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Pensando as relações internacionais a partir da periferia: a contribuiçãode Walter Mignolo.

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  • Pensando as relaes internacionais a partir da periferia: a contribuio

    de Walter Mignolo.

    1. Introduo

    Os estudos ps-coloniais nas relaes internacionais apontam para as

    origens eurocntricas da disciplina e seu estabelecimento formal no sculo XX

    nos Estados Unidos. Porm, qual a importncia das relaes internacionais

    para aqueles que esto na periferia do sistema internacional? De que relaes

    internacionais estamos falando quando nos pronunciamos a partir da periferia?

    A obra do intelectual argentino Walter Mignolo, sobretudo Histrias

    locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento

    liminar, pode ser utilizada para pensarmos uma descolonizao das relaes

    internacionais a partir da Amrica Latina.

    Nossa proposta, neste captulo, discutir de que forma o pensamento

    liminar teorizado por Walter Mignolo capaz de contestar conceitos bsicos

    de relaes internacionais, como o de sociedade internacional, soberania e

    racionalidade. Ou ainda, como o pensamento liminar, aquele que se d a

    partir da linha, desestabiliza a dicotomia Inside/Outside que est na base da

    constituio da disciplina de relaes internacionais.

    2. A Sociedade Internacional: formao a partir das Amricas e no

    da Europa.

    O conceito tradicional de sociedade internacional, por exemplo,

    questionado a partir da constatao de Mignolo, ao lado de outros autores,

    como Anbal Quijano, de que h uma co-constituio entre Europa e Amrica

    Latina. A conexo do Mediterrneo com o Atlntico atravs de um novo

    circuito comercial, no sculo XVI, lana as fundaes tanto da modernidade

    quanto da colonialidade (2003, p.81).

    Antes de 1492, ou seja, antes da chegada de Cristvo Colombro

    Amrica, no podemos falar em uma histria global. Com a invaso e no

    descoberta - da Amrica, o circuito atlntico substitui o mediterrnico e

    Espanha e Portugal passam a contribuir para a formao da Europa. Na viso

  • de Mignolo, assim como na de Anbal Quijano e Enrique Dussel, a Ibria ocupa

    lugar central na modernidade e na constituio da subjetividade moderna.

    Holanda, Inglaterra e Frana vo apenas seguir o caminho iniciado pela

    Espanha e por Portugal.

    No entanto, na narrativa hegemnica sobre a modernidade aquela

    presente tanto em Hegel quanto em Habermas -, a contribuio de Espanha e

    Portugal no sculo XVI silenciada, pois, este perodo associado Idade

    Mdia. Para Dussel, a conquista da Amrica a condio de possibilidade para

    a Europa conseguir uma vantagem comparativa em relao a seus vizinhos do

    Oriente (Turcos, Muulmanos, Chineses).

    Nesse sentido, Mignolo enfatizar que, antes do orientalismo, tivemos

    ocidentalismo. Foi a subjugao do extremo ocidente (a Amrica) que permitiu

    Europa instituir-se como sujeito moderno conhecedor do Oriente (objeto) e

    criar o orientalismo. Quijano chama a ateno para a co-constituio identitria

    entre a Europa e a Amrica Latina, o que tambm as torna contemporneas.

    Podemos dizer que a Amrica Latina entrou na modernidade como o primeiro

    Outro que seria submetido e explorado. S aps fortalecer-se nesta co-

    constituio com a Amrica Latina, a Europa pode voltar-se para a explorao

    do Oriente.

    Uma narrativa histrica alternativa, constituda a partir da Amrica

    Latina, procura desvendar o lado obscuro da modernidade. Esta, apresentada

    como o auge da racionalidade, tambm possui seu momento de

    irracionalidade, representado pelo colonialismo. Mais: no se trata de superar a

    razo como tal, mas apenas seu lado violento, abrindo a possibilidade para o

    que Dussel chama de transmodernidade: a transmodernidade seria um projeto

    mundial de liberao tica no qual a alteridade (...) poderia tornar-se plena

    (2000, p. 473).

