GT 1 - farejadoc.com.br

312
GT 1 Estudos Históricos e Epistemológicos da Ciência da Informação O GTI 1 aborda Estudos Históricos e Epis- temológicos da Ciência da Informação. Constituição do campo científico e questões epistemológicas e históricas da Ciência da informação e seu objeto de estudo - a infor- mação. Reflexões e discussões sobre a disci- plinaridade, interdisciplinaridade e transdis- ciplinaridade, assim como a construção do conhecimento na área.

Transcript of GT 1 - farejadoc.com.br

Page 1: GT 1 - farejadoc.com.br

GT 1Estudos Históricos e Epistemológicos da

Ciência da Informação

O GTI 1 aborda Estudos Históricos e Epis-temológicos da Ciência da Informação. Constituição do campo científico e questões epistemológicas e históricas da Ciência da informação e seu objeto de estudo - a infor-mação. Reflexões e discussões sobre a disci-plinaridade, interdisciplinaridade e transdis-ciplinaridade, assim como a construção do conhecimento na área.

Page 2: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 2

SUMÁRIOINFORMAÇÃO SEGUNDO NIKLAS LUHMANN: BASE TEÓRICA PARA UMA “CIÊNCIA DO INFORMAR-SE”Marcos Gonzalez Souza .......................................................................................................................4

INTEGRAÇÃO EPISTEMOLÓGICA DA ARQUIVOLOGIA, DA BIBLIOTECONOMIA E DA MUSEOLOGIA NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: POSSIBILIDADES TEÓRICAS Carlos Alberto Ávila Araújo ..............................................................................................................20

O CAMPO DA INFORMAÇÃOAngelica Alves Marques .....................................................................................................................39

O IMPERATIVO MIMÉTICO: A FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO E O CAMINHO DA QUINTA IMITAÇÃO Gustavo Silva Saldanha ....................................................................................................................56

RUÍDO, PERTURBAÇÃO E INFORMAÇÃO: NOTAS PARA UMA TEORIA CRÍTICA DOS SISTEMAS AUTOPOIÉTICOS.Antonio Saturnino Braga ...................................................................................................................72

RELAÇÕES OU “SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA” EM CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA JULGAMENTO DE INFORMAÇÕES NA WEB Márcia Feijão de Figueiredo, Maria Nélida González de Gómez .....................................................88

A INTERDISCIPLINARIDADE NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: ESTRATÉGIAS DO DISCURSO CONTEMPORÂNEO INTEGRADOREdivanio Duarte de Souza, Eduardo José Wense Dias ....................................................................104

SOCIEDADE, INFORMAÇÃO, CONDIÇÕES E CENÁRIOS DOS USOS SOCIAIS DA INFORMAÇÃO Francisco das Chagas de Souza ......................................................................................................122

ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: QUESTÕES E DESAFIOS NO CENÁRIO DA PESQUISAJosé Mauro Matheus Loureiro, Maria Lúcia Niemeyer Matheus Loureiro, Sabrina Damasceno Silva, Daniel Maurício Vianna Souza ............................................................137

MIGRAÇÃO CONCEITUAL ENTRE SISTEMAS DE RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO E CIÊNCIAS COGNITIVAS: UMA INVESTIGAÇÃO SOB A ÓTICA DA ANÁLISE DO DISCURSOFernando Skackauskas Dias, Monica Nassif Erichsen ...................................................................150

ANTES DA GESTÃO DE DOCUMENTOS: PROSPECÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRARenato Pinto Venancio .....................................................................................................................170

A PRESENÇA FRANCESA E O DESENVOLVIMENTO DA LEITURA: ORIGENS DA

Page 3: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 3

DIFUSÃO E MEDIAÇÃO DE SABERES NO BRASILKatia Carvalho.................................................................................................................................183

ENTRE VALORES E VERDADES: ANÁLISE SOBRE A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO NAS CONCEPÇÕES DA ARQUIVÍSTICA SOBRE DOCUMENTOSRaquel Luise Pret .............................................................................................................................194

O CONCEITO ONTOLÓGICO FENOMENOLÓGICO DA INFORMAÇÃO: UMA INTRODUÇÃO TEÓRICAMarcos Luiz Mucheroni, Robson de Andrade Gonçalves ................................................................211

DOCUMENTO “SENSÍVEL” E INFORMAÇÃO (IN)ACESSÍVEL? Icléia Thiesen ...................................................................................................................................226

AS DUAS CULTURAS E OS REFLEXOS NO MUNDO ATUAL NAS CIÊNCIAS E NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO*

Valeria Gauz, Lena Vania Ribeiro Pinheiro .....................................................................................240

A IDENTIDADE DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO BRASILEIRA NO CONTEXTO DAS PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DA PÓS-GRADUAÇÃO: ANÁLISE DOS CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS DOS PPGCI’SJonathas Luiz Carvalho Silva, Gustavo Henrique de Araújo Freire ...............................................255

CARACTERÍSTICAS NATURAIS DA INFORMAÇÃO: VISÃO INTERDISCIPLINAR DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO COM A FÍSICA E A BIOLOGIAMarcelo Stopanovski Ribeiro, Rogério Henrique de Araújo Júnior ................................................275

BREVES REFLEXÕES ACERCA DA INTERDISCIPLINARIDADE NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM OLHAR ATRAVÉS DA FORMAÇÃO ACADÊMICA DO CORPO DISCENTE DO PPGCI IBICT / UFRJ – 2009 E 2010Leandro Coelho de Aguiar, Renata Regina Gouvea Barbatho ........................................................283

A TEORIA MATEMÁTICA DA COMUNICAÇÃO E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃOWilliam Guedes ................................................................................................................................290

CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: RELAÇÃO INTERDISCIPLINAR COM AS DISCIPLINAS INTELIGÊNCIA COMPETITIVA E GESTÃO DO CONHECIMENTOSimone Alves da Silva, Simone Faury Dib, Neusa Cardim da Silva ................................................295

DO DOCUMENTO CONTÁBIL ELETRÔNICO ENQUANTO PROVA: ANÁLISE INTERDISCIPLINAR ENTRE O DIREITO E A ARQUIVÍSTICA.Rúbia Martins, João Batista Ernesto Moraes ..................................................................................302

A VERDADE, A INFORMAÇÃO E O ARQUIVO: PRIMEIRAS IMPRESSÕES NA BUSCA POR UMA FILOSOFIA DA INFORMAÇÃOAluf Alba Elias .................................................................................................................................307

Page 4: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 4

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

INFORMAÇÃO SEGUNDO NIKLAS LUHMANN: BASE TEÓRICA PARA UMA “CIÊNCIA DO INFORMAR-SE”

Marcos Gonzalez Souza

Resumo: No âmbito de sua oniabarcadora teoria de sistemas, Niklas Luhmann (2010 [1995])

recusou a “metáfora da transferência de informação”, conceito hegemônico desde a “teoria da comunicação” de Claude Shannon (1948), o que o colocou em uma “posição minoritária” em relação à pesquisa acadêmica de sua época. No esforço de erigir “um edifício suficientemente complexo, capaz de servir de contraste ao que foi obtido pela tradição”, Luhmann propôs então um conceito de informação substitutivo, que é aqui interpretado à luz de argumentos linguísticos. Concluímos que, para Luhmann, informação é tanto a própria “ação de informar-se” quanto o “resultado ou efeito” dessa ação, que deve ser compreendida no sentido de “instrução de processos”. Consideramos, por fim, que seus conceito e teoria são capazes de expandir os horizontes epistemológicos da Ciência da Informação.

Palavras-chave: Teoria de sistemas, Autopoiesis, epistemologia da Ciência da Informação

Abstract: In the context of his encompassing systems theory, Niklas Luhmann (2010 [1995]) rejected the

“metaphor of information transfer”, an hegemonic concept since the “theory of communication” of Claude Shannon (1948), which put him in a “minority position” in relation to the academic research of his time. In an effort to erect “a building complex enough to serve as a contrast to what was obtained by tradition”, Luhmann then proposed a surrogate concept of information, which is here interpreted in the light of linguistic arguments. We conclude that, for Luhmann, information is either “action of self information” or “a result or effect” of this action, which must be understood in the sense of “instruction of processes”. We consider, in the end, that his concept and theory are able to expand the epistemological horizons of Information Science.

Keywords: Systems theory, Autopoiesis, epistemology of Information Science.

1. IntroduçãoTendo como ponto de partida a mesma pretensão oniabarcadora dos “sistemas veteroeuropeus”,

o sociólogo Niklas Luhmann ambicionou ir além da tentativa de renovar em profundidade as categorias

Page 5: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 5

do modo ocidental de pensar o homem e a sociedade, a que a tradição chamou “filosofia prática”, ou mesmo as categorias do pensar enquanto tal, que seriam igualmente as do ser, e que a tradição tematizou sob o nome de “ontologia” (SANTOS, 2005b, p. 8-9). Sua obra insere-se no domínio da sociologia de Talcott Parsons, sua principal referência, mas insere um leque muito significativo de novos contributos, de grande originalidade e ainda maior radicalidade, desenvolvidos no âmbito da “Teoria Sistêmica de Segunda Geração” (ESTEVES, 2005, p. 281-282).

Na década de 1920, Ludwig von Bertalanffy havia introduzido a “Teoria Geral de Sistemas”, definindo sistemas como um “conjunto de elementos de interação” (VON BERTALANFFY, 2009 [1967], p. 63). Naquele tempo, a física convencional tratava dos sistemas fechados, isto é, isolados de seu ambiente. O segundo princípio da termodinâmica, por exemplo, enuncia num sistema fechado uma certa quantidade chamada “entropia”. Sendo entropia uma medida da probabilidade, um sistema fechado tende para o estado de distribuição mais provável, ou seja, um estado de equilíbrio. Von Bertalanffy dá como exemplos “uma mistura de contas de vidro vermelhas e azuis ou de moléculas com velocidades diferentes”, em um estado de completa desordem. Uma situação altamente improvável é “encontrar todas as contas vermelhas separadas de um lado e de outro todas as contas azuis ou ter em um espaço fechado todas as moléculas rápidas, isto é, uma alta temperatura do lado direito, e todas as moléculas lentas, numa baixa temperatura, do lado esquerdo”. Ao contrário, a tendência para a máxima entropia ou a distribuição mais provável é a tendência para a máxima desordem.

No entanto, encontramos sistemas que por sua própria natureza e definição não são sistemas fechados: todo organismo vivo, por exemplo, é essencialmente um sistema aberto. Para esses, as formulações convencionais da física são em princípio inaplicáveis; von Bertalanffy, porém, observou que concepções e pontos de vista gerais semelhantes surgiram em várias disciplinas da ciência moderna para lidar com os sistemas:

Enquanto no passado a ciência procurava explicar os fenômenos observáveis reduzindo-os à interação de unidades elementares investigáveis independentemente umas das outras, na ciência contemporânea aparecem concepções que se referem ao que é chamado um tanto vagamente “totalidade”, isto é, problemas de organização, fenômenos que não se resolvem em acontecimentos locais, interações dinâmicas manifestadas na diferença de comportamento das partes quando isoladas ou quando em configuração superior, etc. (VON BERTALANFFY, 2009 [1967], p. 61-62)

Concepções e problemas desta natureza surgiram em todos os planos da ciência quer o objeto de estudo fossem coisas inanimadas quer fossem organismos vivos ou fenômenos sociais. Aparecem os “sistemas de várias ordens”, que não são inteligíveis mediante a investigação de suas respectivas partes isoladamente.

Os sistemas abertos responderam, conforme resgate histórico de Luhmann (2010 [1995], p. 203)1, a essa referência teórica, na medida em que os estímulos provenientes do meio podiam

1 Doravante neste texto, faremos referências a essa edição citando-lhe apenas a página

Page 6: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 6

modificar a estrutura do sistema: uma mutação não prevista, no caso do biológico; uma comunicação surpreendente, no social:

Mantém-se em um contínuo fluxo de entrada e de saída, conserva-se mediante a construção e a decomposição de componentes, nunca estando, enquanto vivo, em um estado de equilíbrio químico e termodinâmico, mas mantendo-se no chamado estado estacionário, que é distinto do último. Isto constitui a própria essência do fenômeno fundamental da vida, que é chamado metabolismo, os processos químicos que se passam no interior das células (VON BERTALANFFY, 2009 [1967], p. 65).

As categorias de variação, seleção, estabilização, consolidaram o modelo dos sistemas abertos na teoria geral dos sistemas, mas para Luhmann, ainda era preciso enfrentar o conceito de causalidade (acaso), que colocava a relação entre sistema e meio “no terreno dos impulsos de variação que se situam fundamentalmente na parte relativa ao meio”. Segundo essa teoria, tais impulsos levam a mutações no sistema (mudanças químicas operadas no meio, seleção de formas de sobrevivência que não estão de modo algum visíveis no sistema), tratando-se, portanto, de uma determinação externa da estrutura do sistema.

Com efeito, desde Darwin, era preciso explicar a multiplicidade das espécies biológicas: como é possível que de um acontecimento único fundador da vida (a célula) se tenha chegado a tão distintas formas orgânicas? No âmbito do social, poder-se-ia estabelecer uma inquietação equivalente: partindo-se do pressuposto de que a consciência é um programa praticamente em branco com uma estrutura biológica mínima, no sentido de estruturas inatas chomskyanas, competentes para a linguagem, ou com alguns instintos biológicos ancorados, como é possível explicar que, uma vez que a linguagem emerge como fenômeno universal de socialização, tenha se desenvolvido tamanha diversidade de culturas e de linguagens? (p. 62)

Dispondo de um arquivo acumulado durante quarenta anos, contendo, segundo ele próprio, “cerca de umas cem mil anotações bibliográficas” (p. 203), Luhmann realizou um meticuloso trabalho de “ajuste” dos conceitos relevantes, para que pudessem comportar um corpo teórico coerente: “não se trata de introduzir, nem de dispor a contento dos conceitos”, dizia ele, “sem levar em conta as tradições teóricas que os acompanham e, caso necessário, substituí-los” (p. 292).

Uma preocupação teórica de Luhmann consistia em articular a ideia de que a evolução não podia ser prognosticada, uma vez que a admiração pela complexidade do mundo sempre acarretou “o recurso às teorias da criação” e, finalmente, “à admiração por Deus”. Aí, “a ordem era a execução de um plano, porque o mundo não podia ser explicado sem que houvesse uma intencionalidade por detrás” (p. 143-144). Se não há intencionalidade, porque intencionalidade implicaria a volta a um sistema de causa e efeito, Luhmann não podia admitir qualquer tráfego de mensagens do meio para o sistema, muito menos informação: “Em outros preceitos teóricos”, explica Luhmann, “a informação é entendida como um transfer a partir do meio; no contexto do acoplamento estrutural [em sua teoria de sistemas autopoiéticos], trata-se de um acontecimento que se realiza por uma operação efetuada no próprio sistema”. Luhmann associa essa metáfora do transfer à Segunda Cibernética, com seus

Page 7: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 7

“sistemas que interpretam o mundo (sob o preceito da energia ou da informação) e reagem conforme esta interpretação”. Em ambos os casos, a entropia faz com que os sistemas estabeleçam um processo de troca entre sistema e meio:

Abertura significou comércio com o meio, tanto para a ordem biológica como para os sistemas voltados para o sentido (sistemas psíquicos, sistemas sociais...). Surgiu, assim, uma nova ênfase no modelo: o intercâmbio. Para os sistemas orgânicos se pensa em intercâmbio de energia; para os sistemas de sentido, em intercâmbio de informação (p. 61).

Aí reside a ruptura nas elaborações teóricas de Luhmann (GUIBENTIF, 2005, p. 221), por ele qualificada de “mudança de paradigma” ou “refundação da teoria” (p. 125), quando orientou, de maneira bastante inovadora, sua conceptualização dos sistemas sociais em torno do conceito de “autopoiesis”. O termo foi inicialmente cunhado pelo biólogo chileno Humberto Maturana que, com Francisco Varela, postulou que “o que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética” (MATURANA e VARELA, 2010 [1984], p. 55): seres vivos diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, que destaca o fato de que os seres vivos são unidades autônomas, embora sejam iguais em organização.

A dúvida fundamental de Luhmann é “se a teoria da socialização pode ser entendida a partir do modelo da transmissão” (p. 148). Desde os anos 1950, diz o sociólogo, “verifica-se um ápice no emprego do conceito de informação, sem, contudo, denotar algum esforço em atingir clareza conceitual” (p. 139-140). A “teoria da comunicação” (SHANNON, 1948) é uma que fala em que “os meios de comunicação transmitem informação”, caindo aí no problema de “ter de afirmar que a individualidade é, portanto, somente uma cópia que se desenvolve no campo amplo da diferenciação cultural”. E não constitui um avanço substancial – prossegue o sociólogo – a afirmação de que isso se dá “mediante processos de ensino-aprendizagem, conduzidos por pessoas que desempenham o papel social de professor, educador – como sendo os que entendem o comportamento adequado –, e são capazes de transferir esses modelos de socialização aos demais”: isto seria, novamente, “basear a socialização na teoria da transmissão”.

Maturana seria, segundo Luhmann, “um dos poucos que, decididamente, opôs-se ao emprego da metáfora da transferência”, ponto de vista que os colocou “numa posição minoritária” no meio acadêmico (p. 294). No Brasil, essa situação foi constatada empiricamente. Francelin (2004) cita o sociólogo entre os autores que formam as “bases do pensamento pós-moderno”, mas, como resultado de sua análise de 258 volumes de oito revistas de CI no Brasil, no período de 1972-2002, mostra que, na categoria de análise “Complexidade”, que abarca “teoria de sistemas” e “relações de complexidade”, há apenas 10 artigos. Arboit et al. (2010), um estudo que analisa a configuração epistemológica da CI brasileira com base na análise de citações da produção periódica da área entre 1972 e 2008, confirmam a ausência de Luhmann entre os autores que mais influenciam a área, muito embora um de seus mais proeminentes seguidores, Rafael Capurro, seja o autor estrangeiro mais citado. A Ciência da Informação, apesar dos esforços em aprimorar abordagens teóricas alternativas, não conseguiu, na

Page 8: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 8

opinião de Hofkirchner (2011) e outros, desenvolver um corpo teórico que fosse reconhecido como uma teoria mais geral da informação.

Daí nosso interesse em Luhmann, que acredita ter erigido “um edifício suficientemente complexo, capaz de servir de contraste ao que foi obtido pela tradição” (p. 203). O que pretendemos é analisar o papel que o conceito de informação tem nesse “edifício”. Sabemos que, como dizem Capurro e Hjørland (2007 [2003]), “as definições não são verdadeiras ou falsas, mas sim, mais ou menos produtivas”, e concordamos com Basilio (1999) quando ela diz que “o conjunto de objetos do mundo externo designado por uma palavra não é suficientemente especificado pela estrutura morfo-semântica, estabelecendo-se com ela uma caracterização genérica”. Para nosso fins, estaremos satisfeitos se pudermos apontar, com base em um sistema de categorias suficientemente robusto (descrito na próxima seção), a essência da diferença entre as teorias de sistemas de Luhmann e daquelas que ele refuta. 2. Método

Na Morfologia linguística, “derivação” é o nome do processo formador de novas palavras, e “produtividade”, da formação de palavras novas por determinada Regra de Formação de Palavras, ou RFP. A princípio, uma palavra como informação é formada por uma regra que pode ser representada como em [X]V → [[X] V -ção] N, que nos diz que se pode formar um nome em -ção a partir de um verbo (representado pela variável X) e, ademais, que a produtividade dessa RFP só se aplica a verbos, e não a qualquer lexema (ROSA, 2000; FREITAS, 2007). Eis porque é chamada “nominalização deverbal”.

As nominalizações deverbais possuem duas funções reconhecidas pelos estudiosos das línguas: de mudança categorial e designadora (ou denotativa). A primeira obedece, sobretudo, a motivações de estruturação textual, sendo uma construção transparente e sem objetivos designadores. Já a nominalização denotativa tem uma função de designação de “seres, processos, eventos, situações” específicos (BASILIO, 2004).

As nominalizações em -ção costumam ser interpretadas como uma “ação ou resultado da ação” expressa pela base verbal correspondente. Por essa regra geral, informação pode então ser interpretada como a nominalização da ação informar (informar → informação) “ou resultado dessa ação”. Não devemos nos esquecer, ainda, que o verbo em estudo admite reflexividade, informar-se, portanto, informação também é a nominalização da ação informar-se (informar-se → informação), ou o resultado dessa ação.

Há, porém, quem não considere relevante a origem da base das nominalizações, mas a relação geral verbo/nome, que obedeceria, em princípio, a um padrão derivacional, segundo o qual, “dada a existência de um verbo no léxico do Português, é previsível uma relação lexical entre este verbo e um nome”. É comum em algumas línguas como o português e o japonês encontrarmos termos com o mesmo étimo que muito frequentemente extrapolam os limites das suas famílias linguísticas. Afirma-se que, para o significado original, produtos da derivação sufixal em -ção, como informação,

Page 9: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 9

referem-se basicamente a “seres abstratos”, mas o mesmo não vale, necessariamente, para as demais acepções da palavra, que podem ser concretas: criação (“ato de criar”), por exemplo, pode ser referir a animais; coração, aparentemente, o concreto veio antes do sentido abstrato, “a menos que tenha tido algum significado abstrato inicial que não podemos restaurar” (VIARO, 2011, p. 117-122). Não podemos descartar, em suma, a hipótese de que informação é que deu origem aos verbos (informação → informar; informação → informar-se).

Admite-se, ainda, que informação pode ser usada ignorando-se completamente a base verbal, aproximando o termo daquilo que, no “mito do objetivismo” identificado por Lakoff e Johnson (2002 [1980], p. 295-297), entenderíamos como um “objeto”, algo com propriedades independentes de quaisquer pessoas ou outros seres que os experienciem, conceitos como pedra, âncora, azeite ou escudo. Segundo esses autores, sob esse paradigma, mesmo “eventos, ações, atividades e estados” são metaforicamente conceptualizados como “objetos”. Uma corrida, por exemplo, é um evento compreendido como uma entidade discreta, e a prova está na língua: existe no tempo e no espaço (“você vai à corrida?”), tem demarcações bem definidas (“você viu a corrida?”) e contém participantes (“você está na corrida no Domingo?”).

Quanto à semântica, seguimos aqui as categorias de Salgado (2009), que, em estudo sobre as regências de informar em galego, estabeleceu quatro significados fundamentais para o verbo. A acepção 1 é “continuadora do significado etimológico do verbo” (lat. informare, “dar forma”, “modelar”, “formar no ânimo”) que, no galego moderno aparece quase exclusivamente em textos de caráter filosófico. Com o significado 2, informar é um “verbo de transferência” que seleciona três argumentos potestativamente, isto é, que podem estar expressos ou não, que projetam, sintaticamente, os papéis de emissor, destinatário e tema. No dicionário Houaiss (2001), essa acepção é registrada como “fazer saber” ou “cientificar”, e informação, então, é a “comunicação de um conhecimento ou juízo” ou um “acontecimento ou fato de interesse geral tornado do conhecimento público ao ser divulgado pelos meios de comunicação; notícia”. Segundo Salgado, a acepção 2 é “a estrutura mais documentada de informar”, o que faz dela o sentido default para o verbo em galego. No significado 3, informar especializou-se no meio jurídico-administrativo como “[um organismo, perito, corpo consultivo] emitir informes da sua competência”. Essa acepção está lexicografada no Houaiss como sinônimo de “instruir (um processo)”. Por último, na acepção 4, informar aparece sempre em construção pronominal (informar-se), que no Houaiss é o informar-se (“tomar ciência de” ou “cientificar-se”); informação está associada à “recepção de um conhecimento ou juízo” ou um “conhecimento obtido por meio de investigação ou instrução”.

Tomando como corpus o último livro Luhmann (2010 [1995]), vamos buscar, então, uma “caracterização genérica” para seu conceito de informação, nos seguintes termos:

(A) Informação é uma “ação” ou “objeto”? (B) se denota “ação”, como se pode interpretá-la: como (i) “ação de informar”, (ii) “ação de

informar-se”, “(iii) “resultado ou efeito da ação de informar” ou (iv) “resultado ou efeito

Page 10: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 10

da ação de informar-se”?(C) ainda, se denota uma “ação”, expressa qual dos significados fundamentais de Salgado

(2009)? 3. A “metateoria” de Niklas Luhmann

Em Luhmann, o que mudou com a apropriação do conceito de autopoiesis, em relação aos avanços alcançados nos anos 1950 e 1960, foi a definição de sistema como “a diferença entre sistema e meio” (LUHMANN, 2010 [1995], p. 81). Poder-se-ia dizer: “o sistema é a diferença resultante da diferença entre sistema e meio” ou, ainda, “a fundação da unidade está colocada junto da diferença” (p. 304). Assim, a Teoria dos Sistemas não começa sua fundamentação com uma unidade, ou com uma “cosmologia que represente essa unidade, ou ainda com a categoria do ser, mas sim com a diferença”. A “afirmação mais abstrata” que se pode fazer sobre um sistema – e que é válida para qualquer tipo de sistema – é que a diferença que há entre sistema e meio pode ser descrita como diferença de complexidade: o meio de um sistema é sempre mais complexo do que o próprio sistema (p. 183-184). Cada organismo, máquina e formação social, tem sempre um meio que é mais complexo, e oferece mais possibilidades do que aquelas que o sistema pode aceitar, processar, ou legitimar.

Na definição de Maturana, diz Luhmann, “autopoiesis significa que um sistema só pode produzir operações na rede de suas próprias operações, sendo que a rede na qual essas operações se realizam é produzida por essas mesmas operações”; ademais, “dentro do sistema não existe outra coisa senão sua própria operação” (p. 119-120). Ao tomar como ponto de partida esse “encerramento de operação”, deve-se entender por autopoiesis, então, “que o sistema se produz a si mesmo, além de suas estruturas”.

O axioma do “encerramento operativo” leva aos dois pontos mais discutidos na atual Teoria dos Sistemas: a) auto-organização; b) autopoiésis. Os dois têm como base um princípio teórico sustentado na diferença e um mesmo princípio de operação: cada um acentua aspectos específicos do axioma, mas o sistema só pode dispor de suas próprias operações (p. 112).

Se Maturana e Varela (2010 [1984], p. 53) entendem “organização” como “as relações que devem ocorrer entre os componentes de algo, para que seja possível reconhecê-lo como membro de uma classe específica”, para Luhmann só há “auto-organização”, no sentido de uma “construção de estruturas próprias dentro do sistema”. Como os sistemas estão enclausurados em sua operação, eles não podem “conter” estruturas, eles mesmos devem construí-las. Enquanto Maturana e Varela entendem por “estrutura de algo” os “componentes e relações que constituem concretamente uma unidade particular e configuram sua organização”, Luhmann diz que “uma estrutura constitui a limitação das relações possíveis no sistema” (p. 113). O sistema dispõe de um campo de estruturas delimitadas, que determinam o espectro de possibilidades de suas operações.

Mas a estrutura luhmanniana não é o fator produtor, a origem da autopoiesis: trata-se de um processo circular interno de delimitação. Por exemplo (de Luhmann), “numa conversa”, que o autor enxerga como um sistema (o sistema “comunicação”), “o que se disse por último é o ponto de

Page 11: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 11

apoio para dizer o que se deve continuar dizendo; assim como o que se percebe no último momento constitui o ponto de partida para o discernimento de outras percepções”. Portanto, o conceito de auto-organização deve ser entendido, primeiramente, como produção de estruturas próprias, mediante operações específicas.

Autopoiesis significa para Luhmann a determinação do estado posterior do sistema, a partir da limitação anterior à qual a operação chegou. Somente por meio de uma estruturação limitante, um sistema adquire a suficiente direção interna que torna possível a autorreprodução. As estruturas condicionam o espectro da possibilidade no sistema; a autopoiesis determina o que é possível, de fato, na operação atual. O molde das estruturas pré-condiciona o que é passível de ser examinado; e a autopoiesis determina o que, realmente, deve sê-lo (LUHMANN, 2010 [1995], p. 138).

Os sistemas luhmannianos são “autônomos no nível das operações”. Entende-se por “autonomia” a propriedade que os sistemas têm de somente a partir da operação ser possível determinar o que lhe é relevante e, principalmente, o que lhe é indiferente. Por conta da “teoria do encerramento operativo”, Luhmann conclui que “a diferença sistema/meio só se realiza e é possível pelo sistema”. Assim, o sistema não pode importar nenhuma operação a partir do meio, mas não está, por outro lado, condicionado a responder a todo dado ou estímulo proveniente do meio ambiente (p. 120). O meio, por sua vez, só pode produzir efeitos destrutivos no sistema se conseguir irromper na operação da autopoiesis, daí que a autopoiesis é construída de maneira altamente seletiva, resguardando-se precisamente de que o meio a destrua, “chegando a interromper o processo da evolução” (p. 280) se necessário. Donde se deduz que, segundo Luhmann, sobreviver é ainda mais fundamental que viver.

Ao transferir seu centro de gravidade para o conceito de autopoiesis, a Teoria dos Sistemas defronta-se com o problema de como estão reguladas as relações entre sistema e meio; uma vez que, principalmente na estratégia teórica, “a distinção sistema/meio faz referência ao fato de que o sistema já contém a forma meio” (p. 128). Faz-se necessário mais um conceito fundamental da metateoria, o conceito de “acoplamento estrutural” (p. 130). As causalidades que podem ser observadas na relação entre sistema e meio situam-se exclusivamente no plano dos acoplamentos estruturais – o que significa dizer que estes devem ser compatíveis com a autonomia do sistema. Os acoplamentos estruturais podem admitir uma diversidade muito grande de formas, desde que sejam compatíveis com a autopoiesis. Um exemplo de acoplamento estrutural, dado pelo autor, é a musculatura dos organismos, que é condizente com a força da gravidade, embora restrita a âmbitos de possibilidades de movimentos.

A linha de demarcação que divide o meio, entre aquilo que estimula ao sistema e aquilo que não o estimula – e que se realiza mediante o acoplamento estrutural – tende a reduzir as relações relevantes entre sistema e meio a um âmbito estreito de influência, pois acoplamento estrutural exclui que dados existentes no meio possam definir, conforme as próprias estruturas, o que acontece no sistema. Ele não determina, mas deve estar pressuposto, já que, do contrário, a autopoiesis se deteria e o sistema deixaria de existir. Mediante o acoplamento estrutural, o sistema desenvolve, por um lado, um campo de indiferença e, por outro, faz com que haja uma canalização de causalidade que produz

Page 12: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 12

efeitos que são aproveitados pelo sistema (p. 132). Em suma, todos os sistemas estão adaptados ao seu meio (ou não existiriam), ainda que dentro do raio de ação que lhes é conferido eles tenham todas as possibilidades de se comportar de um modo não adaptado (p. 131).

Com a ajuda de modelos de seletividade, os sistemas se tornam, segundo Luhmann, mais capacitados para processar os dados – ou, como prefere Luhmann, as “irritações provenientes do meio” – o que proporciona “a possibilidade de aproximar-se da racionalidade”. Um sistema pode, no entanto, construir sua própria irritabilidade:

Ele pode inserir a distinção sistema/meio de ambas as partes, mediante ulteriores distinções e, dessa forma, ampliar suas possibilidades de observação. Também pode utilizar indicações e, com isso, condensar referências; ou então, não fazê-lo, deixando assim que umas possibilidades caiam no esquecimento. Ele pode recordar e esquecer e, portanto, “reagir à frequência das irritações”.

Diferentemente das concepções próprias da tradição, Luhmann não quer se aproximar de um ideal, nem de uma justiça maior, ou de uma construção superior, e tampouco da autorrealização de um espírito objetivo ou subjetivo. Também não se trata de atingir a unidade: a racionalidade do sistema significa expor-se à realidade, colocando-lhe à prova uma distinção, entre sistema e meio (p. 200). A radicalidade desses princípios teóricos, para Luhmann, subentende uma mudança radical na teoria do conhecimento e na ontologia que lhe serve de pressuposto. Quando se aborda a teoria da autopoiesis tendo em conta o encerramento de operação, “fica evidente que se trata de um rompimento com a tradição ontológica do conhecimento, na qual algo pertencente ao meio pode ser transportado ao ato de conhecer, seja como representação, reflexo, imitação, ou simulação” (p. 125).

4. Objeções à “metáfora da transferência”

Na vida cotidiana, assim como em alguns processos de pesquisa das ciências, diz Luhmann, “o conceito de comunicação se baseia na metáfora da transferência (transmissão)”. Essa metáfora coloca, segundo o autor, “a essência da comunicação no ato da transmissão, no ato de partilhar a comunicação”. Ela dirige a atenção e os requisitos de habilidade para o emissor e acentua “o caráter de multiplicação, e não de perda, que se efetua com ela” (p. 294-295)

As objeções feitas a esse conceito usual de comunicação concentram-se, de acordo com Luhmann, em “dois aspectos”2, sendo que o primeiro é “relativamente superficial e sempre foi conhecido” (p. 294): dar-se conta de que na comunicação não se trata de desfazer-se de algo – por exemplo, que, ao se comunicar, o transmissor deixa de possuir algo; assim como em uma transação econômica, na qual um pagamento pressupõe desfazer-se de uma quantidade de dinheiro, ou em uma venda, por meio da qual um proprietário se desfaz de um imóvel.

2 Luhmann fala em “dois aspectos”, mas elenca três, como veremos.

Page 13: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 13

Luhmann discorda: “a comunicação é uma sucessão de efeitos multiplicadores”, primeiramente, um a tem, e depois, dois, e logo ela pode ser estendida a milhões, dependendo da rede comunicacional na qual se pense (por exemplo, a televisão). A metáfora sugere que o emissor transmite algo que é recebido pelo receptor; “mas este não é o caso, simplesmente porque o emissor não dá nada, no sentido de perder algo”. A metáfora do possuir, ter, dar e receber, portanto, “não serve para compreender a comunicação” (p. 296-297). Enfim, a metáfora da transmissão não é útil, pois implica “demasiada ontologia”.

O sociólogo apóia-se aí em Gregory Bateson (1972), que pensava que a produção de redundâncias é a manifestação primordial da comunicação; mais que isso, “o fenômeno da comunicação serve para a elaboração de redundâncias”; isto é, para a criação de um excedente comunicacional a serviço de todo aquele que se interesse por ele: “todo mundo”, enfim, “pode saber algo que foi transmitido pela televisão”. Trata-se de uma sobreprodução de excedentes, na qual o conhecimento se multiplica a si mesmo, que possui também uma elevada “cota de esquecimento” ou “desatualização”: “aquilo que se soube ontem já não interessa mais”.

A segunda objeção ao “conceito usual de comunicação” – “menos difundida, mas de maior peso” – é se o modelo de transmissão não pressupõe, no fundo, que se tenha conhecimento do estado interno dos que participam. Ou seja, para afirmar que A e B sabem a mesma coisa, é necessário conhecer o que existe em A e em B. Se o que se existe em A for diferente do que existe em B, como se poderá dizer que houve um acontecimento de comunicação? (p. 295) A metáfora da transferência exagera, segundo o autor, a identidade do que se transmite. Embora “possa haver algo de verdade nisso”, admite Luhmann, “o ato de partilhar a comunicação não é mais do que uma proposta de seleção, uma sugestão: somente quando se retoma essa sugestão e se processa o estímulo é que se gera a comunicação” (p. 297).

Luhmann não admite um programa cultural para a individualidade. Para ele, a socialização “é sempre autossocialização”. Tomando-se como ponto de partida a autopoiesis, torna-se mais compreensível que tanto a estruturação da consciência, como a da própria memória, reflitam para enfrentar os oferecimentos de cultura sob a dupla disposição de aceitação ou rejeição. Somente assim, afirma Luhmann, “é possível explicar a enorme diversidade individual”. Cada sistema de consciência desenvolve suas próprias estruturas, na medida em que se orienta conforme expectativas, palavras, frases e modos de ser específicos. O mesmo individuo cumpre com os requisitos determinados no comércio social, ou reage negativamente.

Quando se entende a individualidade a partir da possibilidade radical do indivíduo de dizer sim ou não, e de principalmente pensar que, sob a forma de rejeição, a individualidade se reafirma mais, torna-se, então, compreensível a origem das particularidades individuais: “a repulsa secreta a assimilar os costumes, o desconhecimento das normas, a aceitação normativa somente mediante a coação...” (p. 148-149).

Uma terceira ressalva à metáfora da transmissão se dirige contra a tese de que o processo

Page 14: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 14

comunicacional está “disposto na simultaneidade do ato de comunicar e de entender”. Diz-se: “a metáfora da transmissão pressupõe simultaneidade. Ao estar ligada a um espaço delimitado pelas presenças individuais, a comunicação oral se torna dependente do presente” (p. 296). Mas, diz Luhmann, na compreensão básica do processo de comunicação, não há extensão de espaço nem de tempo: “o que se diz, deve ser imediatamente compreendido (simultaneamente), assim como quando alguém fala e vai paralelamente compreendendo a si mesmo; ou quando se pressupõe que aquele que escuta também está localizado nesse tempo e espaço da simultaneidade”.

O advento da escrita rompeu, porém, com essa concepção espacial, já que consiste em uma organização totalmente nova da temporalidade da operação comunicacional. A escrita também acontece no presente, e simultaneamente. Mas, com a escrita se realiza uma presença completamente nova do tempo; isto é, ilusão da simultaneidade do não-simultâneo. O efeito da escrita consiste, para Luhmann, “na separação espacial e temporal entre o ato de transmissão e o de recepção”. Portanto, a metáfora da transmissão ligada à ideia da simultaneidade – na qual não se deixa terreno para analisar a relação entre espaço e tempo –não é suficiente para explicar o fenômeno constitutivo da comunicação (p. 296).5. Informação em Luhmann

O que o sistema experimenta no meio, segundo Luhmann, não são corpos (coisas), mas elementos constantes, “que são canalizados desse meio até o sistema” (p. 142). No plano dos acoplamentos estruturais, há possibilidades armazenadas (ruídos) no meio, que podem ser transformadas pelo sistema; portanto, mediante o acoplamento estrutural, o sistema desenvolve, por um lado, um campo de indiferença e, por outro, faz com que haja uma “canalização de causalidade”, como vimos. Os acoplamentos estruturais não determinam os estados do sistema, sua função consiste em “abastecer de uma permanente irritação (perturbação, para Maturana) o sistema”; do ponto de vista do sistema, trata-se da constante capacidade de ressonância: “a ressonância do sistema se ativa incessantemente, mediante os acoplamentos estruturais” (p. 136-137).

Tratando-se de sistemas autopoiéticos, não existe transfer de irritação do meio ao sistema assim como não existe irritação do sistema no meio: informação é sempre “informação de um sistema” (p. 140), sempre “uma autoirritação, posterior a influxos provenientes do meio” (p. 132). As irritações surgem de uma confrontação interna (não especificada, num primeiro momento) entre eventos do sistema e possibilidades próprias, que consistem, antes de tudo, em estruturas estabilizadas, expectativas. Por exemplo: “no momento em que surge um odor cheirando a queimado, não se sabe se são as batatas ou algo que se incendeia na casa, mas, em todo o caso, sempre há uma interpretação limitada da percepção de um odor inabitual de queimado” (p. 138).

O conceito de informação precisa, segundo Luhmann, ser concebido “no marco de referência da forma, como um conceito com dois lados”: a) o caráter de surpresa que traz implícita a informação; b) o fato de que a surpresa só existe se as expectativas já estiverem pressupostas no sistema, e se já estiver delimitada a margem de possibilidades dentro da qual a informação pode optar.

Informação é seleção que só acontece uma vez, na escala das possibilidades, e que, quando é

Page 15: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 15

repetida, perde o caráter de surpresa. Essa seleção é efetuada em um contexto de expectativas, pois “somente aí a informação constitui uma surpresa” (p. 300). Uma notícia desportiva, por exemplo, figura necessariamente dentro de um contexto (expectativa): “o futebol não pode ser confundido com o tênis”. Portanto, os horizontes de seleção já estão predefinidos (p. 300).

Como os “acontecimentos” são elementos que se fixam pontualmente no tempo, ocorrendo apenas uma vez e somente no lapso mínimo necessário para sua aparição, seu suceder temporal identifica-os, e eles são, portanto, irrepetíveis. Por isso, diz Luhmann, servem como “elementos de unidade dos processos”. Uma informação cujo caráter de surpresa se repita já não é informação; conserva seu sentido na repetição, mas perde o valor de informação. Por outro lado, não se perde a informação, mesmo que tenha desaparecido como acontecimento. Modificou-se o estado do sistema e deixou-se, assim, um efeito de estrutura: o sistema reage perante essas estruturas modificadas e muda com elas (p. 140). Portanto, informação pressupõe estrutura, embora não seja em si mesma nenhuma estrutura, mas sim “um acontecimento que atualiza o uso das estruturas” (p. 140). Uma vez que existem estruturas que limitam e pré-selecionam as possibilidades, o sistema “reage apenas quando pode processar informação e transformá-la em estrutura”. Nesse contexto, há uma seleção sobre essa margem de possibilidades.

Informação, prossegue o teórico, é o “acontecimento que antecede e sucede a irritação”, um período em que “estados do sistema” são selecionados (p. 140). Luhmann adota, a título de processo de seleção, a formulação clássica de Bateson: informação é a “diferença que faz diferença” para o sistema. É uma diferença que leva a mudar o próprio estado do sistema: “tão somente pelo fato de ocorrer, já transforma”: “lê-se que o fumo, o álcool, a manteiga, a carne congelada, colocam a saúde em risco”, exemplifica Luhmann, “e passa-se a ser outro – quer se acredite, ou não, na informação”.

Cada sistema produz sua informação, já que cada um constrói suas próprias expectativas e esquemas de ordenação. A influência exterior se apresenta como “uma determinação para a autodeterminação” e, portanto, como informação: “esta modifica o contexto interno da autodeterminação, sem ultrapassar a estrutura legal com a qual o sistema deve contar” (p. 140-141).

O fundamental é que a informação “tenha realizado uma diferença” (p. 83). Todo acontecimento do processamento de informação fica sustentado por uma diferença e se orienta precisamente para ela. É a diferença que engendra a informação posterior (p. 84). A autopoiesis, diz Luhmann, “tanto da vida como da comunicação”, é um fenômeno tão forte, que o máximo que toda mudança estrutural produz, de forma quase imperceptível, é mais diversidade. A informação, enfim, não é a exteriorização de uma unidade, mas sim a seleção de uma diferença que leva a que o sistema mude de estado e, consequentemente, opere-se nele outra diferença. Os sistemas autopoiéticos se diversificam, ou evoluem, continuamente.

A informação se realiza “por uma operação efetuada no próprio sistema” (p. 142). São, por conseguinte, acontecimentos que delimitam a entropia, sem determinar necessariamente o sistema. Segundo Luhmann, seu conceito de informação “toma o lugar do conceito encarregado da finalidade

Page 16: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 16

de equilíbrio” na Teoria dos Sistemas. O ponto fundamental da reflexão acerca dessa problemática consiste em Luhmann “ter compreendido que o estado de equilíbrio pressupõe uma situação de demasiada fragilidade para que possa ser estável”. A ênfase de sua pesquisa “não reside no equilíbrio, mas na estabilidade, uma vez que há sistemas que não estão em equilíbrio, e são estáveis, ou podem sê-lo” (p. 137-138). O conceito de autopoiesis, como o proposto por Luhmann, “acaba por reforçar o equilíbrio, ao especificá-lo”: não é possível predizer como o sistema se comportará, uma vez que a informação é um estado que surge de dentro dele mesmo (p. 143).

A informação reduz complexidade, na medida em que permite conhecer uma seleção, excluindo, com isso, possibilidades. No entanto, informação também pode aumentar a complexidade. Operando de maneira seletiva, tanto no plano das estruturas, como no dos processos, “sempre há outras possibilidades que podem ser selecionadas, quando se tenta atingir uma ordem”. Precisamente porque o sistema seleciona uma ordem, ele se torna complexo, “já que se obriga a fazer uma seleção da relação entre seus elementos” (p. 184). A consequência é que, para ordens quantitativamente grandes, os elementos podem se conectar somente sob a condição de que este acoplamento se realize de maneira seletiva. Tal seletividade pode ser observada no fluxo da comunicação habitual, como nos círculos de vizinhos: “não é possível comunicar-se com todos, mas somente com determinadas pessoas, que, por sua vez, dão continuidade à comunicação” (p. 184-185). Portanto, “a redução de complexidade é condição para o aumento de complexidade” (p. 132).

