GUILLAUME, Paul. Introdução à Psicologia - Prefácio
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INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA
PAUL GUILLAUME
Prefácio
A Psicologia é uma ciência? Teria ela o mesmo valor e o mesmo sentido que as outras
ciências? Os psicólogos tendem a afirmá-lo, enquanto que em geral os filósofos crêem ver
entre a psicologia e as ciências uma oposição radical. Essa idéia assume formas variadas.
1o A psicologia, como ciência da alma, opõe-se às ciências da natureza. A alma humana
e a natureza seriam dois reinos distintos, dois mundos antinômicos. O espiritualismo cartesi-
ano, de que continuamos impregnados, opõe as duas substâncias material e espiritual, a ex-
tensão e o pensamento, que não têm nenhum atributo comum. As propriedades que defi-
nem o mundo material, espaço, forma, movimento são estrangeiras ao mundo moral; inver-
samente, o primeiro não possui nenhum dos atributos do segundo: consciência, pensamen-
to, desejo, vontade. A união das duas substâncias é, aliás, o grande mistério desse sistema
das idéias claras; torna-se difícil compreender as relações daquilo que se tem tão bem sepa-
rado.
2o Independentemente de toda interpretação substancialista, opõem-se uma ciência
do objeto e uma ciência do sujeito. O eu e o não eu, o centro de consciência e as coisas de
que há consciência, a atividade de conhecimento e os fatos conhecidos afiguram-se a certos
filósofos como tão profundamente diferentes que eles rejeitam a idéia de uma ciência do
sujeito que se situasse sobre o plano das outras disciplinas científicas. A verdadeira ciência
do sujeito seria a teoria metafísica do conhecimento, a reflexão crítica que destaca as condi-
ções lógicas de toda ciência e de toda consciência. Recusam-se a ver no pensamento que
constrói o mundo um fato cujas condições haveria boas razões para buscar no que sabemos
do mundo assim construído, para explicar o conhecimento pelo conhecido; esse problema,
que responde a uma parte do programa da psicologia, parece a esses filósofos factício e ilu-
sório. Se se lhe reconhece ainda o direito à existência, a psicologia, assim mutilada, não é
mais que uma simples descrição dos fenômenos ou não alcança mais que suas condições de
alguma maneira patológicas. A crítica do “realismo vulgar” ao qual ela está associada reduz
muito seu interesse e seu alcance.
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3o Se se reconhece sua legitimidade, seu método a opõe todavia a todas as outras ci-
ências. Estas são voltadas para fora, enquanto que ela olha para dentro. A observação, nas
ciências da natureza, é uma extrospecção: o observador permanece exterior ao fato que es-
tuda: o mundo físico é comum, aberto a todos; várias testemunhas podem observar o mes-
mo fato e o controle mútuo é possível. Ao contrário, a observação psicológica é uma intros-
pecção na qual o observador coincide com seu objeto: ele se curva sobre ele mesmo, apro-
funda sua vida interior por uma tomada de consciência mais aguda e mais penetrante; aliás,
ele é o único a se conhecer dessa maneira; o mundo dos pensamentos e dos sentimentos é
fechado, privado, secreto. Por conseguinte, enquanto que a ciência do objeto, que comporta
uma interpretação do dado, é falível e relativa, a do sujeito, na qualidade de conhecimento
imediato, é infalível e absoluta; o fato a conhecer não é distinto do conhecimento que dele
toma atualmente o sujeito; ele está compreendido em sua própria essência. Assim a intros-
pecção, desfavorecida pela impossibilidade do controle, é por outro lado privilegiada pela
ausência de toda intervenção que possa ser causa de deformação e de ilusão (para dizer a
verdade, se ela é infalível, o controle torna-se inútil). Qualquer que ele seja, esse modo de
investigação parece não ter nada em comum com aquele das ciências da natureza.
