Guarani - Ana Freitas - Relatorio Mato Preto - 2004.PDF
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RELATÓRIO AMBIENTAL CIRCUNSTANCIADO
Tekoá Ka�a ty
Grupo de Trabalho para Identificação e Delimitação Terra Indígena Guarani Mato Preto, Rio Grande do Sul.
Portaria Presidencial No. 948, de 16 de julho de 2004. ISSN 1676-2347
Ana Elisa de Castro Freitas Ambientalista � Consultora UNESCO
Porto Alegre, novembro de 2004.
2
RELATÓRIO AMBIENTAL CIRCUNSTANCIADO
Tekoá Ka�a ty
Grupo de Trabalho para Identificação e Delimitação Terra Indígena Guarani Mato Preto, Rio Grande do Sul
Portaria Presidencial No. 948, de 16 de julho de 2004. ISSN 1676-2347
Relatório Ambiental apresentado ao Departamento de Identificação e Delimitação da Fundação Nacional do Índio como um dos quesitos ao processo de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Mato Preto, RS.
___________________________ Ana Elisa de Castro Freitas
Ambientalista � Consultora UNESCO [email protected]
Porto Alegre, novembro de 2004.
3
Senhor Presidente da República Senhor Ministro da Justiça Senhor Presidente da Funai Tekoá Ka�aty / Terra Indígena Mato Preto, 19 de setembro de 2004. �Nós escolhemos esta área porque antes de os brancos se apossarem da nossa terra, os nossos avós, nossos tios moravam nesta área, eles só saíram porque os brancos colonizadores, próprio Estado, os expulsaram desta área... (...) Sabemos que naquele tempo existia muita mata, muitos frutos nativos, muitos animais selvagens, muitos rios, muitas fontes...e hoje queremos que esta terra seja demarcada para nós recuperar tudo aquilo que foi perdido dos poucos que restou... (...) Queremos este espaço de volta para que as nossas crianças tenham saúde, e que tenhamos de novo os nossos remédios tradicionais, as nossas fontes com água pura, porque tudo isso para nós é uma fonte de saúde e também para que nós possamos continuar preservando as nossas tradições... (...) para não sermos mais massacrados como nossos avós, pedimos que a demarcação seja feita com atenção e com urgência�.
A�evete xeruvixa, Nhanderu tonhagareko
- Muito obrigado, Autoridades. Que nosso Pai Verdadeiro proteja vocês -
Trechos de carta escrita pela comunidade Guarani da TI Mato Preto durante os trabalhos de campo do GT.
4
Sumário
Introdução 5 I. Histórico da ocupação e manejo dos ambientes 9 regionais por indígenas e não-indígenas II. O ambiente da região de estudo 15 Bioma 16 Clima 17 Geomorfologia e pedologia 17 Hidrografia e Paisagem 19 Vegetação e relevo 36 Fauna e Biodiversidade 43 III. Problemas ambientais verificados em campo e situação das áreas de entorno 53 IV. Histórico dos estudos antropológicos enfocando a TI Mato Preto 58 V. Manejo Guarani na TI Mato Preto: ocupação e recursos naturais 63 Atividades realizadas em campo 63 Aspectos metodológicos 65 Caracterização geral do grupo Guarani da TI Mato Preto 67 Rede de reciprocidade 70 Economia e sustentabilidade nas condições de acampamento 72 Acampamento 74 Casas 76 Água 78 Fogo 79 Manejo e recursos naturais 80 Coleta vegetal 81 Caça 86 Pesca 91 Horticultura 92 Criação de animais 98 Arte índia 100 Circulação do artesanato indígena nos mercados locais 104 Meio Ambiente e Recursos Naturais na Ecologia Simbólica Guarani 105 VI. Contribuição ambiental à definição dos limites da TI Mato Preto 114 VII Considerações finais e recomendações gerais 125 VIII Literatura consultada e referida 131 IX Anexos X Apêndices
5
Introdução
O presente Relatório é produto dos estudos ambientais que integram os
trabalhos de identificação e delimitação da Terra Indígena Guarani Mato Preto (TI
Mato Preto), determinados pela Portaria Presidencial No 948, de 16 de julho de 2004,
e inseridos no contexto do Projeto 914BRA3018 � FUNAI PRODOC1.
A equipe técnica que compõe o Grupo de Trabalho (GT) designado pela
referida Portaria é constituída por Flávia Cristina de Mello (antropóloga-
coordenadora), Ana Elisa de Castro Freitas (ambientalista), Flávio Luiz Gorni
(engenheiro agrimensor) e Paulo Augusto Sendeski (técnico em agricultura e
pecuária).
Os pressupostos teórico-metodológicos adotados nos estudos ambientais se
situam na interface entre os campos da Ecologia, das Etno-Ciências e da
Antropologia Social. As informações, imagens e dados técnico-científicos que
compõem o texto visam subsidiar e informar o processo administrativo de
demarcação da TI Guarani Mato Preto, no que se refere ao cumprimento do artigo
231 da Constituição Federal de 1988, conforme o estabelecido pela Portaria Nº 14,
de 09 de janeiro de 1996, e considerando a legislação ambiental vigente.
Os trabalhos de campo ocorreram em agosto de 2004 e se estenderam por 30
dias. Durante este período foram realizadas pesquisas nos departamentos da
FUNAI/DF, FUNAI/AER/PDF-RS, no Ministério Público Federal em Passo Fundo-RS,
assim como incursões na área reivindicada e seu entorno, na companhia de
especialistas Guarani. Neste contexto, merecem destaque as profícuas interlocuções
com o xamã Ernesto Kuaray Pereira e sua esposa Lurdes Ara Martins.
O processo de identificação e delimitação da TI Mato Preto é fruto da
reivindicação de um grupo indígena pertencente à etnia Guarani Xiripá. No momento
dos trabalhos de campo, o referido grupo se encontrava acampado na área
reivindicada, na altura da divisa entre os municípios de Getúlio Vargas e Erebango,
norte do Estado do Rio Grande do Sul. O espaço reivindicado integra um ambiente
que reúne remanescentes florestais e águas pertencentes à região hidrográfica do
Alto Curso do Rio Uruguai, intensamente colonizada ao longo do século XX.
1 UNESCO/FUNAI
6
O acampamento indígena marca a retomada da Tekoá Ka�aty, antiga unidade
político-social Guarani, cujo território correspondia aos ambientes da Floresta Matto
Preto. A área de acampamento compreende uma faixa de cerca de 50 x 200m
situada às margens da RS 135 e próxima aos trilhos da RFFSA. Durante o período
de campo, o grupo indígena reunia uma população de 50 pessoas, agrupadas por
laços de consangüinidade e afinidade em 10 famílias nucleares, por sua vez
articuladas em uma mesma família extensa. Este grupo reconhece a liderança
espiritual do xamã Ernesto Kuaray Pereira e de sua esposa Lurdes Ara Martins e a
liderança política do cacique e professor bilíngüe Joel Pereira.
No período subseqüente aos trabalhos de campo stricto sensu, empreendi
consulta em arquivos e acervos de universidades e museus, pesquisei sites de
organizações governamentais e não-governamentais relacionados à problemática
ambiental e indígena e estabeleci contato com diferentes especialistas na questão
indígena, onde destaco as valiosas contribuições trazidas pelo antropólogo Rodrigo
Venzon, meu principal interlocutor neste período. Menos freqüentes, mas de igual
valor, foram as contribuições das antropólogas Kimiye Tommasino e Maria Inês
Ladeira, que me cederam materiais e informações preciosas à composição do
presente Relatório. Agradeço ainda a contribuição dos antropólogos Sérgio Baptista
da Silva, que identificou a iconografia dos ajaká (cestaria Guarani), e José Otávio
Catafesto de Souza, pela interlocução e textos sugeridos.
Nesta etapa do estudo, também contei com minha experiência anterior nos
ecossistemas do Alto Uruguai, quando participei, enquanto membro da equipe de
biólogos da UFRGS, de estudos sobre a biodiversidade do Parque Estadual de
Nonoai2, e, mais tarde, enquanto ambientalista no processo de identificação e
delimitação da área do Capão Alto, TI Nonoai, retomada pelos Kaingang em 20003.
Através deste conjunto de elementos, foi situado o espaço desde pontos de
vista ambientais e de ocupação econômica. Nesta abordagem foram cruzados dados
etnográficos e etnoambientais, a partir da perspectiva Guarani, com ênfase nas
práticas de manejo indígena e de não-índios na área em questão. O mapeamento
dos elementos ambientais identificados deu origem a uma proposta de limites,
resultante do diálogo entre os conhecimentos ambientais acadêmicos e os saberes
tradicionais dos Guarani, respeitando a proposta de delimitação sugerida inicialmente
2 FREITAS, 1994. 3 FREITAS, 2000.
7
pelo grupo indígena ao GT e complementando-a com as áreas �imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar� e �a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições�4.
A apresentação dos resultados deste estudo inclui imagens, figuras, mapas e
tabelas, visando faciliar a apreensão do conteúdo veiculado. O texto está dividido em
sete partes: na parte I, intitulada �Histórico da ocupação e manejo dos ambientes
regionais por indígenas e não indígenas� situo historicamente a transformação do
espaço no Alto Uruguai com relação ao uso do solo, situação fundiária e principais
ciclos econômicos, tecendo uma relação entre a paisagem atual e os processos
humanos preponderantemente envolvidos na sua configuração. Na parte II, �Os
Ambientes da Região em Estudo�, situo o espaço a partir dos conhecimentos
acumulados pelas ciências ambientais e introduzo os dados etnográficos pertinentes
para a caracterização geral da área reivindicada. Nesta parte já são apontados
alguns dos principais recursos e elementos ambientais que definem a proposta de
delimitação sugerida neste Relatório. A parte III, �Problemas ambientais verificados
em campo e situação das áreas de entorno�, é uma sistematização dos principais
problemas ambientais apontados nas partes anteriores. Na parte IV, �Histórico dos
estudos antropológicos enfocando a TI Mato Preto�, reconstituo a problematização da
TI Mato Preto enquanto área de ocupação tradicional Guarani no contexto dos
estudos antropológicos, situando a reivindicação Guarani sobre seus ambientes. Na
parte V, apresento os dados etnográficos obtidos nos trabalhos de campo, com
ênfase na identificação e localização dos recursos naturais e unidades de paisagem
destacadas pelos Guarani, e nas concepções indígenas envolvidas no manejo dos
ambientes locais. Nesta parte também especifico as atividades desenvolvidas em
campo assim como aspectos da metodologia adotada. A parte VI está reservada à
contribuição dos estudos ambientais ao processo de definição dos limites da TI Mato
Preto. Enfim, na parte VII, teço minhas considerações finais e trago algumas
recomendações gerais.
4 Portaria Nº 14 de 09.01.1996.
8
Lista de abreviações: AER Administração Executiva Regional CEPI Conselho Estadual dos Povos Indígenas CF Constituição Federal CGID Coordenação Geral de Identificação e Delimitação CIMI Conselho Indigenista Missionário FUNAI Fundação Nacional do Índio GT Grupo de Trabalho IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ISA Instituto Sócio-Ambiental MPF Ministério Público Federal NIT Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais SEMA Secretaria Estadual do Meio Ambiente TI Terra Indígena UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UHE Usina Hidrelétrica UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
9
I - Histórico da ocupação e manejo dos ambientes regionais por indígenas e não-indígenas
Registros arqueológicos indicam que os ecossistemas do Alto Uruguai são
ocupados e manejados por populações humanas há pelo menos 10.000 anos5.
Casas subterrâneas e túmulos circulares são vestígios associados aos antecedentes
dos Kaingang que, com os Xokleng, compõe o grupo dos Jê-Meridionais. Estima-se
que antecedentes dos Guarani tenham ingressado no Alto Uruguai há cerca de 2000 anos atrás. Artefatos e vestígios da arte-cerâmica estão entre as marcas deixadas
por estes grupos.
Segundo José Proenza Brochado (1989)6, antecedentes dos Guarani contemporâneos teriam migrado desde a Floresta Amazônica, utilizando como corredor as florestas tropicais que acompanham os rios Paraguai e Paraná. Uma outra rota migratória teria seguido o corredor da Mata Atlântica stricto
sensu, em seu sentido norte-sul, ao longo do litoral brasileiro. De acordo com Rubem Almeida e Fábio Mura, na chegada do europeu as
populações que ficariam conhecidas como Guarani ocupavam extensa região
litorânea que se estendia de Cananéia (SP) até o Rio Grande do Sul, infiltrando-se
pelo interior das bacias dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai. Da confluência dos
rios Paraná e Paraguai, espalhavam-se pela margem oriental deste último e nas
duas margens do Paraná. O Rio Tietê, ao norte, e o Rio Paraguai a oeste
estabeleciam limites deste extenso território, cujo centro era o sistema fluvial do Rio
da Prata7. Nas densas florestas que se estendiam entre os Rios Paraná e Uruguai, próximo das cabeceiras de seus afluentes, os Guarani estabeleciam seus tekoa8.
Nos ecossistemas compreendidos pelas atuais fronteiras do Rio Grande do
Sul viviam, além dos Kaingang, Xokleng e Guarani, muitas outras etnias indígenas.
Os estudos arqueológicos permitem afirmar que as florestas classificadas na
5 KERN, Arno A. (org) Arqueologia Pré-histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. 6 BROCHADO, J.P. A expansão dos Tupi e da cerâmica policrômica amazônica Dédalo, São Paulo, 27: 65-82, 1989. 7 O sistema fluvial do Rio da Prata compreende os Rios Paraná, Uruguai e Paraguai, sendo considerado o segundo maior sistema fluvial da América do Sul O território Guarani neste período incluía porções dos atuais Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia (LADEIRA, 2001). 8 Tekoá é a unidade político-sociai Guarani, estruturada a partir de laços de afinidade, parentesco e reciprocidade, articulando duas ou mais famílias-extensas, e assentadas sobre terras cultiváveis (e.g. NOELLI, 1993; SOARES, 1997; LADEIRA, 2001; MELLO, 2001)
10
literatura de viajantes como �selvas virgens� ou �vazios demográficos�, eram na
verdade espaços conhecidos e manejados por populações de caçadores, coletores e
horticultores ameríndios há milhares de anos.
Estas populações selecionavam e estabeleciam vias de fluxo de certas
espécies da flora e da fauna que integravam suas redes de reciprocidade (troca),
promovendo sua circulação nos domínios dos territórios que efetivamente
ocupavam. Estudos contemporâneos têm apontado que estes padrões de fluxo biológico, definidos pelo manejo indígena seletivo, têm um papel decisivo na
conformação da biodiversidade dos ecossistemas em que estas populações se
inserem e que, no caso Guarani, estão associados ao Bioma Mata Atlântica9.
A história da ação européia sobre os ecossistemas do Rio Grande do Sul remete aos séculos XVII e XVIII, com o surgimento dos primeiros povoamentos. Os
ciclos do tropeirismo e da erva-mate, associados à experiência missioneira e às
guerras de fronteiras, destacam-se como principais fatores de expansão européia
neste período. As florestas passaram a sofrer impactos sistemáticos com a
entrada de frentes de colonização promovidas pelo Governo da Província, cujo
marco inicial é a Colônia Alemã de São Leopoldo, em 1824. O modelo das colônias
rapidamente prosperou, se mostrando eficiente em converter florestas em áreas
produção e, deste modo, se adequando aos projetos do Governo.
Com a fundação da Colônia de Erechim, em 1908, as frentes coloniais
alcançaram os ecossistemas do Alto Uruguai. Muitos compradores de lotes nesta
Colônia eram descendentes de imigrantes europeus instalados nas Colônias Velhas
(São Leopoldo, Novo Hamburgo, Caxias do Sul)10.
Naquele momento as florestas desta região se configuravam como refúgio
para grupos de diferentes matrizes étnicas, como guaranis, kaingangues, xoklengs,
caboclos, quilombolas, entre outros, pressionados pelos ciclos econômicos da erva-
mate, do gado e pelo avanço das frentes coloniais sobre seus territórios. Estas
florestas também abrigavam e concentravam grandes mamíferos, como onças
9 De acordo com BALEÉ (2003: 23), �a história humana na Amazônia criou um ambiente que permitiu o crescimento e manutenção de terras firmes em meio à floresta tropical, e os índices de alfa diversidade desta floresta só podem ser compreendidos se este fator humano for levado em consideração�. Considerações similares são tecidas por NOELLI (2003:120), referindo que os Guarani na Bacia Platina têm uma importância decisiva na conformação da biodiversidade das florestas que cobrem a região, onde há registro de aldeias de ocupação ininterrupta por mais de 1000 anos. 10 SANTOS, Silvio Coelho dos (coord.) Estudo Etnográfico da Usina Hidrelétrica Machadinho: projeto 145/98: relatório final. Florianópolis: UFSC/ FAPEU/NEPI, 1998.
11
(Panthera onca)*, antas (Tapyrus terrestris)*, iraras (Eira barbara)*, pacas (Agouti
paca), veados (Mazama spp.)11, integrantes de uma complexa teia de biodiversidade.
No contexto de expansão colonial, florestas e índios eram vistos como
empecilho ao desenvolvimento e progresso. Visando liberar espaço às jovens
colônias, o imperador Dom Pedro II estabelece o �Regulamento das Missões�, pelo
Decreto n° 426 de 24 de julho de 1845, determinando que os índios contatados
fossem reduzidos a glebas isoladas de terras, com a promessa de que estas
terras seriam liberadas ao domínio público assim que os nativos se mesclassem com
a população brasileira. Desde então é adotada a política de criação de reservas florestais e aldeamentos indígenas, entre eles a Floresta Matto Preto12.
Tendo em vista a localização da Floresta Matto Preto e a ecologia Guarani, pode-se reconhecer que a área de ocupação indígena tinha por abrangência toda a área florestada. A partir dos dados de campo, tendo por
epicentro a localidade do Mato Preto, podemos obter uma aproximação da área de
circulação Guarani a nível micro-regional, nos domínios desta Floresta, traçando
um círculo em cujos extremos se situam hoje as localidades de Erebango, Capo-erê,
Rio Toldo e Getúlio Vargas.
A Mata Preta (Floresta com Araucária), nas cotas mais altas, concentrava
sítios Guarani de coleta e caça, e a Mata Branca (Floresta Estacional Decidual),
avançando deste o Rio Uruguai sobre o curso médio de seus afluentes, era propícia
à pesca, cerâmica e agricultura. A ocupação tradicional Guarani no Mato Preto é traduzida na memória dos índios mais antigos como o tempo da Tekoá Ka�aty. Em
termos de localização, a Tekoá Ka�aty está na abrangência das cabeceiras, nascentes e cursos superiores de rios e arroios contribuintes do Rio Apuaê. São eles: Arroio Paulo, Arroio Castilhos, Arroio Erumaré e Rio Toldo.
No contexto do positivismo que marca a Primeira República, a Reserva da Floresta Matto Preto foi definida em 1929 visando resguardar do impacto colonial as
florestas protetoras destas cabeceiras. A Reserva também previa reduzir e
11 Espécies assinaladas com * integram a lista da fauna ameaçada de extinção do Ibama. 12 Fruto desta política são criados diversos aldeamentos indígenas no Alto Uruguai. Na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, um dos maiores foi o �Aldeamento Nonohay�. Demarcado pelo Conde de Caxias em 1856, este aldeamento media cerca de nove léguas em quadra de comprimento por 1 ½ a 2 léguas em quadra de largura. Neste espaço foram reunidas várias tribos Kaingang e distintos grupos Guarani, configurando um campo social marcado pelo tensionamento das relações intra e inter-grupais e por conflitos que perduram até os dias de hoje. Este quadro se reproduz hoje em muitas TIs no Rio Grande do Sul, sobretudo no Alto Uruguai, onde apenas a TI Votouro Guarani (tb conhecida por TI Guabiroba ou Caeté) se configura como espaço autônomo Guarani.
12
ordenar o espaço dos grupos Guarani que habitavam a região. Esta Reserva foi
dividida em três polígonos contíguos, acompanhando o divisor de águas marcado
pela linha férrea, e era cercada por lotes coloniais (anexo 1).
O �Polígono A� da Floresta Matto Preto protegia as nascentes do Arroio Castilhos e uma parcela do Rio Toldo, curso d�água cuja toponímia remete à
ocupação indígena; o �Polígono C� cobria as nascentes do Arroio Ribeiro e, entre
eles, ficava o �Polígono B�, com uma área de 223,8350ha e destinado aos �Índios Guarany�, fazendo divisa com o Arroio Paulo, a linha férrea, com o Toldo Kaingang
Ventarra e com lotes coloniais.
Mesmo com a redução Guarani ao Polígono B, a ocupação indígena em toda a área florestada prossegue intensa até meados da década de 1960, período
durante o qual a Reserva Guarani e a Floresta Matto Preto foram temporariamente
apagadas do cenário do Alto Uruguai. Neste momento, o Governo do Estado
estabeleceu sobre a terra indígena os lotes coloniais de nos 43 a 53. O mesmo
ocorreu com o Toldo Kaingang Ventarra e tantos outros13. Alguns Guarani foram transferidos para o Toldo Cacique Doble, outros para o Aldeamento Nonohay,
outros partiram em direção a outras aldeias, enquanto seu território era fragmentado
e exaurido por um modelo de desenvolvimento responsável por enormes danos
ambientais e sociais.
Nos anos seguintes, a exploração dos ecossistemas do Alto Uruguai se
manteve orquestrada por sucessivos ciclos econômicos, como os da madeira, da
soja, das hidrelétricas, à revelia da legislação que, desde os primórdios da
República, prescrevia a proteção dos recursos naturais14.
No que se refere aos empreendimentos hidrelétricos na Bacia do Rio Uruguai, em 1912 foi construída a primeira Usina Hidrelétrica (UHE) no Rio Grande
do Sul, a UHE de Passo Fundo. Na década de 1940, foi elaborado o primeiro projeto
de aproveitamento energético da Bacia do Uruguai e, em 1961, esta Bacia foi
incluída no mapeamento do potencial energético dos rios das regiões Sul e Sudeste,
empreendido pela Eletrosul. Fechando este ciclo, em 1968 foram efetuados estudos
13 Esta era a política do Estado do Rio Grande do Sul que, com a conivência com o SPI, empreendeu reforma agrária sobre terras indígenas desde 1911 (DIETRICH, 1995). 14 As primeiras normas legais sobre o uso conservado das florestas no Rio Grande do Sul foram inseridas na LEI SOBRE TERRAS PÚBLICAS de 1899 (Lei nº 28, de 05.10.1899) e o seu REGULAMENTO DE 1900 (Decreto nº 313, de 04.07.1900), na vigência da primeira Constituição da República Federativa do Brasil, de 25.03.1891. No Regulamento da Lei, 30 artigos tratam de florestas protetoras, roçados permitidos, e outros conceitos já presentes na época. (TATSCH, Nora As leis florestais e o desmatamento no Estado do Rio Grande do Sul � Anais do 7º Congresso Florestal Estadual, p.611-623, Nova Prata, RS, 1992:613)
13
necessários para o aproveitamento integral da Bacia do Rio Uruguai, cujo projeto
previa 22 barramentos, sendo 19 no trecho nacional15. A execussão destes
projetos segue em curso nos dias de hoje16.
Produto histórico deste contexto, a paisagem regional sofreu múltiplos
processos de fragmentação, sendo hoje caracterizada por um mosaico
hegemonizado por pequenas propriedades rurais � as antigas colônias -, com
economia de policultura e predomínio de lavouras de grãos (especialmente soja e
trigo17), e onde a matriz florestal está restrita a fragmentos isolados, entrecortados
por cidades e estradas. Sobre esta paisagem, a crescente pressão de urbanização
incide como importante agente modelador.
De acordo com o exposto e tomando por parâmetro o contexto Alto Uruguai,
pode-se considerar a colonização da área definida pela Floresta Matto Preto como
um processo relativamente recente. Embora os ecossistemas locais estejam
estruturalmente comprometidos (fragmentação, isolamento, empobrecimento), as
condições edáficas e o potencial climáxico da Floresta com Araucária sugerem elevada capacidade de regeneração. Neste contexto, a identificação da TI Mato Preto como terra tradicional Guarani, deve privilegiar um processo de delimitação
que favoreça a inclusão dos principais elementos naturais remanescentes.
Resumindo: a vegetação que originalmente cobria o Alto Uruguai começou a
sofrer o impacto sistemático do desmatamento desde a fundação da Colônia
Erechim, em 1908. A definição da Reserva da Floresta Matto Preto, em 1929, indica
a chegada das frentes coloniais à área reivindicada como TI Mato Preto. A área reservada integrava os espaços de ocupação tradicional do povo Guarani. A
intensidade do uso e da ocupação Guarani vai reduzindo na medida em que estes
espaços vão sendo ocupados pelas colônias. O auge do desmatamento local ocorreu
no final do ciclo econômico da araucária, espécie que nos anos 60 exibia elevado
valor comercial sem que houvesse de corte. Ao lado do pinheiro-brasileiro ocorria o
corte seletivo de outras essências de valor comercial, como a imbuia, o cedro, a
grápia, o angico. O modelo econômico das colônias, e atualmente da policultura com
predomínio de soja, associado à ocupação não-indígena da região, está relacionado
a um padrão de paisagem fragmentada, onde os remanescentes florestais e demais
15 Cf. CATAFESTO DE SOUZA, 2003; MORAES, 2005. 16 As hidrelétricas serão mais especificamente tratadas no tópico �Hidrografia�, na parte II deste Relatório. 17 Variedades transgênicas são cultivadas em toda a região, como pudemos constatar nas incursões a campo.
14
elementos que compõe o mosaico se encontram entrecortados por estradas,
cidades, agrossistemas, hidrelétricas, etc, e isolados entre si, o que compromete o
fluxo gênico entre os fragmentos. Embora a ocupação colonial sobre a área
reivindicada tenha se intensificado nas últimas décadas, os dados de campo revelam
que o manejo indígena prossegue intenso nas florestas associadas às micro-bacias
dos arroio Ribeiro, Eumaré e Paulo, e do Rio Toldo até o final da década de 1960, ou
seja, as florestas das cotas mais altas da TI Mato Preto ficaram preservadas até
cerca de 40 anos atrás, o que sugere seu elevado potencial de regeneração
comparativamente aos espaços do entorno. Em conjunto, o histórico da ocupação
humana no Alto Uruguai e o decorrente padrão paisagístico permitem reconhecer
que os recursos naturais, em escala regional, se encontram em determinados
espaços que ficaram privados ou foram tardiamente integrados aos usos
estabelecidos pelo modelo econômico hegemônico. Para que a TI Mato Preto possa de fato garantir condições de sustentabilidade nos termos de ocupação tradicional Guarani, as unidades ambientais mais conservadas devem ser incluídas nos limites definidos no presente processo de identificação e delimitação.
15
II - O Ambiente da Região de Estudo
A TI Guarani Mato Preto situa-se na porção Alta da Bacia do Rio Uruguai, domínio ecológico das Florestas com Araucária (Floresta Ombrófila Mista)18, um
dos ecossistemas mais ameaçados do Bioma Mata Atlântica e hoje reduzido a
menos de 3% de sua área original19. Geograficamente, ocupa posição norte no Estado do Rio Grande do Sul20, sobre o relevo do Planalto Meridional, na
abrangência territorial dos municípios de Getúlio Vargas e Erebango, distando cerca
de 380km de Porto Alegre e fazendo divisa com a TI Ventarra, de ocupação do povo
Kaingang.
18 No Alto Uruguai a Floresta Ombrófila Mista encontra elementos da Floresta Estacional Decidual e dos Campos Úmidos Subtropicais, assumindo feições particulares. Cabe referir que desde 2001 as Florestas com Araucária integram a lista de prioridades nas ações da Rede SOS Mata Atlântica. A urgência na proteção das essências nativas deste ecossistema se ampara na Resolução CONAMA nº 278/2001, que dispõe sobre a suspensão de autorizações concedidas de corte e exploração de espécies ameaçadas de extinção na Mata Atlântica (www.socioambiental.org). 19 GUERRA et.all. Exploração, manejo e conservação da Araucária (Araucaria angustifolia). In: SIMÕES, L.L. & LINO,C.F. (org). Sustentável Mata Atlântica: a exploração de seus recursos florestais. São Paulo: Ed. SENAC, p.p. 85-101, 2002. 20 De acordo com o IBGE, a área está na abrangência da Mesorregião Noroeste Riograndense e na Microrregião Passo Fundo.
16
BIOMA21: Os ambientes naturais na região de estudo estão na abrangência do
Bioma Mata Atlântica. Em termos gerais, o Bioma Mata Atlântica pode ser definido
como um mosaico22 diversificado de ecossistemas, apresentando estruturas e
composições florísticas diferenciadas, em função de diferenças de solo, relevo e
características climáticas existentes na sua ampla área de ocorrência no Brasil.
Atualmente, restam cerca de 7,3% da cobertura florestal original na área coberta
pelo Bioma, que foi identificada como a quinta área mais ameaçada e rica em espécies endêmicas do mundo23. O território Guarani se insere neste Bioma24.
No contexto Mata Atlântica, a região de estudo é domínio ecológico da Floresta Ombrófila Mista (Floresta com Araucária), sobretudo nas cotas mais altas. Em
diversos pontos na região esta Floresta estabelece interface com a Floresta Estacional Decidual (Floresta do Alto Uruguai) e com elementos dos Campos Subtropicais Úmidos, o que contribui para compor a particularidade da diversidade
local.
21 Fonte: www.mma.gov.br 22 Na Ecologia de Paisagens, o conjunto de diferentes unidades da paisagem é denominado mosaico (cf. TURNER, G.T., GARDNER, R.H. , O�NEILL, R.V. Landscape Ecology in theory and practice; pattern and process. New York: Springer-Verlag, 2001). 23 Fundação SOS MATA Atlântica; Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais & Instituto Socioambiental. Atlas da evolução dos remanescentes florestais e ecossistemas associados do domínio da Mata Atlântica no período de 1990-1995. São Paulo, 1998. 24 LADEIRA, Maria Inês. Espaço Geográfico Guarani-Mbya: significado, constituição e uso. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH�USP, 2001.
17
Floresta com Araucária25
CLIMA: O clima da região de estudo é classificado como Mesotérmico Brando � super-úmido sem seca26. Entretanto, diferentes impactos ambientais
(empreendimentos hidrelétricos, desmatamento, comprometimento dos recursos
hídricos por drenagem, etc.) estão associados a alterações micro-climáticas na região, ampliando o registro de períodos de seca nos últimos anos27. No verão do
ano de 2004, a seca prolongada fez com que 255 municípios do Rio Grande do Sul
decretassem estado de emergência. Cerca de 28.000 famílias foram diretamente
atingidas pela seca e o Governo estimava R$ 25.000.000 para mitigar o problema28.
Em fevereiro de 2004, a seca no Alto Uruguai era visível nos lagos das barragens de
Ita e Machadinho, respectivamente 3 e 10m abaixo do nível médio29. Com base nas observações de campo, as práticas de drenagem e desmatamento associadas ao cultivo da soja contribuem para este fenômeno.
GEOMORFOLOGIA30 E PEDOLOGIA: Em todo o Planalto Meridional Brasileiro
encontram-se rochas da série mesozóica e do período triássico, cobrindo as rochas
do arqueolítico em grande espessura. As rochas do sistema triássico são
representadas pelos arenitos moles avermelhados do tipo grés, quase sempre
associadas às rochas eruptivas do tipo diabásio e diodorito, que se apresentam em
25 Foto: Miriam Prochnov, www.socioambiental.org 26 Fonte: www.ibge.gov.br 27 Fonte: www.emater.rs.gov.br 28 Fonte: Jornal Correio do Povo, 01/04/2004, p.15. 29 Fonte: Jornal Correio do Povo, 26/02/2004, p.38. 30 COUTO E SILVA, Morency (org.) Rio Grande do Sul � Imagem da Terra Gaúcha, Porto Alegre: Cosmos, 1942.
18
diques e lençóis. Também se encontra rochas vizinhas dos traquitos e dos basaltos.
As rochas eruptivas desta região apresentam estrutura amigdalóide, dando origem às
diversas formas de geódes de calcedônia, de ágata e quartzo.
É esta a formação característica do Alto Uruguai, onde o solo é coberto de
terra roxa e avermelhada (latossolos e podzóis), resultante da decomposição de
rochas do tipo diabásio. A decomposição superficial dos traquitos e dos basaltos
origina argilas cinzentas e negras e o grés silicoso (arenito silicoso), de grão
extremamente fino. O grés silicoso sofre ação mecânica da água, dando origem à
camada de areia observada nos cursos d�água que cortam o Planalto. As argilas da
região podem ainda ter origem na alteração de xistos argilosos.
Na abrangência da área reivindicada como TI Mato Preto, estas argilas compõe os solos chamados nhae�ü pelos Guarani e identificados como adequados à arte-cerâmica. Estes solos são associados espacialmente às áreas de confluência de rios e aos banhados.
De acordo com a carta temática dos solos do Rio Grande do Sul31, a TI Mato Preto está em uma zona de encontro dos solos roxos (latossolos) e avermelhados (podzólicos). A composição dos solos da região inclui solos hidromórficos, que sofrem influência da Bacia do Rio Uruguai, classificados como Laterítico Bruno Avermelhado e Brunizem Hidromórfico.
Solos da TI Mato Preto
31 Mapa fonte: Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul, Divisão de Geografia e Cartografia SOLOS, Porto Alegre 1985.
19
HIDROGRAFIA E PAISAGEM:
�A Política Estadual de Recursos Hídricos tem por objetivo promover a harmonização entre os múltiplos e competitivos usos dos recursos hídricos e sua limitada e aleatória disponibilidade temporal e espacial, de modo a impedir a degradação e promover a melhoria de qualidade e o aumento da capacidade de suprimento dos corpos de água superficiais e subterrâneos, a fim de que as atividades humanas se processem em um contexto de desenvolvimento sócio-econômico que assegure a disponibilidade dos recursos hídricos aos seus usuários atuais e às gerações futuras, em padrões quantitativa e qualitativamente adequados� (Lei Nº 10.350/1994, art 2º, inciso III, grifos meus).
�A gestão dos recursos hídricos pelo Estado processar-se-á no quadro do ordenamento territorial, visando à compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a proteção do meio ambiente� (Lei Nº 10.350/1994, art 3º, inciso II, grifos meus).
A crescente escassez da água foi definida pela UNESCO como o problema ambiental mais grave deste século. Orientado por esta preocupação, o artigo 171
da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul estabelece um modelo sistêmico para
a gestão das águas do Estado, no qual a bacia hidrográfica foi definida como unidade básica de planejamento e gestão32. A regulamentação deste artigo é dada
pela Lei Nº 10.350/1994, que estabelece três Regiões Hidrográficas no Rio Grande do Sul, as quais foram subdivididas em Bacias Hidrográficas, totalizando,
até o momento, 23 unidades. Para cada uma destas unidades está prevista a
formação de um comitê para a gestão integrada dos seus recursos hídricos, visando
garantir os preceitos legais que apregoam a compatibilização entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental.
Em 2003, foi instituído o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Apuaê-Inhadava. O Rio Apuaê e o Rio Inhadava são, neste modelo de gestão,
integrados numa mesma unidade de bacia e associados à Região Uruguai33.
