Habermas - Passado Como Futuro

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    ESTUDOS ALEMAES

    Serie coordenada por _EDUARDO PORTELLA, EMMANUEL CARNEIRO LEAO,MUNIZ SODRE, GUSTAVO BAYER.

    CIP-Brasil, Catalogacao-na-fonteSindicato Nacional dos Edi tores de Livros, RJ.

    92-1054CDD-193CDU -1(43)

    Habermas, Jiirgen, 1929-H119p Passado como futuro / Jiirgen Habermas; [tradutor, FlavioBeno Siebeneichler; entrevistador, Michael Haller). - Rio deJaneiro: Tempo Brasi leiro, 1993(Colecao Biblioteca Tempo Universitario; n2 94; SerieEstudos alemaes)Traducao do original alemao: Vergangenheit als ZukunftISBN 85-282-0046-9112p.1. Habermas, Jiirgen, 1929. - - Entrevistas. 2. Politicainternacional. 3. Filosofia alema, I.Haller, Michael . II. Titulo.III. Serie,

    JURGEN HABERMAS

    PASSADO C OM O FUTURO

    TEMPO BRASILEIRORio de Janeiro - RJ -1993

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    BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITAAIO - 94 .Colecao dirigida por EDUARDO PORTELLAProfessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Traduzido do original alemao:Vergangenhei t a ls Zukun ft .

    Copyright:@ 1990,Editora Pendo Zurique

    Entrevistador:MichaeLHallerTradutor:Flavio Beno SiebeneichlerCapa:Antonio Dias e montagem de Elisabeth Lafayette

    Todos os direitos reservados asEDI

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    N OT A D O TR AD UTO R

    o sistema de numeracao dos topicos da entrevista e dasquestoes desenvolvidas em cada urn deles foi introduzido nestatraducao com 0 intuito de facilitar a leitura e, principalmente, alocalizacao e a retomada dos temas abordados.

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    INTRODU~AO

    o presente livro em forma de entrevista, que tenta lancarluzes do esclarecimento habermasiano sobre temas atuais do cenariopolitico europeu e mundial, pode trazer uma contribuicaoimportante para a discussao de problemas que afligem a sociedadebrasileira, tais como, por exemplo: a questao da sociedade civil, aideia de naliao, 0problema do socialismo, a utilidade das teorias, osmodelos culturais que devem orientar 0 desenvolvimentoeconomico, etc.Alem disso, ele constitui uma ocasiao Impar para se en tenderos pontos principais da arquitetonica da teoria do agir comunicativo,de Habermas. E isso, por duas razoes principais, a saber: a entrevistaapresenta uma condensacao desta teoria (ver principalmenteitem 5), como tambem uma aplicacao dela a problemas centrais dapolitica mundial contemporanea.o ca rt it er s ism og ra fi co d a en tr ev is ta

    A estrutura de uma entrevista, de urn artigo de jornal ou derevista, a recensao de urn livro atual, constituern formas deargurncntacao, cujas regras siio menos restritivas que as do metieracadernico, 0que acarreta como consequencia urn menor grau derigor e de concisao.Mesmo assirn, a opiniao Iilosofica transcrita numaentrevista traz vantagens: tern acesso mais facil a conscienciapublica, pcrmite tomadas de posicao mais francas e associacocs deidcias mais livrcs e intcrcssantcs, colocando em relevo a tensaoexistentc entre posicoes difercntcs, entre niveis distintos deabordagcm da rcalidade.9

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    Eu ousaria afirmar que a dinamica do pensamentohabermasiano pode ser melhor captada na complexidade de seuconjunto se estudarmos os fragmentos de seu pens amen to dispersosnos ensaios, excursos, introducoes, posfacios, conferencias e,principalmente, nas imimeras entrevistas.A dilatada entrevista que 0 leitor tern em maos situa-se naatualidade premente do instante historico: nela Habermas nao secomporta como urn logico, urn metaffsico, urn cientista politico, urnsociologo, urn moralista, ou como urn filosofo de catedra,Sua posicao e a do intelectual cujo trabalho precipuoconsiste em tomar conceitos do ambito da filosofia, das cienciaspolfticas e historicas e coloca-los "em contato com os fatoscontingentes, com as experiencias biograficas efemeras, com asvolt as do espfrito do tempo" (Politik, Kunst, Religion, 1977. p. 6),que se refletem nas mudancas de tendencia, nas revolucoes, nasmodas do pensamento, nas catastrofes, nas guerras. E esse tipo depensamento adquire urn valor sismografico surpreendente, umavez que capta os sintomas, os elementos indicadores de mudancasestruturais, como urn sismografo capaz de registrar os mfnimostremores e as menores crispacoes e movimentos do interiorda terra.

    A questiio da [alencia do socialismoA avaliacao correta das modificacoes ocorridas na EuropaCentral e Oriental passa pela questao da falencia do socialismo deEstado. Esta questao e alvo de interpretacoes nem sempreconcordantes, as quais podem ser divididas nos seguintes modelosprincipais:

    a) A interpretacao stalinista:Existe urn grupo de defensores stalinistas do status quoanterior, os quais repudiam 0carater revolucionario das transform a-~6es ocorridas, que eles interpretam como sendo contra-revolucio-narias,

    opassado como futuro

    b) A interpretacao leninista:o socialismo leninista apoia-se numa historia de luta declasses com urn final pre-deter min ado. Por isso, os seusrepresentantes, que nao puderam deixar de observar os fatos de

    novembro de 1989, consideram-nos como uma "revolucaoconservadora", is to e, como uma reforma purificadora no ambitode urn processo revolucionario a longo prazo (Jii rgen Kuszynski),portanto, como uma simples autocorrecao do socialismo deEstado.c) A interpretacao do comunismo reformista:

    Esta corrente inspira-se na ideia de urn socialismodemocratico que seria urn terceiro caminho entre os dois tiposexistentes de sociedade: 0 socialismo de Estado e a sociedadecapitalista.Os comunistas reformistas pretendem ir mais longe do queos comunistas leninistas, os quais desejam apenas corrigir os errosstalinistas. Apoiando-se em diferentes correntes teoricas domarxismo ocidental, eles tomam como ponto de partida a ideia deque a autocompreensao stalinista da revolucao bolchevista falseia 0socialismo, promovendo a estatizacao, ao inves de facilitar asocializacao democratica dos meios de producao.A teoria do terceiro caminho aparece em diferentesvariantes, como, por exemplo, a de Dubcek, segundo a qual 0caminho da dernocratizacao radical leva a uma ordem social nova esuperior a das democracias de massa e do bem-estar social.

    "Passado como futuro" foi 0 lema da campanha politica deLudwig Erhard na decada de 50 na Alemanha Ocidental. Assinala atendencia que busca no passado os modelos que servem comomedida para a interpretacao do futuro.Habermas retoma esse lema na presente entrevista paravisualizar uma tensao dialetica entre duas atitudes que sobressaemno atual panorama da discussao dos problemas colocados pela quedado socialismo real: deve-se prosseguir na linha dos idea istradicionais, tentando construir urn passado futuro, 0 futuro que 0passado tinha projetado, ou, ao inves disso, apreender simplesmenteo futuro em categorias do pass ado, urn futuro passado?Quanto a esse ponto, Habermas e cetico, contrariandomuitos dos seus colegas alemaes. Ele constata que a revolucaorecuperadora, que varreu a Europa nos ultimos anos, nao conseguiulancar luzes novas sobre osvelhos problemas alernaes: "poucas vezeso jiibilo de uma revolucao emudeceu tao rapidamente" (Dienachholende Revolution, p. 7).10 11

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    Marion G. Denhoff acredita na possibilidade de se unir 0socialismo e a economia de mercado. Com "urn pouco de fantasiae de pragmatismo" e possfvel descobrir que ambos se comple-menta'!l, ou melhor, se corrigem. 0 resultado poderia ser urncomumsmo reformista de Indole falibilista, que renunciou a todasas certezas de uma filosofia da historia que impoe a historia umamarcha forcada.d) A interpretacao pos-moderna do socialismo de Estado

    Na perspectiva de uma crftica pos-moderna da razao,i~sp~rada em Nietzsche e Heidegger, 0 fim do socialismo de Estadosignifica uma revolucao que encerra a era das revolucoes: cia superana raiz 0 terror nascido da razao, Atraves dela a razao nao desperta,uma vez que se descobre que cia propria e 0 pesadelo (Habermas:Die nachholende Revolution, p. 183-186).e) A interpretacao anticomunista

    Nesta perspectiva as transformacoes revolucionariasocorridas no Leste significam 0 final da "guerra civil mundial"declarada em 1917 pelos bolchevistas. Portanto, uma revolucaocontra a sua propria origem.f) A intcrpretacao liberal

    Ela registra inicialmente que a falencia do socialismo de Estadod~~encadeia a dissolucao das derradeiras formas da dominacao totali-tana na Europa. Chega ao fim uma era iniciada com0fascismo. A partirda i comecam a imperar as ideias de uma ordem liberal: Estado de direitodemocratico, economia de mercado, pluralismo social.g) A interpretacao macrosc6pica da democracia radical

    Habermas posiciona-se criticamente em relacao aos scismodelos de interpretacao do socialismo acima apresentados. Vale apena considerar os principais argumentos apresentados.. . Para ~aber que 0 !ll0delo de interpretacao stalinista naoIunciona mais basta considerar 0 caso do desmoronamento daRepublica Democratica Alema. Essa queda torna evidente que osque estavam embaixo nao queriam mais esse regime e que os queestavam em cima nao podiam mais impo-lo. Foi a raiva das massasque as lancou contra os aparelhos de seguranca do Estado.No tocante a interprctacao leninista, Habcrrnas c taxativo:ela nao serve para explicar 0 t ipo de movimentos e conflitos sociais

    provocados pelas condicoes estruturais dos sistemas de sociedade ede dorninacao do socialismo de Estado.Com relacao it interpretacao do comunismo reformista,Habermas argumenta que 0 tema do potencial democratico e dareformabilidade de urn socialismo de Estado, revolucionado pordentro, nao pode mais ser colocada de modo realista hoje em dia.A questao do terceiro caminho que a ex-Republica DemocraticaAlerna poderia ter seguido tern que ficar scm resposta, mesmo queesteja apoiada em premissas corretas. Pois a unica possibilidadede testa-lo "com urn pouco de fantasia e de pragmatismo" ja naoexiste mais, uma vez que a massa da populacao decidiu-se contra.A interpretacao pos-moderna do socialismo de EstadoHabermas contra poe os fatos que nao cabem nesse modelo: apresence das massas reunidas nas pra'Sas e nas ruas desarmou urnregime armado ate os dentes. E essa a'Sao de massas realizou-seno espa

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    Ela constitui uma especie de arena ou forum universal noqual encontram lugar nao somente os liberais, mas tambem aesquerda socialista, que pode ser tida como 0 fermento paracomunicacoes polfticasque impedem que a moldura institucional doEsta~o de direi,to democratico se estanque. Para esse forum econvidada tambem a esquerda nao comunista, que pode contribuirno trabalho de transformacao das ideias socialistas em autocrfticaradicalmente transformadora de uma sociedade capitalista.. . Habermas tern como certo que apos a bancarrota dosocialismo de Estado a autocntica radical e reformista e 0buraco daagulha pelo qual tudo deve passar.