4o A antítese precedente retorna àquela da coisa (ou do fato) e do fenômeno. A noção
de coisa ou de fato tem sem dúvida como ponto de partida as sensações do observador, mas
elas não são senão signos a interpretar; o que nós chamamos um fato físico, um objeto físico,
é um sistema de dados sensíveis ligados por leis, é o resultado de uma construção. Ao con-
trário, a psicologia retorna ao ponto de partida; ela considera os estados de consciência ori-
ginais neles mesmos, os “fenômenos” no sentido primitivo da palavra; ela visa o dado e não
mais o construído. Seu movimento vira as costas àquele das ciências da natureza. E isto é tão
verdadeiro que os espíritos que partem do pólo físico para se fazer uma concepção do real
chegam a excluir de alguma maneira desse real os fenômenos que são o objeto próprio da
psicologia; eles produzem “epifenômenos” que não têm lugar numa explicação causal; então
a psicologia não é mais uma ciência, se “vere scire per causas scire”. Mas que se faça do fe-
nômeno a própria realidade ou que aí se veja a mais vã das aparências, seu estudo direto não
poderia se situar sobre o mesmo plano que o conjunto das ciências. As fenomenologias que
nos convidam a esse retorno aos dados imediatos nos avisam que ele exige a rejeição de to-
dos os conceitos com os quais essas ciências encadearam nosso pensamento, um amoleci-
mento ― talvez mesmo uma negação ― de nossa inteligência.
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5o Dessas diferenças de objeto e de método resulta que se a física chega a leis gerais e
satisfaz assim a regra de Aristóteles ― não há ciência senão do geral ―, não parece que pos-
sa ser do mesmo modo da psicologia. Vê-se mal como o conhecimento do sujeito por ele
mesmo poderia libertar-se de sua subjetividade essencial. Toda generalização torna-se aqui
conjectural, dizemos mesmo falsa, pois os fatos não se repetem mais, aqui, a vários exempla-
res, como tiragens de uma mesma matriz, nem de um indivíduo a outro, nem no mesmo in-
divíduo. O vivido é sempre vivido por alguém, logo inseparável de um temperamento, de
uma personalidade que ele exprime, e também de uma história da qual nenhum momento é
idêntico ao outro; ele continua enriquecendo-a e organizando-a. A psicologia estuda fatos
individuais e singulares.
6o O objeto físico se constrói por meio da medida e do número. O fato é inserido no
quadro de funções que as matemáticas prepararam; as ciências da natureza aspiram desco-
brir leis quantitativas e religá-las por uma dedução; elas são ciências à medida que o conse-
guem. Mas por isso mesmo elas desprezam todo um outro lado do real; elas transpõem as
diferenças qualitativas em diferenças geométricas e mecânicas, pelo menos para as qualida-
des segundas, cor, calor, odor, etc., pois existem ainda incontáveis qualidades “terciárias” das
quais elas se desinteressam completamente, aquelas dos sentimentos, dos valores afetivos e
morais. A psicologia ocupa-se precisamente de toda essa riqueza do vivido que a ciência da
natureza ignora; ainda aí seus interesses são divergentes e, por conseguinte, seus métodos: a
medida dá lugar à análise descritiva.
7o A física pode chegar a leis porque o domínio que explora é aquele da necessidade.
Talvez essa necessidade tenha limites, mesmo em física; mas, quaisquer que sejam, esses
limites seriam também aqueles da ciência, que se define pela previsão e pela ação que essa
previsão dirige. Ninguém contesta a possibilidade de leis físicas, e a aproximação que elas
comportam lhe assegura um grande valor. O mesmo acontece em psicologia? Não se conhe-
ceriam, dizem, verdadeiras leis, previsões certas, não somente por causa da instabilidade e
da complexidade da causalidade psíquica, mas por causa de sua própria natureza. Uns se
contentam em opor aqui o determinismo interno do pensamento àquele da natureza, a ne-
cessidade lógica à necessidade física como duas noções irredutíveis. Outros, indo mais longe,
encontram na atividade psíquica uma contingência radical; fazem uma criação, uma livre
produção, imprevisível e original, de um futuro que não estaria em nenhum aspecto contido
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no passado. Se o determinismo está ligado à própria idéia de ciência, é preciso então ou con-
vir que a psicologia não é uma ciência, ou aplicar essa palavra num sentido totalmente novo.
