Gyorgy Lukács - Ontologia do Ser Social - I. Neopositivismo e Existencialismo - 2. Excurso sobre...

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________________________ (*) Traduzido por Mário Duayer, Professor Titular do Deptº de Economia da UFF, do original em alemão Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Darmstadt: Luchterhand, 1984, Capítulo I, Neopositivismo e Existencialismo. Versão preliminar – não utilizar sem autorização expressa do tradutor. EXCURSO SOBRE WITTGENSTEIN G. Lukács 1. Em nossas considerações até aqui o problema da ontologia ficou deliberadamente limitado à estrutura interna da ciência, a sua manifesta relação gnosiológica com a efetividade, ao significado gnosiológico dos problemas ontológicos na apreensão de fatos concretos, etc. Mas é claro que com isso o papel das interrogações e respostas ontológicas na vida humana não está ainda suficientemente esboçado. Pois, como veremos na segunda parte ao tratar do trabalho, a correta relação do homem com a efetividade em si, que transcende a consciência, é diretamente o problema central da vida cotidiana, da práxis cotidiana. Pode-se mesmo legitimamente afirmar que a atitude científica da humanidade tem sua origem geneticamente vinculada a esta necessidade elementar. Porém, mesmo com esta gênese a questão ainda não se esgota. Em sua essência mais íntima, todo o âmbito da atividade do homem é determinado pela efetividade existente em si, ou seja, pelo seu espelhamento na consciência predominante em cada época: estas concepções atuam sobre os diversos conteúdos e formas da práxis humana. Este complexo só pode receber um tratamento adequado e aprofundado no âmbito das ciências sociais concretas, na análise concreta da práxis humana, incluída a ética. Por isso, aqui é possível apenas fornecer um esboço indicativo, sumário, dos fatos mais importantes. Apesar disso, tal esboço á inevitável porque o predomínio mundial do neopositivismo, gradualmente conquistado, tornou-se um fator decisivo na formação das modernas concepções de mundo, sobretudo diante de sua postura de neutra recusa a toda ontologia. A influência de seu predomínio na formação das concepções de mundo dá-se tanto no plano da pura teoria, como no plano estrito da práxis, no sentido mais amplo da palavra – práxis esta intimamente vinculada à teoria. Já conhecemos a atitude universalmente dominante entre os neopositivistas: trata-se do benevolente desprezo do manager, enfim adulto e maduro, pelas ilusões infantis-românticas daqueles que, não encontrando realização e satisfação no perfeito funcionamento de um mundo inteiramente manipulado, perseguem sonhos ultrapassados, originados nos estágios primitivos do desenvolvimento da humanidade. 2. Todo conhecedor do desenvolvimento da filosofia moderna sabe, porém, que de modo algum a análise realizada abrangeu a totalidade do pensamento burguês socialmente significativo. Paralelamente à marcha triunfal do positivismo aparecem continuamente filosofias que, embora se posicionando do ponto de vista gnosiológico em terreno distinto ou semelhante, não obstante consideram que se devem discutir os problemas “históricos” e “tradicionais” da filosofia e encontrar soluções em conformidade com a nova época. Do ponto de vista da atitude social, isto significa tanto que estes pensadores reconhecem o irresistível avanço da manipulação no capitalismo contemporâneo como inelutável, como “destino”, mas que procuram ostentar uma resistência espiritual as suas conseqüências ideológicas espontâneas, imediatas. A grande influência destes pensadores mostra que exprimiram e exprimem uma necessidade social efetivamente existente. Também aqui não podemos ter a intenção de discutir a fundo, in extenso,

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(*) Traduzido por Mário Duayer, Professor Titular do Deptº de Economia da UFF, do original em alemão Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Darmstadt: Luchterhand, 1984, Capítulo I, Neopositivismo e Existencialismo. Versão preliminar – não utilizar sem autorização expressa do tradutor.