    F la vi o B en o S ie be ne ic hl er

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    PREFAcIO

    o desmoronamento do socialismo de Estado no Lesteeuropeu; os iraquianos no Kuwait e os americanos no Golfo; emBonn, uma polftica dirigida unicamente aos interesses proprios epemiria social daqueles que desejariam viver nas condicoes dosalernaes ocidentais: tudo isso leva-nos a afirmar, com JiirgenHabermas, que a nova intransparencia continua ganhando terreno.E com ela cresce a necessidade de esclarecimento.Este livro foi escrito justamente com a intencao de fomecernovos impulsos para esse esclarecimento: pretende colo carproblemas candentes relacionados com eventos marcantes daatualidade politica no enfoque esclarecedor da analise habermasiana.A entrevista foi acertada com Jiirgen Habermas no verao de1990. Combinamos que ela seria feita porvia postal. Nos a iniciamosna epoca do Ano Novo de 1990/91,detendo-nos inicialmente numleque de perguntas sobre os alemaes na Europa. Prosseguimos emfevereiro com consideracoes sobre a crise no Oriente Medio,Chegamos ao final em marco, quando nos detivemos em questoescomplementares sobre 0pensamento politico de Jiirgen Habermas.E verdade que 0 metodo de entrevista em forma deperguntas por escrito nao permite a eclosao de urn dialogoverdadeiro, nem mesmo objecoes espontaneas. No entanto, este tipode entrevista compensa 0 leitor, proporcionando uma construcaomais clara e uma forma mais incisiva.o nosso texto nasceu, pois, de uma longa entrevista feita porescrito. As perguntas feitas por mim e asrespostas dadas por JiirgenHabermas foram agrupadas numa ordem ditada pela atualidade dosproblemas, tomando como ponto de partida a questao candente daGuerra do Golfo. Verna seguir a problematica referente aos alemaese seus intelectuais. Num terceiro momenta focaliza-se a Europa. Na

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    parte final entram em cena questoes referentes itvalidade das teoriasde Jurgen Habermas numa epoca torturada pelos medosdespertados pelo futuro.Numa era semeada de eventos arras adores, queconstrangem sem tregua a urn reexame dos propri

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    IIII

    I

    1. PO DE MO S CO NSIDE RAR A G UE RRADO GOLFO COM O 0 ELEM ENTOC ATA LISA DO R DE U MA N OV AM EN TA LID AD E N A A LE M AN H A?

    Resumo:

    1.1.A Guerra do Golfo: urn ato racional ou recafda na barbaric?1.2.Aspectos politicos da Guerra do Golfo.1.3.a papel daoxu1.4.Argumentos a favor da guerra: a pretensa legitimacao daguerra pela aNU.1.5.Argumentos contra a intervencao militar no Iraque.1.6. Sequelas da intervencao,1.7.Sobre a personalidade de Saddam Hussein.1.8.Sobre a parcela de culpa do eurocentrismo.1.9.Sobre a possibilidade de uma "politica intern a mundial".1.10.Sobre 0papel dos alemaes.1.11. A possfvel contribuicao dos alemaes para uma polfticaradical da paz mundial.1.1.

    HALLER Nest a en tr evi st a f ei ta po r e s cr it o eu go st ar ia de co lo car l ogon o in ic io o s a co nte cim en to s q ue s e d es en ro la ram n o G olfo P er sic o.E le s de sencadear am discussoes violentas em todas as regioes dop la ne ta . Mu ita s p es so as v ir am nes sa g ue rr a uma r ec aid a na b ar btir ie ,tid a a te h a p ou co co mo im po ssiv el. O u teria sid o e la a u ltim a ra tio ,q ue s e a nt ec ip ou , a J im d e e vita r m a le s p io re s?19

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    HABERMAS: Essa foi a questao que mexeu com os sentimentosdurante os meses de janeiro e fevereiro de 1991. Ela confundiu osanimos e teve a efeito de uma dinamite nas cabecas das pessoas. Apropria intensidade desses debates acalorados constitui urnfenomeno a parte que merece maiores esclarecimentos. Por que seraque a guerra do Golfo chegou a desencadear essa onda de afetos eessa massa de argumentos? Talpergunta nao deve causar estranheza,uma vez que apos 1945foram desencadeadas centenas de guerras,algumas ate com maior mimero de vitimas. No entanto, a maioriadelas nem sequer foi percebida no Primeiro Mundo. Certamente, nocaso atual estavam tambem em jogo as reservas de petroleo doOriente Media, das quais depende a producao industrial dos pafsesocidentais, do Japao e de outros mais. Todavia, esse fato naoconsegue explicar suficientemente as turbulencias acontecidas anfvel publico. Poderfamos tambem dizer que a guerra de umasuperpotencia sempre acarreta uma certa significacao global. Noentanto, se fora apenas isso,as reacoes despertadas pela guerra daCoreia e do Vietnam deveriam ter tido 0 mesmo alcance. Aintervencao no Vietnam desencadeou realmente urn conflito que sedesenrolou perante os olhos de uma opiniao publica em sentidoestrito. Desta feita, porem, nao se tratou de uma guerra de libertacaonacional no contexto da descolonizacao. No Iraque houve aconfluencia de dois elementos que modificaram 0modo depercepciiodos acontecimentos belicos: a racionalidade demonstrativa dasestrategias e a presenca sem precedentes damidia.Dado que 0 fracasso traumatico havido no Vietnam naodeveria ser repetido, nem rompida a "frente patriotica", era precisoque 0Estado Maior, frio e calculador, tivesse tudo sob 0seu controle- e todos deveriam poder observar isso. A guerra, que desde aantigiiidade foi vivenciada como uma irrupcao do destino e como afonte pura e simples da contingencia, transformou-se numarealidade "produzida", na mostra de uma a'5ao militar "limpa",desenvolvida sem riscos, eficaz do ponto de vista tecnico, rapida,precisa, exercitada de modo a evitar 0derramamento de sangue daparte dos Aliados. As proprias reportagens estavam sob controle,faziam parte da estrategia militar a qual, por assim dizer, coincidiacom a sua simulacao na imagem da televisao. Foi dito muitas vezesque a realidade do sofrimento, nao focalizada, conferiu ao todo urncarater inteiramente artificial. A guerra "construfda" mais pareceuurn jogo de video, 0 dobar de urn program a eletronico, que naooferece nenhuma resistencia, E contra todas as expectativas, a20

    realidade que apareceu depois nao se mostrou sob 0veu diafano dacensura. Ate hoje as vitimas aparecem em contornos fantasma-goricos; e preciso especular sobre 0seu mimero: terao sido cernmil?duzentos mil? ou mais? Sobre as atrocidades no caminho de fuga doKuwait para Basra, durante as horas em que 0 armisticio eraprotelado, eu liuma unica reportagem. Esse pequeno fragmento deautenticidade, safdo da pena de urn reporter ingles, teve 0 efeitosemelhante a uma reminiscencia da Guerra dos Trinta Anos.E verdade que a censura produziu igualmente efeitos naoprevistos. Nos, espectadores, tfnhamos consciencia de que uma parteda realidade, isto e, a modalidade belica do evento, nao nos seriamostrada. Isso, porem, pode ter estimulado nossa capacidade deimaginacao. Quantas vezes, aoouvir asreportagens sobre os ataquesdos foguetes Skud a Tel-Aviv,sobre duas mil acoes militares contraBagdad num unico dia, recordei os ataques aereos nos dias daSegunda Guerra Mundial, as nossas cidades destrufdas! 0 buraconegro na tela da televisao colocou nossa fantasia em movimento.Alem disso, ele dirigiu os olhares dos espectadores frustrados emdirecao a propria midia. A exposicao proibida desse filme negativoelevou a tensao, trouxe a luzdo dia0poder damidia e tornou possfvelsentir a presenca contfnua de urn medium onipresente, que estadesperto vinte e quatro horas por dia. Em resumo, tanto 0aspecto"construfdo" dos acontecimentos, como tambem a simultaneidadeglobal existente entre acontecimento, informacao e recepcao deinformacao, determinaram nossa percepcao dos acontecimentos.Em filmagens com retardador foram-nos mostrados os tanquestrituradores de uma maquina de guerra high-tech - asseptica,purificada de qualquer elemento que pudesse sugerir alguma formade destino, distanciada dos horizontes da vivencia concreta e dosofrimento, salpicada aqui e ali com alguns chumacos de algodao dehuman-touch. Isso tudo nao constituiu apenas uma realidadealienada: tinha-se a impressao de que 0 novo modo de percepcaohavia criado uma realidade diferente. A desproporcao entre asforcasmilitares contribuiu, por seu turno, para que a guerra, que e aessencia do contingente, pudesse ser tomada como algo factfvel,Essa mensagem poderia ter consequencias perigosas a longoprazo, pois frustra os medos, que nao deixavam de ter urnfundamento - 0 temor de que 0proximo foguete Skud conduzisseuma bomba qufmica, de que Saddam Hussein poderia concretizarsua ameaca de atacar com armas biologicas ou iniciar urn terrorismobiologico, ou ainda 0 receio de que seriam empregadas armas

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    atomicas. 0 fantasma das armas ABC era a sombra que se podiavislumbrar por tras dos po~os de petroleo incendiados. A dimensaoecologica da guerra era nova. Para sermos mais precisos, a novaqualidade do fen6meno resultou da diferenca entre aquela~istem~t.i~idade encenada de modo eficiente e a palpavelimpossibilidade de se controlar osenormes riscos decorrentes da altatecnologia. Aquilo que amealiava explodir todas as dimensoes domundo da vida parecia estar sendo recolhido apaziguadoramentenos horizontes do mundo da vida. A recaida na barbaric, da qual 0senhor fala,talvez seja uma descricao urntanto antiquada para aquiloque nos assistimos atraves das lentes da CNN.Ouanto mais estilizadae fr~gmenta~a a percepcao de urnevento abstrafdo em tal grau, tanto~aIS os sentimentos morais e a fantasia puderam ser ocupados porinterpretacoes, que se estendem as dimensoes polfticas da guerra.1 . 2 .HALLER' Ao que 0 senhor se refere quando [ala em "dimensoespoliticas" da Guerra do Golfo?HABE~~: .Nossas percep~oe~ foram cunhadas antecipada-ment~, IStOe~~nterpr~tadas atraves de determinadas categorias eatraves de anahses mais ou menos claras. Todos discutiam e cada urntinha urn pouco de razao, A vivacidade e a unilateralidade de muitastomadas de posicao tambem pode ser explicada pelo fato de que nemtodas as discuss6es conseguiram captar de modo suficientementeclaro as quatro dimensoes desta guerra.A primeira dimensao ja foi referida par mim: a dimensao de~ma p~lft!cado pod~r, que salta aos olhos. Naturalmente as nacoesindustrializadas temiam pelo controle do abastecimento de petroleobruto, uma fo~te de en~rgia vit~l..Em segundo lugar, a lernbranca dopassado colomal do Onente Medic elevou0conflito ao nfvelde umadispu~a entre a cultura do Ocidente, que traz 0cunho cristae,supenor do ponto de vista tecnico e que detem 0 dominio domercado mundial, e 0 mundo arabe. 0 processo mundial dedescolonizacao que teve lugar apos a II Guerra Mundial acentuoutambem entre nos uma certa sensibilidade para com as experienciasde,Povos culturalmente amealiad?s e culturalmente desapropriados.Nos aprende~os .que os ~nfhtos da socializacao religiosa saocapazes de abnr abls~os ~als profundos do que diferencas de classesou modos de producao diferentes. Uma terceira dimensao da guerra22

    1 surgiu quando Saddam Hussein ameacou empregar armas ABCcontra Israel: trata-se do crescente conflito com os palestinos. Hamotivos historicos e psicol6gicos que transformam 0emprego do gasna guerra uma ameaca insuportavel para Israel, que desta vez estavacondenada a passividade. Jamais sua existencia tinha sido colocadade tal modo em questao. A relacao obscena entre a exportacao detecnologia alema para 0Iraque e os foguetes Skud apontados paraIsrael, presumivelmente armados com ogivas qufmicas, constituiuurn tremendo desafio para a moral poIftica dos alemaes. MichBrumlik chegou a falar num "Teste-Lackmus". A quarta dimensaoda l_lerra,que eu espero, traga frutos para 0 futuro, foi 0 papelpolitico da ONU, que autorizou os Aliados a empregar meiosmilitares. Evidentemente, essa permissao estava Iigada a certascondicoes.Nao deverfamos imitar os politicos realistas, lancandolevianamente ao lixoa dimensao jurfdica da guerra, a que se refereao direito das nacoes. Taispoliticos trazem sempre em sua mochila,ou 0 seu Marx ou 0seu Carl Schmitt, e ja sabem de antemao que asideia~ sao passadas para tras quando estao em jogo interesses.Considero que tal empostacao nao emuito realista no ambito de umasociedade mundial, cuja caracterfstica principal e a extremadesproporcao existen te na distribuicao daschances devida. A divisaodramatica entre Leste e Oeste, Norte e Sui,na distribuicao do podere do bem-estar, torna cada vez mais plausfveis as chantagens eameacas irracionais com armas atomicas, biologicas e qufrnicas,inclusive a ameaca suicida atraves de atos de terrorismo ecologico.Por isso, seria razoavel fortalecer a autoridade das Nacoes Unidas,de tal modo que as resolucoes da comunidade das nacoes pudessemser sancionadas em certos casos atraves de meios militares. Nocapitulo 7 da Carta das Nacoes ja esta previsto 0emprego de meiosmilitares, os quais devem ficar sob 0 comando da ONU. Apos 0termino da Guerra Fria nos deveriamos ampliar a ONU e criar urnpoder executivo em condicoes de esgotar efetivamente aspossibilidades existentes no direito.1.3.HALLER' Muitos observadoresda ONU objetariam provavelmenteque 0 senhor, ao considerar como realizavel um poder executivo daONU, esta superestimando as Nacoes Unidas, que dependem daconstelacdo depoder do Conselho de SegurancaMundial.

