Guillermo O'Donnell, Transições Cum Autoritarismo

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GUILLERMO 0'DONNELL, TRANSIÇÕES CUM AUTORITARISMO Análise do Autoritarismo Burocrático, de Guil- lermo 0'Donnell, tradução de Cláudia Schilling. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, 428 pp. Paulo Sérgio Pinheiro O retorno à Constituição e ao Estado de Di- reito, e ao governo civil, como última etapa das transições políticas contemporâneas, muito em es- pecial na América do Sul, não significa que a partir desse momento a democracia é estabelecida. O fim da ditadura não é necessariamente, já aprendemos, a custo, o começo da democracia. Um estudo de processos de transição democrática que se limi- tasse ao exame das instituições políticas poderia fazer crer que a guerra explícita das relações de poder que prevalecera durante a ditadura fosse então suspensa. E que as relações de força entre as classes passassem por mágica a ser presididas pela cidadania política. Mas, sabemos, em especial de- pois de Michel Foucault, toda pacificação da vio- lência imposta pelo Estado é sempre falsa. E se esse apontamento vale no geral, as pacificações do ar- bítrio após as transições políticas são em grande medida ilusórias para a maior parte da população. As graves violações de direitos humanos, endêmi- cas em muitos países que recente mente transita- ram da ditadura para a democracia, podem ser um indicador seguro da continuidade do arbítrio e do terror em tempos de paz civil. 188

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Paulo Sérgio Pinheiro

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GUILLERMO 0'DONNELL, TRANSIÇÕES CU M A U TO RITA RISM O

Análise do Autoritarismo Burocrático, de Guil-lermo 0'Donnell, tradução de Cláudia Schilling. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, 428 pp.

Paulo Sérgio Pinheiro

O retorno à Constituição e ao Estado de Di-reito, e ao governo civil, como última etapa das transições políticas contemporâneas, muito em es-pecial na América do Sul, não significa que a partir desse momento a democracia é estabelecida. O fim da ditadura não é necessariamente, já aprendemos, a custo, o começo da democracia. Um estudo de

processos de transição democrática que se limi-tasse ao exame das instituições políticas poderia fazer crer que a guerra explícita das relações de poder que prevalecera durante a ditadura fosse então suspensa. E que as relações de força entre as classes passassem por mágica a ser presididas pela cidadania política. Mas, sabemos, em especial de-pois de Michel Foucault, toda pacificação da vio-lência imposta pelo Estado é sempre falsa. E se esse apontamento vale no geral, as pacificações do ar-bítrio após as transições políticas são em grande medida ilusórias para a maior parte da população. As graves violações de direitos humanos, endêmi-cas em muitos países que recente mente transita-ram da ditadura para a democracia, podem ser um indicador seguro da continuidade do arbítrio e do terror em tempos de paz civil.

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Na ciência política, poucos como Guillermo 0'Donnell conseguiram fazer o percurso da análise dos regimes autoritários, da compreensão dos pro-cessos de transição e da avaliação do legado do autoritarismo e das continuidades como impasses para a democratização. Como teve ele condições de realizar esse périplo quando tantos outros para-ram em algumas dessas estações? Raras análises políticas abriram caminhos e conseguiram dar uma reviravolta sobre seus próprios termos. Para a argu-mentação aqui desenvolvida o ponto de partida é a Análise do Autoritarismo Burocrático (doravante referido como AAB), que acaba de ser publicado pela Paz e Terra.

A explicação mais evidente é a extraordinária capacidade de observação de Guillermo O'Don-nell, resgatando os requisitos dos pais fundadores da ciência política. Seu olhar sofrido com as iniqui-dades da matança argentina nos anos 1970 ou diante da hierarquia, o clientelismo, o racismo e a dissimulação da opressão no Brasil — para onde se transferiu da Argentina — definiram poderosa-mente os objetos de sua reflexão. No prefácio à edição brasileira deixa patente amargas conclusões de alguns de seus estudos posteriores, que aqui levaremos em conta, ao qualificar as novas demo-cracias como "débeis, institucionalmente pobres e até agora incapazes de aliviar, para não dizer resol-ver, as enormes injustiças e desigualdades que vêm historicamente de longe e que os respectivos regi-mes burocrático-autoritários, que promoveram ou não algum crescimento econômico, só as tornaram mais agudas" {AAB, p. 16). Fina sensibilidade que lhe permite pousar com imensa delicadeza sobre os temas, com o cuidado de impedir que o horror testemunhado na ditadura não embace as imagens descobertas após a transição. Uma dedicação mili-tante pela verità effeluale, indagação quase amo-rosa pelos fatos, pelas cenas e pelos protagonistas.