32 A bacia hidrográfica é um "Conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes. A noção de bacia hidrográfica inclui a existência de cabeceiras ou nascentes, divisores d'água, cursos d'água principais, afluentes, subafluentes, etc. Em todas as bacias hidrográficas deve existir uma hierarquização na rede hídrica e a água se escoa normalmente dos pontos mais altos para os mais baixos. O conceito de bacia hidrográfica deve incluir também noção de dinamismo, devido a modificações que ocorrem nas linhas divisórias de água sob o efeito dos agentes erosivos, alargando ou diminuindo a área da bacia" (fonte: www.vivaterra.org.br) 33 Fonte: www.sema.rs.gov.br/srh
20
A TI Mato Preto está inserida nesta Região e nesta Unidade de Bacia,
abrigando cabeceiras, nascentes e cursos superiores de rios e arroios contribuintes do Rio Apuaê34. São eles: Arroio Paulo, Arroio Castilhos, Arroio Erumaré e Rio Toldo. O complexo hidrográfico compreendido por estas águas
integra duas Micro-Bacias35: a micro-bacia do Rio Toldo e a micro-bacia do Rio Abaúna, ambos afluentes do Apuaê.
Fruto dos diferentes ciclos econômicos instaurados no Alto Uruguai ao longo
da história de ocupação européia e exploração dos recursos naturais, todas as águas inseridas na região de estudo estão comprometidas, em diferentes graus, em seus aspectos físico, químico e biológico: muitas das nascentes secaram ou recuaram pelo desmatamento (que inclui o corte raso), as matas de galeria estão ausentes ou reduzidas a poucos fragmentos esparsos, os cursos d�água em geral estão hidrologicamente alterados e expostos aos agentes
34 O Rio Apuaê é também conhecido como Rio Ligeiro. No município de Charrua, e às margens deste rio, localiza-se a TI Ligeiro, onde vivem grupos familiares da etnia Kaingang. 35 �Micro-bacia é a menor área de um sistema hidrológico, delimitada pelo topo dos morros por onde as águas das chuvas são drenadas dando origem a ribeirões, riachos e pequenos rios�. (c.f. GERBER, 2003:121)
21
poluidores empregados na produção agrícola, as comunidades aquáticas estão
estruturalmente comprometidas, o que se evidencia nos níveis populacionais reduzidos da fauna de peixes36. Como agravante deste quadro, nos últimos anos,
em virtude da expansão do cultivo de soja na região, ocilam períodos de enchentes
e estiagens com seca.
Micro-Bacia Abaúna - Arroio Castilhos � TI Mato Preto
Área de antiga cabeceira, cultivada com trigo Cabeceira desmatada
Micro-Bacia Rio Toldo � TI Mato Preto
Drenagem Desmatamento, drenagem e contenção
36 Conforme relato de interlocutores Kaingang e Guarani que circulam nas águas locais. Este dado foi confirmado em conversa com moradores locais.
22
Esta é a realidade em praticamente toda a região do Alto Uruguai. A
expansão das empresas agrícolas sobre matas e águas e os empreendimentos hidrelétricos têm produzido alterações de grande porte no volume, hidrodinâmica e qualidade dos recursos hídricos, com reflexos ambientais e sócio-econômicos significativos.
No contexto energético brasileiro, a Bacia do Rio Uruguai é uma das oito grandes bacias-alvo de projetos energéticos, quais sejam: as bacias do Rio
Amazonas, dos rios Tocantins e Araguaia, Bacia do Atlântico Norte e Nordeste, do
Rio São Francisco, Bacia do Atlântico Leste, Bacia dos rios Paraná e Paraguai, do
Rio Uruguai e Bacia do Atlântico Sul e Sudeste. Até junho de 2003, o sistema
hidrelétrico no país possuía o cadastro de 252 empresas, 647 usinas hidrelétricas e
mais de 1100 estações37.
Até o momento, duas UHE estão em funcionamento na abrangência da
Bacia do Uruguai, uma terceira encontra-se em obras e mais duas sendo
projetadas. Calcula-se que 5,2 mil famílias foram reassentadas longe da região,
em decorrência da implantação das UHE Itá, Machadinho e Barra Grande38. Para a
implantação da UHE Barra Grande, está previsto desmatamento de cerca de 4mil hectares de Floresta com Araucária, incluindo grandes parcelas de florestas primárias, o que em termos regionais significa um dano ambiental de grandes
proporções.
Atualmente, a UHE de Ita é o maior empreendimento do complexo hidrelétrico Uruguai, com capacidade de 1,45 mil megawatts de energia. Em função
do alagamento produzido pela barragem de Itá, a cidade de Aratiba perdeu 1,2 mil famílias e 21% da área foi submersa.
A compensação deste quadro, a nível local, está relacionada ao retorno econômico para os municípios atingidos: com relação à cidade de Aratiba, a
arrecadação de ICMS foi de R$ 4,3 milhões em 1998, e de R$ 15,2 milhões em 2004.
37 www.aneel.gov.br 38 Fonte: IBGE, dezembro de 2004.
23
As compensações em termos ambientais envolvem indenizações e investimentos em projetos/áreas de interesse ambiental e implantação de bancos de germoplasma ex-situ39. Nestas compensações não são considerados aspectos estruturais em escala de paisagem, e os acordos não prevêm medidas
de translocação da fauna residente nas florestas inundadas.
Estações e Usinas Hidrelétricas no Brasil (as regiões Sul e Sudeste são as mais intensamente exploradas)40
39 Cf Termo de Compromisso firmado entre o IBAMA, a BAESA, o MME, a AGU e o MPF em Brasília, em 15/09/2004. 40 Fonte da imagem: www.aneel.gov.br
24
No que se refere às comunidades indígenas, estudos recentes41 têm
apontado que os empreendimentos hidrelétricos no Alto Uruguai se sobrepõe
com áreas de ocupação tradicional indígena, como é o caso da UHE Monjolinho,
em cuja área de influência42 estão as TI�s dos Kaingang de Votouro e dos Guarani da Guabiroba43. Com relação à TI Mato Preto, esta foi enquadrada na área de
influência da UHE Machadinho pelos estudos coordenados por Sílvio Coelho dos
Santos44.
Estes estudos apontam que os aspectos sociais, históricos, étnicos e culturais
não são considerados devidamente na avaliação do impacto e na compensação destes empreendimentos, penalizando territórios e sociedades indígenas45.
Usina Hidrelétrica Machadinho � Rio Pelotas Usina Hidrelétrica de Itá � Rio Uruguai46.
Considerando a territorialidade indígena no sul do Brasil, cujos padrões
apontam um território de uso que excede os espaços fundiários reconhecidos e
regulamentados para estas populações, é importante ressaltar que o impacto dos empreendimentos hidrelétricos incide sobre áreas que integram ambientes de manejo tradicional indígena, comprometendo unidades de paisagem importantes
para a sustentabilidade destas populações.
41 E.g. SANTOS, 1998; 2001; 2002; 2003; SANTOS & NACKE, 2003; CATAFESTO DE SOUZA, 2003; MORAES, 2005. 42 Área de influência: é definida como a área que terá seus componentes ambientais de alguma forma alterados por um empreendimento hidrelétrico (Eletrosul/CNEC, 1989:7.01 apud SANTOS, 1998:44). 43 A TI Guarani Guabiroba é também conhecida por Guarani Votouro ou Caeté. A influência da construção da UHE Monjolinho sobre a comunidade Kaingang da TI Votouro foi objeto dos estudos de MORAES, 2005. 44 SANTOS, 1998:97. 45 MORAES, 2005:30. 46 Fonte da imagem: www.geocities.com/pavanicosta/hpgeo
25
Especificamente com relação ao projeto da UHE Monjolinho, o corredor que comunica os fragmentos florestais situados ao longo da Bacia do Rio Erechim
ficará comprometido, interrompendo o fluxo da fauna entre estes fragmentos e a Bacia do Rio Uruguai, com reflexo nas taxas reprodutivas e nos índices de
abundância e diversidade zoológica local.
Em comparação com os padrões ambientais observados no Litoral, onde se
localiza a maior parte das TI�s Guarani, a região do Alto Uruguai tem a
especificidade de uma paisagem em que as taxas de fragmentação são
relativamente maiores. Hidrelétricas, cidades, estradas, lavouras, colônias, compõe
o mosaico de uma paisagem em que os fragmentos florestais e as águas mais
importantes se encontram isolados por grandes distâncias e por barreiras de toda a
ordem.
Imagem do Satélite Landsat 5 da região em estudo. As manchas rosadas maiores correspondem aos municípios de Erechim (mancha maior, acima do círculo), de Erebango (à esquerda) e Getúlio Vargas
(abaixo). A circunferência mostra a área aproximada de circulação Guarani na região. Observa-se o padrão de uso do solo com predomínio das lavouras de soja e os fragmentos florestais restritos e isolados no
mosaico da paisagem.
26
Área de circulação Guarani na micro-região da TI Mato Preto, utilizando como base a Carta da Diretoria de Serviço Geográfico do Ministério do Exército (EREXIM, folha SG-22-Y-D-IV, escala
1:100.000)
27
Considerando a área de criculação Guarani em escala micro-regional e a
paisagem em que a TI Mato Preto se insere, os baixos índices de conectividade
entre as manchas florestais no Alto Uruguai (ausência de corredores biológicos e
presença de barreiras) dificultam ou mesmo impedem o fluxo gênico, exigindo
estratégias que superem esta dificuldade.
Embora a Mata Atlântica também seja alvo histórico de ciclos econômicos
associados à degradação ambiental, a menor fragmentação relativa da paisagem
do Litoral permite que áreas com dimensões menores se tornem sustentáveis,
em virtude da existência de corredores de florestas conectando as terras indígenas a
áreas de preservação permanente e unidades de conservação. Estes corredores
permitem que determinadas espécies da fauna, em escala regional, transite entre
estas unidades de paisagem, garantindo o aporte de indivíduos e grupos animais a
cada unidade.
De outra sorte, as TI�s em fase de identificação e delimitação na Bacia do Rio Uruguai devem ser definidas com espaços contínuos e com dimensões suficientes para garantir a sustentabilidade, a médio e longo prazo, tanto das
populações indígenas como das espécies da fauna e flora importantes para sua
manutenção e reprodução cultural de modo tradicional.
Estas dimensões devem, em outras palavras, garantir condições ambientais em termos de estrutura e complexidade intrínsecas aos territórios demarcados, dispensando que os grupos humanos e a fauna necessitem do trânsito entre fragmentos distantes e descontínuos para sua manutenção.
Voltando ao caso específico da TI Mato Preto, as florestas (ka�aguy) e águas (yy), considerando todo o universo de seres e elementos que as compõe
quando em estado integral47, são identificadas pelos especialistas Guarani como a base para a manutenção e reprodução de seus costumes e tradições � do
47 Esta noção é empregada no sentido oposto da noção de degradação, e procura traduzir a idéia Guarani que refere ambientes em estado original, preservando as formas que indicam a criação de Nhanderu. Estes ambientes são reconhecidos pela presença de algumas espécies e da flora e animais silvestres �originais� (oejava�ekue). No contexto ambiental atual, esta noção se refere a ambientes em estado primário em termos de conservação (florestas primárias, águas revestidas por matas de galeria conservadas e sem interferência de agentes poluidores, etc)
28
Nhande reko (modo de ser Guarani). Esta importância se verifica pela diversidade
de categorias êmicas48 empregadas para qualificar estes elementos49.
Neste sentido, durante as incursões a campo, considerando a área
reivindicada como TI Mato Preto e seu entorno próximo, empreendi um exaustivo
inventário, acompanhada pelos guias Guarani, visando localizar parcelas ambientais relativamente conservadas, em atendimento à Portaria Nº 14 de 9 de
janeiro de 1996.
Através deste estudo, pude verificar que, apesar do comprometimento geral das águas e florestas na região, nem toda esta extensão se encontra em um
mesmo estado de degradação: há locais com fragmentos florestais relativamente maiores, mais contínuos e maduros (florestas inequianas com presença de
elementos arbóreos estruturalmente importantes), que devem ser considerados no contexto de delimitação.
Praticamente todas estas florestas são de preservação permanente,
revestindo cabeceiras, nascentes e parcelas dos cursos d�água, e abrigam
espécies vegetais importantes em termos estruturais, como o pinheiro-brasileiro
(Araucária angustifólia), o tarumã (Verbenoxylum riedelii), o ariticum (Rollinia
emarginata), o angico-vermelho (Parapiptadenia rígida), a grápia (Apuleia leiocarpa),
o cedro (Cedrela fissilis).
Com relação à sua localização, nas cabeceiras dos arroios Paulo, Castilhos e Erumaré e nas nascentes e pontos de confluência dos formadores do Rio Toldo (cursos superior a médio), se encontram as formações florestais contíguas mais maduras e mais conservadas da área reivindicada50.
48 Este termo faz referência às classificações nativas do universo, a partir de suas perspectivas culturais; i.e. próprias do grupo. 49 Na parte IV deste Relatório, no tópico �Meio Ambiente e Recursos Naturais na Ecologia Simbólica Guarani�, são trazidas estas categorias (e.g.: yy porã - água pura -, ka�aguy iwaté - mato alto -, ka�aguy wain�ï -mato baixo -, etc.) 50 Quase todas estas florestas em melhor estado relativo de preservação se encontram na abrangência da antiga Reserva Floresta Matto Preto (1929). Nos trabalhos de campo verificamos que o grupo indígena conhece estas florestas em termos de composição e distribuição dos recursos naturais.
29
Fragmento florestal maduro: nascentes do Arroio Paulo. Destaca-se o pinheiro-brasileiro no dossel.
Além das cabeceiras de rios, arroios e suas florestas, os banhados remanescentes da TI Mato Preto foram apontados pelos indígenas como importantes unidades de paisagem. Muitas espécies da fauna e flora ocorrem
nestes banhados, que se traduzem em um habitat específico e privilegiado no
contexto da TI Mato Preto. Seja como pousio, dormitório, ninho ou berçário, aves,
anfíbios, répteis, mamíferos e peixes, além de uma infinidade de invertebrados,
encontram nos banhados um espaço ecológico especial.
Nos dois banhados visitados nas atividades de campo, pude observar
espécies como a jaçanã (Jacana jacana), a galinhola (Gallinula chloropus), a narceja (Gallinago gallinago) entre as macrófitas, assim como vestígios associados
a presença do ratão-do-banhado (Myocastor coypus). Os interlocutores Guarani referiram que algumas destas espécies são apreciadas como iguarias alimentares e ao mesmo tempo têm importância simbólica, sobretudo as aves, se constituindo
30
em �mensageiros� ou �sinais� no contexto do xamanismo. Relatos dos indígenas mais antigos, que viveram Tekoa Ka�aty, referem que nas imediações do Banhado do Clementino51 transitavam antas, pacas, veados, confirmando a importância ecológica destas unidades de paisagem.
Banhados na TI Mato Preto. Em detalhe, um espécime de narceja (Gallinago gallinago)
Ainda do ponto de vista simbólico, o �banhado� ocupa espaço privilegiado no Mito Guarani dos Gêmeos Kuaray e Jaxy, sendo referido como local onde ocorrem revelações que decidem a trajetória dos heróis mitológicos52. No tocante à arte-índia, o entorno dos banhados é assinalado pelos
indígenas como espaço que potencialmente abriga os solos apropriados para a arte-cerâmica, chamados pelos Guarani de nhae�ü. Cabe ressaltar que estudos
realizados pelo Museu Antropológico do Rio Grande do Sul53 apontam a família extensa que reivindica a TI Mato Preto como uma das últimas comunidades Guarani Xiripa que detém todos os conhecimentos e procedimentos técnicos tradicionais associados à arte cerâmica, desde os saberes relacionados à localização e seleção dos barros até os rituais xamânicos ligados à durabilidade e valor cultural das peças. Este dado reforça a importância de garantir unidades ambientais que possibilitem a continuidade destas tradições.
51 Coordenadas geográficas: -27º49�65,05 S ; -52º12�30,56 Wgr 52 Este mito foi coletado nos trabalhos de campo e se encontra reproduzido na íntegra no final deste Relatório 53 Estes estudos foram coordenados pelo antropólogo Walmir Pereira, sendo realizados na TI Cacique Doble em 2002, com apoio da Coordenadoria Regional de Educação de Erechim, e da Secretaria Estadual da Cultura. Parte deste material compõe o apêndice 4 deste Relatório
31
Do ponto de vista estritamente ecológico, os banhados remanescentes na TI
Mato Preto se traduzem em unidades que qualificam o mosaico da paisagem em termos de estrutura � maior complexidade � e consequentemente em termos de nicho ecológico e de habitat para espécies da flora e fauna local.
Com relação à possibilidade de estabelecer condições que viabilizem a
manutenção de padrões de ocupação tradicional Guarani, a integridade ou conservação dos ambientes que compõe os espaços das TI�s vem sendo apontada
como um elemento decisivo na construção do pertencimento Guarani a um
determinado local � o que por sua vez possibilita padrões de ocupação e habitação permanente54. A este respeito, vejamos as contribuições da antropóloga
Maria Inês Ladeira: �Os elementos que compõem o meio natural das aldeias - águas, solos, montanhas e vales e algumas espécies vegetais - são privilegiados pelos Guarani também em função da sua localização. Além das suas características intrínsecas, o local de inserção e a disposição de determinados elementos em relação ao conjunto são os indicadores mais precisos da conveniência do lugar para formação ou permanência de uma aldeia (...)55�.
De outra sorte, a maior parte das atuais Terras Guarani parecem não reunir
satisfatoriamente tais elementos, como observa a mesma autora: �As áreas Guarani são pequenas, não contém porções contínuas suficientes de mata para seu uso exclusivo e suas delimitações são definidas em função da ocupação do entorno e do modelo dessa ocupação56�.
De acordo com a antropóloga Flávia Cristina de Mello, as dimensões e o
estado de conservação dos recursos naturais estão entre os elementos que
podem definir a permanência ou não dos Guarani em um determinado território:
�Outros problemas que descaracterizam uma tekoá, além dos problemas inter-étnicos: a necessidade de demarcação das terras habitadas pelas famílias Guarani, a exiguidade das terras que impedem a efetivação de roças de subsistência, a degradação da mata, a pressão da sociedade envolvente, falta de condições de viver conforme seus preceitos religiosos, todos estes fatores levam estas pessoas a muitas vezes buscarem outros locais para viverem�57
54 LADEIRA, 2001; MELLO, 2002; CATAFESTO DE SOUZA, 1987; 2002. 55 LADEIRA, 2001:122 (grifos meus). 56 LADEIRA, 2001:123 57 MELLO, 2002:103-104.
32
Para contornar este problema e efetivamente definir condições de ocupação
tradicional na TI Mato Preto, deve-se privilegiar no processo de delimitação a
inclusão de parcelas relativamente íntegras de águas e florestas, com estrutura em
termos de habitat potencial para a flora e fauna locais.
Aqui vale retomar o conceito de Bacia Hidrográfica:
�Um conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes. A noção de bacia hidrográfica inclui a existência de cabeceiras ou nascentes, divisores d'água, cursos d'água principais, afluentes, subafluentes, etc. Em todas as bacias hidrográficas deve existir uma hierarquização na rede hídrica e a água se escoa normalmente dos pontos mais altos para os mais baixos. O conceito de bacia hidrográfica deve incluir também noção de dinamismo, devido a modificações que ocorrem nas linhas divisórias de água sob o efeito dos agentes erosivos, alargando ou diminuindo a área da bacia58"
O conceito de Bacia Hidrográfica se demonstra profícuo para a definição de áreas que se pretendam sustentáveis, e talvez seja o conceito das ciências ambientais que esteja mais próximo da percepção tradicional da cultura Guarani sobre o ambiente.
Em sua dissertação de mestrado, Mello59 traça as trajetórias dos deslocamentos de famílias extensas Guarani no Sul do Brasil, incluindo a
etnografia do grupo que hoje reivindica a TI Mato Preto. As narrativas coletadas se
referem a episódios ocorridos há cerca de 50 anos atrás e enfatizam os rios e matas ciliares enquanto corredores utilizados pelos Guarani em seus deslocamentos. O percurso do grupo compreendia justamente os rios da região do Alto Uruguai, sendo especificamente referidos os rios Xapecó, Guarita, Peperi, Peperi Guaçu, dos Índios, Uruguai e Passo Fundo. Os deslocamentos utilizavam �os leitos dos
rios�60 e, durante seu percurso, os Guarani �verificavam os locais onde viviam �nossa
gente� (...), às vezes levando notícias de uma aldeia à outra (...) ou auxiliando a resolver
problemas externos�61. Durante o deslocamento, caçavam, pescavam, coletavam,
tirando seu sustento das próprias matas que acompanham as águas.
58 Fonte: www.vivaterra.org.br 59 MELLO, 2002. 60 MELLO, 2002:58 61 MELLO, 2002:82-83
33
A fragmentação da paisagem no Alto Uruguai, com a descaracterização dos corredores de matas ciliares que acompanhavam os grandes rios, incide sobre os padrões de deslocamento Guarani: �recentemente os deslocamentos
traçados pelas pessoas destas famílias extensas [Guarani] passaram a acompanhar as
estradas construídas pela sociedade nacional (juruá)62�. Entretanto, esta mudança não
destitui a importância das águas para estes grupos, uma vez que �para eleger um
lugar como um lugar bom para morar, a proximidade de um corpo d�água permanece como elemento essencial�63.
Com relação à TI Mato Preto, a referencia em termos ambientais fornecida
pela memória e pela etno-história levantadas em campo, aponta a Tekoá Ka�aty
como um território que compreendia toda a Floresta Matto Preto, cujo rio principal é
o Rio Toldo. As pescarias no Rio Toldo, narradas pelo Guarani Pedrinho Mariano e
pelo �velho� João Maria, sugerem que a aldeia Ka�aty se situava próxima do rio, e
que as florestas do curso médio do Rio Toldo eram manejadas pelo grupo indígena no momento da colonização no local. A memória da mãe de Luiz
Natalício confirma a localização da aldeia64: �Tekoá ficava na beira do rio, naquela época tinha 6 casais, tinha tanta mata... naquela época não tinha cidade de Getulio Vargas, tinha 5 moradores de Getúlio Vargas�.
Os depoimentos se complementam e confirmam o que os conhecimentos
técnico-científicos sugerem a respeito dos ambientes locais: o potencial climáxico florestal, predominante em escala regional, era localmente a cobertura de toda a extensão da Tekoá Ka�aty: A Floresta Ombrófila Mista, Floresta com Araucária,
Mata Preta ou Matão, como referem os Kaingang, é o ecossistema que dominava a paisagem no momento da colonização, quando era manejada pelos Guarani.
Tanto os elementos da memória Guarani acerca da Tekoá Ka�aty como os
dados ambientais obtidos nas incursões pela área reivindicada, apontam para uma
nítida sobreposição dos fragmentos florestais mais importantes com a área das cabeceiras que foram preservadas pela definição da Reserva da Floresta Matto 62 MELLO, 2002:58-59 63 MELLO, 2002:59 64 Estas memórias foram resgatadas e documentadas pelo cacique e professor Guarani Joel Pereira. O texto de Joel foi disponibilizado ao GT e se encontra entre os anexos deste Relatório.
34
Preto, em 1929. Somando estes dois elementos é possível traçar o croqui de um modelo ambiental ideal de delimitação, que apresento na página seguinte. Este modelo aplica a noção de Bacia Hidrográfica, privilegiando os elementos destacados pelos Guarani nas atividades de campo. Nesta
proposição, os limites da TI avançam a noroeste, até a intersecção entre o Arroio Erumaré e o Rio Toldo65, preservando, deste modo, o conjunto completo terras,
nascentes e cabeceiras a montante deste ponto de confluência (-27º 45� 09,52�S;
-52º 10� 20,71� Wgr). Igualmente são considerados os divisores de águas sinalizados pela ferrovia Santa Maria-São Paulo e pela rodovia secundária que liga a
cidade de Getúlio Vargas ao distrito de Rio Toldo.
O desenho privilegia a inclusão dos fragmentos que se situavam na abrangência da Reserva Floresta Matto Preto, garantindo que a área integral dos polígonos A e B seja restituída ao povo Guarani. Deste modo ficam
salvaguardadas as nascentes e cabeceiras das micro-bacias dos arroios Paulo, Castilhos e Erumaré, algumas nascentes e parte do curso superior a médio do Rio Toldo, e os dois banhados referidos pela comunidade indígena. Do mesmo modo ficam asseguradas as áreas de ocupação histórica, como o cemitério e aldeia antiga. Os limites ainda consideram a ocupação Kaingang, limítrofe à TI Mato Preto, assim como o projeto indígena de ampliação da TI Ventarra,
reservando a Bacia do Rio Erechim, de ocupação tradicional Kaingang, para os usos desta etnia.
Estes limites ideais consideram os preceitos da cultura Guarani, preservam a ecologia das populações animais e vegetais locais, e consideram o artigo 231 da Constituição Federal de 1988. A viabilidade desta proposição é
limitada a curto e médio prazo pela densidade atual de ocupação não-indígena na região delimitada. Isto não implica no descarte deste estudo, pensando na continuidade dos Guarani como povo indígena e em seu aumento populacional, devendo a proposta ser reconsiderada no futuro.
65 Conforme já referimos, as florestas que acompanham parte do curso médio do Rio Toldo foram apontadas pela comunidade indígena como importantes para a manutenção das atividades de pesca (ver o iten 10 da página 25 no Relatório Antropológico Preliminar � MELLO, 2004: 25)
35
�As condições e os elementos naturais e simbólicos privilegiados para a permanência das famílias constituem-se na existência de áreas contínuas de mata, de espécies e formações
florísticas manejadas que denotam indícios de antiga ocupação guarani, de pequenas fontes de água banhadas pelo sol nascente, plantas e animais silvestres �originais� (oejava�ekue)�.
(Ladeira, 2001:166)
36
VEGETAÇÃO E RELEVO:
Art. 1º - As florestas nativas e as demais formas de vegetação natural existente no território estadual, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são consideradas bens de interesse comum a todos os habitantes do Estado, exercendo-se os direitos com as limitações que a legislação em geral e, especialmente, esta Lei estabelecem.
Art. 2º - A política florestal do Estado tem por fim o uso adequado e racional dos recursos florestais com base nos conhecimentos ecológicos, visando à melhoria de qualidade de vida da população e à compatibilização do desenvolvimento sócio-econômico com a preservação do ambiente e do equilíbrio ecológico. (Lei 9.519 - Código Florestal Estadual de 21 de janeiro de 1992, cap.I: Da Política Ambiental � grifos meus)
O termo �Mata Preta� ou �Mato Preto� é uma designação regional e se refere
à fisionomia densa e escura conferida pelo pinheiro-brasileiro (Araucaria angustifolia)
à Floresta com Araucária que originalmente cobria cerca de 7,5 milhões de hectares
no Sul do país, com encraves em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais:
"Originalmente os pinhais mais extensos se situavam, principalmente, no assim chamado primeiro Planalto Catarinense, abrangendo as áreas compreendidas desde São Bento do Sul, Mafra, Canoinhas e Porto União, avançando em sentido sul até a Serra do Espigão e Serra da Taquara Verde, continuando em seguida pela Serra do Irani em sentido oeste. Em toda esta vasta área, o pinheiro emergia como árvore predominante, por sobre as densas e largas copas das imbuias, formando uma cobertura própria e muito característica. Precisamente em virtude desta cobertura densa e do verde-escuro das copas dos pinheiros, estes bosques são denominados pelos serranos, de Mata Preta."66
Ao longo de sua área de cobertura, esta floresta estabelece interface com
diferentes ecossistemas associados67. Na região do Alto Uruguai, a chamada �Mata Preta� (Floresta com Araucária, Floresta Ombrófila Mista) encontra elementos da
�Mata Branca� (Floresta do Alto Uruguai, Floresta Estacional Decidual), assim
conhecida pela fisionomia clara das copas emergentes que perdem as folhas durante
o inverno. Este encontro se dá pelo avanço de espécies características da Mata Branca pelas calhas dos rios, desde a Bacia do Uruguai, atingindo as cotas de maior altitude em que predominam os pinheirais.
66 REITZ, R. & KLEIN, R Araucariáceas In: R. Reitz, Flora Ilustrada Catarinense: ARAU, Itajaí, 1966 (grifos meus) (in: www.socioambiental.org) 67 Entre eles merece destaque o Campo Sulino (Estepe Gramíneo-Lenhosa, Campos Subtropicais Úmidos), juntamente com a Savana Arbórea Aberta e o Campo Rupestre. Trata-se de uma formação geológica antiqüíssima, com cerca de 60 milhões de anos, ocupando altitudes que variam de 750 metros a 1200 metros e depressões circulares de até 100 metros de profundidade. (IBGE, 1992)
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O angico-vermelho (Parapiptadenia rígida) é uma das espécies de Mata Branca que primeiro penetra na Mata Preta, sendo reconhecida pela sua força de
pioneirismo, podendo ser encontrada nas submatas dos pinhais, principalmente nas
submatas formadas pela canela-lajeana (Ocotea pulchella)68.
A distribuição do angico-vermelho coincide com praticamente toda a área do território Guarani, sendo observado do Mato Grosso ao Rio Grande do Sul, além de
Bolívia, Argentina e Paraguai69. Encontrado nas florestas da TI Ventarra e nos fragmentos florestais mais maduros da TI Mato Preto, o angico-vermelho (kurupa�pytã) foi identificado pelo pajé Ernesto Kuaray Pereira como espécie de uso tradicional Guarani, com emprego nas curas associadas ao trato respiratório. Nas palavras do pajé, �o angico é uma força pro Guarani, pra respiração do Guarani.
Nhanderu mostra esse remédio pra nós�.
Os estudos de campo igualmente revelam que esta é uma das espécies que contribui para a construção do elo de pertencimento Guarani Xiripá às florestas da área reivindicada:
�Quando nós andamos num matinho, assim, ficamos alegres de encontrar o angico, o cedro, o pindó70. Esses são natureza que nós conhecemos, aí ficamos alegres de encontrar71�.
Pajé Ernesto Kuaray Pereira removendo a entrecasca do angico-vermelho para preparo de remédio
68 REITZ et al, 1988. 69 REITZ et al, 1998:139. 70 De acordo com Ladeira (2001: 136) �Entre tantas espécies e elementos que fazem parte do acervo guarani há alguns considerados como indicativos de lugar, para a formação das aldeias. Entre eles, pindo etei e tava�. 71 Depoimento de Lurdes Ara Martins prestado enquanto percorria as florestas locais.
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Ainda com relação às espécies da flora, o Pindó (jerivá � Syagrus
romanzoffiana), conforme as suas disposições no espaço, é considerado pelos
Guarani como espécie indicadora dos locais propícios para a formação de aldeias.
Essas palmeiras são totalmente aproveitadas pelos Guarani (frutos, caule,
fibras e folhas), sendo fonte de alimento, remédio, abrigo e artefatos e energia
(fogo)72. Assim como o angico-vermelho, esta palmeira também é encontrada na TI Mato Preto: ela marca o espaço do antigo cemitério Guarani assim como outras
áreas de importância sócio-cultural no contexto da Tekoá Ka�aty. A localização dos agrupamentos de pindó � os pindo ty - foi um dos elementos centrais
considerados pelos indígenas no processo de delimitação da TI Mato Preto. A
distribuição desta palmeira abrange todo o território Guarani, sugerindo um vínculo entre a dinâmica territorial deste povo indígena e a biodiversidade em escala macro-regional.
Lurdes Ara Martins coleta frutos do pindó. Menino Guarani come fruto do pindó (Florestas da TI Ventarra)
No que se refere às classificações êmicas das formações florestais, de
acordo com o diagnóstico dos especialistas indígenas e no contexto do etno-zoneamento Guarani da TI Mato Preto, a �Mata Preta� � patumreí � foi
identificada como zona apropriada para a caça e a coleta; enquanto a �Mata Branca� � edjakareí � foi associada aos cursos d�água, à agricultura, à cerâmica e à pesca.
72 LADEIRA, 2001:136; IKUTA, 2002.
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Espécies de ambas as formações florestais são identificadas e incorporadas no sistema de cura tradicional Guarani: em uma incursão nas
florestas da TI Ventarra, o pajé Ernesto Kuaray Pereira reconheceu 14 espécies de uso medicinal integrantes dos diferentes estratos florestais: ervas, arbustos, arvoretas, árvores e epífitas. Estas espécies estão associadas à cura de doenças que atingem diferentes sistemas corporais: digestivo, respiratório, reprodutor, locomotor, nervoso73. Nesta mesma incursão foram localizadas espécies de uso alimentar e tecnológico, como a amora-do-mato, a pitanga, o pinhão, a taquara-mansa, as imbiras e cipós empregados na confecção de cordas e na coloração das cestarias. A contribuição dos estudos ambientais ao processo de delimitação da TI Mato
Preto é sintetizada no croqui apresentado no tópico anterior. Nos limites sugeridos
são incluídas unidades ambientais que reunem espécies florestais de ambas as formações (Floresta Ombrófila Mista, predominando nas cotas mais elevadas do terreno e Floresta Estacional Decidual, avançando pelos cursos d�água e
compondo a cobertura vegetal das terras mais baixas, associadas ao curso médio do Rio Toldo). Estas florestas, por sua vez, são a base para a manutenção de
populações de espécies de fauna importantes na ecologia e economia Guarani.
Considerando os dados levantados pelo Inventário Florestal Contínuo do
Estado do Rio Grande do Sul74, a Bacia Hidrográfica do Apuaé-Nhandava, onde se
insere a região de estudo, apresenta atualmente um percentual de 28,9% de
cobertura florestal nativa.
Neste inventário foram amostradas áreas de floresta relativamente bem
conservadas do Alto Uruguai, estabelecendo um parâmetro adequado para a
avaliação da composição florística nas formações vegetais mais maduras da TI Mato Preto. Levando em conta os levantamentos deste Inventário, as seguintes
espécies são esperadas nas formações vegetais locais:
73 A lista destas espécies e seus usos será apresentada no item �coleta vegetal� da Parte IV deste Relatório. 74 SECRETARIA ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE, DEPTO. DE FLORESTAS E ÁREAS PROTEGIDAS Inventário Florestal Contínuo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. (disponível na página: www.sema.rs.gov.br).
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Floresta Ombrófila Mista: Araucaria angustifolia (Pinheiro-brasileiro)*, Matayba
elaeagnoides (camboatá-branco), Dicksonia sellowiana (xaxim)*, Blepharocalyx salicifolius
(murta), Nectandra megapotamica (canela-preta), Lithraea brasiliensis (bugre), Cryptocarya aschersoniana (canela-fogo), Ilex brevicuspis (caúna), Campomanesia
xanthocarpa (guabiroba), Myrcianthes gigantea (araça-do-mato), onde o pinheiro-brasileiro geralmente contribui com cerca de 30%75.
Floresta Estacional Decidual: Nectandra megapotamica (canela-preta), Alchornea
triplinervia (tanheiro), Cupania vernalis (camboatá-vermelho), Luehea divaricata (açoita-cavalo), Casearia sylvestris (chá-de-bugre), Parapiptadenia rigida (angico-vermelho), Patagonula americana (guajuvira), Matayba elaeagnoides (camboatá-branco), Allophylus edulis (chal-chal)76
Florestas de galeria (matas ciliares): Sebastiania commersoniana (branquilho), Luehea
divaricata (açoita-cavalo), Syagrus romanzoffiana (gerivá), Parapiptadenia rigida (angico-vermelho), Allophylus edulis (chal-chal), Chrysophyllum marginatum (aguaí), Casearia sylvestris (chá-de-bugre), Sebastiania brasiliensis (branquilho-leiteiro), Eugenia
uniflora (pitangueira), Nectandra megapotamica (canela-preta)77. Campos78: Com relação às formações campestres, a região em que se insere a TI Mato
Preto abriga elementos residuais representativos do Campo Subtropical Úmido. Algumas espécies características desta formação puderam ser identificadas em áreas abandonadas ou bordas de estradas na área reivindicada: barba-de-bode (Aristida
jubata) e rabo-de-burro (Andropogum sp.). A avaliação desta formação na região fica prejudicada em virtude da pressão de pastagem e da ocupação agrícola. Reconhece-se que a maior parte dos descampados é produto da ocupação humana.
