulatina diminuio de poder por parte das companhias habitacionais; b) a elevao da exigncia de renda da clientela dos programas tradicionais, que passaram a voltarse fundamentalmente para famlias com rendimentos mensais acima de cinco salrios mnimos; c) a desacelerao dos programas alternativos (Azevedo, 1990). Essa tendncia elitista da poltica de habitao popular vinculada ao SFH no significou, entretanto, que os programas alternativos durante os primeiros anos da Nova Repblica tenham tido pouca importncia. Pelo contrrio, eles nunca foram to fortes. Entre os desenvolvidos margem do SFH, merece destaque especial o Programa Nacional de Mutires Habitacionais, da Secretaria Especial de Ao Comunitria (Seac). Apesar de suas especificidades e dinamismo sem precedentes, ele apresenta muitos pontos em comum com os programas alternativos que o antecederam (Profilub, Promorar, Joo de Barro etc.), tanto no referente ao papel do poder pblico local, quanto no que diz respeito atuao da populao beneficiada.Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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Por outro lado, em seus poucos anos de vida, a trajetria institucional da Seac exemplifica bem a falta de uma poltica clara para o setor. Vinculada inicialmente Secretaria de Planejamento, ela passa posteriormente para a Casa Civil da Presidncia da Repblica, Ministrio da Habitao e do Bem-Estar Social, Ministrio da Previdncia e, por fim, ao Ministrio do Interior. O programa habitacional da Seac funcionava com verba a fundo perdido do Oramento Geral da Unio (OGU) e se propunha a atingir as famlias com renda mensal inferior a trs salrios mnimos, normalmente preteridas pelos programas tradicionais. Seu formato institucional previa o estabelecimento de um convnio entre a Seac, a instituio conveniada que poderia ser a prefeitura ou um rgo do governo estadual e a sociedade comunitria habitacional, formada pelos participantes de cada projeto. Na maioria dos estados, o escritrio local da Seac realizava diretamente convnios com as prefeituras. Em alguns deles, no entanto, as atividades da Seac foram centralizadas em um nico rgo estadual, que coordenava e promovia o programa, normalmente com um nome de identificao estadual. Do ponto de vista formal, pode-se dizer que no curto espao de menos de dois anos o programa se props a financiar cerca de 550.000 unidades habitacionais (Seac, 1988), enquanto nesse mesmo perodo as Cohab financiaram menos de 150.000 (CAIXA, 2000). Supe-se que mais de um tero das

unidades financiadas no tenham sido construdas, em razo, entre outros fatores, do baixo financiamento unitrio aliado inflao galopante e m utilizao dos recursos. O processo inflacionrio, por si s, dificultou enormemente o cumprimento das metas fsicas programadas, em virtude do aumento exorbitante dos preos dos materiais de construo e servios. Por outro lado, a dependncia exclusiva de verbas oramentrias, somada situao de crise econmica e fiscal, levava ao temor de que no se conseguiria manter o programa com o mesmo dinamismo dos dois anos anteriores. Havia ainda o desafio da busca de um maior controle das metas quantitativas do programa, sem tornar a sua estrutura pesada e onerosa. Ressalte-se tambm que a inexistncia de uma poltica clara de prioridades para alocao de recursos tornou o programa uma presa fcil do clientelismo e de toda sorte de trfico de influncias (Valena, 1999). A experincia histrica brasileira mostra que sempre que um programa habitacional altamente subsidiado permite um grau muito alto de liberdade na alocao de recursos, as regies menos desenvolvidas e os estados com dificuldades polticas junto ao governo central terminam seriamente prejudicados, como ocorreu com a Fundao da Casa Popular durante o perodo populista (1946/1963) (Azevedo e Andrade, 1982). Assim, por exemplo, enquanto o Nordeste abriga aproximadamente 35% da populao brasileira, somente 15,6% dos recursos do Pro-

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grama Nacional de Mutires Habitacionais (85.914 unidades) foram investidos na regio (Seac, 1988). Apesar de todos esses constrangimentos e deficincias, no se pode negar-lhe o impacto. Foi a primeira vez na trajetria da poltica popular brasileira que um programa alternativo apresentou melhor desempenho quantitativo do que os convencionais. Devido ao seu frgil formato institucional, ele terminou junto com o mandato do primeiro presidente civil da chamada Nova Repblica.

na prtica a distribuio estabelecida pelo Conselho Curador do FGTS, atravs da Resoluo 25, de 26/10/90 (Unicamp, 1991, p. 42). A construo de unidades convencionais tambm continuou privilegiando setores populares de renda mais elevada. O Plano de Ao Imediata para a Habitao (Paih), lanado em maio de 1990 e apresentado como medida de carter emergencial, se propunha a financiar em 180 dias cerca de 245 mil habitaes, correspondente a investimento da ordem de 140 milhes de VRF, montante que significa um custo mdio de 570 VRF por unidade. Totalmente financiado com recursos do FGTS, com juros reais entre 3,5% e 5,55 ao ano para o muturio final, o plano tinha como populao-alvo as famlias com renda mdia de at cinco salrios mnimos. O Paih possua trs vertentes: programa de moradias populares (unidades acabadas), programa de lotes urbanizados (com ou sem cesta bsica de materiais) e programa de ao municipal para habitao popular (unidades acabadas e lotes urbanizados). Enquanto para os dois primeiros programas os agentes promotores eram variados (Cohab, Cooperativas, Entidades de Previdncia, Carteiras Militares etc.), para o ltimo este papel caberia exclusivamente prefeitura. A coordenao geral ficaria a cargo do Ministrio de Ao Social / Secretaria Nacional da Habitao, atuando a Caixa Econmica Federal como banco de segunda linha, isto , com a responsabilidade de implementar os programas atravs dos agentes promotores.A CAIXApoderia atuar tambm como agente financeiro, do mesmo modo que os bancos e as Caixas EconmicasDesafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