Uma nova concepção de Estado

A mais longínqua, a primeira explicação está na formulação do conceito de burocrático-autori-tário que permitiu à ciência política abandonar as análises redutoras dos regimes de exceção milita-res coladas ao aparelho repressivo de Estado e ao institucional-jurídico. Sem falarmos das remanes-

centes atribuições conspiratórias herdadas das análises do fascismo na vertente da Terceira Inter-nacional. O'Donnell desenvolve a categoria de autoritarismo, num intenso diálogo com Juan Linz, Albert Hirschman, David Apter, Kalman Silvert, Alfred Stepan, Phillipe Schmitter e Abraham Lo-wenthal, para lembrar apenas alguns. Abrindo uma vertente totalmente inovadora para a com-preensão das ditaduras latino-americanas, ao expor engates de tipo novo, estruturais e superes-truturais (ainda que cada vez seja mais difícil pen-sar a superestrutura como descolada da estrutura), entre a tecnoburocracia, civil e militar, do Estado, e os empresários.

Por sua vez o tipo, assim chamemos, burocrá-tico-autoritário tem condições de ser formulado graças a uma concepção do Estado não mais encer-rado nos conteúdos de exclusiva instrumentali-dade nas mãos da burguesia. Não estamos diante de "um Estado da burguesia", mas de um Estado capitalista que garante e organiza as relações so-ciais capitalistas, o que "inclui as classes domina-das, embora sua garantia destas seja no sentido de repô-las ou reproduzi-las como classes domina-das" (AAB, p. 25). O Estado é não somente o "fiador coativo" mas também o organizador das relações sociais capitalistas. Para O'Donnell o Es-tado é parte da sociedade, perdendo aquela apa-rência "fetichizada do Estado-aparelho frente aos sujeitos sociais", não mais aparecendo como um terceiro externo às relações fundamentais entre aqueles sujeitos, considerado o Estado como parte daquelas relações. O fato de o Estado se apresentar como agente do interesse geral, em consequência dessa posição especial, revela seu papel dissimula-dor mas indica igualmente um outro lado de ver-dade que é "o ocultamento de um lado de falsi-dade": esse interesse geral é parcializado, pois visa assegurar a vigência e a reprodução de certas rela-ções sociais.

Os limites dessa defesa do interesse geral pelo Estado ficam mais claros porque 0'Donnell, além de dar conta do burocrático-autoritário,focaliza as etapas oligárquicas anteriores aos períodos da in-tervenção das classes populares, mostrando como a categoria povo mascarou as restrições à cidada-nia. Com efeito, esta "ficou ligada ao debate sobre as formas oligárquicas da democracia política, res-trita e cheia de blefes, que tinha sido e continuava parecendo um eficaz mecanismo de contenção da

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eclosão popular" (AAB, p. 33). A discussão sobre democracia soava então como uma "farsa", perce-bida mais como um expediente para conter aquela eclosão, do que instrumento para favorecer a cida-dania das classes populares.

Mas logo em seguida há um apontamento que i rá dar condições a 0'Donnell de transi tar das transformações das instituições macropolíticas pa-ra os impasses da micropolítica nas fases posterio-res das transições que tanto o inquietaram. Será o que ele chamou no conjunto das outras crises (de governo, regime, acumulação) de crise de domina-ção celular , "trata-se de uma crise no fundamento da sociedade (incluindo [...] o Estado), das relações sociais que constituem as classes e suas formas de articulação" (AAB, p. 55). Para examinar essa crise 0'Donnell já aponta áreas de investigação que irá retomar depois da grande pesquisa Transições do Regime Autoritário e Primeiras Conclusões (São Paulo, Vértice, 1988), com Philippe Schmitter e Lawrence Whitehead, como pautas de deferência em relação ao "superior" social, questionamentos da autoridade na família e na escola, do mando no local de trabalho. Para não hesitar em qualificar que essa "é a crise política suprema: crise do Es-tado, mas não só, nem tanto, do Estado como aparelho, mas sim no seu aspecto fundamental do sistema social de dominação do qual é parte. Essa crise é a crise do Estado na sociedade, que natural-mente repercute a nível de suas instituições. Mas só pode ser entendida em toda a sua profundidade como crise da garantia política na dominação so-cial" (AAB, p. 56).

