h - Suplemento do Hoje Macau #21

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h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2472. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE CHINA A ARTE SEM MÁSCARA JOSÉ DRUMMOND ARTES, LETRAS E IDEIAS

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 14 de Outubro de 2011

Transcript of h - Suplemento do Hoje Macau #21

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2472. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

CHINAA ARTESEMMÁSCARA

JOSÉ DRUMMOND

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Carlos PiCassinos

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“A nova geração não sente necessidade de ir contra o sistema”

QUE ARTE NOVA SERÁ ESSA QUE DÁ TÍTULO AO VOLUME “ARTE NOVA. CHINA” QUE A EDITORA LIVROS DO MEIO SE PREPARA PARA DAR AO PRELO, NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA? E EM QUE SENTIDO, NOVA? NA LINGUAGEM ACTUAL DOS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS CHINESES POUCO RESTA DO REALISMO SOCIALISTA E, POR ISSO, NOVA É A GRAMÁTICA QUE DESDE A GRANDE ABERTURA, DE DENG XIAOPING, EM 1978, E DEPOIS DOS ESTILHAÇOS DA REPRESSÃO DE JUNHO DE 1989, INFORMOU A PRODUÇÃO ARTÍSTICA CONTEMPORÂNEA NO CONTINENTE. JOSÉ DRUMMOND, ARTISTA E CURADOR, RECUPERA A SELECÇÃO DE OBRAS E ARTISTAS CUJOS TEXTOS PUBLICOU NESTE JORNAL, ENTRE 2007 E 2008, REUNINDO AGORA ESSES TEXTOS NUM PRIMEIRO VOLUME. “DA REBELDIA À GLOBALIZAÇÃO”, SUBTÍTULO DO LIVRO, É UMA EMPRESA DE DIVULGAÇÃO, RECONHECE O AUTOR, MAS É TAMBÉM UMA NARRATIVA CRÍTICA SOBRE A (PÓS) MODERNIDADE DE CARACTERÍSTICAS CHINESAS.

Este livro é uma breve enciclopédia de arte contemporânea chinesa, foi essa a ideia?A ideia foi transformar os textos que tinham saído no jornal. O pressuposto de que par-timos foi o de fazer um livro de divulgação mais do que de reflexão aprofundada sobre a obra de cada um dos artistas que aqui estão e que são 17. Há ideia de se fazer um segun-do volume no próximo ano e que englobará outros artistas. Há aqui algumas ausências. Depois do Carlos Morais José me desafiar para este livro também houve a necessida-de de reescrever e actualizar os textos que saíram no Hoje Macau, há uns três anos, e de garantir os direitos das imagens. Esses dois factores juntos levaram-me a procurar a oportunidade de entrar em contacto pes-soal com os artistas. De um grupo inicial de trinta pessoas acabámos por ficar com 17. Inicialmente, o livro tinha sido desenhado para 18. Há aqui um artista em falta que era, aliás, aquele que abria o livro. O artista é o Ai Weiwei. Estavámos preparados para lançar o livro antes mas resolvemos adiar a publicação até perceber o que iria acontecer ao certo. O facto é que a situação em que se encontra, mesmo após ter sido libertado sob caução, é de uma grande insegurança em relação ao futuro. Nos vários contac-tos que estabeleci com o Ai Weiwei existiu sempre uma preocupação constante de que

o artista saísse protegido e que a opção final não criasse qualquer outro mal entendido. Assim, o artista acabou por tomar a opção mais sensata no momento que foi a de não inclusão no livro. Penso que será isso que irá acontecer em todas as publicações próximas relativas ao Ai Weiwei. Mas isso aconteceu também por ser uma questão, politicamente, sensível?Sim, mas não por alguma coisa que estives-se no texto porque os textos foram todos corrigidos pelos artistas, e o do Ai Weiwei especialmente. Houve essa possibilidade que também foi muito enriquecedora de confirmar com os artistas dados e factos e, com o Ai Weiwei, isso até foi feito de for-ma muito meticulosa para que não houvesse nenhum problema. De facto, a situação do Ai é muito complicada dentro da China e,

na realidade, ele está proibido de falar com os media internacionais. Por ele não saber o que o futuro lhe reserva no país, acabamos por decidir que era melhor para o artista não entrar no livro.De qualquer modo, ia justamente começar por quem não está neste livro. Os “Stars”, o colectivo dos anos setenta de que fazia parte Ai Weiwei. Que relevância é que esse colectivo teve na historiografia con-temporânea?Tem relevância na medida em que é um dos grandes momentos de revolução na arte con-temporânea chinesa. É um grupo muito ex-perimental que surge em oposição às ideias tradicionalistas e é um grupo do qual sai uma série de nomes que vêm a ter uma importân-cia fundamental naquele que é considerado o boom da arte chinesa já no início dos anos

JOSÉ DRUMMOND

Dezoito menos Ai“Inicialmente, o livro tinha sido desenhado para 18. Há aqui um artista em falta que era, aliás, aquele que abria o livro. O artista é o Ai Weiwei. Estavámos preparados para lançar o livro antes mas resolvemos adiar a publicação até perceber o que iria acontecer ao certo”

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Como é que o mercado global se começa a interessar pela arte contemporânea chinesa?Há analistas que consideram que o mercado da arte chinesa é um bolha. Há outros, especialmente os chi-neses, que acham que não, acham que a economia chi-nesa está muito bem defendida e que a arte nacional vai continuar a bater recordes. Facto curioso é que se olharmos agora para a arte chinesa e olharmos vinte anos para trás, vemos que naquela altura estes artis-tas não tinham sequer que comer. E aqui voltamos ao Ai Weiwei. É ele um dos responsáveis pela criação de uma das primeiras galerias, em Pequim, é ele um dos que consegue atrair uma série de ocidentais que viviam em Pequim, e é ele o autor de alguns ensaios que foram muito importantes para essa geração. Esse momento de 93 a 99 é muito importante. É através desta mensagem, destas performances, destas obras criadas de forma clandestina, que começaram a ser ad-quiridas por coleccionadores ocidentais que o mundo começou a saber, quase em segredo, que existia arte contemporânea chinesa. Este movimento um pouco underground acabou por levar mais investidores e mais galerias a estabelecerem-se em Pequim na tentativa de levar essas obras para o exterior. Na Bienal de Veneza, quando a China volta a participar, fá-lo primeiro em pavilhões alternativos, sem apoio do estado e comissa-riada por independentes. Hoje em dia já é patrocinado pelo Executivo e tem uma presença completamente diferente. Nos anos noventa era demasiado evidente que estes artistas tinham uma grande força e que esta energia não podia ser apagada e ficar por ali. Quando eles conseguem sair do país e se fixam em Nova Iorque, ou Londres, ou Berlim obtêm uma grande confiança que lhes permite nesta segunda década, no início dos anos 2000, terem galerias que asseguram a sua repre-sentação.O facto de artistas aceitarem estar representados no pavilhão da China não faz das suas obras, e de si próprios, veículos de propaganda do regime?