Com base nos estudos de campo que subsidiam este Relatório, classifico a condição atual das florestas da TI Mato Preto da seguinte forma79: florestas nativas inequianas, mistas e secundárias, com poucas áreas de capoeiras e capoeirões, uma vez que os solos desmatados são hoje imediatamente aproveitados na policultura com predomínio de soja. 75 Espécies com * integram a lista da flora ameaçada de extinção, merecendo medidas de preservação. Espécies em negrito foram observadas nas florestas da TI Ventarra. 76 As espécies em negrito foram observadas nas florestas da TI Ventarra. 77 Espécies em negrito observadas em florestas da TI Ventarra. 78 Os campos do Rio Grande do Sul foram incluídos no estudo de prioridades para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade da Mata Atlântica e dos Campos Sulinos do MMA/Pronabio, elaborado pela CI, ISA, WWF, IBAMA. 79 Cf tipologia estabelecida pela Lei Nº 9.519 de 21.01.1992, cap.V, art.2º e Lei Nº 4.771, de 15.11.1965.
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Capões de mata em meio à policultura Borda de floresta desmatada com corte raso
Atualmente, as florestas mais conservadas da TI Mato Preto � e já referidas
- estão na abrangência da área que foi reservada em 1929 como Floresta Matto Preto. Estas florestas � hoje reduzidas a fragmentos - permaneceram reservadas
até a década de 1960, período em que foram mais intensamente manejadas pelos
Guarani e protegidas do impacto da colonização. Considerando o histórico do processo colonial sobre estas florestas, pode-se considera-lo relativamente recente em comparação com a região em que a TI Mato Preto se insere, o que se
observa pela conservação relativamente maior destes fragmentos em comparação com os fragmentos do entorno e depõe favoravelmente sobre a
capacidade de recuperação dos núcleos florestais remanescentes.
Ainda no que se refere à conservação e possibilidade de expansão destes
fragmentos florestais, cabe considerar o relevo como um elemento importante, sobretudo no que se refere ao estabelecimento de condições favoráveis ao fluxo gênico entre as manchas florestais.
Sabe-se que as sementes de espécies anemocóricas (cuja dispersão se dá
pelo vento), atingem áreas mais amplas quando situadas em cotas elevadas do terreno80.
80 RODRIGUES, Efraim; Cainzos, Rigoberto L.P.; Queiroga, Joel & Herrmann, Bethânia C. Conservação em paisagens fragmentadas in: Cullen Jr., L.; Rudran, R. & Valladares-Pádua, C. (org) Métodos de Estudos em Biologia da Conservação e Manejo da Vida Silvestre Curitiba:UFPR/Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, 2003.
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Na TI Mato Preto o relevo possui ondulações que variam na faixa das cotas
de 800 a 600m. Na altura do divisor de águas das micro-bacias do Arroio Castilhos e do Rio Toldo, um pico de 808m de altitude abriga fragmentos florestais importantes e que devem ser incluídos nos limites da TI Mato Preto.
Capões de galeria: o relevo é elemento importante no fluxo genético entre fragmentos
As espécies florestais destes fragmentos, em função da cota de altitude, têm possibilidades de colonização dos espaços de ambas as micro-bacias, o que é interessante no prognóstico de restauração das florestas locais. O mesmo vale para as florestas situadas nas nascentes do Arroio Paulo, em cotas de 750m a 800m.
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FAUNA E BIODIVERSIDADE:
Atualmente, na área de abrangência do Bioma Mata Atlântica, 269 elementos da fauna integram a lista de espécies ameaçadas de extinção (sendo
103 de invertebrados, 15 de anfíbios, 45 de répteis, 94 de aves e 39 de mamíferos).
No Rio Grande do Sul, são 70 espécies que se encontram vulneráveis, em perigo ou criticamente em perigo de extinção.
O principal fator de risco que incide sobre estas espécies é a desestruturação dos habitats e micro-habitats, fruto da crescente fragmentação e isolamento das unidades de paisagem, e a ausência de corredores ecológicos que permitam o fluxo gênico entre manchas discretas. O desmatamento, a redução e poluição das águas, a homogeneização das paisagens pelas monoculturas, os
empreendimentos hidrelétricos e outras obras de impacto estrutural no ambiente são os principais fatores relacionados a este problema. Atualmente com
menor importância, a caça e o comércio de animais selvagens, assim como o
atropelamento nas estradas e rodovias também pesam como fatores de risco.
Cabe destacar que espécies como o lagartinho-de-vacaria (Cnemidophorus
vacariensis) ou o camaleãozinho (Anisolepis undulatus), ambas endêmicas do Rio Grande do Sul e ameaçadas de extinção, têm ocorrência registrada para a
região do Alto Uruguai e suas populações se encontram vulneráveis. Dentre os
mamíferos, merecem destaque os felinos, como a onça (Panthera onca), o leão-baio (Felis concolor capricorniensis), a jaguatirica (Leopardus pardalis nitis)81 e
o gato-do-mato (Leopardus tigrinus). Dentre os canídeos, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) está praticamente extinto no Estado: um único casal
de lobo-guará em época reprodutiva ocupa um território de cerca de 25 km2, o que
num quadro de paisagens fragmentadas, como é o caso do Alto Uruguai como um
todo, acaba inviabilizando a sustentabilidade desta espécie a nível regional.
81 Noticias na imprensa referem o atropelamento de mamíferos nas estradas da região. O jornal Correio do Povo registrou o atropelamento de uma fêmea de jaguatirica na RS 802, nas imediações de Erechim (Jornal Correio do Povo, 16/11/2004, p.26). Estas espécies, uma vez regularizada a TI Mato Preto, encontrarão abrigo em suas florestas.
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Todas estas espécies têm elevadas exigências ambientais e suas
populações dependem de condições em termos de espaço, estrutura de habitat, oferta significativa de alimento (sobretudo os carnívoros), etc., para que atinjam
estabilidade em termos de densidade e abundância. No que se refere às relações entre fauna e sociedades indígenas, alguns
estudos têm estabelecido associações que vão desde processos coevolutivos entre
determinadas espécies animais e populações ameríndias82, até o nível de uma
ecologia simbólica, como propõe a teoria do perspectivismo83. A respeito da
sociedade Guarani, José Otávio Catafesto de Souza estabelece relações entre a
fauna e a flora presentes na abrangência do território Guarani com as atividades de
caça, pesca, horticultura e coleta que integram o que designa por �sistema técnico-econômico Guarani�84. Neste estudo, o autor trás um exaustivo inventário da fauna
presente no domínio da Província Zoogeográfica Guarani, assim designada por C.
de Mello Leitão, relacionando a área desta Província aos ambientes integrantes do
território Guarani pré-colonial. À guisa de conclusão, o estudo de Catafesto de Souza
aponta para possíveis associações entre a diversidade de fauna e as práticas de manejo Guarani, compreendendo a caça como um �fato social cultural�85
Ainda nesta perspectiva, a tese de doutorado de Maria Inês Ladeira86 destaca
a importância da qualidade e diversidade dos ambientes e recursos naturais
presentes nos tekoá e guará nos processos de territorialização e construção de
pertencimento Guarani aos espaços que efetivamente ocupam. Associando o
território Guarani latu sensu aos ecossistemas presentes no Bioma Mata Atlântica, a etnografia de Ladeira revela o valor assumido por determinadas
espécies da fauna no contexto do universo cultural Guarani. Os dados etnográficos
incluem depoimentos contendo observações etno-ecológicas acerca do
comportamento de espécies como a anta (Tapirus terrestris � mbore w�i) ou a
queixada (Tayassu pecari � koxí), relatos de caçadas, regras associadas à caça e
82 Como é o caso dos estudos realizados por GREENBERG (1992) entre os caçadores Yucatec Maya e populações de suas presas preferenciais. 83 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio Mana 2(2): 115-144, 1996. 84 CATAFESTO DE SOUZA, José Otávio Uma introdução ao sistema técnico-econômico Guarani. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 1987. 85 CATAFESTO DE SOUZA, 1987:315. 86 LADEIRA, 2001.
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consumo animal, categorias êmicas para a classificação de formações vegetais e
processos ecológicos, assim como uma série de concepções indígenas acerca da
passagem do tempo, dos ciclos naturais e da ordenação da paisagem. Dentre as
conclusões, a autora pondera que a integridade e diversidade em termos ambientais
são fatores centrais, devendo ser observados nos processos de delimitação das
terras Guarani.
Províncias Zoogeográficas da América do Sul87
A área pontilhada corresponde à região zoogeográfica designada �Província Guarani�
Neste mesmo sentido, uma contribuição também importante é trazida pela
dissertação de mestrado da antropóloga Flávia Cristina de Mello88. A etnografia da
autora sugere que a mobilidade Guarani, reconhecidamente de caráter sociológico, também diz respeito a estratégias de resistência étnica. A busca da
�Terra sem Males�, que na etnografia clássica ficava restrita a interpretações de 87 Adaptação a partir de CATAFESTO DE SOUZA, 1987:548, que por sua utilizou a fonte de LEITÃO, 1980:421. 88 MELLO, Flávia Cristina de AATA TAPÉ RUPY � Seguindo pela estrada: uma investigação dos deslocamentos territoriais realizados por famílias Mbyá-Guarani no Sul do Brasil Dissertação de Mestrado Florianópolis: UFSC, 2001.
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ordem transcendente, ganha na etnografia de Mello uma dimensão de ordem prática,
sugerindo que a terra idealizada pelos Guarani é aquela que permite a manutenção
do Nhande reko (modo de ser Guarani). A autora aponta para a necessidade de
incorporar os contextos ambientais, econômicos, políticos e fundiários na análise da
dinâmica Guarani no Sul do Brasil, onde o abandono temporário de algumas áreas,
em virtude de conflitos étnicos ou falta de condições de sustentabilidade, sugere que
a busca da Terra sem Males pode significar �alcançar um local apto à criação de um tekoá� 89.
Com a transcrição do seguinte trecho, aponto alguns desdobramentos
ambientais deste estudo, que poderiam ser sintetizados pelo conceito de
sustentabilidade:
�No sentido concreto, os deslocamentos são definidos pelos Guarani como a
�luta� para a obtenção de terras que possuam as características que possam
propiciar viver dentro da cultura e do �sistema Guarani�, definido pela idéia de
Nhandérekó, Mbyá Rekó, ou �tekó�, ou seja, terras onde haja áreas agriculturáveis para que eles cultivem sua �comida própria�, a comida
prescrita por Nhanderu (Deus), onde se tenha a mata, de onde se tira as plantas medicinais, o mel, a caça, e finalmente, um local adequado para
estabelecer a aldeia, com isolamento e retiro, longe de outros grupos étnicos,
onde o Guarani possa estabelecer suas relações sociais e de produção sem interferência externa90�.
Tantos outros estudos poderiam ser referidos para embasar aquilo que
também constatei nos trabalhos de campo na TI Mato Preto, qual seja: a identificação do grupo com os espaços da área reivindicada se verifica na medida em que determinadas espécies da fauna e da flora, assim certas unidades de paisagem, sobretudos florestas e águas, são reconhecidas e fazem sentido no seu universo cultural.
Já referi no tópico anterior o profundo conhecimento do casal Ernesto Kuaray
Pereira e Lurdes Ara Martins sobre a flora local. Com respeito à fauna, os poucos
animais avistados nas incursões à campo foram saudados com euforia pelos 89 MELLO, 2001:144 90 MELLO, 2002:143 (grifos meus)
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Guarani: era como se encontrassem velhos conhecidos. Para compensar a atual condição de raridade em que se encontra a fauna na área reivindicada, os Guarani projetavam seu olhar para o futuro da TI Mato Preto, ressaltando seu interesse em criar condições para que �os bichinhos do mato voltem�. Vejamos, na página seguinte, o trecho de uma entrevista a este respeito:
Ambientalista - E os animais, aqui nessa área, bichinho... tem bichinho por aqui? Ernesto K. Pereira� Eu por aqui não vi nada. Vi um tatuzinho que veio por ali, e mais nada. Ele, mesmo, ainda não vi; vi só onde eles fuçaram (...). Outro dia eu vi também um veado que andava por ali [na T.I. Ventarra], lebre tem também. Lá na terra dos Kaingang tem muito veado! Nós queria muito que vivesse os bichinhos aqui. Mas aqui, esses tempinhos aí, ali pra cima [na área ocupada por um colono] tavam caçando lebre. E nós queria que se criassem, que vivessem os bichinhos aqui. Darci da Silva � Bichinho nativo não temo mesmo... porque tem o veneno, e não tem o mato. Ambientalista � Voltando o mato vocês acham que voltam os bichinhos também? Ernesto e Darci � Voltam! Seberiano Moreira � Nós cremos em Deus que volte, né. Porque eu mesmo, que tô aqui, tenho 24 anos e não conheço uma quantia de bichos que eles conhecem. Então a gente também quer conhecer! Então a gente tá trabalhando em cima disso, pra que volte o mato, pros meus filhos, prá que eles também conheçam, saibam que bicho que tem, saibam que animais que eles não conhecem e que eles podem conhecer com ele, porque ele [Ernesto] conhece mais que a metade do que eu; muito mais! Então isso que a gente ta brigando, prá voltá o mato! Prá ouvir passarinho cantar! A gente não vê passarinho cantar; tudo o que a gente vê lá pra cima a gente não vê nem a metade aqui! Mas eu tenho orgulho bastante que volte o mato, pra nós viver, conhecer.
A abundância relativa de algumas espécies da fauna em determinados espaços regionais, como é o caso do veado (guaxú) - encontrado pelo pajé nas
florestas da TI Ventarra , aponta para a existência de reservatórios locais a partir
dos quais, uma vez estabelecidas vias de fluxo, os ambientes da TI Mato Preto, restituídos aos indígenas, poderão ser repovoados91.
91 No caso específico da TI Ventarra, uma vez que RS 135 separa as duas TI�s, será necessário projetos que viabilizem o intercâmbio de fauna entre as duas áreas.
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Ainda sobre este aspecto, o depoimento do Guarani Pedro Mariano (85 anos)
faz referência a plantas e animais presentes na região na época da Tekoá Ka�aty,
pouco antes da colonização da Floresta Matto Preto: �Quando eu era piá conheci tudo por aqui. Era tudo mato, só matão. Os pinheiros eram fechados, a terra era boa de planta pros Guarani. Não tinha essa estrada aqui [RS 135], só estrada de cavalo. Naquele tempo aqui dava tudo quanto era bichinho: tatu, veado, coati, tigre, paca, cotia, ka�í [macaco], tudo o quanto é bicho do mato. E madeira boa, tinha o angico, a cabriúva, a canjerana, a grápia, o cedro, o camboatá, tarumã, pindó, tudo quanto é madeira de lei, mesmo. Nesse tempo eu tinha uns dez anos. Depois o pai faleceu, botaram colônia e o povo foi se retirando. Hoje tão voltando, que essa terra é do Guarani�.
A este mesmo respeito assim se refere Jorge Garcia, xamã Kaingang e filho
de mãe Guarani que prestou depoimentos ao GT: �(...) Na época que nós era piá nós tirava pinhão nos matão... naquela época tinha caça, tudo quanto é tipo de caça: tinha paca, tatu, quati, onça... e naquela época Erechim era uma vilinha, tinha 3 ou 4 bodeguinhas...tinha muito veado, veado de montar, assim. E tinha quantidade...e hoje não existe nada mais...tinha paca, lontra...e tinha pesca também... tinha anta, bastante capivara (...)�
No que se refere à caça, as seguintes espécies de mamíferos foram citadas
pelos interlocutores Guarani como sendo de ocorrência na Tekoa Ka�aty: a anta (Tapirus terrestris � mbore w�i), a paca (Agouti paca � jaixá), os porcos-do-mato cateto (Tayassu tacaju �ta�ytetu) e queixada (Tayassu pecari � koxí), os tatus (Dasypus sp. � tatueteí, tatupodjú), o tapiti (Sylvilagus brasiliensis � tapi�xi), a capivara (Hydrochaeris hydrochaeris � kapi�ywá), o coati (Nasua nasua � xi�y), a cutia (Dasyprocta azarae � akuxí), os veados (Mazama sp, Ozotocerus
bezoarticus, Blastocerus dichotomus � kuaxueté, kuaxuwirá, kuaxupytã,
kuaxupuku).
Praticamente todas estas espécies aparecem nos depoimentos de Pedro
Mariano e Jorge Garcia. Uma vez regularizada a TI Mato Preto e seus ambientes reconstituídos, pode-se afirmar que muitas destas espécies virão naturalmente buscar refúgio nas florestas e campos locais. Tendo em vista a degradação geral
da região, certamente a TI Mato Preto ira se constituir em uma ilha ambiental importante a nível regional, exibindo, no futuro, elevadas densidades de algumas
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populações. Entretanto, este prognóstico depende de um processo de delimitação que contemple habitats potenciais com dimensões e complexidade suficientes (numero e diversidade de unidades de paisagem) para que haja sustentabilidade tanto das populações da fauna quanto das práticas tradicionais de manejo Guarani. Se de um lado os dados de campo sugerem que a fauna e a flora de uma
determinada região são importantes nos processos de territorialização Guarani, de outro eles também revelam que o próprio manejo Guarani acaba sendo decisivo para a ordenação dos ambientes naturais, definindo padrões particulares de biodiversidade nos espaços que efetivamente ocupam92.
Vejamos alguns exemplos:
Mesmo na condição de acampamento, em uma área extremamente restrita, os
Guarani na TI Mato Preto mantém espaços de criação animal e cultivo, onde plantas
integrantes do repertório dos cultivares tradicionais Guarani se encontram
intercaladas com espécies da flora nativa.
Durante uma caminhada pelas pequenas áreas cultivadas, próximo às casas,
acompanhada do Guarani Sanico Pereira, me foi mostrada uma muda da epífita
designada por eles como quebra-quebra, cultivada entre uma mancha de capim-
elefante. A muda foi trazida das florestas da TI Ventarra para as proximidades do
acampamento, e o local de cultivo foi escolhido, segundo Sanico, por ter �mais sobra
e ser mais fresquinho�.
Pesa nesta escolha conhecimentos nativos sobre a ecologia da planta e a
experimentação de reproduzir suas condições naturais de existência. Estes
conhecimentos são integrados a uma espécie de �ciência horticultora�: trata-se de
uma ciência milenar, baseada em um profundo interesse e minuciosa observação do
mundo natural, cujos conhecimentos são transmitidos e herdados pela via da
92 Esta observação vai ao encontro de estudos contemporâneos que vêm propondo associações entre padrões de territorialidade, práticas de manejo e biodiversidade no contexto Guarani (e.g. CATAFESTO DE SOUZA, 1987; LADEIRA, 2001; FELIPIM, 2001; 2004; IKUTA, 2002; NOELLI, 2003)
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tradição, através da oralidade, sendo de domínio público, mas cujos princípios são
resguardados por alguns especialistas - os xamãs, pajés ou karaí.
Um exemplo mais contundente, diz respeito ao plantio de sementes de aguaí
(Chrysophyllum viride) nos espaços domesticados das roças.
O aguaí é uma planta de grande valor simbólico para os Guarani: ela está
presente no Mito do Sol e da Lua e suas sementes são usadas na composição dos
colares cerimoniais. As sementes de aguaí que existem na casa do pajé Ernesto
Kuaray Pereira foram trazidas da TI Mbiguaçu, no litoral de Santa Catarina. Com
certeza o manejo Guarani contribui para que esta planta, característica da Floresta
Ombrófila Densa, tenha sua distribuição estendida aos ambientes do Alto Uruguai93.
Em comparação com o aguaí, a erva-mate oferece um exemplo do fluxogênico
estabelecido pelos Guarani em seu sentido contrário, ou seja, das florestas do
interior do continente, em direção ao litoral e à Mata Atlântica stricto sensu. Conforme
observa a etnografia de Ladeira,
�a erva mate (kaa), presente no Paraguai e no interior dos estados do sul do Brasil, pode ser encontrada, de forma esparsa, em alguns pontos da Serra do Mar. Difícil de ocorrer na Mata Atlântica do litoral, é vista no caminho que une as aldeias do Rio Branco e Aguapeu às aldeia do Krukutu e da Barragem, em locais onde os Guarani acampam durante suas incursões.
Ainda com relação ao cultivo no Mato Preto, um exemplo que ilustra o papel
do manejo Guarani nos padrões de biodiversidade local é fornecido por uma
pequena erva chamada pekunká pelos indígenas. Associada a determinados rituais
mágicos e à feitiçaria, ela é mantida pelo pajé Ernesto Kuaray Pereira entre os
cultivares que ocupam os barrancos próximos ao acampamento. Segundo ele, os
indivíduos de pekunká gostam de capoeiras finas, bordas de mata, podendo mesmo
ser encontrados a campo aberto.
Com respeito à fauna, os Guarani da TI Mato Preto, nas condições de
acampamento, criam cães, gatos, galinhas, porcos-da-índia e pombos. Os projetos
93 De acordo com o antropólogo Rodrigo Venzon, há uma mancha espressiva de aguaí nas florestas da TI Guarita, no setor ocupado pelos Guarani.
51
futuros incluem a introdução de �bichinhos do mato�, a partir dos ambientes que
integram o guará94 em que o grupo se insere.
Vejamos este trecho de entrevista95:
Ernesto � Quando nós tiver morando lá pra baixo, vamos criar porquinho, galinha, uma vaquinha de leite, isso nós queremo comprá e deixar pros neto, pros filho que fiquem, que a maioria não sabe o que é bichinho. Bichinho de caça também, tem vários de caça que nem vi nenhum por aqui (...). Aqui não vi nem paca, não vi cutia, nem graxaim acho que não tem aqui, nem gato-do-mato não vi, coati não tem, ouriço não vi também � onde que tinha bastante ouriço era em Cacique Doble... Darci � Papagaio... Ernesto � Papagaio, periquito, caturrita não vi desses bichinhos por aqui. Esses bichinhos é que nós gostava. Os antigos criavam. Eu me lembro até hoje, quando eu tinha uns doze ou treze anos falecida mãe criava papagaio, periquito, caturrita... Darci � Aqui não vi nem mico Ernesto � Mico também não tem, nem bugio não vi também. Agora, no Canta-Galo tem bastante bugio. Lurdes � Quando nós morá lá pra baixo a gente vai buscá esses bichinho lá... Ernesto � Nem nhambu não vi cantá...nhambuzinho do mato... não vi cantá em parte nos matinho não vi. O uru do mato não vi. Terezinha � Eu digo que quando nós for mora lá pra baixo nessa nossa terra, tudo que falta de bichinho, que nem esses mico, que dizem bugio, a gente podia trazer de lá [TI Canta-Galo] pra cá pra se criá. Que eu também não conhecia. Eu fui pra lá pro Canta-Galo, passeá, aí eu até estranhei, não sabia que bicho que era esse. Daí o meu tio disse: �Esse que é o bugio�. Daí eu gostei.
Este depoimento assim como os outros exemplos referidos ao longo deste
Relatório, revela que, em se tratando de fauna e flora silvestre as famílias Guarani
em trânsito podem dispersar por centenas ou milhares de quilômetros um determinado organismo, ampliando sua área de ocorrência e favorecendo o fluxo genético entre populações discretas. Em outras palavras, se o fundamento dos
94 De acordo com SOARES (1997), o guará é o quarto e último nível da organização socio-territorial Guarani, consistindo no �conjunto de tekoá que forma uma região ou província�. O guará se constitui pelos laços de reciprocidade entre tekoá distantes. Com relação ao Tekoá Ka�aty, como veremos mais adiante, o seu guará integra tekoá dispersos em toda a região sul do Brasil, estendendo-se até parcelas do Paraguai. 95 Fita 1, lado A, grifos meus.
52
deslocamentos Guarani é de ordens sociológica, cosmológica, etc., seus desdobramentos assumem proporções ecológicas. A este respeito, vejamos
estes trechos da tese de Maria Inês Ladeira:
�As atividades de manejo e os intercâmbios de espécies naturais e os culturais podem extrapolar os limites das áreas e acontecem no âmbito de aldeias situadas num mesmo complexo geográfico / ambiental e mesmo entre aldeias localizadas em regiões distintas e distantes�96.
A dinâmica social Guarani, ao interligar os diferentes tekoá pelos
deslocamentos estabelece um determinado fluxo, que exibe padrões de relativa
estabilidade ou, em outras palavras, que é sustentável porque possui duração. Esta
duração é dada pelo ethos Guarani, fundado na lógica da reciprocidade e do dom97,
que determina que, ao receber um convite, é dever do Guarani retribuí-lo98. Nas visitas, motivadas pelas mortes, casamentos, nascimentos, pela ajuda em situações
variadas, etc., os Guarani levam consigo sementes, animais. A duração e estabilidade destes deslocamentos, somados à intencionalidade
Guarani, faz destas pessoas mais do que simples dispersores ocasionais de
determinados organismos: os Guarani em trânsito constituem verdadeiros corredores biológicos no mosaico da paisagem, e o fluxo de plantas e animais através deste �corredor�, selecionadas a partir das intencionalidades culturais Guarani, define padrões particulares em termos da biodiversidade dos espaços que efetivamente estas pessoas ocupam.
Quebra-quebra, entre o capim-elefante Pekunká, nas áreas de cultivo Guarani
96 LADEIRA, 2001:122 97 MELIÁ, 1987; SOARES, 1997; CATAFESTO DE SOUZA, 1987; 2002. 98 SOARES, 1997: 144.
53
III - Problemas ambientais verificados em campo e situação das áreas de entorno
A TI Mato Preto abrange porções da área rural dos municípios de Erebango e
Getúlio Vargas. Esta área é ocupada por pequenas propriedades caracterizadas pela
policultura com predomínio de lavouras de grãos (especialmente soja, trigo, milho,
cevada), seguidos da extração vegetal e silvicultura (erva-mate e madeira).
A produção inclui em menor escala outros gêneros de lavouras temporárias
(alho, amendoim, batata, mandioca, melancia, tomate, etc) e permanentes (erva-
mate e frutas, como o caqui, cítricos, pêra, pêssego e uva), combinados com a
criação animal (gado bovino, equino, caprino, ovino, suíno, coelhos, aves),
resultando em um modelo de ocupação relativamente diversificada e intensiva dos
espaços99.
Geralmente, cada pequena propriedade possui no entorno próximo da casa
principal, uma horta, um pequeno pomar, um galinheiro, uma pocilga e um açude,
integrando a economia doméstica100.
Desde a introdução deste Relatório vimos referindo a relação entre os ciclos
econômicos instaurados ao longo do século XX no Alto Uruguai e o estado de
degradação101 em que se encontram os ecossistemas que compõe a TI Mato Preto.
O modelo colonial não é exclusivamente o responsável por este estado de coisas,
mas deve ser compreendido no conjunto dos ciclos econômicos vigentes na escala
de uma economia estadual, nacional e mesmo internacional.
A seguir são sistematizados os principais problemas ambientais que
conformam este quadro geral:
99 No final deste tópico seguem tabelas com os dados do setor primário do município de Getúlio Vargas (Fonte: IBGE, 2002). 100 Para a caracterização da região da TI Mato Preto, no que se refere à economia e produção rural, o apêndice 1 deste Relatório traz os dados do censo do IBGE (2002) para o município de Getúlio Vargas. 101 Degradação: processo que consiste na alteração das características originais de um ambiente, comprometendo a biodiversidade (LEI Nº 11.520, de 03 de agosto de 2000, Titulo II, art.14, inciso XVIII).
54
I - Desmatamento de cabeceiras e nascentes associado ao comprometimento físico,
químico e biológico dos recursos hídricos locais;
II - Drenagem das águas superficiais associada à redução do volume hídrico,
lixiviação e empobrecimento dos solos e erosão;
III - Desmatamento de matas de galeria associado à exposição das águas
superficiais a agentes agressivos e à redução dos índices de conectividade entre as
unidades de paisagem;
IV - Desmatamento das florestas nativas associado à redução e comprometimento
estrutural dos habitats e da área de vida das espécies da fauna silvestre;
V - Fragmentação das unidades de paisagem, com desconstituição de corredores
biológicos, ampliando o isolamento e reduzindo o fluxo gênico entre as manchas
(redução de conectividade);
VI � A expansão de empreendimentos e obras de impacto ambiental em toda a
região, destacando-se barragens e hidrelétricas. Além da área em litígio estar na
área de influência de alguns destes empreendimentos102, registrei a existência de
antenas de recepção de ondas celulares e redes de alta tensão em sua abrangência;
VII � Contaminação dos solos e águas com resíduos de agrotóxicos utilizados nas
lavouras;
VIII � Desgaste dos solos e lixiviação de nutrientes;
XI - Caça predatória e aprisionamento de animais silvestres para comercialização103;
X - Exploração irregular de produtos do extrativismo da Araucaria angustifolia e de
outras essências nativas protegidas pela Resolução CONAMA 278/2001;
102 Como já referido, a TI Mato Preto está na área de influência da UHE Machadinho (SANTOS, 1998). 103 Em conversa com moradores da cidade vizinha de Getulio Vargas, descobri que não é difícil conseguir exemplares de caturrita (Myopsitta monachus) apreendida e comercializada na região. Depoimento dos kaingang da TI Ventarra confirmam que a caça e aprisionamento ilegal da fauna ocorre na região com relativa frequencia.
55
XI � Como decorrência geral, redução da diversidade florística e faunística ou mesmo
extinção local de algumas espécies.
A Araucaria angustifolia consta desde 1992 da lista de espécies ameaçadas de extinção do Ibama e até 2001 sua exploração vinha sendo praticada regularmente,
inclusive com autorização de órgãos governamentais. Ainda hoje, esta e outras
espécies de madeiras de elevado valor comercial existentes nos remanescentes de
Floresta com Araucária, continuam sendo exploradas sob planos de manejo que
não são adequadamente fiscalizados.
Essas florestas "manejadas" tornam-se completamente empobrecidas, em virtude da
degeneração sofrida pelas espécies de valor econômico, e, não raro, os proprietários
acabam suprimindo-as para o plantio de pinus ou eucalipto. Dados do censo do IBGE
2002 indicam que 102 metros cúbicos de madeira em tora e 8 toneladas de
sementes (pinhão) de Araucaria angustifolia integram a safra 2002 do município de
Getulio Vargas. Neste período já vigorava a resolução CONAMA 278/2001,
suspendendo exploração desta espécie.
Os remanescentes de araucária na abrangência da TI Mato Preto, aos moldes de
outras áreas da região, vêm sendo suprimidos para ceder espaço à expansão de
atividades pecuárias e agricultura intensiva. Nestes casos, pudemos observar que,
antes de promoverem o desmatamento, os proprietários extraem e vendem a
madeira, como revelam os dados sobre a economia do setor primário dos municípios
da região104. Muitos adotam uma estratégia de ir "roendo pelas bordas" e anualmente
desmatam pequenas faixas na margem externa dos remanescentes. Outros adotam
a estratégia de desmatar de "dentro para fora", deixando apenas as bordas105.
Entretanto foi o corte raso de florestas protetoras associado ao recuo de cabeceiras
uma das práticas mais degradantes que registramos na região de estudo. Esta
estratégia está diretamente associada à ampliação das áreas de cultivo das lavouras
104 Ver tabela da economia do município de Getúlio Vargas, na página deste Relatório. 105 Estas estratégias já foram registradas em outros contextos da abrangência das Florestas com Araucária (ver www.socioambiental.org).
56
e consiste das seguintes técnicas: após o corte raso, os próprios materiais vegetais
removidos servem ao aterro de pequenos veios dágua; sobre este material são
depositadas camadas de terra e, sobre elas, se estende o cultivo de trigo e soja.
Assim as áreas de lavoura se sobrepõem às águas e matas na região. Com o
desmatamento, ocorre o rebaixamento do lençol freático e a redução da área de abrangência dos corpos d�água. Neste cenário, muitas das cabeceiras visitadas
apresentavam um recuo em relação à posição registrada nas cartas do exército de
1974. O recuo médio observado foi de 300m.
As imagens seguintes ilustram a degradação dos fragmentos florestais da região:
Desmatamento de cabeceira. Observa-se o material vegetal removido aterrando curso d�água e, sobre
ele, avançando o trigo. Ao fundo, capão remanescente que indica a atual posição da cabeceira106.
A expansão das monoculturas de árvores exóticas é outro problema gravíssimo na
região, tendo em vista que, com o avanço das plantações, ocorre um isolamento
cada vez maior dos pequenos e médios fragmentos de florestas nativas. Por sua
agressividade e maior velocidade de crescimento, essas monoculturas florestais
acabam reduzindo as possibilidades da Floresta Ombrófila Mista reocupar áreas
outrora desmatadas. Outro problema dos plantios homogêneos é a ocupação dos
espaços necessários à interligação dos fragmentos existentes.
No que se refere aos empreendimentos hidrelétricos, a TI Mato Preto foi inserida na
área de influência da Usina Hidrelétrica Machadinho. Esta Usina está localizada no
106 Posição desta cabeceira em UTM: 6926650,00 � 0389.000,00
57
Rio Pelotas, entre os municípios de Piratuba (SC) e Maximiliano de Almeida (RS). O
projeto previa área total de inundação de 567km2, afetando diretamente 1.080
propriedades e 1.534 famílias. O empreendimento integra amplo projeto de
aproveitamento energético da Bacia do Rio Uruguai em seu trecho nacional, proposto
pela Eletrosul na década de 1970. Cerca de 22 barramentos estão previstos. Entre
os impactos ambientais associados à implantação de hidrelétricas estão registrados
alterações climáticas, redução populacional e mesmo extinção local de espécies da
fauna e flora, alteração dos regimes hidrológicos e da dinâmica sócio-econômica de
populações humanas situadas em sua abrangência107.
107 Ver tópico Hidrografia, da parte II deste Relatório.
58
IV- Histórico dos estudos antropológicos enfocando a TI Mato Preto
A primeira referência à TI Mato Preto em contexto pericial aparece no Laudo
Antropológico �Os Indígenas de Ventarra e seus Direitos Territoriais�, de Lígia
Simonian (1994) 108. Neste estudo, a autora refere que:
�Um outro fato importante para a memória social dos indígenas do Rio Grande do Sul, diz respeito à incorporação do Toldo Mato Preto, de ocupação Guarani, demarcado em 1911 conjuntamente ao de Ventarra e Erechim. Este Toldo estava localizado, à época da demarcação, junto ao limite leste da TI Ventarra, nas terras hoje em poder do não índio Miguel Pokoeski. Os Guarani mantiveram por décadas um cemitério próprio, o que ocorreu até 1963, quando foram expulsos das terras que ocupavam. Contrariamente ao cemitério Kaingang, o dos Guarani foi destruído para expansão das lavouras dos colonos�.
Quatro anos depois, no âmbito do �Relatório Final do Estudo Etnográfico da
Usina Hidrelétrica Machadinho�, coordenado por Silvio Coelho dos Santos (1998)109,
a problemática da TI Mato Preto assume contornos de importância ambiental:
�Reserva do Matto Preto: Considerando-se o perímetro de avaliação da influência da Usina Hidrelétrica Machadinho sobre os índios, conforme estabelecido no documento produzido por Souza, Venzon e Rosa (1997), é necessário enfrentar o problema de identificação e demarcação da �Reserva do Matto Preto�, conforme o �Polygono B� de 223,8350ha., desenhado em mapa existente no arquivo do DACC/Secretaria da Agricultura e Abastecimento (mapoteca 8, plantas 55A.). Esta área foi demarcada em 22/04/1929, estando registrada no mapa como �Área indicada para os Índios Guarany�. De 1936 a 1967, a área foi colonizada por �brancos�, conforme registros dos lotes de 43 a 53 na seção do nordeste do Estado (RS), livro 13, página 41, sendo contígua à TI Ventarra.�.110
Neste estudo, a identificação da TI Mato Preto integra uma lista de
reivindicações territoriais indígenas levantadas no perímetro da �área de influência�111
da UHE Machadinho. Além dela são apontadas as áreas de Espigão Alto, Água
Santa, Erval, Forquilha, assim com a ampliação das TIs Cacique Doble e Ligeiro112.