6. Interpretação

Na teoria de sistemas de Niklas Luhmann não há espaço, conforme procuramos expor, para um conceito de comunicação que se baseie na “metáfora da transferência (transmissão)”. Com isso, podemos afirmar que, dentre os “significados fundamentais” identificados por Salgado (2009), Luhmann claramente descarta a acepção de informar como um “verbo de transferência”. Informação não pode ser interpretada nem como a nominalização da “ação de informar” nem como o resultado ou efeito dessa ação, pois ambas são, para ele, reflexos de uma metáfora que implica “demasiada ontologia”.

Em Luhmann, também não se pode conceber informação como um “objeto”, pois “o que o sistema experimenta no meio não são corpos (coisas), mas elementos constantes, que são canalizados desse meio até o sistema”. A identidade de uma informação deve ser pensada paralelamente ao fato de que seu significado é distinto para o emissor e para o receptor. Cada sistema está voltado para as expectativas possíveis, “que já trazem impresso um sentido de avaliação”, se orienta “conforme expectativas, palavras, frases e modos de ser específicos” e pode, portanto, acatar ou negar a ocorrência ou existência de “objetos”, “seres”, “eventos” ou “situações” reais. Por eliminação, concluímos que a informação luhmanniana denota um “processo”.

Informação, enquanto “processo”, é uma “operação” efetuada no próprio sistema. Envolve a seleção de uma diferença, um “acontecimento” que se fixa pontualmente no tempo: eles antecedem e

Page 17: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 17

sucedem a irritação, selecionando “estados do sistema”. A seleção leva o sistema a mudar de estado e, consequentemente, operar-se nele outra diferença. Argumentos como esses nos permitem postular que informação em Luhmann nominaliza a “ação de informar-se”.

Mas a informação luhmanniana também é “um estado que surge de dentro” do próprio sistema, ou seja, informação também é o resultado, ou efeito, da “ação de informar-se”. Não se perde a informação, diz o sociólogo, mesmo que tenha desaparecido como acontecimento: “modificou-se o estado do sistema e deixou-se, assim, um efeito de estrutura”. A influência exterior se apresenta como “uma determinação para a autodeterminação”, pois cada sistema constrói suas próprias expectativas e “esquemas de ordenação”. A informação, assim, reduz complexidade, na medida em que exclui possibilidades, o que confere “valor de informação” a toda experiência. Como os “acontecimentos” ocorrem apenas uma vez e somente no “lapso mínimo necessário para sua aparição”, eles são irrepetíveis – eis porque, diz Luhmann, servem como “elementos de unidade dos processos”. Por tudo isso, observa-se que “o resultado ou efeito da ação de informar-se” aproxima-se de uma informação que nominaliza a acepção 3 de Salgado (2009), aquela em que informar significa “emitir informes da sua [organismo, perito, corpo consultivo] competência”.

Conclusão: informação, para Luhmann, é tanto a própria “ação de informar-se” quanto o “resultado ou efeito” dessa ação, que deve ser entendida com um sentido que tem grande produtividade no Direito (formação originária de Luhmann3): a de instrução de processos. Os sistemas instruem-se (= informam-se) continuamente, e cada instrução (= informação) fixa-se na própria estrutura, o que permite que as informações de um sistema possam ser “recuperadas” por um sistema-observador. 7. Considerações finais

A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann nos leva a compreender a CI como uma “ciência do informar-se”, e não como uma “ciência do informar”, conceito que, ainda hoje, parece ser hegemônico na Ciência da Informação. Essa mudança de perspectiva, embora reducionista, parece cumprir um papel didático eficaz o suficiente para contemplar outros horizontes epistemológicos como o desenvolvimento de uma Science of Information, como vem propondo Hofkirchner (2011, p. 372):

Currently, a Science of Information does not exist. What we have is Information Science. Information Science is commonly known as a field that grew out of Library and Documentation Science with the help of Computer Science: it deals with problems in the context of the so-called storage and retrieval of information in social organizations using different media, and it might run under the label of Informatics as well. A Science of Information, however, would be a discipline dealing with information processes in natural, social and technological systems and thus have a broader scope.4

A informação ocupa, em Luhmann, um papel que nos parece central na epistemologia da

3 Luhmann estudou direito na Universidade de Freiburg entre 1946 e 1949, quando obteve seu doutorado e começou uma carreira na administração pública.4 Mantivemos o texto no original, pois, em português, tanto Science of Information como Information Science são traduzíveis para Ciência da Informação. De qualquer forma, em algum momento – caso a proposta de Hofkirchner se consolide como paradigma emergente – será preciso encontrar uma solução terminológica para a questão.

Page 18: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 18

Ciência da Informação: a autonomia do sistema, propriedade já reconhecida ortogonalmente entre os “natural, social and technological systems”. Aqui recorremos a Günter Uhlmann (2002, p. 57ss), que nos explica que a autonomia do sistema é obtida a partir da memória do “estoque”, como em Luhmann. O autor cita como exemplos a água que o camelo absorve para sobreviver uma travessia de um deserto; a gordura que o urso acumula antes da Hibernação; o conhecimento, que permite ao homem “sobreviver” em ambientes competitivos. Sistemas “necessitam” sobreviver, sob a imposição da termodinâmica universal; para isso “exploram” seus meios ambiente, “trabalhando” os “estoques” adequados a essa permanência.

Além de garantirem alguma forma de permanência ou sobrevivência sistêmica, os estoques acabam por ter um caráter histórico, gerando o que Uhlmann chama de “função memória” do sistema. Uma função memória conecta o sistema presente ao seu passado, possibilitando possíveis futuros. Em sistemas de baixa complexidade, a memória é simples (como o caso do fenômeno da histerese em sistemas físicos ou o que é descrito por uma “função de transferência” em um circuito elétrico, por exemplo) mas em sistemas complexos ela pode surgir exatamente como na memória de um ser humano, um complexo processo cerebral e celular. A memória mais marcante em biologia é sem duvida aquela do código genético.

Luhmann descreve sua obra como “uma espécie de metateoria, que não deve ser apresentada como instrução da base metodológica da pesquisa empírica, no sentido de exigir-lhe prognósticos estruturais, mas sim como uma orientação geral” (p. 125). O resultado, porém, já foi equiparado à Fenomenologia do Espírito de Hegel (MOELLER, 2006, p. 199) e considerado uma das “mais ambiciosas e potentes reformulações da sociedade tardo-moderna” (FARÍAS e OSSANDRON, 2006, p. 15) – “talvez mesmo a mais plausível” (SANTOS, 2005a, p. 161). Sua “Teoria Sistêmica de Terceira Geração”, como a entendemos, oferece de fato “um edifício suficientemente complexo” capaz de servir de contraste “ao que foi obtido pela tradição” e merece, na nossa opinião, ser apropriada pela Ciência da Informação.

8. Bibliografia

ARBOIT, A. E., L. S. BUFREM e J. L. FREITAS. Configuração epistemológica da Ciência da Informação na literatura periódica Brasileira por meio de análise de citações (1972-2008) Perspectivas em Ciência da Informação, v.15, n.1, p.18-43. 2010.

BASILIO, M. M. D. P. A morfologia no Brasil: indicadores e questões. DELTA [online], v.15, n.spe., p.53-70. 1999.

______. Polissemia sistemática em substantivos deverbais. Ilha do Desterro, v.47, p.49-71. 2004.

BATESON, G. Steps to an ecology of mind. New York: Ballantine. 1972. 533 p.

CAPURRO, R. e B. HJØRLAND. O conceito de informação. Perspectivas em Ciências da Informação, v.12, n.1, p.148-207. 2007 [2003].

ESTEVES, J. P. Legitimação pelo procedimento e deslegitimação da opinião pública. In: J. M. SANTOS (Ed.). Ta Pragmata. Covilhã: LusoSofia/Universidade da Beira Interior, 2005. p.281-320

Page 19: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 19

FARÍAS, I. e J. OSSANDRON. Recontextualizando Luhmann: lineamientos para una lectura contemporánea. In: J. OSSANDÓN e I. FARÍAS (Ed.). Observando sistemas: nuevas apropiaciones y usos de la teoría de Niklas Luhmann. Santiago de Chile: RIL, 2006. p.17-54

FRANCELIN, M. M. Configuração epistemológica da ciência da informação no Brasil em uma perspectiva pós-moderna: análise de periódicos da área. Ciência da Informação, v.33, n.2, p.49-66. 2004.

FREITAS, H. R. Princípios de morfologia:visão sincrônica. Rio de Janeiro: Lucerna. 2007. 223 p.

GUIBENTIF, P. O direito na obra de Niklas Luhmann: etapas de uma evolução teórica. In: J. M. SANTOS (Ed.). Ta Pragmata. Covilhã: LusoSofia/Universidade da Beira Interior, 2005. p.185-252

HOFKIRCHNER, W. Toward a new Science of Information. Information, v.2, p.372-382. 2011.

HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da língua Portuguesa, versão 1.0. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss/Editora Objetiva 2001.

LAKOFF, G. e M. JOHNSON. Metáforas da vida cotidiana (coord. trad. Maria Sophia Zanotto). Campinas/São Paulo: EDUC/Mercado de Letras. 2002 [1980]. 360 p.

LUHMANN, N. Introdução à teoria de sistemas: aulas publicadas por Javier Torres Nafarrante (trad. Ana Cristina Arantes Nasser). Petrópolis: Vozes. 2010 [1995]. 414 p.

MATURANA, H. R. e F. J. VARELA. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana (trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin). São Paulo: Palas Athena. 2010 [1984]. 288 p.

MOELLER, H.-G. Luhmann explained: from souls to systems. Peru, Illinois: Open Court Publishing, v.3. 2006. 299 p.

ROSA, M. C. Introdução à Morfologia. São Paulo: Contexto. 2000. 156 p.

SALGADO, X. A. F. Sobre o réxime do verbo informar en galego. Estudos de Lingüística Galega, v.1, p.209-223. 2009.

SANTOS, J. M. A complexidade do mundo. In: J. M. SANTOS (Ed.). Ta Pragmata. Covilhã: LusoSofia/Universidade da Beira Interior, 2005a. p.123-164

______. O pensamento de Niklas Luhmann. Covilhã: LusoSofia/Universidade da Beira Interior. 2005b. 371 p.

SHANNON, C. A mathematical theory of communication. Bell System Technical Journal, v.27, p.379-423, 623-656. 1948.

UHLMANN, G. W. Teoria geral dos sistemas: do Atomismo ao Sistemismo (Uma abordagem sintética das principais vertentes contemporâneas desta Proto-Teoria) - versão Pré-Print. Instituto Siegen, 4 jul 2011. 2002.

VIARO, M. E. Etimologia. São Paulo: Contexto. 2011. 331 p.

VON BERTALANFFY, L. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicações (trad. Francisco M. Guimarães). Petrópolis: Vozes. 2009 [1967]. 360 p.

Page 20: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 20

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

INTEGRAÇÃO EPISTEMOLÓGICA DA ARQUIVOLOGIA, DA BIBLIOTECONOMIA E DA MUSEOLOGIA NA CIÊNCIA

DA INFORMAÇÃO: POSSIBILIDADES TEÓRICAS

Carlos Alberto Ávila Araújo

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar as conclusões de uma pesquisa que buscou problematizar

e discutir as possibilidades de integração epistemológica da Arquivologia, da Biblioteconomia e da Museologia na Ciência da Informação. Para tanto, é analisada a origem e evolução teórica das três áreas, sendo identificado um paradigma custodial-tecnicista e teorias que apontam para sua superação. A seguir, analisa-se a origem e evolução da Ciência da Informação, propondo-se que o conceito de informação tal como estudado recentemente pode favorecer o avanço das perspectivas teóricas nas três áreas e possibilitar sua integração epistemológica.

Palavras-chave: Ciência da Informação. Arquivologia. Biblioteconomia. Museologia.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é apresentar os resultados de uma pesquisa de pós-doutoramento junto à Universidade do Porto, em Portugal, intitulada “Ciência da Informação como campo integrador para as áreas de Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia”, realizada de junho de 2010 a maio de 2011. A pesquisa nasceu de uma questão bastante concreta: a criação, na Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (ECI/UFMG), dos cursos de graduação em Arquivologia e Museologia, que passaram a conviver com o já existente curso de Biblioteconomia. A intenção da escola desde o início foi promover uma integração entre esses três cursos na Ciência da Informação (CI).

Desde então, uma série de esforços vêm sendo realizados, tanto para a consolidação das condições institucionais como para o avanço das aproximações teóricas. A pesquisa aqui relatada insere-se nesse segundo tópico, buscando problematizar aspectos relacionados com possíveis aproximações e diálogos entre as três áreas e destas com a Ciência da Informação. Os resultados encontrados apontam fortes evidências e argumentos em defesa da ideia de que é possível promover a integração epistemológica entre as áreas da Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia, no campo da CI, dadas certas condições teóricas, que serão aqui analisadas e tensionadas. Pretende-se demonstrar que a evolução teórica das três áreas (e alguns desdobramentos práticos), ao longo do século XX, tem apontado frequentemente para a superação das distinções disciplinares entre elas – e,

Page 21: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 21

portanto, abrem caminho para a possibilidade de sua integração. Nesse cenário, a CI e o conceito de informação surgem como possíveis aglutinadores e potencializadores dos desenvolvimentos futuros destas três áreas.2 O LONGO CAMINHO ATÉ A CONSOLIDAÇÃO

Os campos de conhecimento hoje conhecidos como Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia têm raízes em atividades práticas ligadas ao funcionamento das instituições arquivo, biblioteca e museu. Estas, por sua vez, surgiram há milênios e se configuraram de maneiras muito diferentes, até chegar aos modelos existentes atualmente. Todas elas, de uma forma ou de outra (seja pelas atividades de colecionismo que deram origem aos primeiros museus, pelas ações de acúmulo de documentos por motivos administrativos ou comerciais nos primeiros coletivos humanos, entre outros), ligam-se aos registros materiais do conhecimento humano e, portanto, têm estreita relação com as distintas atividades culturais humanas – entendendo aqui cultura como a ação simbólica, humana, de interpretar o mundo e de produzir registros materiais dessas ações em qualquer tipo de suporte físico. Assim, é com a invenção da escrita e do estabelecimento das primeiras cidades, há mais de cinco milênios, que surgem os primeiros espaços específicos voltados para a guarda e a preservação de acervos documentais. Autores que tratam da história dos arquivos, bibliotecas e museus frequentemente listam algumas instituições que se tornaram paradigmáticas (como os arquivos de Ebla, a Biblioteca de Alexandria, o Mouseion alexandrino), embora distinções muito rígidas do que seria arquivo, biblioteca ou museu se revelem infrutíferas (SILVA, 2006). No Egito Antigo, na Grécia Clássica, no Império Romano, nos mundos árabe e chinês do primeiro milênio e na Idade Média na Europa, ergueram-se diversos arquivos, bibliotecas e museus, relacionados com os mais diversos fins – religiosos, políticos, econômicos, artísticos, jurídicos, entre outros.

Contudo, é com o Renascimento, a partir do século XV, que aparecem os primeiros traços efetivos daquilo que se poderia chamar de um conhecimento teórico específico nas três áreas, com a publicação dos primeiros tratados relativos a estas instituições. Nesta época, renasce o interesse pela produção humana, pelas obras artísticas, filosóficas e científicas – tanto as da Antiguidade Greco-Romana como aquelas que se desenvolviam no próprio momento. Salientou-se o interesse pelo culto das obras, pela sua guarda, sua preservação.

Proliferaram, nos séculos XV a XVII, tratados e manuais voltados para as regras de procedimentos nas instituições responsáveis pela guarda das obras, para as regras de preservação e conservação física dos materiais, para as estratégias de descrição formal das peças e documentos, incluindo aspectos sobre sua legitimidade, procedência e características. A produção simbólica humana, compreendida como um “tesouro” que precisaria ser devidamente preservado, tornou-se objeto de uma visão patrimonialista (o conjunto da produção intelectual e estética humana, a ser guardado e repassado para as gerações futuras). Contudo, o foco do interesse fixou-se no conteúdo dos acervos. Os arquivos, as bibliotecas e os museus eram apenas instituições a serviço dos campos de estudo da Literatura, das Artes, da História e das ciências. Não se constroem, neste momento, conhecimentos arquivísticos,

Page 22: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 22

biblioteconômicos ou museológicos consistentes - exceto algumas regras operativas muito próximas do senso comum.

O passo seguinte na evolução destas áreas se deu com a Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas na Europa, que marcam a transição do Antigo Regime para a Modernidade. Ocorreu uma profunda transformação em todas as dimensões da vida humana e, também, nos arquivos, nas bibliotecas e nos museus. Surgem os conceitos modernos de “Arquivo Nacional”, “Biblioteca Nacional”, “Museu Nacional”, que têm no caráter público (no sentido de “nacional”, relativo ao coletivo dos nascentes Estados modernos) sua marca distintiva. Formaram-se as grandes coleções, com amplos processos de aquisição e acumulação de acervos – o que reforçou a natureza custodial destas instituições. A necessidade de se ter pessoal qualificado levou à formação dos primeiros cursos profissionalizantes, voltados essencialmente para regras de administração das rotinas destas instituições e, seguindo a tradição anterior, para conhecimentos gerais em Humanidades (ou seja, os assuntos dos acervos guardados).

Por fim, com a consolidação da ciência moderna como forma legítima de produção de conhecimento e de intervenção na natureza e na sociedade, também o campo das humanidades se viu convocado a constituir-se como ciência. Surgiram, no século XIX, diversos manuais que buscaram estabelecer o projeto de constituição científica da Arquivologia, da Biblioteconomia e da Museologia. O modelo de ciência então dominante, oriundo das ciências exatas e naturais, voltado para a busca de regularidades, estabelecimento de leis, ideal matemático e intervenção na natureza por meio de processos técnicos e tecnológicos, se expande para as ciências sociais e humanas através do Positivismo. Esse é o modelo que inspira as pioneiras conformações científicas das três áreas, que privilegia os procedimentos técnicos de intervenção: as estratégias de inventariação, catalogação, descrição, classificação e ordenação dos acervos documentais. Opera-se um verdadeiro “efeito metonímico”: aquilo que antes era uma parte do processo (operações técnicas para possibilitar o uso das coleções) se torna o núcleo, em alguns casos a quase totalidade do conteúdo dos nascentes campos disciplinares. Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia tornaram-se as ciências (positivas) voltadas para o desenvolvimento das técnicas de tratamento dos acervos que custodiam. Ao mesmo tempo, o movimento de consolidação positivista destas áreas promove sua “libertação” de outras áreas das quais eram apenas campos auxiliares (como as Artes, a História, a Literatura) e a sua autonomização científica.

Os três movimentos acima destacados se somam. A perspectiva patrimonialista volta-se para os “tesouros” que devem ser custodiados, ressaltando a importância da produção simbólica humana. Ainda que preservado em parte o sincretismo verificado nos séculos anteriores, há já alguma distinção entre arquivos, bibliotecas e museus. A entrada na Modernidade enfatiza as especificidades das instituições arquivos, bibliotecas e museus, que devem ter estruturas organizadas e rotinas estabelecidas para o exercício da custódia. E a fundamentação positivista prioriza as técnicas particulares de cada instituição a serem utilizadas para o correto tratamento do material custodiado. Constituem-se assim,

Page 23: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 23

nos finais do século XIX e início do século XX, os elementos que marcam a consolidação de um paradigma patrimonialista, custodial e tecnicista (SILVA, 2006) para as três áreas.

Um dos efeitos mais sensíveis deste modelo é que, ao privilegiar a dimensão física das coleções, em seguida as instituições que as guardam e finalmente as técnicas operadas para seu tratamento, ele efetivamente promove e incentiva a separação das três áreas e sua constituição como campos científicos autônomos. Tal fato se complementa com as ações, nas primeiras décadas do século XX, das associações profissionais em prol do estabelecimento das distinções entre os profissionais de arquivo, de biblioteca e de museu. Profissionais diferentes, em instituições diferentes, utilizando técnicas diferentes para o tratamento de acervos específicos – tal é a resultante da soma das ações ocorridas no plano teórico (com o paradigma custodial) e prático (com o fortalecimento das instituições, dos movimentos profissionais e associativos, e o início dos primeiros cursos universitários).

No século XX, contudo, o desenvolvimento de reflexões e teorias nas três áreas não conduziu ao fortalecimento do paradigma dominante. Ao contrário, a vasta produção científica que se seguiu identificou, com muita freqüência, os vários limites desse modelo, ressaltando diversos aspectos que, pouco a pouco, foram conduzindo à necessidade de sua superação. Além disso, novos fatores surgidos neste século (a crescente importância da informação nos setores produtivos da sociedade, o desenvolvimento das tecnologias digitais, o incremento das práticas interdisciplinares e a importância da especificidade das ciências sociais e humanas) também exerceram importante papel na mudança do cenário de atuação de arquivos, bibliotecas e museus, conduzindo a iniciativas práticas que também evidenciavam mudanças no paradigma dominante. Em meio a tudo isso, surgiu ainda a Ciência da Informação, com uma proposta de cientificidade capaz de acolher e potencializar os diferentes aspectos da produção teórica das três áreas – como se pretende demonstrar a seguir.

3 O DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO

A diversidade de conhecimentos científicos e teóricos produzidos sobre arquivos, bibliotecas e museus, tanto nos próprios campos científicos como em outras áreas (como a História, a Pedagogia, a Literatura, entre outros), torna extremamente difícil apresentar ou mapear essa produção. Para os fins deste artigo, optou-se por um arranjo que privilegia a discussão aqui empreendida. Seria possível agrupar as diversas teorias e autores sob uma variedade imensa de aspectos (região geográfica, época histórica, disciplina de origem, inspiração filosófica, etc) mas optou-se por agrupar as variadas contribuições pelos aspectos que apontaram elementos de superação do paradigma custodial e tecnicista predominante. Tais aspectos foram organizados em cinco eixos. Para a composição desses eixos, foram considerados tanto a vinculação dos estudos a diferentes correntes de pensamento (dentre aquelas existentes de uma forma ampla nas ciências sociais e humanas) quanto relacionados a diferentes objetos de pesquisa e formas de abordagem desses objetos. Assim, dentro de cada eixo

Page 24: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 24

apresentado a seguir, misturam-se teorias e perspectivas construídas a partir de aspectos analíticos de diferentes ordens – tendo-se portanto o seu agrupamento em eixos relacionados, cada um, a um aspecto específico de crítica/superação do modelo custodial.

3.1 Os estudos de inspiração funcionalistaJá no final do século XIX, ensaios, manifestos e iniciativas vinham reivindicando mudanças nos

arquivos, bibliotecas e museus, por meio de expressões como “arquivo efetivamente útil”, “biblioteca viva”, “museu dinâmico”, entre outras. Criticava-se o fato de estas instituições estarem voltadas apenas para seus acervos e suas técnicas, sugerindo que elas se “mexessem”, buscassem atuar ativamente nos contextos sociais em que se inseriam. E, ao propor isso, provocaram também mudanças consideráveis nas formulações teóricas.

Em comum, essas várias manifestações têm como fundamento o Funcionalismo. Trata-se de uma perspectiva que se sustenta numa visão da realidade humana a partir da inspiração biológica do organismo vivo. A sociedade humana é entendida como um todo orgânico, composto de partes que desempenham funções específicas necessárias para a manutenção do equilíbrio do todo. Estudos funcionalistas se voltam, pois, para a determinação das funções (no caso, dos arquivos, das bibliotecas e dos museus), para verificar se as funções estão ou não sendo cumpridas (e para a identificação e eliminação dos obstáculos que impedem seu cumprimento), para a identificação de disfunções que possam estar ocorrendo e a formulação de estratégias para superá-las. Por todo o raciocínio encontra-se a ideia de eficácia: a investigação científica como fator para impulsionar o funcionamento adequado das instituições e, consequentemente, o desenvolvimento e o progresso das sociedades.

No campo da Arquivologia, as primeiras manifestações deste pensamento se encontram nos manuais de Jenkinson, de 1922, e de Casanova, de 1928, que apontavam para a necessidade de os arquivos terem um impacto efetivo no aumento da eficácia organizacional. Mas é com o desenvolvimento da subárea de Avaliação de Documentos, assumindo para o campo a tarefa de eliminação dos documentos, que um pensamento pragmatista mais efetivo começou a formular-se. Sua maior expressão se deu com a chamada “escola norte-americana” da primeira metade do século XX, com os trabalhos de Warren (a partir dos quais formalizou-se uma associação que seria o embrião da American Records Management Association); de Brooks, sobre as três categorias de valor, e principalmente de Schellenberg,, sobre o valor primário e secundário dos documentos arquivísticos (DELSALLE, 2000). Tais proposições visavam conservar o máximo de informação preservando um mínimo de documentos – priorizando a funcionalidade em oposição aos aspectos de arranjo e valor histórico dos documentos. Uma outra vertente arquivística, também funcionalista, é a que prioriza a ação cultural dos arquivos e suas funções pedagógicas, que também provocou a busca por uma maior “dinamização” destas instituições (ALBERCH I FUGUERAS et al, 2001).

Na Biblioteconomia, em meados do século XVIII surgem as primeiras manifestações em prol das bibliotecas efetivamente públicas (MURISON, 1988). O termo “efetivamente” ressalta que as

Page 25: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 25

primeiras bibliotecas modernas, embora “públicas” no nome, seriam demasiadamente auto-centradas e elitistas. Atos, manifestos e iniciativas práticas no campo das bibliotecas públicas (Public Library Movements), liderados por bibliotecários como Mann e Barnard, buscaram romper com o isolamento destas e atrair cada vez mais pessoas para seu espaço. Já em 1876, Green defendia inovações práticas nas bibliotecas para aumentar a acessibilidade física e intelectual, sendo o precursor dos posteriormente chamados serviços de referência (FONSECA, 1992). A consolidação científica dessa vertente se deu na Universidade de Chicago, onde em 1928 foi criado o primeiro doutorado em Biblioteconomia. Autores como Butler, Shera, Danton e Williamson defendiam uma Biblioteconomia científica, voltada não para os processos técnicos mas para o cumprimento de suas funções sociais – ou seja, o fundamento da biblioteca se encontra no fato de ela ir ao encontro de certas necessidades sociais. Shera chegou a propor um novo espaço de reflexão científica, a “Epistemologia Social”, para o estudo do papel do conhecimento na sociedade. Teóricos de diferentes países, tais como Lasso de la Vega, Litton, Buonocore, Mukhwejee e Usherwood, seguiram essas orientações, ao defender o conceito de biblioteca como instituição democrática, ativa, e não como depósito de livros (LÓPEZ CÓZAR, 2002). Na Índia, Ranganathan, numa clara perspectiva funcionalista, desenvolveu as cinco “leis” da Biblioteconomia, defendendo o efetivo uso da biblioteca e de seus recursos e, ao mesmo tempo, o atendimento às necessidades da sociedade, por meio do atendimento a cada um de seus componentes. Desenvolvimentos posteriores de leis ou princípios da Biblioteconomia, como os de Thompson e de Urquhart, também priorizaram as funções sociais e a necessidade da biblioteca ser dinâmica e ativa. Recentemente, estudos sobre as tipologias de bibliotecas e sobre os impactos das tecnologias audiovisuais e digitais de informação também se inserem nesta perspectiva, buscando otimizar o papel da biblioteca e dinamizar o uso de seus recursos.

No campo da Museologia, o maior destaque é a área de Museum Education. Conforme Gómez Martínez (2006), trata-se de uma museologia “verbal”, voltada para a ação, erigida em oposição à tradição “nominalista”, voltada para a posse e a descrição dos objetos. Zeller (1989) aponta que floresceu, principalmente nos EUA do final do século XIX e início do século XX, uma Museologia voltada para a eficácia dos museus, para uma efetiva difusão de certos valores junto à população, e para oferecer à sociedade um “retorno” dos investimentos feitos. Autores como Flower, Goode, Dana e Rea marcavam a especificidade dos museus como instituições que teriam como valor não a contemplação mas o uso, e que não esperariam pelos visitantes, mas iriam “buscá-los”, atraindo-os para os museus por meio da eliminação de barreiras e da busca por acessibilidade. Diversas parcerias foram realizadas com o setor privado para o incremento de atividades industriais e comerciais, resultando em inovações museográficas. Essa perspectiva manifestou-se em outros contextos. Na França, destaca-se o pioneirismo do “museu imaginário” de Malraux, no plano teórico, e do Centro Pompidou, em Beaubourg, como aplicação prática. No Canadá, aproximações foram feitas entre os museus e o conceito de “comunicação” a partir dos trabalhos de Cameron. A partir da década de 1980, com as tecnologias digitais, houve uma revitalização da corrente funcionalista, com as

Page 26: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 26

possibilidades de acesso remoto, interatividade e design de exposições, com manifestações em várias escolas e correntes como, por exemplo, no grupo de pesquisadores ligados à Universidade de Leicester (Merriman, Pearce, Hooper-Greenhill, entre outros) e, ainda no contexto inglês, com a “Nova Museologia” defendida por Vergo e outros.

3.2 A perspectiva críticaAbordagens críticas sobre os fenômenos humanos e sociais se desenvolveram intensamente

desde o século XIX como reação ao pensamento positivista. Onde as recentes ciências humanas e sociais buscavam estabelecer padrões e regularidades, as manifestações críticas denunciavam o caráter histórico da realidade, reivindicando o estudo dos contextos históricos para a compreensão dos fenômenos. Em oposição ao Funcionalismo, que almejava o bom funcionamento do social, as teorias críticas argumentavam que o conflito, e não a integração, constitui o principal fundamento explicativo da realidade humana. A partir de uma postura epistemológica de suspeição, desenvolveram-se abordagens críticas em praticamente todas as ciências sociais e humanas – e, também, nos campos da Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia, buscando ver o papel dos arquivos, bibliotecas e museus nas dinâmicas de poder e dominação, a partir da denúncia de suas ações ideológicas.

No âmbito da Arquivologia, os primeiros traços de pensamento crítico encontram-se em análises de pesquisadores como Bautier, sobre os interesses ideológicos que motivaram critérios usados pelos arquivos ainda no início da era Moderna. Outros estudos relacionam-se com a questão do poder de posse dos documentos em várias ocasiões, como no caso dos processos de descolonização da África e da Ásia (SILVA et al, 1998). Nas décadas de 1960 e 1970, debates sobre as políticas nacionais de informação promovidos pela Unesco tematizaram o papel dos arquivos, a questão do direito à informação e a necessidade de transparência por parte do Estado (JARDIM, 1995). Numa linha diferente, autores como Colombo argumentaram contra a obsessão das sociedades contemporâneas com o arquivamento e o registro das atividades humanas. É na Arquivologia canadense, contudo, que se desenvolvem as principais perspectivas críticas contemporâneas. Com origem nos trabalhos de Terry Cook, tal corrente buscou superar os pressupostos de neutralidade e passividade das práticas arquivísticas, analisando em que medida os arquivos constituem espaços em que relações de poder são negociadas, contestadas e confirmadas – numa virada de ênfase das coleções para os contextos, feita por autores como Caswell, Harris e Montgomery.

Na Biblioteconomia, manifestações de um pensamento crítico surgiram principalmente em países de terceiro mundo, vinculadas aos processos de redemocratização após ditaduras militares. Num primeiro momento, tais manifestações foram de caráter prático (com a criação de novos serviços bibliotecários de extensão, como o carro-biblioteca), com o objetivo de aumentar o acesso ao conhecimento por parte de populações socialmente excluídas. Anos depois, foram formuladas teorias relacionadas a essas práticas no escopo das reflexões sobre “ação cultural” e “animação cultural”, nas quais buscava-se distinguir os diferentes tipos de ideologias culturais e propor que o bibliotecário deveria identificá-las e atuar perante elas, não numa perspectiva de “domesticação” mas sim de

Page 27: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 27

“emancipação” (FLUSSER, 1983). As bibliotecas deveriam ser dinâmicas e ativas, mas contra os processos de alienação - num sentido bem diferente da perspectiva funcionalista (MILANESI, 2002). Estudos críticos diferentes também se desenvolveram em outros países, como na França, em que autores como Estivals, Meyriat e Breton se uniram em torno de uma abordagem marxista para estudar os circuitos do livro e do documento impresso (ESTIVALS, 1981).

Na Museologia, as manifestações pioneiras de pensamento crítico se encontram na obra de artistas e ensaístas como Zola, Valéry e Marinetti (BOLAÑOS, 2002), que viam o museu como “mausoléu”, instituição que degradava a arte, instrumento de poder de alguns povos sobre outros. Na década de 1960, uma nova onda de críticas provocou o aparecimento de formas de “antimuseu” (BOLAÑOS, 2002), com importantes inovações museológicas. Porém, é na aproximação com a sociologia da cultura que estão as manifestações mais consolidadas da perspectiva crítica, com Bourdieu inspirando toda uma geração de pesquisadores. Bourdieu aliou as dimensões material e simbólica, analisando como diferentes grupos sociais têm relações distintas com a cultura (e inclusive com os museus). Abordagens atuais utilizam-se desse referencial e do conceito de “capital cultural” para o estudo de distintas práticas museológicas (LOPES, 2007). Outros estudos buscam correlacionar o papel que os museus tiveram (e ainda têm) na construção ideológica da idéia de nação, a partir do trabalho pioneiro de Anderson. Há ainda uma área recente, a “Museologia Crítica”, voltada para a crítica das estratégias museológicas intervenientes nos patrimônios naturais e humanos (SANTACANA MESTRE; HERNÁNDEZ CARDONA, 2006).

3.3 Os estudos a partir da perspectiva dos sujeitosArquivos, bibliotecas e museus tiveram historicamente relações muito diferentes com a questão

dos públicos (usuários ou visitantes). Há relatos de coleções privadas, cujo acesso era restrito a pouquíssimas pessoas, e mesmo acervos proibidos e secretos ligados a interesses políticos, militares ou religiosos. Na Era Moderna, em que passou a vigorar as ideias de universalização, cidadania e de arquivos, bibliotecas e museus “públicos”, a questão tomou uma nova dimensão. Contudo, durante a vigência do paradigma custodial, se formalmente buscou-se abertura e acolhida para os diferentes públicos, conhecê-los nunca chegou a constituir uma prioridade. Foi nos primeiros anos do século XX que as abordagens funcionalistas começaram a se preocupar com o público, tentando obter dados sobre índices de satisfação para a melhoria dos serviços. Aos poucos, a importância de se conhecer a visão dos sujeitos concretos que se relacionam com estas instituições foi aumentando, a ponto de acabar se tornando uma área de estudos autônoma. Os usuários e visitantes deixaram de ser vistos apenas como alvo dos processos arquivísticos, biblioteconômicos e museológicos, sendo compreendidos como seres ativos, construtores de significados e interpretações, com necessidades e estratégias diversas. A compreensão dessas novas questões trouxe relevantes impactos para a teoria e para a prática.

No campo da Arquivologia, o tema da relação entre os usuários e os arquivos começou a ser discutido na década de 1960 (SILVA et al, 1998), dentro das reflexões sobre o acesso aos arquivos

Page 28: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 28

nas reuniões do Conselho Internacional de Arquivos (CIA). Contudo, a temática sempre foi pouco expressiva no campo. Conforme Jardim e Fonseca (2004), estudos pioneiros são os de Taylor, Dowle, Cox e Wilson, voltados para o entendimento das necessidades informacionais de diferentes tipos de usuários. Há também estudos de usuários no campo de dinamização cultural, principalmente sobre tipologia de usuários e sobre cidadãos e seus interesses em história familiar e em atividades de ensino (COEURÉ; DUCLERT, 2001).

Na Biblioteconomia, as primeiras manifestações foram os “estudos de comunidade” realizados por pesquisadores da Universidade de Chicago, que tinham como foco os grupos sociais tomados em seu conjunto. Foram realizadas diversas pesquisas empíricas, nas décadas seguintes, sobre hábitos de leitura e fontes de informação mais usadas. Aos poucos, o interesse foi se deslocando para a avaliação dos serviços bibliotecários, convertendo os estudos de usuários em estudos de uso para diagnóstico de bibliotecas. Situando-se na temática de Avaliação de Coleções, tais estudos impulsionaram várias inovações técnicas, tais como a disseminação seletiva de informações. Na década de 1970, pesquisadores como Line, Paisley e Brittain deslocaram o foco de interesse para as necessidades de informação, que se converteram na principal linha de pesquisa sobre os usuários (FIGUEIREDO, 1994). Recentemente, destacam-se as pesquisas de autores como Kuhlthau e Todd no ambiente da biblioteca escolar, numa perspectiva cognitivista, identificando o uso da informação nas diferentes fases do processo de pesquisa escolar.

Na Museologia, como parte da grande mudança nos museus, de depósitos de objetos para lugares de aprendizagem, operou-se uma alteração do foco, das coleções para os públicos – surgindo desse movimento a subárea de Estudos de Visitantes (HOOPER-GREENHILL, 1998). No começo do século XX foram realizados os primeiros estudos empíricos, com Galton seguindo os visitantes pelos corredores dos museus e Gilman estudando a fadiga e os problemas de ordem física na concepção de exposições. Na década de 1940, proliferaram estudos sobre os impactos nas exposições junto aos visitantes, realizados por autores como Cummings, Derryberry e Melton. Outros estudos, conduzidos por autores como Rea e Powell na mesma época, tiveram como objetivo traçar perfis sócio-demográficos dos visitantes e mapear seus hábitos culturais. Na década de 1960, Shettel e Screven inauguraram uma nova perspectiva com as medidas de aprendizagem nos estudos de visitantes. Nas décadas seguintes, desenvolveram-se abordagens de base cognitivista, sobre a efetividade das exposições (Eason, Friedman, Borun), e de natureza construtivista – como o modelo tridimensional de Loomis, a teoria dos filtros de McManus, o modelo sociocognitivo de Uzzell, a abordagem comunicacional de Hooper-Greenhill e o modelo contextual de Falk e Dierking. Em comum, essas várias abordagens buscaram ver como os usuários interpretam as exposições museográficas, construindo significados diversos, imprevisíveis, relacionados com suas distintas vivências, experiências e contextos socioculturais (DAVALLON, 2005).

3.4 Estudos sobre representação

Page 29: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 29

Se em sua origem os arquivos, as bibliotecas e os museus se constituíram como instituições de coleta e guarda de acervos, há registros de que, desde muito cedo (há pelo menos dois milênios), estas instituições desenvolveram técnicas específicas com o fim de inventariar suas coleções para fins de controle e guarda, catalogá-las e classificá-las para fins de recuperação, descrevê-las para facilitar o acesso e o uso. Ao longo dos séculos tais técnicas foram sendo criadas, adaptadas, recriadas, de forma a se produzir um grande acúmulo de conhecimentos sobre formas de organização dos materiais custodiados nestas instituições. Tal conjunto de conhecimento, contudo, sempre foi historicamente concebido como uma questão eminentemente técnica – encontrar as formas mais adequadas para atingir os objetivos. Nos séculos XVIII e XIX, o enciclopedismo, o historicismo e o positivismo marcaram fortemente as tarefas de representação com a proposição de esquemas universais de representação. Ao longo do século XX, contudo, diferentes teorias buscaram problematizar esses processos, conformando aos poucos uma subárea de estudos com forte influência das ciências da linguagem. De tarefa técnica, as questões da representação se converteram em importante campo de investigação científica.

A temática relativa a princípios de organização e descrição de documentos arquivísticos surgiu e foi debatida durante todo o período de consolidação do paradigma custodial. A partir de 1898, com a publicação do manual de Muller, Feith e Fruin, ela ganhou um estatuto diferente, com a construção de um espaço reflexivo sobre as normas e técnicas arquivísticas. Diversas aplicações práticas de instrumentos de classificação, inclusive de sistemas de classificação bibliográfica, foram testados nos anos seguintes, embora sem uma significativa reflexão teórica – o que só aconteceu em manuais posteriores, como os de Tascón, de 1960, e de Tanodi, em 1961, e em obras teóricas de pesquisadores como Schellenberg. Nas décadas de 1970 autores como Laroche e Duchein problematizaram os princípios de ordenamento confrontando o conceito de record group surgido nos EUA com o princípio da proveniência europeu, e autores como Dollar e Lytle inseriram a questão dos registros eletrônicos e a recuperação da informação (SILVA et al, 1998). Os aspectos relacionados com preservação e autenticidade também estiveram no centro dos debates sobre os documentos digitais, envolvendo pesquisadores como Duranti e Lodolini, que buscaram confirmar o valor do princípio de proveniência e o respeito aos fundos como critério fundamental da Arquivologia. O impacto dos suportes digitais motivou o crescimento da pesquisa na área de normalização arquivística, principalmente a partir da ideia de interoperabilidade de sistemas e possibilidade de ligação em rede. A temática da indexação dos documentos arquivísticos também ganhou espaço nos últimos anos (RIBEIRO, 2003).

As questões relacionadas com a descrição e a organização estão na origem mesma da fundação da Biblioteconomia como campo autônomo de conhecimento. A Catalogação, relacionada com a descrição dos aspectos formais dos documentos, teve seus primeiros princípios formulados no século XIX. A partir da década de 1960, padrões internacionais de descrição bibliográfica foram formulados e envolveram diversos grupos de estudo. Também nesta época surgiram os primeiros modelos de descrição pensando-se na leitura por computador, gerando padrões que, anos depois, conformariam o

Page 30: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 30

campo conhecido como Metadados. Paralelamente, a área de Classificação teve início com a criação dos primeiros sistemas de classificação bibliográfica gerais e enumerativos, como os de Dewey, Otlet, Bliss e Brown. Na primeira metade do século XX, os trabalhos de Ranganathan sobre classificação facetada revolucionaram o campo, propondo formas flexíveis e não-hierarquizadas de classificação. Suas teorias tiveram grande impacto na ação do Classification Research Group, fundado em Londres em 1948, que congregou pesquisadores como Foskett, Vickery e Pendleton, empenhados na construção de sistemas facetados para domínios específicos de conhecimento e problematização dos princípios de classificação (SOUZA, 2007). Nos anos seguintes, diversos campos e setores de pesquisa estabeleceram diálogo ou se apropriaram dos princípios da classificação facetada, tais como os tesauros facetados de Aitchison, os estudos de bases de dados facetados de Neelameghan, a abordagem dos boundary objects de Albrechtsen e Jacob e o mapeamento de sentenças para a evidenciação de facetas por Beghtol.

O espírito nacionalista e historiográfico dos primeiros museus modernos foi decisivo para a configuração de critérios de ordenamento, descrição, classificação e exposição dos acervos (MENDES, 2009). A subárea de Documentação Museológica surgiu no início do século XX, a partir do trabalho de autores como Wittlin, Taylor e Schnapper (MARÍN TORRES, 2002). Nas décadas de 1920 e 1930 houve grandes debates sobre os critérios de classificação adotados nos museus, mas a temática só se converteu em campo de investigação décadas depois. Entre as várias abordagens desenvolvidas, encontram-se aquelas que buscaram problematizar aspectos classificatórios dos museus, como a questão da representação dos gêneros, dos diferentes povos do mundo, das diferentes culturas humanas, numa linha marcada pelos cultural studies (PEARCE, 1994). Os aspectos envolvidos no trabalho de ordenamento também foram estudados por Bennett numa perspectiva foucaultiana. No campo das aplicações práticas, Bolaños (2002) apresenta vários exemplos históricos de inovações em métodos de representação, como o historicismo radical de Dorner, os period rooms do Museu do Prado, o enfoque multidisciplinar do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, a postura antiracista do Museu Trocadero e o modelo dinâmico do Museu de Etnografia de Neuchâtel, merecendo destaque, ainda, a criação de edifícios que em si mesmos constituem peças museológicas, numa linha inaugurada pelo Museu Guggenheim de Bilbao.

3.5 Abordagens contemporâneas: fluxos, mediações, sistemasOs avanços mais recentes nos campos da Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia têm

buscado agregar as várias contribuições das últimas décadas. Novos tipos de instituições, serviços e ações executadas no âmbito extra-institucional conferiram maior dinamismo aos campos, que passaram a se preocupar mais com os fluxos e a circulação de informação. Buscando superar os modelos voltados apenas para a ação das instituições junto ao público, ou para os usos e apropriações que o público faz dos acervos, surgiram modelos voltados para a interação e a mediação, contemplando as ações reciprocamente referenciadas destes atores. Modelos sistêmicos também apareceram na

Page 31: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 31

tentativa de integrar ações, acervos ou serviços antes contemplados isoladamente. A própria ideia de acervo, ou coleção, foi problematizada, na esteira de questionamentos sobre o objeto da Arquivologia, da Biblioteconomia e da Museologia. Somado a tudo isso, desenvolveram-se as tecnologias digitais com um impacto muito mais profundo, reconfigurando tanto o fazer quanto a teorização destes três campos.