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    HABERMAS: Por favor, nao confunda isso com 0 estabelecimentode urn governo mundial, nem tampouco com urn ainda utopicomonopolio do poder por parte da ONU. 0 proprio Kant, em seuescrito sobre a "paz perpetua", rejeitou urn governo mundial,propondo em seu lugar uma "Federacao de Estados Livres". Ainstituicao do Conselho de Seguranca nasceu da intencao de conferira ONU uma base, atraves do entrelacamento das potencies mundiais.Sem a sua disposicao de cooperacao, qualquer sistema internacionalseria tao destitufdo de poder, como foi 0caso da ONU ate 0presentemomento. Uma ordem de paz mundial somente pode funcionar seaceitamos como premissa que as poderosas nacoes industriais, porraz6es internas, terao cada vez menos chances de agir como Estadosbeligerantes. Kant ja refletira no fa to de que somente os Estadoscuja constituicao intern a e republican a estao em condicoes de sealiar e constituir uma ordem de paz federativa. Nos tambem temosque esperar que os povos das democracias que vivem nos Estados debem-estar ado tern passo a passo culturas politicas liberais,acostumem-se a instituicoes da liberdade e que em sua maioria criemuma mentalidade pacifica, de tal modo que as guerras classicas naopossam mais ser mobilizadas. Apesar das recaidas que podemosobservar hoje, quando ainda se adotam posicoes nacionalistas tfpicasdo seculo XIX, as tendencias a longo prazo apontam para ademocracia.Certamente a Guerra do Golfo foi, sob este angulo e nomelhor dos casos, urn fruto hibrido. Nao foi conduzida pelo comandoda ONU; as nacoes que fizeram a guerra nem ao menos estavamobrigadas a prestar contas a ONU. Mesmo assim, os Aliadosinsistiram ate 0 ultimo momenta em ter a legitimacao da ONU. Emseu en tender, eles agiram apenas como mandataries da organizacaomundial. Isso, porem, ja e mais do que nada. Quando se tern emmente que a implernentacao do direito dos povos precisa serconseguida atraves da cooperacao organizada da comunidade dospovos e nao atraves de urn governo mundial, utopico no mau sentido,entao e possfvel interpretar 0 final de uma ordem mundial bipolarcomo uma chance para urn novo comeco. A partir dai temos quepassar a exigir, mesmo que postumamente, que da Guerra do Golfose tire a melhor li~ao, nao somente para a regiao do Oriente Medic,mas tambem para a ordem das relacoes internacionais em geral. Eneste contexto que eu vejo tambem os iiltimos pronunciamentos denosso Presidente. Se olharmos 0 futuro, a indicacao cetica sobre apraxis q ue a te 0momento [oi a n orma perde a sua forca de conviccao.

    o fato e que ate hoje, se prescindirmos do precedente duvidosoaberto pela Guerra da Coreia, as forcas ocidentais nao agirammilitarmente contra os governos que simplesmente ignoraramresolucoes da ONU. No entanto, a bancarrota do socialismo deEstado produziu uma nova situacao. Pela primeira vez ofereceu-seobjetivamente aos Estados Unidos e a seus al iados a possibilidadede assumir transitoria e substitutivamente 0papel presumivelmenteneutro de uma forca policial da ONU, ainda inexistente na ONU, afim de impor no Kuwait princfpios do direito dos povos. Ninguernpode duvidar seriamente de que a anexacao do Kuwait e 0 aminciodo Iraque de que iria deflagrar uma guerra contra Israel, tanto maisque seria uma guerra com 0 emprego de armas ABC, configura urnatentado contra 0direito dos povos.1.4.HALLER N o e nta nto , a G uerra d o G olfo , q ue se d ese nro lo u e ntre o sdias 16 de janeiro e 3 de marco de 1991, fo i tudo m enos um a afiiop olicia l d a O NU .HABERMAS: E verdade: a pretend ida legitimacao da ONU serviuem larga medida como simples pretexto. Mesmo assim, ela focal izauma dimensao da guerra que deverfamos manter ante os olhos,especial mente a partir do momenta em que nos interessamos pelofuturo da politica internacional. Porque podemos ao menos apelarpara normas invocadas pelas grandes potencies. Como ja tivemosocasiao de afirmar, a guerra foi, na melhor das hipoteses, urn frutohfbrido. Em nenhum momenta ela constituiu uma a~ao policial e amedida que ela foi se desenrolando foram caindo as inibicoes esurgindo os contornos, bern normais, de uma guerra entre nacoes,Muitos censuraram a ONU pelo fato de ter se deixadoinstrumentalizar pelos Estados Unidos. Porem, essas mesmascensuras apelam para as medidas do direito das nacoes, nao asdesmentindo simplesmente. Numa avaliacao normativa da guerra epreciso pensar, antes de tudo, nas limitacoes resultantesnecessariamente de uma legitimacao atraves da ONU. Isso nao valeapenas com relacao aos objetivos da guerra. Antes de mais nada, aspotencias credenciadas pela ONU teriam que ter feito uma distincaoentre 0seu papel como agentes e os seus interesses proprios, os quaiselas assumem naturalmente enquanto nacoes ocidentaisindustrializadas. Poder-se-ia ter evitado tres confus6es. A

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    intervencao tinha que se apresentar aos olhos do mundo como umaa'5ao policial, ou seja, nao podia, por assim dizer, ser leva?a a ca~oem nome proprio, como se fora uma guerra normal. A seguir, ela naopodia despertar a suspei ta de que 0Ocidente estava interessado, emprimeira linha, na posse de sua bas~ ener~etica - nada de sa~gue emtroca de petroleo! Finalmen~e, foi pr~~lso tomar preca~'5oes paraque a guerra nao fosse entendida na regiao como urn confhto culturalentre 0Ocidente e os arabes.

    demorado, as dificuldades de urn entendimento intercultural, aquestao de saber se urn arranjo incluindo os palestinos teria sidorealmente mais facil apos a destruicao do Iraque, etc. Agora naoestamos mais em condicoes de contribuir para a solucao destacontroversia.1 . 6 .

    1.5. HALLER' Uma terceira objecao contra a Guerra do Golfo efo rm ulada da seg uinte m aneira: a interven cdo m ilitar da O NU [oit al ve z n ec es sa ri a. E n tr et an to , 0 modo como os Estados Unidosc on du zira m o s a ta qu es a ere os - o s b om ba rd eio s in te nsiv os, a a mp lad es tr uic ao d e vtirias c id ad es ta is c om o B asra , 0 grande num ero devitim as entre a populaciio civil iraquiana e, principalm ente, adestruiciio do mundo da vida natural - fez com que 0 g ol pe p el alibertacao do K uw ait se transform asse n um a g uerra de destruiciiocontra 0E sta do do I ra qu e. E , a ssim , a G u err a d o G olfo t er ia in fr in gi dogrosseiram ente um dos p rincip ios do direito das nacoes, que e 0 daproporcionalidade: 0 objetivo da guerra, que era a evacuaciio doKuwait, nao tem nenhum a relacao de proporcao com essas perdasirre pa ra ve is. P or c on se gu in te , a g ue rra ru io p od e se r ju stific ad a n oam bito do direito das nacoes. E m sintese: pelas proprias norm ase s ta tu i da s p e la c iv il iz a ci io o c id ent al , 0Oc id ent e a c re s cen ta a iniusticade Saddam H ussein um a nova injustice. 0 se nh or c on sid era e ssao bje ca o o u o utr as s em elh an te s c om o ju stific ad as?HABERMAS: A pergunta, se houve proporcionalidade numa guerraque incluiu bombardeios intensivos de superficie, causandoprovavelmente varias centenas de milhares de mortos e feridos,enormes colunas de expatriados e sem teto, ampla destruicao dainfra-estrutura civil, prejufzos ecologicos a longo prazo e urn estadocatastrofico no Iraque e no Kuwait, que dura ate hoje, nao se podedar uma resposta afirmativa. No entanto, eu penso que, ao menosna perspect iva de Israel, cercado pelo mundo arabe e ameacado comas armas mais horriveis, a permissao para sancoes militares contra 0Iraque era justificada. No entanto, mesmo que as condicoes a serempreenchidas para que se pudesse fazer uso desta permissao tivessemsido realmente preenchidas, e preciso ter em mente uma coisa: doponto de vista moral e juridico a guerra somente se justificava naforma de uma a'5ao que, atraves de meios policiais, isto e, atraves demeios que envolvem objetivos precisos, procura impor uma

    HALLER' Duran te a fase inicial da Guerra do Go lfo forame sp alh ad os m uit os s lo ga ns in ge nu os e h ob os .c on tr a a g ue rr a. M _ esr _n .oa ssim , houve um a porciio de arg um entos dig nos de nota. Eu lnlC~Oc om o s d oi s s eg ui nt es : O s E st ad o s Un id os e p ri nc ip a lm e nt e 0secret~ru:geral da O NU ren unciaram ao cam inho das negociacoes p a ~a a u ng tra su pe ra ciio d o c on flito , o u m elh or, n em te nta ra m_ ~ sse c am mh ~. A oinves disso , passaram a dram atizar a am eaca m ilita r que partta deS ad da m H us se in , e xa ge ra nd o n os n um er os . In clu siv e 0u lt im a t o d ad oa S ad da m H usse in p ara q ue e va cu asse im ed ia ta me nte 0K uw ait e rasim p lesm en te inaceiuivel aos olhos de um potentado arabe. Emse gu nd o lu ga r, e p ossiv el o bje ta r q ue 0 mundo ocidental ndo see sfo rc ou m u ito e m o bte r d e I sr ae l a d is po sic iio p ar a p arti cip ar d e u maconferencia de paz no O riente M edia, antes de expirar 0 prazo dou ltim a to . O ra, um a conferencia de p az teria sid o um ca minho vidvelp ara a so lu ctio d a crise d o O rie nte M ed ia , e ntre la ca da c om 0destinodos pa lest ino s . 0s ig ni fic ad o d is so tu do e 0s ~g ui nt e: a g u er ra e nc ob ree ssa o missiio e [a z c om q ue o s E sta do s d o O cid en te p erca m, a os o lh osd e m uito s a ra be s, a su a ja d im in uta p arc ela d e c re dib ilid ad e.