Eu tenho uma visão bastante céptica em relação ao que é organizado pelo governo e essa questão faz todo o sentido ser colocada se tivermos algumas dúvidas sobre se ali não se estará a defender alguma coisa. No entan-to, penso que tem havido um enorme cuidado nestas participações. Dá-me ideia de que a China tem perfeita consciência do que é estar no palco de Veneza e daí ter contratado os comissários correctos. A propaganda po-derá existir na mesma mas de uma forma que não se sen-te porque glorifica o país e não, propriamente, o regime. As exposições continuam a ser fechadas em Pequim, por uma ou outra razão, e os artistas continuam a ser presos, mas penso que a China tem perfeita consciência que nas plataformas internacionais as regras do jogo têm de ser outras. Agora, temos situações que são de contraste e isso é matéria para quem se interessa por arte contempo-rânea analisar. O Ai Weiwei é apenas uma das vozes. Eu, felizmente, tenho tido algum contacto e elementos para formar opinião. Certo é que os artistas chineses con-tinuam a viver sob as mais diversas formas de pressão. Politicamente, continuam a ter problemas no que dizem e da forma que o dizem. O Ocidente apesar de parecer estar motivado com este boom de arte chinesa, e com os factores económicos, tem que reflectir em consciência sobre aquilo que está a potenciar, e a China tem obriga-ção de reflectir porque é que certas obras têm estado a sair do país e porque é que o Ocidente se interessa mais por umas e menos por outras. Penso que esta reflexão política é urgente porque o Ocidente está-se a deixar ir atrás do que a China permite que saia.Fora do institucional, do mercado, dos circuitos, dos festivais, existe algum movimento mais underground contra-institucional, contra-oficial?Especialmente em Pequim, sente-se que há uma série de situações furtivas que tentam escapar a esse oficia-lismo. É bom de referir que qualquer exposição na Chi-na ainda está sujeita a uma vistoria do gabinete de cen-sura. Os galeristas e os artistas continuam a arriscar-se que as galerias e as exposições sejam fechadas, e que

esta ou aquela obra seja confiscada. Obviamente, com este tipo de situação continua-se a sentir que há uma série de eventos e reuniões que são organizadas de for-ma dissimulada.E há público, a arte tem impacto social? Neste livro, há uma série de territórios que são tocados desde o urbanismo ao problema do crescimento económico desenfreado, ás questões de género, e por aí adian-te. Há um público, ou permanece tudo ainda num circuito muito fechado entre galeristas, comissários, artistas, coleccionadores?Sim, há um público e penso que esse é um dos factores que acaba por dar maior poder aos artistas. Já não estão a fazer coisas como no início, uns para os outros. En-contraram um modus de atingir o grande público que é hoje em dia suportado das mais diversas variantes. Existe uma aproximação do artista à sociedade em que vive e que é muito interessante. Temos o caso do Zhao Bandi que com a sua série do panda se tornou numa imagem de marca total, com imagens nas paragens de autocarros ou com a criação de desfiles de moda. Ou o caso do Ai Weiwei que antes de participar na Do-cumenta faz uma open call para levar mil pessoas que nunca tinham saído da China a visitar a Europa... Há aqui indicações que revelam que há um público que quer estar informado e que apoia a arte dos nossos dias e a arte que é feita na China.Nesse sentido, ainda podem constitituir um poten-cial perigo?Essa será sempre a espinha que a República Popular da China tem. A noção de que isto ou aquilo pode consti-tuir um perigo para o regime. Só quando se aperceber que não é anulando esse perigo que esse perigo deixa de existir ou que ao tentar anular esse perigo o poderá estar a validar acabando por lhe dar mais força é que o executivo de Pequim conseguirá dormir sobre o assun-to. Até lá vamos continuar a ter uma política de con-trolo intelectual que não beneficia a imagem da China e que por certo dá pesadelos aos censores.

“HÁ QUEM ACHE QUE O MERCADO DE ARTE CHINÊS VIVE NUMA BOLHA”

noventa. Há três grupos, o “Stars”, o “Xiamen Dada” e o “85 Art New Wave” que são pa-radigmáticos pela antecipação àquilo que se começa a viver nos anos noventa e onde se passa da rebeldia à globalização que dá sub-título ao livro. O Ai Weiwei veio a tornar-se no superstar dos “Stars”. Reza a história que a 27 de Setembro de 1979, depois de lhes ter sido negado o espaço oficial da National Art Gallery, o grupo montou a sua exposição no parque à volta do edifício, símbolo da arte ofi-cial de Pequim. Pinturas e esculturas dispos-tas, para todos verem, no espaço público. No dia seguinte a polícia fechou a exposição. A 1 de Outubro, trigésimo aniversário da RPC, os “Stars” responderam com uma marcha de protesto em nome dos direitos humanos. A demonstração, que teve início no Muro da Democracia de Xidan, seguiu até às instala-ções do governo municipal debaixo das pa-lavras de ordem, “Nós exigimos democracia e liberdade artística”. Uma manifestação com-pletamente inédita. Uma forma de tentar aler-tar para uma nova consciência cultural e acon-tece dez anos antes de Tiananmen. O grupo cessaria a sua existência em 1983, tendo nove deles emigrado para o estrangeiro. Ai Weiwei foi o primeiro a sair, em 1981, para os Estados Unidos. Em Maio de 1983 os “Xiamen Dada” apresentaram uma exposição que resultou no final no queimar das pinturas expostas na via

pública. Deste grupo saiu o Huang Yang Ping que conto possa estar no segundo volume deste livro, que é um caso muito interessante da arte chinesa por ter saído da China e nun-ca mais ter voltado. Rumou a Paris e chegou a representar a França na Bienal de Veneza. Tem uma influência muito interessante na arte chinesa por ser hoje um outsider. E o 85….Foi só no início de 1986. Era um movimento nacional, o “85 Art New Wave”, que reunia artistas de vários pontos do pais, oriundos das mais diversas sociedades vanguardistas de arte. Este grupo demorou três anos até se mostrar através da exposição “China/Avant Garde”, uma mostra que viria a mudar o mundo da arte chinesa. Na inauguração, a 5 de Fevereiro de 1989, a entrada da National Art Gallery foi transformada com uma longa carpete com o sinal rodoviário de proibição de inversão do sentido de marcha. A mensa-gem era clara, não havia como voltar atrás como confirma a performance de Xiao Lu e Tang Song, na qual Xiao disparou ao vivo contra uma cabine telefónica que continha uma fotografia de Tang em tamanho real. Isso provocou a imediata detenção de um dos artistas. O outro apresentou-se mais tar-de às autoridades. Ambos foram libertados três dias depois, quando foi descoberto que a pistola usada estava registada no nome de

Geração global“Hoje há novos autores, com um novo estar, e que não sentem a necessidade de ir contra o sistema ou de questioná-lo. As preocupações já não são exclusivamente políticas ou sociais. A maior parte hoje em dia acompanha as correntes globais”

um oficial importante. O incidente resultou no fecho forçado da exposição. Três meses depois muitos dos artistas estariam nas san-grentas demonstrações do 4 de Junho.O Ai Weiwei não...O Ai Weiwei retorna em 1993 por questões pessoais, pois o pai fica doente, tendo aca-bado por ficar e por ser um dos grandes di-namizadores e um dos mais influentes para o boom dos anos noventa, onde há traços muito fortes de grande mau-estar social. Aí já estamos no pós-Tiananmen e esse mau-es-tar dos anos noventa é o que confere grande versatilidade e grandeza à arte chinesa e terá sido o que lhe permite assumir-se como arte contemporânea de igual para com o que se pratica em termos globais.Em textos anteriores, faz uma sistemati-zação desse período entre “pop política”, “experimentalismo East Village” e “realis-mo cínico”. Podemos organizar esses anos assim ou melhor, geograficamente, por grandes cidades, Pequim, Xangai, Cantão?Todas essas variantes dos anos 90 aparecem em Pequim. Hoje em dia, já há uma maior di-versificação por grandes centros como Xangai ou Cantão, mas ainda há o estigma que esta-belece que o artista para vingar tem de estar

(Continua na página seguinte)

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AFINIDADES“Há artistas [dos 17 seleccionados] que me interessam mais na medida em que a sua obra pode estar mais próxima daquilo que faço. Mais pela via filosófica do que pela do trabalho. A Xing Danwen é uma das que mais interessa embora o meu trabalho não tenha nada a ver com o dela, mas há aqui uma relação com o sonho e com a decepção, sobre a identidade, que está muito próxima das coisas que eu faço. Ou esse lado de sub-versão do Zhang Huan, esse lado do corpo, embora eu não seja performer. A minha re-presentação acaba por ser preparada, ence-nada, e nos meus últimos anos, eu era o meu próprio modelo mas, insisto, não faço per-formance, embora haja esse lado performa-tivo, de utilização da identidade que é uma temática que me continua a interessar, a for-ma como o ser humano está neste mundo, o que pensa dos outros e o que pensam dele, e isso são visões que me interessa explorar porque se volta sempre à ideia do sonho, da decepção, das esperanças e dos pesadelos”

BELO“O belo é o conceito que menos me interes-sa nas artes plásticas, para além de em geral significar ausência de critica significa tam-bém ausência de verdade. Estou mais inte-ressado na ilusão através da experimentação e atrai-me o efémero e as relações entre o visível e invisível.”