Na Arquivologia, na década de 1960, houve uma maior teorização sobre o objeto do campo (destacando-se o pioneirismo de Tanodi que, em 1961 definiu o objeto como sendo a “arquivalia”); uma ampliação de seus domínios (como os arquivos administrativos, os arquivos privados e de empresas); e ainda o surgimento de campos novos (os arquivos sonoros, visuais e o uso do microfilme). Tais avanços tiveram como consequência a criação, na década seguinte, do Programa de Gestão dos Documentos e dos Arquivos (RAMP), estrutrurado pelo CIA e pela Unesco, no âmbito de seu Programa Geral de Informação (PGI) criado em 1976. Tal programa assegurou a publicação de trabalhos em diferentes áreas da Arquivologia, tais como os de Kula (arquivos de imagens em movimento); de Naugler (registros eletrônicos); de Guptil (documentos de organizações internacionais); de Harrison e Schuurma (arquivos sonoros) e de Cook (documentos contendo informações pessoais). Contudo, a maior inovação teórica, a Arquivística Integrada, surgiu no começo dos anos 1980 com o artigo inaugural de Ducharme e Rousseau, que apresenta uma visão sistêmica do fluxo documental. Dois anos depois, Couture e Rousseau formalizaram a busca de uma síntese dos records management e da archives administration, a partir de uma visão global dos arquivos, considerando a gestão de documentos no campo de ação da Arquivologia, isto é, abarcando as tradicionalmente chamadas três idades dos documentos numa perspectiva integrada. Tal abordagem passou a desenvolver-se de formas específicas por autores de variados contextos, tais como Cortés Alonso e Conde Villaverde na Espanha, Menne-Haritz na Alemanha, Cook na Inglaterra e Vásquez na Argentina. Pouco depois, surgiu a expressão “pós-custodial” para designar uma nova fase da Arquivologia (COOK, 1997). Nessa mesma linha desenvolveu-se a perspectiva sistêmica em torno da ideia de “arquivo total” em Portugal, congregando pesquisadores como Silva e Ribeiro (SILVA et al, 1998). Outras temáticas contemporâneas são as que relacionam os arquivos com as atividades de registro da história oral, e o campo dos arquivos pessoais e familiares (COX, 2008).

Dentro das abordagens contemporâneas em Biblioteconomia, destacam-se três grandes tendências que, embora possam ser separadamente identificadas, possuem vários elementos em comum. A primeira delas é a que se apresenta contemporaneamente sob a designação de “Mediação”. Tal vertente foi primeiramente trabalhada por Ortega y Gasset, em 1935, num sentido de ponte, filtro, sendo o bibliotecário um orientador de leituras dos usuários. Anso depois, expressou-se numa alteração estrutural do conceito de biblioteca, sendo esta considerada “menos como ‘coleção de livros e outros documentos, devidamente classificados e catalogados’ do que como assembléia de usuários da informação” (FONSECA, 1992, p. 60). Assim, a ideia de mediação sofreu uma mudança, enfatizando menos o caráter difusor (de transmissão de conhecimentos) e mais o caráter dialógico da

Page 32: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 32

biblioteca (ALMEIDA JR., 2009). A segunda vertente também pode ser entendida como parte dos estudos sobre mediação, embora tenha se desenvolvido de modo mais específico. Trata-se do campo da Information Literacy, surgido nos EUA em 1974, voltado para a identificação e a promoção de habilidades informacionais dos sujeitos, que não são mais entendidos apenas como usuários portadores de necessidades informacionais (Campello, 2003). Por fim, a terceira vertente é a dos estudos sobre as bibliotecas eletrônicas ou digitais, com todas as implicações em termos de acervos, serviços e dinâmicas relativas a essa nova condição (ROWLEY, 2002).

Na Museologia, merece destaque o desenvolvimento dos ecomuseus e da chamada Nova Museologia. Conforme Davis (1999), o conceito de “ecomuseu” surgiu no começo do século XX, sob o impacto das ideias ambientalistas, de conceitos relativos à ecologia e ecossistemas, com a criação dos “museus ao ar livre”, que, numa perspectiva ampliada de museu, incorporavam sítios geológicos ou naturais ao seu “acervo”. Um outro sentido para o termo foi dado, a partir das ideias de Rivière, Hugues de Varine e Bazin, pela Nova Museologia, que propôs repensar o significado da própria instituição museu. Nessa visão, os museus deveriam envolver as comunidades locais no processo de tratar e cuidar de seu patrimônio. Tal proposta foi apresentada pela primeira vez em 1972, numa Mesa Redonda organizada pelo International Council of Museums (ICOM), sendo formalizada na Declaração de Quebec, em 1984. Do ponto de vista teórico, tal noção propõe que a Museologia passe a estudar a relação das pessoas com o patrimônio cultural e que o museu seja entendido como instrumento e agente de transformação social – o que significa ir além das suas funções tradicionais de identificação, conservação e educação, em direção à inserção da sua ação nos meios humano e físico, integrando as populações. Defendendo a participação comunitária no lugar do “monólogo” do técnico especialista, tais ideias colocaram no lugar do tradicional tripé edifício/coleções/público da Museologia uma nova rede de conceitos, composta por território, patrimônio e comunidade. Deve-se distinguir, porém, essa Nova Museologia dos recentes estudos com a mesma designação, propostos por Vergo e Marstine, entre outros, que representam, antes, uma revitalização do pensamento funcionalista. Soma-se a isso a recente ênfase nos estudos sobre a musealização do patrimônio imaterial. Por fim, o fenômeno contemporâneo dos museus virtuais representa uma dimensão com variados desdobramentos práticos e teóricos. Para Deloche (2002), a chegada da tecnologia digital à realidade dos museus acarreta a reformulação da própria concepção de instituição museal. Sem edifício ou coleções, marcos institucionais tradicionais definidores do próprio campo, o museu se vê na condição de oferecer novos serviços, por meio de novas práticas e funções, a usuários que também ganham novas condições de ação. A adoção de tecnologias tanto para o tratamento como para o planejamento de exposições aproxima também o museu do conceito de sistema de informação, tal como apontam os estudos da área de Museum Informatics, que trata das interações sociotécnicas (entre as pessoas, a informação e a tecnologia) nos espaços museais (MARTY; JONES, 2008).

Page 33: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 33

Page 34: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 34

4 A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃOAs raízes da CI se encontram na área de Documentação, criada por Otlet e La Fontaine no início

do século XX. Preocupados com a disponibilização de registros sobre a totalidade do conhecimento humano (mais do que com o armazenamento destes registros), os autores desenvolveram o conceito de “documento”, alargando o campo de intervenção para além dos livros e demais registros impressos. Embora tratando de arquivos, bibliotecas e museus numa perspectiva integradora, a área acabou se desenvolvendo como uma atividade profissional distinta, paralela, atuando principalmente no campo da informação científica e tecnológica.

Foi justamente neste espectro de atuação, do registro e fornecimento de informações para campos específicos de ciência e tecnologia, que começaram a atuar aqueles que primeiramente ficaram conhecidos como “cientistas da informação” (FEATHER; STURGES, 2003). Na esteira das tentativas de institucionalização das atividades destes profissionais, entre as quais a realização da International Conference on Scientific Information, realizada em Washington, em 1958, deu-se a base para a criação da nascente “Ciência da Informação”. Poucos anos depois, em 1966, o American Documentation Institute (ADI) mudou sua designação para American Society for Information Science (ASIS), tornando-se a primeira instituição científica específica da CI. Os fundamentos teóricos imediatamente adotados foram a Teoria Matemática da Comunicação de Shannon e Weaver, a Cibernética de Wierner e as contribuições de Vannevar Bush. Juntos, consolidaram um conceito “científico” de informação e uma agenda de pesquisa da área, expressa num artigo de Borko, de 1968.

Contudo, o que viria a ser a CI nos anos seguintes ultrapassou em muito o imaginado nos primeiros anos. Conforme González de Gómez (2000), nas décadas seguintes a CI desenvolveu-se por meio de subáreas relacionadas a diversos “programas de pesquisa”: os fluxos da informação científica, a recuperação da informação, os estudos métricos da informação, os estudos de usuários, as políticas de informação, a gestão do conhecimento e as possibilidades trazidas com o hipertexto e a interconectividade digital. O objeto de estudo do campo ampliou-se para além dos registros físicos em sistemas de informação. Foram estudados, por exemplo, os “colégios invisíveis” (processos de troca de informação em ambiente informal), o “conhecimento tácito”, as necessidades de informação e as competências informacionais dos sujeitos, entre outros.

Segundo Capurro (2003), as diferentes teorias e subáreas acabaram por consolidar três amplos modelos de estudo do fenômeno informacional: o físico (que privilegia a idéia de informação como “coisa” a ser transferida de um ponto a outro), o cognitivo (inspirado na filosofia de Popper e que enfatiza a informação como elemento alterador dos modelos mentais dos usuários) e o social (que busca entender o que é informação por parte de comunidades de usuários, resgatando a idéia de construção intersubjetiva).

Silva (2006) também expressou essa ampliação por meio da definição das seis “propriedades” da informação como conceito científico. A informação é algo comunicável, reprodutível e quantificável (pode-se dizer que correspondem ao conceito “físico” de Capurro); possui pregnância de sentido

Page 35: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 35

(corresponde à dimensão “cognitiva” identificada por Capurro); integra-se de forma dinâmica a seu contexto e é estruturada pela ação humana (corresponde à dimensão “social” de Capurro).

A CI tem sido caracterizada, ainda, como uma ciência interdisciplinar (SARACEVIC, 1996), pós-moderna (WERSIG, 1993) e pertencente ao campo das ciências humanas e sociais (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000). Tais características a têm credenciado como um campo flexível, capaz de fazer dialogar e interagir, dentro dela, campos disciplinares distintos; crítico aos limites do Positivismo e ao mesmo tempo sensível às especificidades da atual “sociedade da informação”; e capaz de permitir a convivência de diferentes escolas e correntes teóricas.

5 CONCLUSÕESOs avanços teóricos na Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia apontam para a efetiva

superação do modelo custodial consolidado no final do século XIX. Ao propor o estudo das relações entre essas instituições e a sociedade (tanto na perspectiva funcionalista como na crítica), ao focar o ponto de vista dos sujeitos, ao problematizar os aspectos relacionados ao significado nas representações e ao pensar os fluxos e as mediações, as teorias desenvolvidas no século XX tensionaram os limites das áreas de conhecimento. Assim, a dinâmica mais ampla dos processos passou a ser contemplada, com objetos que vão desde a produção dos registros (e até mesmo o que ainda não possui existência física, o imaterial), a composição dos acervos, as competências dos usuários no uso e apropriação dos acervos, até as diferentes camadas de significação criadas com a intervenção profissional e os instrumentos de descrição e classificação. Na Museologia, tal passagem pode ser caracterizada com a mudança do objeto “museu” para a “musealidade” ou a “musealização” (STRÁNSKÝ apud DELOCHE, 2002); na Arquivologia com o conceito de “arquivalia” ou o de “arquivo total” (SILVA et al, 1998); e na Biblioteconomia com o próprio conceito de “informação” (como vem sendo feito desde a década de 1980, quando as pós-graduações em Biblioteconomia começaram a mudar sua denominação para CI).

A CI aparece, então, como campo profícuo para os avanços reivindicados pela evolução das várias teorias desenvolvidas e para fazer dialogarem dentro dela as três áreas. Além disso, constituindo-se desde o início como ciência, é capaz de proporcionar o efetivo espaço de reflexão e problematização, buscando superar o caráter eminentemente prático, de aplicação de regras, que as disciplinas de arquivo, biblioteca e museu trazem de sua origem.

O conceito de informação também é relevante, mas, para que ele propicie essa integração, é preciso retornar à própria origem do termo, que, conforme Capurro (2008), remonta aos conceitos gregos de eidos (ideia) e morphé (forma), significando “dar forma a algo”. Informação, portanto, se inscreve no âmbito da ação humana sobre o mundo (“in-formar”), apreendendo-o por meio do simbólico, nomeando e classificando os objetos que conhece (objetos da natureza), criando objetos que passa a utilizar (instrumentos com diversas finalidades), produzindo registros que constituem novos objetos (textos impressos, visuais, sonoros) e criando ainda registros destes registros (catálogos, índices, inventários, etc).

Page 36: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 36

Informação é portanto um conceito que perpassa todo esse processo. Tem origem na produção de registros materiais e se prolonga nas atividades humanas (arquivísticas, biblioteconômicas, museológicas) sobre esses registros. Mas é ainda mais ampla do que isso, é tudo aquilo que envolve essa ação humana a partir do primeiro registro, do primeiro ato de “in-formar”. Parte da ação humana comum, cotidiana, de apreender o mundo e produzir registros materiais desse processo, chega às instituições e procedimentos técnicos criados especificamente para intervir junto a estes registros e os ultrapassa nos mais diversos usos, fluxos, apropriações, contextos. Dada sua amplitude, surge com grande potencial de tratar os variados processos arquivísticos, biblioteconômicos e museológicos como sendo muito mais do que os procedimentos técnicos definidos pelo paradigma custodial/tecnicista. Ao fazer isso, potencializa também uma parcial dissolução das rígidas fronteiras disciplinares (sem perda de identidade e de especificidade de cada uma) em benefício de reflexões teóricas e aplicações práticas mais ricas – como demonstram, entre outros, os recentes exemplos de construção da Europeana (um amplo sistema digital que constitui ao mesmo tempo um arquivo, uma biblioteca e um museu de acervos da cultura europeia) ou a fusão do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional no Canadá. A CI, sem se impor sobre as três áreas, aberta às especificidades e contribuições de cada uma, pode proporcionar o diálogo necessário para a construção de um conhecimento científico que não se reduz ao estudo e à prática das instituições que cada área contempla. A CI pode possibilitar que as três áreas sejam mais do que “a ciência do arquivo”, “a ciência da biblioteca” e “a ciência do museu” – e ainda se enriqueçam mutuamente.

Abstract: The aim of this paper is to present the findings of a research about the possibilities of epistemological integration of Archival Science, Library Science and Museum Studies in the Information Science. To this end, it reviews the origin and evolution of the three theoretical areas, and identified a custody and technical paradigm and theories that point to overcome. Next, it explores the origin and evolution of Information Science, proposing that the concept of information as studied recently can foster the advancement of theoretical perspectives in three areas and enable their epistemological integration.

Keywords: Information Science; Archival Science; Library Science; Museum Studies.REFERÊNCIAS

ALBERCH I FUGUERAS, R. et al. Archivos y cultura: manual de dinamización. Gijón: TREA, 2001.

ALMEIDA JR., O. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, v. 2, n. 1, p. 89-103, jan./dez. 2009.

BOLAÑOS, M. La memoria del mundo: cien años de museología: 1900-2000. Gijón: TREA, 2002.

CAMPELLO, B. O movimento da competência informacional: uma perspectiva para o letramento informacional. Ciência da Informação, v. 32, n. 3, p. 28-37, set./dez. 2003.

Page 37: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 37

CAPURRO, R. Pasado, presente y futuro de la noción de información. In: ENCUENTRO INTERNACIONAL DE EXPERTOS EM TEORÍAS DE LA INFORMACIÓN, 1, 2009. Anais... Leon: Universidad de Leon, 2008.

CAPURRO, R. Epistemologia e ciência da informação. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 5., 2003, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Associação Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 2003.

COEURÉ, S.; DUCLERT, V. Les archives. Paris: La Découverte, 2001.

COOK, T. What is past is prologue: a history of archival ideas since 1898, and the future paradigm shift. Archivaria, v. 43, p. 17-63, 1997.

COX, R. Personal archives and a new archival calling: readings, reflections and ruminations. Duluth: Litwin, 2008.

DAVALLON, J. Penser la muséologie. In: DAVALLON, J.; SCHIELE, B. Doctorat en Museólogie, mediation, patrimoine. Sainte-Foy: Multimondes, 2005, p. 69-98.

DAVIS, P. Ecomuseums: a sense of place. London:Leicester University Press, 1999.

DELOCHE, B. El museo virtual. Gijón: TREA, 2002.

DELSALLE, P. Une histoire de l’archivistique. Sainte-Foy: Presses de l’Université du Québec, 2000.

ESTIVALS, R. A dialética contraditória e complementar do escrito e do documento. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 121-152, set. 1981.

FEATHER, J.; STURGES, P. International Encyclopedia of Information and Library Science. Londres: Routledge, 2003.

FIGUEIREDO, N. Estudos de uso e usuários da informação. Brasília: IBICT, 1994.

FLUSSER, V. A biblioteca como um instrumento de ação cultural. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, Belo Horizonte, v. 12, n.2, p. 145-169, set. 1983.

FONSECA, E. Introdução à biblioteconomia. São Paulo: Pioneira, 1992.

GÓMEZ MARTÍNEZ, J. Dos museologías: las tradiciones anglosajona y mediterránea – diferencias y contactos. Gijón: Trea, 2006.

GONZÁLEZ DE GÓMEZ, M. Metodologia de pesquisa no campo da Ciência da Informação. DataGramaZero, v.1, n.6, dez. 2000.

HOOPER-GREEENHILL, Eilean. Los museos y sus visitantes. Gijón: Trea, 1998.

JARDIM, J.M., FONSECA, M.O. Estudos de usuários em arquivos: em busca de um estado da arte. Datagramazero, v. 5, n. 5, out. 2004.

Page 38: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 38

JARDIM, J. M. Sistemas e políticas públicas de arquivos no Brasil. Niterói: EdUff, 1995.

LOPES, J. Da democratização à democracia cultural. Porto: Profedições, 2007.

LÓPEZ CÓZAR, E. La investigación en biblioteconomía y documentación. Gijón: Trea, 2002.

MARÍN TORRES, M. T. Historia de la documentación museológica: la gestión de la memoria artística. Gijón: TREA, 2002.

MARTY, P.; JONES, K. (orgs). Museum informatics: people, information and technology in museums. Nova Iorque: Routledge, 2008.

MENDES, J. Estudos do patrimônio: museus e educação. Coimbra: Univ. Coimbra, 2009.

MILANESI, L. Biblioteca. São Paulo: Ateliê, 2002.

MURISON, W. The public library: its origins, purpose and significance. Londres: C. Bingley, 1988.

PEARCE, S. (ed). Museums and the appropriation of culture. Londres: Athlone, 1994.

RIBEIRO, F. O acesso à informação nos arquivos. Lisboa: F. C. Gulbenkian; MCT, 2003.

ROWLEY, J. A biblioteca eletrônica. Brasília: Briquet de Lemos, 2002.

SANTACANA MESTRE, J.; HERNÁNDEZ CARDONA, F. Museologia crítica. Gijón: Trea, 2006.

SARACEVIC, T. Ciência da informação: origem, evolução e relações. Perspectivas em Ciência da Informação. Belo Horizonte, v.1, n.1, p. 41-62, jan./jun. 1996.

SILVA, A. M. et al. Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. Porto: Afrontamento, 1998.

SILVA, A. M. A informação: da compreensão do fenômeno e construção do objecto científico. Porto: Afrontamento, 2006.

SOUZA, R. Organização do conhecimento. In: TOUTAIN, Lídia (org). Para entender a ciência da informação. Salvador: EdUFBA, 2007, p. 103-123.

WERSIG, G. Information science: the study of postmodern knowledge usage. Information processing & management, v. 29, n. 02, mar. 1993, p. 229-239.

ZELLER, T. The historical and philosophical foundations of art museum education in América. In: BERRY, N.; MAYER, S. (orgs). Museum education: history, theory and practice. Reston: National Art Education Association, 1989, p. 10-89.

Page 39: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 39

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

O CAMPO DA INFORMAÇÃO

Angelica Alves Marques

Resumo: Esta comunicação apresenta, a partir de uma revisão bibliográfica e análise documental, o histórico de algumas iniciativas internacionais e nacionais voltadas para a harmonização do ensino das disciplinas da informação. Partindo da definição de campo científico de Bourdieu e de jurisdição no sistema de profissões de Abbott, a Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia, Documentação e Ciência da Informação são entendidas como disciplinas independentes que têm por objeto a gênese, organização, comunicação e recuperação da informação. Objetiva apreender as convergências e peculiaridades dessas disciplinas, especialmente da Arquivologia, para o delineamento do campo da informação, entendido como o espaço de alianças e conflitos entre essas disciplinas. Defende a autonomia da Arquivologia como disciplina científica, sem, contudo, perder de vista suas relações extradisciplinares e seus diálogos com as demais disciplinas que lhe são próximas.

Palavras-chave: Arquivologia. Biblioteconomia. Museologia. Ciência da Informação.

1 INTRODUÇÃOHá alguns anos, buscamos compreender a trajetória da Arquivologia como disciplina no Brasil,

a partir do estudo das suas práticas, da história dos arquivos, dos cursos de graduação, das associações de arquivistas e da configuração atual da área, ou seja, dos quadros docentes dos cursos, das pesquisas desenvolvidas na graduação e na pós-graduação com temas arquivísticos e, de certa forma, da sua epistemologia.

Desenvolvida em três fases (projeto de iniciação científica, dissertação e tese), o último estágio da pesquisa voltou-se para a investigação das interlocuções entre a Arquivologia internacional e a nacional, tendo em vista o desenvolvimento da disciplina no Brasil. Evidentemente, o estudo tangenciou a trajetória de outras disciplinas que têm por objeto a informação e que, institucionalmente, compartilham o mesmo espaço acadêmico dos cursos de Arquivologia, comungando, inclusive, objetos de pesquisa.

Desse modo, parte da tese dedicou-se à apreensão dos marcos históricos da Museologia, da Biblioteconomia, da Documentação e da Ciência da Informação (CI). Embora outras disciplinas também tenham por objeto a informação, restringimo-nos a essas quatro áreas (como afins à Arquivologia), considerando a sua vinculação academicoinstitucional. Identificamos aspectos comuns que facilitam os seus diálogos e que, em parte, justificam tal vinculação e, também, pontos específicos que as individualizam.

Page 40: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 40

Afinal, a Arquivologia teria uma identidade disciplinar própria? Ou sua identidade limitar-se-ia às suas aplicações e, consequentemente, poderia ser considerada Ciência da Informação ou uma das Ciências da Informação? Se existem profissões e, mais recentemente, disciplinas que estão envolvidas com a gênese, organização, comunicação e recuperação de documentos/informações, os paradigmas da Arquivologia alinhar-se-iam àqueles dessas disciplinas no campo da informação?

Inspirados e inquietados por essas questões, ainda que não objetivemos respondê-las, retomamos, mediante uma revisão de literatura e análise documental, o histórico de algumas iniciativas internacionais e nacionais voltadas para a harmonização do ensino das disciplinas da informação, ponto de partida para a conjugação das suas convergências e especificidades, além de estímulo para o delineamento do campo da informação, apresentado nesta comunicação.

2 EM BUSCA DE PONTOS COMUNSAs preocupações em torno das relações de cooperação entre as disciplinas que têm por objeto

a gênese, organização, comunicação e recuperação da informação são sistematizadas em 1934, por Paul Otlet, no Traité de Documentation (OTLET, 1934). A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) as valida com a criação do International Council on Archives (ICA), em 1948; com a aproximação entre a Fédération Internationale de Documentation (FID) e a International Federation of Library Associations (IFLA); e com a realização da Conferência Intergovernamental sobre a Planificação das Infraestruturas de Documentação, que marca um “pacto” entre as bibliotecas e os arquivos (MATOS; CUNHA, 2003).

No relatório apresentado à IFLA e à FID, acerca do inquérito sobre a formação profissional dos bibliotecários e documentalistas, Suzanne Briet retoma o problema dessa formação, lembrando o papel dos arquivistas, bibliotecários e curadores de museus como especialistas na preservação e divulgação dos acervos (UNESCO, 1951).

A partir da década de 1960, são realizados alguns eventos internacionais com foco na integração dos serviços de documentação, bibliotecas e arquivos: em Quito (Equador, 1966), Colombo (Sri Lanka, 1967), Kampala (Uganda, 1970) e Cairo (Egito, 1974). Nessa perspectiva, são também feitas consultas sobre a planificação, os métodos aplicáveis e a formação de pessoal desses serviços – Paris, 1972, 1973 e 1974 (CONFERENCE INTERGOUVERNEMENTALE SUR LA PLANIFICATION DES INFRASTRUCTURES NATIONALES EN MATIÈRE DE DOCUMENTATION, DE BIBLIOTHÈQUES ET D’ARCHIVES, 1974).

Em 1972 é realizado, em Washington, o Seminário Interamericano de Integração dos Serviços de Informação de Arquivos, Bibliotecas e Centros de Documentação na América Latina e no Caribe, no âmbito da UNESCO, da Organização dos Estados Americanos (OEA), do Departamento de Estado e Comissão Nacional dos Estados Unidos para a UNESCO, da American Library Association e do Council on Library Resources. Foram declarados os princípios, as conclusões e as recomendações aos governos dos países americanos, considerando-se a responsabilidade do Estado em promover o

Page 41: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 41

acesso à informação (ARQUIVO NACIONAL, 1974).Para facilitar a permuta e a transferência internacional de informação, é criado, em 1973, o

UNESCO’s World Scientific Information Programme (UNISIST) no âmbito da UNESCO (CARNEIRO, 1977).

Alinhado às propostas dessas iniciativas, nos anos 1970, o movimento pela integração das instituições voltadas para a organização e disponibilização de documentos (inicialmente os arquivos, as bibliotecas e os institutos/centros de documentação) se fortalece, liderado pela UNESCO, no sentido de “estabelecer uma forma mais eficaz e flexível, base da cooperação e assistência em apoio aos esforços dessas organizações” (INTERGOVERNMENTAL CONFERENCE ON THE PLANNING OF NATIONAL DOCUMENTATION, LIBRARY AND ARCHIVES INFRASTRUCTURES, 1974, p. 28, tradução nossa).

Exemplo desse esforço é a realização da Intergovernmental Conference on the Planining of National Documentation, Library and Archives Infrastructures, em Paris, no ano de 1974, com o objetivo de proporcionar o compartilhamento de experiências sobre o planejamento coordenado de bibliotecas e arquivos (INTERGOVERNMENTAL CONFERENCE ON THE PLANNING OF NATIONAL DOCUMENTATION, LIBRARY AND ARCHIVES INFRASTRUCTURES, 1974, p. 2, tradução nossa).

O Brasil participa desse evento, no qual é proposto o National Information System (NATIS), como um sistema relacionado às ações da UNESCO voltadas para o entrosamento entre os arquivos e bibliotecas nas infraestruturas nacionais (CARNEIRO, 1977). “O conceito NATIS objetiva ação nacional e internacional como base para uma estrutura geral que abrangerá todos os serviços, que proporcionarão assim informação a todos os setores da comunidade e a todas as categorias de usuários” (ARQUIVO NACIONAL, 1976a, p. 16). Nesse sentido, o mesmo documento inclui os arquivos nos serviços de comunicação.

O ICA, por sua vez, reconhece a necessidade de organização das estruturas de arquivos e de gestão de documentos como responsabilidade do Governo e se coloca à disposição da UNESCO para colaborar em seus esforços para a execução do Programa (ARQUIVO NACIONAL, 1976b).

Em relação aos arquivos, as preocupações centram-se na gestão dos documentos administrativos, intermediários (com destaque para a avaliação) e nos arquivos nacionais, além da microfilmagem e autenticação de documentos (CONFERENCE INTERGOUVERNEMENTALE SUR LA PLANIFICATION DES INFRASTRUCTURES NATIONALES EN MATIÈRE DE DOCUMENTATION, DE BIBLIOTHÈQUES ET D’ARCHIVES, 1974).

Embora a reunião de especialistas para estudar a aplicação desse Sistema no Brasil (Rio de Janeiro, 1975) tenha cogitado apenas os problemas relacionados às bibliotecas (ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS BRASILEIROS, 1977a), parte da justificativa de criação do Sistema Nacional de Arquivos brasileiro é amparada na recomendação dessa Conferência, isto é, “num Sistema Nacional de Documentação, Bibliotecas e Arquivos, ao qual caiba o comando normativo da política arquivística

Page 42: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 42

no País” (ARQUIVO NACIONAL, 1975a, p. 2).É importante ressaltar que o Brasil participa dessa Conferência como estado-membro,

representado por seu embaixador e delegado na UNESCO, pelo então diretor do Arquivo Nacional, pelo ministro dos Negócios Exteriores e pelos consultores técnicos do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD) e do Ministério das Minas e Energia (CONFERENCE INTERGOUVERNEMENTALE SUR LA PLANIFICATION DES INFRASTRUCTURES NATIONALES EN MATIÈRE DE DOCUMENTATION, DE BIBLIOTHÈQUES ET D’ARCHIVES, 1975).

Tendo em vista um tronco comum para o ensino de Documentação, Biblioteconomia e Arquivologia, é apresentado o seguinte quadro:

Quadro 1: Proposta de tronco comum nos estudos de documentalistas, bibliotecários e arquivistas

Documentação Biblioteconomia Arquivologia

Fundamentos (histórico,

desenvolvimento, evolução dos

conceitos)

Sociologia da informaçãoHistória da Informação CientíficaTeoria da comunicação Métodos de pesquisa

A biblioteca na sociedadeHistória das bibliotecas e educação a esse respeitoLegislação relativa às bibliotecasEstudos de usuáriosMétodos de pesquisa

Organização administrativa (passado e presente): geografia históricaHistória dos arquivosLegislação relativa aos arquivosTeoria da ArquivologiaMétodos de pesquisa

Materiais

Formas de documentação: periódicos, relatórios, novas mídias, bases de dadosServiços de informação

Formas de documentação: publicações, livros, periódicos, novas mídiasFerramentas bibliográficasHistória das artes do livro

Formas de documentação: dossiês, registros, manuscritos, cartas, material audiovisual, dossiês legíveis por máquinas, etc.Categorias de dossiês: públicos, privados, notariais, etc.Sistemas de registro (organização dos arquivos intermediários)

Page 43: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 43

Métodos (organização, interpretação, avaliação e

utilização dos materiais)

Indexação, resumos analíticos, análise de conteúdo, armazenamento, linguagens documentárias e sistemas de pesquisa documentáriaOrganização de bases de dadosDifusão de informaçãoServiços destinados aos usuários

Processos de consultaOrganização do conhecimentoIndexação, resumos analíticos, análise de conteúdoServiços de leitoresAnálise sistêmica

Gestão de dossiês e depósitos intermediáriosTriagemClassificação e inventário, instrumentos de pesquisaOperações e serviços destinados aos usuários

Gestão (fixação de objetivos e

métodos)

Gestão e administraçãoPessoalAspectos jurídicosPlanificação de sistemas

Gestão e administraçãoPessoalTipos de operaçõesOrganização de sistemas

Gestão e administraçãoPessoalAspectos jurídicosOrganização e planificação de sistemas

TecnologiaAplicações informáticasReprografia

Aplicações informáticasReprografiaConservação e restauração

Aplicações informáticasReprografiaConservação e restauração

Fonte: adaptação do quadro apresentado na Conférence Intergouvernementale sur la Planification des Infrastructures Nationales en matière de Documentation, de Bibliothèques et d’archives (1974, tradução nossa).

A partir desse quadro, há a recomendação de uma formação regular comum, complementada com cursos de aperfeiçoamento, atualização e reciclagem, reforçada pelo movimento para a harmonização das formações nessas áreas de informação, que ganha fôlego com a multiplicação dos estudos e dos encontros (COUTURE; MARTINEAU; DUCHARME, 1999).

Em 1976, a UNESCO ratifica essa proposta de harmonização por meio do General Information Programme (PGI). Depois disso, ocorre o Seminaire International sur les stratégies pour le devélopment des archives dans le Tiers Monde, organizado pelo ICA em cooperação com a UNESCO (Berlim, 1979), que, a partir de uma terminologia geopolítica, reconhece a importância da integração parcial das disciplinas e dos profissionais do domínio da informação e documentação. Sintonizado a essas preocupações, o IV Congresso Brasileiro de Arquivologia (CBA) – Rio de Janeiro, 1979 – contemplaria, nas sessões plenárias, a integração dos arquivos nos centros de informação (ARQUIVO NACIONAL, 1980).

Page 44: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 44

No mesmo ano é realizada a Reunión d’experts sur l’harmonisation des programmes de formation en matière d’archives (Paris, 1979), com o fim de se estudar os programas de formação em Arquivologia e as suas relações com os programas de formação teórica e prática em Biblioteconomia e CI. Além dessa reunião, a UNESCO, por meio do programa Records and Archives Management Program (RAMP), realiza uma consulta junto aos especialistas da área (também em Paris, 1979), com o objetivo de melhorar a gestão de documentos (além da sua preservação como herança cultural). As recomendações decorrentes dessa consulta voltam-se para a implementação de políticas e planos, normas e padrões, infraestrutura de desenvolvimento, formação e treinamento de profissionais (EXPERT CONSULTATION ON THE DEVELOPMENT OF A RECORDS AND ARCHIVES MANAGEMENT PROGRAMME (RAMP) WITHIN THE FRAMEWORK OF THE GENERAL INFORMATION PROGRAMME, 1979).

Esses estudos também recebem a atenção dos profissionais e estudiosos da Biblioteconomia, que discutem o tema num seminário da IFLA (Filipinas, 1980). A relevância dos arquivos é, então, reconhecida:

Os arquivos públicos, cuidadosamente conservados, são o instrumento indispensável para administração de uma comunidade. Por sua vez, consignam a gestão dos assuntos públicos e a facilitam, ao mesmo tempo que descrevem as vicissitudes da história humana; por conseguinte, são de interesse para pesquisadores e administradores. Quer sejam secretos ou públicos, constituem um patrimônio e uma propriedade por cuja existência pública inalienável e imprescritível, em geral, zela o Estado. (RIGTH REPORT ON SUCCESSION OF STATES IN RESPECT OF MATTERS OTHER THAN TREATICES, 1976, p. 35).

Em 1980, a FID, o ICA e a IFLA se reúnem na Itália para definir as ações e os programas comuns viáveis. Essas instituições voltam a se reunir em Viena (1983) em torno do tema Gestion des professions de l’information: incidences sur l’enseignement et la formation, quando discutem questões teóricas e práticas que o perpassam (WASSERMAN, 1984).

Nessa mesma perspectiva, a UNESCO organiza, em Paris, o Colloque International sur l’harmonisation des programmes d’enseignement et de formation en Sciences de l’Information, Bibliotheconomie et Archivistique (1984a; 1984b), que, como o próprio nome indica, focaliza a integração do ensino dessas áreas, em nível nacional e regional, considerando que os seus serviços têm em comum a aquisição, preservação e comunicação da informação registrada e, em graus variados, a análise e difusão das informações contidas em seus fundos e coleções. São, também, consideradas suas peculiaridades, determinadas, em grande medida, pela origem e natureza dos materiais tratados.

Dentre as vantagens dessa integração estariam: os benefícios econômicos, a redução de barreiras psicológicas e sociais entre os grupos, a preparação dos estudantes para um mercado flexível, a implementação de uma base tecnológica comum às três disciplinas e o fortalecimento

Page 45: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 45

do status representativo das profissões diante do Governo (TEES5 apud MENDES, 1992, p. 16).Em relação a esse evento, cabe-nos destacar, ainda, a presença da Profª Susana Mueller, então

chefe do Departamento de Biblioteconomia da Universidade de Brasília (UnB), representando o Brasil no âmbito dessas preocupações (COLLOQUE INTERNATIONAL SUR L’HARMONISATION DES PROGRAMMES D’ENSEIGNEMENT ET DE FORMATION EN SCIENCES DE L’INFORMATION, BIBLIOTHECONOMIE ET ARCHIVISTIQUE, 1984b). Ao relatar as discussões e conclusões do evento, Mueller reflete sobre uma possível reunião

em um só conselho profissional [de] todos esses setores envolvidos com serviços de

informação, resguardadas a identidade e a especialidade de cada um, mas todos colaborando

para uma mesma causa – a aquisição, preservação, organização e difusão de material

informacional em vários formatos e suportes. (MUELLER, 1984, p. 164).

Complementarmente, é realizado o Colóquio Internacional sobre Harmonização de Programas de Ensino e Treinamento de Pessoal de Biblioteca, Informação e Arquivo no ano de 1987, em Londres (MENDES, 1992).

Esses eventos propiciam a elaboração de alguns documentos que sintetizam suas preocupações em torno da harmonização das profissões e disciplinas da informação e propõem programas comuns nesse sentido.

Por todas as iniciativas descritas, podemos perceber que a atuação da UNESCO, desde a sua criação em 1946, sempre foi de grande relevância para o desenvolvimento, a organização, a padronização, o estudo e a reflexão das disciplinas da informação. Devemos lembrar que, além dessas ações, e mais especificamente em relação à valorização dos arquivos, a instituição, já no seu primeiro programa, propõe um projeto de criação, em cada estado membro, de um centro de informação sobre os seus arquivos. A criação do ICA, o mais importante órgão de cooperação internacional da área, também ocorre no seu âmbito.

Outro exemplo das relevantes contribuições da UNESCO é o fundo internacional para o desenvolvimento de arquivos, na tentativa de auxiliar os países em desenvolvimento a adotar sistemas nacionais de arquivos eficazes (INTERNATIONAL COUNCIL ON ARCHIVES, 1974).

No Brasil, desde 1923 já existiam preocupações explícitas quanto à necessidade de cooperação entre os profissionais de arquivos, bibliotecas e museus: naquele ano, a Biblioteca Nacional e o Museu Histórico Nacional abrem inscrições para o Curso Técnico, comum a essas duas instituições e ao AN (CASTRO, 2000).

No plano politicoinstitucional, a agência brasileira de fomento que faz a classificação das áreas do conhecimento com finalidades práticas, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), já contemplava a CI, desde 1976, como uma subárea da Comunicação na sua

5 TEES, Miriam. Harmonisation of education and training programmes for library, information and archival personnel: a repport of the colloquium held in London, 9-15 August 1987. IFLA Journal, v. 14, n. 3, p. 243-246, 1988.

Page 46: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 46

Tabela de Áreas do Conhecimento (TAC). Nessa classificação, a CI tinha duas especialidades: 1) os Sistemas da Informação e 2) a Biblioteconomia e Documentação (CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO, 1978a). Na TAC de 1984, a CI aparece como área, denominada “Ciência da Informação, Biblioteconomia e Arquivologia”. Já na TAC em vigor6, a CI compõe, com outras áreas, a grande área das Ciências Sociais Aplicadas e tem como subáreas, a Teoria da Informação, a Biblioteconomia e a Arquivologia (FERNANDEZ, 2008). Essa classificação demonstra a emancipação da CI no campo científico e o seu “domínio” sobre as subáreas que a compõem. Além disso, parece ir ao encontro da proposta internacional de conceber a Ciência da Informação no plural, de forma a agregar as áreas que têm por objeto a informação.

Em 2005, o CNPq, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) compõem uma comissão especial de estudos para propor uma nova TAC7. Considerando a defasagem da tabela em vigor e a “forte tendência de interdisciplinaridade das áreas do conhecimento”, essa comissão deveria, em sintonia com as tendências internacionais e com a comunidade científica, estudar as profissões com base na Organização Internacional do Trabalho (OIT), mapear os problemas das grandes áreas e definir as bases epistemológicas para a nova tabela. Em decorrência dos trabalhos da comissão, o CNPq propõe uma classificação que diferencia, nitidamente, a Arquivologia da CI. No entanto, essa proposta ainda não foi aprovada8, embora a comissão tenha previsto a conclusão dos trabalhos para dezembro do mesmo ano9.

Nas universidades, já observamos a concretização de algumas iniciativas quanto à integração da Arquivologia, da Biblioteconomia e da Museologia na CI: a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a UnB e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) começaram a estudar e a implementar (no caso da UFMG) a integração dos currículos dos três cursos no escopo mais amplo da CI (ARAÚJO; MARQUES; VANZ, 2011).3 PARTICULARIDADES DA ARQUIVOLOGIA

Um dos principais autores que constituíram nossos referenciais teóricos foi Pierre Bourdieu, segundo o qual

O campo científico é sempre o lugar de uma luta, mais ou menos desigual, entre agentes desigualmente dotados de capital específico e, portanto, desigualmente capazes de se apropriarem do produto do trabalho científico que o conjunto dos concorrentes produz pela sua colaboração objetiva ao colocarem em ação o conjunto dos meios de produção científica disponíveis. (BOURDIEU, 1983a, p. 136).

6 As informações quanto à atual TAC encontram-se disponíveis em: <http://www.memoria.cnpq.br/areas/cee/proposta.htm>. Acesso em 19 jul. 2011.7 Portaria conjunta do CNPq, CAPES e FINEP, de 2 de março de 2005.8 Informações disponíveis em: <http://www.memoria.cnpq.br/areas/cee/proposta.htm>. Acesso em 19 jul/2011.9 Memória da 2ª reunião da comissão especial de estudos das áreas do conhecimento realizada no Rio de Janeiro, na sede da Academia Brasileira de Ciências, nos dias 30 e 31 de maio de 2005.

Page 47: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 47

Considerando a luta concorrencial que perpassa o campo científico, buscamos situar e compreender a formação e configuração da Arquivologia no âmbito das disciplinas da informação que comungam paradigmas comuns em torno da gênese, organização, comunicação e recuperação da informação. Para compreender as relações entre essas disciplinas, retomamos, novamente, Bourdieu (2001). Para ele, a noção de campo científico contempla, simultaneamente, a unidade existente na ciência e as diversas posições que as diferentes disciplinas ocupam no espaço, isto é, sua hierarquização. O que acontece no campo depende dessas posições e este pode ser descrito como um conjunto de campos locais (disciplinas), que têm em comum interesses e princípios mínimos.

Assim vamos, num primeiro momento, ao encontro do campo científico e profissional da CI, entendido, mais especificamente, como subcampo, entrecruzado com os daquelas disciplinas que lhe são próximas e que também lidam com a informação (a Arquivologia, a Biblioteconomia, a Documentação e a Museologia); e, num segundo momento, do campo da informação, que congrega essas disciplinas, numa abordagem mais ampla.

Nesse sentido, não distinguimos os (sub)campos definidos por essas disciplinas (o que exigiria um estudo epistemológico mais profundo), mas procuramos entender suas relações de parceria, cooperação e conflitos, como profissões que passaram por processos de profissionalização e institucionalização até conquistarem seu espaço e estatuto científico.

O estudo de Abbott (1988) mostrou-se valioso na apresentação e análise da história das profissões, sua formação em sistemas na sua busca por “jurisdição no sistema de profissões”. O autor considera as influências de forças internas e externas ao sistema de profissões, ideia que parece ser compatível com a proposta de campo transcientífico de Knorr-Cetina (1981)10 e com Bourdieu (1983a), quanto às lutas internas ao campo científico.

A partir das reflexões desses autores, pudemos compreender a trajetória da profissão de arquivista e a sua formação acadêmica. Observamos que a concentração dos documentos em arquivos centrais a partir do século XVI demandou profissionais especializados para gerir as grandes massas documentais acumuladas. Silva et al (1999) explicam que, a partir daí, a profissão de arquivista começa a ser regulamentada, com normas que, em alguns casos, já contemplariam os postulados da disciplina que desenvolver-se-ia mais tarde.

A partir do século XVII, Duchein lembra que:

Como as administrações locais e centrais multiplicaram e se tornaram mais especializadas, sua produção de registros cresceu em importância. Tornou-se necessário criar sistemas de conservação, arranjo, descrição e gestão geral em larga escala para as novas massas de pergaminhos e papéis. Gradualmente, a profissão de arquivista tornou-se reconhecida como uma atividade distinta, exigindo um savoir-faire especializado. (DUCHEIN, 1992, p. 16, tradução nossa).

É assim que a profissão de arquivista, uma prática tão antiga, passa por distintas configurações de

10 Para a autora, o campo transcientífi co “remete a redes de relacionamentos simbólicos que em princípio vão além dos limites de uma Para a autora, o campo transcientífico “remete a redes de relacionamentos simbólicos que em princípio vão além dos limites de uma comunidade científica ou do campo científico” (KNORR-CETINA, 1981, p. 81-82, tradução nossa).