3. A poltica habitacional nos anos 1990: as ambigidades e a busca de democratizaoO governo Collor pouco inovou nos seus dois anos e meio de mandato em relao administrao anterior no referente a mudanas no Sistema Financeiro da Habitao. Possivelmente, devido nfase e primazia no combate inflao, todos os programas sociais de maior envergadura, prometidos durante a campanha, foram postergados para um segundo momento. Em relao especificamente habitao popular, houve o que Marcus Andr Melo chama de banalizao da poltica, com dissociao das atividades de saneamento e desenvolvimento urbano e sua transformao em uma poltica distributiva, agora vinculada ao novo Ministrio da Ao Social. Da mesma forma que o governo anterior, a alocao das unidades construdas tanto pelos programas populares convencionais quanto pelos alternativos estes ltimos baseados na autoconstruo continuou sendo feita por critrios aleatrios, no respeitando

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estaduais ento existentes, as sociedades de crdito imobilirio e as companhias habitacionais. A avaliao do Paih mostra o no-cumprimento de vrias das metas estabelecidas: o prazo estimado de 180 dias alongou-se por mais de 18 meses; o custo unitrio mdio foi de cerca de 670 VRFs, bem superior ao previsto inicialmente (570 VRFs), ocasionando uma diminuio de 245 mil para 210 mil unidades (Unicamp, 1991). Por fim, por motivos clientelistas e lobby de setores empresarias da construo civil de regies menos desenvolvidas, especialmente do Nordeste, o plano no logrou seguir os percentuais de alocao de recursos definidos pelo Conselho Curador do FGTS para os diversos estados da federao (Schvasberg, 1993). Durante a administrao Collor, no houve tambm nenhuma iniciativa para rediscutir em profundidade o SFH. Houve apenas maquiagens de efeitos e legalidade duvidosa como as contidas na Medida Provisria 294, de 31 de janeiro de 1991. Em seu artigo 20, modifica-se o reajuste das prestaes, vinculadas ao Plano de Equivalncia Salarial, supondo que o aumento real de salrios semestrais deve ser maior que a remunerao da caderneta de poupana. Assim, as prestaes seriam reajustadas mensalmente pela remunerao das cadernetas e na data-base seria acrescido o ganho real de salrio porventura existente. Procurava-se, com esta medida, diminuir atravs de artifcio legal contestado pelos muturios e posteriormente derrubado pela justia o rombo histrico do Sistema Financeiro da Habitao. Ainda em 1991, foi facilitada a quitao da casa prpria pela metade

do saldo devedor, ou pelo pagamento das mensalidades restantes, sem correo e juros. Normalmente, a segunda opo de quitao foi a mais vantajosa, ocasionando na prtica subsdios substanciais. Permitiuse tambm o uso do FGTS para a quitao antecipada. Boa parte dos muturios de classe mdia logrou liberar seus imveis por preos bastante acessveis. O governo conseguiu momentaneamente aumentar o fluxo de caixa para financiamentos habitacionais, mas seguramente isso significou maiores subsdios e agravamento ainda maior da crise. O contra-argumento do governo era que essa receita estava perdida devido aos baixos valores das prestaes e que, assim, pelo menos, fora possvel resgatar parte dessa verba. Para os setores mdios, foi extinto o Plano de Equivalncia Salarial e terminou-se com o perdo dos resduos do saldo devedor, atravs do Fundo de Compensao das Variaes Salariais (FCVS). Com a destituio de Collor e a posse do presidente Itamar, houve uma busca de mudana nos rumos da poltica habitacional especialmente no referente s classes de baixa renda, por meio dos programas Habitar Brasil e Morar Municpio, que funcionavam por fora do Sistema Financeiro da Habitao. Entretanto, pouco foi feito para mudar o quadro conhecido de crise estrutural do SFH. Com a extino do FCVS, criou-se um plano de amortizao baseado no comprometimento de renda (em substituio ao antigo Plano de Equivalncia Salarial) e definiram-se percentuais mximos de cobranas de taxas e despesas cartoriais etc.Alm disso, houve um esforo de obrigar os bancos a respeitarem a lei e a

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canalizarem pelo menos parte da arrecadao das cadernetas para investimentos habitacionais direcionados classe mdia. Esperava-se com isso alcanar, at o final do governo Itamar, investimentos da ordem de 1,4 bilho de dlares (Azevedo, 1996). Em relao produo de casas populares, a administrao Itamar procurou atuar em duas frentes. Primeiramente, buscou terminar at meados de 1994 cerca de 260 mil casas financiadas pelo governo anterior, atravs das linhas de financiamento tradicionais (FGTS), recursos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) e verbas oramentrias. Previa-se, segundo declarao do ento secretrio Nacional da Habitao, a aplicao de aproximadamente 800 mil dlares para a concluso dessas casas. Em segundo lugar, lanou o Programa Habitar Brasil, voltado para municpios de mais de 50 mil habitantes, e o Morar Municpio, destinado aos municpios de menor porte. O financiamento federal para esses programas estimados em 100 mil dlares para o ano de 1993 previa verbas oramentrias e parte dos recursos arrecadados pelo Imposto Provisrio sobre Movimentaes Financeiras (IPMF), que terminou no ocorrendo dentro do montante previsto, em funo de prioridades do Plano de Estabilizao Econmica (Azevedo, 1996). Na verdade, apesar de nomenclaturas diferentes, os referidos programas tinham as mesmas caractersticas bsicas. Capitaneados, na poca, pelo Ministrio do Bem-Estar Social, previam a participao de governos estaduais e prefeitura municipais. Sua