CURADORIA“A noção de como se monta uma coisa, que obra fica ao pé da outra, que concei-to pode reunir três ou quatro artistas, tudo isso foi ensaiado do grupo de que fiz parte (ver LIsboa). Com a vinda para Macau isso acabou, mas o bichinho ficou lá. Em 1999, acabo por tirar o curso de Gestão de Artes do Instituto de Estudos Europeus e, nesse momento, tornou-se uma coisa realmente importante. Era uma altura em que, em Ma-cau, não havia a noção da importância do comissário. Foi só depois da transição que começam a aparecer algumas exposições as-sinadas, quase sem ninguém dar por nada. A partir de 2005, 2006 começa a conferir importância ao papel do comissário. Foi na AFA que voltei a ter vontade de fazer esse papel mais a sério porque até aí não tinha tidas essa possibilidade”.

DADAÍSMO“Sou muito dadaísta, tento-me sempre con-traria a mim próprio e muito influenciado, e quem não o é, por Duchamps, mas fui mui-to influenciado pelo que nos trouxe. Mais do que pela sua obra, por um certo estar, um certo olhar por aquilo que a arte nos põe, mais do ponto de vista filosófico do que retiniano ou visual. Quando o que faço é muito bonito, deito fora.”

ESCOLA“Penso que o Executivo da altura [anos no-venta] poderia ter feito muito melhor. Fala--se, hoje em dia, de uma escola de belas ar-tes mas isso poderia ter sido deixado pelos portugueses. Continuam-se a sentir ausên-cias na arte local que não se compreendem. Por exemplo, não há escultura.”

FOTOGRAFIA“O meu interesse na fotografia é o cap-tar de um momento que não existe. Para

INCURSÃO SUMARÍSSIMA NO UNIVERSO ARTÍSTICO DE JOSÉ DRUMMOND. DA PAISAGEM DE MACAU NOS ANOS NOVENTA ATÉ HOJE, DAS AFINIDADES SELECTIVAS DO CRIADOR À POSSIBILIDADE DA CURADORIA, ESCRUTINAMOS OS TRABALHOS E AS PAIXÕES DE QUEM TESTEMUNHOU AS MUDANÇAS DO TERRITÓRIO ANTES E DEPOIS DA TRANSIÇÃO ADMINISTRATIVA DE 1999. DE A A S, AQUI UMA CARTOGRAFIA AFECTIVA DO ARTISTA ENQUANTO ESTETA (E POLÍTICO).

mim toda a fotografia é de um certo modo encenada ou preparada. Aquela ideia de reportagem e do captar do real não me interessa e é quanto a mim aquilo que di-ferencia o artista que usa fotografia numa procura quase de ilusionista e o fotógrafo mais tradicional”.

GLOBALIZAÇÃOOs primeiros anos de Macau “são os que acompanham esses primeiros anos de re-beldia que estão expostos no livro mas isso não chegava cá. Isso chegava-me através das revistas internacionais. Nessa altura o que se passava aqui não tinha qualquer relação com o que se passava na China. [...] A ex-pressão de Macau era muito peculiar, muito única, diria quase intuitiva e muito virada para o seu próprio mundo. Hoje já um pou-co diferente. Agora tem mais relação, esta-mos todos mais globais.”

HISTORIOGRAFIA“Tenho falado disso com outros elementos ligados a esta área. Há uma história para ser contada sobre a arte de Macau. Será impor-

tante para, num futuro próximo, se enten-der a arte de Macau.”

INFECÇÃO“Antes de vir para Macau fiz uma grande via-gem pela Europa e cheguei aqui infectado, entre aspas, por aquilo que vi na Europa. O facto de poder ficar aqui mais sozinho du-rante um certo período de tempo ajudou a cimentar essas novas ideias que eu não sabia que estavam dentro de mim, fruto do que vi na Europa, nomeadamente, na prática da fotografia e do vídeo.”

LISBOA“Em Lisboa, tinha um grupo que reunia uma série de artistas. Eramos bastante uni-dos. Desse grupo havia uma figura de proa para nós que saíamos desse grupo que era o Pedro Morais. Há pessoas que se afirma-ram mais que outras e que acabaram por ter trajectos muito diferentes. Foi muito impor-tante, a nível de formação, para todos nós. Foi o primeiro momento onde se ensaiaram noções de curadoria porque todos nós nos apoiavamos muito uns aos outros na monta-

gem das exposições do grupo. Sairam pes-soas como o Rui Calçada Bastos, o Francis-co Tropa que, este ano, representa Portugal em Veneza. São só dois nomes, mas dá para ver que as obras destes artistas são comple-tamente diversas.”

MUSEU“O Museu de Arte é um Macau é um misté-rio. Dá ideia que não consegue encontrar o seu público e continua a viver das visitas das escolas. É complicado. Penso que o Execu-tivo tem de reflectir. Sou da opinião que o Museu não desapareceu, tem uma gerência diferente e com objectivos diferentes. Ago-ra esses objectivos não são propriamente de defesa da arte contemporânea ou da arte que é feita nos nossos dias e que, em princípio, falta-lhe essa consciência de que arte que é feita nos nossos dia é a que está mais próxi-ma da sociedade que a consome. Isto é uma sensibilidade que a maior parte dos governos ocidentais tem, mas que aqui ainda não há essa ideia de que é na arte contemporânea que existe esse trunfo para aproximar a cul-tura do público, e não na defesa exclusiva da arte tradicional. Disto isto, o que sinto falta é de um museu de arte contemporânea. Acho que é preciso que se reflicta sobre isto, e que isso faria com que desparecessem os proble-mas do Museu de Arte por ser tão tradicio-nal. Este Museu de Arte Contemporânea de-veria ser feito, quanto a mim, nos próximos dois ou três anos. É urgente que o governo tenha esta sensibilidade.”

NOVENTAS“Aqui em Macau, o início dos anos noventa é um período em que o Círculo dos Ami-gos da Cultura ainda é muito forte. Faz-se uma arte, especialmente, ligada ao expres-sionismo abstracto. Mio Pang Fei era a fi-gura de proa. […] Havia valores que se afirmavam mais pela via individual como é o caso do Carlos Marreiros ou do Kons-tantin [Bessmertny]. Não éramos muitos, e continuo a achar que não somos suficien-tes. Havia muito menos pessoas dedicadas à prática das artes. Olhando para trás ha-via uma galeria no Leal Senado que trazia, frequentemente, exposições de Portugal. Esse espaço terá sido, com a transição, ocupado pelo Museu de Arte passando a galeria a dedicar-se mais à arte tradicional. Foi, nessa altura, que se formaram alguns grupos como a Comuna de Pedra que mais tarde vai dar origem ao grupo da Ox Wa-rehouse. Houve uma galeria, na Taipa, do Rui Calçada Bastos, a galeria Quarto, e que permitiu fazer alguma coisa bastante à margem do que se fazia, na altura, no ter-ritório. Havia ainda um factor importante para a formação desse grupo de artistas, de Macau, que era a Academia de Belas-