Page 48: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 48

acordo com as mudanças ocorridas, sobretudo a partir do século XIX: a criação dos grandes depósitos dos arquivos nacionais, que desprezavam o Princípio da Proveniência11 em nome de uma centralização; o aumento da produção e acumulação de documentos, agravado com o aparecimento da fotografia que favoreceu a multiplicação das cópias; o surgimento dos documentos eletrônicos e os desafios quanto ao seu acesso (DUCHEIN, 1993). Segundo o mesmo autor, uma das consequências dessa evolução foi a crescente especialização e autonomia dos arquivistas, com a criação de instituições cada vez mais especializadas e de escolas de formação em vários países a partir da segunda metade daquele século, além da maior sensibilização em torno dos princípios básicos da Arquivologia (DUCHEIN, 1992).

Couture, Ducharme e Rousseau (1988) lembram que é um pouco mais tarde, na primeira metade do século XX, que estão as bases da profissionalização do pessoal da Arquivologia:

Tributária de um estatuto de ciência auxiliar que lhe fora atribuído pela História positivista do século dezenove, a Arquivologia tradicional, submissa às pressões exercidas pela criação massiva de documentos pelas administrações, teve de inventar novos métodos e pensar novas intervenções para canalizar e racionalizar o fluxo incessante. (COUTURE; DUCHARME; ROUSSEAU, 1988, p. 51, tradução nossa).

A área então se divide em dois segmentos: um para atender às demandas administrativas, mais voltadas para a gestão de documentos; e outro para dar conta das demandas de pesquisas históricas. Essa divisão apresenta-se de forma mais clara nos Estados Unidos, embora a partir da Segunda Guerra Mundial tenha se repercutido no mundo.

À frente da especialização da profissão do arquivista estariam, grosso modo, duas correntes de formação: 1) aquela liderada pelos países europeus, fiéis aos arquivos históricos, cuja formação dá-se independentemente da Biblioteconomia; 2) e aquela de fora da Europa, que tende a conceber a formação do arquivista mais próxima à do profissional da informação (principalmente do bibliotecário/documentalista). Para Duchein (1993), essas correntes, aparentemente antagônicas, sintetizam de forma complementar dois papéis dos arquivos, como conservadores da memória histórica e como elementos da informação corrente.

Essa constatação parece ir ao encontro das reflexões canadenses, difundidas sobretudo a partir dos anos 1980 por meio da proposta da “Arquivística Integrada”, quando se verifica uma tendência geral de valorizar os arquivos como recursos de informação vitais nas instituições. Decorrentes dessa valorização, são verificadas lacunas na organização de documentos administrativos, que, segundo Couture, Ducharme e Rousseau (1988), aguçariam os problemas de identidade da área.

Entretanto, esses estudiosos lembram que, se por um lado as associações profissionais distinguiam os arquivos em dois segmentos, as instituições e a legislação arquivística não o faziam. Essa tendência de integração da Arquivologia tradicional com a gestão de documentos configuraria a natureza da profissão do arquivista. Nessa perspectiva, a Arquivologia, por meio de um programa

11 “Princípio básico da arquivologia segundo o qual o arquivo produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser “Princípio básico da arquivologia segundo o qual o arquivo produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser misturado aos de outras entidades produtoras” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 136).

Page 49: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 49

centrado na missão institucional e integrado à sua política de gestão da informação, passa a contribuir, de forma particular, para a organização de documentos. É nesse sentido que os autores defendem a perspectiva integrada da área, bem como suas definições internas estratégicas e suas alianças com outras disciplinas.

De fato, a informação orgânica registrada, objeto do olhar arquivístico, embora não seja a única definidora das decisões tomadas pelas instituições, contribui valiosamente para tal, como afirma Moreno:

Considerando-se que a informação estratégica é aquela capaz de apoiar às principais atividades de uma organização; é essencial para a tomada de decisão, reduzindo incerteza; e a informação arquivística, por sua vez, também apresenta características similares, então é possível afirmar que as informações estratégicas ou gerenciais amplamente utilizadas pelos administradores para a tomada de decisão nas organizações, sejam elas públicas ou privadas, podem ter uma parcela significativa de informações com característica e natureza arquivística. (MORENO, 2007, p. 9).

A configuração integrada da Arquivologia (considerando o valor administrativo e o valor histórico dos arquivos), como uma das mais recentes tendências, além de propiciar a unidade das intervenções arquivísticas nos documentos, a articulação e estruturação das atividades arquivísticas sob uma política organizacional, de forma a ampliar a definição de arquivo, permite, segundo os canadenses, uma imagem mais forte da área e, consequentemente, o seu reconhecimento social (COUTURE; DUCHARME; ROUSSEAU, 1988).

Se, ao longo da sua trajetória, a Arquivologia teve contribuições relevantes da História na formação dos seus profissionais, estas não foram exclusivas: como afirmam esses autores, outros elementos de formação lhe foram indispensáveis, como aqueles oriundos da Administração, Informática, CI e outras disciplinas especializadas que auxiliam a área na organização de tipos específicos de arquivos.

Há que se acrescentar, ainda, que as percepções acerca da profissão de arquivista variam conforme o país ou região. Assim, as diferenças se dão em razão da tradição arquivística nacional, mais ou menos próxima da História ou da CI (MARÉCHAL; EICHENLAUB12 apud LIMON, 1999-2000).

Ao analisar a trajetória da área, observamos que, se por um lado, a prática arquivística é antiga, por outro, a formação especializada, ou seja, a profissionalização, consolida-se a partir das escolas europeias do século XIX e dos cursos universitários (de graduação e pós-graduação) que se espalham no mundo ao longo do século XX (LIMON, 1999-2000). A partir desse século e, sobretudo a partir das duas guerras mundiais, a formação em Arquivologia desenvolve-se em razão das demandas das instituições arquivísticas e do mundo do trabalho, preocupadas com a gestão de grandes volumes documentais.

É nessa perspectiva que Schaeffer afirma que “O campo arquivístico hoje é, como o foi nas suas origens, uma profissão de praticantes” (SCHAEFFER, 1994, p. 32). Essa afirmação pode, em parte,

12 MARÉCHAL, Michel; EICHENLAUB, Jean-Luc. La formation des archivists en Europe. In: MARÉCHAL, Michel; EICHENLAUB, Jean-Luc. La formation des archivists en Europe. In: Les archives françaises à la veille de l’intégration européene: actes du XXXIe Congrès National des Archives Français, 1990. Paris: Archives Nationales, 1992.

Page 50: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 50

justificar o viés técnico assumido pela área, que na maioria dos países resume-se nas demandas por classificação, avaliação e descrição documental. Evidentemente, esse viés abriga necessidades e desafios teóricos e metodológicos, que, mesmo vagarosamente, têm se desenvolvido assimetricamente no mundo, sobretudo a partir do século XIX. Schaeffer complementa que é, a partir da base teórica, que o arquivista pode avaliar os documentos e disponibilizá-los ao pesquisador ou ao administrador, conforme os interesses de cada um. E é assim que esse profissional pode distinguir-se dos demais que lhe cercam no campo da informação: com a regulamentação da profissão, acompanhada da formação profissional.

Todavia, o autor lembra que, diferentemente das profissões consolidadas há mais tempo, a Arquivologia não tem uma tradição que associe formação universitária com a profissionalização. Como vimos, essa associação acontece tardiamente e acaba desencadeando um distanciamento entre a teoria e a prática. Esse distanciamento, por sua vez, retoma as questões iniciais, demandando uma aproximação entre as duas vertentes, como novamente pontua Schaeffer (1994, p. 27): mesmo no âmbito da formação acadêmica, não se deve dispensar a prática. Vale lembrar que a prática arquivística ocorre em instituições variadas e em situações de compartilhamento de experiências com diversos profissionais, sendo frequentes as relações com os demais profissionais da informação.4 O CAMPO DA INFORMAÇÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta do CNPq de separação da CI e da Arquivologia nos instiga à reflexão. Talvez, a nova concepção dessa disciplina como uma área do conhecimento, independente da CI e diretamente ligada à nova grande área Ciências Socialmente Aplicáveis – ainda que seja questionável esta última denominação –, dê um novo rumo à configuração científica da Arquivologia no Brasil. Afinal, como afirma Bourdieu, “Não há ‘escolha’ científica [...] que não seja uma estratégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro propriamente científico, isto é, a obtenção do reconhecimento dos pares-concorrentes” (BOURDIEU, 1983a, p. 126-127).

Delsalle (1998), por sua vez, nos lembra que a especificidade e autonomia da Arquivologia em relação a outras áreas aparecem nuançadas nos diferentes países. Embora não exista consenso entre os estudiosos das disciplinas da informação sobre a definição de fronteiras entre essas disciplinas, reconhecemos suas relações extradisciplinares, permeadas por encontros e desencontros. Todavia, gostaríamos de destacar suas particularidades, considerando:

• suas trajetórias (no caso dos arquivos, bibliotecas e museus, desde a Antiguidade, como espaços voltados para a guarda de documentos, a preservação da memória e, em alguns casos, como locais reservados para o estudo que, mais tarde, teriam suas práticas estudadas por disciplinas que tornar-se-iam científicas e regulamentadas por leis que demarcariam a jurisdição das diferentes profissões – arquivistas, bibliotecários e museólogos);

• seus objetos, que têm naturezas e objetivos distintos e, consequentemente, organização diferenciada segundo métodos específicos. Nessa perspectiva, devemos realçar que, embora os arquivos tenham funções culturais e sociais, sua produção/acumulação é orgânica, isto é,

Page 51: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 51

decorre das atividades de uma instituição ou pessoa e, portanto, os documentos de arquivo devem ser classificados, avaliados, descritos, conservados/preservados e difundidos tendo-se em vista a manutenção de informações relativas ao seu contexto de criação.

Mediante a combinação desses aspectos, defendemos a autonomia da Arquivologia como disciplina. A profissão de arquivista desenvolveu-se ao longo do tempo nas diversas sociedades, na medida em que evoluía a concepção da natureza dos documentos que deveriam ser conservados e o tipo de informação que se procurava. Sua especialização diante de outras profissões parte de uma origem mais ou menos indistinta entre as profissões de notário, ajudante de notário, escrivão, bibliotecário e documentalista. Aos poucos, as regras vão se formando, ligadas às práticas administrativas próprias de cada instituição e de cada país. A partir do século XIX, os estudiosos e profissionais da área começam a redigir obras sobre a sua prática, na tentativa de consolidar os princípios gerais13. No final daquele século, as técnicas de gestão de arquivos começam a dar espaço a um corpo teórico, aparecendo os grandes manuais que consubstanciariam as bases teóricas da Arquivologia (DUCHEIN, 1993). Dos primeiros registros humanos formadores dos arquivos até a inserção da Arquivologia nas universidades e sua atual configuração como campo científico-transcientífico-discursivo, verificamos discursos mais ou menos homogêneos/articulados, perpassados por habitus (BOURDIEU, 1983b; 2001)14 decorrentes de contingências históricas, que, por sua vez, passaram a caracterizar paradigmas, modelos, correntes, tradições e tendências do pensamento arquivístico internacional.

Há, portanto, que se considerar a amplitude e a complexidade do objeto (informação) nos seus desdobramentos comuns e específicos, bem como as iniciativas de diálogo e cooperação entre as disciplinas da informação (ver ações da UNESCO nesse sentido) e as tentativas de delimitação de fronteiras profissionais e científicas (legislação de regulamentação das profissões e tabelas de áreas do conhecimento).

Conjugando esses fatores, podemos observar que, por um lado, as características gerais do objeto propiciam a interação das diferentes profissões e disciplinas; por outro, seus traços específicos as individualizam. Considerando seus pontos comuns e singulares, propomos, então, uma abordagem que não hierarquize a Documentação, a CI, a Biblioteconomia, a Museologia e a Arquivologia, mas que combine suas particularidades, respeitando suas trajetórias, práticas e avanços científicos. Assim, com base em Bourdieu, acreditamos que as disciplinas que têm por objeto a informação constituem, a partir da sua busca por autonomia científica, um campo comum, espaço de parcerias, mas também de conflitos.

Nessa perspectiva, o campo da informação é entendido como o campo científico e profissional que abriga as disciplinas que têm por objeto a gênese, organização, comunicação e disponibilização da informação. Nele, estão entrecruzadas as trajetórias da Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia,

13 Segundo Fonseca (2004), alguns estudiosos afi rmam que essas obras datam do século XVI. Segundo Fonseca (2004), alguns estudiosos afirmam que essas obras datam do século XVI.14 Ao explicitar a noção de habitus, o pesquisador articula passado (reprodução de estruturas objetivas) e futuro (objetivos contemplados num projeto): a estrutura objetiva que define as condições sociais de sua produção é conjugada com as condições de exercício desse “habitus como transcendental histórico”, no qual ele está a priori, como estrutura estruturada e produzida por toda uma série de aprendizagens comuns ou individuais (BOURDIEU, 2001).

Page 52: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 52

Documentação e, mais recentemente, da CI, como (sub/inter)campos simultaneamente parceiros, cooperativos, conflitantes, relativamente comuns e singulares.

Assim como o faríamos com a biblioteca, o museu, o centro de informação/documentação, podemos apreender o singular papel do arquivo no contexto organizacional: na contribuição do documento arquivístico como prova que apoia a administração e auxilia a preservação da memória15. Ou seja, o documento de arquivo é prova porque é produzido, recebido e acumulado no desenvolvimento das atividades de uma instituição/pessoa e, portanto, permite o registro da sua memória como processo. É dessa forma que se dá a construção do conhecimento pela preservação não fragmentada dos registros de memória, que Derrida (1997) chama de “blocos mágicos do passado”16. É como informação orgânica registrada que o documento de arquivo contribui, singularmente, para a gestão da informação nas organizações: como um auto-retrato institucional, não completo, mas único.

Evidentemente, a exemplo de Couture, Ducharme e Rousseau (1988), vislumbramos relações de parceria, cooperação (e por quê não de conflito?) entre a Arquivologia e essas disciplinas, sem, contudo, concebê-las como de subordinação desta a qualquer outra área. Afinal, a interdisciplinaridade (e suas variações) parece ser uma característica intrínseca à Arquivologia, considerando que os arquivos são decorrentes de atividades institucionais e pessoais diversas.

Abstract: This communication presents, beginning with a bibliographical review and a documental analysis, the history of some international and national initiatives aimed at harmonizing the teaching of information disciplines. Starting with Bordieu’s definition of scientific field and Abbott’s definition of jurisdiction in the system of professions, Archival Science, Library Science, Museology, Documentation and Information Science are understood as independent disciplines that purport information genesis, organization, communication, and retrieval. The goal hereunder is to apprehend the convergences and peculiarities of these disciplines, especially of Archival Science, for outlining the information field, seen as the space for alliances and conflicts among these disciplines. This work also supports the autonomy of Archival Science as scientific discipline, without, notwithstanding, disregarding its extra-disciplinary relations and its dialogues with the other proximate disciplines.

Keywords: Archival Science. Library Science. Museology. Information Science.

REFERÊNCIAS

ABBOTT, Andrew. The system of professions: an essay on the division of expert labor. Chicago/Londres: Universidade de Chicago, 1988.

ARAUJO, Carlos Alberto Ávila; MARQUES, Angelica Alves da Cunha; VANZ, Samile Andréa Souza.

15 É válido lembrar que o valor de prova dá-se, sobretudo, pela conjugação das características do documento apontadas por Duranti É válido lembrar que o valor de prova dá-se, sobretudo, pela conjugação das características do documento apontadas por Duranti (1994) no contexto da organização: imparcialidade, autenticidade, naturalidade, interrelacionamento e unicidade.16 Referência de Derrida à maneira pela qual Freud pensava representar a sua memória, isto é, por meio dos seus escritos. Referência de Derrida à maneira pela qual Freud pensava representar a sua memória, isto é, por meio dos seus escritos.

Page 53: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 53

Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia integradas na Ciência da Informação: as experiências da UFMG, da UnB e da UFRGS. Ponto de Acesso, v. 5, p. 85-108, 2011.

ARQUIVO NACIONAL. Mensário do Arquivo Nacional, ano 5, n. 9, Rio de Janeiro, set/1974.

____________________. Mensário do Arquivo Nacional, ano 6, n. 3, Rio de Janeiro, mar/1975.

____________________. Mensário do Arquivo Nacional, ano 7, n. 6, Rio de Janeiro, jun/1976a.

____________________. Mensário do Arquivo Nacional, ano 7, n. 1, Rio de Janeiro, jan/1976b.

____________________. Mensário do Arquivo Nacional, ano 11, n. 1, Rio de Janeiro, jan/1980.

____________________. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS BRASILEIROS. Arquivo & Administração, v. 5, n. 3, Rio de Janeiro, dez. 1977.

BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983a, p. 122-155.

________________. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983b, p. 46-81.

________________. Science de la science et réflexivité: Cours du Collège de France 2000-2001. Paris: Raisons d’agir, 2001.

CARNEIRO, Paulo. A UNESCO e a informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 6, n. 1, p. 3-8, 1977.

CASTRO, Augusto. História da Biblioteconomia brasileira: perspectiva histórica. Brasília: Thesaurus, 2000.

COLLOQUE INTERNATIONAL SUR L’HARMONISATION DES PROGRAMMES D’ENSEIGNEMENT ET DE FORMATION EN SCIENCES DE L’INFORMATION, BIBLIOTHECONOMIE ET ARCHIVISTIQUE, 1984, Paris. Declaration liminaire. Paris: Unesco, 1984a. 12 p.

COLLOQUE INTERNATIONAL SUR L’HARMONISATION DES PROGRAMMES D’ENSEIGNEMENT ET DE FORMATION EN SCIENCES DE L’INFORMATION, BIBLIOTHECONOMIE ET ARCHIVISTIQUE, 1984, Paris. Rapport final. Paris: Unesco, 1984b. 5 p.

CONFERENCE INTERGOUVERNEMENTALE SUR LA PLANIFICATION DES INFRASTRUCTURES NATIONALES EN MATIERE DE DOCUMENTATION, DE BIBLIOTHEQUES ET D’ARCHIVES, 1974, Paris. Document de travail. Paris: Unesco, 1974. 56 p.

Page 54: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 54

CONFERENCE INTERGOUVERNEMENTALE SUR LA PLANIFICATION DES INFRASTRUCTURES NATIONALES EN MATIERE DE DOCUMENTATION, DE BIBLIOTEQUES ET D’ARCHIVES, 1974, Paris. Rapport final. Paris: Unesco, 1975. 67 p.

CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Classificação das áreas do conhecimento. Cadernos de Informação em Ciência e Tecnologia, n. 1, jun./1978.

COUTURE, Carol; DUCHARME, Daniel; ROUSSEAU, Jean-Yves. L’Archivistique a-t-elle trouvé son identité? Argus, Quebec, juin 1988, v. 17, n. 2, p. 51-60.

_______________; MARTINEAU, Jocelyne; DUCHARME, Daniel. A formação e a pesquisa em arquivística no mundo contemporâneo. Tradução Luís Carlos Lopes. Brasília: FINATEC, 1999.

DELSALLE, Paul. Une histoire de l’Archivistique. Quebec: Université du Quebéc, 1998.

DERRIDA, Jacques. Mal de archivo: una impresión freudiana. Madrid: Trotta, 1997.

DUCHEIN, Michel. The history of European Archives and the development of the Archival Profession in Europe. American Archivist, Chicago, v. 55, winter, 1992.

_______________. Archives, archivistes, Archivistique: définitions et problématique. In: FAVIER, Jean. La pratique archivistique française. Paris: Archives Nationales, 1993, p. 19-39.DURANTI, Luciana. Registros documentais contemporâneos como prova de ação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 49-64, jan./jun. 1994.EXPERT CONSULTATION ON THE DEVELOPMENT OF A RECORDS AND ARCHIVES MANAGEMENT PROGRAMME (RAMP) WITHIN THE FRAMEWORK OF THE GENERAL INFORMATION PROGRAMME, 1979, Paris. Final Report. Paris: Unesco, 1979. 35 p.FERNANDEZ, Rosali. A Ciência da Informação como área do conhecimento e de fomento no CNPq. In: Encontro Nacional de Ensino e Pesquisa em Informação, 8., Salvador, 2008. Anais... Salvador, 2008.FONSECA, Maria Odila Kahl. Arquivologia e Ciência da Informação: (re)definição de marcos interdisciplinares. 2004. 181 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.INTERNATIONAL COUNCIL ON ARCHIVES. International Archival Development Fund / Les Fonds International pour le developpement des Archives. [S.l.]: International Council on Archives, 1974. 1v.INTERGOVERNMENTAL CONFERENCE ON THE PLANNING OF NATIONAL DOCUMENTATION, LIBRARY AND ARCHIVES INFRASTRUCTURES, 1974, Paris. National Information System (NATIS): objectives for national and international action. Paris: UNESCO, 1974. 32 p.KNORR-CETINA, Karin D. The scientist as a socially situated reasoned: from scientific communities to transscientific fields. In: ___________________. The manufacture of knowledge: an essay on the Constructivist and Contextual Nature of Science. Oxford: Pergamon, 1981.LIMON, Marie-Françoise. La poursuite du dévelopment et de la formation en archivistique. Archives, Quebec, v. 31, n. 3, 1999-2000.MATOS, Maria Teresa Navarro de Brito; CUNHA, Vanda Angelica da. Notas Acerca da Convergência

Page 55: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 55

da Formação Acadêmica e Profissional entre a Arquivologia, a Biblioteconomia e a Ciência da Informação. In: IV CINFORM, 2003, Salvador. Anais... Salvador : UFBA/ICI, 2003. p. 167-177.MENDES, Eliane Manhães. Tendências para a harmonização de programas de ensino de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia no Brasil: um estudo DELFOS. 1992. 300 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade de Brasília, Brasília, 1992.MORENO, Nádina Aparecida. A informação arquivística e o processo de tomada de decisão. Informação e Sociedade, João Pessoa, v. 17, n. 1, p. 9-19, jan./abr. 2007.MUELLER, Suzana P. M. Em busca de uma base comum para a formação profissional em Biblioteconomia, Ciência da Informação e Arquivologia: relato de um simpósio promovido pela UNESCO. Revista Biblioteconomia de Brasília, Brasília, v. 12, n. 2, jul./dez. 1984, p. 157-165.OTLET, Paul. Traité de Documentation: le livre sur le livre, theorie et pratique. Bruxelles: Mundaneum, 1934.RIGTH REPORT ON SUCCESSION OF STATES IN RESPECT OF MATTERS OTHER THAN TREATICES. Draft Articles with Commentaries on Succession to State Property, by Mohmammed Bedjaoui, Special Rapporteur, Document A/DN. 4/292, 8 de abril de 1976.SCHAEFFER, Roy. From craft to profession: the evolution of Archival Education and Theory in North America. Archivaria, Toronto, v. 37, Spring 1994.SILVA, Armando Malheiro da. et al. Arquivística: teoria e prática de uma Ciência da Informação. Porto: Afrontamento, 1999.UNESCO. Enquiry concerning the professional education of librarians and documentalists. Final Report presented by Mrs. Suzane Briet to the Joint Committee of the International Federation of Library Associations and of the International Federation for Documentation. Paris, 1951.WASSERMAN, Paul. The teaching of management as a subject for the preparation of librarians, documentalists, archivists and other information specialists. Paris: UNESCO, 1984.

Page 56: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 56

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

O IMPERATIVO MIMÉTICO: A FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO E O CAMINHO DA QUINTA IMITAÇÃO

Gustavo Silva Saldanha

RESUMOO texto desenvolve uma análise filosófica do conceito de mimese inserido na filosofia da

organização dos saberes como uma unidade fundamental para o pensamento histórico da Ciência da Informação. É revisada a noção de mimese no contexto da Antiguidade, demarcando a rejeição à imitação manifestada por Platão e a abordagem aristotélica sobre as representações. Os fundamentos dos estudos informacionais são revisados a partir da presença determinante deste conceito em sua formalização. Três abordagens são investigadas neste contexto: Gutenberg e a prensa; Otlet e o livro; Bush e o Memex. O trabalho conclui demarcando a dupla significação de uma fundamentação mimética para o campo, a saber, representação e educação.

Palavras-chave: Filosofia da Ciência da Informação – Epistemologia - Filosofia da Informação - Mimese

1 INTRODUÇÃORemota, a preocupação com o discurso sobre a mimese atravessa os séculos e pode ser observada

como uma das questões que conferem vida à própria reflexão filosófica em seus primórdios. É sobre a abordagem da imitação que Platão se debruça para distinguir o mundo inteligível do mundo corruptível – no léxico de Lovejoy (2005), outra-mundanidade e esta-mundanidade, respectivamente. No campo informacional, esta reflexão se apresenta não apenas como objeto importante, mas, muita das vezes, como espaço privilegiado de produção de um domínio distinto. A condição da mimese no contexto de formalização de discursos institucionalizados em terminologias que abrangem as noções de bibliologia, de bibliografia, de biblioteconomia, de documentação e de ciência da informação, pode ser tomada como, no mínimo, fundamental em nosso discurso epistemológico. Recentemente, Floridi (2002), ao discutir uma “filosofia da informação”, aponta que é possível reconstituir a “história do conceito informação” muito antes de seu significante se tornar legitimado. Em seu olhar, é “perfeitamente legítimo” falar em uma “filosofia da informação” no passado, antes da “revolução informacional”. Em nossa visão, esta genealogia conceitual toca diretamente na mimese como unidade estrutural da organização dos saberes – OS.

Percebendo o surgimento dos traços semânticos da CI enquanto arte de um organizador de saberes, surgida na Antiguidade, quando aparecem os primeiros instrumentos que transcendem a

Page 57: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 57

prática irreflexiva, como o catálogo, o reconhecimento do conceito de mimese nos estudos da informação pode ser interligado ao próprio leit motiv da travessia da história das ideias acerca da noção e da instrumentalização da informação enquanto um meta-discurso – a meta-informação que leva ao meta-conhecimento transversal da OS (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996). Temos aqui a “questão do registro” – de onde deriva a “questão do livro” – como essencial para o fazer/refletir do artífice da OS.

Sob, para e pelo conceito de mimese, a prática meta-informacional se desenvolve, ganhando a formalização de “ciência” nos séculos XIX e XX. Explicitamente aplicado em disciplinas fundacionais da CI, como Reprografia, Preservação, Catalogação, Classificação, Recuperação da Informação – RI - e Comunicação Científica, o conceito pode ser, na verdade, observado como uma sombra que perpassa a linha de atuação da prática da OS. De uma maneira mais clara, este conceito é fundamental quando chegamos até a noção de informação elaborada na epistemologia da CI a partir dos anos 1960.

À primeira vista, a questão que se coloca ao campo está envolvida com a noção de cópia, que se desdobra em setores cruciais do desenvolvimento do discurso científico da CI, como acesso, direitos autorais, tecnologia da informação, censura, e, naturalmente, preservação. Ao tratar de mimese, tratamos, desde Aristóteles, de aprendizagem – apropriação de significado esta que recai em toda tentativa novecentista de formalização de uma ciência para a informação, principalmente em sua face cognitiva. No entanto, o desenvolvimento do discurso da OS acompanha um percurso que desdobra-se em uma cadeia de compreensão da mimese iniciada por Platão em diálogos como Górgias, Fedro e Sofista, tendo continuidade na República. Esta cadeia conduz à constituição da meta-informação como objeto da epistemologia da CI, representada em ferramentas como tesauros e ontologias, em práticas como o mencionado serviço de referência e os estudos de usuários, em conceitos como informação e conhecimento.

Procuramos aqui demonstrar que a reflexão sobre a mimese é um terreno fértil de discussão, capaz de ampliar as possibilidades de interpretação de nossas análises histórica, teórica e prática. Mais do que isto, afirmamos a relevância do conceito para a própria filosofia da CI, identificando-o como motor diferencial para reflexão da filosofia da informação. Nosso percurso observa a seguinte linha de reflexão: a) reconhecimento da conceituação platônica de mimese e da revisão aristotélica do conceito; b) identificação da mimese nos fundamentos da OS; c) análise da presença de um imperativo mimético na sedimentação dos estudos informacionais.

Seguimos neste estudo a trilha filosófica aberta pela meta-reflexão de Nitecki (1995) sobre a filosofia da OS. O epistemólogo aponta que, apesar de reduzida, a reflexão filosófica no campo permite a identificação de algumas influências estruturais. Dentre elas, o autor reconhece filósofos ocidentais como Francis Bacon e Karl Popper. No entanto, apesar da longa tradição profissional, o coração do campo, para o autor, está ainda fundado na influência da metafísica de Platão, por um lado, e na abordagem empírica de Aristóteles. É a partir de uma análise interpretativa entre ambos, que procuramos construir nossa argumentação.

Page 58: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 58

2 O IMITADO PELO IMITADORPodemos destacar a mimese como tema estrutural para a Filosofia, como também para

inúmeros saberes deste oriundo, como Ciência Política, História, Literatura e Psicanálise. A tradução da noção de mimese do grego para as línguas latinas pode apresentar os significados de imitação, representação, reprodução, dentre outros. Na Grécia platônica, reconhecemos este conceito aplicado à ideia de representação artística, ou seja, no discurso sobre a arte. A estrutura do olhar de Platão sobre a mimese está na crítica da noção a partir da acusação de falsidade – a mimese como conceito que se apresenta como negação da verdade. Encontramos um ponto de vista que toma a imitação como recurso negativo, abrindo margens para a interpretação dos “povos imitadores” como inferiores aos “povos que negam a imitação”.

Contra a mimese o pensamento ocidental viria se constituir, separando “ser” e “imagem do ser”. Entre Platão e Aristóteles, há, porém, um distanciamento claro sobre a noção. Se, por um lado, encontramos sua condenação, por outro, em Aristóteles, reconhecemos a readmissão do conceito no debate filosófico – ou sua afirmação como elemento potencial para a reflexão que se afirma verdadeira. Aristóteles reabilita a mimese afastada da relação com o conhecimento lançada por seu mestre. O estagirita determina uma relação fundamental para compreensão das representações na atualidade: a aproximação entre mimese e aprendizagem. Menos atento ao que deve ou não ser imitado – postura platônica -, Aristóteles pergunta-se pela capacidade mimética presente no homem – “pelo mimeisthai no qual se enraíza a poietiké, entendida como criação de uma obra artística”. (GAGNEBIN, 1993, p. 70)

Platão, na tentativa de cura da cidade, postula a doutrina de negação da poesia de caráter mimético (PLATÃO, 595a, 2008, p. 449). Para o filósofo da Academia, os imitadores que atuam sob a estratégia da mimese são destruidores da inteligência dos ouvintes. Para conceituar a expressão mimética, Platão recorre ao clássico exemplo da cama (PLATÃO, 596a-597b , 2008, p. 450-453). Há uma ideia de cama, atualizada pelo artífice que, baseado nesta ideia, produz o móvel doméstico. Temos também, como um “fabricante” de “camas”, o pintor. Porém, este não realiza a verdade da cama a partir da ideia, mas da cópia da ideia, ou seja, da cama do artífice. Assim, ele atua pelas aparências. Nesta cadeia mimética, há três formas de cama: a “natural” (o conceito), a do artífice e aquela do pintor. Esta última, dista da “verdadeira cama” – a “cama natural” – no mínimo três pontos (PLATÃO, 597d , 2008, p. 454). É sob esta avaliação que Platão conclui que a arte de imitar está longe da verdade e que o criador de representações, o imitador, nada entende, e apenas reconhece/reproduz aparências.

No Fedro, Platão (2000) emprega a ironia, na abertura do diálogo, para criticar a imitação em uma dupla significação: tanto na capacidade de reprodução oral dos discursos, como na capacidade mais distante ainda da verdade do discurso escrito – imitar a imitação do manuscrito. Na cadeia de distribuição da alma divina detalhada no diálogo, ocupa apenas o sexto patamar o poeta – este, tomado como construtor de imitações. A visão contrária à mimese é sintetizada ao final do diálogo, quando Fedro é interpelado, afirmando que aquele que expõe suas regras por escrito conduzirá um outro ouvinte a tomar o escrito como verdade, atribuindo, em um futuro cada vez mais afastado do “conhecimento verdadeiro”, valor

Page 59: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 59

maior ao escrito que às “essências” que estariam em sua forma. À palavra escrita, sinônimo do discurso morto, opor-se-ia a palavra viva, fruto do discurso inserido na dialética. Está evidenciada no diálogo a preocupação platônica com os riscos de uma memória ampliada, artificial, capaz de transportar os discursos no tempo. No Sofista, esta racionalidade que se interpõe contrária à mimese é afirmada como uma “demiurgia das imagens” (VERNANT, 2010, p. 53): a mimese nada mais é que uma fabricação (poíesis) de imagens (éidolon).

Segundo Aristóteles, “o imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções) e os homens se comprazem no imitado” (ARISTÓTELES, 1966, p. 71). Segundo o estagirita,

o poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro [...]; por isso, sua imitação incidirá num destes três objetos: coisas quais eram ou quais são, quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais coisas, porém, ele as representa mediante uma elocução que compreende palavras estrangeiras e metáforas, e que, além disso, comporta múltiplas alterações, que efetivamente consentimos ao poeta. (ARISTÓTELES, 1966, p. 99)

A Poética, entre os gregos, representava a arte produtiva, ou, arte que produz imagens, ou, ainda, ciência da produção. Tratava-se, pois, da “arte da imitação das coisas sensíveis ou dos acontecimentos que se desenrolam no mundo sensível, constituindo, antes, a recusa de ultrapassar a aparência sensível em direção à realidade e aos valores” (ABBAGNANO, p. 426, 2000). Em sua Poética, Aristóteles não se preocupa com a questão moral da “reprodução do modelo”, mas atenta para a faculdade de reproduzir, característica essencial do homem. Para Gagnebin (1993, p. 71), duas inovações elementares na Poética de Aristóteles referentes à mimese são destacáveis:

a) a mímesis faz parte da natureza humana, caracteriza em particular o aprendizado humano. [...]; b) ao descrever esse ganho de conhecimento, Aristóteles insiste na sua característica de “reconhecimento”. Os homens olham para as imagens e reconhecem nelas uma representação da realidade; dizem: “esse é tal”. A atividade intelectual aqui remete ao logos, mas não repousa sobre uma relação de causa e efeito; enraíza-se muito mais no reconhecimento de “semelhanças”. (GAGNEBIN, 1993, p. 71)

O caminho da representação à aprendizagem aberto por Aristóteles em sua reflexão sobre a mimese intensifica as possibilidades de reflexão do conceito no âmbito da OS. Em resumo, a partir do olhar aristotélico sobre os efeitos da mimese, podemos chegar aos seguintes apontamentos: a) a mimese pressupõe aprendizagem; b) a mimese pressupõe reconhecer a imitação enquanto forma – eidos - que também leva ao conhecimento; c) a mimese é uma ferramenta para classificar o mundo, pois possibilita perceber as semelhanças; d) a mimese é fonte de prazer (é um jogo).

3 A IMITAÇÃO DO MUNDO IMITADO

A partir da breve exploração do conceito de mimese, podemos conceber uma genealogia de sua aplicação na filosofia da CI. Fragmentos de gestos históricos na Antiguidade e no período medieval podem desvelar a relação entre mimese e OS como experiência intrínseca de uma arte distinta.

Page 60: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 60

Naquilo que nos é mais claro no Ocidente no âmbito da OS, encontramos o significado da Biblioteca da Alexandria como um centro clássico de cópia & exegese (reprodução de meta-informação) e educação. Por sua vez, o conjunto de regras que orientavam a prática da cópia de manuscritos – ars scribendi - no Medievo, esta cópia desenvolvida em um ambiente próprio de reprodução – a scholae scribendi -, em si já sustenta a fundamentação de uma escola mimética em curso no passado.

Não representa, pois, uma coincidência a identificação de “crises” nos regimes epistemológicos do campo quando as transformações técnicas impulsionam saberes miméticos como as artes reprográficas. As galáxias “de Gutenberg” e “da Internet”, para utilizarmos as noções comuns de McLuhan e Castells, podem ser identificadas como frutos de grandes crises da OS, exigindo diferentes modelos de teorização para uma prática remota. Diferentes são os territórios histórico-teóricos da OS que permitem uma reflexão sobre a questão. Correlacionadas com estas “galáxias”, a presença de Johannes Gutenberg, Paul Otlet e Vannevar Bush na contextualização das transformações na prática do organizador dos saberes foi, neste momento, identificada para a análise do conceito de mimese e a construção epistemológica da OS.

3.1 A mimese gutenbergiana: o mundo engolido por um só livro A edição prensada da Bíblia como manifestação primeira da nova técnica de reprodução

de artefatos no século XV coincide com a síntese do Medievo realizada pela Baixa Idade Média: encontro do “Platão poeta” e do “Aristóteles físico”. É contemporâneo a este fato, o aparecimento das universidades e a demanda de novas “classes” como a de professores e a de alunos por cópias de documentos para o ensino e a aprendizagem. Encontramos ainda neste contexto a apropriação aristotélica de Santo Tomás de Aquino e a grande recepção do estagirita no ocidente. De um modo geral, principalmente a partir desta última evidência, temos aqui a transformação do olhar do homem sob a mimese.

A manifestação da prensa de Gutenberg permite-nos encontrar o indício final da reabilitação aristotélica da noção de mimese, demarcada na imitação que abarca as demais imitações do mundo: o livro. Antes disso, a reprodução manuscrita dos textos de Aristóteles nos séculos anteriores ao XV revela mais do que uma (re)apropriação filosófica e uma demanda filológica: com a “chegada” do estagirita ao Ocidente e a leitura tomista sobre a empiria, o homem se abre para um reconhecimento gradual da mimese. Neste sentido, as imitações começam a serem tomadas como expressões não mais nocivas ao saber. A partir do início da era da reprodutibilidade bibliográfica, demarcada pelo Renascimento, instaura-se a vigência de um regime de pensamento que se debruçará sobre a imagem, não para negá-la, mas para buscar nela possibilidades de apreensão crítica e de transformação do homem. A mimese agora é também reconhecimento, educação, prazer. Dentre diferentes avaliações – como as análises sociológicas, políticas, bibliológicas -, a invenção da prensa está atrelada a uma profunda travessia filosófica, demarcada por esta recepção aristotélica dois séculos antes da adaptação de Gutenberg.

Acompanha a apropriação do livro a afirmação da mimese como pressuposto da OS. Os

Page 61: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 61

elementos desdobrados da Poética de Aristóteles são recuperados, principalmente, as relações mimese-aprendizagem, mimese-classificação e, principalmente, mimese-conhecimento. Merece esta última uma caracterização pormenorizada, mesmo que impossível de ser explorada neste espaço. Destacamos a relação confusa, por vezes, entre informação (representação) e conhecimento (tomado ora como abstração, ora como compartilhamento) que se dá na categorização conceitual do léxico epistemológico da CI. Esta relação, por vezes tratada como naturalista, pode ser identificada na reflexão sobre a mimese como conceito fundacional do itinerário das ideias bibliológicas. É através do reconhecimento da mimese como fragmento da filosofia da OS que podemos perceber as razões que ocasionaram a afirmação que a representação (a imitação) é uma espécie de “tradução” do conhecimento, e com ele se assemelha, ainda que com o mesmo não se identifique – mais verossimilhança, menos identidade.

A prática da reprodução dos textos nos fins da Idade Média, ainda no contexto pré-Gutenberg, o início da leitura silenciosa – como se fosse possível adquirir conhecimento através do contato com um livro, questão que, no platonismo do Fedro e do Sofista, poderia ser interpretada como absurdo -, uma declarada obra de Bibliofilia, de Richard de Bury, e uma das primeiras grandes obras de Bibliografia, de Conrad Gesner -, demarcam, em tese, não apenas o reconhecimento da mimese como ferramenta para responder às demandas da passagem do Medievo para a Modernidade, mas também a reapropriação afirmativa do conceito como parte da estrutura de um saber que inicia os passos de sua autonomia: uma epistemologia para OS lança os primeiros marcos de sua formalização. Com a invenção consagrada no nome de Gutenberg, estabelece-se a compreensão de que a mimese é sustentáculo de uma “razão bibliográfica” e que a OS depende da mesma: tem-na como um dever e, mais do que isto, um imperativo. Poucas categorias profissionais, como lembra Peter Burke (2002), seriam tão diretamente atingidas pela prensa como aquela do organizador dos saberes. E esta crise pode ser tomada como a definitiva margem para um auto-reconhecimento: só existe este artífice em um mundo sustentado pela racionalidade mimética; e um mundo sustentado pela racionalidade mimética não existe sem esta arte. O século XIX, que abrigará a formalização dos primeiros cursos de Biblioteconomia e o surgimento da Documentação, será diretamente movido por este imperativo.

3.2 A mimese otletiana: o livro-signo e a máquina bibliológicaA partir dos fins do oitocentos, junto do desdobramento técnico oriundo da invenção da prensa,

Paul Otlet percebe nas novas tecnologias algo que está fundado na filosofia da OS: sua potência mimética. A principal virtualidade bibliológica estaria na capacidade irrestrita de reprodutibilidade. Orientado pela mimese, Otlet concebia as possibilidades de construção da paz mundial baseada no progresso proporcionado pela ciência positivista: a concepção mimética otletiana vai da reprodução de fichas à aplicação de tecnologias como telégrafo para a organização e a transmissão da informação intensivamente imitada.

Diferentes autores apontam como diferença entre a Documentação otletiana e outros discursos interessados na organização dos saberes entre o século XIX e o século XX sua preocupação com

Page 62: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 62

a tecnologia que potencializaria o fluxo informacional e com os sistemas sociais de produção e de disseminação dos conteúdos. Registra-se, pois, uma ênfase na “integração utilitarista da tecnologia e da técnica para fins sociais específicos” (DAY, 2001, p. 10). A hipérbole consagrada do olhar sobre a mimese em seu caráter de representação icônica pode ser encontrada em Shera & Cleveland (1977). Encontramos aqui a Documentação significada, por vezes, como a prática de desenvolvimento e de uso do microfilme, ferramenta mimética compacta fundamental para a história da OS.

Especificamente, o conceito de livro estabelece a relação direta entre o pensamento documentalista e a mimese. Para Otlet, o livro é tanto um objeto físico como um conceito cultural que se estabelece como forma de um conhecimento positivo – um “reflexo natural” do mundo social traduzido nos “fatos”, sendo, por isto, uma encarnação concreta da história. Segundo Day (2010, p. 10), o livro otletiano deveria ser nada mais do que uma reprodução, um sumário, ou, ainda, uma síntese de tudo de melhor que a humanidade pudesse produzir. Ao conceituar o livro como recipiente do conhecimento, o documentalista belga postula a passagem da mimese do conhecimento para a mimese do artefato – sua razão icônica. Esta imagem é determinada a partir de três modelos: o livro como organismo; o livro como modalidade dinâmica de energia; o livro como máquina de (re)produção. (DAY, 2001, p. 13)

Interessa-nos aqui objetivamente o terceiro modelo de reconhecimento da noção de livro. Através dele, Otlet estabelece uma “função mimética” original para o livro. Em outras palavras, o livro, mimese “por excelência” (na medida que trata-se de uma “assinatura do conhecimento”), atua, por sua vez, como um engenho de imitações. A visão otletiana do livro como organismo aberto confere ao significado do artefato bibliográfico uma noção múltipla e inovadora, ainda que a própria história já tenha significado esta condição de sentido do livro. Ao voltar-se para a “relação todo-parte orgânica das funções do livro” (DAY, 2001, p. 14), Otlet percebe neste artefato um organismo auto-suficiente.

A visão otletiana tem simultaneamente uma integração com o pensamento de Platão sobre a mimese (uma física da OS emanada de uma metafísica do livro) e as possibilidades atentadas por Aristóteles em sua apropriação do conceito. Na visão do advogado belga, o livro representa a materialização objetiva do pensamento, este, já uma espécie de imitação. Em suas palavras, a cadeia platônica da mimese é descrita no imaginário otletiano: “como o pensamento é uma imagem das coisas, o livro aí está para proporcionar uma reprodução, uma cópia do mundo, tendo este como modelo” (OTLET, 1996, p. 425). Uma epistemologia documentalista tem, desta maneira, sustentação objetiva no conceito de mimese.