populao-alvo seriam as famlias de baixa renda e as que vivem em reas de risco. Para se ter acesso a estes financiamentos, entre outras exigncias, era obrigatria a criao de um Conselho Estadual ou Municipal de Bem-Estar Social, bem como de um respectivo Fundo Estadual ou Municipal de Bem-Estar Social, para onde os recursos deveriam ser canalizados. Alm dos custos de urbanizao dos terrenos, legalizao, elaborao do projeto tcnico, pavimentao de ruas e eletrificao era exigida uma contrapartida claramente definida do governo estadual ou municipal envolvido (10% do investimento federal para as regies menos desenvolvidas e 20% para as demais).Todo o projeto deveria ser feito em parceria com organizaes comunitrias locais. Os projetos poderiam prever construo de moradias, urbanizao de favelas, produo de lotes urbanizados e melhorias habitacionais, mas os beneficirios desses programas deveriam ser proprietrios ou ter a posse dos terrenos. No caso de construo de moradias ou melhorias habitacionais, o regime de trabalho deveria ser de ajuda mtua ou auto-ajuda, enquanto caberia ao governo estadual ou municipal a obrigao de prestar assistncia tcnica, atravs de equipe interdisciplinar. Esse custo, no entanto, no poderia ultrapassar 5% do financiamento fornecido pela Unio. No caso de obras de infra-estrutura e equipamentos comunitrios, alm das modalidades citadas, eramDesafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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permitidos administrao direta ou contrato de empreitada a firmas particulares. Em se tratando de produo de moradias e lotes urbanizados, seriam cobradas dos beneficirios parcelas mensais de pelo menos 5% do salrio mnimo vigente, pelo perodo mnimo de cinco anos. Os recursos arrecadados seriam reaplicados no Fundo Estadual ou Municipal de Bem-Estar Social. Caberia ao Conselho estadual ou municipal criar as normas complementares necessrias matria. Por fim, durante esse prazo de carncia mnimo de cinco anos, as casas e os lotes urbanizados deveriam permanecer como patrimnio do fundo estadual ou municipal. Nesse perodo, os beneficirios firmariam um contrato de concesso de uso, dispositivo que no se aplicaria quando o terreno fosse de sua propriedade. Apesar de apresentarem um avano significativo, ao proporem a formao de Conselhos para gerir a poltica habitacional em que, alm de membros indicados pelo governo, previa-se a participao de representantes da sociedade civil e a criao de fundos especficos que permitiriam, em princpio, verbas constantes e pontuais para a produo de habitaes populares, alm de evitarem possveis tentativas de desvios dos recursos repassados pela Unio, os programas mencionados possuam vrios constrangimentos. Mesmo sendo uma iniciativa de poltica descentralizadora, eles pecavam por uma excessiva padronizao. Em outras palavras, faziam tbula rasa da enorme heterogeneidade dos municpios brasileiros, exigindo de todos a formao de

Conselhos e fundos. No h dvida de que, para a maioria dos pequenos municpios, corria-se o risco da criao apenas formal desses mecanismos, como ocorreu nos ltimos anos com outras exigncias similares feitas por leis federais e estaduais (Conselho de Sade, Educao, Criana e Adolescente, Assistncia Social etc.). Convm lembrar que, apesar de propor a criao de fundos estaduais e municipais, o governo no logrou, at o final da administrao Itamar, a formao de um fundo federal. Os mencionados programas dependeram fundamentalmente de verbas oramentrias ou de recursos provisrios (IPMF), o que os fragilizou institucionalmente. Tampouco se conseguiu avanar na formao de um Conselho federal, similar aos propostos para os governos estaduais e municipais. Ressalte-se, entretanto, que, com o objetivo de reformar e criar um novo arranjo institucional para o setor, tanto a proposta de criao de um Conselho quanto a de criao de um fundo federal voltados para a rea habitacional foram no incio dos anos 1990 questes em pauta na Cmara de Deputados. Essa discusso, iniciada em 1992 por meio da constituio de um Frum Nacional de Habitao, envolvendo inmeras instituies da sociedade civil e rgos pblicos vinculados questo habitacional, se organizou em torno de trs propostas, cada uma representando determinados blocos de interesses: parte da burocracia pblica da poltica habitacional (Frum dos Secretrios Estaduais de Habitao), os construtores e o setor popular organizado. Elas ti-

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nham como ponto comum a busca da restaurao de uma nova aliana entre os interesses envolvidos no financiamento, produo e uso da moradia, atravs da criao de um Conselho Nacional de Habitao, com a funo de gerir a poltica habitacional, e de um fundo especfico para garantir o financiamento do setor. Evidencia tambm a preocupao de no deixar exclusivamente na mo de um rgo governamental os rumos da poltica habitacional, abrindo perspectivas de um tipo de participao neocorporativa em que segmentos da sociedade civil teriam assento. As sugestes sobre o formato institucional deste Conselho variavam bastante, e a proposta do movimento popular era a nica em que os representantes da sociedade civil seriam majoritrios. A administrao Fernando Henrique, que tomou posse no incio de 1995, apresentou como proposta para o trinio 1996-1999 a aplicao de R$ 26,5 bilhes para beneficiar 1.394.900 famlias, utilizando aproximadamente R$ 19,6 bilhes de recursos oriundos do FGTS e R$ 6,9 milhes provenientes da contrapartida de estados e municpios (Sepurb, 1996c). Em linhas gerais, do ponto de vista financeiro, as iniciativas para viabilizar essa proposta seriam: a) continuar os esforos visando o saneamento do FGTS, com o objetivo de proteger os recursos dos trabalhadores, bem como ampliar a capacidade de investimento habitacional do fundo; b) securitizar a dvida do Fundo de Compen-