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-Artes, dirigida pelo falecido Nuno Bar-reto, que foi um dos espaços de reunião, aprendizagem e formação que deu muito e ajudou muito toda essa geração de artistas dos anos noventa. Havia ainda a Bienal de Macau que depois deixou de existir que era uma arte feita à escala do próprio um-bigo de Macau mas que durante a qual ha-via uma interessante divisão de disciplinas. Na sua maior parte era uma arte ligada a uma linguagem mais abstracta expressio-nista de fusão entre Oriente e Ocidente. As primeiras instalações ainda usam um re-gisto escolar mas penso que foi importante esse período para uma sedimentação dos artistas. Esses anos noventa eram de um grande vazio mas de uma grande vonta-de e persistência. Penso que isso é o mais importante quando olhamos para trás. Os artistas que apareceram naquela altura são os que continuamos a ter hoje”

ORFEU“Quando olho para trás, a primeira coisa que me lembro foi a primeira exposição que fiz ainda na escola, eu estava a tirar Pintura, e aquilo que fazia era pintar fo-tografias. Esta imagem está, cada vez mais presente. Voltei a esse ponto. Estou a fa-zer pintura com fotografia, ou com vídeo. Quando passei para a galeria comercial o que comecei a mostrar era pintura-instala-ção. E, depois, em Macau, aqui chegado tudo muda e, especialmente, nas técnicas e nos materiais utilizados”

PROCESSO“Adoro o conceito, passo horas à volta do lado conceptual dos trabalhos mas é no pro-ceso e na experimentação que, habitualmen-te, encontro a razão de ser das peças”

UTOPIA“Seja por que lado for adoro utopias. É essa condição de acreditar em coisas que os outros julgam impossíveis que nos confere identidade e autonomia e eventualmente nos eleva ao lugar de artistas. Tal como o Bruce Nauman classificou no seu primeiro trabalho em néon ‘The True Artist Helps the World by Revealing Mystic Truths’ também eu acredito que ser artista tem algo de mís-tico.”

SUBVERSÃO“Não sou um pintor, não sou um fotógra-fo e não sou um videasta. Sou uma pessoa que pula entre estas áreas à procura da me-lhor forma para exprimir o que pretendo. Esse chegar a esta consciência aconteceu já equando estava m Macau e deu-se atra-vés de uma prática que era oposta à prática do que se fazia, na altura. Gosto de coisas ambíguas e de estar sempre a subverter o meu trabalho anterior. Comecei a pegar em câmaras e a pensar como subverter o valor daquelas três disciplinas. Mas tudo acaba sempre por me levar, conceptualmente, ao mesmo ponto porque eu acabo sempre por fazer pintura. As minhas preocupações são as de um pintor mas, na prática, utilizo ou-tros materiais”

VÍDEO“Não gosto nada dos estereótipos associa-dos hoje ao vídeo mas penso que temos que reconhecer que o vídeo é o grande meio de expressão dos nossos dias, é a po-esia dos adolescentes e o diário dos mais velhos.” - C.P.

Underground“Sente-se que há uma série de situações furtivas que tentam escapar ao oficialismo. É bom de referir que qualquer exposição na China ainda está sujeita a uma vistoria do gabinete de censura. Os galeristas e os artistas continuam a arriscar-se que as galerias e as exposições sejam fechadas”

em Pequim. Isso tem a ver com a própria cidade e com toda esta história recente, com a criação do [distrito cultural] 798, com vilas de artistas muito próprias que, são, aliás, um dos grandes trunfos de Pe-quim. As pessoas preferem estar em Pequim porque há um frenesim único, é ali que es-tão os estúdios de artistas, um enorme nú-mero de galerias e uma empatia pela arte contemporânea que torna a cidade mais forte que as outras. Diria que esses três, ou quatro, variantes conceptuais de início dos anos noventa, aparecem todas na mesma al-tura, na ressaca de Tiananmen. Neste livro, tive a preocupação que as obras de autores não se sobrepusessem. Temos duas corren-tes que estão muito ligadas à pintura que, na China, continua a ser muito relevante. Depois, o grupo da East Village, de artistas como Zhang Huan ou Ma Liuming, e um grupo de artistas que andavam ali à volta que não faziam propriamente parte desse grupo como a Xing Danwen ou o Qiu Zhi-jie, e que acabam por fazer o contraponto à pintura aproximando a arte contemporânea de uma linguagem mais global com a intro-dução de outras práticas como a fotografia, a instalação e a performance que tem um papel, aliás, fundamental no grupo da East Village. A performance destes tempos em Pequim, absolutamente visceral, ilustra bem o que se vivia na China no momento e faz o contraponto com o que se estava a pas-sar nos grandes centros onde se assistiu ao afirmar das grandes instalações com produ-ções meticulosas e muito encarecidas. Na China havia ainda uma enorme tensão e a performance parece acabar por ser a saída para contornar o risco permanente de tudo ser confiscado e desaparecer. A pintura do “realismo cínico” traz uma crítica mordaz à sociedade chinesa que acaba por afastar--se do lado mais objectivo e mais banal da

pop. Por outro lado a “Pop Política” vive graficamente depois da pop recorrendo a citações das grandes marcas multinacionais e em que que Wang Guangyi é talvez um dos seus exponentes maiores. Recorre a ele-mentos de propaganda da revolução cultu-ral misturando-os com referências do novo mundo consumista.Há um ponto em comum em todos estes movimentos, o niilismo que, curiosa-mente, com o avançar da década levará uma normalização e integração.Há autores que continuam a ser bastante niilistas. Hoje em dia não podemos dizer que este autor era niilista e que agora faz

outras coisas. Há quem permaneça neste registo. O que eu sinto é que na primeira década, os noventa, o niilismo é assumido e depois nem tanto. Hoje há também novos autores, com um novo estar, e que não sen-tem a necessidade de ir contra o sistema ou de questioná-lo. As preocupações já não são exclusivamente políticas ou sociais. A maior parte hoje em dia acompanha as correntes globais, e nesse sentido podemos considerar que a sua obra não é exclusivamente chine-sa. Estes novos autores olham para a China como um país moderno e não tradicional e isso faz com que os valores estejam mais próximos do global não se distinguindo tan-to pela sua identidade nacional como os da geração anterior.Ideologicamente são mais descomprome-tidos...A nova geração não precisa tanto de fu-gir, ou de ir para o estrangeiro, porque existem opções na China. Hoje é, rela-tivamente, fácil conseguir espaços para trabalhar. Avaliando estas duas gerações é muito interessante observar esse lado em que enquanto uns não tinham estúdios e lhes confiscavam as obras, estes têm in-vestidores e um dinamismo económico do qual beneficiam. Há uma série de coisas completamente opostas ao que os artistas viveram no início dos anos noventa.Isso significa também condescendência com certa brutalidade do regime?Não acho que seja essa a preocupação do artista chinês agora. Está mais preocupado em evoluir interiormente, em tornarem-se artistas sem grande envolvimento reflexi-vo sobre o regime demarcando-se daque-le lado fortemente político de início dos anos noventa. Isto até porque os símbolos políticos foram reciclados, reutilizados, e são hoje perfeitamente aceites. De alguma forma, esta segunda geração está mais pró-ximo da prática do artista ocidental e não faz parte de um movimento ou corrente perfeitamente identificável como antes.

(Continuação da página anterior)

TO RAISE THE WATER LEVELIN FISHPOND PERFORMANCE, ZHANG HUAN,1997

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2011 O L H O S A D E N T R O

James Chu

A ORIGEMEste ano marca o 10º aniversário do ataque de 9/11 em Nova Iorque. Doze dias antes do ataque, há dez anos, pisei o chão de Nova Yorque pela primeira vez e subi ao cimo das torres gémeas do World Trade Center, o marco da cidade. Após o meu re-gresso a Macau, ainda sob o efeito do jetlag, testemunhei o ataque de 9/11 – um ataque que abalou o mundo inteiro – pela tele-visão. A rápida passagem de 10 anos não obliterou a cena assustadora do colapso das torres. A fim de assinalar o ataque e de prestar homenagem aos mortos, criei vá-rios conjuntos de obras associadas ao ata-que, esperando um dia poder compartilhar a perturbante memória dos últimos 10 anos através de uma exposição do meu trabalho.