De fato, três grandes resultados ou leis bibliográficas dominam o enorme crescimento dos documentos do nosso tempo: a) existe, graças aos livros, um desdobramento dos espíritos, o ‘duplo da humanidade’ (‘doble da la humanidad’); b) esta ‘duplicação documental’ (‘doble documental’) restará cada vez mais distanciada de seus criadores, os escritores. Em seguida, ela atua distante de seus criadores e produz um efeito em extensão, que permite a acumulação dos dados escritos, e em profundidade, através do desenvolvimento cada vez maior da abstração e da generalização das ideias que são possibilitadas pelo documento;

Page 63: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 63

c) por todas as direções, a condição humana é modificada. (OTLET, 1996, p. 425, tradução nossa, grifo nosso)

Day (2001, p. 14) nos chama a atenção para o fato de que o conceito de livro de Otlet aponta menos para o objeto, e mais para suas possíveis relações. Desta maneira, munido de uma complexa noção de rede – reséau -, o documentalista volta-se para o potencial criado pelos nós existentes entre todos os “acidentes” do livro, como códices, bibliografias, coleções de museu, ou seja, tudo aquilo que ganha a configuração de registro devido a algum processo de apropriação. A conclusão da razão mimética como sustentáculo de uma filosofia bibliológica está descrita na visão do “livro como a própria extensão do livro”: um livro não é um livro, mas o complexo de desdobramentos que a ideia de livro pode conter em um só conceito-matéria que se pressupõe livro. Isto fica claro na noção proposta de documento como substituto do significante livro. O documento tanto pode figurar-se como “o” livro – em seu modelo códice -, como pode ser tomado como a capa deste livro, ou sua folha de rosto, um de seus capítulos ou uma de suas páginas, um parágrafo, ou ainda, apenas, uma palavra que, dentro daquele contexto, pode representar outro documento, passível de conduzir um leitor a, inspirado, produzir todo um novo livro. A rede interna produzida por este emaranhado é, em si, um outro documento, um outro livro, que se desdobra em interpretações múltiplas.

O livro otletiano é, pois, estruturalmente, uma máquina mimética - uma máquina que, na visão do criador do Mundaneum, conserva uma força intelectual em permanente expansão/replicação.

O mecanismo do livro permite que sejam formadas as reservas das forças intelectuais: é um acumulador. Enquanto uma externalização do cérebro, ele se desenvolve em detrimento de si próprio, como os instrumentos se desenvolvem em detrimento do corpo. Em seu desenvolvimento, o homem, em vez de adquirir novos sentidos, novos órgãos (por exemplo, três olhos, seis orelhas, quatro narizes), percebe o desenvolvimento de seu cérebro por abstração, esta pelo signo, e o signo pelo livro. (OTLET, 1996, p. 426, tradução nossa, grifo nosso)

Como partes de um processo, o conceito otletiano de livro aponta para uma característica fundada na mimese: a repetição. A ideia da repetição aparece em Otlet, segundo Day (2001), não como a possibilidade de duplicação de um resultado único, mas como um princípio que toma o repetir como amplificação – esta, conduz à expansão universal do conhecimento. Esta expansão sugere “que há uma mudança de escala para a natureza e valor do conhecimento”. Para Otlet, “os textos são tanto veículos como incorporações de repetição dinâmica, levando a uma expansão do conhecimento e também uma mudança na forma do conhecimento”. (DAY, 2001, p. 14)

Nesta dinâmica, o livro-signo de Paul Otlet pressupõe a máquina-livro: a máquina mimética que se funda como prolongamento do homem – a imitação da imitação da imitação.

Análogo a um organismo que está sendo analisado em termos da sua agência no âmbito de um sistema ecológico, o livro-máquina está ligado a outros livros e outras “máquinas” orgânicas, formando conjuntos sistêmicos na conservação e transformação de energia mental ao longo da história. Otlet explica no Traité de que as máquinas são extensões [prolongement] do corpo humano. (DAY, 201, p. 18, tradução nossa, grifo nosso)

Page 64: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 64

É relevante perceber que esta ideia da máquina mimética em Otlet se irrompe como uma das principais metáforas do século XX, ligada principalmente a três conceitos: rede, tecnologia e comunicação. Importante também é perceber que estas três noções estão enraizadas em uma epistemologia informacional de cunho fisicalista que conceberia o neologismo “ciência da informação”, respectivamente vinculadas às ideias de interdisciplinaridade, recuperação da informação e comunicação científica. A metáfora está diretamente relacionada, ainda, a uma formulação matemática para a informação, manifestada em termos objetivos no projeto comunicacional de Vannevar Bush, que realimenta a apropriação da mimese na OS.

3.3 A mimese bushiana: o Memex e a hiperimitação da grande máquina mimética...À visão conceitual de Paul Otlet de uma máquina bibliológica na constituição de uma cadeia

mimética se soma o projeto de Vannevar Bush, dentro do Governo dos Estados Unidos no contexto da 2a Guerra Mundial. Seu conhecido conceito de Memex, explorado no artigo “As we may think”, estabelece outro foco sobre a ideia da máquina mimética, agora orientada para as possibilidades de um fluxo ainda mais dinâmico que aquele arquitetado por Otlet e possibilitado séculos atrás pela prensa. Afora as diferentes abordagens críticas sobre a verdadeira contribuição do projeto de Bush para o futuro da engenharia das telecomunicações, que atravessam as noções de hipertexto e de Internet chegando até Tim Berners-Lee, discutidas em Houston & Harmon (2007), e as análises comparativas, como a de Eugene Garfield (1968), entre o projeto bushiano e aquele de H. G. Wells - o World Brain -, importa-nos aqui os traços filosóficos deixados sobre a reflexão conceitual da mimese na OS. Estão presentes na visão de Bush as noções de memória ampliada e de extensão do homem, vinculadas ao pensamento de Otlet e lançadas como pontos de inflexão a partir da invenção da prensa no âmbito do que chamamos hoje de filosofia da informação.

Bush propôs o desenvolvimento de um certo mecanismo que teria a capacidade de relacionar documentos pré-existentes com outros conjuntos de documentos gerados tanto particularmente como por terceiros. O foco estava na procura pela otimização da informação científica dentro de bibliotecas especializadas – em outras palavras, apresentava-se aqui a semente de uma disciplina específica do discurso da CI, que aparecerá em sua primeira face no currículo de Farradane, em 1958, duas décadas depois, ou seja, a RI no âmbito da comunicação científica. (HOUSTON; HARMON, 2007)

Bush preocupava-se com o atraso nas possibilidades de acesso à informação decorrido dos esquemas tradicionais adotados pelas bibliotecas. Em sua visão, a incapacidade humana de acessar um documento estava diretamente ligada aos entraves dos sistemas de indexação então em vigência. Um problema crucial o incomodava: a linearidade como percurso necessário para obtenção de um determinado dado nos sistemas bibliográficos, oferecido, por exemplo, pela ordem alfabética (BUSH, 1945). O Memex – a máquina anti-platônica de extensão da memória – era centrado na experiência individual de um pesquisador e em seu processo cognitivo de busca e de percepção da informação. Bush procurava (re)constituir o processo de RI a partir da imitação da prática do pesquisador, ou seja, a partir da “busca por associações”. Estas associações, diferentemente de um processamento

Page 65: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 65

linear, permitiria ao especialista de uma determinada área do conhecimento chegar até a informação procurada sem necessitar percorrer longos canais de informação. (HOUSTON; HARMON, 2007).

Utilizando uma noção “positiva” da mimese, Bush buscava reconhecer a mente humana em sua experiência de raciocínio no processo de seleção da informação, inaugurando, em parte, um profícuo debate no terreno dos estudos cognitivos da informação na OS. Se a mente funciona por meio de associações, é através de uma mimese mecanizada que chegaremos até a recuperação “ideal” dos dados disponíveis na massa de publicações científicas.

O homem não pode sonhar em duplicar este processo artificialmente, mas certamente deve ser capaz de aprender com ele. [...] Não se pode contar com a mesma velocidade e flexibilidade associativa da mente humana, mas podemos supera-la, decididamente, em relação à permanência e clareza dos elementos recuperados dos acervos. Consideraremos um dispositivo futuro de uso individual que é uma espécie de arquivo-biblioteca mecanizado. Já que é importante um nome, o chamarei de MEMEX. Um MEMEX é um dispositivo que permitirá a uma pessoa armazenar todos os seus livros, arquivos, e comunicações, e que poderá ser consultado com grande velocidade e flexibilidade. Na verdade, seria um suplemento ampliado [enlarged] e particular de sua memória. (BUSH, 1945, tradução nossa, grifo nosso)

Orientado para uma procura de “amplificação” da memória humana, seguindo o percurso contrário de Platão e seguindo as margens abertas por Aristóteles, o projeto de Vannevar Bush, guardadas as nuances de tempo, espaço e foco, postula-se como complemento ao conceito de livro oriundo de Paul Otlet. Ambas as visões se aproximam e se interpenetram em uma instância: a compreensão da mimese como noção fundamental para o desenvolvimento da OS. Outras aproximações podem ser aqui observadas: há, por exemplo, em Otlet e em Bush, uma perspectiva civilizatória e progressista, verificadamente de cunho positivista, que toma o Livro e o Memex como ferramentas para a “evolução” do homem. Preocupa-nos aqui a relação com o profícuo conceito de mimese no discurso da CI. Ao atentar para os estudos cognitivos em seu processo de associação de ideias, a proposta mecânica de Bush (1945) concentra-se no uso da imitação como possibilidade de desenvolvimento do homem e, principalmente, a otimização e a evolução dos sistemas de recuperação de informação. É esta visão do associativismo cognitivo que deflagra a hipérbole das comparações do pesquisador como pai e/ou grande inspirador dos sistemas multimídia, da Internet, dos hiperlinks, da Web e das bibliotecas digitais.

Conceito fundamental dentro da ideia de Memex é oriundo da noção de “replicador”. A “principal função” do projeto de Bush seria replicar – no sentido de reproduzir – a mente humana, permitindo com que todo o conhecimento edificado pelo homem não se perdesse na impossibilidade de armazenamento. O Memex seria capaz de imitar e, a partir da imitação, ampliar a mente humana, expandida em ferramentas de replicação (HOUSTON, HARMON, 2007). No entanto, os princípios miméticos do projeto do Memex estão fundados ainda naquilo que o fim do século XX passou a tratar como fundamental para o desenvolvimento humano, inspirado na Web: a produção coletiva e aberta do conhecimento. Esta co-produção leva Bush a apontar uma “total liberdade” do usuário para alimentar o Memex, determinando possíveis atalhos para localização da informação. Seria facultativo a ele, indica Bush (1945), inserir

Page 66: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 66

comentários/notas no sistema. Soma-se a isto, a possibilidade de uma indexação associativa e instantânea. Esta, tomada por Bush como “característica essencial” do Memex, representaria a grande inovação - a possibilidade de relacionar dois elementos diferentes entre si por usuários distintos. À medida que procura o item desejado, o usuário, na visão antecipada de Bush (1945), criaria atalhos, que poderiam se associar com um conjunto indefinido de novos elementos.

Vannevar Bush, desta maneira, repassa para o usuário o papel de reprodutor/construtor mimético e colaborador direto da infra-estrutura de organização dos saberes de uma estação local, de um município, de um estado, de um país. “A princípio, ele usa uma enciclopédia para encontrar um breve, mas interessante artigo. Depois, nos registros de História, ele encontra algo interessante para relacionar com o material encontrado na enciclopédia. E continua criando atalhos com vários itens” (BUSH, 1945, tradução nossa). Sua visão é mais ampla e chega a postular um futuro com o novo ofício na OS:

Haverá a nova profissão de criador de atalhos, pessoas que terão a tarefa de estabelecer atalhos entre o enorme volume de registros correspondentes. Para os discípulos de qualquer mestre, o legado dele passará a ser não apenas suas contribuições ao acervo mundial, mas também as bases que sustentarão seus discípulos. Presumivelmente o espírito humano se elevaria se fosse capaz de rever o obscuro passado e analisar mais completamente e objetivamente os problemas atuais. Ele edificou uma civilização tão complexa, que agora precisa mecanizar inteiramente seus registros caso almeje levar a uma conclusão lógica seus experimentos, ao invés de meramente bloquear-se por estar sobrecarregando sua limitada memória. Sua vida poderia ser desfrutada melhor se ele pudesse ter o privilégio de esquecer as múltiplas coisas que não necessitasse imediatamente às mãos, com a certeza de poder encontra-las quando fosse preciso. (BUSH, 1945, tradução nossa, grifo nosso)

A proposta de Vannevar Bush estará relacionada com a Teoria Matemática da Comunicação, partindo de uma visão da informação como um dígito, capaz de ser operacionalizada. Ambas as abordagens, o Memex e a teoria de Shannon e Weaver, são sustentáculos para a epistemologia fundacional da CI. Ambas permitem, ao mesmo tempo, estabelecer em definitivo a importância do conceito de mimese para o pensamento na OS, como a seguir procuramos demonstrar a partir de uma síntese entre a genealogia de nossas ideias e de nossas práticas, que levou o campo a se apresentar como uma escola da quinta imitação.

4 A ESCOLA DA QUINTA IMITAÇÃO E A ÉTICA DO MÍMEMAAo tomar a CI como um campo aplicado da filosofia da informação – ou uma filosofia

aplicada da informação -, Luciano Floridi (2002) estabelece que a epistemologia da OS circula em torno do conceito de informação. Este, por sua vez, aponta-nos uma vinculação objetiva à ideia de representação. O epistemólogo reconhece que nosso saber original não está no conhecimento em si – via platônica de conceituação da verdade -, mas nas fontes de informação que podem levar até este possível conhecimento. Quando postula a visão de que a Filosofia da Informação deve percorrer três destinos – a saber, constituição e modelização de ambientes de informação, ciclos de vida da

Page 67: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 67

informação e computação – Floridi (2002, p.46) assume que o objeto principal da filosofia da CI é a informação não em seu sentido forte, significativo e verdadeiro, mas em um sentido tratado como fraco e específico, oriundo do sentido dos dados gravados (documentos).

A visão filosófica floridiana aproxima-se das abordagens de Otlet e Bush, e da própria construção moderna da noção de registro duplicado de informação a partir da invenção da prensa. No entanto, apesar do olhar empirista sobre a aplicação do conceito informação realizado pela CI, Floridi busca uma filosofia tradicional - o foco no conceito, para além do sujeito - estabelecendo a informação como unidade metafísica, que transcende a própria prática profissional. Desta unidade é que pode ser reconhecida a aplicabilidade – a funcionalidade – da práxis do profissional da informação. O epistemólogo esclarece isto ao contrapor sua visão à Epistemologia Social de Jesse Shera, esta, mais focada no sujeito, e menos no conceito. De certo modo, a visão de Floridi permite-nos integrar idealismo platônico – “existe” uma filosofia da informação – e empirismo aristotélico – a CI fundamenta-se como uma “filosofia aplicada da informação”.

Retomando, para o filósofo da Academia, a prática do registro pode ser tomada como a representação (imitação da linguagem) da representação (imitação do pensamento) da representação (imitação do mundo inteligível). Explicitada de outra forma, poderíamos conceber a cadeia mimética da seguinte maneira:

• Mundo inteligível/Outramundanidade (o “grau zero da imitação”)• Mundos miméticos/Estamundanidade (espaço das imitações)

o Mundo do pensamento – estados mentais (1a imitação);.o Mundo da linguagem oral – discursos (2a imitação);o Mundo das inscrições da linguagem - ícones (3a imitação);o Mundo das cópias dos ícones – reproduções (4a imitação);o Mundo das meta-linguagens – meta-representações (5a imitação).

Na leitura platônica, o livro-signo de Otlet é aquele ausente de ser – a imitação icônica, ou das imagens gestadas em representação plana. Não responde pela essência do conhecimento, não guarda a forma da sabedoria e se reproduz, como a imagem poética ou plástica, de maneira inconsciente. Enquanto cópia, apresenta-se como 3a imitação, um artefato que é gerado entre o pensamento que se dá pela linguagem e a linguagem que o manifesta. No entanto, a mimese da prática da OS vai ao extremo de determinar um quinto momento imitativo como fundacional em sua constituição: o mundo das metalinguagens, que ocupa-se em construir representações das representações, ou apenas, as meta-informações – onde se encontram a prática e o produto das linguagens documentárias – que se sedimentam como o objeto, o meta-conhecimento, da CI (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996). Em outras palavras, trata-se de um domínio científico que não só toma a representação como imagem do conhecimento, como a aborda como objeto-conhecimento.

Inaugura-se na filosofia da OS uma escola de reprodutibilidade muito antes da Idade Moderna,

Page 68: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 68

uma vez determinada a mimese como nuclear para a constituição desta arte. Funda-se uma agenda de pesquisa, orientada em seu núcleo, em linhas gerais, para a

a) preservação do “ícone original” (3a imitação) – representada por disciplinas como Biblioteconomia de Obras Raras, Arqueologia, Conservação;

b) reprodução do “ícone original” (4a imitação) – representada por disciplinas como Reprografia, Recuperação da Informação, Bibliotecas digitais;

c) microdescrição do “ícone original” em meta-linguagens (5a imitação) – representada por disciplinas como Classificação, Indexação e Catalogação.

Esta agenda se sedimenta no século XX como campo científico orientado pela/para mimese, travestida no conceito de informação. Apesar de dialogar permanentemente com a 1a imitação – os estados mentais – e a 2a imitação – os discursos -, o principal foco desta epistemologia está no trânsito entre a terceira, quarta e quinta imitações. Em outras palavras, a mimese se torna um imperativo: trata-se de um dever do organizador dos sabres não apenas cuidar da cadeia mimética, mas também construir ferramentas passíveis de amplificação desta cadeia. O conhecimento é por vezes tomado aqui como sinônimo do próprio saber representado, tamanha a dimensão do imperativo que se estabelece como ética primeira da relação entre indivíduo e objeto nos estudos informacionais.

A quinta imitação, significada por metodologias/produtos como tesauros e ontologias, construtos de uma cadeia mimética circular e aberta, sintetiza um ideal permanente do organizador dos saberes: simultaneamente mimetizar e educar pela mimese. A partir da apreensão de domínios lingüísticos em comunidades discursivas especializadas, ou apenas “línguas de especialidade”, o artífice da OS manipula mímemas de mímemas – imitações do produto da arte de imitar (VERNANT, 2010) -, ou, ainda, meta-mímemas, expressões distantes de uma verdade essencialista de viés platônico, e mais próximas de uma verossimilhança contextual de viés aristotélico, que toma a poesia (construção) como ciência. Trata-se de um fazer que estabelece a relação preponderante com a ética que se sustenta na imagem como juízo bom, e explora nela as possibilidades do bom enquanto ferramenta de auto-replicação imagética. Antes de se perguntar se a imagem existe, se ela responde pela verdade, o organizador dos saberes já, sob um imperativo mimético, atualiza sua arte na replicação da imagem, procurando fundar nela as semelhanças possíveis, por contextos de significação, com o conhecimento. Este artífice, em linhas gerais, procura insistentemente demonstrar que o mímema, independente de ser ou não bom em essência, pode ser bom em ato.

5 OS DESTINOS DO IMPERATIVO MIMÉTICO

Apesar de seu destino voltar-se para a 5a imitação, tomando por base a cadeia mimética platônica, é na tentativa de um deslocamento da 3a imitação – artefatos – para a 2a - discursos – e desta para a 1a imitação – pensamento -, que reconhecemos a produção da epistemologia da OS no século XX, principalmente aquela que procura demarcar a cientificidade de uma ciência para a informação nos

Page 69: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 69

anos 1960. Cabe-nos aqui reconhecer que a CI não conseguiu escapar – se era este o seu intuito – da chamada 3a imitação. Mesmo quando se propõe a encarar a informação a partir da linguagem – paradigma social, enfoque pragmático, 2a imitação - e/ou a partir da cognição – paradigma cognitivo, enfoque semântico, 1a imitação ou ainda concepção tradicional de conhecimento como conteúdo de estados mentais (FURNER, 2004) - os estudos informacionais se debruçam sobre a informação como uma entidade objetiva - conhecimento como algo que é registrado ou que é apresentado em um sentido objetivo, externo, público (FURNER, 2004). Cabe ao epistemólogo da CI, pois, não apenas reconhecer este imperativo, mas, sem dúvida, principalmente munido das leituras contemporâneas da informação, de cunho pragmatista e pós-estruturalista, por exemplo, criticá-lo – a crítica do mímema como fazer epistemológico da CI.

A prática histórica do organizador dos saberes pode ser reconhecida, pois, nesta revisão, como a de um imitador que coleciona e produz imitações. Em outras palavras, este artífice atua com meta-mímemas. O mímema apresenta-se como seu objeto primeiro. Sua crença no saber está no reconhecimento de que, o que existe, antes, é a crença de que há a “crença na imitação” – donde provém seu ofício/mistério. E que esta imitação pode também ser conhecimento, prazer, jogo, educação. Disciplinas comuns na formalização dos currículos das escolas de Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação entre o oitocentos e novecentos, como Introdução à cultura histórica e sociológica, Introdução à cultura filosófica e artística; Paleografia (que envolvia o estudo geral da origem dos alfabetos, da paleografia greco-latina, medieval, portuguesa e dos documentos nacionais até século XIX), Direitos Autorais, Reprografia, Recuperação da Informação, Comunicação Científica, Biblioteca digital são elementos conceituais que se estabelecem na fronteira de reconhecimento da mimese e de construção de uma virtude no organizador dos saberes que deve perceber a imitação como fundamental, mas também como questão-problema.

Como observação final, cabe-nos destacar o horizonte mais distante que, por hora, pode atingir nossa reflexão: a CI, em sua experiência histórica, pode ser determinada como um espaço discursivo dos mais remotos e dos mais profícuos de conciliação entre mimese e saber, traduzida, no discurso novecentista do campo, pela aproximação entre as noções de informação (um outro nome do mímema) e conhecimento. Por vezes, esta conciliação ganha uma análise naturalista – a informação leva ao conhecimento -, afastada de uma argumentação que é, em sua base, anti-essencialista: aquela que reconhece a mimese como solo desta relação. Nitecky (1995) observou esta aproximação comum no discurso filosófico do campo entre a CI e o conceito de conhecimento, assim como Chaim Zins (2006) apontou como objeto estrutural do campo o mesmo conceito. Logo, muito distante da essência, tratamos aqui das imagens, a partir da (re)produção permanente de metalinguagens. Cumpre-nos, finalmente, estabelecer uma distinção importante: a mimese, para o organizador dos saberes, não é o conhecimento; no entanto, para este organizador, entre os homens, o conhecimento é fundamentalmente potencializado pela relação mimética estabelecida como ferramenta de representação e de educação.

Page 70: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 70

ABSTRACTThis paper investigates the concept of mimesis in the knowledge organization’ philosophy in the context of Information Science from the philosophical analyses. The argumentation presents the mimesis’s concept in archaic philosophy between Plato e Aristotle. The view point of the article indicates the relevance of the mimesis for the epistemology e the history of Information Science. For the discussion, three approaches are presented: Gutenberg and the press; Otlet and the book; Bush and the Memex. The work concludes with indication of the double signification of mimesis for the knowledge organization: representation and education.

Key-words: Philosophy of Information Science – Epistemology - Philosophy of information – Mimesis

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.

BURKE, P. Os problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos primórdios da Europa moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 44, p. 173-185, 2002.

BUSH, V. As we may think. Atlantic Monthly, v. 176, n. 1, p.101-108, 1945. Disponível em: < http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1945/07/as-we-may-think/3881/1/ > . Acesso em: 28 fev. 2004.

DAY, R. The modern invention of information: discourse, history and power. Illinois: Southern Illinois University Press, 2001.

FLORIDI, L. On defining library and information science as applied philosophy of information. Social Epistemology, v. 16, n. 1, 37–49, 2002.

FLORIDI, L. Afterword library and information science as applied philosophy of information: a reappraisal. Library Trends, v. 52, n. 3, p. 658-665, 2004.

FURNER, J. Information studies without information. Library Trends, v. 52, n. 3, p. 427-446, 2004.

GAGNEBIN, J.-M. Do conceito de mimesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Perspectivas, São Paulo, v. 16, p. 67-86, 1993.

GARFIELD, E. “World brain” or “Memex”: mechanical and intellectual requeriments for universal bibliographic control. In: MONTGOMERY, E.B. (ed.). The foundations of access to knowledge: a symposium Syracuse. New York: Syracuse University Press, 1968. p. 169-196.

GONZÁLEZ DE GÓMEZ, M.N. Da organização do conhecimento às políticas de informação. INFORMARE – Cad. Prog. Pós-grad. Ci. Inf., Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 58-66, jul./dez.1996.

HOUSTON, R..; HARMON, G. Vannevar Bush and the Memex. Annual Review of Information Science and Technology, v. 41, p. 54-96, 2007.

LOVEJOY, A.O. A grande cadeira do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005.

NITECKI, J. Z. Philosophical aspects of library information science in retrospect; vol. 2. In.: ______. Nitecki Trilogy, 1995. Disponível em: <http://www.du.edu/LIS/collab/library /nitecki/>. Acesso em:

Page 71: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 71

22 nov. 2010.

OTLET, P. El tratado de documentación: el libro sobre el libro; teoría e práctica. Murcia: Universidad de Murcia, 1996.

PINHEIRO, M.R. O Fedro e a escrita. Anais de Filosofia Clássica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 70-87, 2008.

PLATÃO. Fedro ou Da Beleza. 6a ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.

PLATÃO. República. 11ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

SAFATLE, V. Espelhos sem imagens: mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno. Transformação, São Paulo, v. 28, n. 2, 21-45, 2005.

SHERA, J.H., CLEVELAND, D.B. History and Foundations of Information Science. Annual Review of Information Science and Technology , v. 12, p. 249-275, 1977.

VERNANT, J-P. Nascimento das imagens. In: LIMA, L.C. Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 51-86.

ZINS, C. Redefining information science: from “information science” to “knowledge science”. Journal of Documentation, v. 62, n. 4, p. 447-461, 2006.

Page 72: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 72

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L .

RUÍDO, PERTURBAÇÃO E INFORMAÇÃO: NOTAS PARA UMA TEORIA CRÍTICA DOS SISTEMAS AUTOPOIÉTICOS.

Antonio Saturnino Braga

Resumo.Neste artigo, recorremos ao comentário de Dretske sobre a teoria matemática da comunicação para perseguir três objetivos. Primeiro, defender a hipótese de que o conceito de informação oriundo desta teoria pode ser associado a uma interpretação segundo a qual o processo informacional tem caráter circular e envolve três sentidos do conceito complementar de ruído: dado informacionalmente irrelevante, dado incorreto e perturbação. Segundo, defender a hipótese de que, ao ser visto como processo circular, o processo informacional pode ser associado ao conceito luhmanniano de sistemas sociais autopoiéticos. Terceiro, defender a hipótese de que o conceito de perturbação permite encaixar o conceito de autopoiese no quadro lógico-conceitual de uma teoria crítica: no caso, uma teoria crítica dos sistemas informacionais de tendência autopoiética.Palavras-chave: Informação, Ruído, Perturbação, Autopoiese, Teoria Crítica.

Abstract.In this article, I turn to Dretske’s commentary on the mathematical theory of communication to pursue three goals. First, to defend the hypothesis that the concept of information derived from this theory may be associated with an interpretation according to which the informational process is circular and involves three senses of the complementary concept of noise: informationally irrelevant datum, incorrect datum and perturbation. Secondly, to defend the hypothesis that, when seen as a circular process, the informational process can be associated with the luhmannian concept of autopoietic social systems. Thirdly, to support the hypothesis that the concept of perturbation allows to fit the concept of autopoiesis in the logical framework of a critical theory: in this case, a critical theory of the informational systems of autopoietic tendency.

Keywords: Information, Noise, Perturbation, Autopoiesis, Critical Theory.

1 A TEORIA MATEMÁTICA DA COMUNICAÇÃO E O CARÁTER CIRCULAR DO PROCESSO INFORMACIONAL.

No primeiro capítulo de seu livro Knowledge & the Flow of Information (DRETSKE 1981, p.3-39), Fred Dretske faz uma apresentação bastante elucidativa da teoria matemática da comunicação,

Page 73: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 73

associada ao trabalho pioneiro de Claude Shannon (SHANNON & WEAVER 1949). A característica mais interessante da exposição de Dretske é o fato de ela ser relativamente independente dos aspectos mais técnicos do trabalho de Shannon, preocupando-se preferencialmente com o esclarecimento das intuições e conceitos fundamentais da teoria da informação a que ele dá origem.

Com base na exposição de Dretske, pode-se afirmar que, na teoria matemática da comunicação, informação tem dois sentidos fundamentais, intimamente relacionados: redução da incerteza e ocorrência de uma novidade (Dretske usa o termo “surpresa”, em vez de novidade, mas suas explicações evidenciam claramente que este último termo também pode ser usado. Para nossos propósitos, ele é mais conveniente, e por isso vamos preferi-lo). Para esclarecer essas idéias, recorrerei ao exemplo que o próprio Dretske apresenta. Neste exemplo, o processo informacional é situado no contexto das relações humanas e sociais, e esta característica irá definir esta primeira seção de nosso artigo. Oito empregados encontram-se numa situação em que um deles deve ser selecionado para desempenhar uma desagradável tarefa determinada pelo chefe. Os empregados decidem efetuar a escolha por meio de um procedimento de sorteio do tipo cara ou coroa. Ao final do procedimento, um deles é selecionado, Herman, cujo nome é escrito num memorando imediatamente enviado ao escritório do chefe.

Antes da seleção efetuada pelos funcionários, as oito possibilidades iniciais (oito funcionários podendo ser selecionados) equivaliam a uma certa incerteza; mais precisamente, equivaliam a uma certa quantidade de incerteza (se houvesse inicialmente maior número de possibilidades, a incerteza seria proporcionalmente maior). De modo correspondente, a redução dessas oito possibilidades iniciais à possibilidade efetivamente selecionada (no nosso exemplo, a possibilidade selecionada foi Herman) equivale a uma certa redução da incerteza; mais precisamente, equivale a uma certa quantidade de redução da incerteza (se houvesse inicialmente maior número de possibilidades, a redução da incerteza seria proporcionalmente maior). Por fim, o evento no qual se consubstancia a redução da incerteza (Herman sendo selecionado) representa uma novidade – entendida, nesse caso, em termos essencialmente quantitativos, como um evento que se define pela quantidade de redução de incerteza que ele representa. E a informação é, justamente, a novidade.

Tal como apresentada até aqui, a informação ainda não é a indicação de qual foi, exatamente, a possibilidade selecionada; informação é, simplesmente, o fato de que uma possibilidade foi selecionada dentre um conjunto de possibilidades iniciais: trata-se da quantidade de redução de incerteza associada à seleção de uma possibilidade (se a possibilidade realizada tivesse sido Maria em vez de Herman, a quantidade de informação seria a mesma). Do ponto de vista da teoria matemática da comunicação, o passo fundamental consiste na formulação de um procedimento para a determinação dessa quantidade visada no conceito de informação. E o procedimento adotado é o das decisões binárias: a quantidade de redução de incerteza gerada pela seleção de uma possibilidade equivale ao número de decisões binárias envolvidas na redução das possibilidades iniciais à possibilidade efetivamente realizada. No nosso exemplo, teríamos o seguinte processo na fonte de geração da informação. Os oito empregados

Page 74: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 74

(oito possibilidades) inicialmente se dividem em dois grupos de quatro, jogando a moeda para efetuar uma primeira decisão binária. Os quatro empregados restantes se dividem em dois grupos de dois, e, após uma segunda decisão binária, os dois empregados restantes se submetem a uma terceira e última decisão binária, de modo a finalmente selecionar a novidade na qual se consubstancia a redução da incerteza. Como o processo envolve três decisões ou escolhas binárias, ele gera três bits de informação: cada decisão binária equivale a um bit de informação (supondo que a cada etapa do processo as possibilidades em jogo são igualmente prováveis).

Até agora, limitamo-nos à consideração do que sucedeu na sala dos empregados (situação-fonte), e desconsideramos o fato de que a novidade ali ocorrida pode ser tomada como uma indicação que vai ser utilizada por um usuário em outra situação, a sala do chefe (situação-recepção). Em outras palavras, desconsideramos o fato de que a informação pode ser considerada como uma indicação de qual foi, precisamente, a possibilidade realizada, a ser utilizada por um usuário (da informação) na situação-recepção. Este aspecto até aqui negligenciado corresponde ao conteúdo semântico da informação.

Para ser utilizada por um usuário na situação-recepção, a informação precisa ser transmitida da situação-fonte para a situação-recepção. A teoria matemática da comunicação focaliza este processo de transmissão de um ponto de vista essencialmente quantitativo, concebendo a confiabilidade do mesmo em termos de minimização das perdas na quantidade de informação transmitida da fonte. Mais precisamente, o que caracteriza a teoria em tela é a preocupação com a eficiência no processo de transmissão, sendo que a eficiência nela aparece como uma espécie de combinação e equilíbrio entre a fidelidade e a economia: por um lado, fidelidade ao que ocorreu na situação-fonte, evitando qualquer perda na informação gerada (no vocabulário da teoria, evitando “equivocação”), e, por outro lado, economia nos sinais através dos quais se dá a transmissão à situação-recepção, evitando o que a teoria chama de redundância. Na teoria matemática da comunicação, a fidelidade à situação-fonte é elaborada em termos essencialmente quantitativos: se não há perda quantitativa da informação gerada, ou se a perda é minimizada na maior medida possível, pressupõe-se que a mensagem recebida na situação-recepção seja confiável, ou seja, pressupõe-se que tenha sido preservado o conteúdo informacional do sinal emitido na situação-fonte.

Ao conceber a confiabilidade da informação em termos essencialmente quantitativos, a teoria matemática da informação negligencia os aspectos semânticos do processo informacional: em vez de preocupar-se com o significado da mensagem para o usuário na situação-recepção, a teoria visa a minimização da perda puramente quantitativa da informação gerada na situação-fonte. Pode-se por outro lado afirmar que, embora negligencie os aspectos semânticos, a teoria matemática não é incompatível com eles. Ao contrário, o esforço de Dretske consiste justamente em encaminhar a discussão semântica a partir da visada essencialmente quantitativa da teorização de Shannon. Isso só é possível porque Dretske se enquadra no movimento de naturalização da semântica, que procura depurar os conceitos de significado e verdade de todas as associações com noções irredutivelmente

Page 75: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 75

mentalistas, como representação, razões para crer e justificação (destacando que, neste contexto, mente se opõe a cérebro). Entretanto, assim como Dretske recorre a Shannon para desenvolver seu projeto de uma semântica naturalizada, podemos continuar recorrendo a Dretske para desenvolver a questão da conexão entre o conceito de informação e, por outro lado, aspectos irredutivelmente semânticos e pragmáticos da dinâmica dos sistemas sociais.

O processo informacional constitui-se a partir de duas relações. Em primeiro lugar, a relação entre, por um lado, um conjunto de possibilidades iniciais, e, por outro lado, uma novidade, ou seja, um evento cuja emergência equivale à realização ou seleção de uma dessas possibilidades. Em segundo lugar, a relação entre, por um lado, situação-fonte, como situação na qual emerge ou ocorre a novidade constitutiva do processo informacional, e, por outro lado, situação-recepção, como situação na qual se dá o conhecimento e utilização (assimilação, processamento) dessa novidade, na medida mesmo em que há uma necessidade ou interesse nessa utilização. A partir dessas duas relações, pode-se afirmar que a informação é, essencialmente, indicação de uma novidade para um usuário, ou seja, alguém que vai de algum modo assimilar e utilizar essa novidade.

Mas o papel da relação entre situação-fonte e situação-recepção na constituição do processo informacional vai além dessa conexão (de resto essencial) entre indicação de uma novidade e utilização dessa indicação. Para elaborar esse tópico, precisamos do conceito de ruído; para obtê-lo, retornemos ao exemplo acima referido. No exemplo, o memorando com o nome Herman representa, justamente, uma indicação da novidade ocorrida na situação-fonte, para um usuário, o chefe, que vai utilizar essa indicação nas atividades que lhe são próprias. O memorando representa uma mensagem – outro nome que se dá à informação como indicação a ser utilizada na situação-recepção. Mais precisamente, tomada como mensagem, a informação é a indicação precisa e fiel, na situação-recepção, da novidade ocorrida em outra situação, a situação-fonte. O aparecimento, no escritório do chefe, do memorando com o nome Herman é um evento que deve ser tomado, não tanto como novidade em sentido estrito, mas antes como mensagem, ou seja, indicação precisa e fiel da novidade ocorrida em outra situação, a situação-fonte. Considerada como mensagem, a informação é tomada como novidade oriunda da situação-fonte.

Suponhamos agora que a pessoa encarregada de levar o memorando até o escritório do chefe perca o envelope no meio do caminho, e resolva proceder por conta própria a outro processo de eliminação de possibilidades, do qual resulta a novidade Maria, que é então codificada em papel timbrado e envelope-padrão que o encarregado de transmissão tinha de reserva. Ora, o aparecimento, no escritório do chefe, do memorando com o nome Maria, pode ser tomado, estritamente, como novidade. Tomado estritamente como novidade, tal evento tem não apenas a mesma quantidade de informação (quantidade de redução da incerteza) que teria o evento do memorando com o nome Herman, mas a mesma natureza de indicação para um usuário, ou utilizável pelo usuário.

Mas o aparecimento, no escritório do chefe, do memorando com o nome Maria, pode ser tomado também como mensagem, ou seja, indicação precisa e fiel da novidade oriunda da sala dos

Page 76: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 76

funcionários. Na verdade, no tipo de processo informacional ilustrado pelo exemplo com que estamos trabalhando, é dessa forma que ele é usualmente tomado. Ora, tomado como mensagem, tal evento é informacionalmente nulo: ele é puro ruído. Ele não carrega nenhuma informação (indicação precisa da possibilidade realizada) sobre a situação-fonte; ele carrega uma indicação sobre a novidade ocorrida numa situação externa à situação-fonte, no caso o canal de transmissão, mas, justamente por isso, ele é puro ruído. O que caracteriza a informação como mensagem é o fato de ela ser dependente e fiel em relação à novidade ocorrida na situação-fonte.

De acordo com Dretske (DRETSKE 1981, p.15-16), a mensagem é uma expressão da dependência e fidelidade da situação-recepção em relação à situação-fonte. Para este autor, do ponto de vista das exigências contidas no conceito de mensagem, pode-se afirmar o seguinte. Se há mensagem sobre um determinado tópico, qualquer novidade sobre esse tópico ocorrida na situação-recepção é totalmente dependente e fiel em relação à novidade sobre o mesmo previamente ocorrida na situação-fonte: por um lado, não há na situação-recepção, garantidamente, nenhuma perda da novidade gerada na situação-fonte (não há equivocação); por outro lado, não há na situação-recepção, garantidamente, nenhuma novidade nova, ou seja, independente em relação à novidade previamente gerada na situação-fonte (não há ruído).

A ênfase de Dretske recai sobre a dependência da situação-recepção em relação à situação-fonte. Mas algumas observações que ele faz a respeito das noções de equivocação e ruído permitem direcionar seu comentário no sentido de uma ênfase oposta. Nesta elaboração, a informação passa a aparecer, não apenas como novidade para um usuário, mas, antes disso, como novidade possibilitada pelo interesse e foco do usuário situado na situação-recepção – visão que vai além dos comentários de Dretske, para enfatizar uma dependência informacional oposta à que ele enfatiza, a saber, a dependência da situação-fonte (como situação na qual ocorre a geração das novidades para o usuário) em relação à situação-recepção (como situação na qual se dá não apenas o uso das informações pelo usuário, mas, antes disso, o foco e interesse do usuário). Nesta elaboração, o processo informacional passa a aparecer como um processo essencialmente circular: a partir da focalização efetuada pelo usuário na situação-recepção, geram-se na situação-fonte as novidades que podem ser assimiladas e usadas pelo mesmo usuário na situação-recepção.

Nessa elaboração por assim dizer não-dretskiana dos comentários de Dretske sobre a teoria matemática da informação, o conceito de ruído vai ganhar outros sentidos, relativamente distantes do sentido original, mas que terão grande importância na seqüência deste trabalho. Comecemos com algumas observações que o próprio Dretske faz a respeito das noções de equivocação e ruído (DRETSKE 1981, p.19-21). Ele admite que muitas informações (eventos que equivalem a “eliminação de possibilidades”, e que nesse sentido equivalem a novidades) geradas na situação-fonte podem não chegar à situação-recepção, sem que isso implique equivocação no sentido mais estrito do termo. Por exemplo, o lugar e posição que cada um dos funcionários assume na sala dos funcionários no momento do processo de seleção – eventos na situação-fonte – podem tecnicamente ser tomados

Page 77: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 77

como novidades (havia possibilidades alternativas, cada um deles poderia ter assumido lugares e/ou posições diferentes, e por isso o lugar e posição efetivamente assumidos por cada um deles representam eliminação de possibilidades, ou seja, novidade). Essas novidades não são sinalizadas no memorando com o nome do funcionário selecionado; essas novidades, portanto, não chegam à situação-recepção, elas são informação perdida, ou seja, no sentido amplo do termo elas constituem equivocação. Mas este sentido amplo distingue-se do sentido mais estrito do termo, segundo o qual equivocação consiste em perda apenas daquela informação que se liga ao ponto focalizado no processo informacional, a qual pode ser chamada de informação relevante – a equivocação relevante é, então, a informação relevante que é perdida.

Do mesmo modo, há muitas novidades ocorridas na situação-recepção que não são oriundas ou dependentes dos eventos ocorridos na situação-fonte, mas que nem por isso constituem ruído no sentido mais estrito do termo. Por exemplo, o lugar da sala do chefe (situação-recepção) em que o encarregado da transmissão coloca o memorando é uma novidade, pois havia várias possibilidades alternativas, e o evento de ele colocar o envelope em um determinado lugar equivale à realização de uma determinada possibilidade dentre um conjunto de possibilidades iniciais. Esta novidade na situação-recepção não é oriunda nem dependente dos eventos ocorridos na situação-fonte; ou seja, no sentido amplo do termo ela é mero ruído. Mas este sentido amplo distingue-se do sentido mais estrito do termo, segundo o qual ruído – o ruído relevante – consiste apenas naquela informação independente que se liga ao ponto focalizado no processo informacional.

As observações de Dretske levam então à seguinte constatação. É a focalização efetuada pelo usuário na situação-recepção que permite distinguir a informação relevante da irrelevante; é essa operação de focalização, conseqüentemente, que permite distinguir a equivocação relevante da irrelevante, assim como o ruído relevante do irrelevante. Mas tais observações ainda podem ser radicalizadas, levando nesse caso às seguintes afirmações. O que a focalização do usuário permite não é apenas a distinção entre informação relevante e irrelevante, mas, mais radicalmente, a própria identificação da informação como dado operacionalmente utilizável no processo informacional. No limite, a informação irrelevante é informação potencial mas inidentificável, indisponível, inutilizável. Com efeito, sem a focalização do usuário a situação-fonte retrocede à dimensão de continuum caótico de infinitas possibilidades, no qual não é possível identificar qualquer conjunto de possibilidades iniciais, nem, conseqüentemente, qualquer evento realizador de uma possibilidade identificada, ou seja, qualquer evento redutor de incerteza – em outras palavras, nesse continuum não é possível identificar qualquer novidade, qualquer informação.

Cabem aqui as observações feitas por Floridi sobre a noção de entropia informacional (FLORIDI 2005, p.22-25). Na teoria matemática da comunicação, a entropia informacional designa a quantidade de incerteza própria da situação-fonte, que representa ao mesmo tempo o potencial informacional presente na situação-fonte. Maior entropia equivale a maior incerteza na situação-fonte, equivale, portanto, a maior potencial informacional nessa situação. Mas a entropia máxima corresponde ao

Page 78: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 78

continuum caótico das infinitas possibilidades, no qual a incerteza é tão grande que qualquer evento redutor da incerteza se torna inidentificável. Nesse caso, embora a informação potencial seja máxima, a informação é indisponível, inutilizável.

E aqui podemos introduzir um novo conceito de ruído. No continuum caótico de infinitas possibilidades, embora a informação potencial seja máxima, só há ruído, no sentido de informação operacionalmente indisponível e inutilizável. A transformação da informação potencial em informação disponível e utilizável exige uma operação de observação que, ao focalizar e com isso constituir um âmbito de possibilidades relevantes, permite identificar eventos realizadores de possibilidades relevantes, ou seja, permite identificar novidades, informações – como dito acima, o adjetivo relevante aposto à informação é em última instância redundante, porque a informação irrelevante em última instância ainda não é informação, quer dizer, ainda não é informação disponível e utilizável, mas é mero potencial informacional, mero ruído (no segundo sentido de ruído).