    Uma histria escrita a partir da Amrica Latina no usaria, por exemplo,

    a expresso descoberta da Amrica, mas sim o termo invaso. Segundo

    Dussel, para os povos que aqui habitavam, tratou-se de uma invaso a seu

    territrio e destruio de seu modo de vida. A descoberta pressupe um

  • sujeito europeu que realiza uma ao de des-vendar, des-cobrir um objeto (a

    Amrica) que estava encoberto. Consequentemente, esta narrativa tradicional -

    reiterada em 1992 pela Espanha, por ocasio dos 500 anos da descoberta

    nega a agncia da Amrica Latina, representando o continente como uma

    massa aptica que teria sido descoberta e moldada de acordo com os valores

    europeus.

    Na Filosofia da Histria de Hegel, a Amrica Latina est

    localizada fora da Histria; ela teria sido um lugar vazio at a chegada dos

    europeus, que assumiram o fardo de transmitirem seus valores ao continente

    at que ele atingisse o nvel alcanado pela Europa.

    3. A diferena colonial e o pensamento liminar

    Uma das teses de Mignolo a de que a epistemologia e o pensamento

    modernos tm uma origem europeia e, ao viajarem para a Amrica, esbarram

    na diferena colonial. O ponto de chegada sempre contaminado pela

    diferena colonial. No entanto, justamente por conta desta contaminao

    pela diferena colonial que possvel haver produo de conhecimento na

    Amrica. Ao contrrio, a partir do local da diferena colonial que novas

    epistemologias podem emergir, epistemologias que Mignolo denominar

    pensamento liminar. A aposta de Mignolo de que na literatura e na

    filosofia, e no nas cincias sociais, que a Amrica Latina e o Caribe

    conseguem falar a partir de seu local geoistrico. Enquanto as cincias sociais

    nos Estados Unidos e nas universidades europeias so sobre a Amrica

    Latina, a literatura e a filosofia na Amrica Latina no so sobre a Amrica

    Latina, mas, arrisco-me a dizer, a partir da Amrica Latina (MIGNOLO, 2003,

    p. 266).

    A ideia de pensamento liminar de Mignolo deve muito noo de gnose

    africana, desenvolvida por Valentin Mudimbe em seu estudo sobre a inveno

    da frica. A gnose incluiria formas de conhecimento que a filosofia e a

    epistemologia europeia subaltenizaram nos processos imperiais coloniais. A

    gnose liminar de Mignolo um lcus dicotmico de enunciao que se situa

  • nas fronteiras do sistema mundial colonial/moderno. Portanto, a fronteira o

    lugar de um potencial epistemolgico.

    Mignolo recorre a autores como Hle Bji e Edouard Glissant, que,

    segundo ele, tm propostas ligadas a uma razo ps-ocidental. Bji, por

    exemplo, sugere uma cultura mundial que resultaria do pensamento liminar e

    que estaria ligada a uma razo ps-ocidental. Na mesma linha, Glissant refere-

    se possibilidade de uma cultura mundial no hegemnica. Nos dois casos,

    estaramos distantes do universalismo europeu que perpassa as teorias

    tradicionais de relaes internacionais.

    Ao considerar a desconstruo de Jacques Derrida, Mignolo mostra as

    suas limitaes, o que a distinguiria do pensamento liminar. Ela no se

    constituiria a partir das margens e fronteiras, mas a partir do pensamento

    europeu e da metafsica europeia. Uma coisa desconstruir a metafsica

    ocidental enquanto a habitamos e outra trabalhar com a descolonizao como

    forma de desconstruo, a partir da exterioridade histrica da metafsica

    ocidental.

    Derrida estaria situado dentro da metafsica ocidental e, portanto, no

    teria como empreender um movimento descolonizador que partisse da

    exterioridade da metafsica. O problema no seria uma desconsiderao

    deliberada pelo colonialismo. Segundo Mignolo, Derrida est consciente dos

    males do colonialismo e, portanto, chega a pens-lo como objeto de estudo. O

    que Derrida no consegue perceber, diz Mignolo, a diferena colonial

    epistemolgica. Ou seja, a crtica de Derrida ao logocentrismo ocidental nos

    deixaria ainda dentro de uma epistemologia moderna ocidental. A

    desconstruo nos apresenta uma crtica vlida, mas que esbarra no

    monolinguismo. A questo da lngua ser fundamental para entender este

    ponto. A desconstruo contribui para o pensamento liminar ao no conceber a

    lngua como instrumento neutro de uma epistemologia objetiva. No entanto,

    sua contribuio termina neste ponto. Ela no consegue ir alm porque, apesar

    de no ver a lngua como instrumento neutro, ela trabalha dentro do

    monolinguismo da cultura europeia.