O SUCEDIDONos últimos dez anos, fui convidado várias vezes para discutir a possibilidade de orga-nizar esta exposição temática. A primeira discussão teve lugar em 2002. Nesse ano, o curador José Drummond foi convidado por Carlos Morais José para realizar a exposição no World Trade Center de Macau. Apesar de tudo estar preparado e em pleno andamento, apenas 10 dias antes da inauguração, fomos informados de que a exposição seria cance-lada sem qualquer justificação; a explicação mais razoável na altura era de que se tratava de um “assunto delicado”. Este projeto foi, portanto, abandonado e a exposição nunca foi realizada. Anos mais tarde, sempre que as pessoas mencionavam a exposição do 9/11, eu ficava a refletir sobre o problema que liga a liberdade de criação artística e a chamada censura de Macau a obras expostas.O tempo voa. Em 2010, recebi outro convite do Albergue SCM para realizar uma exposi-

ção em 2011. Imediatamente, sugeri o tema “O 10º Aniversário do 9/11”, enfatizando em várias ocasiões que a exposição deveria ser inaugurada no domingo, dia 11 de setembro, o que constituiria um desvio da prática usual do Albergue SCM de organizar cerimónias de inauguração às quartas-feiras. No ano passado, tive a oportunidade de preparar a exposição à vontade, e quando recebi a auto-rização para organizar a exposição, comecei a acompanhar de perto, ativamente e com entusiasmo, o pessoal encarregado da minha exposição. A equipa coordenadora da expo-sição foi alterada algumas vezes, pelo que fiz sempre questão de lembrar as pessoas res-ponsáveis do conteúdo das exposições, bem como de alertá-las para as suscetibilidades que esta exposição poderia vir a gerar.Após um longo período de titubeação e ex-trema paciência, tudo pareceu ficar sob con-trolo e bem encaminhado. Para além de criar as minhas próprias obras, envolvi-me igual-mente na logística da exposição, incluindo os títulos das séries, descrições das obras, fo-tografia e montagem, planeamento espacial e traduções para chinês e inglês, o que se traduziu numa enorme quantidade de traba-lho que deveria ter sido empreendido pelo organizador, mas que, pensei, me permitiria agora mostrar ao público estas criações que tinham ficado enterradas no fundo do meu coração. No entanto, três semanas antes da inauguração, num sábado à noite, recebi um telefonema do Albergue SCM, com o ob-jetivo de cancelar a exposição. Mais uma vez, nenhuma razão foi apresentada. Após inquirir persistentemente, verifiquei que as noções de “perigo” e “superstições” podiam constituir as possíveis razões para esta expo-sição ser novamente cancelada!

O ALEGADO MAL-ENTENDIDO DA CENSURAAs pessoas geralmente associam o cancela-mento repentino da exposição no Albergue

SCM à “censura”, porque o tema do ataque de 9/11 é sensível. Convém recordar que o incidente, em 2002, da Instalação Artigo 23 no Albergue SCM estabeleceu um siste-ma de alarme interno. A fim de não perder quaisquer subsídios do Governo devido à exibição de obras politicamente sensíveis, o Albergue SCM terá dado a “instrução” de cancelar a exposição.Contudo, é possível que esta suposição seja “exagerada”. Desde o início até ao fim, nin-guém no Albergue  SCM procurou obter qualquer tipo de entendimento sério sobre as minhas criações e sobre o processo de forma-ção das mesmas, sendo que também ninguém se preocupou em tentar saber em pormenor o significado de cada um dos conjuntos. Acre-dito que para eles esta exposição seja com-posta apenas de dois conjuntos - instalação e sete pinturas - todos subordinados ao tema do ataque de 9/11. É absolutamente injusto estimar e avaliar os trabalhos simplesmente pelo seu tema, e é isto que limita o bom senso dos responsáveis pelas decisões.Talvez o principal motivo a desencadear o aniquilamento da exposição tenha sido a falta de comunicação séria com o artis-ta, para além da compreensão inadequa-da das obras. Mais tarde, uma explicação frequentemente usada prendia-se com a estrutura de madeira do Albergue SCM. Sendo que uma das peças se intitula “Bur-ning the Incense” (Queimando o Incenso), uma instalação de duas torres de incenso, normalmente usado para venerar deuses e deusas, que seria queimada durante a inauguração, a decisão de cancelar a expo-sição dever-se-ia, por conseguinte, a uma questão de segurança. O absurdo é que a exposição deveria ter lugar na sala de ex-posições central do Albergue SCM (apesar de ter sido sugerido o pavilhão lateral uns meses antes), na qual são frequentemente organizadas palestras, e que consiste numa

construção, não de madeira, mas de tijolos.Memórias de uma senhora idosa que viveu no presente Albergue SCM sugerem que esta sala de exposições central era antiga-mente um templo funerário temporário. A parte central do tecto foi levantada a fim de instalar uma travessa (foi também instalada uma ventoinha de ventilação). Se existe por-ventura algum local adequado para expor a obra “Burning the Incense”, este é sem dúvi-da o local perfeito, pois não existem outras salas de exposição com tais condições. Se alguém previne que queimar incenso provo-ca problemas de segurança, então todos os templos em Macau correm muito mais risco ainda. Além disso, do início ao fim, nunca ninguém discutiu comigo as minhas obras ou estudou outros métodos de exposição. Tratou-se de um cancelamento efetuado de forma imperativa. Estou convicto de que isto constitui cinismo elevado à máxima po-tência em termos de criação artística.Os parágrafos anteriores mencionam não só o conceito de “perigo”, mas também o de “superstição”. Diz-se que outro motivo por trás do cancelamento se prende com o facto de que o proprietário (natural de Hong Kong) do restaurante situado dentro do Albergue SCM ter medo de “fantasmas”, e que terá acreditado que queimar incenso atrairia fantasmas errantes e afetaria o seu negócio. Dá ideia que talvez porque este proprietário é novo aqui e não sabe muito sobre o histórico do Albergue SCM esta defesa para o cancelamento da exposição tenha sido utilizada. O Albergue SCM era antigamente uma mansão deserta, imersa em ervas dani-nhas. Em 2001, foi renovado por um gru-po de artistas locais (eu inclusive) para transformar este casarão velho e degra-dado num espaço dedicado à arte, cheio de energia e dinâmica. Durante o perío-do entre agosto de 2001 e dezembro de

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As pessoas geralmente associam o cancelamento repentino da exposição no Albergue SCM à “censura”, porque o tema do ataque de 9/11 é sensível. Convém recordar que o incidente, em 2002,

da Instalação Artigo 23º no Albergue SCM estabeleceu um sistema de alarme interno.

“AN AFFAIR TO REMEMBER”

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2002, eu e os meus amigos passámos dias e noites neste local considerado “muito assustador”, envidando enormes esforços na sua renovação. Foram dias que inclui-ram muitas noites ventosas e sem lua. En-tre nós, havia os tímidos e, como tal, tive eu próprio de passar incontáveis noites de trabalho sozinho nesta mansão. No en-tanto, exceptuando as baratas e os inse-tos, nunca tive medo só por ver a minha própria sombra. Acredito na existência de espíritos, mas também acredito que a maioria dos medos dos espíritos se devem a suspeitas que criam medos imaginários. Além disso, Macau é um lugar tão único que eu encontro sempre pessoas mais as-sustadoras do que fantasmas.