    HABERMAS: 0 senhor tern toda a razao. Antes de os Aliadosterem-se uti lizado da permissao da ONU e atacado 0Iraque, teriamque ter sido preenchidas as condicoes que 0senhor enumera, ou seja,o esgotamento de todas as possibilidades de negociacao, umaavaliacao - nos parametres de uma etica da responsabilidade - detodas as possfveis consequencias da guerra, inclusive a necessidadede haver uma proporcao relativa nos meios postos em pratica naguerra. 0 fato de sub meter p o st f es tum urn acontecimento tao brutala uma avaliacao normativa moralista soa urn tanto academico. Ospontos controversos, bern como os argumentos, foram discutidos e~ambito mundial: as chances de sucesso de urn embargo mats26 27

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    polit ico, porem como urn sismografo. Ele possui faro. Ele acabarade emprestar sua pena a colorida e libertaria arbitrariedade e aoelogio da mediocridade; ora, se ele procura agora colecionarargumentos para 0 partido da guerra, talvez esteja se anunciandouma mudanca de tendencia. Uma reviravolta que 0 leva dapos-modernidade francesa it alema, de Lyotard a Bohrer?omurmurio da classe polftica sobre a nova responsabilidadeinternacional e sobre a reencontrada normalidade de uma grandeAlemanha tern 0 seu equivalente no folhetim do jornal FrankfurterAllgemeine Zeitung (FAZ). Aqui a queixa dos artigos de fundo sobreo abandono da polftica por parte dos alemaes, sobre 0seu fracassoperante a seriedade existencial da guerra, prossegue num nivel deciencia da li teratura. Acola se sobrecarrega Kleist com a questao, see possfvel a urn pais viver sem ter urn sentido para a tragedia politica.A enfase sobre a felicidade da unidade nacional esmaeceu nas corescinza das mass as de desempregados; agora, porem, ela recobra umanova coloracao no brilho estetico das tempestades de acocomandadas eletronicamente: '1\ reunificacao devolvera a nalSao 0vocabulario do simbolismo estatal. Agora tinha chegado 0momentade ela utilizar-se, pela prime ira vez, desta linguagem. Ao inves disso,eles permaneceram mudos e tern que pagar por isso" (FrankfurterAllgemeine Zeitung, 18/02/1991). Os hera is sao novamenteconfrontados com os mercadores, as rijas raposas do deserto saopost as perante civis amolecidos, que preferem pagar a morrer; aoinves de estender a cabeca, os alemaes do pas-guerra celebram a suasuscetibilidade. Se levassemos a serio 0teor dessas queixas nao nosrestaria outro caminho a nao ser reprisar ideias de 1914 vestidas amoda da primeira fase do romantismo.. Eu devo confessar que a iinica boa notfcia que apareceudurante as incansaveis transmissoes de televisao entre as seis e asnove horas da manha estava contida num informe sobre a assistenciareligiosa aos militares no campo de pouso dos avi6es alemaes naTurquia. 0comandante proibiu a equipe de filmagens fazer qualquerfilmagem durante 0 service linirgico, porque os soldados quepart icipavam desse ato nao conseguiam conter as lagrimas. Como sepode ver, a sentimentalidade nao e a heranca ruim do romantismo.

    resolucao da comunidade dos povos. Depois do fato consumado,todos sabemos melhor as coisas - isso faz parte da natureza dosacontecimentos historicos,

    HALLER Varios observadores do cenario no Oriente Mediaafirmaram desde cedo que 0 lider do Iraque, Saddam Hussein, erauma figura de Hitler em formato arabe, que tentava destruir tudo 0que se opusesse as suas fantasias megalomanfacas. Hans MagnusEnzensberger escreveu durante a terceira seman a da guerra numensaio a Revista "Spiegel", que Saddam era, do mesmo modo queHitler, 0 "inimigo personijicado do genero humano", cujo alvo finalera 0exterminio dos homens, ou seja, a soluciio {mal. Que ele utilizavaqualquer crenca, qualquer comociio, qualquer ressentimento paraconseguir chegar a esse aniquilamento. "Por isso, qualquer tentativade interpretti-lo ideologicamente ou de refuta-lo" fracassanecessariamente: "Seu projeto nao e movido atraves de ideias, masatraves de obsessoes" (Cademo 6/1991). Seria permitido, pois, afirmarque se trata de um psicopata que poe em risco a humanidade,destruidor de povos, 0 qual iniciou sua insana corrida homicida esuicida ao atacar 0Irii e que [inalmente foi bloqueado no infcio doanode 1990?HABERMAS: 0 senhor nao arreda mesmo 0 pel Eu sempre tiveEnzensberger como 0autor mais sabido e mais brilhante de minhageracao, no entanto, 0seu forte nao e a clarividencia politica. Ele eurn intelectual do tipo dos que gostam de testar ate que ponto epossivel sus ten tar uma tese imbecil. De urn lado, a burguesia alema,que nao podia estar satisfeita com a Republica, apos 0Tratado deVersalhes; de outro lado, 0povo iraquiano, exaurido apos umaguerra de oito anos contra 0 Ira. De urn lado, preconceitosnacionalistas do povo alemao; de outro, 0 fundamentalismo xiita:onde estaria 0denominador historico com urn para 0ativismo depovos humilhados, de cuja pulsao de morte deveriam surgir osditadores? Perante 0olhar antropologizador e no contexto da fugarumo a sub-historia, desaparecem todas as diferencas nftidas. Alemdisso, nos aprendemos atraves da historiografia relat iva a Hitler quequando se demonizam as personalidades dos grandes lfderespolit icos, ha urn desvio no enfoque dos fatos historicos, Temos quelevar Enzensberger a serio, nao como historiador ou analista

    1 . 8 .IfALLER Ainda teremos ocasido de retomar ao tema do papelespecial desempenhado pelos alemiies. Permita-me volver por alguns

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    in sta nte s a o c on flito n o O rie nte M ed ia . M an ife sta men te , 0fa to deSaddam H ussein ter encontrado tanto apoio no espaco arabe e noT er ce iro M u nd o em g er al s e d e lle ta mb em a um o ut ro m o tiv o: e le o uso uleva ntar a ca beca co ntra 0 m undo ocidental p resuncoso, que secons idera 0 dono da justica. " El e n o s m o st ro u 0 a nd ar e re to ". f or ama s pa la vr as p ro nu nc ia da s p or um r ep re se nt an te d o g ov em od e S ad da mH us se in , a p6 s tr es s em an as d e g ue rr a. V is ta s a s c ois as p or e ste a ng ulo ,o mundo ocidental; com sua politica centrada na ignortincia emre la ciio a o q ue e su i fo ra d ele , so pro u 0 v en to , q ue a se gu ir se v olto uc on tra e le em fo rm a d e u m a te mp esta de . C om o 0s en ho r a va lia a n oss ap ar ce la d e c ulp a?HABERMAS: Qualquer que seja0destino de Saddam Hussein ap6sa brutal guerra civil,que no momento ele esta conduzindo contra oscurdos e xiitas, ele tent perdido sua aura e tera sido reduzido aoformato de urn destes potent ados nacionalistas, que lutam pelahegemonia no meio dessa regiao arabe fragmentada. Com isso,porem, nao desaparece 0 fenomeno para 0 qual 0 senhorjustificadamente quer chamar a atencao - uma disposicaocompreensfvel das massas de tentar reconquistar para 0seu mundoislamico a auto-estima frente ao ocidente, que ainda continua sendoencarado como colonialista. E e issoque torna a posicao de Israel,tido como posto avancado do Ocidente, tao precaria, Uma daspossfveis consequencias nao visadas por esta guerra seria 0fortalecimento do Ira e a propagacao do fundamentalismo. Se seentende 0 fundamentalismo religioso como uma reacao face amodernizacao socialque destroi formas de vida que cresceram por simesmase que desapropria culturalmente ospovos,entao, nao sepodenegar a participacao do imperialismo ocidental nesse processo. Poisa modernizacao sempre esteve e continua estando sob 0signo de urncapitalismo que significa bern mais do que uma simples forma deeconomia. No entanto, e preciso notar que a pobreza material e aopressao politica tambem devem ser colocadas na conta das eliteslocais, pouco importando 0 fato de elas governarem de modototalitario ou nao, serem corruptas ou nao - todos tornaram-seciimplices. Quanto mais complexas se tornam tais dependencias,tanto mais elaramente aparecem na conscienciaos conflitos culturais,que ainda permitem polarizacoes nftidasentre interno e externo - etanto mais rapidamente elas sao aproveitadas pelos politicos. .E preciso acrescentar a issoque por tras domundo arabe nospodemos encontrar uma das culturas avancadas mais antigas;30

    apoiando-se no Islamismo, ele pode apelar para uma tradicaoreligiosa no mesmo nfvel que a do Cristianismo. 0 Ocidente ternmuito que aprender no que respeita as questoes sutis doentendimento intercultural entre regioes e povos.Todavia,e possfveldescortinar sinais alentadores. Nas sociedades ocidentais, a forteimigracao havida nas iiltimas decadas nao desencadeou apenas asconhecidas reacoes xenofobas: ela tambern trouxe a conscienciaproblemas referentes a coexistencia pacffica de formas de vidaculturalmente distintas. Os Estados Unidos constitufram desde 0inicio uma sociedade multietnica. No entanto, mesmo aqui as coisasescorregaram dramaticamente em beneffcio das minorias: de acordocom as iiltimas estatfsticas, urn quarto da populacao ja e de origemnao-europeia. Isso corresponde mais ou menos a proporcao deestrangeiros que vivem numa grande cidade alerna, como porexemplo, Frankfurt. A revolucao xiita no Ira, 0 caso Rushdie, quelhe seguiu, agora a Guerra do Golfo e os conflitos entrenacionalidades na Europa Oriental fizeram com que tarnbem nossapopulacao, em grande parte secularizada, se recordasse davirulenciae do significadoduradouro inerente a conflitos nacionais que lancamrafzes na religiao, Atraves disso, nao sao somente as ideias de Kantsobre a paz perpetua que readquirem uma curiosa atualidade, mastambem 0 tema de Lessing que propunha uma reconciliacao entreas religioes mundiais.De mais a mais, damos de encontro a urn dos poucosproblemas filosoficos que terndiretamente uma ressonancia politica:sera que os principios do direito dos povos estao a tal pontoentrelacados com os s tandards de uma racionalidade ocidental, deuma racionalidade que de certo modo impregna a cultura ocidental,que nao podem ser tornados como base para uma avaliacao imparcialde controversias interculturais? Sera que atras da pretensaouniversalista, por exemplo, que ligamos com os direitos humanos,nao se esconde urn instrumento especialmente sutil e falso dedominacao de uma cultura sobre asoutras? Ou sera que asreligioesmundiais de cunho universalista convergem, de acordo com suaspretensoes, num micleo de intuicoes morais? Nos interpretamosesse micleo como sendo 0 igual respeito por qualquer urn, a mesmaconsideracao para coma integridade de qualquer pessoa necessitadade protecao e para com a intersubjetividade vulneravel de todas asformas de existencia. Sera que meu colega John Rawls tern razaoquando afirma que nas interpretacoes religiosas e seculares dossentimentos morais profundos e das experiencias elementares do