O elemento gerado pela operação de focalização do usuário pode também ser intitulado de quadro de expectativas, equivalendo a um quadro das possibilidades relevantes. É somente nesse quadro que a incerteza se torna solo da informação utilizável. Sem esse quadro de expectativas, ou fora dele, só há ruído, mero potencial informacional, que ainda não é informação. Suponhamos que haja um grão de poeira colado ao memorando que chega ao escritório do chefe. No processo informacional que estamos focalizando, este dado representa uma informação inidentificável, ou seja, uma informação absolutamente alheia ao quadro de expectativas constitutivo do processo. E aqui importa distinguir duas dimensões da operação de identificação da informação. A primeira é a dimensão física: nos processos informacionais propriamente humanos, esta dimensão é constituída pelas capacidades sensoriais dos homens, eventualmente amplificadas por instrumentos como lentes, microscópios, etc. Nesta primeira dimensão, o grão de poeira é identificável – talvez seja preciso uma poderosa lente, mas, se o quadro de expectativas incluir a possibilidade de um grão de poeira colado ao envelope (podemos pensar no quadro de expectativas de um detetive), esta necessidade em princípio não impede a identificação da informação. A segunda dimensão refere-se, justamente, ao quadro de expectativas: mesmo que se trate de uma mancha de tinta facilmente identificável do ponto de vista físico, se o quadro de expectativas não incluir essa possibilidade, a mancha permanece sendo, do ponto de vista informacional, uma informação não identificada: um dado fisicamente identificado, mas informacionalmente inutilizável e, nesse sentido, inidentificável como informação. Assim, a informação propriamente dita, quer dizer, a informação disponível e utilizável, entendida como nutriente de que se sustenta o processo informacional, sempre se situa entre o ruído (mero potencial informacional, anterior a qualquer operação de focalização) e, por outro lado, a uniformidade, que ocorre quando o quadro de expectativas se estreita tanto que chega a abolir a incerteza (o “podia ser diferente”), sem a qual não há informação.

Distinguimos acima dois sentidos de ruído. O ruído apareceu, em primeiro lugar, como dado relevante que não é oriundo ou dependente da fonte informacionalmente estruturada pela focalização

Page 79: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 79

do usuário na situação-recepção. Neste primeiro sentido, o ruído é o dado incorreto, enganador. Exemplo desse tipo de ruído é a novidade “Maria” (memorando com o nome Maria) oriunda da pessoa encarregada da transmissão – em vez de oriunda da sala dos funcionários como situação-fonte. A preocupação com a correção ou incorreção dos dados situa-se na dimensão semântica do processo informacional: até que ponto os dados recebidos correspondem fielmente às informações geradas na fonte? Em outras palavras, até que ponto os dados recebidos respondem corretamente à pergunta embutida no quadro de expectativas do usuário da informação?

Ruído apareceu, em segundo lugar, como mero potencial informacional, quer dizer, informação potencial mas inidentificável, indisponível, inutilizável. Nesse sentido, ruído é aquilo que Floridi chama de “dedomena” (dado em grego. Ver FLORIDI 2005, p.6-7): dados informacionalmente inidentificáveis e inacessíveis, por serem anteriores à focalização constitutiva do processo informacional (operação que Floridi elabora sob o conceito de “nível de abstração”. Ver FLORIDI 2005, p.7 e p.27-28). Ilustração desse tipo de ruído é o grão de poeira colado ao memorando que chega à sala do chefe. Neste segundo sentido, por designar uma informação meramente potencial, a noção de ruído é independente da questão da origem, e também da correção ou incorreção. Somente a partir da focalização do detetive, que transforma esse evento (o grão de poeira que podia não estar lá), transplantando-o da categoria de informação meramente potencial para a categoria de informação disponível e utilizável, pode surgir a questão sobre a origem dessa novidade – é ela mensagem da situação-fonte estruturada pela focalização do detetive, ou mero ruído (no primeiro sentido)? Equivale ela a um dado correto e confiável ou a um dado enganador (ruído no primeiro sentido)?

Imaginemos agora um outro evento. No memorando que chega ao escritório do chefe, abaixo do nome Herman, aparece a seguinte frase: “repudiamos essa tarefa e esse procedimento da empresa”. É fácil perceber a diferença entre este dado e, por outro lado, o dado Herman inscrito no memorando – ou mesmo o dado (enganador) Maria. Neste último caso, tanto o dado correto quanto o incorreto se encaixam perfeitamente no quadro de expectativas do usuário da informação. No caso da frase, em contrapartida, o dado recebido é relativamente alheio ao quadro de expectativas; - mas só relativamente, uma vez que, se o compararmos à mancha de tinta no envelope do memorando, perceberemos que a frase não é tão alheia ao quadro quanto a mancha o é. E aqui podemos introduzir um terceiro sentido de ruído. Se a mancha é ruído no sentido de dado informacionalmente inidentificável e, portanto, irrelevante; se o nome Maria é ruído no sentido de dado incorreto, ou seja, dado que não responde corretamente à pergunta embutida no quadro de expectativas do usuário da informação, a frase acima imaginada é ruído no sentido de dado que, apesar de relativamente alheio ao quadro de expectativas do usuário da informação, é ainda assim relevante para o mesmo – trata-se de um dado perturbador, uma “perturbação”, usando este termo para indicar um meio-termo entre o dado irrelevante e, por outro lado, a informação como dado que, por encaixar-se perfeitamente no quadro de expectativas constitutivo do processo informacional, é imediatamente utilizável nas operações próprias do mesmo. É importante destacar que se trata aqui de um sentido distinto daquele que o termo “perturbação”

Page 80: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 80

exibe na teoria dos sistemas autopoiéticos, na qual, usado como sinônimo de “irritação” (LUHMANN 1995, p.138; MATURANA & VARELA 1984, p.107-116), tende a ser identificado à informação em sentido estrito. A justificativa para este uso será apresentada mais à frente.

Enquanto o dado enganador é um ruído que se situa na dimensão semântica do processo informacional, a perturbação representa uma forma de ruído que se situa na dimensão pragmática do mesmo. No caso da perturbação, o que está em jogo não é o significado unívoco que o dado ganha a partir do quadro de expectativas que o usuário aplica à realidade em sentido amplo, mas a interpretação que se deve dar a um dado que perturba o quadro de expectativas do usuário, e que diz respeito, não à relação do usuário com a realidade por ele interpelada, mas à sua relação com outros sujeitos, outros quadros de expectativa, outros processos e sistemas informacionais (sobre a crescente importância que a dimensão pragmática tem adquirido nos estudos da informação, ver CAPURRO & HJORLAND 2003).

2 A PERTURBAÇÃO E OS SISTEMAS INFORMACIONAIS DE TENDÊNCIA AUTOPOIÉTICA.

A partir do que foi visto na seção 1, pode-se afirmar o seguinte. Embora a informação por um lado consista na seleção de uma possibilidade, ela por outro lado só existe, pelo menos quando considerada como informação relevante, a partir de uma seleção prévia, anterior à seleção que propriamente a constitui como novidade, que é a seleção do âmbito das possibilidades relevantes. Trata-se de proceder, no continuum caótico das infinitas possibilidades, a uma seleção e focalização do âmbito das possibilidades relevantes. Assim, o que origina e caracteriza qualquer processo ou sistema informacional é um ato primordial de diferenciação: no continuum caótico das infinitas possibilidades, estabelece-se uma distinção entre o âmbito das possibilidades relevantes e, por outro lado, o restante das possibilidades, que constituem o espaço dos dados informacionalmente irrelevantes.

Nesta segunda seção do trabalho, tentaremos relacionar este ato primordial de diferenciação ao quadro conceitual da teoria dos sistemas autopoiéticos, tal como exposta nos trabalhos de Maturana e Varela (MATURANA & VARELA 1984) e, principalmente, Niklas Luhmann (LUHMANN 1984 e LUHMANN 1995). Mais precisamente, tentaremos elaborar uma conexão lógico-conceitual entre a teoria da informação, tal como exposta na primeira seção, e a teoria dos sistemas autopoiéticos, tal como exposta nos trabalhos desses autores, principalmente Luhmann. Na verdade, ao contrário do que ocorre em Maturana e Varela, em Luhmann tal conexão é explicitamente afirmada em diversas passagens da obra (ver, por exemplo, LUHMANN 1984, p.67-68 e LUHMANN 1995, p.140-142); o que tentaremos fazer é, simplesmente, aproveitar os resultados obtidos na seção anterior para traduzir a conexão afirmada por Luhmann.

Por outro lado, com relação às críticas de Maturana e Varela ao conceito de informação (ver, por exemplo, MATURANA & VARELA 1984, pp. 188 e 218), pode-se afirmar o seguinte. Tais

Page 81: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 81

críticas decorrem de uma interpretação representacionista da informação, segundo a qual informação equivaleria a uma instrução externa que se impõe ao receptor (passivo), determinando as respostas que ocorrerão neste, ou seja, (in)formando-o e modelando-o. Trata-se de uma interpretação que não leva em conta o caráter circular do processo informacional. Se se leva em consideração este caráter circular, o conceito de informação se ajusta perfeitamente ao projeto geral de Maturana e Varela (ver MATURANA & VARELA 1984, p. 146-154): elaborar uma terceira via entre o representacionismo (formação/modelagem do receptor por instruções oriundas e dependentes apenas do ambiente externo) e o solipsismo (total independência das respostas do receptor em relação a qualquer entidade externa). Com efeito, conforme se esclarecerá logo a seguir, o caráter circular do processo informacional revela justamente que, embora as atividades de autoprodução que ocorrem no sistema autopoiético (tomado como situação-recepção) sejam dependentes das novidades ocorridas no seu ambiente (descartando assim o solipsismo), tais novidades são por outro lado dependentes de operações de observação e focalização efetuadas pelo próprio sistema, através das quais eventos meramente externos são transformados em eventos operativamente utilizáveis na dinâmica autopoiética do sistema (descartando assim o representacionismo).

Com relação à estrutura e limites da nossa argumentação, é importante enfatizar o seguinte. Tendo em vista nossos propósitos, não começaremos com a definição de autopoiese apresentada pelos autores com que iremos trabalhar, nem a discutiremos no restante do artigo. Partiremos de uma noção bastante vaga e genérica, segundo a qual autopoiese é a autoprodução de certos tipos de sistema, e tentaremos fazer com que o conteúdo e sentido dessa noção venham à tona a partir da elaboração dos conceitos e intuições da teoria da informação apresentados na seção anterior. Tampouco abordaremos as diferenças entre os três tipos de sistemas autopoiéticos que Luhmann admite, a saber, sistemas biológicos, sistemas psíquicos e sistemas sociais (para uma boa apresentação dessa questão e da teoria de Luhmann em geral, ver MOELLER 2006 e SEIDL 2005). No presente artigo, trata-se apenas de apresentar um quadro geral do conceito de autopoiese, em associação com os conceitos e intuições da teoria da informação apresentados na seção anterior. O quadro geral faz abstração das especificidades que concretamente caracterizam sistemas biológicos, psíquicos e sociais, ele tem antes o caráter de uma estrutura lógica altamente abstrata, subjacente a estes diferentes tipos de sistema.

Depois de apresentar esta estrutura lógica geral, tentaremos estabelecer uma relação entre o conceito de perturbação, tal como introduzido na seção anterior, e a dinâmica autopoiética específica dos sistemas sociais. Com relação a este objetivo, importa destacar os seguintes pontos. Como já foi dito, o conceito de perturbação com que iremos trabalhar difere daquele que comparece na teoria da autopoiese; nesta teoria, com efeito, a noção de perturbação é equivalente à de irritação, e tem o sentido de dado operacionalmente utilizável na dinâmica autopoiética do sistema, o que a torna praticamente idêntica à informação em sentido estrito. No nosso trabalho, ao contrário, perturbação tem o sentido de um meio-termo entre o dado informacionalmente irrelevante e, por outro lado, o dado imediatamente utilizável nos processos informacionais de caráter circular e auto-referente

Page 82: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 82

(informação em sentido estrito). A justificativa para este uso é que, em nosso trabalho, não usaremos o conceito de autopoiese para descrever a essência dos sistemas sociais, mas para indicar apenas uma tendência dos mesmos, à qual se contrapõe a perturbação como dado capaz de desencadear uma reconfiguração da dinâmica do sistema. Ao introduzir aspectos pragmáticos na dinâmica dos sistemas sociais, a perturbação abre espaço, se não para uma “pragmática universal” (veja HABERMAS 1976), ao menos a uma “pragmática local”, ou seja, intra-sistêmica, correspondendo a relações mais comunicativas dentro dos sistemas e entre eles, que atenuam sua tendência autopoiética.

Comecemos então com a afirmação acima feita, na qual procuramos retomar e resumir os resultados obtidos na seção anterior. O que origina e caracteriza qualquer sistema informacional é um ato primordial de diferenciação: no continuum caótico das infinitas possibilidades e dos infinitos eventos realizadores de possibilidades, estabelece-se uma distinção entre o âmbito das possibilidades e eventos relevantes e, por outro lado, o restante das possibilidades e eventos. Adotando-se o quadro teórico de Luhmann, não se deve pensar aqui num sujeito do ato de diferenciação, tomado como um substrato previamente estabelecido ao qual o ato por assim dizer pertence. Trata-se de conceber um ato (operação) de diferenciação sem sujeito ou substrato: estabelece-se e mantém-se uma distinção – uma distinção entre o âmbito das possibilidades e eventos relevantes e, do outro lado, o restante das possibilidades e eventos.

Ora, considerando-se que “possibilidades relevantes” são, por definição, possibilidades relevantes para um X, ao se estabelecer a distinção acima referida estabelece-se simultânea e paralelamente uma segunda diferenciação, a saber, a distinção entre o X para o qual destacam-se ou existem possibilidades relevantes e, por outro lado, o espaço (continuum) das possibilidades e eventos em geral, no qual e do qual destacam-se as possibilidades e eventos relevantes para X. Mais uma vez, não se deve conceber X como um sujeito, quer dizer, como um substrato previamente estabelecido ao qual pertence o interesse nas respectivas possibilidades relevantes. Trata-se de conceber X como uma espécie de lugar, um lugar lógico, e não tanto físico: X é o espaço lógico no qual se desenvolve, mantém e reproduz a operação de diferenciação acima referida, que é, simultaneamente, o lugar de operações para o qual destacam-se e existem possibilidades e eventos relevantes. Correspondentemente, o espaço das possibilidades e eventos em geral também deve ser concebido como uma espécie de lugar lógico: trata-se de um outro lugar, um lugar diferente, no qual e do qual destacam-se as possibilidades e eventos relevantes para X.

Cabe enfatizar, por fim, que as duas distinções estão mutuamente implicadas: as operações que se desenvolvem em X só mantêm a distinção entre o lugar “X” e o lugar “espaço das possibilidades e eventos em geral” à medida que mantêm a distinção entre o âmbito das possibilidades relevantes para X e, do outro lado, o restante das possibilidades, o continuum caótico das infinitas possibilidades e dos infinitos eventos realizadores de possibilidades. Embora X (o lugar de operações) se distinga do espaço em geral, ele (as operações que nele se realizam) só o faz na medida em que focaliza (observa) neste espaço o âmbito das suas possibilidades e eventos relevantes, constituindo dessa forma o seu

Page 83: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 83

meio-ambiente, ou seja, o meio do qual se sustentam as operações de assimilação e uso através das quais se mantêm sua (de X) individualidade e identidade.

Dando continuidade à apresentação que estamos tentando fazer da conexão teórica entre o conceito de informação e o conceito de sistema autopoiético, podemos afirmar o seguinte. X é um sistema autopoiético, que se autoproduz na medida mesmo em que se constitui como situação-recepção das novidades ocorridas no seu meio-ambiente, quer dizer, no seu âmbito de possibilidades e eventos relevantes, o qual se constitui então como situação-fonte. A dinâmica autopoiética de X envolve dois tipos fundamentais de operações, intimamente relacionados. Em primeiro lugar, operações de observação, focalização e codificação, que criam o meio-ambiente (situação-fonte) de X à medida mesmo que elevam os dados difusos do continuum das infinitas possibilidades e eventos ao patamar de dados operacionalmente utilizáveis no lugar de operações X (situação-recepção). Em segundo lugar, operações de assimilação e uso, que produzem os elementos e estruturas de que se compõe X (situação-recepção) à medida mesmo que processam, conectam e organizam os dados operacionalmente utilizáveis que se apresentam no meio-ambiente (situação-fonte) de X.

Do ponto de vista dessa apresentação, sistemas autopoiéticos podem ser definidos como sistemas que assimilam e usam as novidades do seu meio-ambiente para produzir os elementos e estruturas de que se compõem; ora, como esse uso depende por sua vez de operações de focalização e codificação que se efetuam a partir dos elementos e estruturas do sistema, pode-se afirmar que tais sistemas usam seus elementos e estruturas para (re)produzir seus elementos e estruturas, mediante assimilação e uso das novidades que se tornam disponíveis em seu meio a partir das suas próprias operações de focalização e codificação.

Neste momento da exposição, e sempre de acordo com as sugestões propiciadas pelo quadro teórico luhmanniano, é importante enfatizar o seguinte tópico. Embora o meio-ambiente (situação-fonte) seja num certo sentido externo a X, essa exterioridade é intra-sistêmica, ela é estabelecida e mantida por X, quer dizer, pelas operações que se realizam em X. É nesse sentido que o meio-ambiente é meio-ambiente de X. O meio é externo ao sistema, mas é intra-sistêmico. Em outras palavras, a distinção sistema-meio é intra-sistêmica; o sistema é distinção e unidade entre sistema e meio.

Assim, embora seja verdade que, do ponto de vista do processo informacional, os elementos e estruturas (re)produzidos em X (situação-recepção) sejam de algum modo dependentes das novidades ocorridas no meio de X (situação-fonte), a distinção entre situação-recepção e situação-fonte é por sua vez dependente de atos de observação, focalização e codificação que são realizados em X – nosso lugar de operações. Mais precisamente, a distinção entre situação-recepção (sistema) e situação-fonte (meio do sistema) é dependente de operações de observação e focalização que estabelecem a distinção entre o âmbito das possibilidades e eventos relevantes (meio do sistema) e, do outro lado, o espaço contínuo das infinitas possibilidades e eventos, que pode ser chamado de espaço meramente externo, lugar de eventos meramente externos. Assim, tomado como componente fundamental das

Page 84: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 84

operações autopoiéticas de X, o processo informacional é essencialmente circular. Num primeiro momento do círculo, é a partir do sistema X que se estabelece a distinção entre o sistema (constituído como situação-recepção de novidades) e o meio (constituído como situação-fonte de novidades), através de operações de observação e focalização que estabelecem a distinção entre o âmbito das possibilidades e eventos relevantes (meio do sistema) e, do outro lado, o contínuo das infinitas possibilidades e eventos (espaço meramente externo). No segundo momento do círculo, é a partir do meio, configurado pelo sistema como situação-fonte, que se estabelecem as novidades de que se sustentam as operações de autoprodução do sistema. Com efeito, as operações de autoprodução do sistema são, fundamentalmente, operações de assimilação e uso (processamento, conexão e organização) das novidades ocorridas no meio do sistema.

Partindo deste quadro lógico geral, passemos agora a uma análise da dinâmica autopoiética específica dos sistemas sociais. Importa antes de tudo destacar que, até o presente momento da exposição, estivemos identificando “meio de X” e “situação-fonte de X”. No caso dos sistemas sociais, entretanto, essa identificação pode gerar equívocos. Tais sistemas, com efeito, são sistemas de comunicação, ou seja, sistemas cujos elementos são eventos comunicativos como cristalizações das atividades de observação, codificação e assimilação próprias desse tipo de sistema. Ora, o fato de os sistemas sociais serem sistemas de comunicação implica que, no caso deles, é preciso diferençar uma situação-fonte estritamente interna ao sistema, que não pode ser identificada ao meio do sistema, e uma situação-fonte que se caracteriza por aquela exterioridade intra-sistêmica típica do meio do sistema. A situação-fonte estritamente interna ao sistema é, simplesmente, um dos pólos envolvidos nos eventos comunicativos constitutivos do sistema social em tela, e um pólo que se caracteriza pela reversibilidade: nas comunicações constitutivas de um determinado sistema social, a situação-fonte de uma comunicação pode perfeitamente ser situação-recepção em outra comunicação. Essa reversibilidade é impossível no caso da situação-fonte como meio do sistema: nesse caso, em nenhum momento a situação-fonte pode tornar-se situação-recepção (o meio do sistema nunca pode tornar-se sistema).

Para ilustrar essa questão, recorramos ao exemplo apresentado na seção anterior. Em princípio, sala dos funcionários e sala do chefe são, simplesmente, pólos em torno dos quais se desenvolvem os eventos comunicativos constitutivos da identidade e individualidade do sistema social em tela. Como pólo estritamente interno ao sistema, a sala dos funcionários é situação-fonte de uma comunicação que tem por situação-recepção a sala do chefe como pólo igualmente interno ao mesmo sistema. E como pólo estritamente interno ao sistema, a sala dos funcionários pode ser situação-recepção de uma outra comunicação, que teria por situação-fonte a sala do chefe como outro pólo interno. Em outras palavras, como pólo estritamente interno ao sistema a sala dos funcionários é uma situação-fonte definida pela reversibilidade, ou seja, possibilidade de ser situação-recepção em outro evento comunicativo.

Aplicando os conceitos da teoria da autopoiese, pode-se afirmar que o sistema a que pertencem

Page 85: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 85

sala dos funcionários e sala do chefe constitui uma unidade que se autoproduz à medida mesmo que assimila e usa as novidades que ocorrem em seu meio externo (exterioridade intra-sistêmica) para reproduzir os elementos e estruturas nos quais se cristalizam as atividades comunicativas que lhe são próprias. Para transformar eventos meramente externos em informações assimiláveis e utilizáveis na sua auto-(re)produção, o sistema precisa submeter tais eventos às suas operações de focalização e codificação, que vão ou simplesmente descartar tais eventos como dados informacionalmente irrelevantes, ou reconfigurá-los segundo o código próprio do sistema, permitindo que este lhes dê um encaminhamento adequado à sua auto-reprodução.

Tomados como sistemas autopoiéticos, os sistemas sociais são impermeáveis a dados que não podem ser reconfigurados e encaixados segundo o código próprio do sistema – tais dados tendem a ser ignorados, descartados como informacionalmente irrelevantes. Isso não exclui a possibilidade de que o encaixe na autopoiese do sistema equivalha a uma forma de processamento que responde a certos dados com comunicações meramente mercadológicas, dirigidas exclusivamente à opinião pública e desvinculadas das comunicações estritamente internas do sistema. Neste caso, tais dados podem decerto ser utilizados nas operações comunicativas que constituem o sistema, o que significa que eles podem ser considerados “informações para o sistema” – ainda que se trate de informações que só serão utilizadas nas comunicações mercadológicas da organização.

Suponhamos que o sistema do nosso exemplo seja estruturado segundo um código econômico rigidamente técnico, centrado na noção de maximização da produtividade e da eficiência. Poderíamos imaginar que no ambiente externo ao sistema surja uma comunicação produzida pelo programa de um partido político voltado para a defesa dos trabalhadores, e veiculada no médium da opinião pública (que é o médium do sistema da mídia, assim como o dinheiro é o médium do sistema econômico). Diante deste dado, o sistema em princípio tem duas alternativas: ou descartá-lo como informacionalmente irrelevante (não focalizá-lo), ou transformá-lo em dado operacionalmente utilizável pelo sistema, ou informação para o sistema, o que exige que o dado seja reconfigurado segundo o código próprio do sistema. Neste caso, é razoável conjecturar que a informação seria assimilada e processada no plano das comunicações meramente mercadológicas, tendo por resultado comunicações do tipo “a empresa respeita e valoriza seus colaboradores”.

É neste momento da exposição que se pode perceber o sentido e relevância do conceito de perturbação como meio-termo entre o dado informacionalmente irrelevante e, por outro lado, a informação como dado operacionalmente utilizável na dinâmica autopoiética dos sistemas sociais. Retomemos o exemplo da frase “repudiamos esta tarefa e este procedimento da empresa”, gerada na sala dos funcionários como pólo estritamente interno ao sistema estruturado segundo um código econômico rigidamente técnico. Dentro deste sistema, e segundo este código, o dado constituído por essa frase será provavelmente descartado como informacionalmente irrelevante; ele será tratado praticamente do mesmo modo que a mancha de tinta no envelope do memorando. Outra possibilidade, ainda inscrita no quadro teórico da autopoiese, é a divisão do sistema em tela em dois subsistemas,

Page 86: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 86

um técnico e outro político; neste caso, o subsistema político passaria a ser meio do técnico, e vice-versa. Deste ponto de vista, a frase apareceria no subsistema técnico como dado gerado no subsistema político. Isto significa que ela poderia ser tomada como informação do meio, informação em sentido estrito, ou seja, dado operacionalmente utilizável pelo sistema – mas sua assimilação e processamento exigiriam uma reconfiguração conforme o código específico do subsistema técnico, o que provavelmente levaria a uma comunicação com a marca “para o ambiente externo”, meramente mercadológica (do tipo “somos uma comunidade de colaboradores”), desvinculada das comunicações estritamente internas do subsistema (técnico) e por isso mesmo inofensiva para as mesmas e para o código que as define.

No quadro lógico-conceitual da teoria da autopoiese, não há lugar para o conceito de perturbação como meio-termo entre o dado informacionalmente irrelevante e a informação em sentido estrito. Isto ocorre porque a perturbação assim entendida representa no fundo uma perturbação para o código do sistema, que aponta para a possibilidade de uma flexibilização relativamente intencional do mesmo, ao passo que a teoria da autopoiese inclina-se antes para a concepção da rigidez e inflexibilidade do código que define o sistema; na teoria da autopoiese, alterações no código tendem a ser vistas como nascimento de outro sistema. Mas o fato de não haver lugar para nosso conceito de perturbação na teoria da autopoiese não implica que não se possa estabelecer uma relação entre este conceito e a dinâmica autopoiética dos sistemas sociais. Tudo depende do modo como se entende essa noção de “dinâmica autopoiética”. Se não usarmos o conceito de autopoiese para descrever a essência dos sistemas sociais, mas apenas para indicar uma tendência dos mesmos (que não pode ser negligenciada, como parece ocorrer em Habermas), poderemos usar o conceito de perturbação para indicar um fator capaz de atenuar esta tendência, um fator capaz de forçar o estabelecimento de comunicações menos autopoiéticas (ou seja, estruturadas segundo um código inflexível) e mais comunicativas, ou seja, mais abertas às competências e realizações dos sujeitos racionais, como argumentação, justificação, discussão, entendimento.

Se usarmos o conceito de autopoiese, não para descrever o que os sistemas sociais “são”, mas o que eles “tendem a ser”, poderemos unir os conceitos de autopoiese e perturbação (como meio-termo entre o dado informacionalmente irrelevante e a informação em sentido estrito) no quadro lógico de uma teoria crítica que interpreta os sistemas sociais como sistemas informacionais de tendência circular e auto-referente.

Page 87: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 87

4 REFERÊNCIAS

CAPURRO, Rafael e HJORLAND, Birger. 2003. The Concept of Information. Disponível em http://www.capurro.de/infoconcept.html

DRETSKE, Fred. 1981. Knowledge and the Flow of Information. Cambridge, MA: MIT Press.

FLORIDI, Luciano. 2005. Semantic Conceptions of Information. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em http://plato.stanford.edu

HABERMAS, Jürgen. 1976. Que Significa Pragmática Universal? In Teoría de la Acción Comunicativa: complementos y estudios prévios. Madrid: Cátedra, 1989.

LUHMANN, Niklas. 1984. Social Systems. Tradução de John Bednarz Jr e Dirk Baecker. Stanford: Stanford University Press, 1995.

LUHMANN, Niklas. 1995. Introdução à Teoria dos Sistemas – Aulas publicadas por Javier Torres Nafarrate. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis: Vozes, 2009.

MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. 1984. A Árvore do Conhecimento. As bases biológicas da compreensão humana. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001.

MOELLER, Hans-Georg. 2006. Luhmann Explained. From souls to systems. La Salle, IL: Open Court.

SEIDL, David. 2005. The Basic Concepts of Luhmann’s Theory of Social Systems. In Seidl, David e Becker, Kai Helge (eds.), Niklas Luhmann and Organization Studies, Malmö: Liber AB & Copenhagen Business School Press, p.21-53.

SHANNON, C. e WEAVER, W. 1949. The Mathematical Theory of Communication. Urbana: University of Illinois Press, 1980.

Page 88: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 88

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

RELAÇÕES OU “SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA” EM CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA JULGAMENTO DE

INFORMAÇÕES NA WEB

Márcia Feijão de Figueiredo, Maria Nélida González de Gómez

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo apresentar possíveis critérios de julgamento de informações na web e categorias que os compõem, evidenciando as relações ou ‘semelhanças de família’ apresentadas na literatura de modo confuso para o pesquisador. Para a realização desse análise, levantou-se na literatura trabalhos que possuem conceitos e definições da Qualidade da Informação, Autoridade Cognitiva e Credibilidade dentro da Ciência da Informação e em seguida criou-se quadros descritivos de categorias para organizar e verificar o seu uso dentro de cada critério. Algumas observações a respeito de cada critério foram feitos e sugere-se estudos empíricos para confirmar ou confrontar os trabalhos teóricos utilizados para a realização desse estudo.

Palavras-chave: Qualidade da Informação. Autoridade Cognitiva. Credibilidade. Julgamento da informação.

1 INTRODUÇÃOO advento da web como meio para o compartilhamento de informações é recente e, ao mesmo

tempo, o que oferece mais oportunidades e facilidades para acessar informações. Todavia, não dispõe de recursos que auxiliem na discriminação e seleção das informações disponibilizadas, tal como ocorre com fontes de informação no meio impresso. Na última década, um volume significativo de literatura tem como tema os modos de selecionar informações na web, e os critérios utilizados pelos usuários no julgamento das informações encontradas durante o processo de busca. Porém, tais critérios são descritos pelos mais diversos conceitos, com cruzamentos de significados e de relações, sem que possa identificar definições consensuais.

Para reconstruir o que se entende como validade da informação, procedeu-se em realizar um levantamento mapeando os principais conceitos que lhe são atribuídos, na literatura da Ciência da Informação. A partir dos trabalhos de autores como RIEH e METZGER, dentre outros, foram identificadas num primeiro momento três grandes categorias: Qualidade da Informação (em geral referente ao objeto informacional ou à fonte de informação); Autoridade Cognitiva (a qual remete a autoria e os contextos de legitimação da informação) e a Credibilidade (que implica na aceitação de uma informação como válida pelo usuário). Em seguida verificou-se que tais categorias são apontadas por diferentes autores como tendo relações ou funções semelhantes, assim como podem

Page 89: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 89

ser igualmente vinculadas a outros termos. Essa análise é relevante para a compreensão do estado atual da definição e uso de critérios

seletivos, sendo que, ao mesmo tempo em que a questão validade da informação é convertida em tema de muitos estudos e publicações, a literatura apresenta uma vasta e complexa rede de significados flutuantes: isto mostraria tanto o caráter contingente dos critérios como as incertezas que ainda encontramos na busca de informação em ambientes eletrônicos. O principio wittgenstiano da construção de significados pelos usos, e de sua agregação por semelhanças de família, tem servido assim de matriz metodológica para a reconstrução da rede de conceitos, usados como critérios de seleção e aferimento da validade da informação.

Deste modo, a divisão desse trabalho está em apresentar, em um primeiro momento, os critérios escolhidos para análise através dos conceitos e definições difundidos principalmente na literatura da Ciência da Informação. Em seguida é demonstrado, por meio de quadros, uma análise exploratória dos critérios e categorias vinculadas e as “relações ou semelhanças de famílias” que o constituem, tornando perceptível a estreita e, por vezes, confusa inter-relação entre os conceitos. Finaliza-se essa análise avaliando esses quadros e qual seria sua finalidade nos julgamentos de informação na web.

Acredita-se que a descrição das relações pode favorecer novos estudos sobre esses critérios, viabilizando estudos teóricos mais profundos e proporcionado conceitos para o desenvolvimento de estudos empíricos de informações disponíveis na web. A evidenciação das relações torna possível a aplicação dos critérios e das categorias em estudos empíricos sobre o julgamento realizado por usuários. O objetivo neste trabalho foi tornar mais evidente o papel que cada critério possui para estudar como o usuário pode realizar um processo de validação de informações imagéticas disponíveis na web, possivelmente desenvolvido em um próximo artigo.

2 CONCEITOS ACERCA DOS CRITÉRIOS DE JULGAMENTO DAS INFORMAÇÕES

2.1 Qualidade da InformaçãoA Qualidade da informação é um dos critérios mais citados nos estudos empíricos de julgamentos

de informações, de acordo com o trabalho de Rieh e Belkin (1998; 2000). Contudo, seu contexto de uso é diversificado e não há um consenso do conceito dentro da Ciência da Informação. Para Paim, Nehmy e Guimarães (1996, p. 112) “a qualidade da informação é considerada uma categoria multidimensional. Deve-se notar, no entanto, que não há consenso na literatura sobre definições teóricas e operacionais da qualidade da informação”.

Os pesquisadores utilizam a Qualidade da Informação sem situar de forma clara a definição ou extensão. O resultado é a ocorrência de interpretações ambíguas ou conflituosas do conceito de Qualidade da informação (WORMELL, 1990, apud RIEH; BELKIN, 1998, p. 280). Para desenvolver estudos sobre julgamento preditivo e avaliativo na web, Rieh e Belkin (1998) utilizam o conceito de Qualidade da informação apresentado no modelo de valor agregado de Taylor (1986) entendido como uma das categorias de critérios utilizados pelos usuários e detentor de cinco valores: precisão

Page 90: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 90

(accuracy), abrangência (comprehensiveness), informação corrente/ informação atualizada (currency), confiabilidade (reliability) e validade (validity).

Os cincos valores apresentados por Taylor, além de outros valores encontrados na literatura, são chamados por Paim Nehmy e Guimarães (1996, p. 115) de “atributos intrínsecos” em um modelo multidimensional que desenvolveram, se referindo “aos valores inerentes ao dado, ou ao documento enfim, à informação. [...] Na verdade, a integridade da noção de Qualidade da informação pressupõe, necessariamente, a presença do conjunto dos atributos intrínsecos”. As outras classificações de atributos utilizados no modelo multidimensional com “o objetivo de ressaltar os atributos de responsabilidade do provedor da informação, evitando o excessivo subjetivismo de definições usuais de qualidade da informação” (PAIM, NEHMY E GUIMARÃES, 1996, p. 115).

Rieh (2002, p. 146) é a única autora na Ciência da Informação que apresenta dois níveis de definição para a Qualidade da Informação: no nível conceitual utiliza o argumento de Taylor ao afirmar que é “um critério do usuário que tem a ver com a excelência ou, em alguns casos a veracidade da rotulagem” (TAYLOR, 1986, p. 62 apud RIEH, 2002, 146, tradução nossa) e no nível operacional, compreende que é a extensão do que os usuários pensam da informação, se é útil (useful), excelente (good), atualizada (current) e precisa (accurate).

Paim, Nehmy e Guimarães (1996, p. 115) descrevem as características da fonte de informação a partir do caráter contingencial do meio, ou seja, se é eletrônico, impresso, oral ou microforma, integral ou sintético, se formal ou informal, entendendo que seus atributos se relacionam com a forma de apresentação do produto. Rieh (2002, p. 146) observa que, no meio impresso, os indicadores de qualidade se encontram consolidados, como: a reputação das editoras, os processos de arbitragem, além de opiniões sobre a fonte. Nesse processo de julgamento, as pessoas possuem menos dificuldades porque acumularam também conhecimentos e experiências com os recursos de informação tradicionais de qualidade, como é o caso da seleção editorial.

Compreende-se que a Qualidade da Informação se aplica na avaliação da informação enquanto fonte documental. Seus aspectos enquanto documento podem trazer ao usuário pistas que resultem em filtros no processo de seleção das fontes de informação encontrada durante a busca, como a apresentação da página, e, no caso da web, a velocidade de carregamento da página (download) e a qualidade da resolução das imagens.

2.2 Autoridade CognitivaO conhecimento adquirido pelo homem ocorre de duas maneiras: através da experiência em

primeira mão, ou seja, o que as pessoas adquirem através de um estoque de idéias adquirido sozinho, levando-a a interpretar e compreender o mundo e; em grande parte, o conhecimento que se adquire através das idéias e informações fornecidas por outras pessoas, o que Wilson (1983) denomina

Page 91: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 91

“conhecimento de segunda mão”17. Patrick Wilson (1983) introduz o conceito de “Autoridade Cognitiva” para explicar esse tipo de conhecimento adquirido através de uma autoridade que influencia pensamentos e que as pessoas conscientemente reconhecem como apropriado (RIEH, 2003).

Wilson (1983, p.13) utiliza o termo Autoridade cognitiva para o fenômeno que aborda, apesar de “autoridade epistêmica” (epistemic authority) ser, em seu entendimento, uma alternativa melhor. A Autoridade cognitiva difere da Autoridade Administrativa (administrative authority), que é a pessoa que se encontra em posição de dizer a outros o que fazer, um direito reconhecido de comandar, dentro de certos limites prescritos. Wilson (1983, p. 18 apud SAVOLAINEN, 2007) observa que a Autoridade cognitiva não é valorizada apenas pelo seu estoque de conhecimentos (respostas para perguntas fechadas), mas também pelas suas opiniões (perguntas abertas).

As Autoridades cognitivas não se limitam ao domínio da produção científica, mas se estendem a todo tipo de área: moral, religiosa, política, estética, técnica, filosófica, e em áreas que possuam questões abertas indefinidamente. (WILSON, 1983, p. 18). Assim, nos apresenta algumas pontuações sobre a Autoridade cognitiva:

a. Autoridade cognitiva requer um relacionamento que envolve pelo menos duas pessoas; a autoridade de alguém é reconhecida por aquele individuo, o constitui num especialista, embora outra pessoa possa não reconhecê-lo como tal; é logo uma atribuição social de competência;

b. Autoridade cognitiva é uma questão de formação (degree), podendo-se ter muita ou pouca sobre o assunto;

c. Autoridade cognitiva é relativa à esfera de interesse e experiência de um indivíduo, em algumas questões pode-se falar como autoridade, enquanto que em outras situações pode não ter autoridade nenhuma;

d. Autoridade cognitiva implica o exercício de um tipo de influência, que não está relacionada a autoridade administrativa ;

e. Autoridades cognitivas são aquelas consideradas fontes credíveis de informação. (WILSON, 1983, p. 13-15).

Com relação às fontes de informação, Wilson (1983, p. 166) afirma que a base para o reconhecimento de uma autoridade cognitiva é o autor. Rieh (2003) apresenta algumas considerações sobre o reconhecimento de autoridade através de testes externos:

a) A Autoridade cognitiva está relacionada ao reconhecimento da autoria, onde o texto é confiável se o indivíduo ou grupo de indivíduos que o produziram são confiáveis18;

17 Para algumas linhas de pensamento, em todo conhecimento novo se parte de um conhecimento previamente existente, de modo que não se poderia diferenciar tão claramente um “conhecimento de segunda mão”.18 “We can trust a text if it is the work of an individual or group of individuals whom we can trust”. [�]The second consideration is “We can trust a text if it is the work of an individual or group of individuals whom we can trust”. [�]The second consideration is that cognitive authority can be associated with a publisher: a publishing house, a single journal, publication sponsorship, and published reviews, all can acquire thisauthority. The third consideration is found in document type. For example, a standard dictionary has authority in its own right; people do not concern themselves about the names of compilers in reference books. The fourth and final consideration is the recognition of a text’s contents as plausible or implausible and bestows or withholds authority accordingly. (RIEH, 2003);

Page 92: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 92

b) a Autoridade cognitiva pode estar associada, também, ao editor (publisher): editoras (publishing house), um periódico singular, publicações patrocinadas (publication sponsorship) e publicações que possuem revisão realizada por pares possuem e transmitem autoridade;

c) um determinado tipo de documento pode impor Autoridade cognitiva. Por exemplo, um dicionário renomado para as pessoas é mais importante do que os compiladores da obra;

d) o reconhecimento do conteúdo de um texto como plausível ou não.

O uso das redes e das Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC’s) no meio científico demonstra a interdependência entre os produtores de conhecimento, que aceitam e reconhecem os estudos desenvolvidos em outras disciplinas como fontes de consulta, e entendem que especialistas não conseguiriam produzir sozinhos todo o conhecimento requerido numa pesquisa. Para Pierre Levy (1999, p. 135) “o pensamento se dá em uma rede na qual neurônios, módulos cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita, livros e computadores se interconectam” e o resultado são as novas formas de produção do conhecimento. Gonzalez de Gómez (2007) propõe reformular o conceito Autoridade Cognitiva, que estaria assentada em contextos centralizados de autorização, e não se aplicaria adequadamente a produção de conhecimentos em redes colaborativas, ou a empreendimentos transdisciplinares e intertemáticos, onde as questões e os julgamentos de validade requerem o julgamento participativo de mais de um especialista e modos de saber.

[...] autoridade epistêmica distribuída - não só entre diversos especialistas e áreas do conhecimento científico, mas também entre diversos atores econômicos e socioculturais, implicados nas novas configurações relacionais de conhecimento e ação (GONZALEZ DE GÓMEZ, 2007, grifo da autora).

A Autoridade cognitiva como um critério para julgamento de informações é, como a Qualidade da informação, amplamente citado tanto em estudos empíricos como nas revisões de literatura. A sua contribuição estaria em avaliar a fonte enquanto origem, verificando os tipos de autoria e suas afiliações, e reconhecendo também as colaborações desenvolvidas em rede, por diferentes atores e autores, “autoridade epistêmica distribuída”.

De fato, um dos critérios de avaliação da autoridade cognitiva é o conhecimento prévio que o usuário já possui sobre o assunto investigado.

2.3 CredibilidadeA Credibilidade na literatura científica começou a ser estudada na década de 50, principalmente

nas áreas de psicologia e comunicação. Os estudiosos concordam que a Credibilidade é uma qualidade percebida que não se encontra no objeto ou na pessoa: o que deve se discutir é a percepção humana de avaliar a credibilidade de um objeto. Existem diversas dimensões que contribuem para a avaliação da Credibilidade, mas a grande maioria identifica a confiabilidade (trustworthiness) e a perícia (expertise) como essenciais. O uso conjunto desses dois conceitos permite avaliar tanto a idoneidade

Page 93: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 93

como a experiência, permitindo uma avaliação global (TSENG; FOGG, 1999, p. 40, grifo nosso). Metzger (2007, p. 2078), além de reconhecer as perícia e a confiabilidade como as principais

dimensões da Credibilidade, observa que dimensões secundárias afetam a percepção, como é o caso da atratividade da fonte (source attractiveness) e o dinamismo (dynamism), todos como parte do julgamento baseado no receptor.

Tseng e Fogg (1999) observaram que na literatura se utilizam duas palavras em inglês que, em boa parte dos casos encontrados na pesquisa, são sinônimas quanto a seu significado e diferentes do idioma: credibilidade (credibility) e credibilidade (believability). “Pessoas credíveis (credible) são pessoas credíveis (believable) e informação credível é informação crível (believable)”. Porém, ressaltam que a definição de Credibilidade foi originada do termo believability.

O conceito de Credibilidade tem aplicação em diversas disciplinas, como a Ciência da Informação, comunicação, psicologia, sociologia, marketing, ciências da saúde e administração, além das abordagens interdisciplinares, como os estudos de interação entre o homem e o computador (human-computer interaction – HCI) (WALTHEN, BURKELL, 2002, p. 135; RIEH, DANIELSON, 2007, p. 1). Rieh e Danielson (2007, p. 11-22) propõem o uso a Credibilidade em estudos que o relaciona as áreas de busca e recuperação da informação, comportamento do consumidor, ciências da saúde, e avaliação de recursos da web. Tseng e Fogg (1999, p. 41-43) especificam os tipos de Credibilidade, e uma avaliação global pode incluir todos os tipos simultaneamente:

Credibilidade Presumida (Presumed credibility). Descreve o quanto um observador acredita em alguém ou algo por causa de pressupostos gerais de sua mente. Suposições e estereótipos contribuem para a percepção da Credibilidade. Ex.: As pessoas assumem que seus amigos falam a verdade, então vêem seus amigos como credíveis (credible), e o oposto é a visão negativa que existe dos vendedores de automóveis.