O INCIDENTE “SOBRENATURAL”Por fim, a exposição do 9/11 foi transferida no espaço de duas semanas para a galeria do terraço do novo edifício da AFA. O fac-to de o telhado ser ao ar livre faz com que seja difícil prever o tempo. Sendo que ao ar livre o vento pode soprar mais ou me-nos, queimar incenso é na verdade mais perigoso nesta situação do que queimá-lo num espaço interior. Como a exposição foi realizada no terraço, a fim de não afetar os residentes das proximidades, a inaugu-ração teve início às 20:46 horas (a hora a que sucedeu a colisão do primeiro avião no World Trade Center) e terminou às 23:00 horas.O dito incidente “sobrenatural” aconteceu, acidententalmente, com vários conjuntos de obras, o primeiro dos quais foi o “Bur-ning the Incense”. Talvez devido ao vento forte, a parte central de uma das torres gé-meas, composta de incenso, queimou tão intensamente que acabou por quebrar e cair. Muitos espetadores pensaram que eu tinha provocado deliberadamente a queda da torre, a fim de recriar a cena, enquanto

a outra torre continuava a queimar a um ritmo mais lento. O ritmo a que o incenso queimou correspondeu aos resultados dos nossos testes anteriores: perto das 23:00 horas, apenas cerca de metade da torre ti-nha queimado. No entanto, quando eram quase 23:00 horas, uma rajada repentina de vento forte soprou, primeiro arrastando uma pintura do World Trade Center, e se-guidamente uns copos que se encontravam em cima da mesa. Nesse momento, o som do vidro a quebrar no chão assustou todos os espetadores presentes na exposição, os quais rapidamente se juntaram aos funcio-nários para levar tudo para dentro e lim-par o local. A instalação intitulada “Listen to the Wind” (Ouve o Vento)  (composta por 2.977 pequenos sinos, simbolizando as 2.977 vítimas que morreram no ataque de 9/11, e que perdoaram e sorriram ao vento) não emitiu qualquer som durante todo o serão. No entanto, após a limpeza do local, uma brisa súbita soprou e os si-nos soaram (o que era exatamente o efeito que eu pretendia criar). Após o tinido, vol-tou a serenidade. Esperava-se chuva forte para essa noite, mas tudo estava calmo. A lua na véspera do Festival do Meio Outo-no esteve particularmente cheia. Não senti qualquer tipo de receio, mas sim, surpre-endentemente, paz e tranquilidade. Quer tenha sido “sobrenatural” ou acidental, este momento marcou o sucesso da exposição. Instantaneamente, os meus pensamentos dos últimos 10 anos  sobre esta exposição desvaneceram, deixando-me apenas a pen-sar em como melhorar as minhas obras.A exposição chegou agora ao fim. Serão as obras e o tema realmente demasiado sensí-veis? A exposição atraiu vários americanos, professores em Macau, os quais se deixaram ficar pela noite dentro a compartilhar as suas opiniões com todos os presentes. Um outro estrangeiro que visitou a exposição chegou

mesmo a dizer que deveríamos ter convida-do o Cônsul Geral dos Estados Unidos da América em Hong Kong e Macau, o qual teria tido certamente todo o gosto em ver tais obras de arte expostas em Macau.

FRAQUEZAS NA CRIAÇÃOARTÍSTICA EM MACAUUma análise mais aprofundada de todo o incidente mais uma vez revela as fra-quezas da criação artística em Macau. Segundo um velho ditado, “os eruditos não têm força suficiente para matar e são demasiado preguiçosos para pedir ajuda”. Ao confrontar os problemas da sociedade, incluindo o ambiente propício à criação, os artistas são geralmente colocados numa posição extremamente passiva. Se tomar-mos esta exposição como exemplo, verifi-camos que o tempo gasto na organização da exposição e criação de obras de arte não é de todo recompensador, pelo que se coloca a questão: como podem os artistas sobreviver assim? Tudo isto sem incluir o montante de cerca de 30.000 MOP utili-zados na compra de materiais e no aluguer de vários tipos de instalações e equipa-mentos (embora o Albergue SCM tivesse prometido financiar parte destas despe-sas). As dificuldades a nível de sobrevi-vência e de criação com que um artista é confrontado não é definitivamente algo que aqueles que recebem generosos sub-sídios do Governo  podem compreender. Além disso, o Governo despende grandes somas no desenvolvimento cultural todos os anos – estarão os mesmos a ser gastos para boas causas? É importante debater se os artistas e criadores da linha da frente e aqueles que precisam urgentemente de assistência beneficiam realmente destes subsídios.O círculo artístico de Macau está a sofrer de um profundo abismo e de uma escas-

sez temporária de sucessores. Na verdade, quantas pessoas poderão prevalecer num ambiente tão difícil, criando obras sem recompensa? E quantos têm a coragem e perseverança para tentar transformar este fenómeno dominante numa sociedade que não aprecia a arte da criação?

FUTURO INCERTOCoordenar vários empregos é a realidade que muitos artistas são forçados a enfren-tar, mas isso não significa que esses artistas são versáteis. A realidade é que uma mera concentração na criação de arte em Macau apenas conduziria a um beco sem saída. A menos que os  artistas sejam sustentados pela riqueza da família, é inevitável que le-vem uma vida pobre. Embora o Governo esteja a investir uma grande quantidade de recursos nas indústrias culturais e criativas, tais recursos não têm sido usados para boas causas, visto que os verdadeiros artistas continuam a ter de lutar para sobreviver. O que se vê atualmente não passa de uma fa-chada. Simplesmente não se entende qual é o critério para receber apoio do Governo. Cultivar a criatividade requer um desenvol-vimento abrangente e completo a partir da raíz. Sem qualquer adubação e irrigação, como podemos obter um solo fértil, rico em nutrientes para estimular a criatividade? A cega pavimentação em cimento ou mo-saico sugerem algumas boas ações à super-fície, mas esta tem, na realidade, suprimido totalmente a oportunidade para a  raíz da criatividade se agarrar firmemente ao solo e crescer. Com base na situação social atual, as perspectivas para quem se encontra en-volvido nas indústrias culturais e artísticas em Macau são ainda muito incertas.

(O artigo original foi escrito em chinês e publicado na página de Artes Visuais do jornal Diário de Ma-cau, no passado dia 4 de Outubro de 2011).

Diz-se que outro motivo por trás do cancelamento se prende com o facto de que o proprietário do restaurante situado dentro do Albergue SCM ter medo de “fantasmas”, e que terá acreditado que

queimar incenso atrairia fantasmas errantes e afectaria o seu negócio.

GROUND ZERO IS EVERYWHERE

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luz de inverno Boi Luxo

Para lá das intenções que subjazem à realização de Man With a Movie Camera, hoje sentidas como demasiado próximas da possibilidade do controlo social e da vigilância das massas, a velocidade e o aspecto que o filme apresentam continuam a perturbar positivamente quem o vê. Que a proposta seja de 1929 só espanta quem esquece que nesta fase já os modernismos europeus de início de século tinham atingido a sua maturidade. As Odes Marítima e Triunfal, de Álvaro de Campos/Pessoa, foram escritas 15 anos antes. Kino-Pravda (filme-verdade), um projecto em que o mesmo autor se viu envolvido, tivera início em 1922; o inspirador Aelita, de Protazanov, é de 1924, e alguns dos filmes mudos mais conhecidos de Eisenstein haviam já sido estreados. O manifesto de Marinetti é de 1909, e o urinol mais famoso do mundo, o de Deschamps, de modo nenhum o primeiro dos “ready-mades”, fora apresentado ao público em 1917. À data de estreia de Man With a Movie Camera, de Fritz Lang haviam já estreado Metropolis ou O Nibelungo, entre vários outros.