É essa noção de crise de dominação celular, como crise no s is tema de dominação do Estado, que dará condições a 0'Donnell de utilizar o con-ceito de "microdespotismo" — confluência com a micro-sociologia de Gabriel Tarde, retomada por Foucault, e das microcenas nas configurações pen-sadas por Norbert Elias — nos mais variados con-textos sociais. Para entender como o autoritarismo penetra, através de práticas — não necessaria-mente ideologia —, de forma capilar na sociedade, para implantar, tornando-as efetivas , "a ordem e autoridade, vertical e paternalista com que o pró-prio governo—e o regime que se tentou implantar em seus momentos mais triunfais — se concebia a si mesmo" (0'Donnell, G., "Democracia en la Ar-gentina: Micro y Macro", in Oszlak, Oscar, org., Proceso, Crisis y Transición Democrática, Buenos

Aires, Centro Editor de America Latina, 1984, p. 15). No caso argentino (registro que mais tarde irá com-parar com microcenas na sociedade brasileira), ali surpreende as diversas manifestações de autorita-rismo e intolerância: "O moralismo puritano e hi-pócrita da direita e, não poucas vezes, da esquerda; a sempre remanescente visão maniqueísta e para-nóide de nossa história e seus fracassos; o racismo de não poucos, não somente no anti-semitismo, mas também no arrogante mito do país 'branco' e 'europeu' em face de uma América Latina índia e mulata; a fenomenal repressão dos costumes e identidade sexuais; a interação [...] entre a autori-dade educacional repressiva e infantilizante, por um lado, e rebeliões de raiva anômica, pelo outro; a reprodução de um modelo duramente patriarcal de organização familiar" ("Democracia...", p. 25).

Essas observações de Guillermo 0'Donnell vão permitir que se identifique uma espécie de resistência à democratização nesse nível da domi-nação celular que exige alargar a pesquisa — como ele entre poucos fez — além do sistema político propriamente dito. A abordagem de O'-Donnell nos sugere o deslocamento das institui-ções políticas (que por sua vez não são deixadas de lado, pois os bloqueios também se reproduzem nelas, apesar do governo civil e da Constituição) para as microcenas das interações concretas, os microdespotismos que sobrevivem ao burocrático-autoritária

Esse apontamento de O'Donnell tem duas consequências principais. Uma ao nível do con-ceito de legado de autoritarismo, que passa a ser investigado não somente como a consequência imediata da ditadura dos burocráticos-autoritários Outra como efeito da reprodução do autoritarismo que perpassa a dominação oligárquica, os populis-mos, a transição e os novos regimes democráticos. Não se trata de um legado cristalizado, mas um legado que se atualiza e se transforma.

Outro desenvolvimento posterior desta ver-tente de análise a partir de AAB é que o autorita-rismo, além das suas articulações propriamente ditas ao nível do Estado, está "socialmente implan-tado", apontamento suscitado pelas observações sobre o caso brasileiro. Insistimos em que esse instigante registro somente pode ser feito pela con-cepção do Estado atuando não acima mas dentro do campo de forças na sociedade. Michel Debrun tem demonstrado insistentemente que as pautas

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violentas do Estado na sociedade brasileira não são impostas pelo Estado, mas são suscitadas pelas próprias pautas autoritárias vigentes, no quadro de um hiato larguíssimo entre as classes sociais, umas correspondendo às outras, e não sendo originadas pelas práticas violentas (ilegais) por parte dos apa-relhos do Estado. O'Donnell, ao mais tarde expor alguns exemplos de apropriação privada do es-paço público em São Paulo (no tráfego, em estacio-namentos públicos), indagará se "essas microcenas têm algo a ver com o grande tema da privatização ou colonização do aparelho estatal, e com o patri-monialismo e o prebendalismo como modos domi-nantes de governar e de fazer política?" ("Situa-ções", Novos Estudos Cebrap, 22, outubro de 1988:45-52, p. 46).