  • Mignolo cita Abdelkebir Khatibi como um exemplo de escritor que cria

    um pensamento liminar alm do monolinguismo da desconstruo. Khatibi

    refere-se a um outro pensamento, que desloca a desconstruo da

    metafsica ocidental de seus limites para um esforo descolonizador. A

    desconstruo torna-se descolonizao no espao fraturado do bilinguismo e

    do bilinguajamento (MIGNOLO, 2003, p. 80). Khatibi pensa entre lnguas, no

    caso, o francs e o rabe, e esta caracterstica de seu pensamento o afastaria

    da desconstruo, que no apresenta este movimento de pensar a partir da

    fronteira, a partir do entre lnguas.

    4. Pensando a partir da periferia: Oswald, Dussel e Viveiros de

    Castro.

    4.1 Antropofagia

    A nosso ver, a antropofagia qualifica-se como uma epistemologia a partir

    do local geoistrico da Amrica Latina. A Antropofagia afirmar que no somos

    uma cpia da Europa nem adotamos a epistemologia moderna ocidental como

    forma de conhecimento. Ao contrrio, nunca admitimos o nascimento da lgica

    entre ns (ANDRADE, 1928). Nunca fomos catequizados. Fizemos foi

    Carnaval (Ibid). Contra todos os importadores de conscincia enlatada. A

    existncia palpvel da vida. E a mentalidade pr-lgica para o Sr. Lvy-Bruhl

    estudar (Ibid). E ainda: no tivemos especulao. Mas tnhamos adivinhao

    (Ibid). O manifesto antropofgico insurge-se contra o conhecimento lgico,

    especulativo, racionalista europeu, mostrando que h uma forma de

    conhecimento antropofgico relacionada concretude da experincia, ao

    Carnaval, ao hibridismo, pardia, ao humor e adivinhao.

    Em suma, a antropofagia de Oswald seria uma espcie de pensamento

    liminar, de um outro pensamento ou, ainda, de uma filosofia feita a partir da

    Amrica Latina, como dir Dussel. O Manifesto Antropofgico realiza um

    processo de descolonizao da desconstruo. A frase Tupi, or not tupi that is

    the question repete a estrutura da frase de Hamlet, mas em vez do suposto

    universalismo do Ser ou no ser, Oswald mostra que h uma especificidade

  • cultural em Tupi ou no tupi. Esta a nossa questo, a questo do colonizado

    e no uma especulao metafsica sobre o ser.

    Nossos problemas no so os mesmos dos europeus, aponta Oswald.

    Ao contrrio dos relatos da literatura europeia do sculo XX sobre a

    desconstruo do sujeito moderno, na literatura latino-americana o sujeito est

    marcado, desde o incio, pelo fracasso. Um protagonista de Beckett conserva a

    consistncia discursiva de um ex-sujeito cartesiano transcendental. J o

    protagonista de um romance latino-americano no tem a mais remota

    experincia do sujeito cartesiano.

    Entendemos que a antropofagia um exemplo de desconstruo

    descolonizadora ou, em outras palavras, a antropofagia capaz de tornar

    complementares a desconstruo e a descolonizao do saber. Ela atuaria no

    sentido de fazer com que as limitaes da desconstruo sejam superadas

    pela diferena colonial e as limitaes da descolonizao corrigidas pela

    desconstruo. Vimos acima, na crtica de Mignolo, as limitaes da

    abordagem desconstrutiva. A seguir, veremos as limitaes da descolonizao

    que poderiam ser complementadas pela desconstruo.