sao das Variaes Salariais (FCVS) com os agentes financeiros e o FGTS; c) implementar novas formas de captao de recursos para o setor imobilirio a partir de empresas de capitalizao e seguros, fundos mtuos e fundaes de previdncia privada, entre outros. Como elemento chave da nova poltica, passase a discutir a questo habitacional de forma integrada poltica urbana e poltica de saneamento ambiental, atravs da Secretaria de Poltica Urbana. Nessa mesma linha de busca de articulao entre polticas complementares e recorrentes, defende uma poltica fundiria urbana adequada de modo a desestimular a formao de estoques de terras para fins especulativos. Ainda, segundo o programa habitacional da primeira administrao Fernando Henrique Cardoso, sugeria-se reforar o papel dos governos municipais como agentes promotores da habitao popular, incentivando-os inclusive a adotar linhas de ao diversificadas, voltadas para urbanizao de favelas e recuperao de reas degradadas. Eram propostas, entre outras, as seguintes medidas no campo da habitao popular: apoiar programas geradores de tecnologia simplificada que possibilitassem a construo de moradias de qualidade a custo reduzido; privilegiar as formas associativas e cooperativas de produo de habitaes e incentivar programas de assistncia tcnica aos rgos, entidades e organizaes comunitrias, comprometidas com solues locais e integradas de interesse social.Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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Quanto s iniciativas de alcance social do incio da primeira administrao FHC, merece destaque o Programa de Concluso de Empreendimentos Habitacionais, que visava recuperar investimentos j realizados com recursos do FGTS que no geraram os benefcios esperados, especialmente para viabilizar a comercializao de conjuntos habitacionais contratados at 1991 por empresas privadas, que se encontravam inacabados em virtude de problemas de financiamento na poca. Por sua vez, os Programas de Crdito Direto ao Cidado, denominados Cred-Mac e Cred-Casa, voltados para famlias com at oito salrios mnimos de renda mdia mensal (atuando, inclusive, no setor informal), possibilitariam a oferta de crdito para a aquisio de materiais de construo, visando melhoria ou construo de habitaes. Sua principal caracterstica residia na forma de financiamento mais simplificada, j que esses programas no seguiam as regras do Sistema Financeiro da Habitao.24

cpios (Sepurb, 1996a, 1996b). Entre 1996 e 2000, o desempenho do governo, no que diz respeito poltica de habitao popular stricto sensu, ficou aqum do inicialmente planejado, pois para o Pr-Moradia foram investidos cerca de R$ 830 milhes, em recursos do FGTS, para a construo de 155.219 unidades residenciais, a um custo mdio unitrio de R$ 5.400,00. No mesmo perodo, com recursos a fundo perdido do OGU, foram alocados no Morar Melhor / Habitar Brasil em torno de R$ 860 milhes que resultaram na construo de 294.595 moradias, com custo unitrio mdio de R$ 2.920,00 (CAIXA, 2000). Ressalte-se, entretanto, que em polticas recorrentes e complementares s polticas habitacionais populares os aportes da Unio foram bem mais substanciais. Por meio de financiamento do FGTS, o governo federal investiu, entre 1996 e 2000, em torno de R$ 2,7 bilhes em saneamento bsico (Pr-Saneamento). No citado perodo, foram aplicados cerca de R$ 2,5 bilhes de recursos oramentrios do OGU em diversos programas de infra-estrutura e saneamento (CAIXA, 2000). Por fim, quanto s propostas no dinamizadas de novas polticas habitacionais, deve ser lembrado o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), voltado para atingir uma clientela na faixa entre quatro e seis salrios mnimos de renda familiar. Ainda que proposto como forma de leasing habitacional, esse programa parece no ter sido pensado com a mesma filosofia de seus congneres europeus. O ar-

No setor social, destacam-se o Pr-Moradia e o Programa Habitar Brasil, voltados para o poder pblico (estados e municpios) e financiados, respectivamente, com recursos do FGTS e do Oramento Geral da Unio. Seus principais objetivos seriam a urbanizao de reas degradadas para fins habitacionais, a regularizao fundiria e a produo de lotes urbanizados. Nessas duas iniciativas, buscavase beneficiar 677.100 famlias, investindo R$ 5,2 bilhes, sendo R$ 4 bilhes de recursos do FGTS e R$ 1,2 milho da contrapartida de estados e muni-

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rendamento aqui teria mais o objetivo de facilitar a retomada dos imveis em caso de inadimplncia do muturio, evitando longas batalhas judiciais2. Para os setores mdios (renda familiar mensal de at 12 salrios mnimos), tem se destacado ao longo dos ltimos anos o Programa Carta de Crdito, que utiliza recursos do FGTS e das cadernetas de poupana. Trata-se de fornecer uma linha de crdito direta ao cidado, que pode escolher a melhor alternativa para resolver seu problema de moradia, dentre as modalidades de aquisio de habitao pronta, nova ou usada. Merece tambm destaque o Programa de Financiamento Produo e ao Crdito Individual, voltado para apoiar a indstria da construo civil na produo de projetos habitacionais destinados parcela da populao de renda mdia e alta que opte por um contrato de financiamento vinculado ao imvel.Trata-se de programa praticamente similar ao que foi hegemnico durante o perodo BNH para os setores de maior renda, exceto no que respeita ao financiamento que, alm dos recursos das cadernetas de poupana, abre a possibilidade de outras fontes complementares (Companhias Hipotecrias e Fundos de Investimento Imobilirio). Mas, a maior novidade na rea habitacional nos anos 1990 foi a aprovao, atravs da Lei Fede-

ral 9.512 / 97, do denominado Sistema Financeiro Imobilirio (SFI), em moldes totalmente diferentes do SFH, criado junto com o extinto Banco Nacional da Habitao e que at hoje financia a maior parte dos programas existentes, por meio de recursos da caderneta de poupana e do FGTS. Inspirado na experincia norte-americana, o novo sistema opera exclusivamente com recursos da iniciativa privada nacional e internacional. O ponto de destaque do SFI a chamada alienao fiduciria, pela qual o muturio somente torna-se proprietrio do imvel quando quita o financiamento. Com isso, o financiador pode retomar rapidamente os imveis em inadimplncia. Tanto o perodo permitido para atrasos quanto os prazos de financiamento e as taxas de juros sero fixados, atravs de contrato, entre os agentes fiducirio e fiduciante, sem interferncia do Estado. Pelo texto da lei, os assalariados podero utilizar os recursos do FGTS para abater as dvidas. O objetivo de seus mentores seria atrair no s capitais internacionais como recursos dos fundos de penso, uma vez que financiando apenas parte do custo do imvel (cabe ao comprador arcar diretamente com parte dos custos) e com a possibilidade de rpida retomada em caso de inadimplncia alm da inexistncia de regulao governamental para prazos, taxa de juros e comprometimento mximo de renda familiar com as prestaes dificilmente haveria possibilidade de prejuzo para o investidor.