Cautelosamente, 0'Donnell julga no final deste mesmo artigo que seria "apressado — e me-todologicamente sacrílego — argumentar que mi-crocenas e macrodramas se relacionam direta-mente ou se refletem mutuamente", mas reconhece que nessas relações pode estar o enten-dimento dos grandes dramas da política. E aponta alguns dos problemas que poderiam ser explica-dos por esse foco nas microcenas: "incapacidade de delimitar o público e o privado e, a partir disso, na enorme dificuldade de construir as instituições e elaborar as regras a partir das quais seja possível arquitetar as dimensões cívica e republicana, sem as quais jamais alcançaremos um regime democrá-tico" ("Situações", p. 51). Sob a cautela, estava formulada uma inovadora proposta de ir além das macrocenas para melhor entender o precário fun-cionamento das instituições políticas depois da transição.

Violência

Essa descida aos infernos das microcenas deu condições para retomar nos regimes pós-transição uma questão que já havia trabalhado na análise dos burocráticos-autoritários: a repressão e o medo. Não desprezou portanto as condições da evolução do monopólio da violência do Estado, agora no quadro do regime constitucional normal. São pou-quíssimas as análises da transição que deram re-levo a esses aspectos: Alfred Stepan, ao tratar da violência por excelência no aparelho militar; Tho-

mas Skidmore, ao relacionar as pautas de repres-são durante a ditadura à repressão comum; e Phil-lippe Schmitter, ao indicar os altíssimos níveis de ilegalidade do novo regime democrático. E O'Don-nell. Temos dele uma das mais devastadoras inter-pretações disponíveis sobre a dependência de nos-sas classes dominantes e governantes em relação à violência física aberta, à violence ouverte, para fa-larmos como Pierre Bourdieu. E mérito maior, fa-zendo articular esse recurso rotineiro à violência ilegal com os sistemas de hierarquia que sempre asseguraram a reprodução das formas de domina-ção no Brasil.

Esse desvendamento ficou mais realçado por ter sido feito no quadro comparativo entre o Brasil e a Argentina, dando-lhe condições de iluminar as duas. Foi o que lindamente realizou no ensaio "E Eu com Isso? Notas sobre sociabilidade e política na Argentina e no Brasil" (in O'Donnell, G., Contra-pontos. Autoritarismo e Democratização, São Paulo, Vértice, 1986), em que se encontra todo o domínio do conhecimento do autoritarismo burocrático e das transições.

Por toda a história do Brasil, as práticas dos aparelhos repressivos e das classes dominantes foram caracterizadas por um alto grau de ilegali-dade, independentemente da existência ou não de garantias constitucionais. Para os pobres, miserá-veis e indigentes que sempre constituíram a maio-ria da população, durante a Colônia, o Império e a República podemos falar de um regime de exceção que sobrevive a toda forma de regime, constitucio-nal ou autoritário. A história da repressão e da violência no Brasil sempre privilegiou os momen-tos de regime de exceção legal, mas deixou de lado os períodos normais em que os públicos-alvo dessa repressão não são mais dissidentes políticos, mas aqueles contingentes da população.