O estudo indica que todas estas áreas estariam sujeitas a perturbações
laterais decorrentes da implantação da UHE Machadinho e reúne documentação
108 SIMONIAN, Ligia Os indígenas de Ventarra e seus direitos territoriais � Laudo Antropológico, 1994:8, apud PINHEIRO, Maria Helena A. Relatório do Levantamento Preliminar da Terra Indígena Mato Preto � RS FUNAI/UNESCO/CGID/DAF, Curitiba, setembro 2003a: 46. 109 SANTOS, 1998. 110 SANTOS, 1998:97 111 Cf definição dada na nota de rodapé nº 42 deste Relatório. 112 SANTOS, 1998:92-97.
59
básica que viria fundamentar a pertinência da demanda Guarani pela TI Mato Preto.
Esta conjugação entre demanda territorial indígena e risco de impactos do
empreendimento hidrelétrico sobre os territórios reivindicados justifica o caráter de
urgência expresso na seguinte asserção:
�É indispensável, assim, que a FUNAI favoreça a constituição de Grupos Técnicos, conforme estabelece o Decreto-Lei no 1.775, para a realização de estudos periciais que substancializem decisão judicial em relação às expectativas dos índios113�.
Em meados de agosto de 2001, três anos após a publicação dos estudos
coordenados por Sílvio Coelho dos Santos, um grupo Guarani que então habitava a
Seção Guarani da TI Cacique Doble encaminha ata à Administração Regional da
FUNAI em Passo Fundo (AER/PFD-RS/FUNAI) reivindicando a formação de um GT
para Identificação e Delimitação da TI Mato Preto. A ata é repassada pelo então
Administrador Regional Substituto da AER/PFD-RS/FUNAI, Sr. Neri Kãme Si Ribeiro,
ao Departamento Fundiário em Brasília (DAF/FUNAI-DF)114 e, sete meses depois,
pressionado pelas lideranças Guarani, o Sr. Neri cobra manifestação do DAF/FUNAI-
DF a respeito115.
Neste contexto e tendo em vista a situação de contigüidade entre as TI
Guarani Mato Preto e a TI Kaingang Ventarra, em um momento em que os Kaingang
também reivindicavam a ampliação de suas terras de 722ha para cerca de 8.000ha,
uma parcela da área em litígio passou a configurar um território em disputa pelos
diferentes interesses étnicos em jogo. É neste quadro que, em 16.03.2003,
lideranças Kaingang acampam em uma área de propriedade da Mitra Diocesana, na
localidade de Nossa Senhora da Salete, reconhecida pelos Kaingang como �Ventarra
Baixa�, à margem leste da RS 135, e que supostamente se sobrepunha à parte da
área reivindicada pelas lideranças Guarani enquanto TI Mato Preto.
Neste ínterim, entre os dias 17 e 20 de março de 2003, a antropóloga da
FUNAI Maria Helena de Amorim Pinheiro realiza suas atividades de campo na
região, no âmbito dos levantamentos preliminares sobre as demandas fundiárias das
TIs Ventarra e Mato Preto. Em suas atividades, a antropóloga relata percorrer �sítios
de ocupação tradicional, como antigas aldeias, cemitérios (Terra Vermelha), acampamentos
113 Santos, 1998:93. 114 MEMO No. 338/GAB/AER/PFD-RS de 29.08.2001 115 MEMO No. 113/GAB/AER/PFD-RS de 20.03.2002.
60
(Pinheiro Marcado) tanto na Terra Indígena Ventarra como na Terra Indígena Mato Preto�116,
acompanhada de representantes Kaingang.
Enquanto as lideranças Kaingang permaneciam acampadas em Nossa
Senhora da Salete, chega à região o Guarani Pedro Mariano, de 85 anos e antigo
morador da TI Mato Preto, trazido da TI Serrinha para prestar entrevista.
Acompanhada por Pedro Mariano, a antropóloga identifica locais de antiga ocupação
Guarani, ocasião em que confirma os locais já apontados pelos Kaingang no
levantamento da TI Ventarra. Nesta oportunidade as �coordenadas foram anotadas e
verificou-se que a Igreja de Nossa Senhora da Salete ficava fora dos limites demarcados
para os Guarani do Mato Preto [em 1929], razão da comunidade de Ventarra decidir
abandonar o acampamento�117.
Percebe-se, assim, que as reivindicações Kaingang e Guarani versavam sobre
um território cujas fronteiras estavam em negociação. Os possíveis desdobramentos
deste conflito de interesses suscitaram a preocupação da antropóloga, expressa nas
recomendações que integram as conclusões do relatório referente à TI Mato Preto:
�Como a TI Mato Preto é limítrofe à TI Ventarra, e sua historicidade tem inúmeras similaridades no que diz respeito às políticas indígenas levadas à efeito no processo de colonização da região efetivado às custas da usurpação das terras indígenas, sugerimos que se constitua um mesmo GT para a realização dos trabalhos de revisão de seus limites territoriais118�.
O clima de tensão que marcou o acampamento Kaingang na Ventarra Baixa
foi acirrado pelos interesses locais, protagonizados pelas organizações dos
agricultores, agentes governamentais, políticos e membros da sociedade local. O
desfecho ocorre no dia 20.03.2003, quando foi firmado acordo entre as lideranças
Kaingang, o Sindicato dos Agricultores Municipais e o Poder Público Municipal de
Getúlio Vargas. Neste acordo os Kaingang decidem desocupar a área da Mitra
Diocesana assim que os representantes da comunidade de Nossa Senhora da Salete
retirassem registro de ocorrência feito na delegacia de polícia local119.
116 PINHEIRO, Maria Helena A. Relatório do Levantamento Preliminar da Terra Indígena Ventarra � RS FUNAI/UNESCO/CGID/DAF, Curitiba, setembro 2003b, p.50. 117 Op.cit. 118 PINHEIRO, 2003a: 47 119 Durante o ano de 2003, a imprensa local deu publicidade a diversas situações de tensão os Kaingang e as sociedades locais no Alto Uruguai, produto da indefinição fundiária de suas terras. Em reportagem do dia 30/06/2003 (p.18), o Jornal Correio do Povo registra o assassinato do Kaingang Adilson Cardoso, de 23 anos, ocorrido em Faxinalzinho (Alto Uruguai) e cujas circunstâncias apontavam para o crescimento da tensão e violência entre agricultores e índios em virtude das disputas fundiárias. Dois meses depois, o mesmo jornal deu cobertura por dez dias às manifestações Kaingang no Alto Uruguai. Entre os fatos se dá o bloqueio da RS 135 (na altura das TI�s Ventarra e Mato Preto), quando lideranças Kaingang das TI�s Ventarra e Votouro reivindicavam
61
Esta conjuntura impulsiona para que, em 19.03.2003, seja aberto no Ministério
Publico Federal em Passo Fundo o Procedimento Administrativo �PRM/PF 2003.0081
- TI Guarani Mato Preto�, sob responsabilidade do Dr. Juarez Mercante.
Encerrados os levantamentos realizados por Maria Helena de Amorim
Pinheiro, são publicados os relatórios informando a respeito da situação das
seguintes Terras Indígenas: Cacique Doble, Carreteiro, Inhacorá, Irai, Ligeiro, Monte
Caseros, Ventarra, Guarani Guabiroba, Mato Preto e Passo Grande da Forquilha/RS.
Os relatórios referidos caracterizam os territórios indígenas como �mínimos,
insuficientes e ecologicamente depredados120�. O memorando que apresenta os
documentos ao CGID/DAF/FUNAI refere-se à situação destas terras como sendo
marcada por �problemas dos mais complexos diante do acirramento das disputas fundiárias
ocasionadas pela crescente resistência por parte dos ocupantes não indígenas e da também
crescente conscientização das comunidades indígenas a respeito da necessidade de resgate
de parcelas de seus territórios de ocupação tradicional121�.
O movimento de retomada da Tekoá Ka�aty pelos Guarani que habitam a
Bacia do Uruguai há mais de um século se respalda na intenção de definir
territorialidades próprias, como expressa o depoimento de Ernesto Kuaray Pereira a
Flávia Cristina de Mello, em Cacique Doble, agosto de 2000:
�E há quanto tempo o Guarani ta por aí e não tem uma terra. Nós falamo para dividir aqui [Cacique Doble] mas não adianta, eles falaram que ta tudo registrado no nome do Kaingang e que não adianta. E se nós fala pra dividir aqui eles levam para a cadeia... Então vamo requerer, eu digo, a nossa terra mesmo. Se é demarcada a terra pro Guarani, é pro Guarani. Isso aí vai acontecer, não sei, daqui há um ano, dois anos, né. Não sei quando, mas vai�122.
Neste contexto, em 30 de setembro de 2003, sete famílias nucleares Guarani,
unidas por laços de parentesco e afinidade e articuladas pela liderança política do
cacique Joel Pereira e reconhecendo a liderança espiritual do velho Eduardo
Martins123 deixaram a Seção Guarani da TI Cacique Doble124. No mesmo dia o grupo
a ampliação das áreas de Ventarra Baixa, Ventarra Alta e Votouro (Correio do Povo, 19/08/2003, p.14; 20/08/2003, p. 13; 22/08/2003, p.16; 25/08/2003, p.16; 27/08/2003, p.16; 28/08/2003, p.20; 29/08/2003, p.23). 120 PINHEIRO, 2003:2 121 MEMO No. 018/AER/CTBA-PR de 12.09.2003. 122 MELLO, 2001:104 123 Eduardo Martins faleceu meses depois de iniciado o acampamento na TI Mato Preto, aos 110 anos. A liderança espiritual do grupo passou a ser assumida pelo casal Ernesto Kuaray Pereira e Lurdes Martins (filha de Eduardo), que já vinham sendo ritualmente iniciados pelo ancião. 124 A relação dos Guarani com os Kaingang em Cacique Doble reproduzia o quadro de tensão que marca a situação Guarani em praticamente todo o Alto Uruguai: exceto a TI Guabiroba, todas as outras aldeias Guarani situadas nesta região encontram-se dentro de TI�s dominadas politicamente pelos Kaingang. Nas TI�s Guarita,
62
montou acampamento próximo aos trilhos do trem, a leste da RS 135, na divisa dos
municípios de Getúlio Vargas e Erebango, nos domínios do Polígono B da antiga
Reserva Guarani da Floresta Matto Preto (anexo 2).
Fruto da demanda indígena, a Portaria Presidencial No 948, de 16 de julho de
2004 constitui o Grupo de Trabalho para Identificação e Delimitação da TI Guarani
Mato Preto, cujos estudos são objeto do presente Relatório.
As intencionalidades Guarani expressas no movimento de retomada da Tekoá
Ka�aty são bem traduzidas em um texto produzido coletivamente pelo grupo durante
os trabalhos do GT e direcionado às autoridades políticas responsáveis pela
demarcação da TI Mato Preto (anexo 3). A seguir, reproduzo alguns fragmentos
deste texto, em forma de carta, que julgo pertinentes à compreensão dos projetos
ambientais do grupo para a área reivindicada:
�Nós escolhemos esta área porque antes de os brancos se apossarem da nossa terra os nossos avós, nossos tios moravam nesta área, eles só saíram porque os brancos colonizadores, próprio estado os expulsaram desta área (...)� �(...) Sabemos que naquele tempo (...) existia muita mata, muitos frutos nativos, muitos animais selvagens, muitos rios, muitas fontes (...) e hoje queremos que esta terra seja demarcada para nós recuperar tudo aquilo que foi perdido dos poucos que restou (...). �(...) Queremos este espaço de volta para que as nossas crianças tenham saúde, e que tenhamos de novo os nossos remédios tradicionais, as nossas fontes com água pura, porque tudo isso para nós é uma fonte de saúde e também para que nós possamos continuar preservando as nossas tradições (...).� �(...) para não sermos mais massacrados como nossos avós, pedimos que a demarcação seja feita com atenção e com urgência�
O texto refere o vínculo tradicional do grupo com a área reivindicada, a
memória de um ambiente íntegro, a percepção de que com a colonização a área foi
empobrecida em termos ambientais. O projeto Guarani está fundamentado na
recuperação dos recursos naturais da TI Mato Preto e na percepção de que a saúde
Guarani � com seus múltiplos significados - depende de ambientes conservados.
Em síntese, no projeto Guarani de retomada da Tekoá Ka�aty,
conservação ambiental e ocupação tradicional estão intimamente relacionadas.
Nonoai, Serrinha, entre outras, os Guarani enfrentam a discriminação e são subordinados ao poder Kaingang. Neste quadro, a TI Mato Preto preenche uma importante lacuna na territorialidade Guarani no Alto Uruguai.
63
V - Manejo Guarani na TI Mato Preto: ocupação e recursos naturais
Atividades realizadas em campo:
Os trabalhos de campo que subsidiam os dados apresentados nesta parte foram
realizados entre 28 de julho e 31 de agosto de 2004, divididos em duas etapas: (I) de
28 a 13/8/2004: constituição do GT (nos departamentos da FUNAI/DF/Brasília e
AER/Passo Fundo) e primeira fase das atividades de campo na TI Mato Preto; (II) de
22 a 31/8/2004: segunda fase das atividades de campo na TI Mato Preto.
As atividades realizadas em campo foram de certa forma condicionadas às seguintes
possibilidades e limitações: (I) o tempo oficialmente estabelecido; (II) os recursos
financeiros disponíveis; (III) a natureza, qualidade e adequação do material de apoio;
(III) a logística; (IV) a disponibilidade de trabalho da comunidade indígena; (V) o grau
de entendimento entre os membros da equipe do GT; (VI) a capacidade de
superação das tensões e resistências locais à presença indígena na região.
A seguir, são especificadas as atividades de campo referentes à coleta dos dados
ambientais:
- Entrevistas semi-estruturadas e diretivas com membros do Grupo Guarani da TI
Mato Preto e representantes de outras aldeias que vieram prestar depoimento
visando: (I) levantamento do histórico da ocupação pretérita da área e identificação
de unidades de paisagem relevantes para a manutenção da memória deste período;
(II) levantamento das atividades produtivas que atualmente sustentam o Grupo e
localização das áreas associadas a sua manutenção atual e futura; (III) levantamento
de etno-espécies125 e recursos naturais destacados pelos indígenas como de valor
cultural e importantes para sua reprodução física e cultural segundo seus usos,
costumes e tradições (agricultura, criação animal, cura/xamanismo, caça, pesca,
coleta, tecnologias - cultura do fogo, etno-arquitetura, tecnologia de caça,
ferramentas � e arte índia - cerâmica, cestaria, adornos corporais, esculturas,
125 Etno-espécie: espécies classificadas desde um ponto de vista êmico/cultural e com base nos critérios cosmo-lógicos e científicos do grupo nativo (LEVI-STRAUSS, Claude O pensamento selvagem 2ªed. Campinas: Papirus, 1997)
64
instrumentos musicais, etc.); (IV) levantamento de concepções e representações
nativas a respeito do meio ambiente e recursos naturais e relevantes para o
entendimento das práticas de manejo do grupo indígena; (V) levantamento do
histórico das atividades produtivas que os indígenas vinham empreendendo na TI
Cacique Doble, onde viveram durante o período de afastamento da TI Mato Preto,
destacando as tecnologias, técnicas e recursos naturais envolvidos em tais
atividades; (VI) levantamento das aldeias Guarani inscritas na rede de reciprocidade
em que o Grupo se insere e com as quais estabelece relações de troca, tais como
intercâmbio de sementes, animais, objetos da cultura material, etc, caracterizando as
vias de fluxo ecológicas e identificando as fontes próximas e distantes de recursos
naturais que circulam na economia e ecologia do grupo.
- Incursões ao espaço da TI Mato Preto acompanhadas de guias e especialistas
Guarani para: (I) reconhecimento da área reivindicada pelos indígenas e identificação
de unidades de paisagens e recursos naturais manejados em suas atividades
produtivas ou de reconhecido valor para o Grupo (áreas de moradia, cultivo, criação
animal, coleta, caça, pesca ou trânsito, recursos hídricos utilizados nas práticas
cotidianas, etc.); (II) definição dos padrões de distribuição espaço-temporal dos
principais recursos naturais destacados pelos indígenas dentro da área; (III)
caracterização dos ambientes através de identificação das formações vegetais e
seus aspectos estruturais e sucessionais; (IV) avaliação do uso do solo pelos não-
indígenas que ocupam a área e do estado de preservação dos recursos naturais; (VI)
levantamento e avaliação da situação geral dos recursos hídricos presentes na área
em litígio;
- Incursões no entorno da TI Mato Preto, principalmente às florestas da TI Ventarra,
acompanhada de guias indígenas, para caracterização ambiental a nível micro-
regional.
- Mapeamento da circulação de peças da cultura material indígena em espaços de
comércio de artesanato na cidade de Getulio Vargas, distante cerca de 9km do
acampamento Guarani.
65
Aspectos metodológicos:
Em todas as etapas de campo foram feitos registros áudio-fotográficos126, anotações
em diário de campo, croquis, georreferenciamento e mapeamento temático. Os
dados foram plotados sobre a base da Carta da Diretoria de Serviço Geográfico do
Ministério do Exército (EREXIM, folha SG-22-Y-D-IV, escala 1:100.000). Foram
utilizados como material de apoio a imagem de satélite LANDSAT 5 (Órbita 222,
Ponto 79, ano: 2002)127 e imagens LANDSAT 5 referentes aos municípios de Getúlio
Vargas, Erebango e Erexim/RS128.
Os dados coletados em campo foram organizados em planilhas e tabelas. A
classificação das espécies priorizou categorias êmicas e enfocou classes sugeridas
no Manual do Ambientalista129 � tais como: espécies preferenciais, apreciadas,
ocasionais.
No que se refere a espécies/unidades de paisagem importantes de um ponto de vista
mais simbólico (mágicas,de importância mitológica, etc.), foi estabelecida sua relação
com mitos e histórias dos antigos narrados pelo Grupo durante as entrevistas130.
Na identificação das espécies de fauna e flora citadas pelos indígenas foram
empregados guias ilustrados131. Este material foi analisado conjuntamente com
informantes-chave que acompanharam todas as atividades de campo, em particular
o pajé Ernesto Kuaray Pereira e sua esposa Lurdes Ara Martins. A tradução e grafia
126 Cabe ressaltar que foi fundamental o apoio logístico recebido da administração e servidores da FUNAI/AER/PDF-RS que prontamente auxiliaram na obtenção de documentos e cartas, inclusive deslocando técnicos a Porto Alegre, e cederam câmera digital para os registros fotográficos do GT. 127 Adquiridas junto à Coordenação Geral de Documentação (CGD) da FUNAI/DF/Brasília. 128 Disponíveis no site www.embrapa.gov.br � O Brasil Visto do Espaço. 129 FUNAI Manual do Ambientalista Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil � PP-G7/ Programa Integrado de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal � PPTAL. Brasília: FUNAI, 2002. 130 O Mito Guarani dos gêmeos Kuaray e Jaxy (Sol e Lua), coletado por León Cadogan na década de 1950, foi narrado coletivamente pelo Grupo e registrado pela equipe do GT (fita 06). A transcrição integral destes registros se encontra no final deste Relatório. 131 Flora: BACKES, Paulo & IRGANG, Bruno Árvores do Rio Grande do Sul � Guia de identificação e interesse ecológico Porto Alegre: Clube da árvore, 2002; CORSAN Manual de Árvores � para proteção de ETES, ETAS e Barragens da COSAN; REITZ, Raulino; KLEIN, Roberto & REIS, Ademir Projeto Madeira do Rio Grande do Sul Porto Alegre:HBR/SUDESUL/DRNR, 1988. Fauna: SILVA, Flávio Mamíferos silvestres do Rio Grande do Sul Porto Alegre: FZB, 1984; DUNNING, John & BELTON, William Aves silvestres do Rio Grande do Sul, 3ª ed., Porto Alegre: FZB, 1993; EFE, Márcio; MOHR, Leonardo & BUGONI, Leandro Guia ilustrado das aves dos parques de Porto Alegre Porto Alegre:PROAVES/SMAM/COPESUL/CEMAVE, 2001.
66
dos termos em Guarani foram assessoradas pelo cacique e professor bilíngüe Joel
Pereira.
Nas incursões guiadas às florestas da TI Ventarra foram identificadas espécies da
flora florestal que constituem recurso para o grupo Guarani. A identificação seguiu
categorias êmicas e foi traduzida, na medida em que houve correspondência, em
categorias da taxonomia botânica, com auxílio dos guias botânicos já referidos.
O mapeamento temático foi complementado por oficinas de representação gráfica
em que os indígenas desenharam, sob orientação da ambientalista, �Como será sua
Terra quando aqui estiverem vivendo�. Os elementos da composição gráfica foram
identificados e nominados pelos indígenas.
No que se refere à identificação das classes de vegetação, formações e estádios
sucessionais foi adotada a Resolução CONAMA nº4, de 04/05/1994. Quanto aos
conceitos ambientais adotados, assume-se a definição dada pela Lei nº11. 520, de
03.08.2000 (título II, art.14)132. Com relação à argumentação que sustenta a análise e
as proposições ambientais foi considerada a legislação em vigor: Lei nº4. 771, de
15/09/1965; Lei nº9. 519, de 21/01/1992; Lei nº9. 433, de 08/01/1997; a Resolução
CONAMA nº278, de 24/05/2001. Foi consultado o estudo de Nora Tatsch133 para
uma revisão histórica da legislação florestal no Brasil. Na classificação das bacias
hidrográficas foi seguida a divisão instituída para fins de gerenciamento134, com base
na Lei nº 9.433/97 e Lei nº 10.350/94 . Quanto aos conceitos e métodos de ecologia
de paisagem foram adotados autores consagrados na literatura contemporânea
sobre o tema135 e ferramentas usuais136. Para complementar os dados sobre os
padrões de ocupação Guarani foi consultado o estudo de Flávia Cristina de Mello
132 Institui o Código Estadual do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul e dá outras providências. Os incisos VIII (área degradada), IX (área de preservação permanente), XIV (banhado), XVIII (degradação), XXV (floresta), XXIX (mata atlântica), XXXII (nascentes), XLIII (processos ecológicos), XLV (recurso), XLVIII (recurso natural), L (recurso ambiental), LVI (vegetação) e LVII (zona de transição) estabelecem alguns conceitos empregados no presente Estudo. 133 Ver a nota de rodapé nº8, p.3 deste Relatório. 134 Ver DRH/SEMA Mapa das Bacias Hidrográficas e Municípios no Rio Grande do Sul Porto Alegre:DRH/SEMA, 2004 (também nos sites www.sema.re.gov.br e www.ana.gov.br ) 135 e.g. METZGER, Jean Paul Estrutura da Paisagem e Fragmentação: Análise Bibliográfica Na.Acad.Bras.Ci 71(3), p.p.1-23, 1999; METZGER, J.P. Estrutura da paisagem: o uso adequado de métricas in: CULLEN Jr., L. et all (org.) Métodos de Estudos em Biologia da Conservação e Manejo da Vida Silvestre Curitiba: UFPR; Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, 2003 (entre outros referidos mais adiante e oportunamente). 136 McGarigal & Marks, Fragstats Spatial Pattern Analysis Program, 1994; Elkie, Robert S. et al. Pattch analyst user�s manual � a tool for quantifying landscape structure Ontario: Northwest Science & Technology, 1999.
67
realizado com os mesmos indígenas quando estes residiam na TI Cacique Doble,
nos anos de 2000, 2001 e 2002 137. Os demais subsídios adotados no presente
Estudo são referidos em notas de rodapé na medida em que se articulam com os
resultados ou se fazem oportunos para configurar o contexto analítico desde um
ponto de vista ambiental, antropológico, histórico ou jurídico.
A partir deste conjunto de dados foi estabelecido o que chamamos de etno-
zoneamento ambiental da TI Mato Preto, expresso através de mapas temáticos,
croquis e de ilustrações dos indígenas, permitindo uma primeira identificação e
localização dos itens assinalados pela Portaria Nº14 de 9 de janeiro de 1996: b) as
áreas �utilizadas em suas atividades produtivas�, (c) as áreas "imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar", e (d) as áreas
�necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições138�.
Caracterização geral do grupo Guarani da TI Mato Preto:
A população Guarani no Brasil é atualmente estimada em 34.000 pessoas, divididas
entre os sub-grupos Ñandeva (Ava-Xiripa), Kaiowa (Pai-Tavyterã) e Mbya139. O
grupo Guarani que se encontra acampado na TI Mato Preto se auto-identifica como
Guarani Xiripa.
No momento dos trabalhos de campo, o grupo que efetivamente ocupava a TI Mato
Preto perfazia uma população de 50 pessoas articuladas por laços de
consangüinidade e afinidade em 10 famílias nucleares (casais com filhos legítimos ou
adotivos e eventuais agregados). Estas famílias, por sua vez, ligam-se entre si por
relações de filiação ou descendência e reconhecem seu pertencimento a uma
mesma família extensa, estruturada a partir do reconhecimento da ascendência de
um casal de antigos, a tchedjuarÿi e o tcheramoi140: No caso da Tekoa Ka�atÿ, o casal
137 MELLO, 2001. 138 Este zoneamento foi a base da contribuição dos estudos ambientais ao processo de definição dos limites da TI Mato Preto, apresentada no tópico Hidrografia, da parte II e objeto específico da parte VII deste Relatório. 139 www.socioambiental.org 140 De acordo com MELLO, 2004:15, �Tchedjuarÿi e o tcheramoi são as palavras em guarani que significa literalmente �minha avó (djuarÿi)� e �meu avô (ramoi)�. São usadas também como um título que designa as pessoas antigas e sábias, e ao mesmo tempo está relacionado também ao título de liderança de uma família extensa. Um exemplo: todas as crianças e jovens de Cacique Doble e também alguns adultos, chamam Eduardo
68
principal de progenitores é Eduardo Martins Karai Guaçú, seus filhos do primeiro
casamento com Ernestinha Mariano, os filhos que teve com sua segunda esposa,
Érica Irwá da Silva, e os filhos de Érica nascidos de seus outros casamentos, com
Mário e Ernesto Pereira141.
Após o falecimento do tcheramoi Eduardo, pouco depois de iniciado o acampamento
na TI Mato Preto, o grupo passou por um período de reacomodação social a esta
perda e atualmente reconhece a liderança religiosa do pajé Ernesto Kuaray Pereira e
sua esposa Lurdes Ara Martins (filha do falecido líder espiritual Eduardo Martins). A
liderança política, sobretudo nas negociações com os juruá � brancos � é assumida
pelo cacique e professor bilíngüe Joel Pereira (filho do falecido cacique do grupo,
Mário Pereira) ou pelo vice-cacique Seberiano Moreira, embora todas as decisões
sejam tomadas após reuniões das quais participam todos os membros da
coletividade.
Grupo do Mato Preto Casal Ernesto Kuaray Pereira e Lurdes Ara Martins
Na página seguinte, reproduzo o quadro sócio-genealógico da população do
acampamento em agosto de 2004, construído pela antropóloga-coordenadora do GT,
Flávia Cristina de Mello 142.
Karai Guaçú Martins de �tcheramoi�. Suas filhas Lúcia e Lurdes, quando falam diretamente com ele, o chamam de �tcherú�, (meu pai), nas quando não estão na sua presença também referem-se a ele como �tcheramoi�. Este tratamento está relacionado também ao fato dele ser o �pajé grande� e ter nomeado grande parte das pessoas da aldeia�. 141 MELLO, 2004:15 142 Fonte: MELLO, 2004
69
Nome Idade Observações sócio-genealógicas
João Maria Werá Pereira 91 Viúvo de Alícia Mariano, filha do último cacique de Mato Preto antes da expulsão
Lurdes Araí Martins 51 Filha de Eduardo Martins e Ernestinha Mariano Ernesto Kuaraÿ Pereira 66 Marido de Lurdes, liderança de família extensa, rezador.
Filho de Vicente Pereira e Catarina Mariano. Cecília Kretiú da Silva 31 Filha de Lurdes Martins e Floriano da Silva. Ademir Kuaray da Silva 6 Filho de Cecília. Sebastião Werá da Silva 28 Filho de Lurdes Martins e Floriano da Silva. Luciana Yrwá Pereira 17 Filha de Lurdes e Ernesto Cleomir Karai Pereira 14 Filho de Lurdes e Ernesto Gevanildo Karai Pereira 11 Filho de Lurdes e Ernesto Darci Karai Mirim da Silva 35 Filho de Lurdes Martins e Floriano da Silva Olinda Pereira 35 Filha de Ernesto Pereira e Érica Silva Márcia da Silva 17 Filha de Darci e Olinda Sandro da Silva 15 Filho de Darci e Olinda Marta Ará da Silva 13 Filha de Darci e Olinda Diana da Silva 10 Filha de Darci e Olinda Leandro da Silva 8 Filho de Darci e Olinda Leonardo da Silva 6 Filho de Darci e Olinda Vanderlei da Silva 3 Filho de Darci e Olinda Terezinha Pereira 18 Filha de Darci e Olinda Lucas 22 Marido de Terezinha Karina 3 Filha de Terezinha e Lucas Tania 1 Filha de Terezinha e Lucas Joel Kuaraÿ Pereira 25 Cacique, filho de Érica da Silva e Mário Pereira (falecido em 08/2003Rose Bento 23 Não índia, irmã de Dirlei Bento Janaína Pereira 2 Filha de Joel e Rose Júlio César Kuaraÿ Pereira 1 Filho de Joel e Rose Alison Pereira 2 Filho de Joel e Rose Aline Rokaju Pereira 1 mês Filha de Joel e Rose. Nascida em Mato Preto Érica Yrwá da Silva 67 Liderança de família extensa. Ex-mulher de Mário Pereira e de
Ernesto Pereira. Viúva de Eduardo Martins. Seberiano Moreira 24 Filho de Lúcia Martins e Graciliano Moreira Helena Pereira 23 Filha de Érica da Silva e Mário Pereira Cassiano Moreira 8 Filho de Siberiano e Helena Cleiton Moreira 6 Filho de Siberiano e Helena Juliano Moreira 3 Filho de Siberiano e Helena José Cláudio Moreira 2 Filho de Siberiano e Helena Sanico Pereira 35 Filho de Ernesto Pereira e Érica da Silva Dirlei Bento 31 Não-índia, irmã de Rose Bento Rodrigo Pereira 7 Filho de Sanico e Dirlei Rafael Pereira 9 Filho de Sanico e Dirlei Luana Pereira 5 Filha de Sanico e Dirlei Érica Cristina 3 Filha de Sanico e Dirlei Gilmar Bento 32 Filho de Célia Bento Eliana Bonetti 19 Filha de Maria e Francisco Bonetti Alexandre Bento 4 Filho de Gilmar e Eliane Weliton Bento 1 Filho de Gilmar e Eliane Osmar Bento 34 Filho de Célia Bento Terezinha Pereira 39 Filha de Ernesto Pereira e Érica da Silva Diego Bento 11 Filho de Terezinha e Osmar Leivi Bento 6 Filha de Terezinha e Osmar
70
Aldacir Karai Martins 19 Filho de Marcelino Martins, neto de Eduardo Martins Luíza da Silva 17 Esposa de Aldacir
Rede de reciprocidade: organização social, território e circulação de recursos naturais a partir do grupo Guarani do Mato Preto: De acordo com Soares143, a organização social Guarani está estruturada em quatro
níveis principais, que por sua vez se desdobram em espaços definidos: �no primeiro
nível está a família extensa, ou teÿy; em segundo lugar, o conjunto de casas que
abrigam estas famílias extensas, a aldeia ou amundá; em terceiro, o conjunto de
aldeias que estão inseridas em um território, ou teko�á; e em quarto e último, o
conjunto de teko�á que forma uma �região� ou �província�, ou guará.
Os tekoá reconhecidos por um determinado grupo como �terras de parentes�
integram o seu guará, estabelecendo sua �província� no contexto do território Guarani
como um todo144. No Estado do Rio Grande do Sul, a rede de reciprocidade em que
o grupo Guarani do Mato Preto se insere inclui 148 familias e 755 pessoas.
POPULAÇÃO INDIGENA GUARANI NO RIO GRANDE DO SUL Comunidade Municipio Nº de famílias Nº de pessoasGuabiroba* Benjamin Constant 12 60 Cacique Doble* Cacique Doble 13 70 Salto Grande do Jacuí* Salto do Jacuí 26 101 Itaixÿ* Estrela Velha 05 30 Guarita* Erval Seco 40 180 Inhacapetum São Miguel das Missões 28 120 Itapoty Riozinho 05 25 Pindó Mirim/Itapoá* Viamão 08 35 Jataity/Canta Galo* Viamão 22 160 Nhu�undy/Estiva* Viamão 22 119 Ka�a Murundy/ Água Grande
Camaquã 03 15
Yriapu /Granja Vargas Palmares do Sul 10 48 Lami Porto Alegre 03 15
143 SOARES, 1997: 122 144 Na parte I deste Relatório faço referência ao território Guarani como um todo.
71
Lomba do Pinheiro Porto Alegre 12 60 Espraiado Maquine 12 80 Varzinha Caraá 07 37 Barra do Ouro Maquine 12 60 Pacheca Camaquã 16 80 Irapuá Cachoeira do Sul 09 50 Guapo�i Porá/Figueira Torres 08 30 Passo Grande Barra do Ribeiro 11 51 Passo da Estância Barra do Ribeiro 07 40 Coxilha da Cruz Barra do Ribeiro 17 96 Acampamento1 Santa Maria � Ibge 15 72 Acampamento2 Santa Maria � fixo 03 17 TOTAL 326 1.651
Fonte: RS Rural/FUNAI/FUNASA
O território Guarani de pertencimento do grupo, ou seja, os espaços identificados pelos Guarani da TI Mato Preto como �terra de parentes� e com os
quais estabelecem comunicação e intercâmbio sistemáticos, são os seguintes: TI Mangueirinha (PR), TI Araçaí (SC), TI Chapecó (SC), Treze Tílias (SC), TI Mbiguaçu (SC), TI Morro dos Cavalos (SC), TI Cacique Doble (RS) TI Ventarra (RS), TI Guarita (RS), TI Nonoai (SC), TI Rio da Várzea (RS), TI Serrinha (RS), TI Guarani Votouro � ou Kaeté - (RS), TI Irai (RS), Aldeia Estrela Velha (RS), TI Salto Grande do Jacuí (RS), Aldeia da Estiva (RS), Aldeia de Pindó Mirim � vizinha ao Parque Estadual de Itapoã (RS), TI Canta Galo (RS), Aldeia Kaingang da Lomba do Pinheiro (RS), Aldeia Figueira (RS).
A conexão do grupo com estes espaços é reafirmada pela manutenção das relações
de parentesco e afinidade (visitas de parentes) e pelo intercâmbio de recursos naturais e materiais. Este fluxo estabelece uma rede de sociabilidade e de reciprocidade, que se traduz objetivamente em um território em que a TI Mato Preto está inserida.
Este território inclui parcelas dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná. As narrativas também fazem referência ao estado do Rio de Janeiro e a
regiões do Paraguai. Ao longo deste território estão representados diferentes
ecossistemas do domínio Mata Atlântica: Floresta Estacional Semidecidual; Floresta Estacional Decidual, Floresta Ombrófila Densa, Floresta Ombrófila Mista, Campos Subtropicais Úmidos.