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Tradicionalmente, nos casos graves de inadimplncia, a CAIXA tem optado pelo leilo com as residncias ocupadas, mas isso acarreta uma diminuio nos preos dos arremates das mesmas.2

Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

Um eventual revigoramento do atual Sistema Financeiro da Habitao depende da resoluo de uma complicada questo poltica sobre como cobrir o dficit acumulado ao longo das ltimas dcadas. Por outro lado, o desempenho do novo Sistema Financeiro Imobilirio, ainda em fase de implementao, depende de inmeras variveis financeiras e econmicas, bem como de alianas de interesses e de um formato institucional que lhe permitam conceder financiamentos em larga escala e em fluxo constante. Evidentemente, este um sistema que somente pode ser utilizado para setores de renda mais alta, uma vez que seria duvidoso que, em uma conjuntura de juros altos, fosse capaz de atingir uma clientela mais ampla.

nal, como tambm a pouca amplitude e o fracasso da maior parte dessas intervenes governamentais. Em uma sociedade extremamente heterognea e desigual como a brasileira, questes aparentemente universais como educao, servios de sade, saneamento e habitao no so facilmente comparveis e muito menos intercambiveis entre alguns dos diversos submundos sociais. Assim, no referente ao habitat, temas como necessidades habitacionais, aluguel, habitao adequada, tamanho de terreno, infra-estrutura, entre outros que em geral so tratados como se estivessem vinculados a um nico mercado , tm, na verdade, significados muito variados, dependendo dos setores sociais a que se referem. Comecemos pelas alternativas que se abrem para os setores populares, que mesmo durante a fase urea do BNH foram os menos beneficiados. Nessas condies, a opo habitacional para a maioria da populao pobre, formada por um considervel contingente de desempregados e de trabalhadores eventuais, tm sido os cortios, favelas e bairros clandestinos, localizados fundamentalmente nas metrpoles e grandes cidades. Assim, a autoconstruo torna-se a soluo possvel para amplas camadas populares resolverem seus problemas habitacionais. Em funo da escassez de recursos e de tempo disponvel, essas construes prolongam-se por um largo perodo de tempo e se caracterizam pelo tamanho reduzido, baixa qualidade dos materiais empregados, acabamento precrio e tendncia deteriorao precoce (Maricato, 1979; Ribeiro e Azevedo, 1996).

4. Perspectivas e cenrios para a questo da moradia no incio do novo sculoA rpida urbanizao das ltimas dcadas do sculo XX aliada a um processo de industrializao tardia que incorporou somente uma pequena parcela dos trabalhadores urbanos acarretou problemas urbanos complexos e de difcil enfrentamento por parte do poder pblico. Entre as diversas carncias da populao de baixa renda vinculadas ao habitat (saneamento, abastecimento de gua, energia eltrica, transporte etc.), a que apareceu com mais evidncia e centralidade foi o dficit de moradia. Esse contexto explica, em parte, no s por que o poder pblico, em termos de poltica urbana, priorizou historicamente a questo habitacio-

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A experincia tem demonstrado que, apesar dos subsdios diretos e indiretos, nos pases subdesenvolvidos as casas populares so ainda muito caras para a maioria dos setores de baixa renda. Nessas circunstncias, a poltica habitacional enfrenta um dilema de difcil soluo: se subsidia em maior escala, compromete drasticamente a produo quantitativa de casas; se busca um nvel maior de eficcia atravs do retorno de parte do capital aplicado , exclui uma considervel parcela da populao dos programas tradicionais de habitao popular. por esse motivo que, nas ltimas dcadas, tanto no Brasil como em muitos outros pases em desenvolvimento, pesquisadores, autoridades governamentais e lderes comunitrios vem os chamados programas alternativos de habitao popular como uma das formas de tentar responder s necessidades habitacionais das populaes de baixa renda. Embora a retrica oficial continue a exaltar as qualidades dos chamados programas alternativos como forma de enfrentar os problemas habitacionais dos setores populares, os impactos concretos dessas iniciativas ainda necessitam de estudos mais detalhados3. Em contraposio e como estratgia para enfrentar a crise de moradia, parte dos setores mdios e altos optou, entre outras alternativas, pela participao em condomnios fechados afastados das reas

nobres, mas com acesso relativamente rpido atravs de servios de transportes (auto-estradas, metrs de superfcie etc.), e pela recuperao de parte de antigos bairros populares, bem localizados na estrutura das cidades, impondo-lhes uma nova significao simblica, concomitante com a criao de externalidades exclusivas, que os diferenciariam do resto da rea (Ribeiro e Azevedo, 1996). As estratgias de parte dos setores mdios e de alta renda supracitadas significam a criao de ilhas de classe mdia incrustadas na periferia ou em antigos bairros populares. Se atentarmos para o fato de que, concomitantemente a esse processo, est em curso o adensamento das favelas e dos bairros populares j consolidados, podemos antever o que chamaramos de diminuio perversa da segregao espacial. O maior convvio forado, em espaos contguos, dos estratos mdios e altos com setores populares, em um contexto de desagregao social e de baixo crescimento econmico, tende a desencadear um recrudescimento dos preconceitos sociais e uma identificao mecanicista de pobres como sinnimo de classes perigosas (Ribeiro e Azevedo, 1996). Parte desse comportamento das classes mdias est relacionada com a trajetria ascendente da violncia urbana. Entretanto, a tendncia de ver o

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Durante o perodo BNH, esses programas corresponderam a cerca de 265 mil unidades habitacionais, significando apenas 5,95% do total dos financiamentos do Banco (Azevedo, 1988, p. 117). Convm lembrar, entretanto, que aps 1985 a maioria dos programas de habitao popular nos trs nveis de governo, implementados fora do SFH, privilegiaram os programas alternativos (mutiro, autoconstruo, cooperativas de autogesto etc.) que, em muitos casos, apresentaram resultados satisfatrios (Azevedo, 1990).3