Justamente porque 0'Donnell na sua concep-ção de Estado tem clara a noção de que ele não é um estranho no sistema de relações sociais, mas lhe pertence, pode ver que a reprodução das pau-tas de dominação, às vezes na fronteira do terror, tinha algo a ver com resistências estruturais além do sistema político, além da figura de metáfora do jogo de xadrez a níveis múltiplos da transição (Transições..., p. 109). Era razoável esperar, le-vando em conta a evolução histórica do Brasil, que a modificação do regime político não implicaria a desmontagem dessas resistências ou continuidade,

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porque essas estruturas autoritárias não são depen-dentes do regime político. Era difícil perceber esses aspectos antes de O'Donnell. Michel Debrun havia mostrado com grande clareza o formidável hiato em termos de poder e cultura entre os dominantes e os mais dominados, reproduz ido com recurso a altos níveis de coerção. Roberto da Marta, relido por 0 'Donnel l, há muito já havia levantado em microcenas vários núcleos de relacionamento em torno das questões de hierarquia, violência, ordem e desordem. 0'Donnel l prolongou essas luminosas anotações à luz das perguntas e dos problemas dos processos de t ransição e de democra t ização. De-pois de ter. chamado a atenção para "as escassas e frágeis mediações institucionais existentes entre a polí tica e a sociedade, que expressam e reforçam os e no rme s h ia t os que se pa ra m as ' e l i t e s ' da grande maioria da população" ("Transições, Conti-nuidade e Alguns Paradoxos", in Reis, F.W. & O'-Donnel l, G. A Democracia no Brasi l . Dilemas e Perspectivas, São Paulo, Vértice, 1988, p. 66), O'- Donnell em seus vôos se lançará num maravilhoso looping, aquela extraordinária acrobacia em que o piloto com seu avião efetua um laço voando de cabeça para baixo no ponto mais alto da curva, prosseguindo assim até completar o desenho do círculo. O'Donnell parte das perguntas sobre o autoritarismo-burocráticq das questões do ma- cropolítico, tendo uma visão do Estado não instru- mental exclusivamente para a burguesia, passa pela transição, avança pela micropolítica, e retoma ao terminar o laço novamente o macropolítico, mas numa nova perspectiva.

E então podemos concluir, depois do seu vôo, que os governos autoritários foram bem-sucedidos por tão longo tempo (e às vezes com baixo em-prego de violência fatal durante a ditadura no Bra- sil, se comparado com a Argentina: não mais que 500 desaparecidos em face de mais de 30.000, numa população seis vezes menor) porque eles puderam fazer valer alguns traços básicos da cul- tura e das práticas autoritárias. O decisivo foi dar mais um passo e reconhecer que as relações de poder depois do final do autoritarismo-burocrá-tico, ao nível das microcenas, não se alteram subs-tancialmente: os "micro e os macro-horrores de cada autoritarismo — os que já vêm socialmente implantados, e os que se tenta implantar politica-mente contra sociedades mais rebeldes" (Contra-pontos, p. 141) — terão de ser discriminados se

quisermos conhecer os possíveis rumos dos novos governos depois da transição...

E justamente "porque o autoritarismo está tão socialmente implantado no Brasil, o aparelho es-tatal foi e, sobretudo, apareceu, tão poderoso e decisivo, e acaparou tanto a encenação dos gran-des episódios da vida nacional" (.Contrapontos, p. 141) que depois da transição será extremamente complicado reformar a violência ilegal. O Estado no governo civil e naquele democraticamente eleito continua a segregar práticas arbitrárias, não mais em consequência da ilegalidade da ditadura, mas porque, como já vimos antes, essas reiteram e ecoam práticas autoritárias vigentes nas relações interpessoais que podem ser identificadas através do exame das microcenas. Se o espaço da repre-sentação política, mediação que permitia o reco-nhecimento da dupla condição de cidadão e povo, na Argentina foi arrasado por forças sociais muito organizadas, no Brasil "esse espaço é demasiado estreito, porque não se assenta em um sistema de representação no qual estejam incluídos aqueles para os quais tal mediação é diferencialmente mais importante, porque se acham nas camadas inferio-res de uma marcada hierarquia social" (Contrapon-tos, p. 142). Essa ausência estigmatiza a sociedade política, que no Brasil "não é senão, não pode ser, além das intenções e dos discursos, um espaço tão estreito como elitista" (Contrapontos, p. 142).