72
O trânsito Guarani nestes espaços conecta fragmentos destes diferentes ecossistemas através do fluxo de pessoas, sementes, animais, objetos da cultura material, técnicas e conhecimentos.
Na perspectiva de uma ecologia de paisagem, considerando que os ambientes em
que estas aldeias se localizam estão separados por milhares de quilômetros, pode-se
afirmar que o lugar ecológico ocupado pelos Guarani é de conectores entre manchas (unidades de paisagem) distantes e descontínuas.
Este papel ou lugar ecológico contribui para ampliar os índices de conectividade na
paisagem e, em algumas situações, estabelecer uma nova via de corredor biológico. Neste sentido, as pessoas e famílias em trânsito funcionam como
dispersores de determinadas espécies e recursos naturais, contribuindo com o fluxo gênico.
Esta organização em rede tem implicações diretas na dinâmica de ocupação e de
manejo de cada localidade ou região em particular. Economia e sustentabilidade nas condições de acampamento:
Nas entrevistas com os interlocutores indígenas, pudemos identificar os seguintes
elementos do sistema econômico tradicional Guarani operando no grupo145: roças
coletivas, indicação de posse coletiva de áreas de caça e terras de lavoura, relatos
de realização de caçadas e pescarias também coletivas (num vínculo entre diferentes
famílias-extensas), ausência quase completa de comércio intra-grupal (a não ser por
troca de serviços).
Todos estes elementos aparecem quando os interlocutores narram as atividades
cotidianas referentes ao período em que viviam na TI Cacique Doble.
145 C.f. CATAFESTO DE SOUZA, José Otávio. O sistema econômico nas sociedades indígenas Guarani Pré-Coloniais. Horizontes Antropológicos, ano 8, n. 18, pp. 211-253, Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 2002.
73
Embora na condição de acampamento alguns destes elementos não estejam
atualizados, pela restrição dos espaços e pressão da ocupação não-indígena sobre
os deslocamentos do grupo, as narrativas sugerem que, no momento em que os
ambientes da TI Mato Preto forem restituídos à comunidade, eles serão retomados.
No que se refere às fontes de recursos que, nas circunstâncias atuais, efetivamente
sustentam o grupo, cabe citar as rendas fixas provenientes de três aposentadorias:
João Maria Pereira (91 anos), Érica da Silva (67anos), Ernesto Kuaray Pereira
(66anos).
Soma-se a elas o salário do professor bilíngüe Joel Pereira. Contratado pelo Governo
do Estado, Joel leciona Guarani para crianças, jovens e adultos de seu grupo na
escola indígena da TI Ventarra. Além destes recursos, alguns homens do grupo
vendem a força de trabalho em empregos temporários ou �empreitadas� na região.
Os recursos em espécie provenientes destas rendas suprem necessidades de toda a
coletividade, embora o controle destes recursos e a parcela socializada sejam
definidos pela família nuclear que o recebe.
Em termos de benefícios provenientes de programas ou políticas públicas
específicas, cabe referir que as famílias acampadas foram incluídas no Programa
Fome Zero, recebendo a doação de cestas básicas durante a vigência do programa,
que encerrou em agosto do corrente ano.
Cabe ainda citar que a FUNAI/AER/PDF-RS presta assistência nas demandas
emergenciais do grupo. Por exemplo, em setembro foram disponibilizadas sementes
e ferramentas.
No momento do término dos trabalhos de campo, a FUNAI também estava
intermediando a negociação de áreas para o cultivo do grupo durante o período de
acampamento.
Doação de roupas, lonas e outros recursos também são intermediados por membros
da FUNAI.
74
Acampamento: Desde o final de setembro de 2003, o grupo Guarani articulado em torno da liderança
politica do cacique Joel Pereira e da liderança espiritual do casal Ernesto Kuaray
Pereira e Lurdes Ara Martins se encontra acampado na TI Mato Preto.
O acampamento marca a retomada da Tekoá Ka�aty, antiga unidade político-social
Guarani cujo território correspondia aos ambientes da Floresta Matto Preto.
A área do acampamento corresponde a uma faixa de cerca de 50 x 200m situada há
cerca de 100m da RS 135 e a 15m dos trilhos da RFFSA.
O espaço de ocupação indígena na área do acampamento está organizado da
seguinte forma: área de moradia, as oga (casas); área de convivência-sociabilidade,
onde se destaca a opÿ (casa de rezas); área de criação animal, composta pelos
galinheiros e pátios das casas, com uma extensão de cerca de 15m descontínuos a
partir das moradias; áreas de cultivo, dentre as quais pode-se identificar: roças
coletivas, situadas nos barrancos nas beiras de estrada e às margens do trilho do
trem; roças familiares, situadas próximas às casas; horta coletiva, única estrutura
cercada e restrita, situada próxima a casa de Terezinha Pereira e Osmar Bento; área
de cultivo de frutas e plantas de uso medicinal/ritual, também de acesso coletivo mas
mantidas pelo pajé Ernesto Kuaray Pereira, situadas ao longo da extensão do
acampamento.
Na página seguinte trago um croqui temático com a disposição dos espaços de
ocupação Guarani no acampamento da TI Mato Preto.
75
Croqui temático do acampamento Guarani na TI Mato Preto e das áreas de entorno próximas
Legenda
76
Casas: As 50 pessoas que compõem as dez famílias nucleares que atualmente
ocupam a TI Mato Preto estão arranjadas em sete casas. Duas destas casas
subdividem-se em espaços geminados, mas autônomos, cada um com seu fogo.
Na construção das óga (casas) que compõe o acampamento foram combinados dois
tipos de recursos materiais: recursos naturais de origem vegetal de uso tradicional
Guarani e recursos materiais industrializados ou reciclados, como lonas, latas, folhas
de zinco, papelão e tecidos. Nos alicerces das casas são empregadas toras de
camboatá - yywatá�y (Matayba elaeagnoides) e nas paredes taquara-mansa - taquá
ete í (Merostachys sp) maceteada146 e trançada. De acordo com os informantes,
conforme a disponibilidade local, outras espécies vegetais podem ser empregadas na
construção. Dentre estas, algumas são preferidas, como o pindó (Syagrus
romanzoffiana), o pessegueiro-bravo (Prunus sellowii), o cedro (Cedrela fissilis) e o
angico � kurupa-pytã (Parapiptadenia rígida). A cobertura das casas é também
preferencialmente de taquara-mansa batida.
Parte da taquara-mansa que cobre as casas foi trazida da TI Cacique Doble e outra
parte foi coletada nas florestas da TI Ventarra. As lonas, latas, folhas de zinco ou
papelão foram adquiridas por doação ou compra e em alguns casos são mescladas
com os materiais vegetais.
A opÿ (casa de rezas) é o principal espaço comunal no acampamento. Nos dias de
chuva e frio, nos sentávamos à beira do fogo da opÿ para conversar e fazer as
entrevistas. No encerramento e abertura dos trabalhos, era também na opÿ que
Ernesto Kuaray Pereira e Lurdes Ara Martins faziam seus cantos e rezas. Na opÿ o
grupo de canto e dança, composto pelos jovens e crianças do grupo, ensaiam suas
composições, coordenados pelo cacique e professor bilíngüe Joel Pereira. Na opÿ,
quase todas as noites há rituais específicos, que geralmente avançam madrugada
adentro. Tivemos a oportunidade de participar de um destes rituais, marcados por
uma postura extremamente respeitosa e mística dos participantes e revestido de uma
aura de mistério a respeito dos códigos e valores que circulam entre os Guarani147.
146 Batida com auxílio de uma mão-de-pilão, martelo ou pedra. 147 Segundo Ladeira (2001:188), �a opÿ é o centro social do tekoa (aldeia). É a casa grande que guarda o amba e reúne a comunidade. É considerada o centro da aldeia por sua definição de espaço comunal�
77
O valor deste espaço evidencia-se na particularidade de sua edificação: na
construção da opÿ foram usadas exclusivamente espécies vegetais de uso
tradicional Guarani (taquara-mansa e camboatá), coletados nas florestas da TI
Ventarra.
Vista geral do acampamento. Os antigos moradores da Tekoá Ka�aty, João Maria Pereira (E) e
Pedrinho Mariano (D) em frente à opy, coberta com taquara-mansa maceteada.
Vista geral do acampamento e aspecto externo das casas. Detalhe da parede de taquara-mansa maceteada que reveste a opÿ.
As imagens seguintes ilustram as casas tradicionais do Grupo Guarani do Mato Preto
quando habitante da Seção Guarani da TI Cacique Doble. Estas imagens permitem
observar a proximidade entre as casas e o mato, os materiais empregados, assim
como reconhecer que o grupo vem de um local cuja formação florestal dominante é a
mesma da área reivindicada, ou seja, a Floresta com Araucária 148:
148 Fotografias tiradas em 2002 e cedidas pela antropóloga-coordenadora do GT, Flávia Cristina de Mello.
78
Casa tradicional Guarani coberta de taquara-mansa Membros do grupo Guarani do Mato Preto em (Cacique Doble). Cacique Doble. Ao fundo, Floresta com Araucária. Água: A água que abastece o acampamento é puxada a motor desde uma nascente
próxima e armazenada em uma caixa d�água instalada pela FUNASA. A higiene da
caixa e tratamento químico da água são mantidos semanalmente pelo agente
indígena de saúde da TI Ventarra149. A partir da caixa d�água, um encanamento
conduz a água até as proximidades do acampamento. Esta água é usada no
abastecimento das casas, para fins de consumo e higiene.
149 Este é o procedimento desde meados de 2004, quando quatro crianças Guarani contraíram hepatite A.
79
A roupa do grupo é lavada diretamente no Lajeado Ventarra, distante cerca de
700m do acampamento Guarani. Mulheres, geralmente as mais jovens, são
responsáveis por esta tarefa. As águas do Lajeado Ventarra também são associadas
ao banho e ao lazer. A mata remanescente que acompanha o lajeado abriga alguns
dos remédios empregados pelo pajé Ernesto Kuaray Pereira em suas práticas-rituais
de cura. Estas águas e matas conformam um dos poucos espaços de livre acesso
para os Guarani nas áreas naturais da região.
Mulheres e jovens Guarani lavam roupa nas águas do Lajeado Ventarra.
Fogo: No acampamento Guarani do Mato Preto, cada casa tem seu fogo. O fogo de
chão, sobretudo no inverno, está permanentemente aceso e toda a arquitetura das
casas, desde os materiais empregados na edificação até a divisão interna, está
associada à cultura do fogo.
A etnografia de Mello junto ao grupo Guarani do Mato Preto em Cacique Doble,
refere-se deste modo ao manejo da lenha:
�Nas árvores dos arredores da roça são feitas grandes podas para se tirar a lenha, e enquanto elas rebrotam, cultiva-se embaixo delas. As pessoas explicam que procedendo assim, logo tem-se lenha novamente, e os bichinhos não vão embora�150
Na condição de acampamento, a lenha que abastece o grupo vem da TI Ventarra.
Um caminhão de lenha é deslocado da TI Ventarra todas as quintas-feiras, sob as
150 MELLO, 2001: 160
80
ordens do cacique Kaingang Imacir Chaves, para abastecer o grupo. Entre as
madeiras, pude observar camboatá (Matayba eleagnoides), timbó (Ateleia
glazioviana), branquilho (Sebastiana commersoniana) e pessegueiro-bravo (Prunus
sellowii).
Organização da lenha no acampamento Guarani do Mato Preto
O manejo da lenha empreendido pelo grupo em Cacique Doble e documentado por
Mello, sugere que esta atividade tem elevado potencial de sustentabilidade no que se
refere à conservação das florestas locais.
Manejo e recursos naturais151:
Nas condições de acampamento, o acesso a muitos dos recursos naturais referidos
pelo grupo está restrito e condicionado à ocupação pelos não-índios que estão
intrusados na TI. Os Guarani contornam esta dificuldade coletando as fibras, tinturas
e madeiras empregadas no artesanato, nas edificações, os frutos e plantas
medicinais nas florestas da TI Ventarra.
Até o momento a caça não é viável, pois os Guarani reconhecem que, �se armarem
mundéo, os Kaingang pegam o bichinho primeiro�. Com relação à pesca, todas as
investidas, até o momento, foram frustradas. Segundo Seberiano Moreira (24), �os
rios tem muito veneno, e os peixes foram embora�. Mas a este respeito, Ernesto
151 Neste tópico serão trazidas as etno-espécies destacadas pelos Guarani no Mato Preto. Não serão referidos os taxa botânicos destas plantas, ficando a referência restrita ao nome popular e Guarani. Esta medida visa salvaguardar o patrimônio cultural botânico Guarani.
81
Pereira e o velho João Maria são otimistas: �quando o Guarani ocupar aqui, o mato
volta. E se o mato volta, voltam os bichinhos, as abelhas, a água boa e os peixes�.
Nos tópicos seguintes serão apresentadas os principais recursos que efetivamente
estão sendo manejados pelos Guarani da TI Mato Preto.
Coleta Vegetal:
"o mato é a igreja verde, o hospital do índio� (Jorge Garcia).
Os recursos naturais de origem vegetal são empregados em todas as esferas da vida
cotidiana dos Guarani, e deles depende a manutenção e reprodução de seus
costumes tradicionais relacionados à cura, alimentação, cultura material, habitação,
etc. Estes recursos são mantidos/adquiridos de três formas: através da coleta, do
cultivo ou da troca.
Mesmo nas condições de acampamento, pude levantar uma série de recursos
vegetais que atualmente vêm sendo coletados pelos indígenas nas florestas e
campos locais.
a) artesanato: Nas florestas da TI Ventarra, os Guarani coletam o kurupi (pau-de-
leite), madeira com que o artesão Darci da Silva confecciona seus �bichinhos� �
miniaturas de animais originais. Nestas florestas, sobretudo nas bordas da mata,
também coletam taquá ete í (taquara-mansa) e as várias qualidades de xipó (cipós)
que Lurdes Ara Martins, João Maria Mariano, Érica Irwá da Silva e os demais
artesãos de cestarias utilizam para confeccionar e colorir peneiras, balaios e cestos
variados. Nestas florestas e seu entorno também coletam as sementes de djuá�í
(esporão-de-galo), de kaité (caeté) e de vaca py djá (pata-de-vaca), utilizadas para
compor os colares, brincos e demais adornos corporais.
Através de suas redes de reciprocidade, os Guarani do Mato Preto atualmente
acessam, pela via da troca e do dom, sementes de aguaí (Chrysophyllum viridae), a
partir da TI Mbiguaçú/SC, e sementes da gramínia kapi�í (lágrima-de-nossa-
senhora), a partir da TI Canta Galo/RS. Esta gramínia existe naturalmente na região
82
da TI Mato Preto, mas seus locais de ocorrência atualmente não estão disponíveis
para o manejo Guarani. O kapi�í é também cultivado nas hortas Guarani, em
diversas aldeias, mas o grupo reconhece que no momento não existem condições de
cultivo.
b) cura e alimentação152: O repertório de conhecimentos Guarani acerca dos
poderes curativos das plantas das Florestas com Araucária é muito extenso. O pajé
Ernesto Kuaray Pereira utiliza em suas práticas de cura e nos rituais associados a
uma série de eventos da vida comunitária muitas espécies representantes de todos
os extratos florestais: são árvores, arbustos, ervas e epífitas coletadas nas florestas
da TI Ventarra e nos campos adventícios. De acordo com o pajé,
"toda a madeira, a plantinha, a raiz, toda ela é remédio, toda tem o seu remédio. E maior parte do nosso remédio é do mato. Tem aquele remédio de campo, também, mas remédio forte vem da madeira. Nhanderu fez essa natureza que é a mesma natureza nossa. O pajé é que escuta de Nhanderu essa natureza, conhece o remédio, prá fazer a piazadinha ficar forte, ficar alegre".
Especificamente do ambiente florestal, manejam principalmente as seguintes
espécies de uso medicinal: o angico-vermelho, o cedro, o tarumã, a grápia, a
cangerana, a cabriúva, a corticeira, o pindó, o arroz-de-macuco, o camboím, o
caraguatá, o quebra-quebra, erva-de-passarinho, o trevinho, a samambainha, o
jaborandi, a pariparoba, entre outras.
De uso alimentar, as frutas também são entendidas pelos especialistas Guarani
como importantes para a integridade de sua saúde física e espiritual. Neste sentido
a alimentação está na interface com a cura. Embora com baixa intensidade, as
seguintes frutas são coletadas nas florestas da TI Ventarra e reconhecidas para a
região: amora-do-mato-preta, amora-do-mato-branca, araçá-do-mato, pitanga,
jaboticaba, pindó, guabiroba, pinhão, ingá, goiaba, ariticum-amarelo, ariticum-branco,
sete-capotes, guabijú, cereja.
Nos campos coletam a erva-de-veado, a serralha, o rabanete.
152 Já referi as espécies de uso na construção das casas. Ver tópico �casas�, nesta mesma parte.
83
Com relação ao preparo dos remédios há uma série de conhecimentos associados.
Em minhas longas conversas com Ernesto Kuaray Pereira e Lurdes Ara Martins,
pude compreender que o preparo do remédio tem profunda relação com a parte do
corpo em que ele deverá agir e com a doença que afeta a pessoa, assim como com
o comportamento da planta usada.
Há remédios que devem ser tomados e preparados frios, suas propriedades não
podem entrar em contato com o calor, como é o caso da casca do cedro, utilizada na
cura da anemia, pressão alta e para cuidados com a criança recém nascida. Outros,
ao contrário, necessitam do calor, como a cabriúva, cuja casca é fervida junto com a
samambainha e usada como fortificante. Há outros casos em que o remédio já está
preparado na própria natureza, devendo ser consumido diretamente da planta: com
relação à grápia e ao tarumã, o pajé refere o grande poder curativo da �água do
cerne� destas plantas, que pode ser tomada pela perfuração do tronco, abrindo um
canal pelo qual verte a seiva. Após o uso do remédio, o canal é fechado para
cicatrizar a planta e volta a ser aberto quando necessário. As cascas e entrecascas,
folhas e raízes também tem seu preparo específico. A entre-casca do angico-
vermelho é usada em doenças respiratórias, e deve ser preparada em infusões
quentes ou mascada. Dentre as epífitas, a erva-se-passarinho é usada na
recuperação da mulher após o parto. Segundo o pajé, ela �limpa a barriga da
mulher�. Este tratamento é associado com a ingestão de uma colher de �graxa de
capivara�, como tratamento fortificante, antibiótico e anti-inflamatório. O quebra-
quebra, que além de coletado é cultivado no acampamento do Mato Preto, é usado
em emplastos para tratamento de contusões, fraturas ou outras lesões deste tipo.
Dentre as bromeliáceas, genericamente chamadas de caraguatá, há várias
classificações: o caraguatá-da-madeira, caraguatá-miúdo, caraguatá-da-pedra, este
última para cuidados com a mulher, após o parto. Algumas destas bromélias são
associadas ao tratamento da gripe, empregadas em xaropes associados com mel,
guaco, eucalipto. Outras são usadas na cura da �câimbra do sangue�, que se refere a
dores abdominais intensas, com cólicas e espasmos. O pajé prepara o remédio
utilizando o talo central da epífita, macerado. O pindó ou jerivá tem inúmeros usos e
toda a planta é aproveitada pelos Guarani, tanto na alimentação como na cultura
material em geral e na cura. O caroço do fruto é triturado no pilão e a água resultante
do preparo é ingerida como fortificante geral. Outro modo de preparo muito utilizado
84
é a queima e exposição do doente à fumaça que esta queima produz. A fumaça do
yraremó (bugreiro) cura afecções da pele e, de acordo com o pajé, em casos de
alergia a determinada planta a cura é obtida pela exposição do doente à fumaça da
planta que produziu a reação alérgica. Curioso é o uso do trevinho, associado à cura
do �sapinho� nos bebês, é também usado como tempero de carne de caça, devido ao
alto teor de sais.
Enfim, são muitos os conhecimentos e usos da flora local que estão atualizados na cultura dos Guarani do Mato Preto. Os dados de campo asseguram que o grupo é portador de um capital cultural expressivo a este respeito e cuja manutenção e reprodução depende da possibilidade de relação com o ecossistema florestal.
Peças artesanais produzidas pelos Guarani do Mato Preto: �bichinho� de kurupi, brincos usando penas
de galinha coloridas, missangas e sementes de kapi�í e cestos de taquá ete í, coloridos com tinturas naturais de xipó (vermelho) e corantes comprados nos mercados locais.
Pajé Ernesto Kuaray Pereira tirando entrecasca do cedro.
Remédios do mato
85
COLETA VEGETAL - ITENS PRINCIPAIS:
Planta (nome popular)
Planta (nome Guarani)
Local - Fonte Período de aquisição
Modo de aquisição
Uso Parte usada
Esporão-de- galo
Djuá�í TI Ventarra/RS (F)
out-mar Coleta ART/COM Semente
Pata-de-vaca Vaca py djá TI Mato Preto (F)
abril-dez Coleta ART/COM,MED
Semente
Lágrima-de- nossa-senhora
Kapi�í TI Canta Galo/RS(C)
out-mar troca/dádiva ART/COM;RIT
Semente
Caeté Kaité TI Mato Preto (C)
fev-maio Coleta ART/COM Semente
Aguaí Aguaí TI Mbiguaçú/SC (F)
julho-out troca/dádiva ART/COM;RIT
Semente
Cipó-de-veado Ywa i um TI Ventarra/RS (F)
todo ano Coleta MED Toda planta
Taquara - mansa
taquá ete í TI Ventarra/RS (F)
todo ano Coleta ART/COM,ARQ
Toda planta
Cipó-mil- homens
xipó TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Caule
Trevinho TI Ventarra/RS (F)
Todo ano coleta MED, ALIM
Toda planta
Jaborandi TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Raiz
Pariparoba TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Folha
Avenca TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Folhagem
Quebra-quebra TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta/ cultivo
MED Toda Planta
Gravatá karaguará TI Ventarra/RS (F) Todo ano coleta MED Caule, Raiz
Angico kurupá pitã
TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED, ARQTEC
Casca,
Cedro ywyrÿ TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED, ARTARQ, TEC
Casca, madeira
Alecrim ywyrapepé Todo ano SementesSet-jan
Coleta ART, MED Sementes casca
Grápia
ywyraperé TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED, TEC Casca, folhas
Cangerana ywyraeté pintá
TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Casca, folhas
Corticeira TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Seiva, casca
Cereja ceredjá TI Ventarra/RS (F)
Out-dez Coleta ALIM Fruto
Pau-leiteiro kurupi TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta ART Madeira, galhos
Jerivá pindó TI Ventarra/RS TI Mato Preto (F)
Ago-set Coleta/ cultivo
MED, ARQ, ALIM.
Toda planta
Pinheiro kuri TI Ventarra/RS (F)
jun-set Coleta ALIM Fruta
Arroz-de- macuco
TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Folha
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Cabriúva ywyrapadjé TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Casca
Tarumã tarumã TI Ventarra/RS (F)
Todo ano Coleta MED Seiva, Casca, Folhas
Louro ywydjá Todo ano Coleta Folhas
Rabanete TI Mato Preto (C)
Todo ano Coleta ALIM, MED
Tubérculo
Erva-de-veado Guaxú ka�a TI Mato Preto (C)
Todo ano Coleta MED Toda Planta
MED=medicinal; ALIM= alimentação; ARQ= arquitetura; TEC= uso tecnológico; ART= artesanato
(F)=espécie de floresta; (C)=espécie de campo
Ainda com relação à coleta, cabe referir o mel, importante na dieta Guarani e nas
práticas curativas, entretanto não é coletado atualmente. Os Guarani reconhecem
muitas espécies de mel e de abelhas, cada um com uso especifico.
Outro elemento da coleta são as larvas que vivem em troncos am estado de
decomposição. Chamadas de yxó kambé, estas larvas são iguarias alimentares,
também reconhecidas como de poder medicinal, e são preparadas �sapecadas� ou
�torradas�.
Caça
Caça e pesca são importantes atividades no manejo Guarani, não apenas por
oferecerem aporte protéico significativo à dieta tradicional, mas por acionerem um
complexo de relações sociais e ecológicas. Estas atividades contribuem para a
solidificação de laços de reciprocidade, para o estabelecimento de papéis e posições
sociais, além de serem importantes para a manutenção de certos padrões
tecnológicos. O aporte de conhecimentos associados à caça, assim como as regras
que balizam esta atividade, é domínio das ciências tradicionais integradas no
complexo do xamanismo.
No que se refere à divisão sexual do trabalho, a caça foi referida nas entrevista como
um �assunto de homens�153. Uma série de regras, prescrições e interdições estão
associadas ao universo da caça. De acordo com o pajé Ernesto Kuaray Pereira, um
homem penetra no mundo da caça através de pequenos ritos específicamente 153 Esta observação também é feita por CATAFESTO DE SOUZA, 1987.
87
prescritos e coordenados pelo pajé do grupo. Com relação à ingestão da caça
também há certas regras: conforme Jorge Garcia, o caçador não deve comer
determinadas partes da caça; crianças não devem comer membros de animais
caçados, e a violação deste interdito implica em danos na força e na capacidade
motora. Enquanto Jorge falava, o pajé Ernesto assentia com a cabeça. No mesmo
sentido, há espécies sagradas que não podem ser caçadas, ou outras que em
determinada estação do ano devem ser preservadas. Na prática, o resultado da
aplicação deste conjunto de regras garante a manutenção das populações de presas.
Sob outro aspecto, a dieta das crianças e mulheres, incluindo algumas espécies de
caça e excluindo outras, foi referida como importante não só para a saúde física e
bem estar, mas para reafirmação de um "estado de consciência" ou para a garantia
do elo com as divindades, para a qualidade dos sonhos, para o contato com
Nhanderu, para manter o Nhande reko � modo de ser tradicional, como apreendi dos
extensos comentários a este respeito tecidos pelo pajé Ernesto Pereira e pelo kujã154
Jorge Garcia. Esta conversa se deu em frente à opÿ, e encerrou com o seguinte
comentário: �preá e lambari são comida de criança�155.
Nas condições de acampamento, a caça não vem sendo praticada na TI Mato Preto.
Entretanto, nas entrevistas e incursões às florestas da TI Ventarra, coletei muitos
depoimentos e informações sobre a caça. De modo geral estes depoimentos
enfatizam a caça enquanto atividade que implica em um certo deslocamento e
afastamento em relação ao espaço domesticado da moradia. Uma caçada pode
durar um dia inteiro ou mesmo dois ou três dias, período em que os caçadores se
154 Designação genérica do xamã Kaingang. 155 Vejamos o que diz a etnografia de Ladeira (2001:214) a respeito das regras e prescrições relacionadas ao consumo de caça: �Segundo contam, antigamente, a caçada da anta significava a possibilidade de uma confraternização entre as famílias de várias aldeias, com a realização de uma comemoração para a divisão da caça. Utilizam da anta, a carne para o alimento, os dentes para os colares, a pele para forração. Antes, �quando havia mais mato e mais anta�, esses animais eram usados para o treinamento dos meninos na arte de caçar com arco e flecha, para aprenderem a ser um bom caçador. Os animais menores (tatu, quati, cotia e as aves terrestres) não possibilitam as reuniões para divisão da carne e o seu consumo restringe-se ao núcleo residencial. Entre as aves mencionam a jacutinga, o jacu, nambu (só os mais velhos, os que não podem mais ter filhos podem comer, porque esta ave abandona os filhotes no ninho e esse comportamento pode passar para os que consomem sua carne), urui (galinha silvestre), maino (colibri dão para as criancinhas para aprenderem a controlar a fome, comer pouco), macuco, saracura. Dentre as aves e pássaros - tukã (tucano), coruja (urukorea), sabiás, periquitos (kairyrym), papagaios (parakau) - nem todos são para matar e comer e são apreciados por outros aspectos (canto, dança, cores)�. Infelizmente estas observações começam situando as práticas ao �antigamente�. A atualização da caça e de toda a complexidade cultural a ela associada, depende de áreas que garantam a sustentabilidade das populações animais incluídas neste repertório Guarani.
88
mantém acampados em pontos distantes da área de residência. Estas incursões
geralmente associam homens de diferentes famílias e idades, sendo consideradas
pelos narradores como momento de alegria e de encontro. De acordo com o Guarani
Seberiano Moreira, os deslocamentos entre a aldeia e os sítios de caça ou pesca
levavam um dia inteiro: �a gente saía bem cedinho, antes do sol nascer. Ia caminhando
pelo mato, ia o dia inteiro assim, caminhando, e chegava de tardezinha no lugar e ficava,
acampava, passava a noite. No outro dia vinha de volta�.
Do ponto de vista tecnológico, há uma série de armadilhas relacionadas às práticas
de caça. O pajé Ernesto Pereira me mostrou duas destas armadilhas, em um capão
de floresta na TI Ventarra: o mundéo e o mundéo-pi. De acordo com o pajé, estas
armadilhas pegam pequenos roedores, aves e outros animais de pequeno porte, e
sua estrutura pode ser reproduzida em várias escalas: os grandes mundéos de
antigamente eram construídos para pegar paca, veado, e mesmo felinos, como a
onça.
As seguintes espécies de mamíferos foram citadas pelos interlocutores Guarani
como sendo de ocorrência na Tekoa Ka�aty: a anta (Tapirus terrestris � mbore w�i), a paca (Agouti paca � jaixá), os porcos-do-mato cateto (Tayassu tacaju �
ta�ytetu) e queixada (Tayassu pecari � koxí), os tatus (Dasypus sp. � tatueteí,
tatupodjú), o tapiti (Sylvilagus brasiliensis � tapi�xi), a capivara (Hydrochaeris
hydrochaeris � kapi�ywá), o coati (Nasua nasua � xi�y), a cutia (Dasyprocta
azarae � akuxí), os veados (Mazama sp, Ozotocerus bezoarticus, Blastocerus
dichotomus � kuaxueté, kuaxuwirá, kuaxupytã, kuaxupuku).
Mundéo: armadilha de caça
89
Com relação à localização destas espécies, os Guarani referiram as seguintes
unidades de paisagem como potenciais sítios de caça: florestas remanescentes,
ricas em frutos, pinhão, incluindo matas ciliares, e banhados. As roças coletivas,
geralmente situadas em clareiras ou bordas de florestas, foram referidas como sítios de atração de fauna, onde colocam seus mundéos, o que articula as atividades de
horticultura e caça. Foram referidas com maior freqüência as seguintes espécies,
sendo consideradas como espécies preferenciais: tatu, paca, coati, veado.
Com relação à avifauna, as aves foram referidas como animais de grande
importância simbólica e prática pelos especialistas do grupo. Algumas espécies são
reconhecidas como mensageiras e seu canto ou aproximação podem ser
interpretados pelo xamã como sinais ou avisos, fazendo referência a fenômenos
meteorológicos, ciclos ecológicos ou mesmo a acontecimentos de ordem social,
como a chegada ou partida de uma pessoa, etc. Nas condições ambientais atuais, os
Guarani reconhecem com tristeza a raridade de aves no local, mas acreditam que
com a recuperação das matas elas repovoarão a TI Mato Preto. No que se refere à
dieta, algumas espécies de aves foram citadas como preferenciais pelo grupo:
nhambu, perdiz, marreca d�água, pomba grande, marrecão.
A seguir trago uma tabela com as espécies da avifauna reconhecidas e nominadas
pelos Guarani do Mato Preto156.
Termo Popular Termo Guarani Termo zoológico Família zoológica Gaviãozinho Taguató py ju�í Accipiter striatus Accipitridae Gavião-carijó Taguató py ju Buteo magnirostris Accipitridae Martim-pescador Jawa�xí Ceryle torquata Alcedinidae Marreca-piadeira Ypé Dendrocygna viduata Anatidae Garça-branca-grande Gura�xi Casmerodius albus Ardeidae Garça-branca-pequena Gura�xi Egretta thula Ardeidae Bacurau Kuxai�guãguã Nyctidromus albicollis Caprimulgidae Urubu Uru�wú Coragyps Cathartidae Quero-quero Tëutëu Vanellus chilensis Charadriidae Cambacica Javaxi Coereba flaveola Coerbidae Rolinha-picuí Pyku�í Columbina picui Columbidae Juriti-pupu Pyku�í Leptotila verreauxi Columbidae Gralha Aka�ë Cyanocorax chrysops Corvidae Anambé Guyraü Tityra cayana Cotingidae
156 Identificadas pelos Guarani em uma oficina realizada pela ambientalista, através da observação coletiva das fotografias dos pássaros contidas no Guia de Aves: Dunning, J.S. & Belton, W. Aves silvestres do Rio Grande do Sul 3ªed. Porto Alegre:FZB, 1993.
90
Alma-de-gato Kã�xu Piaya cayana Cuculidae Anu-preto Anó Crotophaga ani Cuculidae Anu-branco Piririguá Guira guira Cuculidae Arapaçu-verde Guyra xiapá Sittasomas griseicapillus Dendrocolaptidae Arapaçu-escamoso Mbroxá Lepidocolaptes Dendrocolaptidae Caracará Karakara gua�xu Polyborus plancus Falconidae Brujarara-assobiador Wawandu�í Mackenziaena leachii Formicariidae Choca Myro�ó Thamnophilus sp. Formicariidae Azulinho Peïÿ Cyanoloxia glaucocaerulea Fringillidae Canário-da-terra Guyraixu Sicalis flaveola Fringillidae Tico-tico kykypytãï Coryphospingus cucullatus Fringillidae Quem-te-vestiu Nhoaxa Poospiza nigrorufa Fringillidae Pintassilgo Guyranhe ëngatu Spinus magellanicus Fringillidae João-de-barro Mboityryry Furnarius rufus Furnaridae Trepadorzinho Pékunka�xí Heliobletus contaminatus Furnaridae Pichororé Mboityryry Synallaxis ruficapilla Furnaridae João-tenenem Awiá guaxú Synallaxis spixi Furnaridae Andorinha Maxorë�ï Notiochelidon sp
Tachycineta sp. Hirundinidae
Vira-bosta Guyraü Molothrus bonariensis Icteridae Jaçanã Araku�í Jacana jacana Jacanidae Caminheiro Manimbé Anthus lutescens Motacillidae Urutau Urutau Nyctibius griséus Nyctibiidae Pula-pula Mbariki Basileusterus sp. Parulidae Mariquita Tukanju�í Parula pitiayumi Parulidae Pica-pau-do-campo Nharãpu�ã Colaptes campestroides Picidae Dançador Tangará (avisa
onde tem abelhas) Chiroxiphia caudata Pipridae
Caturrita Kaïryry�i Myopsitta monachus Pisttacidae Charão Parakau Amazona pretrei Pisttacidae Saracura-carijó Araku�í Rallus maculates Rallidae Galinhola Araku�í Gallinula chloropus Rallidae Balança-rabo Tukanju�í Polioptila dumicola Sylviidae Saíra Xurei Pipraeidea melanonota Thraupidae Perdiz Nhambuí Nothura maculosa Tinamidae Corruíra Tambekyragua�i Troglodites aedon Toglodytidae Beija-flor Maino�í Leucochloris sp. Trochilidae Sabiá Awi�á oporaí Turdus sp. Turdidae Noivinha Guyraündi Xolmis irupero Tyrannidae Maria-preta Guyraündi Knipolegus cyanirostris Tyrannidae Freirinha Guyraümbuai Arundinicola leucocephala Tyrannidae Príncipe Araguyra Pyrocéphalus rubinus Tyrannidae Suiriri Xuiriri Machetornis rixosus Tyrannidae Tesourinha Taperá (no inverno
vão para o mar e no verão vêm para a aldeia)
Muscivora tyrannus Tyrannidae
Bem-te-vi Mitãjaryi Pitangus sulphuratus Tyrannidae Irrê Peroguy Myiarchus swainsoni Tyrannidae Patinho Taporo�í Platyrinchus mystaceus Tyrannidae Tororó Taporo�í Todirostrum plumbeiceps Tyrannidae Borboletinha-do-mato Myrõo Phylloscartes ventralis Tyrannidae Alegrinho Pixui�í Serpophaga subcristata Tyrannidae Guaracava-de-bico-curto Propro�i Elaenia parvirostris Tyrannidae Corujinha-do-mato Urukure�a Othus choliba Tytonidae Coruja-do-campo Urukure�a kuku Speotyto cunicularia Tytonidae Juruviara Piritau Vireo olivaceus Vereonidae Gente-de-fora-vem Piritau Ctclarhis gujanensis Vereonidae
91
Pesca: De acordo com os interlocutores, todas as investidas de pesca nas águas da TI Mato
Preto até o momento foram frustradas. O inventário das espécies de peixes
apreciadas pelos Guarani e presentes na área é baseado nas entrevistas com os
Guarani Pedrinho Mariano e João Maria Pereira, que pescavam no Rio Toldo.