    Uma das possibilidades de descolonizar o saber seria optar pelo plo

    no-europeu, mas esta deciso, a nosso ver, implicaria uma simples inverso

    da dicotomia europeu/no-europeu em que o segundo termo ganharia

    precedncia e valor em relao ao primeiro. No incio da modernidade,

    intelectuais mestios, como Garcilaso de la Vega, o Inca, Huaman Poma de

    Ayala, Santa Cruz Pachacuti Salcamayhua e Blas Valera, realizaram a

    inverso, defendendo o legado aborgine, a autenticidade cultural. O mesmo

    processo de inverso ir aparecer no famoso ensaio de Robert Morse, O

    espelho de Prspero, no qual o autor hipervaloriza o latino-americano, e ainda

    no Ariel, de Jos Henrique Rod, que defendia a herana cultural hispnica

    de todos os povos ibero-americanos contra o utilitarismo norte-americano.

    O problema desta abordagem que ela acaba por confirmar a

    sensao de no estar de todo, do mal-estar na dependncia, do

    descompasso temporal entre metrpole e colnia. Como salientava Srgio

  • Buarque, a prpria nfase com que afirmamos esse antagonismo constitui uma

    confisso de fraqueza.

    Edward Said recai no mesmo problema de Rod: a inverso pura e

    simples. Em Orientalismo, Said analisa a relao entre saber e poder e chega

    concluso de que o orientalismo, o saber europeu sobre o oriente, um

    saber interessado, destinado a subordinar os povos do Oriente Mdio. No

    entanto, a interpretao de Said acaba por afirmar um essencialismo simtrico

    e inverso, ou seja, reifica o Ocidente.

    O erro de Rod e Said mostra os riscos de se utilizar apenas o primeiro

    movimento da desconstruo a inverso para descolonizar o saber. No

    caso de Said, a inverso levou a uma essencializao do Ocidente, que

    Mignolo denominar de ocidentalismo. Ou seja, a inverso apenas substitui

    uma essencializao por outra ou repe um fundamentalismo no lugar de

    outro.

    Para Mignolo, o Ocidente no uma essncia, mas uma construo que

    se iniciou no sculo XVI. Antes do orientalismo, tivemos ocidentalismo. Foi a

    subjugao do extremo ocidente (a Amrica) que permitiu Europa instituir-se

    como sujeito moderno conhecedor do Oriente (objeto) e criar o orientalismo.

    4.2 Uma Filosofia latino-americana

    Na Filosofia da Histria de Hegel, a Amrica Latina est localizada fora

    da Histria; ela teria sido um lugar vazio at a chegada dos europeus, que

    assumiram o fardo de transmitirem seus valores ao continente at que ele

    atingisse o nvel alcanado pela Europa. Portanto, o eurocentrismo resulta no

    que Dussel denominar desenvolvimentalismo:

    o pensamento de que o caminho seguido pelo desenvolvimento moderno da Europa pode ser seguido unilateralmente por qualquer outra cultura. O desenvolvimento considerado aqui como uma categoria ontolgica, e no apenas como uma categoria sociolgica ou econmica. Ele o movimento necessrio do Ser para Hegel (Dussel, 1995, p. 68). para Hegel (Dussel, 1995, p. 68).

  • Na concepo hegeliana, o desenvolvimento dialeticamente linear e

    tem uma direo determinada, um movimento necessrio do Oriente para o

    Ocidente, sendo o Ocidente europeu o ponto de chegada do desenvolvimento

    do Esprito Absoluto. Nesta trajetria, a Amrica Latina e a frica esto

    ausentes devido sua localizao no hemisfrio Sul.

    Dussel chama a ateno para o fato de ambas serem consideradas por

    Hegel como regies ainda na infncia e que no teriam Histria.

    Consequentemente, seus povos tambm estariam numa situao de

    imaturidade, precisando ser conduzidos pelos civilizados europeus. Mas no

    por qualquer europeu. Aqui tambm Hegel far distines entre a Europa do

    Sul (Portugal, Espanha, sul da Frana e Itlia) e a do Norte e do Noroeste

    (Alemanha, Inglaterra, Frana e os pases escandinavos). Embora o sul

    europeu tenha tido importncia na antiguidade, ele no carrega o

    desenvolvimento em seu ncleo. Esta caracterstica pertenceria Europa do

    Norte e do Noroeste. Em suma, Hegel no s relega a Amrica Latina a um

    lugar fora da Histria, mas minimiza o papel de Portugal e Espanha no

    desenvolvimento da modernidade. As relaes entre os pases ibricos e a

    Amrica Latina no sculo XVI no so consideradas fundamentais para a

    compreenso da modernidade.