Seria pueril esperar que o tempo da transição da ditadura para o governo civil e o governo eleito logo em seguida pudessem provocar mudanças quase por reflexo ao nível desse autoritarismo, que está mais implantado ao nível das práticas, das mentalidades (Michel Debrun diria das ideologias secundárias), das doutrinas ou das mudanças cons-titucionais. Em vez de mudança a esse nível há mais continuidade: constatação que vai permitir a O'-Donnell introduzir a distinção básica que deverá abalar a retórica das transições. Na realidade, for-mula 0'Donnell, os processos de democratização comportam não uma, mas duas transições: uma, do regime autoritário até ser instalado o governo de-mocrático; a outra, deste governo até a efetiva vi-gência de um regime democrático. Em muitos paí-ses — Brasil, Argentina, Uruguai, Peru, Equador e República Dominicana, que realizaram a primeira transição, a segunda será igualmente prolongada.

Num momento recente, O'Donnell radicali-zará essa distinção ao afirmar que nada garante que

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essa segunda transição será feita um dia: "novas democracias podem regredir para o regime autori-tário, ou elas podem atolar-se numa situação frágil e incerta. Essa situação pode ser duradoura, pode inclusive não abrir caminhos para a realização de formas mais institucionalizadas de democracia" ("Democracia Delegativa?", artigo publicado neste número de Novos Estudos). Para demonstrar os fatores que irão determinar essa perspectiva de longa e imprevisível democratização, O'Donnell chama atenção para um aspecto da continuidade do pessoal político do regime anterior, com a ma-nutenção de "um estilo predominante de fazer po-lítica" marcado pelo clientelismo e pelo prebenda-lismo oligárquico: aliás vigente antes, durante e depois do regime autoritário, um alto grau de con-tinuidade do regime burocrático-autoritário brasi-leiro, tanto em relação ao passado, quanto ao pe-ríodo atual. Sendo a base de funcionamento deste sistema, "patrimonialista e inerentemente persona-lista, a outorga aos poderosos, dos quais depende o seu funcionamento, de prebendas em troca de apoios. Para baixo, o mecanismo principal que faz funcionar o sistema é o clientelismo (na verdade, as prebendas são o primeiro degrau de uma série de hierarquias clientelistas" ("Transições...", p. 66). Esse intrincado percurso em espiral faz com que Guillermo 0'Donnell vá quebrar os espelhos mágicos em que se miravam e se confirmavam como triunfantes na democracia os protagonistas remplis de soi-même dos novos regimes. Dos cacos irrompe o mais implacável retrato, o mais com-pleto que se tem até agora na ciência política, da conjuntura atual. Pesam sobre o processo brasi-leiro imensas desigualdades, ao lado das "arcaicas e repressivas relações sociais sobre as quais se

apóia sua burguesia e, num sentido mais geral, o sistema de dominação social" ("Hiatos, Instituições e Perspectivas Democráticas"' in Reis, Fábio Wan-derley & 0'Donnell, G., A Democracia no Brasil. Dilemas e Perspectivas, op. cit., p. 73). Um autori-tarismo que "flutua no largo mar de uma tradição sociocultural em que a distância subjetiva entre as classes é extremamente grande" ("Transições...," p. 75), agravado pelo peso da herança da escravidão. Sociedade na qual as "relações de força enraizadas numa história que, no caso do Brasil, se apresenta repetidamente enviesada contra a emergência das classes dominadas enquanto sujeitos políticos dife-renciados" ("Transições...", p. 78). As consequên-cias tiradas dessas constatações são sombrias: man-tendo-se essa configuração a democracia resultante seria "sumamente elitista, continuaria provocando as múltiplas disrupções que o estilo patrimonialista impõe a uma sociedade e econo-mia tão complexas, ratificaria um padrão particu-larmente enviesado de crescimento e distribuição e mais ou menos desembaraçadamente seria re-. pressiva de boa parte da população" ("Transi-ções...", p. 85).

A pergunta sobre se estamos diante de uma transição estagnada parece ganhar resposta afirma-tiva à medida que mais elementos são indicados. E o que era ontem cenário possível, hoje se agrava mais ainda na realidade. É scienza política como nossos pais fundadores queriam que fosse feita. Reflexão fundadora, exigente, rigorosa da qual Análise do Autoritarismo Burocrático foi o lumi-noso momento de partida.

Paulo Sérgio Pinheiro é professor de ciência política da FFLCH e diretor do Núcleo de Estudos da Violência, USP.

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