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outro de classe inferior como um inimigo em potencial tende a cristalizar preconceitos ideolgicos nas elites, que obscurecem a necessidade da busca de solues econmicas e polticas de mbito mais amplo (diminuio dos nveis de pobreza absoluta, ampliao das possibilidades de ascenso social, reforma do Estado etc.) e terminam por enfatizar respostas individuais imediatistas, incapazes de atacar as razes do problema.Alm disso, acarretam problemas que no s afetam negativamente a estrutura urbana das cidades como tambm as prprias condies habitacionais desses setores. Ou seja, levam a um aumento exacerbado nos servios de segurana e de taxas de condomnios, ao aprisionamento das pessoas em suas residncias e diminuio da importncia da rua, enquanto espao pblico de convvio social, intercmbio, socializao e lazer. (Ribeiro e Azevedo, 1996). Por outro lado, tambm se poderia supor alguns efeitos positivos no esperados decorrentes dessa conjuntura. Em primeiro lugar, uma maior presso dos setores populares cobrando do poder pblico maiores investimentos de infra-estrutura, equipamentos comunitrios e outras melhorias habitacionais, tendo em vista o efeito demonstrao. Numa conjuntura democrtica, em que o voto possui o mesmo peso, independente da classe social do votante, este um cacife no desprezvel.Alis, apesar da crise fiscal e econmica, a melhora dos indicadores sociais nas duas ltimas dcadas pode ser explicada, em grande parte, por fatores de ordem poltica.

O debate sobre as possibilidades de reforma do SFH, iniciado em dezembro de 1992 na Cmara dos Deputados por ocasio do Simpsio Nacional da Habitao, do qual participaram parlamentares de vrios partidos, representantes de sindicatos e numerosas associaes da sociedade organizada, no logrou restaurar uma aliana suficientemente forte entre os diversos atores envolvidos no financiamento, na produo e no uso da moradia, para ensejar modificaes estruturais no Sistema Financeiro da Habitao. Nas discusses sobre as reformas do SFH, desde a primeira metade dos anos 1990, as propostas de descentralizao estavam sempre amarradas aos possveis novos formatos institucionais da poltica federal. Apesar de suas diferenas, no que diz respeito ao papel dos diferentes mbitos de governo, elas apresentavam uma certa similitude. Unio caberia definir a macropoltica e arcar com a maior parte dos financiamentos;aos estados federados,realizar atividade reguladora dentro de seus respectivos territrios, suplementar uma parte dos recursos, desenvolver os programas clssicos das Cohab e eventualmente quando por fragilidade de setores organizados da sociedade ou do poder municipal implementar diretamente alguns projetos alternativos para os setores de baixa renda. Aos governos locais era destinada uma grande responsabilidade pela implementao da poltica na ponta da linha: seja oferecendo terrenos e/ou participando de obras de infra-estrutura como contrapartida de recursos repassados de outros nveis de governo, seja se responsabilizando diretamente pela execuo das obras, seja ainda acompanhando ou orientando os setores organizados da

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sociedade (cooperativas, grupos de mutiro etc.) envolvidos com os diferentes projetos. Essas propostas de descentralizao no tinham como objetivo a criao de sistemas autnomos em mbito estadual e municipal. Entretanto, com a desarticulao do Sistema Financeiro da Habitao, a partir de 1987 tanto alguns estados, ao se organizarem para fazerem jus a possveis repasses federais, quanto muitos municpios de grande porte, para se habilitarem a repasses federais e estaduais, terminaram por criar uma estrutura institucional que lhes permitiu a criao de sistemas hbridos capazes, de um lado, de se articularem com iniciativas oriundas de um nvel mais alto de governo e, de outro, de experimentarem, com diferentes graus de institucionalizao e de sofisticao, polticas habitacionais autnomas. No que se refere aos governos estaduais, o n grdio dessas polticas independentes foi a busca de uma fonte de financiamento prpria, ao mesmo tempo significativa e constante, de modo a assegurar um desempenho regular e consistente. Nesse sentido, a experincia do estado de So Paulo foi a nica que at o momento apresentou xito na configurao de um completo Sistema Estadual de Habitao. A experincia paulista incentivou outros governos por exemplo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul a buscar, em suas respectivas Assemblias Legislativas, apoio para a criao de Sistemas Estaduais de Habitao autnomos. O malogro desses projetos se deveu, principalmente, s dificuldades dos governadores em obter, dos legislativos,

consenso sobre fontes de recursos oramentrios permanentes (Arretche, 2000). O governo paulista logrou, em 1989, aprovar uma lei na Assemblia Legislativa que aumentava o ICMS em 1%, com objetivo de criar uma fonte constante e livre para aplicao em habitao popular. Isto permitiu que a Companhia Habitacional Estadual (CDHU) elaborasse uma poltica prpria, abrangendo programas, mecanismos de comercializao e formas de subsdios prprios. Os recursos oriundos do ICMS tm permitido desde ento um aporte constante e extremamente significativo para a produo de habitaes de interesse social naquele estado. Basta ver que os gastos oramentrios nessa rubrica passaram de R$ 167 milhes, em 1988, para mais de R$ 400 milhes em 1994 (Arretche, 2000, p. 107-109). Alm do estado de So Paulo, tambm o Cear, nas administraes Tasso e Ciro, utilizou primordialmente verbas oramentrias para financiamento de sua poltica de habitao popular com formato institucional prprio e s margens das agncias federais, lanando mo dos recursos do FGTS apenas de forma suplementar.Ainda assim,no se pode afirmar que se tenha constitudo no estado do Cear um Sistema Estadual de Habitao, dado que no se registra a institucionalizao de recursos fiscais que garantam um fluxo contnuo de oferta de bens (Arretche, 2000, p. 118). Ao longo da dcada de 1990, a maioria dos estados optou por manter sua dependncia de fontes federais, ainda que muitos desses programas nacionais tenham ganhado na esfera estadual nomes fantaDesafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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sia, como estratgia de vrios governos para angariar maior legitimidade poltica em suas respectivas populaes (Azevedo, 1996). Entre esses, alguns poucos estados como foi o caso, entre outros, da Bahia, Pernambuco e Paran conseguiram, por diferentes motivos, angariar vultosos repasses do governo federal, distintamente da maior parte das administraes estaduais, que, em virtude de questes endgenas, no logrou captar recursos relevantes, como ocorreu, por exemplo, com o Rio Grande do Sul (Arretche, 2000). Deve ser ressaltado que, alm de programas federais e estaduais, h uma tendncia ao surgimento de um sem-nmero de programas de mbito local, para esta faixa de menor renda, abrangendo desde a construo de conjuntos, reurbanizao de reas degradadas, mutiro e lotes urbanizados (Pnud, 1996).A crise fiscal do Estado, especialmente nos mbitos federal e estadual, e a conseqente diminuio de verbas para as necessidades habitacionais, aliadas a um contexto democrtico que amplia a presso popular, acarretaram um processo difuso e no planejado de descentralizao, que poderamos chamar de uma municipalizao selvagem da poltica habitacional para os setores de menor renda ou, como preferem Adauto e Luiz Csar, de uma descentralizao por ausncia (Cardoso e Ribeiro, 1999). Esses programas podem apresentar diversas vertentes e envolver diferentes agncias, esferas de governo e mesmo Organizaes No-Governamentais, bem como priorizar projetos tradicionais (construo de conjuntos) ou programas alternativos cls-