EXCURSO SOBRE WITTGENSTEIN

G. Lukács 1. Em nossas considerações até aqui o problema da ontologia ficou deliberadamente limitado à estrutura interna da ciência, a sua manifesta relação gnosiológica com a efetividade, ao significado gnosiológico dos problemas ontológicos na apreensão de fatos concretos, etc. Mas é claro que com isso o papel das interrogações e respostas ontológicas na vida humana não está ainda suficientemente esboçado. Pois, como veremos na segunda parte ao tratar do trabalho, a correta relação do homem com a efetividade em si, que transcende a consciência, é diretamente o problema central da vida cotidiana, da práxis cotidiana. Pode-se mesmo legitimamente afirmar que a atitude científica da humanidade tem sua origem geneticamente vinculada a esta necessidade elementar. Porém, mesmo com esta gênese a questão ainda não se esgota. Em sua essência mais íntima, todo o âmbito da atividade do homem é determinado pela efetividade existente em si, ou seja, pelo seu espelhamento na consciência predominante em cada época: estas concepções atuam sobre os diversos conteúdos e formas da práxis humana. Este complexo só pode receber um tratamento adequado e aprofundado no âmbito das ciências sociais concretas, na análise concreta da práxis humana, incluída a ética. Por isso, aqui é possível apenas fornecer um esboço indicativo, sumário, dos fatos mais importantes. Apesar disso, tal esboço á inevitável porque o predomínio mundial do neopositivismo, gradualmente conquistado, tornou-se um fator decisivo na formação das modernas concepções de mundo, sobretudo diante de sua postura de neutra recusa a toda ontologia. A influência de seu predomínio na formação das concepções de mundo dá-se tanto no plano da pura teoria, como no plano estrito da práxis, no sentido mais amplo da palavra – práxis esta intimamente vinculada à teoria. Já conhecemos a atitude universalmente dominante entre os neopositivistas: trata-se do benevolente desprezo do manager, enfim adulto e maduro, pelas ilusões infantis-românticas daqueles que, não encontrando realização e satisfação no perfeito funcionamento de um mundo inteiramente manipulado, perseguem sonhos ultrapassados, originados nos estágios primitivos do desenvolvimento da humanidade. 2. Todo conhecedor do desenvolvimento da filosofia moderna sabe, porém, que de modo algum a análise realizada abrangeu a totalidade do pensamento burguês socialmente significativo. Paralelamente à marcha triunfal do positivismo aparecem continuamente filosofias que, embora se posicionando do ponto de vista gnosiológico em terreno distinto ou semelhante, não obstante consideram que se devem discutir os problemas “históricos” e “tradicionais” da filosofia e encontrar soluções em conformidade com a nova época. Do ponto de vista da atitude social, isto significa tanto que estes pensadores reconhecem o irresistível avanço da manipulação no capitalismo contemporâneo como inelutável, como “destino”, mas que procuram ostentar uma resistência espiritual as suas conseqüências ideológicas espontâneas, imediatas. A grande influência destes pensadores mostra que exprimiram e exprimem uma necessidade social efetivamente existente. Também aqui não podemos ter a intenção de discutir a fundo, in extenso,