8o As ciências, separando-se aos poucos da filosofia, tornam-se autônomas; definiram
seu objeto e seu método próprios, foram cultivadas cada vez mais por sábios especializados.
Muitos espíritos recusam-se a admitir que a psicologia esteja destinada a seguir a mesma
evolução. Ela permaneceria, ao contrário, solidária à filosofia; talvez nem mesmo seria real-
mente distinta dela. Posto que seu objeto se define precisamente pelo que as outras ciências
desprezam, posto que se propõe a restaurar em sua realidade e em seus direitos o sujeito em
face do objeto, que as outras disciplinas se dividem, seu ponto de vista permanece geral; ela
deve consumar a unidade do conhecimento corrigindo uma visão científica do mundo abstra-
to e unilateral, restabelecendo as partes ao todo, mostrando as relações do espetáculo e do
espectador, unindo aos objetos que conhece os valores que lhes atribui. Mas não é isso pre-
cisamente o programa de uma filosofia? Assim, enquanto que as outras ciências são mais ou
menos separáveis e separadas de fato da filosofia, a psicologia encontra na própria filosofia a
razão de sua existência e da definição de seus problemas.
9o Dessas oposições teóricas resultam oposições práticas. Diferenças tão profundas no
objeto, no método, no alcance do trabalho exigem que se empregue um espírito diferente. A
formação intelectual dada pelas ciências da natureza prepara mal as ciências morais. Uma
cultura matemática, física ou biológica arriscaria o psicólogo a fazer perder de vista as carac-
terísticas próprias ao objeto que estuda; ela proporcionar-lhe-ia o hábito da abstração, a su-
perstição do número e do instrumento. Sua verdadeira formação deve ser buscada nos estu-
dos literários e históricos. Eles o mantêm na intimidade do homem e das coisas humanas,
que são seu objeto essencial; cultivam e aprimoram nele o sentido das realidades morais e
sociais concretas e da relatividade do conhecimento que nos é acessível. E os dons naturais
que os dois tipos de ciência exigem são diferentes; reencontrar-se-ia aqui a oposição da
construção e da intuição, da razão e da simpatia, do espírito de geometria e do espírito de
graça.
Assim, sobre todos os pontos ― objeto, método, princípios, valor, lugar e papel ― a
psicologia parece opor-se completamente a todas as ciências: tal é a conclusão convergente
de críticas provenientes de doutrinas e de pensadores muito diferentes. Entretanto, o pró-
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prio desenvolvimento que seguiu a psicologia contemporânea parece convidar-nos a nos
afastar desse juízo e a não tomar essas oposições por definitivas.
A psicologia não tende a se desvincular da filosofia? Na realidade, a maior parte dos
psicólogos, qualquer que seja sua atitude metafísica, encontra nas questões empíricas e con-
cretas um interesse direto, independentemente da contribuição que suas observações pos-
sam suscitar à dialética de tal ou qual metafísica. Seria necessário tomar-se uma posição so-
bre os problemas especulativos das relações da alma e do corpo, do espírito e da matéria,
para se estudar as leis da percepção, da memória, etc.? De fato, essa independência parece
efetivamente obtida.
O valor empírico das noções de sujeito e de objeto não está em questão, mas qual é o
seu alcance? Conduz a uma dualidade irredutível da ciência e do método? Estudar o sujeito
não é necessariamente tratá-lo como objeto? É o que faz já a introspecção, se é verdadeiro
que este método implica um desdobramento, no qual o pensamento torna-se o objeto do
pensamento. A razão mais forte nos métodos objetivos, que conquistaram na psicologia con-
temporânea o primeiro lugar; parece perfeitamente legítimo estudar o homem ― ou o ani-
mal ― em seu comportamento, para definir suas funções mentais. Aqui o observador é dis-
tinto do objeto observado e seu método é aquele que se aplicaria a um objeto físico; é sus-
ceptível ao mesmo controle experimental.