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    intercambio comunicativo existe urn "consenso que se sobrepoe"; d~qual a comunidade das nacoes pode lancar mao para encontrar asnormas de uma convivencia pacffica? A discussao filosofica sobreessas coisas esta em and amen to. No entanto, eu estou convencidode que Rawls tern razao, que 0 conteiido essencial dos princfpiosmarais incorporados ao direito dos povos concorda com a substancianormativa das grandes doutrinas profeticas que tiveram eco nahistoria mundial e das interpretacoes metafisicas do mundo.E verdade que seus seguidores nao podem fechar-se unscontra os outros de modo sectario. Eles precis am entrar num dialogodiscursivo uns com os outros, inclusive com 0 pensamento damodernidade europeia, e assim ultrapassar reflexivamente 0universo de suas proprias afirrnacoes. Estao acontecendo hoje emdia debates decisivos no interior das proprias tradicoes, no interiordo Islamismo, mas tambern no interior do Cristianismo, a saber, entreas correntes fundamentalistas e as que refletem sobre 0 desafiopluralista das sociedades modern as. A luta de Johann Baptist Metzcontra 0 pens amen to eurocentrista no interior da propria IgrejaCatolica revela que a abertura para 0 mundo nao implicanecessariamente a indiferenca de urn liberalismo insosso. Umasegunda linha da controversia atravessa 0 pens amen topos-metaffsico profano. Aqui 0 equivalente ao fundamentalismoreligioso e dado pelo ceticismo de uma crftica autodestrutiva darazao, a qual julga dever desmascarar atras de qualquer pretensaouniversalista it validade a pouco inteligente pretensao ao domfniopor parte de uma particularidade sutilmente camuflada. Desde queas teses de Carl Schmitt passaram a ser reconhecidas, essa figura depensamento, que e anti-humanista, influenciou a mentalidade deintelectuais alernaes, tanto de direita como, infelizmente, deesquerda. Esses intelectuais gostariam de banir completamente dapolftica argumentos marais e do direito das nacoes, porque naoconseguem descobrir neles mais do que urn mascaramentoracionalista da pura e simples auto-afirmacao, que no fundo eexistencialista. Apos a Guerra do Golfo revive entre nos esse falsoconcretismo da comemoracao jovem conservadora de uma forcaesteticizada, de uma grandeza auratizada, de urn caris rna politico.

    disparidades crescentes em termos de poder e de bem-estar entre 0Ocidente e 0 Oriente, entre 0 Norte e 0 Sui: como seria possivelpreencher com conteudos concretos a palavra de ordem, "politicointerna mundial"?

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    IIABERMAS: A palavra "politica interna mundial", que foi criada,creio eu, por Carl Friedrich Von Weizsacher, esta ligada realmentecom a visao kantiana de uma sociedade burguesa mundial, a qual osnossos schmittianos ridicularizam como sendo boa apenas naintencao. Certamente todos hoje concord am em afirmar que a ideiade uma ordem burguesa mundialjusta e pacifica nao possui nenhumabase filosofico-historica, No en tanto, 0 que mais podemos fazer,alem de ten tar conseguir tal realizacao?Ja se chegou a dizer que os Estados Unidos e seus aliadosapelam para a legitimacao atraves da ONU. Isso e urn fato. Asinstituicoes das Nacoes Unidas e os principios de direito dos pavos,incorporados na Carta da ONU incorporam, mesmo assim,como Hegeldiria, urn pedaco de "razao existen te" - urn pequeno fragmento daquelaideia que Kant ha dois seculos atras conseguiu traduzir em palavrasclaras. Ela ja nao paira mais simplesmcnte sobre as aguas. Por isso, epossfvel deduzir exigencies a partir da pretendida legitimacao atravesda ONU, asquais ainda nao sao mais do que simples exigencias; mesmoassim, elas constituem exigencies energicas e,0que e mais impart ante,sao exigencias que qualquer politica pode aceitar, constituindo, pais, eenquanto tais, urn fragmento da realidade. Eu falo aqui sobre as suasimplicacoes normativas.As forcas do Ocidente deveriam ter clareza sobre asobrigacoes implfci tas que estao assumindo a partir do momenta emque lancarn mao de tal legitimacao. Por exemplo, elas deveriamimpedir os negociantes da morte de executar as suas acoes nefastase proibir de vez e de modo radical a exportacao de armas por partedas nacoes produtoras, 0 que ja significaria uma transforrnacao desua polftica. Porern, ate hoje faltou vontade polftica. Alem disso, elasdeveriam estar dispostas a fortalecer 0poder executivo da ONU elevar avante a institucionalizacao de uma ordem de paz mundial comexcrcitos neutros, porem dotados da capacidade de agir. Deveriamtambern, 0que significa ir mais longe ainda, levar mais a serio suaresponsabilidade pelo estabelecimento de uma ordem econornicamundial mais justa, par urn equilibrio maior das chances de vida naface de urn globo, que se torna cada vez mais estreito. Finalmente,elas teriam que superar a consciencia imperialista, segundo a qual 0HALLER' No entanto, existe tambem um falso universalismo. Emface a um mundo que sedispersaem esferasde interesses, emface de

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    Ocidente nao pode aprender nada das outras culturas e propor-se aurn entendimento simetrico entre as culturas.o senhor ira objetar imediatamente que sao precisamenteesses dizeres universalistas que enfeitam urn tipo de politica que secristalizou em moldes antigos e enferrujados. Ora, afirmar isso naoseria inteiramente correto; nem inteiramente falso. Pois nospodemos confrontar qualquer uma destas exigenciasnormativas comurn tipo de problemas que se impoe cada vez maisna realidade. Comissoeu quero afirmar 0seguinte: nomomenta em que nos recusamossolucionar esses problemas, postergando-os, surgem consequenciasque 0 Primeiro Mundo ira sentir como sancoes. Aqui nos estamosdiscutindo sobre a Guerra do Golfo, a qual foi sentida por quasetodos como 0 prosseguimento de uma politica fracassada que seserve de meios atavisticos. Se quisermos que tais coisas e outrassemelhantes nao se repitam no futuro, entao nossos esforcos devemencaminhar-se rumo a urn ponto onde a categoria da guerra sedissolve - nao em "execucoes", que foi 0 termo utilizado porHorst-Eberhard Richter para caracterizar a Guerra do Golfo, masque se liquefaz em intervencoes de uma tropa que esta sob 0comando da ONU. No entanto, esse tipo de atividade continuariasendo, e verdade, uma simples cura de sintomas, caso nao fossepossfvel transformar a categoria da politica externa numa politicainterna mundial, coordenada multilateralmente. Neste sentido, jaexistem ao menos micleos institucionais, conforme 0modelo deorganizacoes internacionais ou conferencias permanentes.1.10.HALLER Concentrem os nosso campo de vtsao no papeld es em p en ha do p elo s a le miie s.A lg un s m es es a nte s d o in ic io d a G ue rr ado Golfo as superpotencias tinh am p erm itid o a [usiio d os E sta do sa lem iie s, f az en do r es su rg ir , a ss im , uma superpotencia em pot enc ia l .A nte rio rm en te a s p o te nc ie s v en ce do ra s a ch ara m c or re to 0fa to de osa lem ii es n ii o q u er er em a c ei ta r t ar ef as e nv o lv en do a s d is put as po li ti ca sm u nd ia is . A g or a, p o rem , l am e nt a- se 0fa to d e o s a lem iies n iio teremparticipado politica ou m ilitarmente da Guerra do Golfo .Aparentemente, 0p up ilo tu te /a do d ev e tr an sfo rm ar -s e e m tu to r? S er aquedeve?HABERNAS: Isso e urn jogo de puzzle para 0 estudo da psicologiados povos. Na crftica a tibieza dos alemaes e aos seus negocios com34

    armas - que os outros tambem realizaram e asvezes ate em maioresproporcoes - transpareceram tambem, ao menos entre os vizinhoseuropeus, sentimentos ambivalentes; sentimentos que foram seamontoando durante 0surpreendente processo de unificacao e aposa Alemanha ter sido desocupada e aceita no grupo dos pafsessoberanos, sendo inclusive elogiada pelo governo americano como" par tn e r i n l ea der sh ip " (parceiro na lideranca). Alem disso, nao e amesma coisa enviar ao Golfo soldados que estao fazendo servicemilitar obrigatorio ou poder mandar para la mercenaries recrutadosdas camadas inferiores junto com seus oficiais profissionais. Porem,nao desejo especular sobre isso.Todavia,aquientre nos criou-se umasituacao curiosa, oriunda de nossas reacoes a crftica dos Aliados. Osda direita procuram ensinar aoseu proprio governo e previnemcontra uma nova tentativa da Alemanha em seguir urn caminhoproprio - talvez menos pelo fato de temerem esse caminhoparticular, do que pelo fato de farejarem uma chance de conseguirchegar a ultima reta do caminho que os levaria a reobtencao daquiloque eles descrevem com 0titulo falacioso de "normalidade", a qualeles ate hoje nao conseguiram chegar, haja vista a recente querelados historiadores.Nao pretendo negar que nosso governo cometeu falhas. Eleesteve por demais ocupado com outras coisas (por exemplo, com 0problema da "mentira tributaria", uma arapuca que ele armou parasi mesmo), a ponto de nao ter condicoes para analisar a tem po asituacao internacional. Nem mesmo durante os meses em que 0relogio do ultimato ja batia 0seu tique-taque arneacador ele tinhaclareza sobre qual posiclio assumir diante de urn provavelenvolvimento militar no Golfo. Nao fosse isso, nosso governotambern poderia ter exercido sua influencia para que fossemmantidas as condicoes de uma intervencao sob licenca da ONU. Elenao fez mais do que reagir, de modo confuso, a fatos consumados -atraves de fornecimentos apressados de armas e alguns cheques,frutos de uma rnaconsciencia. 0 escritor israelita David Grossmannchegou a dizer que Israel nao deveria aceitar esse dinheiro, pois"cheira a suborno". No entanto, apesar de todos os erros de nossogoverno, e possfvel dizer que sua politica de nao enviar Tornadosalemaes contra Bagdad nao foi urn erro. E a quem tern presentes namemoria as ideias de potencia hegemonica que inspiraram 0ImperioAleman e que lancaram a Europa em duas guerras mundiais, apolitica seguida revela inclusive uma inibicao que tern os seusfundamentos historicos,

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    Eu posso entender muito bern Yorim Kaniuk, quando eleape lou a nos alernaes, principalmente aqueles que protestaramcontra aGuerra doGolfo, para que fossemossolidarios com0 Estadode Israel que se encontrava em perigo, para que nos colocassemosno lugar dos israelitas que eram constrangidos, noite apos noite, acolocar suasmascaras de gas e a permanecerem fechados em espa

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    casos-limite possui, e verdade, uma vantagem em relacao a arte, quee a de emprestar a experiencia estetica uma qualidade existencial.Ela protege a ultima reserva do extraordinario no chao superficialde urn cotidiano banalizado e se amalgama com a aura do Estadoforte. E deste modo que "quarenta nos de abstinencia politica"explicam 0 "terror de reconciliacao" emanado pela RepublicaFederal da Alemanha, 0qual nao suporta mais nenhuma rigidez.Todos esses elementos afloram, surgidos da "correntesubterranea anticivilizatoria e anti-ocidental da tradicao alema"(Adorno). E se agora se tomam essas ideias para produzirargumentos contra uma nova consciencia de responsabilidadeespecial dos alemaes, isso nao passa de pura charlatanice. 0 nossoautor coloca 0movimento pela paz perante a questao: "sera que osnetos dos nazistas estao novamente do lado dos inimigos dademocracia?". Para os filhos de Ernst Jiinger, de Carl Schmitt e deMartin Heidegger, os quais gostariam de nos tirar 0 desejointumescido de rigor e ponderacao enos seduzir para os exercfciosextraordinarios de uma "existencia ousada", essa questao pareceproibida. Atraves da esteticizacao da politica nao conseguimos obternenhum elemento de normalidade - e seguramente nenhumelemento de normalidade das democracias anglo-saxas.