    Na filosofia hegeliana, no h, portanto, a co-constituio e a

    contemporaneidade entre Europa e Amrica Latina apontadas por Quijano.

    Negar a contemporaneidade significa colocar a Europa como modelo para a

    Amrica Latina. Como lembra Fernando Coronil, este modo de historicidade

    satura a vida poltica com a sndrome do ainda no, uma perspectiva que

    descreve algumas sociedades como sempre ainda no civilizadas, ainda no

    industrializadas, ainda no modernas (CORONIL, ano, p. 246). O advrbio de

    tempo ainda coloca as sociedades contemporneas numa escala temporal.

    Ele realiza o que o antroplogo Johannes Fabian chama de negao da

    contemporaneidade (FABIAN, apud CORONIL, ano, p.246), quando

    sociedades que coexistem na contemporaneidade so distribudas em perodos

    histricos diferentes.

  • Contra uma Filosofia da Histria hegeliana, Dussel recorre ao pensador

    latino-americano Leopoldo Zea, que defendia uma filosofia da histria da

    Amrica Latina distinta da filosofia da histria europeia e ocidental. Em Zea, a

    concepo de histria no a de uma sucesso linear de acontecimentos rumo

    a um aperfeioamento da Humanidade, como aparece em Kant e Hegel. A

    Histria aqui ganha o sentido de um acontecimento ou evento situado no

    nvel da vida cotidiana; uma conscientizao dos latino-americanos sobre sua

    prpria histria.

    No entanto, Dussel considera que essa conscientizao proposta por

    Zea seria apenas um primeiro passo. Precisaramos, diz Dussel, de mais do

    que conscientizao, precisaramos de uma filosofia latino-americana que

    possa dialogar com a filosofia hegemnica euro-norte-americana.

    Historicamente, a comunidade filosfica euro-norte-americana e

    tambm a comunidade filosfica hegemnica na Amrica Latina sempre

    ignorou as filosofias perifricas, condenando-as a um lugar fora da histria da

    filosofia. Tambm em termos epistemolgicos e filosficos, a Amrica Latina

    o Outro da comunidade filosfica euro-norte-americana. A ligao ocidental

    estabelece-se aqui claramente nesta excluso da Amrica Latina como o lugar

    que produz uma outra filosofia.

    Por esta razo, no basta recorrermos a uma histria do pensamento

    latino-americano, como tem sido feito por vrios autores. Referir-se

    simplesmente a um pensamento latino-americano muito vago e no implica

    necessariamente a constituio de uma filosofia no sentido estrito. O que

    Dussel defende uma utilizao do discurso, da problemtica e dos mtodos

    da comunidade filosfica hegemnica para elaborarmos uma filosofia no

    sentido estrito que possa interpelar aquela comunidade hegemnica. Ela

    poderia ainda introduzir no debate problemticas e categorias at agora

    ausentes da filosofia euro-norte-americana. Mas, apesar de ser uma filosofia

    no sentido estrito, ela difere da filosofia euro-norte-americana por ser marginal,

    explorada.

  • A nosso ver, a proposta de Dussel pode ser interpretada como uma

    tentativa de evitar uma polarizao entre uma filosofia essencialmente

    europeia e outra essencialmente latino-americana. O reconhecimento de que

    a filosofia latino-americana marginal no significa que ela deva abrir mo do

    rigor metodolgico pois este no uma exclusividade do discurso hegemnico

    filosfico europeu. Se nos contentssemos com um pensamento latino-

    americano como mera reflexo sobre nossa posio perifrica, estaramos

    contribuindo para reforar a dicotomia entre Europa/razo e Amrica

    Latina/sentimento. Parece ser isto que Dussel quer evitar (ele no renega o

    racionalismo iluminista; apenas seu lado irracional e violento). Ao mesmo

    tempo, adotar o rigor metodolgico do discurso filosfico hegemnico no

    equivale a imitar a filosofia europeia. Ao contrrio, a filosofia produzida a

    partir da periferia significa uma razo do Outro (Dussel, 1993, p. 75) que

    produz categorias inditas.