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este movimento de protesto. Mencionamos somente Nietzsche, na segunda metade do século passado, e Bergson, na virada do século. Que a gnosiologia de Nietzsche estava muito próxima do positivismo, já o reconheceu Vaihinger, certamente uma competente testemunha, posto que ele – ao tempo do manuscrito da Filosofia do Como Se – era um dos primeiros a reinterpretar Kant em conformidade com o positivismo. Neste contexto, considerava Nietzsche, ao lado de Forberg e Lange, um companheiro de viagem, e com toda razão não o perturbava o fato de que Nietzsche construía sobre sua gnosiologia positivista uma metafísica (sem aspas) romanticamente aventureira, que tinha como essência mais ou menos o “retorno do idêntico”. A relação íntima da gnosiologia bergsoniana com o pragmatismo é por demais conhecida para ser analisada mais de perto. E a lista de tais figuras intermediárias poderia ser estendida à vontade. 3. Porém aqui nos interessa mais o presente do que a sua pré-história. Sobre o moderno e “rebelde” pólo oposto à auto-suficiência do neopositivismo, ao conformismo neopositivista diante da generalização da manipulação, já agora em pleno florescimento, enfim sobre o existencialismo falaremos em breve. Entretanto, parece-nos instrutivo, por exemplo, não somente a profunda influência de Carnap e Heidegger, como extremos opostos, sobre o pensamento moderno, mas, sobretudo, o fato de serem extremos de correntes que socialmente provêm da mesma origem, razão pela qual têm muito em comum em seus fundamentos teóricos e se completam em tal polaridade. Por isso, parece-nos necessário, antes de passar ao exame do existencialismo, aludir brevemente a um neopositivista que estava de acordo com todas as questões gnosiológicas fundamentais do neopositivismo, que muito contribuiu para fundá-lo e aperfeiçoá-lo, e que influiu essencialmente no desenvolvimento da doutrina, mas que, por permanecer ainda filósofo, e não simplesmente um manager da vida intelectual, vivenciou como problemas os tradicionais problemas da filosofia, e quando – conforme a boa ortodoxia neopositivista – expulsava estes problemas do reino da filosofia científica, sentia que se tratava de um autêntico problema, de um conflito interior: pensamos em Wittgenstein. 4. Não se necessita uma demonstração detalhada para mostrar que as concepções de seu Tractatus (consideraremos aqui apenas esta que é a mais famosa e influente obra de Wittgenstein) estão muito próximas da escola neopositivista. Também ele recusa toda problemática ontológica como metafísica, como absurda. Ele afirmou: “A maioria das proposições e questões escritas sobre coisas filosóficas não são falsas, mas absurdas. Por isso nada podemos responder a questões desta espécie, mas apenas assinalar sua absurdidade. A maioria das questões e proposições dos filósofos baseia-se no fato de que não entendemos a nossa lógica da linguagem… E não é surpresa que os problemas mais profundos não são propriamente problemas”.1 O conteúdo desta colocação está plenamente de acordo com a doutrina geral do neopositivismo, mas tem, não obstante, um acento um pouco diverso. Não somente evoca a sensação de que os problemas desterrados pela filosofia científica permanecem, a despeito de tais decretos, como problemas humanos autênticos, mas evocam igualmente uma notável discrepância na atitude interior, própria do modo de reflexão neopositivista, partidária de um mundo desprovido de ontologia, de efetividade. Wittgenstein recusa também o nexo causal,

1Wittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, London, 1955, p.62.

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encarado por ele como superstição.2 Por esta razão, considera coerentemente um mito, no sentido dos velhos mitos, uma moderna visão de mundo fundada sobre as ciências naturais, na medida em que pretenda ser visão de mundo. “Todas as modernas visões de mundo baseiam-se na ilusão de que as ditas leis naturais constituem as explicações dos fenômenos naturais. Permanecem assim, junto às leis naturais, como algo inatingível, da mesma forma que faziam os antigos com deus e o destino. E ambos têm e não têm razão. Os antigos são, todavia, mais claros, pois reconhecem claramente um fim, enquanto que no novo sistema deve parecer que tudo está explicado.”3 5. Porém, é notável e interessante que em Wittgenstein o rigoroso logicismo incline-se às vezes para uma ontologia irracionalista. Assim, ele contesta – em total conformidade com a rigorosa semântica neopositivista – que as proposições lógicas sejam o indício da universalidade, e explica sua tese segundo a qual uma proposição não generalizável também pode ser tautológica, i.e., pode ser uma proposição da lógica, tanto quanto uma generalizável. Neste contexto, porém, introduz a notável sentença: “Ser universal significa somente: valer acidentalmente para todas as coisas.”4 Ainda que a expressão fosse interpretada num sentido puramente semântico, conduziria de todo modo a conseqüências irracionalistas, já que em Wittgenstein o logicismo tem também a função de produzir, entre as proposições singulares, series homogêneas de redutibilidade de uma na outra, assim como – pelo menos no plano da manipulação das proposições – a de instituir listas de deduções logicamente conexas que excluem qualquer acidentalidade. A validade acidental do universal para os objetos, dos quais é a generalização, transformaria num absurdo todas estas conexões, porque a pura acidentalidade não é redutível nem traduzível. Mas como dificilmente se poderia esperar de Wittgenstein, extremamente talentoso no campo da lógica, uma inconseqüência metodológica desta espécie, parece-nos que esta frase deve ser atribuída a um involuntário deslize de Wittgenstein no ontológico, no qual repentinamente o ilumina uma profunda discrepância entre a própria lógica e a efetividade de repente tornada consciente. 6. Naturalmente trata-se de um episódio isolado, mas curiosamente não é o único. De fato, a franca e aberta observação sobre o solipsismo tem um caráter semelhante. De acordo com Wittgenstein, “o que o solipsismo pensava é perfeitamente correto, entretanto não pode ser dito, mas apenas mostrado. – Que o mundo é o meu mundo fica patente pelo fato de que os limites da linguagem (da linguagem compreendida apenas por mim) significam os limites do meu mundo. – O mundo e a vida são uma só coisa. – Eu sou meu mundo. (O microcosmos)… O sujeito não pertence ao mundo, é apenas um limite do mundo.”5 Isto vai além da mera revelação dos segredos da escola mencionada por Heine. Trata-se de novo da súbita percepção da efetividade, o abismo da efetividade repentinamente traga o neopositivista, e ele renega novamente, e de maneira irracionalista, o sagrado dogma da neutralidade da esfera da manipulação no que se refere à subjetividade e à objetividade. Neste caso a contraposição entre a impossibilidade de dizer – o neopositivista pode dizer tudo que é logicamente correto – e a mera possibilidade de