Credibilidade Reputada (Reputed credibility). Descreve o quanto o observador acredita que alguém ou alguma coisa por causa do que terceiros relataram. Ex.: prêmios de prestígio (como o Prêmio Nobel), ou títulos oficiais (como Doutor ou Professor) concedidos por terceiros, tendem a tornar as pessoas que os receberam mais credíveis.

Credibilidade da Superfície (Surface credibility). Descreve o quanto um observador acredita que alguém ou algo baseado em uma simples inspeção, como o julgamento de um livro pela capa. Ex.: uma página da web pode aparentar Credibilidade por causa de seu projeto visual.

Credibilidade Experimentada (Experienced credibility). Refere-se a quanto uma pessoa acredita em alguém ou algo baseado em sua experiência em primeira mão. Interagindo com as pessoas ao longo do tempo, podemos avaliar sua competência (expertise) e confiabilidade (trustworthiness). Ex.: advogados tributaristas que se provam justos e competentes com o tempo ganham a percepção de seus clientes de que possuem Credibilidade.

Rieh e Danielson (2007, p. 307-308, tradução nossa, com grifo do autor) conseguem sintetizar os estudos na Ciência da Informação e sua relação com a Credibilidade:

Page 94: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 94

Dentro da Ciência da Informação, o foco é na avaliação da informação, tipicamente instanciado em documentos e demonstrações. Aqui, a credibilidade tem sido visto principalmente como um critério relevante para julgamento (Barry, 1994; Bateman, 1999; Cool, Belkin, Frieder, & Kantor, 1993; Park, 1993; Schamber, 1991; Wang & Soergel, 1998), com pesquisadores focando como as pessoas que buscam informações avaliam um provável nível de qualidade de um documento. (Liu, 2004; Rieh, 2002; Rieh & Belkin, 1998).

Rieh e Danielson (2007, p. 22), ao abordar a avaliação da Credibilidade na web observaram que, em diversas vezes o objeto avaliado não está definido na literatura, e se torna incompreensível o tipo de avaliação realizada. Para os autores, a avaliação de credibilidade na web se divide em três tipos: a avaliação da web enquanto mídia, a avaliação de web sites, ou páginas na web; e avaliação da informação na web. Essa divisão encontra confirmação de alguns trabalhos na literatura, e abaixo segue a definição de Rieh e Danielson (2007, p. 22-24) de cada tipo de avaliação, seguido de observações feitas por outros autores.

Avaliação da web: avalia a web enquanto mídia, equiparando-a a outros meios, como televisão e periódicos e verificando se os participantes dos estudos de Credibilidade a percebem como uma fornecedora de recursos credíveis de informação. Algumas observações sobre esse tipo de avaliação foram feitas durante o levantamento: a) os usuários mais experientes com a web são mais propensos a verificar a Credibilidade da informação (FLANAGIN, METZGER, 2000; GRAHAM, METAXAS, 2003); b) as percepções das pessoas variam conforme o tipo de informação que buscam e o contexto na qual será utilizada (notícia, entretenimento, comercial). (FLANAGIN; METZGER, 2000).

Avaliação de web sites: tipo de avaliação mais utilizada em pesquisas, o site é visto como a fonte de informação disponibilizada na web. Fallis e Frické (2002, p.75) são alguns dos autores que abordam a avaliação desse tipo de fonte. Eles publicaram um artigo sobre indicadores de precisão (accuracy) para consumidores das informações em saúde na Internet e, para essa avaliação, levantaram algumas categorias que agrupavam esses indicadores de Credibilidade em sua pesquisa: domínio comercial (.com, .org, .edu); atualização de dados e da página; HONcode (site que certifica as páginas sobre saúde que voluntariamente aderem ao Health On the Net Foudation’s Code of Conduct); espaço de publicidade; autor reconhecido; erros ortográficos; uso de pontos de exclamação; citação de literatura médica; e se há uso elevado de in-links.

Avaliação da informação na web: avaliação individualizada informação na web. A questão levantada nesse item é se as pessoas podem confiar naquilo que encontraram em suas buscas, pressupondo que o nível de Qualidade das informações pode variar até mesmo dentro de um web site. No mesmo texto, os autores apontam duas abordagens possíveis dessa questão: a primeira seria identificar algumas diretrizes acerca dos critérios que poderiam influenciar as percepções dos usuários sobre a Qualidade das informações que obtêm; a segunda, tratar de compreender as avaliações dos usuários através de suas próprias declarações, conforme for desenvolvida por esses autores, em 2000. (RIEH; DANIELSON, 2007, p. 26).

Page 95: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 95

As avaliações utilizando a Credibilidade como critério se aplicam a qualquer mídia, pois divide-se em mídia (web), a fonte (websites) e a informação. Acredita-se que a credibilidade é um critério que não se baseia na fonte, enquanto documento ou autoria, mas nos conhecimentos do usuário que os avaliam.

3 ANÁLISE DOS CRITÉRIOS E DIMENSÕES COM “RELAÇÕES OU SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA”

A literatura científica que estuda o uso de critérios para avaliar informações na web identifica, além da Qualidade da informação, Autoridade cognitiva e Credibilidade, categorias que se encontram dentro de cada critério e, por diversas vezes, de forma simultânea em mais de um critério, tendo por função descrever as facetas apresentadas durante o julgamento. Um conceito que pode explicar a relação entre os critérios e as categorizações levantadas é o que Wittgenstein chama de semelhanças de família.

Semelhanças de família (Familienänhlichkeiten) (I. F. 67, 77, 108) são, assim, as semelhanças entre aspectos pertencentes aos diversos elementos que estão sendo comparados, mas de tal forma que os aspectos semelhantes se distribuem ao acaso por esses elementos. [...] A semelhança não envolve uma propriedade comum invariável. Ao dizer que alguma coisa possui semelhanças de família com outra, não se está de forma alguma postulando a identidade entre ambas, mas apenas a identidade entre alguns aspectos de ambas (CONDÉ, 2004, p. 53-54).

Para dar visibilidade as relações ou “semelhanças de família” estabelecidas entre essas três categorias-âncora, segue abaixo um quadro que apresenta os critérios com as categorias utilizadas por diferentes autores. Num segundo momento, listou-se esses conceitos qualificadores das categorias e seus autores, para cada uma dos critérios principais. Diversos autores e trabalhos não foram inseridos nesse trabalho por dois motivos: apenas citaram a dimensão relacionada ao critério sem, no entanto, utilizar alguma definição; não foram utilizadas expressões ou descrições que fossem pertinentes a esta pesquisa ou se prestaram a alguma confusão.

Principais

categorizações

Qualidade da Informação Autoridade

Cognitiva

Credibilidade

Qualidade da

Informação

Metzger (2007) Tseng e Fogg (1999);

Savolainen (2007)Autoridade Cognitiva Paim, Nehmy e Guimarães (1996);

Rieh (2002)

Metzger (2007);

Credibilidade Rieh (2002)Precisão

(accuracy)

Paim, Nehmy e Guimarães

(1996);

Taylor (1986 apud RIEH,

BELKIN, 1998);

Rieh (2002)

Metzger (2007)

Page 96: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 96

Abrangência

(comprehensiveness)

Paim, Nehmy e Guimarães

(1996);

Taylor (1986 apud RIEH,

BELKIN, 1998)

Atualidade

(currency)

Paim, Nehmy e Guimarães

(1996)

Taylor (1986 apud RIEH,

BELKIN, 1998)

Rieh (2002)Confiabilidade

(trustworhiness/

reliability)1

Paim, Nehmy e Guimarães

(1996);

Taylor (1986 apud RIEH,

BELKIN, 1998)

Rieh, Belkin

(2000);

Rieh (2002);

Savolainen

(2007)

Tseng e Fogg (1999);

Metzger (2007);

Savolainen (2007);

Hilligoss, Rieh

(2007)Validade

(validity)

Paim, Nehmy e Guimarães

(1996);

Taylor (1986 apud RIEH,

BELKIN, 1998)

Relevância

(relevance)

Paim, Nehmy e Guimarães

(1996);

Taylor (1986 apud RIEH,

BELKIN, 1998)

Taylor (1986

apud RIEH, BELKIN,

1998)

Excelência

(goodness)

Marchand (1990 (apud PAIM,

NEHMY E GUIMARÃES, 1996);

Rieh e Belkin (1998)

Rieh (2002)

Taylor (1986

apud RIEH, BELKIN,

1998)

Quadro 1 – termos com “relação de família ou semelhanças”

3.1 Qualidade da Informação

Dimensões como validade, confiabilidade, precisão, completeza, novidade, pertinência, atualidade, significado através do tempo, abrangência, as quais mantêm entre si uma estreita interrelação. Por exemplo, para que a informação tenha valor real, ela deve também ser válida, confiável, precisa, etc. [...] Deve-se notar que a relação entre os diferentes atributos intrínsecos da qualidade da informação é extremamente forte, dificultando o estabelecimento de fronteiras entre um e outro, como, por exemplo, entre os atributos precisão e a validade, que têm significados muito próximos. Na verdade, a integridade da noção de qualidade da

Page 97: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 97

informação pressupõe necessariamente a presença do conjunto dos atributos intrínsecos. (PAIM; NEHMY; GUIMARÃES, 1996, p. 116).

Categorias Descrição e autoriaAutoridade Cognitiva Relacionado com a confiabilidade, a idéia de autoridade cognitiva

remete a “prestígio, respeito, reputação da fonte, autor ou instituição”. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

É um dos componentes do controle de qualidade na recuperação da informação. Rieh (2002)

Precisão (accuracy) A precisão tem o sentido aproximado de exatidão, correção, o que nos remete à ‘forma de registro fiel ao fato representado’. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

O valor agregado pelo sistema de processos que asseguram a transferência de dados e informações serem livre de erros. Taylor (1986, apud RIEH; BELKIN, 1998)

Se a informação no documento é precisa (accurate). Rieh (2002)

A b r a n g ê n c i a (comprehensiveness)

A abrangência diz respeito ao volume de dados necessários para que a informação se torne eficaz, nem muito, nem pouco. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

O valor agregado pela integralidade (completeness) da cobertura de um determinado assunto ou disciplina (química, por exemplo) ou de uma forma particular de informação (patentes, por exemplo). Taylor (1986, apud RIEH; BELKIN, 1998)

Atualidade (currency) A atualidade implica consonância com o ritmo de produção da informação, ou seja, opõe-se à obsolescência. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

O valor agregado: (a) pela atualidade (recency) dos dados adquiridos pelo sistema, e (b) pela capacidade do sistema (capability of system) em refletir os modos correntes de pensamento em seus acessos aos vocabulários. Taylor (1986, apud RIEH; BELKIN, 1998)

Se o documento está atualizado (up-to-date). Rieh (2002)

Page 98: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 98

C o n f i a b i l i d a d e (trustworhiness/reliability)

A confiabilidade significa credibilidade no conteúdo e na fonte da informação. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

Reliability - A confiança (trust) que um usuário possui na consistência da qualidade do sistema (quality of the system) e dos seus resultados ao longo do tempo. Taylor (1986, apud RIEH; BELKIN, 1998)

Validade (validity) Embora a literatura não registre definição satisfatória, pode-se afirmar que o conceito validade pressupõe integridade da fonte de informação e forma de registro fiel ao fato que representa. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

Até que ponto os dados ou informações apresentadas aos usuários são julgados como válido. Taylor (1986, apud RIEH; BELKIN, 1998)

Relevância (relevance) Próximo à eficácia, o atributo relevância significa para Saracevic (1970, p. 112)... “medida do contato eficaz entre uma fonte e um destinatário”. Paim, Nehmy e Guimarães (1996)

As facetas de qualidade também são consideradas consistentes para os estudos de usuários sobre critérios de relevância (user relevance criteria). Rieh, Belkin (1998)

Julgamento na qual as pessoas tomam a decisão de aceitar ou rejeitar itens específicos se baseando no item ser relevante ou não. Rieh (2002)

Excelência (goodness) A qualidade, considerada sob a ótica transcendente, implica o reconhecimento do valor da informação como absoluto e universalmente aceitável. Qualidade nesse sentido aproxima-se da idéia de excelência, é extra-temporal e permanente, mantendo-se, portanto com as mesmas características através dos tempos e nos diversos lugares, apesar das mudanças de gostos e estilos. (MARCHAND, 1990 apud PAIM, NEHMY E GUIMARÃES, 1996)Em geral, pessoas reconhecem qualidade e autoridade em publicações impressas porque foram acumulados padrões para publicações que julgam ter excelência (goodness) para a informação. Rieh, Belkin (1998)Uma das facetas primárias da qualidade da informação. Seu uso aparece quando uma informação sobressai ou é superior. Rieh (2002)

Quadro 2 – conceitos de “Qualidade da Informação” e relação com categorias Fonte: O autor.

Page 99: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 99

3.2 Autoridade cognitivaCategorias Descrição e autoria

Qualidade da Informação Julgamento objetivo que faz parte dos julgamentos baseados no receptor sobre a credibilidade de uma fonte ou mensagem. Metzger (2007)

Credibilidade Uma das seis facetas de autoridade cognitiva. Rieh (2002)

C o n f i a b i l i d a d e (trustworthiness/reliability)

Reliability – componente principal da noção de credibilidade. Rieh, Belkin (2000)

Uma das facetas da autoridade cognitiva. Rieh (2002)

Os dois conceitos são facetas da autoridade cognitiva, e a confiabilidade (trustworthiness) foi percebida como uma faceta primária. Savolainen (2007)

Relevância (relevance) A autoridade cognitiva se encontra dentro do julgamento dos critérios de relevância. Rieh, Belkin (1998)

Excelência (goodness) Pessoas reconhecem a qualidade e autoridade em publicações impressas porque foram acumulados padrões para publicações que julgam ter excelência (goodness) para a informação. Rieh, Belkin (1998)

Quadro 3 – conceitos de “Autoridade Cognitiva” e relação com categorias Fonte: O autor.

3.3 CredibilidadeCategorias Descrição e autoria

Qualidade da Informação A credibilidade é uma qualidade percebida que não reside em um objeto, uma pessoa ou um pedaço de informação. Tseng e Fogg (1999)

Autoridade Cognitiva Credenciais, qualificações a afiliações do autor, se o site é recomendado por uma fonte confiável. Metzger (2007)

O conceito de autoridade cognitiva e credibilidade da mídia são similares, sendo o primeiro utilizado em pesquisas da Ciência da Informação e o segundo nos estudos da comunicação. Savolainen (2007)

Page 100: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 100

Precisão (accuracy) O nível em que o site é isento de erros, se a informação pode ser verificada on line, e a confiabilidade das informações no site. Metzger (2007)

Atualidade (currency) A informação é atualizada (up-to-date) Metzger (2007)

C o n f i a b i l i d a d e (trustworthiness/reliability)

Trustworthiness: é definido como bem intencionado, verdadeiro e imparcial. A dimensão confiabilidade da credibilidade captura a excelência percebida ou a moralidade da fonte. Tseng e Fogg (1999)

Trustworthiness: dimensão primária do conceito de credibilidade. Metzger (2007)

A confiabilidade (trustworthiness) da fonte afeta significantemente a aceitação da mensagem em pesquisa de opinião. Savolainen (2007)

Trustworthiness: elemento chave para avaliação da credibilidade. A informação é confiável (trustworthy) quando aparenta ser fidedigna (reliable), imparcial (unbiased) e justa (fair). Hilligoss e Rieh (2007)

Quadro 5 – conceitos de “Credibilidade” e relação com categorias Fonte: O autor.

3.4 Resultados e discussões A Qualidade da informação foi o critério que apresentou maior número de relações com as categorias

apresentadas na literatura (oito), enquanto que a Autoridade cognitiva e a Credibilidade se mantiveram com cinco relações cada. Os autores que mais apresentam definições para as relações descritas foram Rieh e Belkin (1998) com nove relações e Rieh (2002) com sete, nos critérios de Qualidade da informação e Autoridade cognitiva. Nehmy, Paim e Guimarães (1996) apresentaram, dentro de Qualidade da informação, sete relações definidas com as categorias. Metzger (2007) apresentou cinco relações, Savolainen (2007) três, Tseng e Fogg (1999) duas e Hiligoss e Rieh (2007) uma relação. Pesquisas que não tinham como critério principal as categorias citadas não foram incluídas em nossos estudos.

Diversas categorias conceituadas por autores e que fazem parte da Qualidade da Informação propõem julgamentos que se remetem ao próprio documento: a Autoridade Cognitiva teria o autor como faceta confiável de qualidade; a precisão remete “forma de registro fiel ao fato representado”, conceito quase igual ao utilizado pelos autores para a validade (PAIM, NEHMY E GUIMARÃES,

Page 101: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 101

1996, p. 116). Rieh (2002) utiliza o termo diretamente com a palavra documento duas vezes, para precisão e atualidade.

O termo que se sobressai no quadro que analisa a Autoridade Cognitiva é a confiabilidade: enquanto tradução de Reliability, a confiabilidade é compreendida por Rieh e Belkin (2000) por componente principal de uma autoridade; a tradução de Trustworthiness é percebida por Metzger (2007) por faceta primária. A confiança na autoridade cognitiva pode ser o princípio para a aceitação de alguém sobre o conhecimento adquirido em segunda mão.

Tseng e Fogg (1999) ressaltam que a Credibilidade não reside no documento ou autor, mas na percepção. Metzger (2007) complementa essa afirmação ao indicar que a Credibilidade é recomendada por uma fonte confiável, aonde se entende que seja uma terceira pessoa. Se a Credibilidade é uma percepção que reside no homem, o conhecimento de um domínio pode se apresentar como fator de julgamento que atribui a credibilidade a algo ou alguém.

Sobre as relações existentes entre as categorias e os critérios, alguns termos têm um caráter genérico, podendo preceder ou incluir algumas das outras categorias, como é o caso da validade e da relevância. Observou-se que os três conceitos escolhidos, que é a Qualidade da informação, Autoridade cognitiva e a Credibilidade, são considerados em alguns trabalhos sub-categorias de outros critérios. Por exemplo, a Credibilidade é considerada uma importante característica da Autoridade cognitiva (WILSON, 1983, p. 15).

Outra observação diz respeito à relação igualitária estabelecida entre os critérios Credibilidade e Autoridade cognitiva nos estudos de Savolainen (2007). Essa abordagem não permite que um critério seja soberano sobre outro a ponto de se tornar uma dimensão. Os dois critérios são fatores que determinam a seleção e utilização das fontes de informação. São conceitos intimamente relacionados que se torna difícil dissociar de maneira inequívoca. (SAVOLAINEN, 2007).

4 CONCLUSÕESOs trabalhos utilizados nos quadros não aplicaram o uso dos critérios em pesquisas empíricas

de uma determinada área de conhecimento, com exceção de Savolainen (2007) que aborda a credibilidade da informação ambiental nos meios de comunicação, incluindo a web. A preocupação de alguns autores consistiu em conceituar e delimitar o uso dos critérios, criando um quadro conceitual próprio, como Nehmy, Paim e Guimarães (1996) para a qualidade da informação, Wilson (1983) em autoridade cognitiva e Rieh e Danielson (2007) para a credibilidade.

Observou-se durante o levantamento dos critérios e categorias que a Qualidade da Informação é o critério que permite o julgamento da informação enquanto fonte documental, a Autoridade Cognitiva seria critério para julgar informações se baseando na autoria e a Credibilidade utilizaria os conhecimentos do usuário como modo de realizar o julgamento das informações encontradas na web. Algumas categorias, como se observou, apresentam indícios que podem confirmar esse entendimento.

Page 102: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 102

A confirmação desses pressupostos teóricos poderia ocorrer através de estudos empíricos com pesquisadores que possuem a web como meio para a busca de informações. Esses estudos também trariam dados sobre o uso de critérios para julgamento de informações no Brasil, e como os pesquisadores utilizam a web como ferramenta de busca durante o desenvolvimento de suas pesquisas.

Abstract: This paper aims to present possible criteria for judging information on the web and its categories, showing the relationship or ‘family resemblances’ presented in the literature that confuses researchers. To perform this analysis It has been arosen in the literature that have concepts and definitions of information quality, cognitive authority and credibility within the Information Science and then created storyboards in order to organize categories and verify its use within each criteria. Some comments on each criteria were made and it is suggested empirical studies to confirm or confront the theoretical work used for this study.

Keywords: Information Quality. Cognitive Authority. Credibility. Information Judgments.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação: citações em documentos: apresentação. Rio de Janeiro, 2002.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação: referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002. 24 p.

FALLIS, Don; FRICKÉ, Martin. Indicators of accuracy of consumer health information on the internet: a study of indicators relating to information for managing fever in children in the home. Journal of the American Medical Informatics Association, Philadelphia, v. 9, n. 1, p. 73-79, Jan./Feb. 2002.

FLANAGIN, Andrew J.; METZGER, Miriam J. Perceptions of Internet information credibility. Journalism & Mass Communication Quarterly, Columbia, v. 77, n. 3, p. 515–540, 2000.

GONZÁLEZ DE GÓMEZ, Maria Nélida. Novas configurações do conhecimento e validade da informação. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIENCIA DA INFORMACAO, 8, 28-31 out. 2007, Salvador. Anais... Salvador: UFBA/PPGCI; Ancib, 2007. Disponível em: <http://www.enancib.ppgci.ufba.br/> Acesso em: 8 fev. 2010.

GRAHAM, Leah; METAXAS, Panagrolis T. Of course it’s true: I saw it on the internet! Communications of the ACM, New York, v. 46, n. 5, p. 71–75, 2003.

HILLIGOSS, Brian; RIEH, Soo Young. Developing a unifying framework of credibility assessment: construct, heuristics, and interaction in context. Information Processing & Management, Elmsford, v. 44, p. 1467-1484, 2008.

LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.

Page 103: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 103

METZGER, Miriam J. Making sense of credibility on the web: models for evaluating online information and recommendations for future research. Journal of The American Society for Information Science and Technology, New York, v. 58, n. 13, p. 2078-2091, 2007.

PAIM, Isis, NEHMY, Rosa Maria Quadros, GUIMARÃES, César Geraldo. Problematização do conceito “Qualidade” da Informação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 111-119, jan./jun. 1996. Disponível em: <http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/viewFile/8/27>. Acesso em: 10 jan. 2011.

RIEH, Soo Young. Cognitive authority. In: ANNUAL ASIST SIG USE RESEARCH SYMPOSIUM THEORETICAL FRAMEWORKS FOR INFORMATION BEHAVIOR, 3., 2003, Long Beach. Proceedings… Long Beach: ASIS, 2003.

____. Judgment of information quality and cognitive authority in the web. Journal of the American Society for Information Science and Technology, New York, v. 53, p. 145-161, 2002.

____. ; BELKIN, Nicholas J. Interaction on the web: scholars’ judgment of information quality and cognitive authority. In: ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN SOCIETY FOR INFORMATION SCIENCE, 63., 2000. Proceedings... Chicago: ASIS, 2000.

____. ; ____. Understanding judgment of information quality and cognitive authority in the WWW. In: ANNUAL MEETIN OF THE AMERICAN SOCIETY FOR INFORMATION SCIENCE, 61., Medford. Proceedings… Pittsburgh: ASIS, 1998.

____.; DANIELSON, David R. Credibility: A multidisciplinary framework. Annual Review of Information Science and Technology, White Plains, v. 41, p. 307-364, 2007.

SAVOLAINEN, Reijo. Media credibility and cognitive authority: the case of seeking orienting information. Information Research, Lund, v. 12, n. 3, paper 319, 2007. Disponível em: <http://InformationR.net/ir/12-3/paper319.html>. Acesso em: 09 jan. 2011.

TSENG, Shawn; FOGG, B. J. Credibility and computing technology. Communications of the ACM, New York, n. 42, p. 39–44, may, 1999.

WATHEN, C. Nadine; BURKELL, Jacquelyn. Believe it or not: factors influencing credibility on the web. Journal of the American society for information science and technology, New York, v. 53, n. 2, p. 134-144, 2002.

WILSON, Patrick. Second-hand knowledge: an inquiry into cognitive authority. Westport: Greenwood Press, 1983. (Contributions in Librarianship and Information Science, 44).Notes

1. O conceito de confiabilidade, em inglês, possui duas traduções distintas: Trustworhiness e Reliability. Savolainen (2007) cita as duas terminologias separadamente no trabalho, vinculando tanto a Autoridade cognitiva como a Credibilidade na avaliação das fontes de informação.

Page 104: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 104

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

A INTERDISCIPLINARIDADE NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: ESTRATÉGIAS DO DISCURSO

CONTEMPORÂNEO INTEGRADOR

Edivanio Duarte de Souza, Eduardo José Wense Dias

Esta “cobertura” lógica de regiões heterogêneas do real é um fenômeno bem mais maciço e sistemático para que possamos ver aí uma simples impostura construída na sua totalidade por algum Príncipe mistificador: tudo se passa como se, face a essa falsa-aparência de um real natural-social-histórico homogêneo coberto por uma rede de proposições lógicas, nenhuma pessoa tivesse o poder de escapar totalmente, mesmo, e talvez sobretudo, aqueles que acreditam “não-simplórios”: como se esta adesão de conjunto devesse, por imperiosas razões, vir a se realizar de um modo ou de outro (PÊCHEUX, 1990, p. 32).

Resumo: A epistemologia interdisciplinar vem sendo reconhecida como um dos principais fundamentos da Ciência da Informação, tomando como referência, pelo menos, dois elementos que apontam para a constituição de um campo epistemológico interdisciplinar: a complexidade do objeto de estudo e a multiplicidade de formações que caracterizam sua comunidade científica. Com efeito, essas constatações têm por base pontos estabilizados, desconsiderando o processo discursivo, que abarca suas condições de produção. Procura compreender o funcionamento do discurso da interdisciplinaridade na Ciência da Informação a partir da perspectiva da Análise do Discurso da escola francesa fundada por M. Pêcheux. Para tanto, foram analisados artigos da produção científica brasileira que discutem a integração disciplinar. A seleção dos artigos foi realizada com base em fase anterior da pesquisa, que buscou a delimitação do espaço em que se inscrevem a construção do objeto e do processo discursivos. O discurso da interdisciplinaridade na Ciência da Informação é permeado por mais de uma formação discursiva, mas se encontra ancorado no discurso dominante, que tem como vetor as determinações do modo de desenvolvimento informacional. Esse discurso é permeado de estratégias naturalizantes e generalizantes, que mascaram seu posicionamento ideológico. O pluralismo constitutivo do campo informacional promove a fragilidade no processo de integração disciplinar, que se traduz em dificuldade na constituição da identidade e na consolidação epistemológica da Ciência da Informação.

Palavras-chave: Ciência da Informação. Discurso da Interdisciplinaridade. Epistemologia da Ciência da Informação. Epistemologia Interdisciplinar.

1 INTRODUÇÃO

Page 105: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 105

A Ciência da Informação apresenta a epistemologia interdisciplinar como um dos seus principais pressupostos de origem, desenvolvimento e consolidação epistemológica. Se por um lado a interdisciplinaridade é tomada como pressuposto, por outro, esse campo de conhecimento ainda não dispõe de estudos e pesquisas que caracterizem, evidenciem e fundamentem as práticas interdisciplinares realizadas no seu interior. Além disso, quando desenvolvidos, grande parte deles adotam como procedimentos a construção de indicadores bibliométricos, visando a apresentar o desenho epistemológico a partir de temáticas que se constituem em objeto de estudos de diversas áreas do conhecimento, tais como Administração, Biblioteconomia, Documentação, Ciência da Computação, Comunicação, Linguística, entre outras. Nos últimos anos, alguns autores, a exemplo de Saracevic (1999, 2009) e White e McCain (1998), vêm apontando a existência de preocupação centrada nas inter-relações com outras áreas do conhecimento e a dificuldade de integração dos elementos internos que a compõem.

Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de pesquisas que procurem, ao mesmo tempo, dedicar-se à compreensão da integração disciplinar externa e interna, numa perspectiva de construção da autonomia do campo científico. A rigor, a dinâmica da integração disciplinar em direção à construção de sua autonomia se dá a partir das relações estabelecidas entre seus elementos constituintes e outros campos de conhecimento com os quais mantêm relações disciplinares, sejam elas multi, pluri, inter ou transdisciplinares. A interdisciplinaridade, que corresponde atualmente ao ponto máximo da integração disciplinar, desenvolve-se numa dinâmica de movimentos convergentes de forças centrípetas e centrífugas, promovendo, a um só tempo, a definição de identidade disciplinar e a participação ativa no movimento amplo de integração do conhecimento.

Assim, faz-se necessário compreender a base desse pressuposto interdisciplinar da Ciência da Informação com vista ao entendimento das implicações deste nos processos de constituição e de consolidação epistemológicas. O fato é que a proposta de desenho do campo da Ciência da Informação negligencia alguns elementos que permitem ir além da constatação do compartilhamento de temáticas com outras áreas do conhecimento. Trata-se de olhar para as construções interdisciplinares a partir da ótica formal, considerando suas condições de produção sócio-histórica. O conhecimento da formalização da integração disciplinar, no interior da Ciência da Informação, possibilita o entendimento das implicações da epistemologia interdisciplinar que vem sendo nela desenvolvida.

A prática científica é essencialmente uma prática social e, em sentido amplo, é condicionada pelo modo de produção capitalista e pelo modelo de desenvolvimento informacional vigentes. A Ciência da Informação, portanto, apresenta como condição ampla de origem e de desenvolvimento as determinações sociais, políticas, econômicas e, em última instância, histórico-ideológicas dessa estrutura capitalista. No que se refere às condições restritas de produção da interdisciplinaridade, é indispensável considerar o modelo de desenvolvimento científico contemporâneo, que tem como principais características o reconhecimento da complexidade da natureza, da relação sujeito-objeto e da insuficiência do modelo de analiticidade desenvolvido sob a égide da ciência moderna. Além

Page 106: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 106

disso, é imprescindível compreender os elementos que fazem parte da formação do campo científico da Ciência da Informação no mundo e no Brasil. A revolução informacional ocorrida a partir de fins da primeira metade do século XX se constitui, portanto, no contexto e ponto de partida dos elementos amplos e restritos que integram as condições de produção da interdisciplinaridade na Ciência da Informação.

A Análise do Discurso francesa de Pêcheux permite que se alcancem os meandros do discurso, partindo do dito presente na materialidade discursiva para o não-dito, que é também constitutivo do sentido. Assim, é possível atingir o não-dito por intermédio dos implícitos e silenciamentos, que além de evidenciar os efeitos de sentido construídos estão além das proposições lógicas aparentemente estabelecidas (PÊCHEUX, 1990).

O presente artigo expõe parte da pesquisa de doutoramento que busca compreender a formação do processo discursivo da interdisciplinaridade na Ciência da Informação, bem como suas implicações no processo de consolidação epistemológica do campo. Essa pesquisa foi realizada em duas fases (exploratória e focalizada), que se dedicaram respectivamente à descrição dos ditos e à descrição e à interpretação de montagens ou arranjos dos enunciados sobre a interdisciplinaridade. Os resultados aqui apresentados correspondem à parte da segunda fase da pesquisa, atendo-se à compreensão das estratégias discursivas que permeiam o processo discursivo da interdisciplinaridade na Ciência da Informação.

2 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E CIÊNCIA CONTEMPORÂNEA: CONTEXTOS DA INTEGRAÇÃO DISCIPLINAR

A compreensão da constituição e do progresso do conhecimento científico, bem como de suas respectivas condições materiais, pode se dar, conforme Lyotard (2000), a partir de, pelo menos, dois entendimentos de sociedade que influenciam o funcionamento dos setores, econômicos, políticos, sociais e ideológicos. A concepção da sociedade como um todo funcional e a concepção da sociedade composta por duas partes que tem como base na luta de classes a dialética como fundamento da unidade social. Esses entendimentos condicionam e particularizam as bases teórico-metodológicas de estudos e pesquisas que procuram compreender as condições da prática científica.

Aliando-se à segunda concepção de sociedade e ao pensamento de Castells (2000, p. 33, grifo do autor), “a perspectiva teórica que fundamenta essa abordagem postula que as sociedades são organizadas em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção, experiência e poder”. E, ainda, que “as instituições sociais são constituídas para impor o cumprimento das relações de poder existentes em cada período histórico, inclusive os controles, limites e contratos sociais conseguidos nas lutas pelo poder” (CASTELLS, 2000, p. 33).

A revolução informacional e a ciência contemporânea são, portanto, produto e processo do desenvolvimento técnico-científico, que foi gestado em fins do século XIX e vem sendo desenvolvido, sobretudo, a partir das duas últimas décadas do século XX. Por outro lado, esse desenvolvimento

Page 107: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 107

técnico-científico é responsável pela constituição e manutenção do novo modo de desenvolvimento informacional. De acordo com Castells (2000), contudo, o fator histórico decisivo para essas transformações foi e continua sendo o processo de reestruturação do capital, que vem sendo desenvolvido desde a década de 1980, resultando em um novo sistema econômico e tecnológico denominado de capitalismo informacional.

Assim, no horizonte da compreensão da base material do processo integrativo característico da ciência contemporânea, é fundamental considerar que, nas palavras de Castells (2000, p. 35, grifo nosso):

Cada modo de desenvolvimento tem, também, um princípio de desempenho estruturalmente determinado que serve de base para a organização dos processos tecnológicos: o industrialismo é voltado para o crescimento da economia, isto é, para a maximização da produção; o informacionalismo visa o desenvolvimento tecnológico, ou seja, a acumulação de conhecimentos e maiores níveis de complexidade do processo informacional. Embora graus mais altos de conhecimentos geralmente possam resultar em melhores níveis de produção por unidade de insumos, é a busca por conhecimentos e informação que caracteriza a função da produção tecnológica no informacionalismo.

Na esfera científica, a partir de fins do século XIX, começa a se esboçar, no mundo ocidental, um novo modelo de cientificidade, que, no início do século XX, resultaria nas bases da atual ciência contemporânea. Esse modelo, segundo Santos (2003), é caracterizado pelo reconhecimento da complexidade da natureza, da relação sujeito-objeto e da insuficiência do modelo de analiticidade moderno diante daquela constatação. A ciência contemporânea é resultado de dois movimentos convergentes: a insatisfação com o modelo de analiticidade, que vinha sendo desenvolvido no interior da ciência moderna, caracterizado, sobretudo, pelo esfacelamento do objeto e a segmentação da ciência em áreas e/ou campo do conhecimento cada vez mais especializado. Essa prática científica contemporânea representa não somente uma nova forma de estudar e compreender a natureza, mas essencialmente o estabelecimento de novas relações políticas, econômicas, sociais e, consequentemente, científicas sedimentadas no capital informacional.

Assim, considera que, para além de questões epistemológicas, o alargamento das fronteiras em diversos campos do conhecimento, conforme destacaram Domingues (2004) e Pombo (2003), tem por base os princípios do modo de desenvolvimento informacional, que visa, segundo Castells (2000), à acumulação de conhecimento e à obtenção da complexidade do processo informacional. Considera-se ainda que este estado de coisa se faz mais presente naqueles campos e/ou áreas científicos que têm a informação e o conhecimento como objetos de estudo. Com efeito, o projeto transdisciplinar “[...] remete a processos de conhecimento que concebem a fronteira como espaço de trocas e não como barreira, processos que incitam à migração de conceitos, à frequentação exploratória de outros territórios, ao diálogo modificador com o diverso e o de outra forma, processos que não se esgotam na partição de um mesmo objeto entre disciplinas diferentes, prisioneiras de pontos de vista singulares, irredutíveis, estanques, incomunicados” (SILVA, 2004, p. 36-37).

Page 108: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 108

A produção científica realizada, nesse espaço, coloca-se em um movimento de alargamento crescente da área ou campo de conhecimento que, tal como o aprofundamento especializado, constitui-se, segundo Domingues (2004), em obstáculo epistemológico, notadamente ao processo de consolidação epistemológica. A prática da integração disciplinar, principalmente a interdisciplinaridade, que se localiza nas proximidades do ponto transdisciplinar, deve ser objeto de constante vigilância epistemológica, uma vez que se encontra no ponto de conflito existente e ainda não resolvido “[...] entre ‘o generalista’ (que se esforça para alargar e unificar o conhecimento) e o ‘especialista’ (que se esforça por aprofundá-lo)” (DOMINGUES, 2004, p. 14).

O processo de consolidação epistemológica ou de autonomia do campo, segundo Bourdieu (1983), implica, ao mesmo tempo, na integração dos elementos constituintes do campo e no estabelecimento de relações com áreas e/ou campos do conhecimento circunvizinhos, considerando os diversos contextos em que essas relações se realizam.

As condições amplas de produção da prática científica da Ciência da Informação se inserem na nova ordem técnico-científica. De um lado, a superação do modelo de desenvolvimento industrial e do outro, mas como parte integrante daquele, a correspondente superação do modelo de analiticidade construído e estabelecido durante toda a era moderna. A palavra de ordem, nessa nova fase do capitalismo e, portanto, da ciência, é complexificar, que, em termos teórico-metodológicos, significa re-ligar, buscar as múltiplas facetas que compõem os objetos de estudo da ciência (MORIN, 2007). Numa vertente político-econômica, essa nova ordem se sustenta, respectivamente, na política neoliberal e na globalização dos mercados (CASTELLS, 2000), ao passo que, na esfera científica, fundamenta-se numa nova topa de conhecimento reticular (DOMINGUES, 2005), baseada na integração dos saberes. Esse contexto amplo referencia todo o desenvolvimento da Ciência da Informação, que procura corresponder às exigências do mercado capitalista e atender às demandas ou às necessidades sociais, do período em que foi criada aos dias atuais.

3 CONDIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Nascida sob a influência da Revolução Informacional, na segunda metade do século XX, a Ciência da Informação é, de acordo com Le Coadic (1996), resultado da valorização convergente da informação por três setores da sociedade: a indústria da informação, a tecnologia da informação e o campo científico. Nesse sentido, resultante de esforços conjuntos de diversas áreas e profissionais a elas ligados, esse campo de conhecimento nasce no epicentro dos principais elementos constituintes do novo modelo de desenvolvimento. Esse contexto, associado a diversos fatores tais como múltiplas necessidades de informação; diversas áreas interessadas nos processos de informação e com ele já envolvidas, naquele período, e atuação de profissionais de diferentes formações técnico-científicas, constituiu nas condições para a conformação de um campo de conhecimento de difícil organização e compreensão, mas tão logo reconhecido como interdisciplinar.

Page 109: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 109

Ao longo de sua recente história epistemológica, o conceito amplo que fez parte da institucionalização da Ciência da Informação parece acompanhar os períodos de sua evolução:

[...] disciplina que investiga as propriedades e o comportamento da informação, as forças que governam seu fluxo e os meios de processamento para otimizar sua acessibilidade e utilização. Relaciona-se com o corpo de conhecimentos relativo à produção, coleta, organização, armazenagem, recuperação, interpretação, transmissão, transformação e utilização da informação (BORKO, 1968, p. 3).

Esse entendimento sobre a Ciência da Informação vem possibilitando diversas leituras e, consequentemente, diferenciadas construções em torno do objeto de estudo, do campo profissional, dos profissionais da informação e, sobretudo, de relações interdisciplinares. Por outro lado, parece não ter contribuído de forma significativa para definição do domínio epistemológico, que corresponde à base de todas aquelas definições. O conceito de Borko (1968) pode ser considerado amplo, mas se constitui em um projeto eficiente para o desenvolvimento epistemológico da Ciência da Informação. Há uma grande possibilidade de os conceitos posteriormente desenvolvidos se localizarem no seu todo, ou em alguma parte daquele. O problema é que algumas leituras sobre Borko (1968) consideram o conceito na sua completude, no entanto, focam na segunda parte deste. Para o desenvolvimento do domínio epistemológico, isso se constitui em um entrave, uma vez que as propriedades – principalmente elas –, o comportamento da informação e as forças que governam seu fluxo correspondem, pelo menos neste momento, àquilo que mais se aproxima do vetor de integração epistemológica da Ciência da Informação. Ele possibilita, ao mesmo tempo, a integração de seus elementos internos e os desdobramentos de relações interdisciplinares. Esses últimos, principalmente, a partir das construções teórico-metodológicas em torno do conjunto de processos que compõem a segunda parte do conceito de Borko (1968).

Considerando, contudo, o contexto e os problemas que vêm orientando o desenvolvimento da Ciência da Informação, pode-se observar que a sua prática interdisciplinar se aproxima daquilo que Domingues et al (2004) denominaram de vício de origem, ou seja, trata-se mais de um compartilhamento de objeto de estudo ou de alguns aspectos deste, mas segundo pontos de vista diferentes por diversos campos e/ou áreas do conhecimento, tais como Biblioteconomia, Documentação, Recuperação da Informação, Comunicação, entre outros.

Para balizar a postura epistemológica vigilante necessária, algumas constatações feitas, na literatura especializada, no que concerne ao objeto de estudo, ao domínio epistemológico e às relações interdisciplinares, devem ser mencionadas e refletidas. Apesar de a Ciência da Informação se encontrar na fase de consolidação epistemológica e de aprofundamento das relações interdisciplinares (PINHEIRO, 2005), “[...] ninguém aceita ‘informação’ como objeto porque ninguém sabe o que ela é (se alguém sabe parece ser um tema de alguma disciplina já existente). Ela [Ciência da Informação] não poderia desenvolver um método específico por causa da obscuridade do suposto objeto.” (WERSIG, 1992, p. 210). Segundo González de Gómez (2000, grifo da autora),

Page 110: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 110

A pesquisa em Ciência da Informação apresentaria um problema particular que podemos identificar de modo quase imediato: Se existe grande diversidade na definição das heurísticas afirmativas, as que definem as estratégias metodológicas de construção do objeto e que permitem a estabilização acumulativa do domínio, maior é a dificuldade para estabelecer as heurísticas negativas, as que definem o que não poderia ser considerado objeto do conhecimento da Ciência da Informação, condição diferencial que facilita e propicia as relações de reconhecimento e complementaridade com outras disciplinas.

Além disso, a Ciência da Informação apresenta ritmos de desenvolvimento diferenciados entre teoria e prática, e, por vezes, desvinculação entre essas (LE COADIC, 1996). No que concerne ao campo, este é pouco desenvolvido no interior e muito povoado nas encostas (WHITE; MCCAIN, 1998). As relações interdisciplinares com a Biblioteconomia, que é apontada ao lado da Administração como fonte de maior exercício dessa prática (PINHEIRO, 2005), segundo Dias (2000), não possuem bases sólidas. E, fechando o quadro, após alguns anos de discussão sobre a origem, a evolução e as relações interdisciplinares da Ciência da Informação (SARACEVIC, 1992, 1995, 1996, 1997, 1999), Saracevic (2009) destaca a dificuldade de integração dos elementos internos que compõem o campo.

Considerando a recente história da Ciência da Informação e as observações realizadas, em um período de, pelo menos, dez anos, por pesquisadores de diversas partes do mundo, parece necessário encontrar um fio condutor para algumas discussões. Há pelo menos duas possibilidades: os pesquisadores que estão ingressando no campo não estão fazendo os necessários movimentos de interiorização e integração, ou os que aí já estão, numa ânsia interdisciplinar, esquecem de interligar os nós que constituem a rede de seu campo.

De modo geral, a comunidade científica corresponde ao grupo de profissionais que se dedicam à pesquisa científica e tecnológica (LE COADIC, 1996). No campo da Ciência da Informação, esta se compõe, desde sua origem, por um conjunto de profissionais originários de diferentes áreas do conhecimento, dentre eles, Administradores, Bibliotecários, Cientistas da Computação, Documentalistas, Engenheiros e Tecnólogos, que vêm se dedicando aos estudos, pesquisas e atividades relacionados à informação, seus processos e suas tecnologias. A multiplicidade da formação básica dos profissionais que constituem essa comunidade é uma característica que interfere diretamente nas suas produções e, portanto, deve ser considerada nas questões do domínio epistemológico do campo.

Além da diversidade de especialistas que compõem a comunidade científica da Ciência da Informação no Brasil e em vários países, o seu campo de conhecimento, a construção de seu objeto de estudo e o modelo contemporâneo de desenvolvimento científico correspondem a um conjunto de elementos que condicionam a sua prática científica. Alguns autores, a exemplo de Le Coadic (1996, p. 56), entendem que, em que pese esse conjunto de condições de desenvolvimento, “pouco a pouco, foram sendo elaborados conceitos, métodos, leis e teorias próprios dessa nova ciência”.