    2. O S D EF IC IT S N O RM A TIV O SDA UNIFICA~Ao:

    Resumo:2.1. Sobre 0 significado do desmoronamento da RepublicaDemocratica Alema (DDR): fato positivo ou negativo?2.2. 'Ierao sido as pretensoes socialistas da ex-RepublicaDemocratica Alerna urn simples auto-engano, ou algo

    positivo, a ser conservado?2.3. Observacoes sobre a queda do muro.2.4. Sobre a politica apressada de unificacao do governo Kohl.2.5. A politica de unificacao e 0 ceticismo dos intelectuais.2.6. Habermas defende-se da crftica feita aos intelectuais: anecessidade de uma discussao etico-politica.2 . 1 .

    HALLER' Chegamos assim ao iimago da disputa em torno dasituacao historica particular da Alemanha desde 0 tardio outono de1989. Voltemos, pois, nossa atenciio para 0 segundo grandeacontecimento, a uniiio das duas Alemanhas, que nos trouxe umsentimento de grande euforia e, ao mesmo tempo, depreocupaciio.Em menos de 12meses nossa paisagem politica modificou-se deum modo muito mais radical do que nos passados quarenta anos. ARepublica Democratica Alemii (DDR) enquanto figura politica,desapareceu tiio repentinamente do cenario, queficou a impressiio deque tudo niio tinhapassado de simplesmiragem.Sera que com 0ocasoda Republica Democrdtica Alemii desaparece apenas um regimeinjusto, ou sera que os alemiies orientaisperderam, alem disso, algoimportante para elese para nos e que deveria ter sido conservado?40 41

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    HABERMAS: Do ponto de vista normativo, 0 elemento decisivoness a revolucao e a eliminacao de urn regime injusto, a libertacaoque permite dizer adeus a uma supervisao da polfcia secreta que tudopermeia, e que, com perfeicao e acribia, tudo coloca na sombra, algoque Foucault, ao analisar as nossas realidades, ja interpretara co~osendo uma sociedade panoptica. Nos dias de hoje esse dominiosuperorganizado nos moldes do profissionalismo alemao e melhorrepresentado pela imagem do "polvo". Essa imagem tambem e capazde representar 0sentimento dos atingidos, para os quais nao se tratade urn iinico ato de libertacao, mas sim de urn processo dedesenvenenamento, cuja duracao nao pode ser prevista. Pois urndragao a gente mata, urn polvo morre - e nem tudo 0que ele tinhanas garras se solta. Por isso, sempre sobrevive algo que nao valeria apena manter. Ou seja, 0 novo comeco vern sobrecarregado comfalsas continuidades - como aconteceu nos infcios da RepublicaFederal da Alemanha. Como aconteceu tambem conosco: junto comos "velhos grupos de alpinistas ligados por uma corda" - naquelaepoca nos nao tinhamos nem ao menos uma palavra mais concretapara expressar essa realidade - permaneceram restos de umamentalidade questionavel. Entretanto, 0 senhor pergunta pelo quee digno de ser mantido.oque deveria ser mantido nao esta no nivel institucional. Aeconomia era improdutiva, a adrninistracao urn aparelho deopressao, enquanto grassava uma avancada deslegitimacao, aomenos entre a gera'5ao mais jovem. 0 proprio micleo da legi timacaodo sistema politico, ou seja, a seguranca social, man tida num nfvelbaixo, e comprada atraves do desemprego disfarcado, estava podre;esse micleo de legitimacao encontrava-se envolto por uma casca aqual - como diria Marx - paralisou todas as forcas produtivas. Parasaber exatamente 0que deve ser conservado das experiencias,mentalidades e form as de vida que existiram por baixo do nfvelinstitucional durante os quarenta anos de his tori a da AlemanhaOriental, 0 senhor precisa perguntar a outros, tais como, porexemplo, Konrad Weiss, Friedrich Schorlemmer, 0 bispo Forck,Barbel Boley, etc.Eu sou oriundo de urn cantinho protestante da Prussiarenana, bern longe de Berlim. Minha familia nao tinha parentes nooutro lado. Como estudante, eu estive algumas vezes no TeatroSchiffbauer-Damm, no infcio dos anos 50, durante 0empo em queBrecht nao podia ser representado entre nos. Urn pouco mais tarde,foi mais ou menos entre 1954 e 1955, nos tivemos urn contato na

    Berlim oriental com urn escritorio da "Juventude Livre Alema"(FDJ), a fim de conseguir 0 emprestimo de filmes para 0 nossocineclube estudanti l em Bonn. Na mesma ocasiao eu estive tambemna Universidade de Humboldt, a fim de observar la 0 serninariofilosofico - 0 velho seminario de meu mestre Nicolai Hartmann.Esses foram os poucos contatos com a realidade "oficial" do mundode la, que parecia tao estranho, autoritario e assustador como oscon troles na estacao da Friedrichstrasse. Foi preciso esperar tresdecadas e meia, ate que eu tivesse novamente urn contato com essemundo. Eu recebi 0primeiro convite em 1988, atraves de urn colegade Halle. Eu proferi nesta cidade uma conferencia, no verao de 1988,sendo, no entanto, observado rigorosamente pelo filosofochegado da Republica Dernocratica Alema - uma "observacao"completamente absurda, se levarmos em conta a epoca em queminha fala aconteceu. Tambem nao tive contato com grupos deoposicao. Estou relatando essa historia, que no fundo revel a maisuma falta de contatos, a fim de lembrar que a nossa historia tern maiselementos em comum com a historia do pos-guerra da Italia, daFranca ou dos Estados Unidos, do que com a Republica DemocraticaAlema. A historia da Alemanha Oriental nao foi a nossa historia, Issovale principalmente para meus filhos e para a gera'iao deles. E sobeste angulo que devemos en tender a diretora da reparticao decultura de Frankfurt, injustamente atacada por ter dito que em suavida a cidade de Milao desempenhava urn papel muito maisimportante do que Leipzig. Temos que poder constatar isso semsentimentalidade.De outro lado, e preciso acrescentar que ate os quinze anoseu vivi no Imperio Alemao, e inclusive no "Grande Imperio". Porisso, os acontecimentos que se desenrolaram a partir do dia 9 denovembro de 1989, tambem despertaram em mim recordacoespessoais como, por exemplo, a lembranca das ferias pass adas emWarnemunde, Zinnowitz ou Rugen. E essas recordacoes devem serainda mais fortes e mais ricas em outras pessoas que mantiveramrelacoes com os que estavam atras do muro, desde 0 final da IIGuerra. Todos sentiram a abertura do muro e a unificacao dos do i sEstados como sendo 0 final de uma separacao artificial. Nos maisvelhos, tais sentimentos alimentavam-se das recordacoes naopolfticas da normalidade do dia-a-dia durante 0 tempo do nazismo.Quem levou urn choque ao constatar que 0 estado de divisao e,principalmente, 0modo dessa divisao, tinha urn carater artif icial, doqual quase ninguem mais se lembrava, foram somente aqueles cujos

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    que nossos compatriotas nao tern 0 sentimento de ter feito umarevolucao ou de a ter assistido. Fomos nos, do Ocidente, que nosprimeiros meses lhes of ere cernos a categoria da revolucao comointerpretacao - talvez para encobrir uma necessidade de recupe-racao, ja anotada por Marx. Vozes mais elegantes recordam-se orgu-lhosamente de Hegel, 0 qual opinara que a Reforma tornarasuperfluas as revolucoes polfticas nos pafses protestantes. Comoquer que seja, os historiadores irao nos ensinar se ao que assist imosfoi uma "revolucao recuperadora" ou simplesmente uma trans-formacao, uma passagem, uma troca de sistemas em decorrencia dadecomposicao de uma potencia mundial que foi ruindo aos poucos.Quante mais se tornam conhecidos os detalhes sobre a constituicaointerna da Republica Dernocratica Alemii (DDR) antes denovembro e sobre os acontecimentos que culminaram na aberturado muro - urn fato aparentemente nao planejado - tanto mais seimpoe a conclusao de que os acontecimentos tern urn carater casuale os movimentos uma caracterfstica passiva. Hoje nao ficariamostotalmente cons tern ados com a declaracao de Markus Wolf, segundoa qual Honecker teria sido vitima da conspiracao dos orgaos deseguranca do Estado. 0l oc us o f c on tr ol parece estar menos com osatores, com as massas e com os seus corajosos e honestosinspiradores civis, do que inicialmente era sugerido pelas imagensexcitantes de uma televisao onipresente.No decorrer do ana pass ado ficou cada vez mais forte aimpressao de que no geral tudo foi mais fruto de acontecimentos doque de iniciativas. Para que ascoisas se desenrolassem do modo comose desenrolaram, houve 0 concurso de varies elementos: uma certaperplexidade dos iniciadores, que logo foram postos de lado; umafalta de autoconsciencia e de autoconsideracao, uma especie deauto-rernincia por parte de muitas pessoas na RepublicaDemocratica Alema; uma maior capacidade de diferenciar entrerenitencia, resistencia e oposicao num povo que tinha conseguido searranjar de qualquer maneira, muitas vezes rangendo os dentes, comas praticas de uma policia secreta nao muito secreta; finalmente,aquela insanavel confusao entre bandidos e vitimas numa mesmapessoa, para a qual de Maiziere se tornou urn sfrnbolo. Pouco importaque lhes facamos justica ou nao, os simbolos influem na historia: 0primeiro chanceler escolhido livremente, que pronunciou urndiscurso inesquecfvel perante 0Congresso, e obrigado a renunciarao seu cargo na Republica Federal da Alemanha por ser suspeitocomo "Czerny". Esses aspectos deprimentes de uma passagem, de

    nossa terra. E este forneceu os motivos para os cartazes dapropaganda de Adenauer.No meu entender, as orientacoes normativas da AlemanhaOriental, dignas de preservacao, nao devem ser buscadas tanto noschavoes da "Juventude Livre Alema" (FDJ) e dos congressos doPartido e sim, nos antigos filmes da "Sociedade Alema de Cinema"(DEFA), em alguns program as de editoras dos anos 50, dos quaispart iciparam uma, duas geracoes de escri tores oposicionistas, quevao ate Heiner Muller e Christoph Hein. Ao mesmo tempo, e precisover, de urn lado, que os censores de uma politica cultural ignominiosamutilaram, desde 0 infcio, essa cultura principal e a contracultura econsiderar, de outro lado, que urn realismo impostoadministrativamente dificultou e ate tornou impossfvel 0engate noespirito subversivo da modernidade radical. No entanto, uma coisaestava tao entrelacada com a outra, que hoje se impoe urn grandeesforco de diferenciacao para salvar do rancor as tradicoes de ambasas Alemanhas, que brotaram do espfri to do antifascismo e que foramrenovadas e desenvolvidas. Hoje em dia movimentam-se os espfritosque tomam 0 desmoronamento da Republica Dernocratica Alernacomo urn pretexto comodo para nivelar tudo 0 que nao se encaixano modelo elitista de urn pessimismo cultural especificamentealemao, profundamente enraizado no pensamento historicist a eromanticista. Eu temo que algumas coisas do velho mofo retornem.Os "eruditos" deixarao novamente os "intelectuais" para tras. Jafalamos no desprezo dos jovens conservadores pelo j us te m i li eu .