    4.3 O Perspectivismo amerndio

    Um exemplo de pensamento elaborado a partir da Amrica Latina pode

    ser ilustrada pelo conceito de perspectivismo amerndio, cunhado por Eduardo

    Viveiros de Castro. O perspectivismo amerndio seria um outro pensamento

    capaz de interpelar a filosofia e a modernidade ocidentais. O perspectivismo

    amerndio no pressupe categorias como sujeito e substncia; estes no

    existem a priori, mas so produto de uma relao. Esta concepo subverte a

    tradio filosfica europeia, a qual toma a substncia como um dado e as

    relaes como uma consequncia.

    Poderamos dizer que o privilgio da relao sobre a substncia tambm

    uma caracterstica do pensamento ps-positivista desenvolvido por europeus.

    O poder em Foucault no uma substncia, mas uma relao. E o conceito de

    diffrance de Derrida primordialmente relacional; o sentido s se produz a

    partir de uma relao entre os significantes. No entanto, no pretendemos

    equiparar o pensamento amerndio ao pensamento ps-positivista europeu; o

    ps-positivismo europeu no leva em conta a diferena colonial. Justamente

    para chamar a ateno para nossa especificidade, Viveiros de Castro utiliza o

    termo diferona, uma mistura da diffrance de Derrida com a palavra ona,

  • que faria referncia ao universo amerndio. No perspectivismo, a relao

    adquire uma caracterstica diferente da que aparece no ps-positivismo: a

    incorporao. A diferona uma relao de incorporao canibal. O modo

    bsico de relacionamento amerndio a caa, a predao do outro.

    Historicamente, a incorporao canibal foi associada ao mito pelo

    pensamento hegemnico eurocntrico. Como explicar o canibalismo a no ser

    por meio dos mitos e da des-razo presentes nas culturas amerndias? O

    perspectivismo amerndio resgata o mito do canibalismo de seu lugar de

    conhecimento subalterno e destitudo de razo. O mito canibal no o oposto

    da razo, mas um pensamento rigoroso como queria Dussel - sobre

    incorporao, predao, transformao a partir da periferia e da diferena

    colonial. Em suma, pode-se falar de um cogito canibal (VIVEIROS DE

    CASTRO, 1995, p. ).

    No entanto, este cogito se caracteriza por negar qualquer tipo de

    dogma. Viveiros de Castro mostrou que o tema da inconstncia da alma

    selvagem (Il selvaggio mobile) era bastante comum nos relatos dos europeus

    sobre os amerndios. O problema dos ndios no estava na falta de inteligncia,

    mas na ausncia de duas outras potncias da alma: a memria e a vontade.

    Tudo o que aprendiam rapidamente era esquecido em pouco tempo e

    substitudo por novos conhecimentos. No se fixava em suas mentes,

    comprometendo o trabalho dos missionrios.

    Esta interpretao teria, em parte, algum fundamento. Ela de fato

    corresponde a algo que se pode experimentar na convivncia com muitas

    sociedades amerndias (VIVEIROS DE CASTRO, 2001, p. 191). A concepo

    ocidental de cultura pressupe uma paisagem povoada por esttuas de

    mrmore, ou seja, toda sociedade tende a perseverar no seu prprio ser.

    Nossas identidades, tradies, memrias so constitudas no mrmore e

    custam a ser modificadas. Na linguagem do Padre Antonio Vieira, citado por

    Viveiros de Castro, estas seriam naes de mrmore. Ao contrrio, no cogito

    canibal, o conhecimento rapidamente aprendido, mas tambm esquecido.

    Teramos ento naes de murta, na definio de Vieira.