sicos: autoconstruo, mutiro, legalizao de lotes, urbanizao de favelas etc. As dificuldades de se realizar atualmente um balano geral sobre a ao municipal na rea habitacional no Brasil decorrem da amplitude dessa interveno, da diversidade de programas, da carncia de informaes e das distintas metodologias empregadas nas diversas pesquisas realizadas, o que nem sempre possibilita a comparabilidade dessas experincias. Apesar disso, os estudos j realizados explicitam no s diversos constrangimentos, mas tambm potencialidades e impactos no negligenciveis desses programas. No que diz respeito aos constrangimentos, para parte da literatura especializada, ainda que em determinadas circunstncias essas aes possam at vir a ter um impacto relevante, na maioria dos casos, a dependncia de verbas oramentrias e a inexistncia de fontes de recursos especficos e constantes pressupem a sujeio dessas iniciativas s prioridades conjunturais do governo. Por no possuir o controle sobre verbas ou fundos especiais e por seu carter distributivo, esses programas tenderiam a se transformar a mdio prazo em um poo sem fundo, em que os recursos so sempre muito inferiores s demandas. Alm disso, com o passar do tempo, a disputa com outros programas sociais por dotaes oramentrias possivelmente se tornaria constante e acirrada (Azevedo, 1996). A enorme clientela potencial dessas iniciativas, aliada escassez e no previsibilidade de recursos, e,

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em muitos casos, falta de critrios bem definidos de prioridades, favoreceria o surgimento de prticas de favoritismo e de clientelismo poltico. Assim, embora a lgica de alocao desses recursos possa ser bastante variada, o fator de legitimao poltica e de apoio eleitoral tende a ter grande importncia na definio da populao-alvo desses programas, na maioria dos casos pontuais e/ou intermitentes e vinculados a uma determinada administrao. Mesmo tratando-se de bens escassos e de impacto pouco significativo para a maioria da populao pobre dos respectivos municpios, esse modelo teria a capacidade de criar forte expectativa nos setores populares. No por outro motivo que, nas ltimas campanhas eleitorais municipais, muitos candidatos venham usando o sonho da casa prpria como uma das bandeiras para lograr apoio popular (Azevedo, 1996). No que se refere s potencialidades desses programas municipais, desenvolvidos especialmente nos anos 1990, estudos recentes tm demonstrado as grandes possibilidades de inovao institucional e de adaptabilidade s idiossincrasias locais. Em outras palavras, essas iniciativas tm funcionado como um grande laboratrio que permite a socializao de inmeras experincias bem-sucedidas, muitas das quais premiadas internacionalmente (Bonduki, 1996; Souza, 1997). Alm disso, pesquisa recente envolvendo 45 cidades grandes e mdias nas diferentes regies do pas revelou que em muitas delas o impacto dessas aes est longe de poder ser considerado despre-

zvel para o pblico-alvo das polticas habitacionais implementadas. Assim, do ponto de vista da origem dos recursos utilizados, os municpios foram responsveis, de forma autnoma, pelo financiamento de aes que beneficiaram cerca de 37% das famlias, e participaram do financiamento de outros programas, que beneficiaram cerca de 21% das famlias (Cardoso e Ribeiro, 1999, p. 17. Grifo nosso). Em outras palavras, nas cidades estudadas, em mdia, quase 60% das famlias atendidas por projetos habitacionais tiveram algum tipo de aporte oriundo dos cofres municipais, e mais de um tero delas foi atendido exclusivamente com recursos oramentrios dos governos locais. Essa mesma pesquisa revela diferenas significativas entre as vrias regies do pas. Nesse sentido, o Nordeste, que apresenta um quadro de carncias mais dramtico, justamente onde se localizam as piores performances, em comparao s cidades do Sul regio em que os municpios apresentam situao financeira relativamente mais confortvel e onde se pde constatar, em mdia, um melhor desempenho. Segundo os pesquisadores, seria possvel supor que esse diferencial diz respeito, por um lado, ao volume de recursos financeiros, tcnicos e administrativos que esses municpios dispem para fazer face s suas necessidades; por outro lado, no caso do Nordeste, tambm conseqncia da cultura poltica local, onde as prticas clientelistas esto mais enraizadas no cotidiano e correspondem a mecanismos ainda no superados de reproduo do poder, a nvel local. (Ibid.)Desafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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No que concerne ao Nordeste, essa anlise baseada na cultura poltica local acaba sendo matizada pelos prprios autores, quando afirmam encontrar fortes similaridades em municpios metropolitanos do Sudeste. Outro fator que merece destaque diz respeito importncia da questo institucional, pois foi constatada uma forte correlao entre a existncia de estruturas administrativas mais sofisticadas (Cohab, rgos de planejamento, secretarias de habitao, instrumentos de poltica urbana etc.) e um melhor desempenho na rea habitacional. Ressalte-se, particularmente, a importncia da legislao sobre as conhecidas reas Especiais de Interesse Social, que foram responsveis por importantes avanos na regularizao fundiria, permitindo que considervel contigente de setores de baixa renda se incorporasse cidade legal (Cardoso e Ribeiro, 1999). A poltica do novo governo seria a de estabelecer parcerias com os estados federados e, especialmente, com os municpios envolvendo a participao de setores organizados da sociedade , como forma tanto de democratizar o processo de acesso casa prpria aumentando sua transparncia e colaborando para minimizar as prticas clientelistas tradicionais (Cardoso, 2003) quanto de dinamizar a produo da habitao popular e a urbanizao e regularizao fundiria de assentamentos precrios (vilas, favelas e bairros clandestinos etc.).