As entrevistas também revelam que, na TI Cacique Doble, as pescarias eram
freqüentes. As incursões de pesca ocorriam preferencialmente em dias de chuva,
envolvendo de dois a três dias. A pesca é uma atividade coletiva e articula adultos e
jovens pertencentes a diferentes famílias nucleares e extensas.
Estima-se que em Cacique Doble a distância média entre a aldeia e os sítios de
pesca era de 20km.
As pescarias geralmente estavam associadas à coleta de mel e frutos, sementes,
larvas e tubérculos e, mais raramente, à caça de pequenos animais. Como na caça,
a pesca obedece códigos, regras e prescrições inseridas no âmbito do xamanismo e
transmitidas pelo pajé ou xamã e pelos mais velhos.
A tecnologia de pesca envolve lanças ou flechas, tarrafas e linhas com anzol. Cestos
e peneiras estão associados às pescarias.
Além das pescarias de rio, os Guarani manifestaram a intenção de futuramente criar
peixes nos açudes que existem na área reivindicada157.
Na TI Cacique Doble, o Programa RS Rural158 financiou a construção de açudes para
a criação de carpa-capim. De acordo com os Guarani, este peixe era eventualmente
consumido no grupo, embora não fosse muito apreciado. �Quando nós estivermos
nessa nossa terra, vamos criar tilápia nos açudes; tem menos espinho�, relatou o
Guarani Osmar Bento.
157 Praticamente todas as pequenas propriedades possuem um açude de pequeno a médio porte. 158 Programa da Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul
92
Espécies de pesca referidos pelos Guarani do Mato Preto:
Nome regional
Unidade de paisagem*
Unidade de recurso
Época Uso Técnica captura
Grau seletividade
Traíra Rio, Cacique
Doble
Águas fundasTodo o
ano
Alim. Anzol, tarrafa
flecha
Preferencial
Lambari Rio, Cacique
Doble
Margens Todo o
ano
Alim. Anzol, tarrafa Preferencial
(crianças e
mulheres) Saicanga Rio, Cacique
Doble
Águas fundasTodo o
ano
Alim. Anzol Apreciada
Cascudo Rio, Cacique
Doble
Enseadas,
leito d�água
Todo o
ano
Alim. Anzol Apreciada
Carpa Açudes - Todo o
ano
Alim. Anzol, tarrafa Ocasional
* Ao mais velhos relatam que na antiga Tekoá Ka�aty, as pescarias ocorriam no Rio Toldo.
Cabe ressaltar que muitas das espécies de peixes referidas pelos indígenas
requerem condições ambientais que não se encontram na área reivindicada. A
diversidade em termos de ictiofauna na TI Mato Preto está intimamente associada a
inclusão nos limites da área de porções dos cursos superior e médio do Rio Toldo,
até os pontos de confluência de seus formadores. Sem estas condições em termos
de estrutura de habitat, a ocorrência natural de muitas das espécies referidas fica
potencialmente inviabilizada.
Horticultura:
As atividades de cultivo são centrais na economia, na ecologia e na cultura Guarani.
Em torno da horticultura se articulam todas as outras esferas produtivas: caça,
coleta, pesca, além de diversos rituais relacionados a nominação e passagem da
pessoa ao longo da vida.
As saídas para as matas, para a coleta de plantas medicinais, fibras ou frutos são
também incursões em que os Guarani observam e coletam sementes ou mudas de
plantas específicas, que serão cultivadas no espaço domesticado, no entorno das
casas ou nas clareiras abertas para as roças.
93
O mesmo acontece nas investidas de caça e pesca. A articulação entre horticultura e
caça é relativamente bem documentada e há estudos que apontam as áreas de
cultivo como sítios atratores de espécies apreciadas na alimentação Guarani159.
Na condição de acampamento, os espaços de cultivo atualmente disponíveis para as
famílias Guarani na TI Mato Preto estão extremamente limitados. De forma geral, o
acesso aos recursos naturais como um todo se encontram conjunturalmente
condicionados e constrangidos pela ocupação dos não-índios no local.
As pequenas áreas cultivadas estão dispostas no entorno do acampamento indígena,
estendendo-se até os barrancos próximos à RS 135. Nestas condições, o cultivo
atualmente não supre as demandas da comunidade no que se refere à alimentação,
mas sim no que se refere à manutenção do patrimônio genético das sementes
tradicionais.
Conforme depoimentos, as roças cultivadas na TI Cacique Doble seguiam o modelo
tradicional da coivara ou corte e queimada, caracterizando o manejo de capoeiras.
A semeadura das espécies tradicionais segue um sistema permacultural, ou seja, o
cultivo esta inscrito em um contexto e ciclo ecológico. Trata-se de sementes ou
mudas de árvores, arbustos, ervas e epífitas que são transferidas entre fragmentos
florestais ou dispersas em arranjos nas distintas formações vegetais que compõe um
tekoá. Algumas espécies da floresta e do campo, como o pindó (Syagrus
romanzoffiana), são trazidas para a proximidade das casas. O contrário também
ocorre: sementes de cultivares associados ao espaço domesticado (aldeia) podem
ser semeadas entre a mata.
Nas roças são cultivadas espécies de uso alimentar, como o milho, a cana, a
mandioca, a batata-doce, o feijão, e entre elas, ou no seu entorno, são cultivadas as
espécies nativas, cujas sementes e mudas são coletadas nas matas, e que tem usos
medicinal, ritual, alimentar ou tecnológico.
159 E.g. GREENBERG, 1992; LADEIRA, 2001; CATAFESTO DE SOUZA, 2002; BODMER & ROBINSON, 2003
94
O plantio Guarani, deste modo, segue o �consórcio de muitas espécies com estrutura
morfológica distinta associadas� e, esta diferença, �cria relações que acabam
protegendo a maioria dos cultivares, resultando em poucas perdas�160.
De acordo com os depoimentos obtidos nas entrevistas junto aos Guarani do Mato
Preto, as roças podem ser de dois tipos: roças familiares e roças coletivas. As
primeiras situam-se próximo às residências das famílias nucleares e as ultimas
geralmente são mais distantes, podendo ocupar bordas ou clareiras nas matas. Os
produtos das roças coletivas são coletivamente mantidos e consumidos. A partilha
destes recursos prioriza as famílias que deles necessitem, não havendo uma regra
exata de distribuição. As roças coletivas também funcionam como atratores de caça.
De acordo com o Guarani Osmar Bento: �(...) na volta das roças, às vezes a gente armava um mundéu pra pegar lebre, cutia, bichinho pequeno que vai na plantação. Se a gente chegava na roça à tardinha, sempre tinha um ou outro ouriço comendo milho. A carne não é das melhores, mas a gente come pra aproveitar [caça ocasional]�.
Principais espécies botânicas referidas pelo grupo como itens de cultivo161:
Nome popular Nome Guarani manejo e uso Milho Avaxi Cult, Alim Feijão Kumanda Cult, Alim
Mandioca Mandió Cult, Alim Batata-doce Jety Cult, Alim
Cará Cará
Cult, Alim
Abóbora Andai Cult, Alim Amendoim Mandubi Cult, Alim Melancia Xanjáu Cult, Alim
Cana-de-açúcar Takuaree avaxi
Cult, Alim
Caninha Takuaree
Cult, Alim
Bananeira Pacova Cult, Alim Pessegueiro Lurano Cult, Alim Laranjeira Naranja
Cult, Alim
Fumo Penty Cult, Mit Erva-mate Ka'a Cult, Alim Porongo I'a, Jy'a Cult, Art
Lágrima-de-nossa-senhora Ka'pi í
Cult, Colet, Art, Med
Balãozinho, Saco-de- padre
Yaum Cult, Art, Med
Erva-de-santa-maria Ka'a are Cult, Med Mamona Mbay syvo Cult, Med
Cultivada = Cult, Coletada = Colet., Alimentar = Alim, Artesanal = Art, Mítica = Mit, Medicinal = Med, Comercial =Com.
160 NOELLI, 2003. 161 Modelo de tabela extraído de IKUTA, 2002.
95
Para o grupo da TI Mato Preto, as sementes cultivadas nas hortas e roças são
compreendidas como precioso capital social e cultural, estando de certo modo
associadas à identidade, à existência, à continuidade e à posição do grupo dentro de
um cenário sócio-ambiental mais amplo. Vejamos este trecho de entrevista realizada
com o pajé Ernesto Kuaray Pereira162:
Ambientalista � Seu Ernesto, o senhor pode falar um pouco sobre a plantação de vocês aqui no Mato Preto? Ernesto � No primeiro dia que nós chegamos aqui, plantamos um pouquinho desse milho que é da nossa cultura mesmo, o catetinho, pintadinho, milho da nossa mesma natureza. E deu milho bonito mesmo, espiga grande! Tirei de novo pra semente, porque não quero perder esse semente, natureza da piazadinha, comer milho verde, nossa cultura mesmo. Tem muito lugar, muita aldeia Guarani, que já perderam esse nosso natureza. Aqui não. Teve gente que veio aqui, gente lá da Estiva [Viamão, RS] que teve aqui e levou um par de espigas dessa, porque lá não tem. Ambientalista � e onde o senhor conseguiu as sementes deste milho? Ernesto � essa semente veio do falecido pai, que o pai sempre tinha. E é onde nós se criava, no milho. E o pai sempre dizia: �Não perca esse milho, porque é natureza nosso. Depois você vai casar e vai ter um milhinho pros teus filhos comer�. Porque esse é o maior alimento nosso: ralar o milho, fazer bolo de cinza, esse é o alimento nosso. Fazer cauim pra tomar, também feito desse milho mesmo, desse milho cateto. E também tem essa piazada agora, pra não perder nossa cultura.
O depoimento transparece que o movimento Guarani de retomada da TI Mato Preto
é marcado pela semeadura do milho tradicional (avaxí). É explicita na narrativa uma
associação direta entre a natureza da pessoa Guarani e a natureza do avaxí. Há
valores culturais que são herdados, que se mantém e se perpetuam através da
transmissão das sementes de geração a geração. Também podemos apreender que
o grupo da TI Mato Preto constrói sua posição em relação a outros grupos em função
da posse de sementes tradicionais: �Tem muito lugar, muita aldeia guarani, que já
perderam esse nosso natureza. Aqui não�. Esta posição � de portador de um capital
cultural e de um recurso natural valorizado socialmente � faz da TI Mato Preto uma
referencia sócio-ambiental: os poderes e o prestígio de suas lideranças se reafirmam
no cenário do povo Guarani e a TI Mato Preto se inscreve em uma rede de
intercâmbio e reciprocidade definida.
162 Fita 01, 01/08/2004, grifos meus.
96
Com relação às variedades de avaxí, atualmente o estoque de sementes do grupo
possui as seguintes: avaxi pará, avaxi mirim, cateto branco
O calendário agrícola está relacionado à divisão sexual do trabalho, aos rituais de
passagem, a passagem do tempo. As mulheres semeiam determinadas plantas,
como a cana-guarani (takuare�é), a melancia (xanjau), entre outras. A elas também
compete debulhar, selecionar e armazenar as sementes. Os homens geralmente
preparam o solo para o cultivo. Em Cacique Doble o grupo dispunha de uma junta de
bois para este fim. A colheita do milho verde está associada a um importante ritual,
ocasião em que algumas crianças são nominadas.
Lurdes Ara Martins e sua plantação de taquare�é. Lurdes prepara as sementes de avaxí para a semeadura
Debulhar e selecionar Lurdes coleta frutos do Pindó nas florestas da TI Ventarra
Segundo o pajé Ernesto Kuaray Pereira, a semeadura do avaxi (milho Guarani) abre
o calendário agrícola, seguindo-se a ela o plantio de outros cultivares tradicionais,
como takuare�é (cana Guarani), jety (batata-doce), kumandá (feijão), da mandió
97
(mandioca). Na situação de acampamento, a chegada do mês de setembro preocupa
os homens e mulheres. A este respeito, é representativa a fala do vice-cacique
Seberiano Moreira:
�(...) Lá em Cacique Doble nós plantava arroz, feijão, milho, de tudo um pouco. Agora aqui a gente sente dificuldade, vai chegando setembro, e todo ano a gente sempre planta uma coisinha pros nossos filhos... Agora a gente pensa: onde é que vai plantá? E as crianças também querem comer milho verde, querem ver o milho crescendo! E a gente diz: �Vamo espera em Deus que façam demarcação prá gente!� Até esse ano nós tava discutindo pra ver se os Kaingang deixavam um pedaço pra nós plantar, até que saísse essa terra...pra nós consolar os nossos filhos também. Porque eles tão vendo que a gente não tá plantando, mas não é isso! Então a gente explica pra eles. Mas isso tudo a gente tá passando dificuldade!�163
De acordo com Ladeira, �o calendário agrícola e os ciclos da lua condicionam o
planejamento das demais atividades sociais e de subsistência da aldeia (visitas entre
aldeias, confecção e venda do artesanato, caça). De toda a forma, é após a colheita do milho
tradicional Guarani (avaxi etei) que realizam a cerimônia do batismo do milho e das crianças
(nheemongarai)�164.
No acampamento Guarani no Mato Preto, as roças de milho, mandioca, ocupam os
barrancos, rente à estrada e aos trilhos do trem.
Há também outras áreas menores, próximas às casas, onde localizei algumas
plantas nativas, como o pekunk´a, associada a usos rituais e mágicos, o quebra-
quebra, transplantado das florestas da TI Ventarra e que está semeado entre o
capim-elefante, próximo ao acampamento, e uma muda de laranjeira.
Há ainda a horta, mantida por Terezinha e Osmar Bento, onde estão cultivados
cenoura, beterraba, alface, tempero-verde, cebolinha, entre outros legumes e
verduras.
163 Fita 01, lado A. 164 LADEIRA, 2001:184
98
Cultivo na TI Mato Preto
Horta ao lado da casa de Terezinha e Osmar
Pé de laranjeira Área utilizada para roça, próximo RFFSA Mudas aguardam transplante Criação de animais (domésticos e silvestres domesticados):
A criação de animais domésticos e a semi-domesticação de animais silvestres
(animais amansados, animais companheiros) é comum entre as famílias Guarani.
Pequenos animais, como o papagaio � parakau (Amazona aestiva)165, típico das
florestas que acompanham o rio Paraguai, não raro se encontra nas aldeias Guarani
no Brasil. Geralmente as mulheres e crianças criam os filhotes que se tornam
animais de companhia. O mesmo acontece com outras aves e pequenos mamíferos.
165 Na cidade de Porto Alegre, dois bandos desta espécie se territorializaram nos bairros Menino Deus, Bom Fim e Cidade Baixa. Acredito que estes animais estão associados aos grupos Guarani que transitam pela cidade há anos, alguns estabelecidos nas aldeias da capital.
99
Há inclusive relato de uma anta � mborewi (Tapirus terrestris) como animal-
companheiro em uma aldeia Mbyá Guarani no Paraguai166. Geralmente estes
animais, sobretudo os de menor porte, acompanham as famílias quando estas se
deslocam.
Os animais companheiros geralmente ficam próximos às casas de seus criadores.
No caso dos galináceos, cada família nuclear tem seu plantel de aves, embora os
produtos (carne, ovos, penas) possam ser socializados em refeições ou atividades
coletivizadas. Galinhas, galos e pintos são criados soltos e sua área de vida inclui os
barrancos da beira de estrada e mesmo parcelas dos terrenos de pequenas
propriedades adjacentes ao acampamento.
Há poucos metros de cada casa existe uma construção que serve simultaneamente
de abrigo às galinhas e de depósito de ferramentas e outros objetos. Na estrutura
destas construções é empregada a taquara-mansa batida ou lonas e outros materiais
disponíveis.
Galinheiro de taquara-mansa batida Cão dormindo ao lado da opy (casa de rezas)
Além dos animais criados no acampamento, alguns informantes citaram espécies da
fauna silvestre com potencial de semi-domesticação e amansamento: pombos �
pyku�í (Columbina sp.), caturritas � kaïryry�i (Myiopsitta monachus), papagaios �
parakau (Amazona sp.), porcos-do-mato � ta�ytetu (Tayassu tajacu), preás � apre�a
(Cavia aperea), gatos-do-mato � twi kaaguáí (Felis tigrina), coatis � xi�y (Nasua
nasua), cutias � akuxi (Dasyprocta azarae) e primatas, como o bugio � kradja
(Alouatta fusca) e os micos � ka�i (Cebus apella).
166 Conforme relato do cacique Guarani Cirilo Morinico, natural do Paraguai.
100
Animais criados no acampamento Guarani na TI Mato Preto167:
Nome Regional
Nome indígena
Local de criação Numero indivíduos
Uso Freqüência consumo
Procedência
Porco-da-
Índia
Kure
mirim
Próximo às casas
8 Companheiro
- TI Cacique Doble
Gato Tiwí Casas 2 a 3 (por
casa)*
Companheiro,
controle de ratos
- TI Cacique Doble
Cão Jaaguá Pátio das casas 8 Companheiro, guarda
do acampamento
- TI Ventarra
Galinha Uru Galinheiro
(abrigo sem
confinamento)
5 -10
(por
família
nuclear)
Alimentação (ovos
e carne);
Artesanato (penas)
Ovos: diária
Carne: +-3x
na semana;
Penas: são
armazenadas.
TI Cacique Doble
Pomba
doméstica
Pikuí Soltas em volta
das casas
1 casal Companheiro - TI Cacique Doble
* nem todas as famílias nucleares abrigam gatos
Arte-índia:
O grupo Guarani da TI Mato Preto domina uma série de práticas associadas à arte
indígenas, incluindo a arte cerâmica, as cestarias, a confecção de adornos corporais,
as esculturas e mesmo alguns instrumentos musicais.
Cerâmica: Com relação à arte cerâmica, já referi ao longo deste Relatório a
particularidade deste grupo, que foi identificado em estudos anteriores como um dos
últimos grupos Guarani Xiripá que domina toda a seqüência de etapas associadas à
arte cerâmica, desde a localização e seleção dos barros (chamados nhae�ü), até os
rituais e cantos associados a durabilidade e valor cultural das peças. Os especialistas
do grupo, comparando os solos da TI Cacique Doble com os da TI ato Preto,
reconhecem, satisfeitos, que nesta última os nhae�ü são de melhor qualidade. Como
já referi, estes solos se localizam junto às várzeas de rios e banhados.
167 Os relatos indicam que na Seção Guarani da TI Cacique Doble as famílias também criavam gado bovino, suíno e eqüino, que foram vendidos devido à falta de espaço para a criação no acampamento.
101
Música: Com relação à música, esta preenche um lugar fundamental na organização
social e na cultura Guarani, perpassando as esferas da religiosidade e do
xamanismo, da luta pela terra, da educação de crianças e jovens, e sendo
reconhecida como um dom de Nhanderu que comunica o Guarani com os seres da
natureza, especialmente com o universo das aves. Na TI Mato Preto o grupo de
canto e dança reúne os jovens e crianças e é coordenado pelo pajé Ernesto Kuaray
Pereira e pelo cacique e professor Joel Pereira. Os instrumentos usados na
execussão das músicas e composições do grupo são: o mbaracá-mirim, o ravé, o
taqua�pu, o mbaracá.
O porongo para confecção do mbaracá é geralmente cultivado, embora o grupo, nas
condições atuais, ainda não tenha empreendido o cultivo. A taquara-brava
empregada na confecção do taqua�pu é coletada nas florestas da TI Ventarra.
Os Guarani do Mato Preto tocando e cantando na opÿ
Cestaria: A arte da cestaria é desenvolvida na TI Mato Preto principalmente pelos
mais velhos. Lurdes Ara Martins, João Maria Pereira e Erica Irwá da Silva são os
principais artesãos e esta arte é herdada de geração à geração, pela tradição.
Os diversos objetos, cestos, balaios, peneiras, etc., além de comercializados,
integram os objetos de uso cotidiano, sendo empregados para guardar roupas,
alimentos, etc. As peneiras são usadas no preparo de farinhas e seleção de
sementes. Cestos maiores são usados como dormitório de aves, sendo freqüentes
102
nos galinheiros. O berço da menina Aline Rokaju Pereira, primeira criança nascida na
TI Mato Preto, também é trançado com a taquara-mansa:
Do ponto de vista iconográfico, os ajaká (cestos), traçados com fibras coloridas para
este fim, representam animais originais, criados por Nhanderu e que povoam o
cosmos Guarani. Cada desenho veicula uma imagem, que é interpretada no
repertório cultural do grupo.
Foto 1 Foto 2
Na foto 1, as duas correntes na parte superior do cesto referem a representação de
uma cobra, e é conhecida por ipará karena. Abaixo, está representado o peixe (pirá),
e o ipará é conhecido por pirárãinhykã ipará (desenho da mandíbula do peixe).
Na foto 2, repete-se o ipará karena, representando a cobra e, abaixo, está
representado um mboi cruzeira ipará (cobra cruzeira).
103
A iconografia das cestarias produzidas no Mato Preto incluem outros desenhos,
como o ipará ryty karé karé (grafismos com linhas em ziguezague, enfileiradas,
horizontal ou verticalmente)168.
O valor simbólico e cultural associado a estas manifestações estéticas da cultura
material do grupo reforça a necessidade de que os recursos naturais da área
reivindicada ofereçam as fibras necessárias à continuidade da confecção das peças
(principalmente a taqua ete�í) assim como os corantes naturais utilizados.
Atualmente, os Guarani compram os corantes de cor preta e azul, e os tons
vermelhos e rosados são obtidos pela maceração de um cipó (xipó) coletado nas
florestas da TI Ventarra.
Velho João Maria Pereira fazendo peneira de taqua ete�í para a seleção das sementes de avaxí
168 Os ajaká e ipará oram identificados pelo antropólogo Sérgio Baptista da Silva, a quem presto meus agradecimentos.
104
Mapeamento da circulação de peças da cultura material indígena em espaços de comércio de artesanato na cidade de Getulio Vargas:
Durante os estudos de campo, a equipe do GT ficou alojada na cidade de Getúlio
Vargas, há cerca de 10 km da TI Ventarra e da TI Mato Preto. Em diversas
oportunidades, me dediquei a caminhadas pela cidade, com o olhar atento à
presença de indícios da circulação indígena no local.
Nestas caminhadas, percorrendo feiras locais, lojas, enfim, espaços de
comercialização de objetos variados, pude constatar que peças da cultura material
indígena, referentes à várias etnias, incluindo artesanato de coco Pataxó, estão
presentes nestes espaços de Getúlio Vargas.
Entre elas, artigos do artesanato Kaingang são freqüentes, como revelam as
imagens seguintes:
Entrevistando um feirante, obtive a informação de que as peças foram compradas de
indígenas nas TI�s Irai, Ligeiro e Ventarra e são revendidas nas feiras das cidades de
Erechim, Getúlio Vargas, Erebango e Passo Fundo. Ele relata que há uma boa
aceitação destes �produtos� no mercado local. O preço de venda dos anéis varia
entre R$1,00 e 2,00. O valor de compra dos mesmo anéis nas TI�s varia entre R$
0,30 e 0,50.
Este dado sugere que há espaço na região para a comercialização do artesanato
produzido pelo grupo Guarani do Mato Preto.
105
Meio ambiente e Recursos Naturais na Ecologia Simbólica Guarani:
Nas narrativas dos Guarani do Mato Preto, Floresta (ka�aguy) e Água (yÿ) são
indissociáveis. Do mesmo modo, os animais e plantas que integram o cosmos
precisam de um lugar adequado para viver.
Cada sociedade possui combinações culturais diferenciadas para classificar e
ordenar seres e fenômenos da natureza. As teorias indígenas a respeito do cosmos
� ou a cosmologia de cada sociedade � são repletas de arranjos pelos quais cada
grupo ordena o universo, e esta ordem está vinculada a todos os aspectos da vida
societária169. Neste sentido, nas atividades de campo, pude identificar que uma série
de categorias estão associadas à classificação e qualificação conferida pelos
especialistas do grupo Guarani do Mato Preto aos recursos naturais. Do mesmo
modo o comportamento de plantas e animais, assim como observações sobre as
estações e ciclos naturais são objeto do interesse, da pesquisa minuciosa, do
conhecimento e das teorias dos Guarani deste grupo acerca do cosmos.
Para ilustrar a complexidade do pensamento Guarani, vejamos este trecho do
depoimento do pajé Ernesto Kuaray Pereira, que faz referencia às águas e matas:
�No tempo dos antigos era assim, tinha olho d�água por toda parte. Era mato por tudo, toda a parte mato. E hoje em dia os colono acabaram com a mata, e a água que vem, umidade que puxa a água, vem da raiz da madeira, vem por baixo da raiz da madeira. Essa é a água boa, água natureza mesmo. Que nem hoje em dia, não temo mais água natureza. Por quê? Porque os colono acabaram com a maderama, terminou a madeira, e então a terra não consegue puxá mais água pura. Então a água vai se sumindo, vai se sumindo tudo, pois é o mato que segura a água. Porque madeira também toma água, né, não é só nós que tomemo a água. Então a madeira também tava viva porque tinha água, né. Então isso é água natureza pra nós. Então agora, como não tem mais madeira, não tem mais nada, nós temo que segurá a água, a água também tá se sumindo. Porque o colono já produziu tudo, tirou o mais forte, e agora tá enfraquecendo tudo o mato. Hoje a gente não enxerga mais nem buwí, nem capoeirinha, nada, só lavoura e lavoura, e veneno e mais veneno. Então ali a água também se termina (...)�170.
A categoria êmica �água natureza� (�água pura�, �água boa�) faz referência às
águas integradas em um ecossistema florestal íntegro. A concepção nativa
associa a remoção da floresta à redução e contaminação das águas, que perdem a
169 E.g. Levi-strauss, 1997 (1962); Viveiros de Castro, 1996; Giannini, 2000. 170 Fita 01, lado A, grifos meus.
106
qualidade original de �água natureza�. Este �decaimento� é associado à doença,
como evidencia o outro trecho seguinte:
�(...) Disso aí sempre vem a doença prás criança. Então até os médicos, eu também que sou pajé, não consigo mais salvá as criança às vez. De onde é que eu vou arrancá esse remédio prá tirá esse veneno? (...)�.
A restauração do equilíbrio se dá pelo retorno da água, através da chuva, que vem à
terra recomposta em suas propriedades de �água boa�. O xamanismo permite a
conexão do pensamento do pajé com Nhanderu - poder divino � e assim se
estabelece a cura:
�(...) Por isso eu to aqui trabalhando com a minha turminha aqui, só eu que trabalho, mais ninguém. Por que é que as criança tão bem sadio aqui, vocês acharam muito bonito a piazadinha gordo? Tá sadio também porque eu to pensando nessa água que ta se sumindo. Então Nhanderú, vez em quando, manda água boa pra nós. Aí vem a chuvinha e aquela água sempre limpa, vai limpando. Quando pára de chover, os branco vá veneno de novo. E isso prejudica muito o Guarani. E não é só nós, os branco também se prejudica entre eles mesmo! Isso aí eu penso tudo também. Sempre digo pra minha gente: Vamo pensa um pouquinho, vamo se reunir sempre aqui, vamo reza um pouco pro Nhanderú vir trazer chuva e trazer água limpa pra nós! Por essa história que eu contei é que se terminou a água boa, não tem mais e por tudo não tem mais! Onde tiver mata tem água pura e aqui muito lugar não tem mais�.
Em sua etnografia, a antropóloga Maria Inês Ladeira171, levantou uma série de
categorias êmicas empregadas pelos Guarani para qualificar as matas:
Kagüy ete - matas autênticas: são as matas primárias e férteis, que guardam plantas medicinais, frutos, cipós e as árvores de porte e devem abrigar todas as espécies vegetais do acervo Guarani. Kagüy porá: são as matas sadias, onde vivem os animais originais, em sua diversidade. Kagüy poru ey: são áreas de mata intocadas e intocáveis, que nunca foram pisadas, nunca foram mexidas, nem podem ser usadas pelos homens, e �estão nos morros muito altos�. Em Kagüy poru ey ficam e protegem-se os �seres da natureza�. A vegetação é mais fechada, não há trilhas. Quando em seus caminhos avistam Kagüy poru ey, dizem que é preciso passar depressa, sem olhar, para não serem atraídos para lá. Itaja (dono das pedras) atira pedras naqueles que tentam se aproximar (�os que insistem podem sofrer um grande mal�).
171 LADEIRA, 2001:129.
107
Kagüy yvin: são as matas baixas, as capoeiras, onde escolhem áreas para as roças, encontram ou cultivam ervas e material para artesanato. Kagüy rive: são áreas que já não servem para usar [degradadas], os animais não chegam e não encontram árvores (yvyra) ou plantas apropriadas.
Nos estudos de campo na TI Mato Preto, em entrevista com o pajé Ernesto Kuaray
Pereira, pude identificar as seguintes classificações Guarani relativas às formações
florestais:
Ka�a guy porã - Mato bom, mato natureza, onde vivem animais e plantas em profusão. Naï porã�ỹ - É uma área que não pode mais ser considerada kagüy, por estar desintegrada, desfigurada. Ka�a guy iwaté � Mato alto, com espécies importantes da flora. É um tipo de kagüy porá. Ka�a guy yvỹ � Mato baixo, de pequeno porte, mas que não obrigatoriamente se associa à capoeira, para qual o grupo designa um termo específico. Ka�a guy�ï � Capoeira. Estão associadas às roças (hapó). Patumreí; kuri�y ty � Mato preto, com predomínio do kuri�y (pinheiro-brasileiro). São matas do tipo kagüy porá, associadas aos ywy waté (morros), à caça e coleta de frutos, remédios, tubérculos e mel. Edjakareí � Mata branca, associada a porções baixas, próximas às grandes águas ou yaká (rios). Estão associadas ao cultivo, pesca e arte-cerâmica. Pindo�ty � São áreas sagradas, com predomínio do pindó (jerivá), indicando lugar de
tekoá (aldeia Guarani).
Do mesmo modo as águas são classificadas conforme os atributos do corpo d�água
ou o estado de integridade em que se encontram com relação à sua condição
original. A seguir, trago uma lista de categorias êmicas que os Guarani empregam
para identificar e classificar a água (Yy), levantadas nos estudos de campo na TI
Mato Preto:
Yaká: é uma água grande, um rio, onde vivem peixes de várias espécies.
Yaká�ï: correponde a um arroio ou riacho, água de pequeno porte.
108
Yupá: são os banhados, açudes, lagos, águas de baixo movimento.
Óky: é a água que retorna à terra em forma de chuva e renova os rios, lagos e
arroios. A óky tem o poder de restaurar as condições originais de pureza das águas
contaminadas pelo yvaikué (veneno). Renovadas pela óky, as águas novamente são
Yy porá (água pura, água boa, água natureza).
Yy porá: água boa
Como já referi em outras partes deste relatório, os Guarani identificam na região do
Alto Uruguai duas formações florestais principais, cada uma associada a um
determinado conjunto de atividades produtivas ou práticas de manejo:
A �Mata Preta� � patumreí � é associada às partes mais altas, aos morros e
nascentes, sendo identificada como zona apropriada para a caça e a coleta; enquanto a �Mata Branca� � edjakareí � foi associada aos cursos d�água, às várzeas, à agricultura, à cerâmica, à pesca.
De modo similar, Ladeira identificou a seguinte associação entre mata, relevo e
práticas de manejo: �Os morros, onde tem kagüy poru ey (mata intocável) e kagüy
ete (mato virgem) são a fonte do universo mítico e reserva de alimento, onde se
encontram frutos, mel, plantas, palhas, cipós, caça, medicina, nascentes de água,
alimentos e espécies apropriados para seu uso. Já a baixada é para se morar, fazer
roça (�porque não vai derrubar madeira grossa como a que tem na serra�), criar
animais, realizar os rituais coletivos�172.
Visando ordenar os diferentes aspectos simbólicos envolvidos na compreensão
Guarani acerca do meio ambiente e, ao mesmo tempo, instrumentalizar os estudos
ambientais com as representações Guarani sobre os recursos naturais e elementos
ambientais da TI Mato Preto, foram encaminhadas oficinas de representação gráfica,
onde os indígenas foram estimulados a ilustrar �Como será sua Terra quando aqui
estiverem vivendo�.
172 LADEIRA, 2001:182
109
Ambientalista encaminhando oficina junto à comunidade Guarani do Mato Preto
O produto destas oficinas foi uma série de desenhos que ilustram o projeto Guarani
de ocupação da TI Mato Preto, visivelmente marcado pela recuperação das florestas
e águas, como demonstram os desenhos abaixo reproduzidos:
110
Estas imagens possuem alguns elementos recorrentes que confirmam os dados
obtidos nas entrevistas: a água ocupa uma posição privilegiada nas ilustrações; a
floresta envolve os cursos d�água e a aldeia indígena; águas e florestas são
povoadas de animais e plantas citados nas narrativas. A idéia de ciclo também está
presente, sobretudo na imagem em que peixes se alimentam dos frutos da
guabiroba.
Ainda com relação ao projeto Guarani de ocupação da área, vejamos este trecho de entrevista:
Ambientalista � Aqui na área tem um rio de água boa, um rio bom? Seberiano � Rio bom não tem... e aquela fonte lá [fonte que abastece o acampamento], ela vem duma fonte boa d�água, só que tem agricultores que plantam lá pra cima. Então esses dias deu um probleminha nas crianças, hepatite A, e nós ficamos preocupados [4 crianças]... eles plantam ali pra cima, em roda da água. Terezinha � e quando chove vem a enxurrada pra baixo... Seberiano � eles usam muito veneno em roda, e leva todo o veneno lá pra fonte. Ambientalista � e aqui nesse espaço que vocês estão querendo demarcar tem água boa? Seberiano � água boa tem, é só parar de plantá em cima do olho d�água que tem água boa. E nós tamo pedindo essa demarcação porque queremos proteger a fonte d�água, que seja criado o mato. E não só pra gente plantar, mas sobre nós, pra gente tomar a água, que hoje a gente ta tomando uma água ali que a gente não sabe os quantos tipos de remédio que eles colocam. Então a gente quer fazer demarcação pra criar mato em cima, nas fontes dos rios, que seja bem bom pra nós, todo mundo.
Ambientalista � A idéia de vocês então é fazer o mato voltar? Ernesto � É fazer o mato voltar. Ambientalista � E o senhor vê que pode voltar? O mato volta aqui?
Ernesto � Volta! Deixando de punhá veneno volta. Se seguir punhando veneno não volta mais. Porque termina a raiz, mata tudo! Quando for querê brotá o mato, veneno de novo e mata tudo. Ambientalista � Então quando for demarcada a Terra Guarani Mato Preto, o mato vai voltar? Ernesto � Vai voltar.
111
As oficinas referidas acima, culminaram com um exercício que exigiu do grupo o
esforço de estabelecer um zoneamento ecológico para a TI Mato Preto, com base
em sua percepção e ordenação próprias.