A oposição de ciência do fenômeno e do fato, do dado e do construído parece mais
teórica que real. O problema científico essencial é aquele da causalidade; a psicologia real
não se confina jamais na fenomenologia; ela busca leis; trabalha sobre fatos construídos
(censuram-na mesmo construí-los). A prova é que a maioria dos psicólogos, longe de atribuir
a suas observações a infalibilidade dos conhecimentos diretos, tem o sentimento muito vivo
de sua incerteza; não crê nas ilusões da consciência e alguns querem até rejeitar a introspec-
ção, que acusam fornecer a todas as idéias pré-concebidas um testemunho condescendente.
As ciências morais não são as únicas a estudar indivíduos. Não mais que as ciências bio-
lógicas; elas não se reduzem, contudo, à monografias individuais. É indubitável que o geral
pode se separar do individual quando se o trata pelos métodos adequados e, da mesma for-
ma, dessa realidade histórica a qual dizem não se repetir.
As objeções contra a medida não convenceram os psicólogos. Enquanto a filosofia de-
monstrava a priori a fragilidade do empreendimento, eles criaram métodos de medida que
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são atualmente de emprego corrente. Ninguém é menos disposto do que eles a superestimar
o valor e a significação desses resultados quantitativos.
Finalmente, os psicólogos, buscando as condições e as leis dos fatos que estudam, dão
crédito ao determinismo, ou pelo menos o colocam como uma hipótese de trabalho, sem a
qual nenhuma pesquisa concreta teria sentido nem mesmo poderia definir seu objeto. Natu-
ralmente, os autores dessas pesquisas não podem se enganar sobre a medida na qual verifi-
cam essa hipótese; eles somente esperam melhorar suas aproximações. A modéstia convém
a uma jovem ciência; mas a esperança não lhe é proibida.
O filósofo fala naturalmente da psicologia como de um conhecimento acabado, defini-
tivo, que não acrescentará nada de essencial ao que se pode encontrar nas obras dos mora-
listas e dos filósofos. O psicólogo, ao contrário, tem o sentimento muito vivo de sua ignorân-
cia das funções mentais e de suas condições; as soluções tradicionais lhe parecem vãs; ele vê
novas maneiras de abordar os problemas, e, sobretudo, vê problemas novos a pôr. Este esta-
do de espírito deve-se, sobretudo, à influência das ciências naturais. Não somente a técnica e
os aparelhos têm sido importados do laboratório de fisiologia, mas o novo espírito da pes-
quisa vem daí. Que a imitação tenha sido às vezes servil e inábil é incontestável e era inevitá-
vel. Mas este inconveniente não era nem muito grande nem muito durável; o objeto de uma
pesquisa experimental impõe paulatinamente suas exigências e corrige as imperícias do iní-
cio. A psicologia constitui, pouco a pouco, um material, uma técnica, um espírito. Mas per-
manece, por sua orientação geral, homogênea com as ciências naturais às quais ela deve sua
renovação.
Mas não basta constatar esta evolução. A existência de uma atitude não é jamais uma
prova suficiente de sua validade; ela somente convida-nos a refletir, a pôr o problema da
revisão das oposições tradicionais. Trata-se de apreciar o direito à existência dessa psicologia
científica, e o bem fundado de suas pretensões. Seu desenvolvimento de fato não desarmou
as prevenções. Os pesquisadores, que têm o sentimento do interesse e da solidez de seus
trabalhos, estão mais preocupados em continuá-los do que em justificar o princípio e defen-
dê-los contra as críticas. É esta tarefa que nós vamos empreender. Ela nos conduzirá pelos
problemas filosóficos inevitáveis e frequentemente obscuros, mas nos obrigará a vê-los sob
um ângulo novo e a modificar sua forma clássica. O advento de uma ciência nova se impõe a
seus adeptos antes que se possa compreendê-la, pois para compreendê-la, para situá-la e
apreciar o alcance, é preciso revisar as visões tradicionais que fazem obstáculo a este desen-
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volvimento. Tem sido obra de homens que escapam desta influência da tradição, frequente-
mente por uma ignorância feliz, por uma negligência de problemas dos quais se distanciam
instintivamente ou cuja solução correta lhes parecia prematura. A filosofia desta psicologia
permanece ainda por fazer.