5. Posfcio: guisa de conclusoA partir da ascenso do governo Lula e da criao do Ministrio das Cidades, um cenrio baseado na aproximao institucional da poltica urbana (lato sensu), habitacional, de saneamento e de transporte, com caractersticas de polticas regulatrias centralizadas, buscando envolver as trs esferas de governo, possibilitou avanos significativos nos primeiros trinta meses de governo. Ressalte-se que a proposta do Ministrio das Cidades apresenta desde o incio do governo apoio de atores relevantes: possua defensores nas burocracias estaduais (Associao Brasileira de Cohab; Frum Nacional de Secretrios de Habitao) e em setores organizados da populao civil (Frum Nacional de Reforma Urbana, Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Frente Nacional do Saneamento, movimentos voltados para transporte pblico urbano de passageiros, alm de redes voltadas para equacionar a governana metropolitana), estes ltimos aliados de longa data dos partidos hegemnicos na coalizo governamental e, portanto, com poder de presso no desprezvel sobre a atual administrao federal. O Ministrio capitaneado por Olvio Dutra, tendo como secretria executiva Ermnia Maricato, conseguiu recrutar tanto nos quadros efetivos da Administrao federal quanto nos de outras instituies pblicas e universidades do pas uma equipe extremamente qualificada. Apesar das idiossincrasias das diferentes reas e de frices decorrentes das especificidades das lideranas das diversas diretorias, a cpula ministerial, por meio de um trabalho de co-

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ordenao interna apoiado por inmeros seminrios envolvendo entidades da sociedade organizada de vocao urbana e especialistas e consultores de diversas tendncias , logrou aparar arestas e avanar em propostas de regulao de polticas essenciais para as cidades brasileiras. Alm disso, percebendo que muitas dessas polticas transcendiam o Ministrio, envidou-se para envolver no s outras agncias e Ministrios que apresentavam fortes interfaces com as aes em curso, como tambm buscou integrar outros nveis de governo, sempre com a participao dos diferentes movimentos urbanos. Em relao Habitao, esse tema passou a receber uma viso mais holstica levando em conta no s a construo de novas moradias, mas tambm issues, que, por vezes, so at mais importante para enfrentar a questo do habitat, como regularizao fundiria, saneamento, infra-estrutura, transporte pblico, entre outros. Como lembra Ermnia Maricato (Maricato,2005), nos 30 meses da gesto do Ministro Olvio Dutra, entre os diversos xitos alcanados, podem-se ressaltar: 1. Nova poltica nacional de habitao: mudana de paradigma Aps longa ausncia, o novo Sistema Nacional de Habitao inclui o mercado privado (para ampliar a oferta para a classe mdia) e a habitao de interesse social. O novo marco regulatrio e a nova estrutura sero complementados pelo Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social (FNHIS) e o Sistema

Nacional de Habitao de Interesse Social (SNHIS) previstos na Lei Federal 11.124/2005, aprovada no Congresso Nacional aps 13 anos de tramitao. A tese perseguida para a mudana de paradigma na rea de habitao a seguinte: a) buscar segurana jurdica e ampliar recursos financeiros para o mercado privado de moradias para a classe mdia. Dessa forma, espera-se que a classe mdia no dispute recursos federais com as faixas de baixa renda, como aconteceu nos governos anteriores; b) ampliar os recursos e dar prioridade de investimentos que esto sob gesto federal e nacional para as faixas de rendas mais baixas (92% do dficit habitacional est situado abaixo de cinco salrios mnimos). Dessa forma, espera-se conter o crescimento das favelas e das ocupaes urbanas ilegais. 2. Ampliao dos recursos federais e nova orientao para o enfrentamento da questo habitacional Com recursos geridos pelo governo federal, em 2003 e 2004 foram contratados R$ 10,7 bilhes para atender a 760 mil famlias com imveis novos e usados, aquisio de material para construo, reformas de moradia e urbanizao de favelas. Em 2005, as metas de contratao so atender a 640 mil famlias com a aplicao de R$ 10,6 bilhes. Enquanto a aplicao dos recursos sob gesto federal estava fortalecendo a concentrao da renda no pas, j que a maior parte deles era dirigida para as faixas de renda situadas acima de cinco salrios mnimos, a atual administrao priorizou os invesDesafios da Habitao Popular no Brasil: polticas recentes e tendncias

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timentos pblicos subsidiados abaixo dessa faixa, em que se encontra 92% do dficit habitacional. A mudana normativa nos programas habitacionais federais (PSH, PAR), a criao de novos programas (PCS, PEHP) e uma resoluo aprovada pelo Conselho Curador do FGTS (Resoluo 460/2005) permitiram ampliar os recursos de subsdios para baixa renda. Pela primeira vez o governo federal atuou ativamente na questo da regularizao fundiria. O novo programa j deu incio a processos para fornecer a documentao do imvel habitacional para mais de 500 mil famlias de baixa renda moradoras de assentamentos informais situados em 26 estados, em especial nas 11 maiores metrpoles brasileiras. O Ministrio das Cidades fez convnio com a Associao dos Notrios e Registradores do Brasil (Anoreg) para o registro gratuito de moradias sociais regularizadas. 3. Proposta de uma poltica nacional do saneamento ambiental e ampliao dos investimentos34

Convm assinalar que pela primeira vez o Ministrio das Cidades, em parceria com os Ministrios da Sade, do Meio Ambie