Tanto foi já escrito sobre as vanguardas europeias, em geral, e sobre as vanguardas soviéticas, em particular (e estas por razões óbvias nunca mais o foram) que seria mais aborrecido que pretencioso fazê-lo aqui. Mas só os mais distraídos se deixariam ainda espantar pela vitalidade e pela diversidade destes movimentos e, informados apenas por essa perspectiva, se deixariam maravilhar pelo filme, este filme de Dziga Vertov. O que hoje lá vemos é um gosto pelas imagens que disfarça mal a imensa necessidade que temos delas. Mais vertiginoso é pensar que Vertov, tendo feito muitos filmes, foi através deste que ficou famoso. Assim acontece com vários

DZIGA VERTOVMAN WITH A MOVIE CAMERA, 1929

outros realizadores e esta concentração de atenção ainda mais nos atrai para o seu interior e para o seu centro nevrálgico.

Muito já foi igualmente dito sobre o poder documental que Dziga Vertov atribuia ao cinema. Que este meio de expressão tenha seguido principalmente uma linha ficcional, muito mais saliente e importante que a documental, é uma história que Vertov seguiu com um azedume que advém também da desconsideração que o regime lhe dispensou numa fase posterior da sua carreira. Na teoria que construiu em redor do cinema reservou a este um papel em que brilha, nuclear, a ideia de que o filme era a forma ideal para mostrar a verdade (Kino-Pravda), sem actores e sem guiões.

Num artigo de John Mackay escrito para a revista Artforum de Abril deste ano, este refere alguns momentos que hoje, longe que andamos, felizmente, da militância pela verdade das imagens, são caricatos e deliciosos na sua ingénua arrogância. No pequeno filme de 6 minutos The Exposure of the Relics of Sergius of Radonezh, de 1919, tenta mostrar-se que a lenda que apontava para a imputrescibilidade do corpo de Santo Sergius (prova irrefutável da sua santidade) mais não passava de uma grande fabricação da Igreja Ortodoxa para intoxicar o povo. “Em frente das massas”, o filme-verdade revela, ao abrir o caixão do santo, afinal, um corpo apodrecido. Um intertítulo esclarece que: “enganando os desgraçados, os pobres e os ignorantes e assim apoderando-se de todos os seus tostões, arduamente ganhos, durante 500 anos monges e padres entoaram, na sua voz nasalada, “assim como o sol se ergue os teus restos revelaram-se imputrescíveis…” – sobre este monte de terra, andrajos podres, traças mortas e restos de ossos”.

Este filme, o do Homem da Máquina de Filmar, expressa o desejo inexorável de sair para a rua e filmar tudo - fábricas / fundições / maquinarias / as pernas de uma mulher / homens e mulheres sem abrigo a acordar / o pescoço de uma mulher / lojas / cabeleireiros / as ruas de uma cidade quase desertas – eu já vi tudo isto mas não me canso de o rever. Muitas das imagens do início deste filme, que mostra o acordar da cidade, são, no entanto, de uma serenidade encantadora. Esta experiência documental expressa a vontade de o fazer, de filmar tudo, rejeitando o teatro, actores e um guião, como o autor nos avisa no início do filme:

“este filme apresenta uma experiência em comunicação cinematográfica de acontecimentos visíveis / sem a ajuda de intertítulos / sem a ajuda de um guião / sem a ajuda do teatro”. De seguida Vertov informa que :

“Esta obra experimental visa criar uma linguagem de cinema absoluta, verdadeiramente internacional, baseada na sua total rejeição da linguagem do teatro e da literatura”.

Zás. Nem menos. A ideia é boa. Já assim aconteceu muitas vezes depois do filme de Vertov mas não foi este o programa que o cinema favoreceu ao longo da sua história. Far-se-á talvez hoje mais este tipo de cinema, excitado pela facilidade do vídeo e já libertos do farto, ou da ilusão, de mostrar uma verdade que sabemos, hoje em dia, que o cinema não mostra nunca.

Vemos tudo: polícias sinaleiros / carros eléctricos / aviões / comboios / telefones e máquinas de escrever / carruagens de burgueses / rolos de filme (AGFA), a sua montagem e desmontagem / chaminés, operários e mineiros.

O Olho do Homem da Câmara de Filmar

filma tudo (com uma lente TESSAR ZEISS) e coloca-se em todos os lugares possíveis, indiferente ao perigo e à inconveniência. Vemos tudo e todos os truques que o cinema na altura permitia (e que permaneceram os mesmos durante várias décadas - exposição dupla, aceleração e desaceleração da imagem, stills, animação de objectos, ecrãs divididos, etc.). Casamentos / divórcios / funerais / nascimentos / o desporto e o corpo e a praia, que o cinema sempre gostou tanto de mostrar - muitas imagens e muitas delas montadas de modo muito rápido, futurista, novo, saudável - 1775 planos para apenas 68 minutos de filme.

Reserve-se um parágrafo para homenagear uma figura que terá uma responsabilidade maior no “aspecto” moderno e constructivista do filme, Elizaveta Svilova, a mulher de Vertov, encarregue da montagem das imagens que os dois irmãos Kaufman (o verdadeiro nome de Vertov é David Kaufman) haviam captado freneticamente na rua, muito certamente sem qualquer ideia do objecto veloz e belo que Svilova acabaria por criar.

A urgência que dele se desprende é hipnótica e, sobretudo, contagiante. O que quer que Dziga Vertov e Mikhail Kaufman (seu irmão, que carrega a outra câmara) intentassem fazer é-nos hoje completamente indiferente mas, depois de ver este filme, apetece ver imediatamente A Propos de Nice, o filme que Jean Vigo realizou em 1930 com Boris Kaufman, o outro irmão de Dziga Vertov, um filme mais chique e muito mais mórbido, e deixarmo-nos invadir por esta sucessão vertiginosa, quase fatal, de imagens e, com eles, rejeitar com violência a tendência ficcional de que o cinema indevidamente se apropriou.

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próximo oriente Hugo Pinto

MY LITTLE AIRPORT – SUPER POP DE INTERVENÇÃO

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Que a cantiga é uma arma, já se sabia. Que essa arma não tem que ser brandida apenas por hirsutos homens de bigode farfalhudo e soar (mal) como “A Internacional” cantada às crianci-nhas, dava para desconfiar; mas, podem as cria-turas de arma em riste comportarem-se de forma adorável, cândida e gentil? Com certeza.

2001, Hong Kong Shue Yan University. Num clássico “boy meets girl”, o curso de Jornalismo e Comunicação junta Ah P (Lam Pang) e Nicole Au Kin-ying. Amor pela mú-sica à primeira audição. Dois anos depois, os My Little Airport dão o primeiro concer-to, transformando-se na coqueluche “indie pop”do território.

A história conta-se em traços simples, como o bom jornalismo manda e como a música dos My Little Airport continua a ser, ainda hoje, dez anos depois do encontro ini-cial. No último mês de Agosto, Ah P e Nicole lançaram o sexto álbum da sua discografia, o quinto de originais (se não contarmos a com-pilação “Zoo is Sad, People Are Cruel”, edita-da pela espanhola Elefant Records).

“Hong Kong is One Big Shopping Mall” tem tudo o que os anteriores discos dos My Little Airport têm. Estão lá as letras em chi-nês, inglês, “chinglish” e francês, o estilo con-fessional e vagamente entediado de quem lê um diário que não é lá muito excitante, o “en-semble” minimalista regido pelo órgão Casio

que ora desfalece sem bateria, ora irrompe vitaminado, as melodias pegajosas, a pose de “dandy” que se enganou no ‘casting’ e no tempo e aparece num filme francês a preto e branco, a poesia ‘naïf’, a ironia, o humor “dea-dpan”, a melancolia, a ambiguidade e também a insuspeita consciência política mordaz que não pressentíamos possível ser trauteada no meio de “la la las”.

A brincar dizem-se coisas sérias e os My Little Airport até brincam com coisas sérias, revelando-nos que a inocência é a arma mais perigosa, exactamente porque torna as verda-des mais cruas e, por isso, mais cruéis.