    HALLER T en do p re se nte s a s recordacoes trazidas pelas sem an as d en ovem bro d e 1989, quando 0m uro caiu e as pessoas do Leste e doO este a jlufra m n um en co ntro em qu e se m istu ra ram , eu p ed iria q ue 0s en ho r n os c on ta ss e, p or fa vo r, c om o te m v iv id o a qu ilo q ue a p a rtir d ee nu io fico u co nhec id o co mo "gu in ad a", qua is fo ra m as observacoesqu e 0 senhor fez e de que m odo 0 s en ho r a com pa nh ou e ss e p r oc es sode t ran s formacao?HABERMAS: 0 senhor tambem usa a expressao "guinada", que jatinha sido cunhada por Genscher para conseguir derrubar 0governode Schmidt e colocar Kohl no poder. E sintomatico que 0 povo naAlemanha em geral uti lize 0 termo "guinada", a fim de caracterizara queda do regime do Partido Socialista Unificado (SED). Parece46 47

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    uma transicao, de uma rendicao, fizeram comque 0ato de libertacao,saudado entusiasticamente por todos, perdesse muito de sua aurainicial. A . . , imagens da libertacao e da capitulacao misturam-se entresi, restando no final a tristeza em saber que nenhuma das bobagense insolencias invocadas como dados "historicos" ira impregnar amemoria das geracoes futuras. Mesmo assim, foi urn momenta depura ernocao, urn instante de alegria e de solidariedade, uma visaosublime para todos os que naqueles dias puderam acompanhar pelatelevisao 0 jiibilo vivo, 0 entusiasmo inteiramente civil doscompatriotas que acorriam em massa para 0Ocidente, a reconquistade sua liberdade ffsica. Eu temo que em torno desse infcio enfaticonao cheguem a se cristalizar recordacoes historicas permanentes.Isso devido ao fato de que os acontecimentos nao foram realizadoscom aquela consciencia que apareceu pela primeira vez em cenadurante a Revolucao Francesa, apesar de terem desencadeadoobjetivamente uma "guinada".o mais importante talvez seja 0 modo pelo qual se deu 0proprio processo de unificacao; os acontecimentos historicos saointerpretados retroativamente. 0 modo e avelocidade da unificacaoforam determinados pelo governo da Republica Federal daAlemanha. A caracterfstica fisiognornica mais marcante eprecisamente 0carater instrumental de urnprocesso administrativointeligentemente modulado do ponto de vista de uma politicaexterna e talhado conforme imperativos economicos, 0 qual, noentanto, nao conseguiu adquirir uma dinamica democrdtica propria.Os editoriais elogiaram 0 governo por ter sabido usar a "hora dosexecutivos", Na verdade, porem, Kohl e seu gabinete souberarnimpor-se atraves de truques e virtudes que normalrnente so podernser vistas em discussoes a nfvel de politica interna, de pequenocalibre. Utilizando 0 instrumento dos tratados politicos, ao lado deuma politica de urgencia de prazos por eles mesmos estabelecidos,bern como uma energica exploracao da rede de organizacao dosblocos de partidos, eles manobraram a oposicao, profundarnentedividida, e a opiniao publica. Eles prepararam 0 caminho para urnprocesso que se desenvolveu preponderantemente em categorias daorganizacao econornica, a tal ponto que as alternativas polfticas nemchegaram a ser colocadas como tema. A isso tudo vieram juntar-secertas circunstancias que, do rneu ponto de vista, nao sao somenteatlitivas, porque configuram uma constelacao feliz da politicaexterna. A unica decisao que se revestiu de substancia politica foi aque se referiu a modalidade e ao estabelecimento das datas da uniao

    monetaria. Esta decisao foi tomada relativarnente cedo a partir deurn clima favoravel a Uniao Dernocrata Crista (CDU) durante acarnpanha pelas eleicoes para 0pariamento, contra a relutancia daselites econornicas e inclusivecontra 0conselho do Banco Central daAlemanha. Lambsdorff, Kohl e seus colaboradores interpretaram 0processo de unificacao como sendo a tarefa da reorganizacaojurfdico-administrativa de urn rnecanismo economico que possui urncurso proprio. Naturalmente nao faltou urn liberalismo economicoingenue por detras do grotesco erro de avaliacao segundo a qual 0jogo das forcas domercado, liberadas, iriamconseguir realizar aquiloque somente poderia ter sido obtido atraves de uma reorganizacaopolitica cuidadosa. Tambem nao deveriamos subestimar 0 tipo deconsciencia ingenua, que pode ser designada como "conscienciadreggeriana", ou seja, a de que num momenta sublime da historianacional e possfvel fazer uma "grande" polftica. Na cabeca dosautores que se tornam notorios mais pela sua falta de notoriedademovimentou-se urn born pedaco do seculo XIX.Taisfatos correspondem a uma logica da situacao, muito bernanalisada por Claus Offe. Apesar de todos os esforcos ideologicosem prol de uma autonomia nacional, a Republica DemocraticaAlema conseguira formar apenas uma identidade economica, Elarepresentava algo como aforma pura de uma sociedade economica,socialista e burocratica. E por isso que aqui, ao contrario do queaconteceu naHungria, por exemplo, amudanca dosistema nao podecompletar-se no quadro da continuidade de urn Estado nacional,construfdo sobre experiencias historicas proprias, Ou seja, naspalavras de Offe:"N a reviravolta ocorrida na Repu blica Dem ocratica A lem ap od e-s e v er uma revotucao do modo de producao q ue s e t orn oupossfve l g r acas a en tr ad a n o s is tema cons ti tu c ion al da RepublicaF ed era l da A lem anh a. N o e nta nto , a m uda nc a da c onstitu ica on ao fo i a fo rc a p ro pu lso ra n em 0moti vo c on du to r d a q ue da ".

    Esta tese apoia-se principalmente na constatacao de que naAlemanha Oriental nao houve, a nfvel publico, elites ou grupos deoposicao que tivessem contribufdo com suas proprias perspectivasde reforma para a substituicao do velho regime, ao contrario do queocorreu na Polonia e na 'Ichecoslovaquia:')\ re vo lu ca o n a R ep ub li ca D em oc ra ti ca A le ma f oi d e re su lt ad o(exit-Revolution), n ao p e lovo to (voice-Revolution). N ao fo i a l uta

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    coletivavitoriosa em prol de uma nova ordem polftica que imposo t im do Estado da Republica Democratica. 0 que houve foi armgracao individual e repentina de milhares de pessoas, queacabou destruindo a sua base economica".Essa formulacao abrupt a certamente nao fazjus as intencoesdos movimentos de cidadaos e as demonstracoes corajosas daprimeira hora. A propria Mesa Redonda, a iinica corporacaoinstitucional da oposicao polftica na Alemanha Oriental,

    transformou-se numa pedra incomoda, nao somente no caminho dapolftica de desestabilizacao e de anexacao da Republica Federal daAlemanha: ela nao conseguiu obter autoridade nem na propriaRepublica Democratica Alema, E a Camara do Povo, recentementeescolhida, avaliando corretamente os motivos que realmentemoveram 0povo, nem chegou a discutir 0projeto de constituicao,no qual estavam delineadas as perspectivas normativas e urn novocomeco, De outro lado, 0 proprio povo da Republica Federal daAlemanha considerou 0 processo de unificacao de maneirasurpreendentemente sobria e predominantemente sob pontos devista economicos; Lafontaine, ao falar dos "custos da unidade" naotirou esse tema simplesmente do ar. E 0 governo federal reagiu a"atitude de reserva ciente dos custos", difundida entre os cidadaosda Republica Federal da Alemanha, com a promessa arriscada definanciar os novos encargos atraves de credito e nao atraves de novosimpostos. Esse expediente pusilanime, tecido na tatica do partido,foi censurado ja na epoca; ele prova, no entanto, que 0 governocontava com uma populacao que captou 0 processo de unificacaosob as mesmas categorias, ou seja, como urn ato de administracaointeligente, capaz de criar os pressupostos jurfdicos para aimplementacao de mecanismos de mercado, bern como os"atenuantes" sociais correspondentes. A uniao nao foi vista comourn ato desejado normativamente por cidadaos de dois pafses, osquais, politicamente autoconscientes, juntam-se para formar umana~ao comum de cidadaos. Isso pode, inclusive, ser inferido dosargumentos, com cujo auxflio os "Wessis" (alemaes ocidentais)ofereceram aos "Ossis" {alemaes orientais) as modalidades berncomo a possibilidade de urn ingresso de acordo com 0Artigo n? 23da Carta Fundamental, ingresso aceito par demais rapidamente;pode ser deduzido tambern do medo quase histerico face a umadiscussao da Constituicao, a qual, no entanto, teria sido ate

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    necessaria de acordo com 0Artigo 146. Com algumas honrosasexcecoes, entre elas as dos juizes da 0>nstitui~ao, Gr~mme Simon,os juristas politicos da Alemanha, circundados pela lmprensa. queapoia 0 Estado, comprovaram-se novamente como obsequiososadvogados da legitimacao dos que governam no momento.2 . 4 .

    HALLER' A pesa r de to da a c ruica a politica ~ pre ssa da .d o g ov em o d eKohl, e n ec essa ria p erg un ta r se e m 1 99 0 h av ia a lte ma tiv as p ar a ,,!m ata l p olitic a d e u niiio . O u se ra q ue , n o f,,!:a l ~ a~ c on ta s, o s J o m~ IL Sta sliberais tem ra zd o a o e screv er que a ra zao pra tic a, fixa da na qu ilo q uee r ea li za ve l; m esmo q ue f os se e xt rem am e nt e rigida, im po s-se co ntra aesperance u top ica?HABERMAS: Ate hoje cultiva-se a lenda de que nao havia outrasalternativas para 0 caminho seguido pela unificacao, ~em ~ara_avelocidade comque isso aconteceu. Ora, questoes desse ~IPO nao saoresolvidas atraves de eleicoes para 0parlamento. Considero falsos,ou pelo menos discutfveis,os tres argumentos mais importantes nosquais a lenda se apoia, .Em primeiro lugar,0argumento do mimero das pessoas queiriam mudar-se para a Alemanha Ocidental: certamente essaspessoas constituiam uma parte ~a realid~de; l1_1asambem ,foramusadas. Se tivesse havido uma avaliacao maisreahsta do seu nu~ero,este teria perdido sua dramaticidade assust~dora. Pois, nos dl~S.dehoje emigram presumivelmente para 0 OClden~eta~tos opera,n?squalificados quantos j? faziam i~soant~s d~ unificacao m~netana.Hoje esse mimero atmge o~ v~nte mil 1_l1lgrantespor m:s. ~mrespeito ao argumento econonuco, 0 ' : 1 seja, o_de qu~ a falencla. dosistema economico da Alemanha Onental nao podia ser contida,basta fazer uma referencia ao s ta tu s q uo . 0 que nos temos ~g_ora euma destruicao de capacidades de producao e uma destruicao delugares de emprego. O~a,isso poderia.ter sid~ evitado, ~ome~o~ naproporcao em que esta se dando, se tivesse sido escolhida a. trilhavagarosa" de uma mudanca controlada pelo Estado e su~velicI.?na?acom prazos. 0 problema principal de urn process? de umfica~~~naoforcada teria sido a manutencao de uma fronteira alfandegana. 0dilema perante 0qual se encontra 0gov~!no.?oje, devido it falta deinvestimentos nos novos Estados da Umao, Ja estava clara.desde 0infcio. Ao i~arde urn so golpe os compatriotas para 0proprio barco,

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    atraves domedium do direito constitucional, foipreciso que a normada adaptacao das condicoes de vida, prevista pela Constituicao,abrisse uma tenaz entre os custos dos salaries e 0 nfvel deprodutividade, a qual tern consequencias negativas numa economiada mercado. Finalmente, 0 argumento mais convincente que seencontrou para operar a nivel de politica externa foi da"oportunidade da hora". Ora, ate esse argumento perdeuentrementes muito de seu peso. 0 Pacto de Varsovia ter-se-iadissolvido de qualquer maneira. E 0 Soviete Supremo aderiu ao"Tratado-2+4", mesmo que Gorbatschow esteja enterrado ateo pescoco.De outro lado, tais vis6es retrospectivas e contrafaticas nahistoria e na politica sempre sao melindrosas. Essa discussao nao ternmais muito sentido hoje em dia. It's n o g oo d c ry in g o ve r s pilt m ilk .Porem, eu considero nao ser correto contrapor, neste contexto, a"razao pratica" a "utopia", pois a razao nao se usa apenas em sentidopragmatico, mas tambern em sentido normativo.

    autocompreensao, a autoconsciencia politica de uma na~ao decidadaos forma-se sempre no medium da comunicacao publica. Eesta dependencia de uma infra-estrutura cultural, que hoje e deixadaas tracas nos novos Estados da Alemanha.o "desenvolvimento" administrativo de academias, escolassuperiores, museus, a adaptacao do teatro, cinema e literatura aosmodelos de mercado e subvencao, imperantes no Ocidente, sao, nofinal das contas, ainda piores que a destruicao das capacidades deproducao em outros setores. Pois as capacidades intelectuais nao sedeixam mais regenerar quando se interrompe a producao durantedois, tres ou cinco anos. Biografias quebradas sao uma catastrofe,q ua lq ue r q ue s eja 0 caso. Ao passo que as capacidades industriaispodem ser substitufdas sob outras condicoes. Nao e possfvelreconstruir da mesma maneira meios culturais destrufdos. Uma vezarruinados, sua rufna e definitiva.2 . 6 .