2ibid., p. 108. 3ibid., p. 180. 4ibid., p. 162. 5ibid., p. 150.

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mostrar, essencialmente irracionalista, denuncia uma atitude em última análise análoga à do exemplo anterior. 7. A conclusão do tratado traz uma espécie de síntese deste sentimento vital. Wittgenstein exprime-se ali com cativante franqueza: “Mesmo quando todas as possíveis questões científicas encontram respostas, ainda assim sentimos que nossos problemas vitais de modo algum foram contemplados. Decerto não resta então qualquer questão; e justamente essa é resposta. – A resolução do problema da vida faz notar o desaparecimento deste problema. (Não é por esta razão porque as pessoas, para as quais o sentido da vida deveio claro após longas dúvidas, não puderam então dizer de que consiste tal sentido?) – Existe certamente o inefável, este se mostra, é o místico”. E é importante que essa ordem de idéias seja precedida pelo aforisma: “O místico não é como o mundo é, mas que ele é.”6 Sob este aspecto, e não sob o ponto de vista de um positivismo conseqüente, conclui o Tractatus com máxima coerência: “Sobre o que não se pode falar, deve-se silenciar”.7 No entanto, quando a resposta de um filósofo sobre o que são os problemas vitais consiste na prescrição do silêncio, que outro significado pode haver nisso senão a confissão da falência desta própria filosofia? Falência, naturalmente, não do ponto de vista do puro neopositivismo, que floresce, prospera e está conformisticamente feliz nesta situação; mas do ponto de vista da filosofia tal como sempre foi entendida pela humanidade desde seu despertar para a consciência e autoconsciência. Diante das conseqüências de sua própria filosofia, Wittgenstein se refugia aqui no irracionalismo, só que é muito inteligente e muito lúcido filosoficamente para querer fazer desse abalo ontológico uma filosofia irracionalista própria. Persiste com suas coisas, com o neopositivismo, e, diante do abismo, diante do beco sem saída de seu próprio pensamento, recolhe-se em um orgulhoso e recatado silêncio. Em tal silêncio, entretanto, é expresso um profundo não conformismo: sob a ótica da vida, dos genuínos problemas vitais, a universalidade da manipulação é qualificada fútil, anti-humana e degradante para o pensamento humano autêntico. O comportamento de Wittgenstein é – considerado, naturalmente, sob o plano do puro pensamento – inconsistente até à insustentabilidade. Justamente por isso, no entanto, expressa – por assim dizer, com um gesto filosófico – algo extremamente importante e contraditório para a presente situação social: o pensamento (e, sobretudo, o sentimento) daqueles que não vislumbram qualquer saída da manipulação universal da vida pelo capitalismo atual, mas que são capazes de contrapor tão somente um protesto – o silêncio de Wittgensten – antecipadamente impotente.

6ibid., p. 186. 7ibid., p. 188.