  • A inconstncia no ocorre apenas em relao ao cardpio ideolgico

    ocidental, mas tambm, e de um modo ainda mais difcil de analisar, de sua

    relao consigo mesmas, com suas prprias e autnticas ideias e instituies

    (Idem). Essa inconstncia resultaria numa abertura ao outro, como j havia

    assinalado Claude Lvi-Strauss. Em seu estudo sobre a tribo tupi-guarani dos

    Arawet, Eduardo Viveiros de Castro havia definido o cogito canibal como a

    topologia do devir-outro, totalmente contrrio ao narcisismo (1995, p.). A

    prtica colonial era narcsica porque tentava tornar o outro igual a si prprio,

    como num jogo de espelhos. Por isso, os conquistadores se arvoravam o

    direito de levar o cristianismo aos indgenas. Em contraste, o cogito canibal

    quer se tornar o outro, devir-outro, ser absorvido pelo outro. Em vez de

    narcisismo, h uma entrega e abnegao absolutas. O ato canibal no visa a

    transformar o outro (como o conquistador narcisista), mas alterar a si prprio

    com base no outro (quem come que se altera). Ou seja, o canibal no

    pretende preservar a sua identidade pois no isto o que lhe importa. No h

    substncia identitria em meio inconstncia. O que o canibal almeja o

    estabelecimento de uma troca, uma relao. Como j dito, o perspectivismo

    amerndio no pressupe um sujeito e uma substncia, portanto, no faz

    sentido preservar uma identidade substancial, como ocorre nas naes de

    mrmore.

    Segundo Viveiros de Castro, a incorporao canibal do outro obriga o

    homem a sair de si: o exterior estava em processo incessante de

    interiorizao, e o interior no era mais que movimento para fora (2011, p.

    220). A fronteira presente neste cogito , portanto, bem diferente daquela que

    separa o sujeito moderno de seu exterior ou o Estado moderno do ambiente

    internacional anrquico.

    Um outro aspecto do canibalismo apontado pelos antroplogos (Viveiros

    de Castro, 2011; Obeyesekere, 2005) diz respeito ao dilogo que precedia o

    ato canibal. A conversa com o Outro no visava a inculcar no outro sua prpria

    cultura (num discurso monolgico) e eventualmente puni-lo com o canibalismo

    caso no se adequasse aos preceitos ensinados. No se tratava de convencer

    o outro a ser igual a si. Tanto o matador quanto a vtima conversavam sobre a

  • relao de dependncia que se estabeleceria entre seus grupos por meio da

    vingana canibal. O matador proclamava o ato canibal como vingana de uma

    ao passada, enquanto a vtima advertia que o seu grupo o vingaria no futuro.

    No havia uma relao de subservincia entre o matador e a vtima pois ambos

    tinham direito palavra e construo de uma narrativa. A conversa era

    dialgica; duas vozes trocavam experincias e relacionavam-se de forma

    simtrica. A antropofagia canibal era dialgica, o Outro tinha a sua alteridade

    preservada.

    5 Concluso:

    O pensamento liminar, aquele que se d a partir da fronteira, do limiar,

    da ciso entre duas formas de pensar ou entre duas lnguas, coloca em xeque

    a prpria base da disciplina de relaes internacionais: a dicotomia

    inside/outside (Walker, 2003). As categorias de modernidade, soberania,

    cidadania nacional, racionalidade e, consequentemente, de relaes

    internacionais so desafiadas por um pensamento que se constitui a partir da

    fronteira, sendo que esta no uma divisria, mas um espao de trocas

    constantes, tal como na antropofagia.

    A antropofagia canibal nos introduz numa concepo de tempo e histria

    dialgica em que a voz da vtima escutada no mesmo momento em que se

    ouve a voz do matador. O ato canibal no o resultado de uma assimetria em

    que uma cultura superior tenta assimilar outra inferior e situada num estgio de

    desenvolvimento anterior. A incorporao canibal se realiza entre duas culturas

    que esto numa relao simtrica: coexistem num mesmo tempo e uma

    depende da outra para a preservao de sua memria.

    Os inimigos eram os guardies da memria coletiva:

    a memria do grupo nomes, tatuagens, discursos, cantos era a memria dos inimigos. Longe de ser uma afirmao obstinada de autonomia por parte dos parceiros desse jogo (como quis Florestan, e mais tarde Pierre Clastres), a guerra de vingana tupinamb era a manifestao de uma heterenomia primeira, o reconhecimento de que a heteronomia era a

  • condio da autonomia (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 241).

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