    2 . S . HALLER' 0 p ub lic o d o jomal "Fr an kfu rte r A llg em e in e" p od e l er q ueo s co legas do s enhor n ii o acei tam sua c r ui ca aop r oce ss o de un if ic a fi iodas duasA lemanhas: 0s enho r e st ar ia i nven tando a t raves de ss a c ru icau m n ova len da d a p unh ala da (FA Z, 19/12/1990).HABERMAS: Isso e uma falsificacao malevola e grotesca. Apos a IGuerra Mundial, a lenda da "trai~ao as fronteiras da patria"contribuiu para a desestabilizacao da Republica de Weimar.Acriticaque eu e muitos outros fizemos dirige-se precisamente contra 0menosprezo e 0encolhimento do estofo politico e cultural no qualo Estado de direito, democratico, precisa estar fincado, a fim demanter sua estabilidade. Entretanto, permita que eu reflita urnpouco sobre asduvidas que acompanham implicitamente algumas desuas perguntas. Retrospectivamente eu reconheco, por exemplo,que como jovem estudante enos anos apos 0 estudo, nao avalieicorretamente 0alcance historico da grande realizacao de Adenauer,que foi a amarracao energi~a da Rep~blica ~ederal da Alemanha n~Alianca Ocidental e no sistema SOCialocidental, Quando me foipermitido votar pela primeira vez, nas 'eleies de 1953 para 0congresso, eu dei 0 segundo voto ao Partido Popular AlemaoUnificado (GUP), de Heinemann, eo primeiro voto, rangendo osdentes, ao Partido SocialDemocrata (SPD), de Schumacher, que erademasiado nacionalista para 0meu gosto. Todos osmeus cabelos se

    HALLER' E tud o in dica qu e 0mais import an te para 0 senhor e esseu so n ormat iv o. S ob e sta p er sp ec ti va : q ua l d as o bj ec oe s q ue 0senhore o utr os in te le ctu ais m an ife sta ram c on tr a a politica de unificacaopo de ser tida a in da ho je , no an a d e 1991, c omo a tu al e r ele va nte ?HABERMAS: Os intelectuais lamentaram 0deficit normativo doprocesso de unificacao, Eu considero isso importante, porque dizrespeito a forma pouco delicada com que semanuseia a nossa culturapolftica, implicando, portanto, prejufzos a longo prazo, que naoforam levados na devida conta pela tatica de campanha dos partidospoliticos, nem pelo sistema economico criado pela administracao dosfuncionarios, 0que constitui urn grande perigo. Os instrumentos daCarta Fundamental so podem funcionar bern na medida em que aconsciencia de cidadania de uma populacao acostumada ainstituicoes da liberdade 0permite. A cultura politica compoe-se deurnentrelacamento vulneravel de mentalidades e de conviccoes, quenao podem ser produzidas nem ao menos comandadas atraves demedidas administrativas. 0 que nos lamentamos e a manipulacaobrutal das reservas morais e intelectuais, imponderaveis,necessitadas de cuidados, as quais so podem regenerar-seespontaneamente, nao pelo caminho do comando. A52 53

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    ericavam na epoca contra Adenauer, contra a polftica denormalizacao de urn homem velho, cujo vocabulario era limitado.Alem de nao ter nenhum contato com as experiencias e expectativasdas geracoes mais jovens, ele era inteiramente insensivel com relacaoaos prejuizos mentais de uma restauracao das mentalidades - e naosomente das mentalidades - que amadureceu sob as suas asas. Talvez~le te_n~aaceito coI?o urn mal ne~ssario os custos morais' e politicosimplfcitos numa integracao fnamente calculada dos velhos"camaradas do partido" (Pg) ou oriundos de sua propria docilidadeapressada na questao da remilitarizacao. Mesmo assim, quer meparecer que nossa oposicao radical ao espfrito da era de Adenauerse justifi~a ai~da ~~e. ~em a oposicao dos liberais de esquerda e a svezes ate da inteligencia de esquerda, que estava se formandonestaepoca e somente conseguiu uma certa forca de atracao no inicio dosanos 60, na fase da incubacao do movimento dos estudantes - seme~sa di~ao de ~rabalho en~re .osgovemantes e seus "fraldiq~eiros",nao tenamos tido na Republica Federal da Alemanha urn sentidociviliz~do q~a.nto ao papel do cidadao e nem sequer umamentahdade CIVIlem geral. Na minha opiniao essa nova mentalidadeno interior do aparelho de Estado foi incorp~rada pela primeira vezna figura do Presidente da Republica, Heinemann. Sem aquele"dup!o do~io" d,e uma ~olitica restaurativa e de uma inteligenciaO'poslto~a, ?~O tenamos tIdo. mais do que

    Aa ~imples "confianca nosistema , tipica de uma sociedade economica bem-sucedida. Do

    mO.foneo~nserva~or, ~nido ao barroco de Gelsenkirchen, jamaistena surgido uma identificacao mais profunda com uma ordem emcujos principios universalistas temos, apesar de tudo urn potencialde autocrftica e de autotransformacao. '. . Supo~h~~os que .hoje eu me engane novamente sobre 0significado historico daquilo que me parece ser a polftica kohlianade ~nexa,-,~o. Suponha.mos mais que, como as suas perguntassupoem, nao tenha havido nenhuma altemativa para tal politica.Sup~>nhamosfo~ ~ s ak e o f th e a rg um e nt, que Kohl tinha conscienciadas.lmponderab.dld~des culturais e politicas e do pre,-,o moral que eletena que pagar mevttavelmente - mesmo assim seria urn descuido seos ~ntele~~uais _?ao aP?!ltassem para esses prejufzos imponderaveis.POlSa critica nao se dirige contra a uniao dos Estados em si mesmamas contra 0modo como se chegou a esse caminho. Permita que eurecorde tres coisas.

    Em pri~~iro lugar, a ~i~ensao nova da conscientizacao deurn passado politico sob 0dominic do Service de Protecao do Estado

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    (Stasi), com 0qual esta ligada irremediavelmente uma inteira popu-la,-,ao. Muitos argumentos em prol de urn ritmo mais vagaroso naovisavam apenas conceder mais tempo para que os cidadaos da Repu-blica Democratica Alema pudessem refletir melhor sobre a confron-ta,-,ao com 0seu proprio passado. Eram argumentos formulados porpessoas interessadas principalmente na instauracao de condicoescapazes de propiciar urn maneira de lidar autonomamente com essetipo de problemas escabrosos. Tais problemas tomam-se insohiveisquando nao abordados na propria casa, por iniciativa e forca propria.Os debates publicos de auto-entendimento -que contem sempre urnelevado potencial de melindre recfproco - somente conseguemobter legitimidade na base -de uma historia compartilhada em 00-mum, sob 0 pressuposto de que urn dos participantes, que fez asmesmas experiencias ambivalentes e possui os mesmos conhecimen-tos fntimos, ainda nao bern articulados, compreenda 0 que 0 outroesta falando. Richard Schroder, teologo e presidente do grupopolitico do Partido Social Democrata (SPD) no Congresso, nospergunta se 0trabalho de desagregacao do Service de Protecao doEstado (Stasi) deveria continuar indefinidamente - inclusive com aajuda dos meios do Ocidente:"0 tem a precisa s er d is cu ti do pu bl ic ament e. T hda vi a, p ar q uem? . ..P re ci sa me nt e q ua nd o s e t ra ta d o t em a Sum, 00o ci de nt ai s t er n umacarencia insanavet nenhum de le s v iveu pessoalmente isso t ud o . .. Eprecso que I h es n ar remos c omo a s c o is as a co n te ce ram . E le s devem,ao m eno s nesse p onto , ou vir, m esm o que isso s ej a d if ic il . E n 6sorientas precsamos no; esf~, apos esse ana turbulento, emrecordar corretamente 0mo do c omo n6 s v iv emo s e p en samos a nt esd es se a na , a nt es q ue a s r e ve la 't ie 8 e nt re n 6s i rr ompe ss em . .. " ( FAZd e 2 d e j an ei ro de 1991).

    A queixa de Schroder faz-nos lernbrar a desnazificacao nasantigas zonas ocidentais e as razoes por que ela, entre outras coisas,nao deu certo. Os atingidos pelas forcas de ocupacao, que se sentiamincompreendidos, nao sabiam abordar aquilo que essas forcas lhesimpunham, a nao ser de modo estrategico. Os novos Estados daAlemanha nao tern que se haver com uma forca de ocupacao, mascom 0dedo em riste dos proprios compatriotas, os quais, no entanto,so foram poupados do mesmo destino por mero acaso e sorte. Comopoderia ser possfvel surgir uma autoconsciencia polftica numa na~aohumilhada duas vezes, apos 1933 e desde 1949, quando os agenteslhe tiram inclusive aquilo que somente ela pode realizar? 0

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  • 8/2/2019 Habermas - Passado Como Futuro

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    Congresso, num derradeiro ato de autodefesa contra essa terceirahumilhacao, conseguiu sus tar, ao menos, por enquanto eliteralmente na ultima hora, que os arquivos do Service de Protecaode Estado (Stasi) fossem parar em maos ocidentais. Entrementes, 0jurista alemao oriental Joachim Gauck, encarregado especial dogoverno federal para os arquivos-Stasi, teve que lutar contra 0desejoda Uniao Democrata Crista (CDU) de ocupar a sua comissao comperitos em direito constitucional da Alemanha Ocidental. 0 barulhoem torno da "lei dos arquivos" nao pro mete coisas boas. 0 mesmoproblema reassoma, no contexto do desenvolvimento juridico decertas instituicoes. E impossfvel descrever os constrangimentos e aobscenidade moral que resultam, por exemplo, da tarefa que nomomenta ocupa inumeraveis comissoes ocidentais, que devemexaminar os seus colegas orientais nas universidades, academias,tribunais, administracoes e negocios, submetendo-os a urn controleda produtividade, no qual intervem sem diivida elementos deavaliacao da mentalidade polftica.o envenenamento da atmosfera, que resulta do transladodos "velhos encargos" mora is para as maos da administracaoocidental, nao atinge somente urn dos lados. Para nos, que desta feitasomos os condutores que aparecem no papel de jufzes encarregadosdo trabalho de desproblematizacao, existe urn risco muito grande deprosseguir num outro nfvel 0jogo bravamente exercitado de colocarurn ponto final nas coisas. Hoje nos nao com pens amos mais os crimesde Stalin com os de Hitler. Basta que, na quaJidade de especialistasem questoes referentes ao domfnio do passado, nos pronunciemossobre a catastrofe d o s o ut ro s. Foi esse 0 temor de Gunter Grass,quando colocou Auschwitz em jogo. Nao se pode superar esse temoropondo 0argumento, que de si e correto, porem, inconveniente, deque a divisao das d