O produto desta oficina foi um mapa esquemático onde os Guarani situaram,
identificando e localizando, os principais recursos naturais, rios, matas e elementos
ambientais que, de seus pontos de vista, deveriam ser incluídos na delimitação da
Tekoa Ka�aty.
Este exercício finalizou com uma projeção futura, a partir dos usos indígenas sobre
os espaços atualmente degradados, em que os Guarani idealizaram e projetaram
como será Tekoá Ka�aty no futuro.
Na próxima página, trago uma reprodução do mapa construído pelos Guarani,
identificando os ambientes da Tekoa Ka�aty quando estes estiverem recuperados.
Imediatamente a seguir, trago um croqui onde são localizadas as unidades de
paisagem atualmente presentes na área reivindicada e destacadas pelos Guarani,
indicando os usos potenciais que os indígenas identificam para estas unidades e
recursos naturais:
112
113
Unidades de paisagem reconhecidas pelos Guarani na TI Mato Preto e seus usos culturais
Capões de floresta com presença de Pinheiro Brasileiro banhados (incremento florestal, abrigo de fauna, caça, coleta, rituais, cura) (caça, rituais, cerâmica). Cultivo de erva-mate rios, lajeados. (cultivo e coleta) (incremento florestal, reflorestamento, pesca, rituais). Lavouras temporárias (predomínio de trigo e soja) açudes (agricultura tradicional e reflorestamento) (pesca, lazer, piscicultura).
374 378 382
6918
6922
6926
UTM
114
VI � Contribuição ambiental à definição dos limites da TI Mato Preto
Este espaço está reservado para retomar, a partir do conjunto de elementos
que expusemos até aqui, a contribuição dos estudos ambientais à identificação e
localização de limites que configurem sustentabilidade à TI Mato Preto.
Nesta oportunidade, retomo um pouco do histórico deste processo.
Nos primeiros dias de trabalho de campo, os Guarani apresentaram à equipe do GT
uma proposta inicial de trabalho versando sobre a delimitação da TI Mato Preto.
Nesta proposta, os indígenas consideravam a área de ocupação histórica definida
pelo Polígono B da Floresta Matto Preto e, partindo dela, incluíam um cemitério e
uma espaço reconhecido como pertencente à aldeia antiga, ambos situados na
abrangência das nascentes do Lajeado Ventarra. Analisando a Planta da Floresta
Matto Preto, verifica-se que este local corresponde a uma pequena sobra de área
não colonizada, situada entre o Toldo Kaingang Ventarra e a estrada de ferro,
limítrofe aos lotes nº 30 e 35 (ver anexo 1).
Na justificativa dos limites propostos, os indígenas também destacavam as seguintes
unidades de paisagem: (I) um banhado a oeste da RS 135 (Polígono B); (II) outro
banhado, por eles designado �Banhado do Clementino�, próximo às nascentes do
Arroio Castilhos (Polígono A); (III) dois fragmentos florestais com presença de
Araucaria angustifolia, ambos situados nas cabeceiras do Arroio Paulo, um a oeste e
outro a leste da RS 135173(Polígono B); (IV) um fragmento florestal associado a Bacia
do Arroio Ribeiro (Polígono C).
Pudemos perceber que desde o início havia uma clara intenção indígena em estabelecer contigüidade entre os limites da TI Mato Preto e a TI Ventarra, assim como a firme determinação em isolar unidades de bacia, incluindo nascentes, cabeceiras, cursos d�água e florestas remanescentes conectadas por um mesmo complexo hídrico. A proposta Guarani também permitia apreender que os indígenas reconheciam no mosaico da paisagem a relevância
173 Ver nota de rodapé nº18.
115
de unidades representativas dos três polígonos da Floresta Matto Preto, sugerindo que a ocupação Guarani, no momento em que a região foi loteada, abrangia pontos em toda a Reserva Florestal.
Na medida em que a equipe percorria os limites propostos pelos indígenas, eles
próprios ponderavam ajustes e reformulações. Todos os ajustes apontavam para a
ampliação dos limites anteriores, considerando os seguintes critérios:
(I) inclusão do maior numero possível de fragmentos florestais, nascentes, cabeceiras, cursos d�água, banhados e açudes artificiais;
(II) evitar de cemitérios não-indígenas, sobretudo os mais antigos, e núcleos populacionais (vilas ou pequenos povoados).
Em situações conflitantes, prevalecia o primeiro critério, ou seja, a determinação
indígena em priorizar unidades de paisagem relevantes desde seu ponto de vista.
Neste percurso foi-se tornando evidente que o olhar Guarani privilegiava os relictos
ambientais que, no mosaico da paisagem, denotavam a presença ancestral da
floresta e da água174. A este respeito, veja-se o seguinte trecho de entrevista175: Darci � O que eu tava pensando agora, é que dentro desses 223 ha não tem nenhum pé de mato, e por onde eu to pensando, a gente tem que pegar pelo menos um pedaço de mato. Ambientalista � E onde tem esse mato Darci � Tem aquele mato que aparece ali, que ta fora dos 223 [nascentes do Arroio Paulo]. Ambientalista� Então tem um mato lá pra fora que vocês já conhecem? Darci � Tem um mato que poderia ficar dentro. Seberiano � É como ele tava dizendo: dentro dos 223 não tem mato, e nós queremos mato! Esse mato que tem nos cantos, no meio. Darci � Porque nós queremos pegar as fontes das águas. E tem poucas fontes d�água dentro desses 223.
174 Esta evidencia se comprovou na análise das representações e desenhos indígenas feitos nas oficinas. Nestas ilustrações predominam os elementos floresta e água, fartamente povoados de peixes, aves e mamíferos (ver etnozoneamento da TI Mato Preto, no final deste Relatório) 175 Fita 01, lado B, grifos meus.
116
Seberiano � E outra coisa que nós pensamos, onde que nós vamos pegar lenha, se nesses 223 não tem mato? Não tem lenha! E nós sabemos onde que tem os matos, matas nativas que ainda restam, só que ta fora dos 223, mas é o mesmo pedaço. Seberiano � Esse ano que passou, nós sentimos dificuldade. Porque lá em Cacique Doble a gente tinha as araucária que dava. Esse ano a gente sentiu a falta, porque aqui tem, mas é muito pouco! E tem araucária fora dos 223, e isso que a gente tava pensando, porque a nossa idéia é mato! Darci � E mesmo pra gente fazer artesanato, não tem nesses 223ha., a gente tinha que pegar mais mato! Se tivesse mais mato era bom pra nós. Por isso que esse mato que nós tamo dizendo temos que deixar dentro da área. Joel � E a partir desses matos, uma das primeiras idéias nossas é fazer reflorestamento, recuperar essa área que agora é lavoura.
Encerrada a primeira fase dos trabalhos de campo, não havia uma definição com
relação aos limites da TI Mato Preto. Sobretudo pesava a constatação tanto por parte
da equipe do GT como dos indígenas de que, tendo em vista o estado geral de
degradação da região e com vistas a garantir a sustentabilidade das práticas culturais tradicionais Guarani, a área deveria integrar unidades ambientais
relevantes e suficientes. No que se refere à proposta inicial da comunidade indígena,
a equipe do GT considerava a porção a oeste da RS 135 como a mais problemática.
Esta gleba correspondia a parte do Polígono C da Floresta Matto Preto, incluindo
algumas nascentes dos Arroio Ribeiro. Além de relativamente mais degradada,
enfrentava-se o problema de que, mantida esta porção, aumentava a parcela de área
atravessada pela RS 135, acarretando em riscos conhecidos de atropelamento de
indígenas. A densidade de ocupantes não-índios nos terrenos limítrofes à RS 135
acarretariam conflitos desnecessários, no caso da inclusão de seu trajeto no interior
da Terra Indígena, como era a vontade inicial da comunidade Guarani. Do ponto de
vista ambiental, o curso paralelo em relação à estrada do Arroio Paulo, se configura
num limite mais adequado, pois preserva os pinhais da sua margem esquerda e
constitui limite bem definido para os não indígenas. A inclusão da estrada ficaria
neste modelo restrita ao perímetro da ocupação histórica definido pelo Polygono B da
Floresta Matto Preto. Além de garantir a manutenção da área de ocupação histórica,
estes limites incluem um banhado de importância para o grupo indígena, situado a
oeste da referida rodovia, dentro dos 223ha reservados.
117
Pesava também garantir uma delimitação que não tencionasse as relações entre Guarani e Kaingang de Ventarra, até o momento marcadas pela cooperação
mútua, assim como garantir a sustentabilidade do grupo Guarani durante o período
de definição da situação fundiária da TI Mato Preto.
No âmbito destas ponderações, foi iniciado o tratamento dos dados ambientais e
realizada pesquisa em acervos, bibliotecas e sites na internet. A partir da análise dos
resultados, tomando por base a proposta de limites apresentada pelo Grupo Guarani,
visando atender o prescrito pela Portaria Nº 14 de 9.01.1996 e à luz da legislação
ambiental vigente, foi construída uma proposta ambiental de limites para a TI Mato
Preto 176. Os princípios norteadores desta proposta são os seguintes:
I � Priorizar o divisor de águas estabelecido pela estrada de ferro e pela estrada
secundária que liga a cidade de Getúlio Vargas ao distrito de Rio Toldo, como
elemento definidor nos limites da TI Mato Preto, garantindo-se que a TI fique nos
domínios de uma mesma bacia hidrográfica � Bacia do Rio Apuaê. Esta medida
vai ao encontro dos possíveis padrões ancestrais de ocupação Guarani na área, o
interflúvio Arroio Erumaré e Rio Toldo; e simultaneamente restringe as porções de
terra pertencentes à Bacia do Erechim à localização do antigo cemitério, uma vez
que as terras e águas desta bacia já vêm sendo reivindicadas pelos Kaingang para a
ampliação da TI Ventarra. Assim se contribui para minimizar as possibilidades de conflitos futuros entre os Kaingang de Ventarra e os Guarani do Mato Preto177. Uma delimitação com base no conceito de Bacia Hidrográfica também garante
uma unidade territorial melhor estruturada e facilita a inclusão da TI Mato Preto nas políticas de gestão ambiental vigentes no Estado do Rio Grande do Sul.
II - Proteger as nascentes e cabeceiras dos cursos d�água, garantindo a
recuperação dos mananciais hídricos locais e a integridade estrutural da área.
Tendo em vista que o modo de ocupação não-indígena no local produz danos em
termos químicos, físicos e biológicos às águas da região, faz-se necessário isolar
176 Este trabalho contou com a colaboração, críticas e sugestões de pesquisadores que atuam na questão indígena no sul do Brasil, merecendo destaque e agradecimentos especiais a colaboração do colega Rodrigo Venzon. 177 Cabe recordar que porções da TI Mato Preto recentemente caracterizaram sobreposição de interesses étnicos, conforme relatado na introdução deste relatório. Este dado deve ser considerado no estabelecimento dos limites da TI Mato Preto.
118
unidades estruturais (nascentes de um mesmo corpo d�água integrando fragmentos de micro-bacias íntegros), como garantia de que as águas da TI Mato
Preto não sofrerão impactos ambientais externos. Cabe ressaltar que nos domínios
da TI se encontram as nascentes dos arroios que abastecem a cidade de Getúlio
Vargas. A proteção destas nascentes pelos limites da TI será garantia de
suprimento de água suficiente e de qualidade aos habitantes da cidade,
configurando uma importante contrapartida indígena aos habitantes urbanos locais.
III � Contemplar pontos de confluência de arroios e rios. O limite norte-leste da
área foi desenhado em função de preservar pontos de confluência na bacia do Rio Toldo. Deste modo se garante estrutura ambiental para sustentar as atividades de pesca na TI. Cabe ressaltar que as investidas dos indígenas na região para pescar
foram todas frustradas: �a piazada sai com os caniços e não pega nem lambari�, observou
o pajé Ernesto Kuaray Pereira. Soma-se a este argumento que a confluência de rios, assim como os banhados, também foram referidos pelos indígenas como
locais de solos propícios para a arte-cerâmica. Estudos realizados na TI Cacique
Doble indicam que o grupo Guarani da TI Mato Preto é um dos únicos que domina a
tradição cerâmica Guarani em sua amplitude, desde a identificação e seleção dos
barros até os rituais associados à queima, durabilidade e valor cultural das peças.
Garantir a reprodução destas práticas dentro da TI deve ser um fator condicionante
na escolha dos limites.
IV - Preservar nos limites da TI os fragmentos florestais contínuos e relativamente maduros da área, caracterizados por estádios sucessionais médio a
avançado e pela presença de espécimes adultos de essências nativas importantes
em termos de biodiversidade, como o pinheiro-brasileiro (Araucária angustifólia), o
tarumã (Verbenoxylum riedelii), o ariticum (Rollinia emarginata), entre outras
espécies da flora ameaçada de extinção. Trata-se de incluir parcelas de florestas
inequianas, com indivíduos de diferentes idades, que possuam elementos genéticos e estruturais importantes em termos de sustentação, habitat e refugio para a fauna nativa, configurando sítios de caça e coleta para a população Guarani;
119
V - Incluir um número de fragmentos florestais significativo no sentido de favorecer
a variabilidade genética da flora e fauna local através do fluxo e dispersão entre manchas descontínuas e diversificar os de sítios de manejo Guarani. Estes
fragmentos devem ocupar posições variadas na TI, definidas por diferentes situações de relevo e solo. Esta estratégia garante um maior número habitats potenciais e refúgios para a fauna, ampliando a capacidade de recuperação e
reprodução dos próprios fragmentos e das populações locais. Trata-se de
estabelecer condições de manutenção de populações de espécies chamadas
�guarda-chuva� 178 (que tem exigências ambientais maiores do que as demais
espécies de um mesmo habitat179) em termos de estrutura ambiental, sobretudo que
integram as preferências alimentares do grupo indígena, como veados (Mazama
sp) e porcos-do-mato (Tayassu sp). A estratégia de contemplar um maior número de
fragmentos florestais também visa garantir a formação de núcleos florestais para fins energéticos, uma vez que o fogo perpassa praticamente todas as atividades
cotidianas do grupo indígena, da culinária aos rituais religiosos. No mesmo sentido,
garante-se a oferta das fibras que sustentam o artesanato indígena, duas
preocupações verbalizadas pelos Guarani.
VI � Contemplar as unidades de paisagem identificadas pelos indígenas como
importantes para a reprodução de suas práticas tradicionais: banhados, florestas
e rios.
VII � Definir uma área que ofereça condições ambientais que garantam às gerações futuras um espaço diversificado para compor outros tekoá180 na TI Mato Preto181. Neste sentido a área deve ter dimensões e complexidade suficientes para
comportar o aumento da população indígena sem ameaçar a sustentabilidade das práticas tradicionais da pesca, caça, coleta, artesanato, fogo, etc. e permitir
a expressão sócio-política Guarani, que prevê um espaçamento entre os tekoá182.
178 E.g. METZGER, Jean Paul Estratégias de conservação baseadas em múltiplas espécies guarda-chuva: uma análise crítica in: Ecossistemas Brasileiros: Manejo e Conservação, 2002; RODRIGUES, Efraim et. al. Conservação em paisagens fragmentadas in: CULLEN, Laury et al. (org.) Métodos de Estudo em Biologia da Conservação e Manejo da Vida Silvestre, Curitiba:UFPR/Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, 2003. 179 E.g. a anta (Tapirus terrestris), os felinos, como a onça (Panthera onca), entre outras. 180 Unidade político-territorial Guarani. 181 Como já dito anteriormente, a TI Mato Preto certamente preencherá uma lacuna na territorialidade Guarani no Alto Uruguai, onde faltam espaços autônomos para a reprodução desta sociedade. 182 Mello, 2001.
120
O crescimento da população indígena local, por nascimentos e imigração/ingresso de
indivíduos, deve ser pensado na hora de definir os limites da TI Mato Preto.
VIII � Tendo em vista que: os três polígonos da Floresta Matto Preto configuram
área de ocupação histórica do povo Guarani; esta área se manteve preservada
até o final da década de 1960, possuindo os fragmentos florestais mais maduros e
maior potencial relativo de recuperação ambiental; a totalidade do Polígono C183 não
estava contemplado nos limites propostos pelos indígenas: a proposta ambiental foi
desenhada prevendo uma área compensatória que, em termos estruturais, ofereça
maior sustentabilidade às práticas tradicionais Guarani e sem os riscos
representados pela RS 135.
IX � Enfim, visando garantir a integridade física e cultural do grupo durante o período
da definição fundiária da TI Mato Preto, sugere-se ainda a imediata regularização fundiária do Polígono B, cuja documentação já foi levantada e anexada ao processo de reconhecimento da TI Mato Preto. Um procedimento similar, em termos administrativos, foi adotado visando a regularização das TI�s Votouro e Guarani Votouro (concluídas), Serrinha e Nonoai (em curso), e se respalda no artigo 32 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul de 1989. Este artigo permite ao Governo Estadual a indenização dos títulos concedidos equivocadamente sobre Toldos Indígenas anteriormente reconhecidos, cabendo à União a indenização das benfeitorias de boa fé por ventura existentes. Trata-se de
regularizar a área de ocupação histórica do grupo evitando que o grupo perca suas
sementes tradicionais e possa melhorar a qualidade de vida durante este período,
considerando que os processos de demarcação e regularização de terras indígenas no Rio Grande do Sul têm demorado em torno de uma década, gerando sofrimento nas comunidades indígenas, em especial nas crianças e
idosos.
183 O Polígono C, compreendendo a micro-bacia do Arroio Ribeiro, à oeste da RS 135, corresponde à parcelas relativamente mais degradadas e com maior densidade relativa de ocupação. Além disto pesa a RS 135 como barreira que oferece risco à população indígena e interrompe o fluxo genético de populações da fauna terrestre, comprometendo estratégias de recuperação ambiental e repovoamento da TI Mato Preto.
121
Em resumo, tendo em vista a qualidade dos dados trazidos pela comuidade indígena
ao GT, os estudos ambientais possibilitaram a definição de um modelo ideal de delimitação, considerando os preceitos das ciências ambientais, os saberes
indígenas e o estabelecido pelo artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Este
modelo foi apresentado e brevemente argumentado na parte II deste Relatório (íten
Hidrografia), e visou equacionar a manutenção e reprodução das práticas tradicionais Guarani (especialmente as de maior exigência ambiental, como caça,
pesca, coleta, fogo e arte) com a manutenção das populações de fauna e flora que sustentam tais práticas. Esta estratégia, no contexto de paisagens fragmentadas do Alto Uruguai, como já explicitamos anteriormente, exige áreas contínuas de relativamente grandes dimensões, quando comparado às TI demarcadas para o povo Guarani no Litoral. .
No desenho dos limites ambientais pesou ainda garantir a sustentabilidade da TI Mato Preto às gerações futuras e minimizar fatores que pudessem catalizar o conflito inter-étnico local entre Kaingang da TI Ventarra e Guarani da TI Mato Preto. Igualmente foram consideradas a importância da área para a territorialidade
Guarani no Alto Uruguai, região em que apenas a TI Guabiroba se apresenta como
espaço autônomo desta sociedade.
Entretanto, ciente de que este modelo se distancia da realidade a curto prazo,
considerando a intensidade de ocupação não-indígena na área definida, e
procurando oferecer subsídios para que o processo de delimitação da TI Mato Preto
seja o mais próximo possível das consições idealizadas, alternativamente, aponto
uma simplificação possível, preservando a estrutura geral deste modelo. Cabe
referir que esta simplificação implica em perdas, que se traduzem em menor complexidade a nível de paisagem e, consequentemente, menor diversidade de habitats potenciais. Neste modelo simplificado, embora estejam preservadas as
principais florestas localizadas na área reivindicada, os índices de diversidade e abundância em termos de fauna, sobretudo da ictiofauna, ficam reduzidos,
comprometendo as atividades de pesca do grupo Guarani184.
184 Além da garantia de sustentabilidade à comunidade indígena, a proteção destas águas é fundamental para a manutenção da oferta e qualidade da água que abastece a população da cidade de Getulio Vargas, oriundas do Arroio Paulo.
122
Modelo de delimitação simplificado à TI Mato Preto
123
Comparação entre o modelo ambiental de delimitação ideal e o modelo simplificado
Na redução, ficam preservadas as microbacias que integravam a Reserva da
Floresta Matto Preto, incluindo um trecho do curso superior do Rio Toldo. De outra
sorte, a área de vida de mamíferos de grande porte exige dimensões contínuas
maiores. A pesca, do mesmo modo, fica comprometida em virtude da redução do
curso médio do Rio Toldo. Cabe ressaltar que a delimitação de uma TI tradicional
não deve apenas considerar aspectos dinâmicos da população indígena, mas
aspectos dinâmicos das populações animais e vegetais que o grupo humano
necessita para manter seus costumes e tradições. Os saberes Guarani confirmam
estas considerações, como vemos neste trecho da etnografia de Ladeira: �Os animais
também escolhem seus lugares (retã). Assim, os macacos (karaja), a paca (jaexa), a anta
(mbore) preferem os morros (yvyty) mas se alimentam na baixada. A cutia (acuti), o tatu
também preferem os morros (yvyty), durante o dia, �para ficarem sossegados�, mas, à noite,
descem suas trilhas para buscar alimento nas baixadas. De manhã voltam para os
morros�185.
Vejamos, na página seguinte, um cruzamento entre a proposição de limites
trazida pelos estudos ambientais e a área definida em 1929 para a Reserva da
Floresta Matto Preto, de ocupação histórica Guarani:
185 LADEIRA, 2001: 192
124
Croqui do Modelo de Delimitação Ambiental Simplificado à TI Mato Preto e sua
relação com a Planta da Reserva da Floresta Matto Preto (1929)186
186 Carta base: Carta da Diretoria de Serviço Geográfico do Ministério do Exército (EREXIM, folha SG-22-Y-D-IV, escala 1:100.000
125
VII - Considerações finais e recomendações gerais
�Lidar com a definição de limites das áreas Guarani é, ao mesmo tempo angustiante e instigante. As delimitações, de alguma forma, sempre tem como condicionante as ocupações do entorno. Isso implica - além da exigüidade das áreas que confinam as comunidades Guarani e da conseqüente escassez de recursos naturais que afetam a sua qualidade de vida - no comprometimento das suas categorias geográficas e ambientais, na medida em que a configuração de seus espaços/limites passa a ser definida por critérios alheios e pré-estabelecidos por outros interesses e horizontes�187.
Com este Relatório apresentamos os dados que situam o espaço desde
pontos de vista ambientais e de ocupação econômica. Foram considerados aspectos
etnográficos e etnoambientais, a partir da perspectiva Guarani, incluindo os recursos
naturais destacados pelo grupo indígena, sua localização, significado simbólico, valor
cultural e usos potenciais. Também foram tratados aspectos da ocupação e manejo
de não-índios na área em questão.
Os estudos ambientais identificaram a ocupação tradicional Guarani nos
ambientes da Floresta Matto Preto. Foi igalmente levantado que o manejo indígena
na área definida em 1929 como Reserva Florestal foi intenso até o final da década de
1960. Os estudos de campo permitiram identificar as florestas relativamente
conservadas da área reivindicada e constatar sua sobreposição com a antiga
Floresta Matto Preto. Estes estudos culminaram com o esforço de traçar proposições
de limites para a TI Mato Preto, visando contribuir ao processo de delimitação da TI.
Os limites propostos resultam do diálogo entre os conhecimentos ambientais
acadêmicos e os saberes tradicionais dos Guarani e procuram respeitar a proposta
de delimitação sugerida inicialmente pelo Grupo Guarani ao GT, complementando-a
com as áreas �imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários
ao seu bem estar� e aquelas �necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições�188.
O conjunto dos estudos ambientais permite reconhecer que os Guarani têm
um papel importante na manutenção da biodiversidade nos domínios do Bioma Mata
Atlântica, estabelecendo vias de fluxo e seleção de espécies da fauna e flora nativa.
187 LADEIRA, 2001:182 188 Portaria Nº 14 de 09.01.1996.
126
No mesmo sentido pudemos constatar que as instituições políticas e religiosas
Guarani no Mato Preto definem e estabelecem regras e prescrições que embasam o
manejo indígena de fauna e flora, apontando para o elevado potencial de
sustentabilidade ambiental destas atividades.
De outra sorte, observamos que no contexto de elevada fragmentação da paisagem
do Alto Uruguai, as terras Guarani devem ter dimensões suficientes para garantir a
sustentabilidade das dinâmicas ecológicas das populações de fauna, sobretudo aves
e mamíferos, com maiores exigências em termos de espaço e complexidade de
habitat.
Isto posto, na medida em que os ambientes da TI Mato Preto forem restituídos à população Guarani, pode-se prever um processo ambiental cuja direção aponta para a gradual recuperação dos ambientes e ecossistemas locais, tendo em vista os modos Guarani de uso do solo. Visando facilitar e acelerar este processo, teço, a seguir algumas recomentações gerais. 1. Espécies da flora e fauna extintas localmente, como é o caso da anta (Tapirus terrestris � mbore w�i) devem ser contempladas em projetos e programas de reintrodução de fauna nos locais designados pelos Guarani como sendo seu habitat. Estes programas devem incluir o incremento ou mesmo o estabelecimento de corredores na paisagem, através do reflorestamento e recomposição de florestas de galeria e de estratégias voltadas ao intercâmbio entre a fauna da TI Ventarra e a TI Mato Preto, cujo interfluxo é prejudicado pela RS 135. Considerando a paisagem fragmentada do Alto Uruguai e os empreendimentos hidrelétricos em curso, sugiro que considerem a possibilidade de políticas de translocação da fauna das áreas desmatadas e alagadas por estes empreendimentos para TI�s e UC�s regionais. Atualmente, a ausência de políticas desta natureza fazem com que, por exemplo, uma jaguatirica encontrada na estrada seja levada a um zoológico e não para uma área em que
127
o indivíduo possa ser integrado em uma população natural. A comunidade Guarani expressou disponibilidade e demonstrou capacidade para conduzir processos de readaptação de fauna silvestre aos ambientes da TI Mato Preto. 2. Para a recuperação e ou reflorestamento das florestas locais, os projetos devem privilegiar essências importantes no contexto do repertorio cultural Guarani. Nas páginas seguintes trago uma tabela com algumas destas essências, que foram consideradas no contexto do Projeto Madeira (1988) com alto potencial de uso em programas de reflorestamento. Este projeto é da Secretaria do Estado do Rio Grande do Sul, e os estudos que o fundamentam foram realizados pelos botânicos Raulino Reitz, Roberto Klein e Ademir Reis, na década de 1980. Naquele contexto, o Projeto Madeira visava subsidiar políticas de grande envergadura no que se refere à recuperação das florestas no Estado. Considero os estudos ambientais realizados no contexto do GT Mato Preto e o presente Relatório como um espaço privilegiado para retomar a pertinência do Projeto Madeira que, quase 20 anos após sua elaboração, se mantém atual e cada vez mais urgente.
128
Lista de espécies identificadas na região com potencial para reflorestamentos
Termo popular Ocorrência Termo botânico Família botânica
Termo Guarani
Indicação de manejo
Açoita-cavalo MB/MP Luehea divaricata Tiliaceae xongy Reflorestamento de mata de galeria
Aguaí Mata Atlântica � encontra nas T.I. Guarita e Nonoai.
Chrysophyllum viride
Sapotaceae aguaí O fruto é alimento apreciado de mamíferos e aves. Manejada pelos Guarani em todo o Bioma Mata Atlântica. Planta cerimonial e mitológica.
Alecrim MB Holocalix balansae
Leguminosae ywyrapepé
Adensamento de capões de mata, preferencial umbrófila.
Angico-vermelho
MB/MP Parapiptadenia rigida
Leguminosae kurupa-pintá
Heliófita, pioneira, indicada para incremento de bordas e capões, reflorestamento de mata de galeria.
Araticum MP/MB Rollinia rugulosa Anonaceae raticú Perenefoliada, indicada para reflorestamento e adensamento de mata de galeria, campo aberto e capoeirões. Crescimento rápido; incrementa abrigos de fauna.
Araticum-do-mato
MP/MB Rollinia silvatica Anonaceae raticú Perenefoliada, preferencial heliófita , indicada para reflorestamento de capoeirões, matas devastadas e campo aberto, crescimento rápido. Tem um dos maiores frutos do RS (6cm diam.), comestível, incrementa abrigos de fauna.
Araucária, pinheiro
MP Araucaria angustifolia
Araucariaceae curi Heliófita, pioneira, fruto comestível e apreciado, energético, recomposição de abrigos de fauna, indicada para enriquecimento de capões, capoeirões e reflorestamento em campo aberto.
Batinga MB Eugenia rostrifolia
Myrtaceae patingá Xerófita, lenha de consumo lento
Bracatinga MP Mimosa scabrella Leguminosae ywyraiatá
Típica dos subosques de pinhais, heliófita, crescimento rápido, indicada para reflorestamento em agrupamentos puros e adensamento de capões. Energética, indicada para lenha.
Termo popular Ocorrência Termo botânico Família botânica
Termo Guarani
Indicação de manejo
Cabriúva MB Myrocarpus frondosus
Leguminosae ywyrapadjé
Penetra nos subosques de pinhais formando adensamentos junto a canelas. Heliofita, pioneira da Mata do Alto Uruguai, indicada para reflorestamento a campo aberto e adensamento de bordas. Melífera, medicinal, aromática.
Camboatá MP/MB Matayba elaeagnoides
Sapindaceae yywatá�y
Seletiva higrófita, indicada para eflorestamento de capoeiras, capoeirões e florestas devastadas em associação à erva-mate.
Canela-guaicá MP/MB Ocotea puberula Lauraceae adjw�y Heliófita, pioneira, crescimento rápido, com ampla possibilidade de reflorestamento em campo aberto.
Canela-imbuia MP/MB Nectandra megapotamica
Lauraceae adjw�y Representante em matas maduras, sucede a canela-guaicá. Indicada para adensamento florestal e de capoeirões.
Canjerana MP/MB Cabrela canjerana Meliaceae ywyraeté pintá
Pioneira e heliófita, melífera, muito apropriada a reflorestamento em campo aberto.
Caxeta MB Didymopanax morototonii
Araliaceae - Heliofita ou de luz difusa, de crescimento rápido, indicada para adensamento de capões e áreas desmatadas.
Cedro MP/MB Cedrela fissilis Meliaceae ywyrÿ Ótima madeira de crescimento rápido, sementes férteis, alto potencial de reflorestamento combinado com louro e grápia. Medicinal e melífera.
Cerejeira-do-mato
MP/MB Eugenia involucrata
Myrtaceae ceredjá Junto à jaboticabeira, goiabeira e pitangueira indicada para constituição de refúgios para fauna e áreas de coleta.
Erva-mate MP Ilex paraguariensis
Aquifoliaceae ka�a Normalmente associada a subosques dos pinhais, junto à canelas, melífera, esciófita e seletiva higrófita. Indicada no adensamento de capões.
129
130
Termo popular Ocorrência Termo botânico Família botânica
Termo Guarani
Indicação de manejo
Grápia MB Apuleia leiocarpa
Leguminosae ywyraperé
Heliofita, pioneira, vigora em matas semi-devastadas e nos capoeirões. Coloniza facilmente capoeiras e roças abandonadas
Guajuvira MP/MB Patagonula americana
Boraginaceae guadjawí Seletiva higrófita, heliofita e pioneira, indicada a reflorestamento de áreas de cultivo, campo aberto e adensamento de capoeirões. Uso medicinal.
Ingá-feijão MB Inga marginata Leguminosae ingá Espécie muito apreciada pela fauna e pelo homem. Altamente melífera, seletiva higrófita, indicada para recuperação de matas de galeria.
Jerivá, coqueiro MP/MB Syagrus romanzoffianum
Arecaceae pindó Espécie de valor cultural para o povo Guarani, fruto apreciado, indicada para enriquecimento florestal.
Louro MP/MB Cordia trichotoma
Boraginaceae Heliófita, pioneira, promissora para fins de reflorestamento e adensamento devido ao rápido crescimento inicial. Madeira de lei empregada em esculturas e peças de valor.
Maria-preta MB/MP Diatenopteryx sorbifolia
Sapindaceae uráporã Seletiva higrófita, heliófita, tolerante à luz difusa, indicada para adensamento e reflorestamento de ao longo de cursos d�água.
Pau-leiteiro MP/MB Sapium glandulatum
Euphorbiaceae curupí
Pessegueiro-bravo
MP/MB Prunus sellowii Rosaceae ywaró Heliofita ou de luz difusa, comum nos subosques de pinhais, desenvolve bem e diferentes condições, crescimento rápido, indicada para reflorestamento próximo a cursos d�água, atrai a fauna que é sua dispersora (zoocórica)
Timbaúva MB Enterolobium contortisiliquum
Leguminosae timbó-iba Heliófita, pioneira, apropriada ao reflorestamento em campo aberto, crescimento rápido, fruto rico em saponina (usado popularmente como sabão)
131
Literatura consultada e referida
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137
VII � Outros: IBAMA/BAESA/MME/MMA/AGU/MPF Termo de Compromisso � Processo de Licenciamento
Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Barra Grande, Brasília, 15 de setembro de 2004.
ANEXOS:
Anexo 1: Planta da Reserva Floresta Matto Preto (1929) Detalhe do Polygono B, reservado aos �Índios Guarany� Detalhe do Polygono A Anexo 2: Notícia do jornal de circulação regional de Getúlio Vargas �A Folha�, referindo o inicio do acampamento Guarani no Mato Preto Anexo 3: Carta da comunidade indígena às autoridades dos juruá, escrita durante os trabalhos do GT
Apêndice 1: Economia e produção rural na região de estudo a partir de dados sobre o município de Getúlio Vargas
Município de Getúlio Vargas
1. Área: 286,56 km2
2. População
População residente (nº e %) Residentes em área urbana 13.644 (82,7%) Residentes em área rural 2.856 (17,3%) Total 16.509 (100%)
3. Economia
Base econômica: setor primário
Extração Vegetal e Silvicultura
Produto Quantidade produzida Valor da produção (R$) a) Produtos alimentícios: Erva-mate cancheada 680 toneladas 116.000,00 Pinhão 8 toneladas 8.000,00 b) Madeiras: Carvão vegetal 93 toneladas 16.000,00 Lenha 37.630 metros cúbicos 452.000,00 Tora 520 metros cúbicos 39.000,00 Pinheiro Brasileiro nativo (tora) 102 metros cúbicos (não disponível) c) Produtos da silvicultura: Carvão vegetal 37 toneladas 6.000,00 Lenha 12.170 metros cúbicos 183.000,00 Tora 1.105 metros cúbicos 72.000,00
SUBTOTAL1 668 toneladas de
produtos alimentícios 124.000,00
SUBTOTAL2 113 toneladas de carvão vegetal
122.000,00
SUBTOTAL3 17.672 metros cúbicos de madeira
646.000,00
TOTAL R$ 892.000,00
Lavoura Temporária (fonte: IBGE, 2002) Cultivar Quantidade produzida (toneladas) Área plantada (hectares)
Alho 6 2 Amendoim 5 5 Arroz em casca 30 20 Aveia em grão 135 100 Batata-doce 200 20 Batata-inglesa 300 25 Cana-de-açúcar 1.500 30 Cebola 45 5 Cevada 4.350 2.500 Feijão 315 300 Fumo 8 5 Mandioca 1.400 70 Melancia 30 2 Melão 9 3 Milho 24.120 6.000 Soja 16.740 9.300 Tomate 120 6 Trigo 3.705 1.900
Principais cultivares de lavouras temporárias e sua importância em termos de percentual em
relação à área total de lavouras temporárias em Getúlio Vargas - Soja: 45.83% da área plantada total; Milho: 29.57%; Cevada: 12.32%; Trigo: 9.36%.