O que Ah P e Nicole estamparam na capa do último álbum sob a forma de título, sem mais explicações, é uma espécie de retorno aos tempos áureos dos “slogans” que o Maio de 68 espalhou pelas ruas de Paris.

O pico da irreverência que tornou os de-licodoces My Little Airport nos mais temerá-rios “punks” da Região Administrativa Espe-cial de Hong Kong é, muito provavelmente, o álbum “Poetics – Something Between Mon-tparnasse and Mongkok”, de 2009.

Uma das 16 canções tem o sugestivo título “Divvying up Stephen Lam’s $300000 Salary”, no qual se propõe dividir o principesco or-denado do então secretário para os Assuntos Constitucionais e actual secretário-chefe do governo de Hong Kong.

Mas o ensejo de deitar mão comunista a 300 mil dólares é coisa de meninos nada sub-versivos quando comparado com a cantiga que fecha “Poetics ...”: “Donald Tsang, please die”.

Foi assim, com boa educação (atente-se na polidez da interjeição “please”), que os My Little Airport decidiram juntar a voz ao protesto dos que se sentiram revoltados pelo facto de o chefe do executivo de Hong Kong ter desvalorizado a necessidade de continuar a assinalar o massacre de Tiananmen, lem-brando que “aconteceu há muitos anos” e que o desenvolvimento da China significou “pros-peridade económica” para a antiga colónia britânica.

Em Hong Kong, em Macau e no resto do Mundo não faltam razões para brado e contestação, mas a verdade é que, hoje, en-contrar consciência política e canções de protesto nas centenas ou milhares de discos que, diariamente, inundam o mercado é tarefa difícil. Encontrá-las de mãos dadas com de-lírios quotidianos adolescentes é coisa ainda mais difícil, mas, como nos ensinam os My Little Airport, não impossível. Naquele mês de Maio, pintava-se nas paredes: “sê realista, exige o impossível”. À falta destas instruções nos assépticos muros urbanos, rejubilemos que, afinal, a música pop é uma arma. De plás-tico, mas uma arma.

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António MR MARtins

SEM O ATROPELO DAS OBRAS QUE CANSAM O CENTRO DA

VILA, SAIO DE CASA NOUTRA ONDA, E COM UM DESTINO DIFERENTE, QUE SE FAZ CIRCULANDO À SUA VOLTA.

Sigo na rota das rotundas, que hoje em dia qualquer localidade, por mais pequena que seja e sem motivo aparente, tanto ambiciona ter. Não ela, talvez, mas quem orienta seus desígnios. Passo à porta do tribunal e dos sanitários públi-cos, em frente a um jardim e ao lar da Santa Casa da Misericórdia, onde existe uma capelinha de permeio, e lá vou eu, com destino ao que me propus: caminhar, caminhando. Chego à pri-meira rotunda onde mudo de direcção, virando à esquerda. Se seguisse em frente talvez fosse dar a Alvaiázere, mas ainda demorava muito, nem sei se o conseguiria. Assim detenho-me nesta volta, envolvente, ao centro da vila de Ansião, que muitos escolhem para tentar desentorpecer suas pernas e fazer diminuir várias gramas ao seu peso, e à sua robustez, fora do comum. Lá sigo num piso acessível, plano, onde os passeios es-tão bem estruturados. Em alguns pontos as silvas vão fazendo germinar seus tentáculos e tal acon-tece com a rapidez de um tempo para o outro, mas eu limito-me a observar, muito de soslaio, lá indo no encalço da próxima rotunda, onde se avistará um fornecedor de Leitão Assado. Não me posso distrair daquilo que me leva a passar por ali, a caminhada. O sol tem estado abrasa-dor e eu esqueci de trazer protecção, do rosto começam a surgir as primeiras gotas de suor, escorrendo num percurso descendente, que me traz, de vez em quando, alguma comichão à face, passo nela com os dedos das mãos. Surge a rotunda que antecede a próxima, e continuo, no passo idealizado para esta contenda, numa ligei-ra curvatura à esquerda, com uma leve descida, que aligeira um pouco a exaustão do percurso escolhido. Algumas terras amanhadas se esprei-tam à nossa esquerda, perante o mato que cres-ce do lado contrário, onde existem árvores de maior porte. Finalmente chego à última rotunda, daquela opção para caminhada, contornando-a e assumo o sentido contrário, ou seja de volta, no lado oposto àquele em caminhava. E, as-sim, vou andando, repassando pelas rotundas, e chegando aquela em que iniciei este calcorrear circundante à vila, mas decido seguir em frente. Chego ao Intermarché, depois de percorrer cer-ca de quatrocentos metros, após a rotunda que me poderia ter levado até Alvaiázere, passando pelo Pinhal. Sim aqui também existem esses grandes postos de venda, que vão fazendo com que comece a rarear o tão apetecível e delicioso comércio tradicional. Olho-o, à minha esquer-da, passando uma mirada pelo seu parque de estacionamento e escolho a primeira passagem de peões que me possibilite virar à direita, em frente ao local onde se faz o mercado de todos os sábados. Ando mais uma centena de metros e finalizo mais uma caminhada, regressando a casa. Entro, vou até à casa de banho, olho-me ao espelho e verifico que diminui, pelo menos, uma grama. Valeu a pena!...

CAMINHADAS

À S U P E R F Í C I E

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Aqueles que criam gado devem livrar-se de lobos.

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

CAPÍTULO 167

Lao Tzu disse: A completude da Via e da virtude é como o sol e a lua; mesmo em terras estrangeiras, a sua direcção não pode ser mudada. Quando as inclinações e aversões são as mesmas, a censura e o elogio são uma questão de convenção; quando as intenções e as acções estão a par, a miséria e o sucesso são uma questão de tempo.Quando um negócio vai ao encontro das necessidades da sociedade, o trabalho é bem sucedido; quando uma empresa se afaz ao tempo, estabelece-se uma boa reputação. Assim, aqueles que se tornam bem sucedidos e famosos são prudentes nas suas relações com a sociedade e cui-dadosos na sua relação com os tempos. Quando o tempo certo vem, a sua preci-são é tal que não dá qualquer trégua.

Aqueles que, outrora, usaram armas não o fizeram por desejo de território e rique-za; fizeram-no pela sobrevivência dos que pereciam, para pacificar a desordem e se livrarem do que era pernicioso para a populaça. Quando gente avara pilhava a terra, estava o povo em tumulto e nin-guém sentia no que tinha segurança. Por isso, os sábios se levantaram para esmagar violentos agressores, pacificar a desordem e livrar-se dos problemas da terra. Para trazer claridade onde havia confusão, para trazer estabilidade onde havia perigo, a sua única escolha foi decepar a agressão.Educa o povo recorrendo à Via e guia-o por meio da virtude; se te não escuta-rem, então governa com autoridade e po-der. Se, ainda assim, não te obedecerem, controla-o pelas armas. Aquele que mata gente inocente é um governante injusto, o pior dos vermes. Não há maior calami-

dade do que colher a riqueza da terra para suportar os apetites de um indivíduo. Dar rédea solta aos apetites de um indivíduo, assim promovendo problemas pela terra, é inaceitável em termos de ética natural.A razão do estabelecimento da governa-ção é pôr fim à violência e desordem. Po-rém, se um governante cavalga o poder da populaça para ele próprio se tornar desor-deiro, tal é como dar asas a um tigre; que razoes haveria para não se livrar de um tal homem? Aqueles que criam peixes devem livrar-se de lontras e aqueles que criam gado devem livrar-se de lobos – que dizer então dos pastores de homens, não terão eles de se livrar também de predadores? É por este motivo que ocorrem operações militares.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado des-de pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conte-údo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” com-postos durante a predominantemente confucio-nista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi uti-lizada a primeira e, até à data, única tradução in-glesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.