Lavoura Permanente (fonte: IBGE; 2002) Cultivar Quantidade produzida Área plantada (hectares)
Caqui 27.000 frutos 2 Erva-mate (folha verde) 2.961 toneladas 630 Figo 24.000 frutos 4 Laranja 60.000 frutos 6 Limão 18.000 frutos 3 Pêra 14.000 frutos 2 Pêssego 78.000 frutos 10 Uva 100 toneladas 10
O cultivo de erva-mate ocupa 94.45% da área de lavouras permanentes do município. A produção dos demais 7 cultivares que integram as lavouras permanentes ocupa apenas
5.55% da área total cultivada.
Pecuária (fonte: IBGE; 2002) Animal/produto Produção
Bovinos 8.650 cabeças Suínos 14.260 cabeças Eqüinos 85 cabeças Muares 7 cabeças Coelhos 210 cabeças Ovinos 350 cabeças Galinhas 80.200 cabeças Galos, frangas, frangos e pintos 88.500 cabeças Caprinos 95 cabeças Vacas ordenhadas 2.800 cabeças Leite de vaca 6.720.000 litros Ovinos tosquiados 55 cabeças Lã 90 kg Ovos 1.083.000 dúzias Mel de abelhas 10.600 kg
A produção pecuária investe prioritariamente em galináceos, suínos e bovinos, sendo a produção de leite e ovos elevada.
Apêndice 2: Narrativa do Mito dos Heróis Kuaray e Jaxy pelos Guarani do Mato Preto
FITA 06 - GT Terra Indígena Guarani Mato Preto � FITA 06
07/08/2004 � Narrativa do Mito dos Gêmeos Kuaraÿ e Jaxy (O Sol e a Lua). Participam como narradores Lurdes Martins (51), Seberiano Moreira (24), Darci da Silva (35) e Joel Pereira (27). O mito é herança do Velho Eduardo Karai Guaçú � entrevista realizada em conjunto por: Flávia Cristina de Mello (antropóloga) e Ana Elisa de Castro Freitas (ambientalista) Transcrição: Ana Elisa de Castro Freitas
Flávia � Então, Seberiano, aquela história bonita que o seu Eduardo contou, você pode
contar pra gente agora?
Seberiano - Aquela história era assim: A lua e o sol são os dois gêmeos, os dois gêmeos
do mesmo jeito como existem as pessoas agora, dois gêmeos. Então é real essa história
porque, desde que o sol e a lua existiram, eles são os dois irmãozinhos. Quando o sol e a lua
existiram, tinha a mãe deles, só que a mãe e o pai deles...
(Seberiano conversa com Lurdes em Guarani, buscando o fio narrativo)
Flávia: Fala pra nós o nome deles em Guarani...
Seberiano: Jaxÿ, a lua e Kuaraÿ, o sol. Jaxÿ�ty é a mãe da lua, a mãe deles, dos dois. Teve
um tempo, quando eles tavam aqui na terra ainda, há muito tempo, a mãe e o pai do sol e da
lua se separaram. O pai do sol foi pra cima, onde eles tão agora, e eles ficaram, a mãe e
eles.
Lurdes: a mãe deles ficou ainda, depois que ia conseguir onde é que vai o pai.
Seberiano: E pra seguir lá, pra chegar onde é que ele tava, o kaifun deles, iam andando no mundo a fora, até chegar no nível do mar, onde a gente nem conhece. Cada estradinha tinha, cada caminhozinho. E naquela época os bichinhos, esses bichinhos do mato, todos
eles tinham o pai deles, como o Deus deles. Assim como a gente tem o nosso Deus, os
bichinhos naquela época também tinham o Deus deles. Então, naquela época, diz que eles
viviam como a gente, como estamos aqui. Os bichinhos conversavam entre eles, como a
gente. E diz que tinha uma estrada, umas estradinhas que eram ocupadas, que passava
muito movimento, e tinha umas que não ocupavam muito. Então diz que ele disse pros dois
piazinhos que ainda estavam dentro da...da...
Lurdes � ... da barriga da mãe, os dois ainda. E diz que eles conversava, pedia alguma
coisinha. Se tinha no carreirinho uma flor, diz que eles pedia, dentro da barriga da mãe. E a
mãe dele diz que tinha uma peneira grande assim. Diz que ela segurava e andava com ela.
Quando eles pediam, ela pegava florzinha, pra brincá, né. Então ela ia seguindo assim, só
andava sozinha, só ela e os filhilhos...
Seberiano - ...o sol e a lua. E eles foram seguindo num carreirinho, assim, e diz que os dois
piazinhos diziam que ela não seguisse os carreirinhos onde tinha mais movimento. Tinha que
seguir no carreirinho com menos movimento, que levava lá onde o pai deles tava. E cada
florzinha que enxergavam na estrada eles pediam: �Ó, mãe, trás aquela flor bem bonita pra
nós�. E diz que a mãe deles dava, juntava naquela peneirinha e levava. E assim iam indo. E
daí diz que ela pedia: �Por onde é que o teu pai foi? Qual é o carreiro?� E eles diziam pra ela,
explicavam: �Ó, foi por aqui�.
Flávia � E como será que eles sabiam?
Seberiano e Lurdes � De Deus mesmo, né.
Flávia � Então eles já eram filhos de Deus, já nasciam com a sabedoria?
Seberiano e Lurdes � É, isso mesmo.
Seberiano � E então diz que eles iam indo, até que chegaram numa encruzulhada.
(Seberiano fala com Lurdes em Guarani)
Seberiano � Aí diz que eles pediram outra florzinha. Mas diz que nessa florzinha tinha
aquelas mamangavazinha dessas pequenas, e picou na mão da mãe deles.
Lurdes � Aí que diz que ela ficou brava: �Vocês não tão se encaminhando ainda e vocês
pediram flor pra mim!� E diz que ela batia na barriga dela, assim...
Seberiano - ...batia na barriga dela mesma assim, de braba.
Lurdes - ...e diz que ela andava de novo. E diz que outra vez ela pediu de novo [pra que eles
lhe indicassem o caminho], mas diz que eles não falaram mais.
Seberiano � Porque ela ficou braba pra eles, pros dois, mas diz que eles também ficaram
irritados! Então diz que ela ia de novo até uma altura e pedia: �Por onde é que o teu pai foi?�
Mas diz que eles não falaram mais nada. Diziam: �Acho que é por aqui, por ali�. Aí diz que ela
seguiu uma estrada que era ocupada e chegou onde os bichos, os tigres viviam.
Lurdes � E naquele tempo diz que andavam que nem nós, os bichinhos.
Ana � Como assim andavam que nem nós? Como é andar que nem nós?
Lurdes � eles andavam, conversavam que nem nós, aquele tempo ainda. Isso que meu pai
falecido falou, que era assim, contava pra nós.
Seberiano � Mas aí diz que ela seguiu um caminho que não levou na casa do pai deles, onde
ele tava, onde ele foi, onde é que ele passou do nível do mar. E diz que ela seguiu uma
estrada e chegou numa casa e diz que deu com uma onça bem velhinha, mas bem velhinha
mesmo.
Flávia � E ela sabia que era uma onça?
Seberiano � Ela sabia! E diz que ela chegou lá e pediu. E diz que essa onça disse: �Olha, eu
não sei por onde é que você está querendo ir. E olhe, tu chegou aqui no lugar errado� � disse
pra essa mãe da lua e do sol. E disse �Olha, os meus netos são muito violentos � como são
agora os tigre e onças � e eles vão acabar com você, se eles te enxergarem aqui!�. Diz que
naquele momento os tigres tinham ido fazer uma caçada, não tavam ali, e ali tava só essa
onça velha. E diz que ela disse: �Olha, eu vou te fechar dentro de um panelão grande.� E diz
que fechou ela dentro dum panelão grande, pra proteger dos tigres, pra eles não acabar
com ela. Mas diz que um tigre chegou da caçada primeiro e disse assim pra essa velha:
�Alguma coisa tu deve ter por aqui, pra gente fazer um lanche, um almoço.� Mas ela disse:
�Eu não tenho nada! Eu sou velhinha, como é que eu vou ter coisa aqui! Vocês que saíram lá,
não trouxeram?� Mas diz que ele disse: �Mas você deve ter alguma coisa sim, nós sentimos,
nós tamo farejando alguma coisa�
Flávia � hum, sentiu pelo cheiro...
Seberiano � é, como são agora os tigres. Aí diz que ela: �Não, não tenho! Não tenho! Não
tenho!� � começou a falar a velhinha. Aí chegaram mais tigres, da caçada, e não
conseguiram mais respeitar a ordem dessa velhinha. E diz que eles viraram aquele panelão e
acharam ela lá dentro. Daí diz que pegaram e mataram, rasgaram ela toda, deixaram só
aquelas duas criancinhas que tavam dentro da barriga dela. Diz que um dos tigres disse:
�Olha aqui, ó!� � pegou aquelas duas crianças e deu pra velha. �Tá, isso aqui é pra você, que
sobrou!� Diz que essa velha pegou as criancinhas e disse: �Ta, eu vou fazer um assadinho
pra mim comer.�
Lurdes � Diz que ela ponhava no fogo, e o fogo apagava.
Seberiano � Aí diz que ela pensou: �Não, vou socar elas no pilão�. Diz que colocou elas
dentro do pilão, mas diz que escapava quando ela dava, assim. Escapava dum lado, do
outro. Diz que ela pensou: �Eu vou criar, então�. Daí diz que ela pegou e ergueu debaixo do
fogo um - como é que eu vou falar � nimbé...
Lurdes � é, nimbé...
Seberiano � Nimbé era feito de taquara, assim. E ela ponhou os dois em cima do fogo,
assim, pra secá, pra esquentá. Daí diz que nos primeiros dias o sol e a lua viveram ali, e essa
velha tava cuidando deles. Foi dali uns dois ou três dias diz que eles já começaram a
caminhar.
Flávia � Mas secou como, pois num nimbé?
Seberiano � É, pôs num nimbé, em cima do fogo, assim...
Ana � Jirau...
Seberiano � É, jirau, pra proteger, assim, do frio.
Lurdes � É, proteger do frio. Daí diz que eles começaram a caminhá. Primeiro diz que
caminhou o Kuaraÿ, e despois diz que o Jaxy só engatinhava. E assim vai indo, se criando...
Seberiano � É, o sol diz que no primeiro dia já andou, né. Mas a lua não, a lua só andava
gatinhando. Essa história é longa...vai uma tarde inteira
Flávia � E como é que era, eram dois irmãozinhos, eram dois meninos ou dois meninas...
Seberiano e Lurdes � Eram dois meninos.
(Lurdes e Seberiano param para conversar. Darci retoma o mito)
Darci � E naquele tempo era só bichos, só eles dois...
Joel � Era o mundo dos bichos...
Seberiano - ...o mundo dos bichos...
Joel - ...existia só eles, como se fossem assim, uma pessoa que nem nós.
Flávia � E o pai deles, quando vinha pra cá, era que nem gente ou era que nem bicho,
quando vinha pra cá? Porque primeiro ele viveu aqui, né, o que era o pai do Kuaraÿ...
Lurdes � Primeiro ele viveu aqui...
Joel, Darci e Seberiano � Que nem gente!
Joel � É, o pai do Kuaraÿ era que nem nós, né.
Darci � Quando eles vêm, o pai e a mãe do Kuaraÿ, eles são gente, que nem nós, mas só
que esse gente, como é que diz...
Seberiano � Aí diz que no primeiro dia que eles tavam caminhando, primeiro só o sol
caminhou, a lua diz que gatinhava. Aí, já com um poder - como o sol tem até agora � o poder
já de pensar: �Puxa! Vou pensar de como é que eu vou sustentar o meu irmãozinho...� Aí
diz que ele pegava e saía nos mato, assim, e trazia passarinho pequenininho, mel pra ele...
Lurdes � Pra mode ele criá o irmãozinho dele.
Seberiano � Mas tinha só uma coisa que essa tigra velha dizia pra eles, é que tinha um paxí,
como é... (�Pá xí jaa im pã!� � dirigindo-se aos outros narradores).
Darci � ...um banhado grande..
Seberiano � ...um banhadão, grande...
Lurdes - ...um banhado grande...
Seberiano � ...Daí diz que ela pediu pra eles: �Não vão pra lá porque é proibido�. E diz que o
sol respeitava como se fosse uma mãe dele, né, essa tia. Então diz que eles respeitavam,
não iam lá. Mas daí eles foram crescendo, crescendo. E chegou uma certa idade � como até
hoje, né, chega uma certa idade que a gente pensa: �Puxa vida! Como é que a mãe não
deixa a gente ir lá? Vamo lá vê o que é que tem!� � Diz que foi bem assim. Diz que ele disse
� porque a lua já tava caminhando � diz que o sol disse pra lua: �Vamo lá vê o que é que tem
que a nona diz que não é pra gente ir!�.
Lurdes � Diz que chamavam de mãe.
Seberiano � É, chamavam de mãe...
Flávia �...eles não sabiam...
Seberiano - ...é, eles não sabiam. Daí diz que eles seguiram lá, foram olhar naquele
banhadão. E lá tinha parakau, que é papagaio. E eles atiravam nele com a flechinha,
assim. Mas diz que esse paracau se negava e dava risada.
(Seberiano conversa com Lurdes)
Seberiano � E diz que eles atiravam de novo nesse paracau, e foi quando ele disse pra eles:
�Olha, vocês nem sabem, mas vocês tão sustentando é aquele que acabou com a mãe de
vocês!� A lua é que tinha atirado, e diz que ela gritou pro sol: �Olha! Vem aqui um pouco e
escute o que ele ta falando pra mim!� Diz que ele atirou de novo a flecha e o paracauzinho se
negou de novo e disse de novo a mesma palavra. Então o sol disse: �Puxa, a gente tinha a
mãe e foi eles que acabaram com a nossa mãe!� Então os dois começaram a chorar, chorar,
encheram tudo os olhos de choro. E diz que eles tinham matado um monte de passarinho,
jacu...
Lurdes � Pra levá pra mãe...
Seberiano � Pra sustentá aquela velha. Daí diz que ele pegou aqueles jacu, fez tudo de novo,
largou tudo eles de novo, fez eles voar. E levaram só um passarinho bem magrinho. Aí
chegaram lá e a tigra disse: �Ué, o que é que deu que vocês não trouxeram?� �Não, hoje nós
não matamos nada� � eles disseram pra ela.
Lurdes � Daí diz que ela perguntou pra eles: �O que é que foi nos teus olhos, tudo inchado?�
E eles contaram: �Mordeu a vespa�. Eles tavam mentindo, não quis contá.
Darci � E diz que eles fizeram vespa lá, pra não desconfiá.
Seberiano � Então ela pedia, olhando os olhos deles: �O que é que deu?� �Não, a vespa que
mordeu nós.� Isso pra ela não desconfiar que eles tinham descobrido que os filhos dela é que
tinham acabado com a mãe deles. �Não, a vespa que mordeu nós�. E ela disse: �Eu vou
mandá os teus tios pra acabar com aquelas vespa que mordeu vocês�. E com o poder que ele já tinha, o sol tinha feito umas vespinhas na beirada do banhado. Daí os tigres que
comeram a mãe deles foram lá, matá. E diz que eles ficaram uns dias sem ir pro mato. E diz
que nesses dias o sol pensava uma estratégia pra acabá com aqueles bicho que acabou com
a mãe deles. Ele pensava, pensava.
(o grupo conversa)
Darci � Daí diz que o Kuaraÿ, o sol, chupou prá dá a vida de novo pros passarinhos que eles
tinham matado.
Seberiano � pra dá a vida de novo. Quando eles souberam a notícia que aqueles bichos
tinham acabado com a mãe deles, então ele resolveu dá a vida de novo pra aqueles.
Darci � E diz que os pequeninhos, assim, ele só assoprava assim e os passarinhos viviam de
novo, iam embora.
Seberiano � E diz que o jacu já demorou um pouquinho, demorou um tempo. Diz que o jacu
não voltava logo. Então ele deu uma chupadinha aqui...
Darci - ...debaixo da goela. Tem um vermelho aqui, ele, né. E daí diz que o jacu viveu de
novo. Daí diz que pararam, o sol e a lua, e pensaram: �Como é que nós vamo acaba com
eles?� E dia que eles já tavam grande, os dois...
Seberiano � ...eles tinham uns quatorze anos, já, tavam grande. E diz que aí eles pensaram
uma estratégia de como eles iam terminar com aqueles que acabaram com a mãe deles. Diz
que eles fizeram uma pequena armadilha, mondé�í, mundéu como dizem. E na visão dos tigres, como eles enxergavam, diz que era bem pequenininha o mundéuzinho.
Darci � Diz que eles fizeram com um sabuguinho de milho assim, diz que brincavam,
assim....
Seberiano - ...diz que eles tavam brincando! Daí diz que chegou um tigre bem menor e pediu
pra eles, de que é que eles tavam brincando. �Nós tamo brincando de armadilha pra pega
ratinho.� E o tigre disse pra eles: �Capaz que ratinho vai cair ali!� E eles diziam: �Então entra
ali!� E diz que ele entrava ali e o mundéu caía em cima dele e matava, porque era pesado! E
era só um sabuguinho que ele enxergava! E assim foi, que chegava tigre mais grande e dizia:
�Capaz que vai cair uma paca ali�. E eles diziam: �Então entre ali�. E ele entrava e matava.
Lurdes � Assim eles foram acabando, um por um.
Seberiano � Eles tavam vingando a mãe deles. Diz que no final o sol já tava ficando cansado
de ter que matar aqueles tigres tudo. Foi quando ele disse pra lua: �Agora vá você!� E como a
lua era uma criança ainda, enquanto o sol era mais experiente, então a lua já era como uma
criança boba, boba não mas...
Darci � ...uma criança que parece que não entende! E o sol já entendia porque ele já
caminhava logo, então o sol é mais sabido do que a lua. A lua já ficou gatinhando, e a certa
idade já gantinhou.
Seberiano � E o sol mandou a lua pra pegar o último tigre, só que ele era grandão! Aí diz que
esse tigre vinha vindo da caçada, era o último que restava. E ele chegou onde eles tavam e
perguntou: �O que é que vocês tão fazendo aí?� E a lua disse: �É pra pegar tigre.� Ele não
podia dizer tigre, mas disse!
Darci � Ele não podia ter dito �tigre�, mas como era criança, ele falou assim...
Seberiano � E como ele disse que era tigre, ele desconfiou e foi direto contar pra aquela
senhora que tava lá. E chegando ele contou: �Olha, vó! Eles tão fazendo armadilha pra pegar
tigre!� E o sol ficou brabo pro Jaxy: �Você não era pra fazer isso! Não era pra dizer que era
pra pegar tigre!� E se irritou com ele. Daí a lua disse: �Você sabe que eu não sei falar, sabe
que eu não tinha como falar!� Daí que eles brigaram entre os dois e desmancharam aquele
mundéu. E ficaram pensando de novo como que eles iam matar os tigres.
Darci � Daí diz que eles continuaram pensando como que iam matar aqueles tigres, e tinha
só um! Daí diz que eles pensaram...
Seberiano - ...aí diz que o sol pensou e disse: �Hoje vou sair.� E a lua ficou ali. E ele saiu e foi fazer as frutas, as plantas que hoje estão aí, foi gerar da terra. Daí ele fez as guavirovas, do outro lado dum rio. E aquele tigre que eles iam matar, era uma fêmea, e ela já tinha outro tigre na barriga. Daí o sol foi lá, fez o rio e fez a fruta.
Lurdes � E quando ele veio de lá, diz que o Kuaraÿ trouxe umas três ou quatro frutas pra
mostrar pra ela, porque ela tava grávida. E diz que ela não dormiu nada pra querer comer da
fruta...
Seberiano � ...e quando o sol deu as frutinhas pra ela, diz que ela disse: �De onde é que você
trouxe esse?� E ele respondeu: �Lá do outro lado do rio!� E como ela tava grávida, tava com
desejo, disse pra ele: �Vamos lá buscar!� E o sol dizia: �Não, espere amanhecer! Amanhã de
manhã cedo vamos lá buscar!� E ela não dormiu a noite toda de tanta vontade que ela tava
de comer aquela fruta. E nessa mesma noite diz que ele tava pensando uma estratégia de
como pegar, derrubar, matar aquele tigre. E naquele rio, eles fizeram uma pinguela de pau
pra atravessar o rio. E o sol disse pra lua: �Olha, amanhã tu fica de atrás�
Darci � E diz que a lua passou no outro lado, e o sol ficou ali esperando. E quando veio a
tigre ele disse que ia passar, Mas o sol disse: �Não, espere um pouco! Deixe nós passar no
outro lado.� E diz que o sol passou no outro lado. E ele disse pra lua: �Eu vou fazer um gesto
com os meus olhos, assim, e daí é pra derrubar�. Eles já tinham a estratégia. E a lua passou
do outro lado, e o sol ficou do outro. E mandaram os tigres, a velha e aquela grávida. E eles
tavam passando na pinguela, tavam quase no meio, e diz que naquele rio tinha, como é...
(fala com os outros em Guarani)
Flávia � piranha...
Darci � decerto piranha, pra acabar com aqueles ali...
Ana � É piranha mesmo? É peixe?
Darci � não, é um tipo daqueles...
Lurdes � a gente chama lobo...brabo assim...
Ana � Lontra?
Darci e Lurdes � Lontra! (ou ariranha)
Darci � E eles botaram ali pra acabar com eles no rio.
LADO 2
Seberiano � E foram. Mas como a lua não era assim, muito esperto, diz que o sol olhou pra
ele e decerto ele pensou: �É agora então!� E decerto ele pegou no pau e virou antes do
tempo, antes do tempo que eles marcaram, que tinha que ta bem no meio... E diz que aquela
tigra caiu, a velha caiu, mas a grávida escapou e pulou de novo � não sei se pra frente ou pra
trás...
Lurdes � pra trás.
Seberiano � Ela pulou e a lontra conseguiu pegar só as mãos dela, daquela tigre grávida. E é
por isso que os tigres tem aquelas mãos curtas, as mãos curtas que aquela lontra pegou. E
daí diz que escapou. E o sol ficou brabo pra lua! Daí a lua ficou do outro lado e sol desse
lado. Porque a lua tava nesse mundo e o sol tava noutro planeta que é onde ta agora.
Lurdes � E esses rios que chamam Paraná e Uruguai foi eles que fizeram. Meu pai contava, diz que eles tavam por aí.
Darci � E aquele que escapou, por azar, foi um tigrinho que nasceu. E por isso que hoje
existe os tigre. Ele escapou, mas se fosse tudo fêmea não se criava.
Ana � E o sol ficou do lado das frutas?
Seberiano e Darci � Não, a lua ficou do lado das frutas, da guabiroba...
Ana � E o sol ficou do lado dos tigres?
Darci � É.
Seberiano � E como o sol ficou brabo pra lua, porque ele virou antes do tempo, daí que ele disse: �Agora você fique lá! Eu vou passar você aqui do meu lado a hora que eu quiser!� Darci � Na hora que você descobrir as sementes das frutinhas que ele fez. Ele tinha poder pra isso, e ele ia fazendo as frutinhas. E quando a lua descobrisse tinha que pegar as sementes daquelas frutinhas que ele fez, ponhar no fogo e quando ela estourasse a lua podia pular acima do fogo pra chegar no outro lado onde ele tava.
Seberiano � Então é como o Darci tava dizendo: a lua tinha que ficar lá do outro lado pra ela
descobrir todas as frutas que existem agora, pra ela ter uma noção. E o sol ia dizendo qual é
a fruta: �Olha, é uma fruta preta, tem semente assim� E depois ele dizia como é que ia se
chamar essa fruta, como agora, que tem os nomes...
Ana � E isso era no mato?
Seberiano � É, ele ia pelo mato. E ia criando o mato.
Lurdes � Ele criava o mato e as frutas de comer.
Seberiano � Ele ia criando o que era e o que não era de comer. A lua pedia pro sol e ele ia
dizendo pra ele o que era e o que não era de comer. Afinal, mesmo, acharam essa sementinha de Aguaí. Depois que eles ficaram um tempão separados, no final mesmo, diz
que como já tinha passado a raiva do sol pela lua, ele teve dó dele, e deixou ele cruzar de
novo a água pra se encontrar. Aí que eles enxergaram essa fruta aqui com semente,
Aguaí. E a lua pedia o que é que era. E ele disse pra ela: Aguaí. Daí o sol mandou fazer um
fogo e explicou pra ela: �Bote essa semente que você tirou e que tava madura, bote no fogo.
E quando der estouro, tu pula e dá uns gritos que logo tu passa pro lado de cá.� E a lua tava
bem alegre de encontrar o sol no outro lado do rio. Então ela botou a semente de Aguaí no
fogo, deu estouro, aí ela deu uns gritos, assim, e deu uns pulos, e quando ela viu tava bem
perto do sol. E diz que a lua chorava de alegria, chorava, chorava, e o sol só dava risada
dele. E a lua olhava o rio e pensava: �Como é que eu pude atravessar todo esse rio só com
esse pulinho?� Mas é que o sol tinha poder, né! Mas é muita história comprida essa!
Ana � Agora nos falem como vocês chamam estes animais que aparecem na história em
Guarani
Darci - A tigra velha é tiví.
Lurdes - Tiví eté
Flávia � E aquele bicho que comeu eles? [lontra]
Darci � ÿpó.
Flávia � e o que picou a mãe deles?
Seberiano - Mamangá
Flávia � Muito bonita essa história...
Seberiano � Isso é só um pedaço! Essa história é longa...
Darci � O velho contava pra nós tudo reunido de noite...
Seberiano � Quando a gente ia lá ele ia contando os pedaços.
Flávia � E cada noite era um pedaço, como que era?
Seberiano � É, cada noite ele contava um pedaço.
Darci � Cada noite ele contava mais a história, e assim ia indo.
Apêndice 3 � Os tempos e ciclos ecológicos na perspectiva Guarani a partir da etnografia de Maria Inês Ladeira189
Ara pyau (verão), �tempos novos� começa com yvytu (ventania). Em ara pyau (verão), canta o sabiá (avia), o xurucuá, também urukurea (coruja), maino (colibri). Cantam no começo de ara pyau. Depois do canto dos passarinhos, vem a chuva. Ara pyau i, ara pyau mirim é como chama o comecinho desse tempo. 193-4
Quando tokoiro (cigarra) canta é um sinal que já chegou a época de plantio em ara pyau. �Em Santa Catarina e no Paraná, quando se ouve o cântico da cigarra não tem mais perigo de geada. Eu acho que por aqui não tem cigarra, parece que tem, mas eu não ouvi ainda�. Antes dos primeiros plantios realizam o benzimento (nheemongarai) das sementes: avaxi karai, jety karai, kumanda karai (benzimento do milho, batata doce, feijão guarani). Se vão plantar logo, fazem o ritual em jaxy oua guaxu (lua cheia).
No início de ara pyau começa o tempo do plantio. �Os mais velhos, os mais idosos é que conhecem bem quando é a época do plantio�. Na 1ª volta da lua, em ara pyau, antes de plantar qualquer coisa, é preciso plantar cabaça (yakua) para fazer chocalho, melancia (xanjau) e manduvi (amendoim). Esses deviam ser os primeiros plantios em jaxy nha pytu (lua minguante).
O tempo de Jaxy oua guaxu (lua cheia) é mais para o plantio de batata doce (jety ju), mandioca (mandio). O milho guarani (avaxi etei ) deve ser plantado entre o final de ouva guaxu (lua cheia) e começo de jaxy nha pytu (lua minguante). �Na tradição Guarani, deve ser plantado primeiro o milho (avaxi etei). Depois que ele nasce, junto do lugar, planta kumanda (feijão). Depois, na 2ª volta da lua é bom plantar jety ju (batata doce) de novo. Antigamente, na nossa tradição, depois já não plantava mais�.
Quando é jaxy oua guaxu (lua cheia) e jaxy nha pytu (lua minguante) é a melhor época de plantar. Para carpir, tem que esperar outro jaxy nha pytu (lua minguante) e, então, pode começar a carpir, a limpar a roça. Sempre é bom carpir em jaxy nha pytu (lua minguante) ou no final de jaxy ouva guaxu (lua cheia). �Se limpar em jaxy endy (lua crescente) ou jaxy ray (lua nova), o mato começa a pegar tudo de novo. Mesmo que carpe, não morre o mato�.
�Na tradição Guarani, depois que eu fiz minha roça, assim que eu plantei o milho, aí me preparo mesmo e vou longe, eu vou pescar, até chegar a hora da limpa da roça, eu vou pescar�.
No começo de ara pyau, em jaxy ray (lua nova), já não se pode caçar, mas já começa o tempo da pesca. Pescar sempre em jaxy nha pytu) ou jaxy ray (lua nova). Quando ara pyau começa, as vezes acontece a chuva quando é jaxy ray (lua nova) ou jaxy nhy pytu (lua minguante). Quando vem essa chuva os peixes voltam aos rios. Então já é possível pescar. Quando começa ara pyau, o tempo da pesca dura quatro voltas da lua. Então os peixes acabam e só voltam no começo de ara yma (inverno). Pode-se pescar em qualquer hora do
189 O conteúdo deste apêndice é uma transcrição literal da tese de doutorado de Maria Inês Ladeira, no que se refere aos tempos ara pyau (verão) e ara yma (inverno) em relação às práticas de manejo e conhecimentos ecológicos a eles associados. Estes trechos foram extraídos das páginas 192 à 199 de LADEIRA,2001.
dia. �Sempre eu ia cedo, mas para pegar bagre tem que ter a noite. No começo da noite tem que estar pescando. Quando é noite alta, já diminui. Lambari só de dia� .
Quando os frutos já maduram, deve se esperar jaxy nha pytu (lua minguante) para a colheita. Somente em jaxy nhy pytu (lua minguante) pode se colher as diversas mudas ou as sementes para um novo plantio. Para consumo pode se colher em qualquer fase da lua. �Mandioca ou milho, o que dá em cima ou embaixo da terra é o mesmo.�
Em qualquer fase da lua podem realizar o nheemongarai (�benção�) dos alimentos colhidos na roça. �A escolha do dia é o pajé que sabe. Na sabedoria dos Guarani é assim: se eu tenho bastante milho, mandioca, batata, então, na 1ª colheita eu não posso pegar assim uma espiga e comer sem ter feito nhemongarai. Então, na 1 colheita, os pajés tem que benzer antes de se comer�. Com isso transformam as plantas em alimento.
Em ara pyau (verão), quando chegam as tempestades fortes, realizam o nheemongarai, ritual de atribuição dos nomes-almas às crianças, revelados pelos Nheeru ete (verdadeiros pais das almas) aos dirigentes espirituais. Esse ritual, realizado na casa de rezas (opy) pode ser feito junto com o batismo (ou benzimento) do milho e do kaa (mate).
Os Guarani identificam dois tipos de chuva. Quando há uma tempestade com trovões e relâmpagos significa que Tupã está passeando sobre a terra: Tupãkuéry oguata. Por isso é a época propícia para receber revelações e se comunicar com os Nhanderu. A outra chuva, oky, não vem do movimento de Tupã. Em ara pyau, tempo das tempestades, Tupã passeia livremente. Já na época de ara yma, as tempestades só vêm se um pajé (yvyraija) necessitar de Tupã e chamá-lo.
Ara pyau (verão) termina com um trovão, mas não é qualquer trovão é yapua. Yapua é um trovão com relâmpago, sem chuva, que encerra ara pyau. Esse aviso não tem um momento certo, pode acontecer em qualquer jaxy (lua). (194-6)
Ara yma (inverno), começa com um trovão, mas não é qualquer trovão é yapua. É um sinal de Nhanderu kuéry, de que eles estão se recolhendo, e significa que ara pyau terminou e ara yma vai começar. �No tempo de ara yma (frio) não canta nem o sabiá (avia) nem xurucuá...�
Quando começa ara yma (inverno) entra o frio, tem pouca chuva. �Na nossa tradição (nhandereko), só chove muito em ara yma se a nossa aldeia está precisando de água e o pajé pede a chuva. Quando chove forte, pode ser para destruição de alguma cidade, para inundar ou acontecer enchente em alguma região�.
�Em ara yma, no nosso sistema de antigamente, é para ficar mais nas aldeias não andar muito, não viajar, é para ficar reformando a opy (casa de rezas), esperando a entrada de ara pyau, pois em ara yma �surge muita doença por causa do frio�. �Na nossa tradição, para a família sair de vez para viver em outro lugar é preciso que Nhanderu mostre o lugar certo. Se Nhanderu não permitir então não pode sair. E isso pode acontecer em qualquer época�.
Em ara yma, quando é jaxy ray (lua nova) não se pode construir porque cria muito �caruncho� e apodrece a madeira. Pode caçar, pescar, remar mas não pode cortar, porque invalida a madeira. Pode fazer artesanato se já tiver material cortado, pode barrear a casa.
No tempo de jaxy endy mbyte (lua crescente), também não se pode cortar. Não pode fazer armadilha em jaxy endy mbyte (lua crescente). No final de ara yma, quando é jaxy endy
mbyte (lua crescente), pode derrubar as árvores onde se vai fazer a primeira roça no lugar. Porque quando se derruba em jaxy endy mbyte (lua crescente), brota pouco e depois da segunda vez que se derruba, em jaxy endy mbyte, já não brota mais. No final de ara yma é bom começar a preparar a terra para o plantio: queimar e derrubar pode ser feito em qualquer lua.
Quando é jaxy nha pytu (lua minguante), em ara yma, pode cortar, pode construir. No começo de ara yma o tempo é de pescar. Em ara yma as melhores luas para pescar são Jaxy nha pytu (lua minguante) e jaxy ray (lua nova). A pesca é boa durante quatro voltas da lua. Depois os peixes vão todos para o mar. Depois só tem peixe quando chega ara pyau. �Ara yma não é bom para o plantio�.
Quando é jaxy nha pytu (lua minguante), em ara yma, é tempo de fazer armadilha. A melhor época para a atividade de caça para consumo alimentar vai da metade ao fim de ara yma. �Nesse tempo os bichinhos estão gordos e fortes�. Entre o final de ara yma e o comecinho de ara pyau, �na sabedoria dos Guarani, não é pra matar mais nenhum bichinho�. É o tempo de acasalar e ter filhotes. Para caçar, pode ser qualquer jaxy. Pode caçar em qualquer lua. Mas não se pode fazer armadilha em jaxy endy mbyte (lua crescente). Quando não se tem armadilha, pode caçar com arco e flecha e com os cachorros.
No final de ara yma sempre vem uma ventania (yvytu vaekue), anunciando os tempos novos. Nesse momento de passagem de um tempo/estação a outro costumam realizar o kaa nhemoingüe, o �batismo� das folhas de mate, ritual realizado na opy (casa de rezas). O anúncio da entrada de ara pyau (verão) indica que a frequência na casa de rezas (opy ) se intensificará e, com isso o uso da erva mate, o que pede o ritual do kaa nhemoingüe. Se nessa época houver, no tekoa, crianças ou adultos que precisem receber nomes, estes podem ser revelados, realizando-se conjuntamente o ritual do nheemongarai.
O artesanato pode sempre ser feito, desde que se tenha material preparado, porque em jaxy ray (lua nova) não pode nunca cortar taquara. As casas também podem ser construídas em qualquer tempo, ara yma e ara pyau, respeitando-se as fases da lua não apropriadas para o corte de plantas e madeiras.
Os rituais de iniciação dos meninos à idade adulta, que implicam na perfuração (com um espinho de ouriço) do lábio inferior para uso do tembekua, acontecem no começo de ara yma em qualquer lua, já os casamentos podem ser realizados em qualquer época - ara yma e ara pyau.