Se, no entendimento desse autor, o objeto de estudo e os problemas fundamentais de pesquisa, cujas composições se dão na correlação com o respectivo arcabouço teórico-metodológico, foram suficientemente delimitados, esse processo se deu, grosso modo, num apanhado de conceitos,

Page 111: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 111

métodos, leis e teorias advindos de outras áreas ou campos de conhecimento que também têm no campo amplo da informação seus problemas e objetos de pesquisa, tais como aqueles por ele citados: Biblioteconomia, Museoconomia, Documentação, Jornalismo, Informática, Psicologia, Sociologia, Ciências Cognitivas e Comunicação. Embora não se possa elencar, e muito menos discutir, todos aqui, é importante citar alguns a título de ilustração. No conjunto de “conceitos próprios” dessa nova ciência, Le Coadic (1996) cita alguns científicos (descrição de dados, manipulação de dados, gerenciamento de transações, controle de fila, citação, hipertexto, obsolescência e classificação) e técnicos (referências, tesauro e catálogo). No que concerne aos métodos, o autor cita os conhecidos métodos de catalogação, indexação, elaboração de resumos e clustering; e outros derivados, como a análise de co-citação e análise de termos associados.

Ainda no exercício de destacar as construções próprias da Ciência da Informação, Le Coadic (1996), ressaltando sua característica nomotética, cita as leis bibliométricas e as leis epidemiológicas. Os modelos do campo são sintetizados nos processos de comunicação e recuperação da informação (vetorial, probabilístico e linguístico). Concluindo, o autor destaca que “a Ciência da Informação não possui ainda, lamentavelmente, uma teoria ou conjunto de teorias que permita interpretar, de forma científica, racional, essas leis e esses modelos empíricos. Em matéria de informação, a prática precedeu a teoria. A teoria corre atrás dos fatos para compreendê-los. A teoria está atrasada em relação ao empírico e, sobretudo, há desconexão entre os dois” (LE COADIC, 1996, p.76-77). Mesmo assim, o autor cita três abordagens teóricas que dizem respeito à informação – a teoria matemática da informação, a teoria dos meios de comunicação de massa e a teoria da comunicação interativa.

As necessárias e devidas importações de conceitos, métodos, teorias e leis de outras ciências, áreas e campos do conhecimento correspondem a uma importante fonte da prática do conhecimento, principalmente se considerar a abertura e a sua correlata integração disciplinar na ciência contemporânea; contudo, é uma porta aberta às práticas ligeiras que não são frutíferas ao processo de consolidação. Brandão (2005) discute as práticas de importação e de tradução de conceitos em perspectivas transdisciplinares, que se caracterizam pela dificuldade do rigor metodológico, em função do movimento de expansão, da inexistência de limites precisos e de objetos claramente configuráveis e passíveis de serem visados.

Além da importação de conceitos sem a devida fundamentação teórico-conceitual, faz-se também necessário observar as características dos métodos e das técnicas de pesquisa utilizados no campo. Aqui duas questões merecem atenção. A flutuação teórico-metodológica é uma porta aberta aos estudos exploratórios e descritivos, que têm sua importância e devido lugar na produção científica, mas que carecem serem aprofundados, no âmbito dos outros dois níveis metodológicos apontados por Domingues (2004), isto é, da explicação e da interpretação. O pluralismo epistemológico decorre da contínua e crescente importação de conceitos de outras ciências ou campos de conhecimento, muitas vezes, sem os devidos processos de tradução.

Page 112: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 112

Além disso, é preciso lembrar e considerar que os critérios epistemológicos de escolhas e utilização de determinados conceitos, teorias e metodologias, que compõem e/ou comporão o seu domínio, têm por base não o conjunto desses elementos enquanto tal, mas o que se diz ou se pode dizer – e em que condições - sobre aqueles elementos, na construção do seu domínio. Nesse sentido, a epistemologia define suas bases analíticas, mas, embora numa proposta não nomotética, define também certo nível normativo que possibilita, pelo menos, alguns compromissos teórico-metodológicos e, em última análise, a comunicação entre os pesquisadores.

A necessidade da integração disciplinar, na Ciência da Informação, aponta para o desenvolvimento de pesquisas e práticas consilientes, na relação com o conjunto de áreas ou ciências que trabalham com a informação. Embora outras ciências ou disciplinas trabalhem de forma indireta com a informação e, por isso, possuem um estatuto “periférico” do fenômeno informacional, é dever dos pesquisadores delas originários fazer movimentos de deslocamento e aproximação do conjunto integrado do campo da Ciência da Informação e, a partir daí, estabelecerem relações com suas respectivas áreas de origem.

4 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E ANÁLISES DAS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS

A análise do discurso se processa a partir da composição de um dispositivo de interpretação, que implica na correlação entre um referencial teórico e os procedimentos de análise, ou seja, na construção do lugar da interpretação. Dessa forma, esse dispositivo tem como característica desenvolver novas práticas de leitura que “[...] consiste, como se sabe, em multiplicar as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim de se colocar em posição de ‘entender’ a presença de não-ditos no interior do que é dito” (PÊCHEUX, 1990, p. 44).

Partir do dito ao não-dito significa, segundo Orlandi (2001), considerar as pistas e os vestígios naquele inscritos, que, em sendo marcas formais para o analista, só interessam na relação destes com a materialidade discursiva, que promove a relação entre língua e história, ou seja, a relação língua-exterioridade. Nesse movimento, utilizam-se os implícitos e os silenciamentos como fios condutores da compreensão do processo discursivo. De acordo com Ducrot (1972)19, distinguem-se duas formas de não-dito: o pressuposto e o subentendido. Aquele deriva propriamente da instância da linguagem, estando necessariamente presente no dito. Este, por sua vez, que caracteriza o silêncio, deriva do contexto, não podendo ser necessariamente relacionado ao dito.

Algumas noções possibilitam, nesse espaço, a compreensão do não-dizer, quais sejam, condições de produção, formação ideológica, interdiscurso e formação discursiva. As condições de produção correspondem ao conjunto de elementos estruturais que engendram os discursos e se classificam em amplas e restritas. As primeiras expressam a relação do discurso com o contexto sócio-histórico, ao passo que estas correspondem às condições imediatas que possibilitam o acontecimento discursivo.

19 Ducrot (1972) citado por Orlandi (1992, 2001).

Page 113: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 113

As formações ideológicas se referem a um conjunto de atitudes e representações de caráter regional que concerne às posições de classe em um conflito. Caracterizado por uma reconfiguração constante, o interdiscurso corresponde à relação entre os sentidos anteriormente constituídos e uma formulação atual. Este constitui o espaço do pré-construído (FLORÊNCIO et al, 2009). A formação discursiva, por sua vez, define aquilo que, numa formação ideológica dada, determina o que pode ser dito (ORLANDI, 2001).

Na definição do corpus discursivo foram extraídas as sequências discursivas (SD) veiculadas em 28 (vinte e oito) artigos, que versam sobre a integração disciplinar na Ciência da Informação, publicados nos periódicos científicos Ciência da Informação, Data Grama Zero – Revista de Ciência da Informação, Encontros Bibli – Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Informação & Sociedade: Estudos, Perspectivas em Ciência da Informação, e Transinformação. Sua constituição teve como base as orientações de Orlandi (2001), ou seja, o problema da pesquisa, a natureza do material a ser analisado e as probabilidades de análise.

As análises desenvolvidas a partir desses indicadores da materialidade discursiva possibilitam, conforme destaca Orlandi (2001), a constituição do objeto de-superficializado, por intermédio das mobilizações das noções e dos dispositivos teóricos, na perspectiva da definição do dispositivo analítico. Esses dados não são considerados meras ilustrações, mas como fatos da linguagem com sua memória, sua espessura semântica, sua materialidade-discursiva.

Nos procedimentos de análise do discurso, seguem-se ainda as orientações amplas de Orlandi (2001), procurando remeter os textos ao discurso e esclarecer as relações deste com as formações discursivas e as relações destas com a ideologia. Assim, foram analisadas as estratégias discursivas, procurando estabelecer os processos discursivos, e a constituição do sujeito do discurso nas relações entre formações discursivas e formações ideológicas, independente da autoria dos textos que compõem a base material.

5 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NO DOMÍNIO INTERDISCIPLINAR DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

O discurso da integração disciplinar, notadamente, da interdisciplinaridade se encontra fundamentado numa rede de proposições lógicas aparentemente homogêneas, que interferem nas análises de primeira aproximação. Nesse conjunto, podem-se destacar tanto proposições lógicas positivas (“a informação é um objeto complexo, então o conhecimento sobre esta é necessariamente interdisciplinar”; “a Ciência da Informação tem sua origem em diversas disciplinas, resultando em um campo interdisciplinar”; e “a comunidade científica da Ciência da Informação é constituída por profissionais oriundos de diversas áreas do conhecimento, donde decorre sua prática interdisciplinar”) quanto disjuntivas (“ciência moderna” x “ciência contemporânea ou pós-moderna”; “conhecimento disciplinar” x “conhecimento interdisciplinar” e “prática disciplinar” x “prática inter-, multi-, pluri- e/ou transdisciplinar”).

Page 114: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 114

O fato é que, conforme Pêcheux (1990), apesar da multiplicidade de proposições lógicas, estas se constituem em espaços estabilizados ligados por evidências lógico-práticas. Por outro lado, esses espaços são atravessados por uma série de não-ditos (implícitos e silenciamentos), que evidenciam, a um só tempo, as construções discursivas e os efeitos de sentidos por elas produzidos. A análise desses implícitos e dos silêncios presentes na formação do processo discursivo possibilita a compreensão desse processo e das implicações dele decorrentes.

Assim, partindo das evidências já esboçadas nos resultados da pesquisa exploratória, pode-se dizer que, na perspectiva epistemológica, a interdisciplinaridade corresponde atualmente ao instrumento teórico-metodológico mais exequível da integração interna e externa dos campos científicos, uma vez que, conforme Domingues (2004), ainda não existe exemplo preciso de práticas transdisciplinares. Os ditos presentes nas SD sobre a integração disciplinar da/na Ciência da Informação têm por base o novo modo de fazer ciência (DOMINGUES, 2004; SANTOS, 2003), a nova topologia da sociedade da informação e o novo modelo de desenvolvimento informacional (CASTELLS, 2000). Assim, com base nessa materialidade lógica, pode-se dizer que a interdisciplinaridade se apresenta como elemento fundamental à constituição e à consolidação do campo da Ciência da Informação. Outros elementos precisam, contudo, ser considerados para compreender os efeitos de sentido presentes na produção científica, considerando as condições de produção desse discurso e, por conseguinte, as implicações do discurso no processo de consolidação epistemológica.

O discurso da interdisciplinaridade na Ciência da Informação é constituído por uma heterogeneidade discursiva e atravessado por uma rede interdiscursiva que traz as marcas dos discursos da política neoliberal e do processo de globalização da economia. Essas formações discursivas solidificam suas bases no novo modelo de desenvolvimento capitalista denominado por Castells (2000) de informacionalismo. Assim, é preciso considerar que, embora a prática interdisciplinar se caracterize pela constante tensão, disputa e negociação entre disciplinas, áreas e/ou campos do conhecimento, o discurso da interdisciplinaridade se apresenta como aparentemente homogêneo e se fundamenta em constatações também aparentemente lógicas. Essas constatações se encontram centradas basicamente no movimento de formação do campo científico, na complexidade do objeto de estudo, na diversidade de formação dos pesquisadores do campo e no novo modelo de cientificidade proposto pela ciência contemporânea. Partindo dessas constatações aparentemente estabilizadas, o discurso interdisciplinar na Ciência da Informação é ancorado numa rede de estratégias discursivas que pretende se revelar de ordem natural, geral e substancial. A marca do apagamento das diferenças, de acordo com Orlandi (2001), é característica do discurso autoritário.

No conjunto da primeira estratégia, pode-se observar algumas SD que evidenciam a procura da naturalização da prática interdisciplinar na Ciência da Informação, seja a partir da constituição de seu campo de conhecimento, da complexidade do seu objeto de estudo ou do novo modelo de cientificidade. Assim, apresenta a “[...] característica da interdisciplinaridade como um traço típico das ciências contemporâneas” (SD 1.1.10). Além disso, não se trata de uma questão específica da

Page 115: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 115

Ciência da Informação, uma vez que “essa concepção de interdisciplinaridade nasceu, naturalmente, da crise da fragmentação do saber e se constitui num procedimento que visa à superação dessa crise, através da busca da unidade de uma área, da unidade do homem, da unidade do universo” (SD 1.4.12).

É oportuno ainda destacar que, ao se colocar nessa esfera, a Ciência da Informação é invocada a se desenvolver a partir de uma perspectiva que se coloque a serviço da nova ordem. Para tanto, “cabe, a seguir, refletir a respeito da contribuição que a ciência da informação, área do conhecimento tipicamente interdisciplinar, pode oferecer” (SD 1.8.2). Esse projeto de interligação do conhecimento deve ser desenvolvido a partir de um “diálogo intermediado por uma ciência tipicamente interdisciplinar: a ciência da informação.” (SD 1.8.7).

A construção do discurso interdisciplinar, na Ciência da Informação, esconde as tensões e lutas que se desenvolvem, de forma ampla, no campo científico, como bem esclarece Bourdieu (1983). Isso pode ser observado na SD 1.9.6, ao destacar que “[...] a característica interdisciplinar da ciência da informação não precisa ser procurada, está lá, no âmago do próprio campo científico. [...]”. Ademais o discurso destaca “[...] a sua natureza interdisciplinar como ‘... disciplina que surge de uma ‘fertilização cruzada’ de ideias [...]’” (SD 1.23.6).

O generalismo corresponde à outra estratégia discursiva utilizada na ligação dos espaços aparentemente estabilizados do discurso da interdisciplinaridade na Ciência da Informação. De forma ampla, o discurso interdisciplinar na Ciência da Informação encontra repouso em um metadiscurso da ciência contemporânea. Isso fica bastante patente ao observar que “‘os avanços científicos mais recentes vêm colocando objeções ao paradigma da objetividade e universalidade da Ciência’ e, por extensão, trazem reflexos para as ciências humanas e sociais, cada vez mais interdisciplinares” (SD 1.1.5). E ainda, numa perspectiva mais restrita ao campo informacional, pode-se constatar que “[...] a interdisciplinaridade que, embora não explícita, está presente na gama de disciplinas que compõem o universo da informação” (SD 1.4.4). Ainda, nesse sentido, pode-se destacar: “[...] trocas significantes estão acontecendo entre vários campos científicos que abordam os mesmos problemas de informação, ou semelhantes, de formas bastante diferentes. A ciência da informação definitivamente deveria unir esses campos.” (SD 1.9.6).

Outra porta de acesso às estratégias substancialistas e generalistas está vinculadas ao objeto informação que, atrelado ao modelo de desenvolvimento da ciência contemporânea, permite compreender que “[...] existe uma forte característica de interdisciplinaridade nas mais diversas ciências. [...] A informação por si só, base fundamental para se investigar os Sistemas de Informação, é objeto de interesse de diversas áreas do conhecimento, conforme demonstrado pelos pesquisadores em Ciência da Informação [...]” (SD 1.7.4). É preciso ter em mente que o discurso autoritário interdisciplinar não considera as particularidades da informação como objeto de estudo de uma ciência específica, desconsiderando o processo de construção do objeto científico com suas definições teórico-metodológicas. Essa postura está implícita na literatura sobre interdisciplinaridade, como pode ser observada na seguinte SD 1.28.1: “[...] como resultante do seu próprio objeto de

Page 116: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 116

estudo - a informação - presente em todas as áreas do conhecimento humano, a CI assume caráter interdisciplinar e transdisciplinar”.

A rede conceitual do discurso interdisciplinar é construída a partir de uma multiplicidade de constatações lógico-práticas, tais como diversidade de informação, de sistemas de informação, disciplinas, de profissionais e de necessidades de informação, que, como esclarece Pêcheux (2002, 1990)20, permitem montagens ou arranjos de enunciados assim como os seguintes: “A característica interdisciplinar dos Sistemas de Informação deve-se também ao fato de que [...] quase toda disciplina científica usa o conceito de informação dentro de seu próprio contexto e com relação a fenômenos específicos” (SD 1.7.8) e ainda “A existência e necessidade da informação para quase todas as profissões, ciências e culturas [...]” (SD 1.23.8).

A complexidade é também reivindicada como ponto de estabilidade no discurso da interdisciplinaridade na Ciência da Informação, tanto no que concerne ao objeto de estudo quanto ao sujeito conhecedor. “Como área emergente e interdisciplinar, a ciência da informação deve beneficiar-se com a exploração da complexidade” (SD 1.3.3). E ainda a SD 1.23.7 “[...] a complexidade e multidimensionalidade do sujeito da ciência da informação [...]”.

A diversidade de formação dos profissionais envolvidos na composição do campo científico da Ciência da Informação é também utilizada como ponto de estabilidade das construções discursivas. Pode se observar uma sequência lógica da interdisciplinaridade nas SD seguintes, que produzem um efeito de sentido lógico-prático nas condições e na prática efetiva da interdisciplinaridade, ou seja, a existência de diferentes disciplinas e profissionais de diferentes formações. Dessa forma, a SD 1.4.11 esclarece que “na prática, um grupo interdisciplinar se compõe de pessoas com diferentes formações, portanto de diferentes disciplinas, com seus conceitos, métodos, dados e linguagens, reunidas com um só objetivo de trabalho”. E, nesse sentido, “[...] muitos dos atores da CI integram o campo desta ciência oriundo de outras formações, o que, na visão dos autores, apenas reforça a característica interdisciplinar da área de conhecimento” (SD 1.1.6). Portanto, “[...] a Ciência da Informação apoia o seu caráter interdisciplinar na Documentação, Comunicação e Pesquisa Linguística e atua como uma verdadeira ciência interdisciplinar ao envolver esforços de bibliotecários, lógicos, linguistas, engenheiros, matemáticos e cientistas do comportamento” (SD 1.5.4).

O discurso interdisciplinar fundamentado, de modo geral, no novo modelo de cientificidade mascara as lutas que são travadas no campo científico, apontando para uma aparente cooperação natural, como se pode observar na SD 1.4.2: “[...] a subjetividade e a interdisciplinaridade com componentes dessa nova ordem que se esboça ou prenuncia.” Trata-se da mesma lógica da política neoliberal e da economia global, que procuram estabelecer uma visão distorcida das determinações política e econômica postas pelo modo de produção capitalista e pelo modelo de desenvolvimento informacional. Acrescente-se a isso que a interdisciplinaridade é utilizada, na esfera científica, como instrumento de controle das relações de poder aí estabelecidas. De forma mais precisa, tal como ocorre

20 Pêcheux (2002) apud Florêncio et al (2009).

Page 117: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 117

com a ótica do processo de globalização, o processo interdisciplinar liga e desliga os centros das zonas periféricas conforme as exigências do capital. Contudo, essa postura é camuflada por enunciados aparentemente inocentes tais como das SD seguintes. “A interdisciplinaridade se coloca, pois, como meio para superação do individualismo, seja no desenvolvimento científico, seja no desenvolvimento técnico, seja mesmo no ensino” (SD 1.4.14). E ainda a SD 1.4.15: “A interdisciplinaridade, portanto, apresenta-se na sociedade atual como uma proposta de procedimentos que busca levar os homens, através do trabalho em parceria, a dividirem suas dúvidas, suas angústias, suas descobertas, em benefício de um todo.”

Apesar dos espaços existentes entre aquela multiplicidade de proposições lógicas, a estabilidade do discurso interdisciplinar, na Ciência da Informação, ganha maior fôlego numa rede de evidências lógico-práticas, conforme destaca Pêcheux (1990), formada por proposições naturalizantes e generalizantes, que camuflam os efeitos de sentidos dela decorrentes. Assim, pode-se observar na SD 1.4.12, que ilustra a composição dessa rede: “Essa concepção de interdisciplinaridade nasceu, naturalmente, da crise da fragmentação do saber e se constitui num procedimento que visa à superação dessa crise, através da busca da unidade de uma área, da unidade do homem, da unidade do universo.”

Assim, no imbricado dessa rede discursiva, o discurso interdisciplinar da Ciência da Informação traz, embora que implicitamente, a proposta de servir ao novo modelo de desenvolvimento do informacionalismo, ao colocá-la como instrumento científico que visa, de modo geral, contribuir com a acumulação de conhecimento e maiores níveis do processo informacional (CASTELLS, 2000), pois, de acordo com a SD 1.9.1, “Esta nova ciência tem sido caracterizada, desde os primórdios, por uma abordagem interdisciplinar de problemas e uma visão social da informação, o que permite propor como responsabilidade social do novo campo: facilitar a comunicação do conhecimento científico”. É necessário considerar que a revolução informacional e a ciência contemporânea são, ao mesmo tempo, produto e processo do desenvolvimento técnico-científico que vem sendo gestado desde fins do século XIX. Esse desenvolvimento é responsável pela constituição do novo modelo de desenvolvimento informacional que busca formas de manutenção na nova ordem global.

Na heterogeneidade discursiva, é possível observar também alguns deslizes na constituição do processo discursivo que evidenciam o discurso polêmico que, segundo Orlandi (2001), deixam escapar a relação tensa pela disputa de sentido. Nessa formação discursiva da interdisciplinaridade na Ciência da Informação, o processo discursivo rompe ou, pelo menos, questiona as estabilidades pautadas na naturalização, no substancialismo e no generalismo. Isso pode ser observado em Smit, Tálamo e Kobashi (2004), para quem a Ciência da Informação “[...] associa a propalada interdisciplinaridade da área a uma reunião de diferentes disciplinas, revelando uma inconsistência teórica, associando à área uma abordagem a-histórica”. Ao contrário do discurso ancorado na formação ideológica dominante, esse discurso apresenta, de acordo com Orlandi (2001), os conflitos e tensões que se instalam no processo discursivo. Nesse sentido, é oportuno observar que os discursos logicamente estabilizados tornam opacos os fundamentos da construção da autonomia de um campo científico. O discurso com

Page 118: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 118

formação polêmica destaca, contudo, que “[...] seja qual for a designação a ela atribuída [a Ciência da Informação], afirmou-se na interdisciplinaridade [...] sem examinar com clareza sua própria trajetória disciplinar autônoma” (SMIT; TÁLAMO; KOBASHI, 2004).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A integração disciplinar tem atualmente na interdisciplinaridade o seu principal instrumento teórico-metodológico, uma vez que, embora a ciência contemporânea tenha como proposta o desenvolvimento de estudos transdisciplinares, ela se constitui na prática exequível de integração dos elementos internos e externos dos campos de conhecimento específicos. Nesse contexto, a Ciência da Informação, desde a sua origem na segunda metade do século XX, vem adotando a interdisciplinaridade como um de seus pressupostos. Contudo, ao mesmo tempo em que a assume, apresenta algumas dificuldades na identificação e na definição de suas práticas científicas.

O discurso interdisciplinar, na Ciência da Informação, é construído a partir de um conjunto de constatações e proposições lógicas aparentemente estabilizadas, que estão centradas basicamente no metadiscurso da ciência contemporânea e da complexidade, de forma ampla; e na compreensão da constituição do campo de conhecimento da Ciência da Informação, da formação da comunidade científica e da construção do objeto de estudo, de modo específico.

A partir das análises das SD, pode-se dizer que o discurso da integração disciplinar, na Ciência da Informação, é permeado por mais de uma formação discursiva, contudo, encontra-se ancorado num discurso dominante, que tem por base as determinações do modo de desenvolvimento informacional. Assim, embora a formação ideológica que sustenta esse discurso pareça apagar a heterogeneidade e camuflar os conflitos presentes por intermédio de estratégias discursivas lógico-práticas de ordem naturais, substanciais e gerais, é possível observar as lacunas e marcas da distância discursiva, conforme sugere Pêcheux (1990). A interdisciplinaridade, na Ciência da Informação, é apresentada em um espaço logicamente estabilizado, desconsiderando as tensões, disputas e negociações que existem no campo de lutas e forças que as constituem, com toda a carga de determinações sociais, políticas, econômicas e histórico-ideológicas.

Compreende-se que, do ponto de vista epistemológico, há certa fragilidade nos processos de integração disciplinar, sobretudo interno, uma vez que, longe de se constituir em fundamentos de práticas integradoras, o discurso interdisciplinar, na Ciência da Informação, tem por base um metadiscurso contemporâneo homogeneizador que camufla o seu compromisso com a tecnociência e o controle dos fluxos de informação e conhecimento, em detrimento de efetivas contribuições teórico-metodológicas orientadas à construção de sua autonomia. Nessa perspectiva, a interdisciplinaridade que vem sendo construída na Ciência da Informação se constitui em entrave ao processo de consolidação epistemológica, na medida em que esta se disciplina em torno de um jogo subversivo da tecnociência em detrimento das necessidades teórico-metodológicas de seu

Page 119: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 119

campo epistemológico.De forma mais precisa, pode-se dizer que o seu forte vínculo com a revolução informacional,

com o novo modelo de desenvolvimento econômico e com a ciência contemporânea, desconsiderando as particularidades de seu campo de conhecimento e de seu objeto de estudo específico, bem como das teorias e metodologias, em um movimento de busca incessante de relações interdisciplinares, representa a aceitação acrítica das proposições gerais e aparentemente estabilizadas. Essa postura colabora, por um lado, com a flutuação conceitual, teórica, metodológica e prática presente no campo da Ciência da Informação e, por outro, com a dificuldade de construção de sua identidade.

Abstract: The interdisciplinary epistemology has been recognized as one of the cornerstones of Information Science, with reference to at least two elements that point to the epistemological constitution of an interdisciplinary field: the complexity of the subject matter and the multiplicity of formations that characterize the community scientific. Indeed, these findings are based on stable points, ignoring the discursive process, which covers their production conditions. Try the operation of the discourse of interdisciplinarity in information science from the perspective of Discourse Analysis of the French school founded by M. Pêcheux. To do so, the articles of the Brazilian scientific production, discussing the disciplinary integration. The selection of articles was based on previous phase of research that sought to delimit the space in which are inscribed the construction of the object and discursive process. The discourse of interdisciplinarity in information science is permeated by more than a discursive formation, but is anchored in the dominant discourse, which is the vector determinations informational mode of development. This discourse is permeated by naturalizing strategies and generalizing that mask their ideological stance. The constitution of pluralism informational field promotes the fragility in the process of disciplinary integration, which translates into difficulty in the formation of identity and epistemological consolidation of Information Science.Keywords: Information Science. Discourse of Interdisciplinarity. Epistemology of Information Science. Interdisciplinary Epistemology.

REFERÊNCIAS

BORKO, H. Information science: what is it? American Documentation, Chicago, v.19, n.1, p.3-5, Jan. 1968.

BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. Cap. 2, p. 122-155.

BRANDÃO, C. A. L. A traduzibilidade dos conceitos: entre o visível e o dizível. In: DOMINGUES, I. (Org.). Conhecimento e transdisciplinaridade II: aspectos metodológicos. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. Cap. 2, p. 41-100.

Page 120: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 120

CASTELLS, M. A sociedade em rede. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 617p.

DIAS, E. W. Biblioteconomia e Ciência da Informação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 5, n. especial, p. 60-80, jan./jun. 2000.

DOMINGUES, I. .Em busca do método. In: DOMINGUES, I. (Org.). Conhecimento e transdisciplinaridade II: aspectos metodológicos. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. Cap. 1, p. 17-40.

DOMINGUES, I. et al. Um novo olhar sobre o conhecimento. In: DOMINGUES, I. (Org.). Conhecimento e transdisciplinaridade. Belo Horizonte: Editora da UFMG/IEAT, 2004. p. 13-27.

FLORÊNCIO, A. M. G. et al. Análise do discurso: fundamentos & prática. Maceió: Edufal, 2009. 131p.

GONZÁLEZ DE GÓMEZ, M. N. Metodologia da pesquisa no campo da Ciência da Informação. Data grama zero - revista de Ciência da Informação, v. 1, n. 6, dez. 2000. Disponível em: <http://dgz.org.br/dez00/F_I_art.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009.

LE COADIC, Y. F. A Ciência da Informação. Brasília: Briquet de Lemos Livros, 1996. 119p.

LYOTARD, J. A condição pós-moderna. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. 131p.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 120p.

ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 2001. 100p.

______. As formas do silêncio: Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992. 189p.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Capinas, SP: Pontes, 1990. 65p.

PINHEIRO, L. V. R. Processo evolutivo e tendências contemporâneas da Ciência da Informação. Informação e sociedade: estudos, João Pessoa, v. 15, n. 1, p. 13-48, jan./jun. 2005. Disponível em: <http://www.ies.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/51/1521>. Acesso em: 25 ago. 2009.

POMBO, O. Epistemologia interdisciplinar. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINARIDADE, HUMANISMO, UNIVERSIDADE. Porto, 2003. Anais... Porto, 2003. p. 1-29. Disponível em: <http://www.humanismolatino.online.pt/v1/pdf/C002_11.pdf>. Acesso em: 16 set. 2008.

SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003. 92p.

SARACEVIC, T. Ciência da Informação: origens, evolução e relações. Perspectiva em Ciência da Informação. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 41-62, jan./jun. 1996.

______. Information Science. Journal of the American Society for Information Scince, v. 50, n. 12, p. 1051-1063, 1999.

______. Information Science. In: BATES, M. J.; MAACK, M. N. (Eds). Encyclopedia of Libray of Information Science. New York: Taylor e Francis, 2009.

______. Information Science: origen, evolution and relations. In: VAKKARI, P.; CRONIN, B. Conceptions of Library and Informations Science: historical, empirical and theoretical perspectives. London: Taylor Graham, 1992. p. 5-27.

______. Interdisciplinary nature of Information Science, Ciência da Informação, Brasília, v. 24, n. 1, p. 36-41, 1995.

Page 121: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 121

______. Users lost: reflections on the past, future, and limits of information science. SIGIR Forum, v. 31, n. 2, p. 16-27, 1997.

SILVA, E. M. P. Os caminhos da transdisciplinaridade. In: DOMINGUES, I. (Org.). Conhecimento e transdisciplinaridade. Belo Horizonte: Editora da UFMG/IEAT, 2004. p. 35-43.

SMIT, Y. W.; TÁLAMO, M. F. G. M.; KOBASHI, N. Y. A determinação do campo da Ciência da Informação: uma abordagem terminológica. Data grama zero - revista de Ciência da Informação, v. 5, n. 1, fev. 2004. Disponível em: <http://www.datagramazero.org.br/fev04/Art_03.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009.

WERSIG, G. Information Science and theory: a weaver bird’s perspective. In: VAKKARI, P.; CRONIN, B. Conceptions of Library and Information Science: historical, empirical and theoretical perspectives. London: Taylor Graham, 1992. p. 201-217.

WHITE, H. D.; MCCAIN, K. W. Visualizing a discipline: an author co-citation analysis of Information Science, 1972-1995. Journal of the American Society for Information Science, v. 49, n. 4, p. 327-355, 1998.

Page 122: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 122

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

SOCIEDADE, INFORMAÇÃO, CONDIÇÕES E CENÁRIOS DOS USOS SOCIAIS DA INFORMAÇÃO

Francisco das Chagas de Souza

Resumo Objetiva expor uma reflexão epistemológica sobre a Ciência da Informação, que parte de uma discussão dos conceitos de sociedade e informação. Coloca em exame, a partir da ideia de usos sociais da informação, um quadro de análise constituído por dois focos que vêm se desenhando nos anos recentes, em face do predomínio da submissão humana aos dispositivos tecnológicos empregados, a título de aceleração das comunicações e melhoria da produtividade econômica, para dar prevalência a enfoques econômicos ou conformadores/normalizadores da existência humana e das relações e interações que a fariam configurar-se como sociedade, em detrimento de quaisquer outros aspectos constituidores dessa existência. Para a reflexão, toma como referência teórica fundamentalmente a sociologia do conhecimento e uma filosofia de feição fenomenológica. Parte da concepção de que as comunidades humanas e as comunidades de ciência, ao se realizarem como construtos históricos, são inacabadas, portanto, estão em processo, estão em transformação e, por isso, se modificam enquanto se constroem. É apresentado um conceito de informação que tenciona ser representativo para a Ciência da Informação e que leva em conta os fundamentos teóricos empregados. Por fim, expõe o entendimento de que os conceitos de sociedade e informação seriam representáveis como duas páginas de uma folha de papel, sem pauta e sem indicação de frente e de verso.

Palavras-chave: Sociedade. Informação. Uso social da informação. Epistemologia.

1 INTRODUÇÃOO trabalho que se desenvolve em um campo de investigação, pelo esforço contínuo dos

integrantes das diversas organizações que compõem a sua comunidade, tais como associações científicas, programas de pós-graduação, grupos de pesquisadores, núcleos de pesquisa, editores de livros e periódicos especializados, dentre outros a ele relacionados, visa na parceria com o Estado, nem sempre sem conflitos, oferecer respostas às demandas da população que constitui esse Estado e das pessoas que constituem essa comunidade científica.

Essa parceria, idealmente, representa para o Estado a responsabilidade de oferecer meios para que o trabalho científico produza respostas para a população, que sejam eficazes no sentido de melhorar seu padrão de educação, saúde, alimentação, acesso à riqueza, etc. Isso implica que o Estado deverá constituir organismos que sejam dotados de fundos econômicos e regulações apropriadas às

Page 123: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 123

missões que lhes forem atribuídas. Na relação com a comunidade científica, esses organismos, além de seu quadro burocrático, abrigam a presença dos representantes da comunidade científica, dos mais distintos campos. Isso tem como finalidade sua participação na orientação da tomada de decisões que tornem efetivas as estratégias que esses agentes do Estado seguirão, para executar as ações de políticas a que se propõem a fim de propugnar a formulação e execução das ações definidas como parte da política desse mesmo Estado.

Assim, ao participarem dos vários comitês de especialistas científicos e ao proporem os instrumentos pelos quais se realizarão os fomentos à investigação, esses representantes da comunidade científica estão colocando em andamento ações de política científica, em resposta a proposições anteriormente transformadas em legislação pelo Poder Legislativo e em planos de ação pelo Poder Executivo. Igualmente, contribuem na definição das ações prioritárias, das linhas de estudos pertinentes, dos incentivos aos eventos científicos, da quantificação de bolsas e recursos a serem alocados para o desenvolvimento da pesquisa no país, etc.

Dessa maneira, a atuação da comunidade científica, em quaisquer dos campos científicos constituídos em dado país, se faz em consonância com as necessidades manifestas da população, de um lado, com as demandas do Estado, de outro e, por fim, como parte da responsabilidade profissional dessa comunidade.

No caso da comunidade de Ciência da Informação no Brasil, há uma tradição iniciada nos anos que antecedem à criação do Curso de Mestrado em Ciência da Informação, no antigo Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação - IBBD, em 1970 e que a acompanha desde então. Dentro dessa tradição estão inseridas concepções de sociedade e de informação, que revelam visões do que se deve organizar, propor e executar a fim de atender às sempre mutantes características das demandas apresentadas pelas distintas camadas econômicas e sociais da população brasileira, quanto ao uso do conhecimento e os resultados que sua aplicação pode produzir.

Uma face marcante dessa tradição é a assimilação por essa comunidade, com significativa aceitação de seus membros, de conceitos hegemônicos sobre sociedade, informação e uso social da informação. Parte desses conceitos advém de respostas intelectuais e de conhecimento científico produzido pelas Ciências Sociais, em outros contextos populacionais, históricos e econômicos, e que, por isso, produzem outro quadro de relações ou interações individuais ou coletivas que, gerando outras sociedades, quando assimiladas ao Brasil, chegam com vieses de dominação, manipulação ou tendendo a impor falsas ideias sobre esses mesmos conceitos.

O objetivo desta comunicação, partindo desta percepção rapidamente esboçada nos parágrafos anteriores, é expor uma proposta de reflexão epistemológica sobre a Ciência da Informação. Começa pela discussão dos conceitos de sociedade e informação, e coloca em exame, a partir da ideia de usos sociais da informação, um quadro de análise constituído por dois focos que vêm se desenhando nos anos recentes, em face do predomínio da submissão humana aos dispositivos empregados, a título de aceleração das comunicações, para a prevalência dos enfoques econômicos ou conformadores/

Page 124: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 124

normalizadores sobre quaisquer outros aspectos constituidores da existência humana e das relações e interações que a fariam se configurar como sociedade.

Esta reflexão toma por referência teórica fundamentalmente a sociologia do conhecimento e uma filosofia de feição fenomenológica. De um lado, parte-se da concepção de que as comunidades humanas e as comunidades de ciência, ao se realizarem como construtos históricos, são sempre inacabados, portanto, estão em processo, estão em transformação e, por isso, se modificam enquanto se constroem. Entretanto, e mesmo por isso, constroem os conceitos que as constroem, as modificam e as destroem naquilo que não mais respondem às necessidades de seus componentes, para provocar sempre a percepção e a indução de uma construção permanente. Dentre os conceitos chaves explorados nesta reflexão estão, portanto, os conceitos de Sociedade e de Informação na medida em que estes seriam essencialmente as duas faces de uma mesma moeda que vitaliza a própria existência da Humanidade, mesmo nos ambientes de maior intensificação não gráfica. Essa essência vitalizadora é Sociedade, que é Informação, que é Sociedade.

2 CONCEPÇÕES DE SOCIEDADEA noção ou concepção do que seja sociedade resulta de construção histórica, que pode manifestar

nuances, mas, em nenhuma dessas, deixa de representar circunstância que ocorre imaterialmente num dado ambiente do qual participam dois ou mais indivíduos humanos. Por essa perspectiva, a sociedade não são grupos de indivíduos. Grupos de indivíduos podem constituir a lotação de um ônibus, trem, navio, avião ou a população que assiste presencialmente a um espetáculo ou o público reunido em um cinema, em um evento científico, dentre outros, mas não, necessariamente, constituem uma sociedade. Para conceituar grupos de indivíduos as Ciências Sociais desenvolveram também o conceito de massa, querendo reforçar a noção de encontros ocasionais, ad hoc, onde não há organização pré-estabelecida.

Para Berger (1994, p. 37) a sociedade se define como “[�] um grande complexo de relações humanas ou, para usar uma linguagem mais técnica, um sistema de interação”. Isso, então, ultrapassa a noção de sociedade como resultado da simples presença de indivíduos em dado lugar. Reforçando esse conceito, o mesmo autor afirma que sociedade é então: “[�] um complexo de relações [�] suficientemente complexo para ser analisado em si mesmo, entendido como uma entidade autônoma, comparada com outras da mesma espécie”. (BERGER, 1994, p. 37). É no âmbito desse sistema de interação que se dá a ação social. Para Weber (2009, v. 1, p. 3), ação social é “uma ação que, quanto ao seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu curso”. Nesse sentido, Berger se manifesta sobre o significado que tem o termo social. Segundo ele, o social é a “qualidade de interação, interrelação, reciprocidade” (BERGER, 1994, p. 37).

Considerando essa percepção, em que se reúne a reflexão de Weber à de Berger, na essência da sociedade, ou do conceito de sociedade, está a própria informação em ação, que sendo ação social mobiliza o agente conforme o que espera ser a reação do interlocutor.

Page 125: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 125

Mas em Elias, um pensador das Ciências Sociais, de grande expressão na segunda metade do século XX, que se esforçou em construir uma distinção entre os conceitos de sociedade e de indivíduos, há um chamamento à atenção sobre a necessidade de melhor se captar a definição de sociedade. Em seu ensaio “A sociedade dos indivíduos”, originalmente escrito em 1939, ele inicia afirmando:

Todos sabem o que se pretende dizer quando se usa a palavra sociedade, ou pelo menos todos pensam saber. A palavra é passada de uma pessoa para outra como uma moeda cujo valor fosse conhecido e cujo conteúdo já não precisasse ser testado. Quando uma pessoa diz sociedade e outra a escuta, elas se entendem sem dificuldade. Mas será que realmente nos entendemos? (ELIAS, 1994, p. 13).

É preciso considerar que essa questão continua a ser muito relevante, especialmente para os esforços direcionados a produzir um conhecimento que seja válido para expor uma compreensão sobre os cenários e condições de usos sociais da informação. Todo o esforço que Elias (1994) vai empregar neste texto e em outros (ELIAS, 2008) vem no intuito de esmiuçar o sentido que tem essa polarização conceitual: indivíduo e sociedade, sobretudo quando trata das ações sociais que se deram no último milênio no ocidente e que foram, em grande parte, objeto de sua análise no estudo O Processo Civilizador (ELIAS, 1993). A sua discussão apontava para a concepção de sociedade no mesmo rumo mais tarde expresso por Berger (1994) e acima citada, isto é, que a sociedade é um sistema de interação. Elias, em 1939, quando produziu esse texto, dizia:

O que nos falta são modelos conceituais e uma visão global mediante os quais possamos tornar compreensível, no pensamento, aquilo que vivenciamos diariamente na realidade, mediante os quais possamos compreender de que modo um grande número de indivíduos compõem entre si algo maior e diferente de uma coleção de indivíduos isolados: como é que eles formam uma sociedade e como sucede a essa sociedade poder modificar-se de maneiras específicas, ter uma história que segue um curso não pretendido ou planejado por qualquer dos indivíduos que a compõem. (ELIAS, 1994, p. 16)

Mais adiante, nesse mesmo texto, ele expunha, após resgatar o pensamento de Aristóteles sobre a relação entre as pedras (partes) e a casa (todo), que a casa não seria tal pela simples acumulação de pedras. O vir a ser casa seria explicável pela relação que se dava entre essas partes, ligadas efetivamente por um elemento de relação, a argamassa. Ora, essa relação não é em si nem as partes (pedras) e nem o todo (casa), mas é um “meio”. Pode considerar-se que sendo os indivíduos humanos não simplesmente partes fechadas como pedras, mas sim os seus próprios modos de compreensão, comunicação e, assim, cooperação, seriam essas manifestações que advém desses modos de compreender e comunicação e, por isso, de tendência à cooperação, a própria essência da sociedade. E é justamente no conjunto dessas manifestações que se formulam todas as bases para se conceber que isso é a informação.

Porém antes de chegar-se à discussão das concepções de informação, pode-se passar, ainda que rapidamente, pela reflexão de Flusser (1983), sobre as operações comunicativas dos indivíduos na

Page 126: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 126

sociedade. Segundo este filósofo tcheco, historicamente a humanidade construiu dois processos de comunicação: o diálogo e o discurso. Pelo diálogo, se estabelece a relação de troca face a face, em que os participantes estão em ação comunicacional presencial, o que lhes permite uma real relação de troca, na medida em que o debate se faz iminente e concreto, pode-se dizer: corporal. Pelo discurso, a relação comunicacional não é direta. Trata-se de uma relação mediada, em que o debate está condicionado a um meio exterior aos corpos dos participantes. Pode-se dizer que ao telefone sua voz é a mesma que se dá no ponto de emissão? Que na televisão a imagem do corpo que chega ao telespectador é a mesma que foi captada pelo aparelho de filmagem? Que o discurso impresso é o mesmo que se faria de viva voz? Então esse discurso, uma expressão que corre sobre outra, transformada num dispositivo ou aparelho (FLUSSER, 2011), não é o mesmo que o diálogo, na medida em que está condicionado às condições do equipamento ou recurso que o transmite. Esse discurso é forma condicionada por outras formas, tornando-se complexos de informações, ou multiprojetos de informações. Nesse sentido, quando se fala de informação também se pode aplicar a questão que Elias levantara para o conceito de sociedade, isto é, o que se quer afirmar quando se fala o termo informação?

3 CONCEPÇÕES DE INFORMAÇÃO

Os estudiosos da Ciência da Informação têm desenvolvido grande esforço para “agarrar” conceitualmente as várias noções que poderiam ser atribuídas para o todo que constitui o teor do que se chama sociedade nas concepções acima expostas, com base em Berger (1994) e em Elias (1993; 1994; 2008). Isto é, todos os conceitos de informação que têm sido apresentados tendem a levar em conta, num dado quadro de realidade criada nas relações entre indivíduos humanos, o que tem de materialidade instrumental ou não, sendo configurado um movimento que tende a se objetivar através de conceitos como: conhecimento de senso comum/conhecimento especializado, conhecimento tácito/conhecimento explícito, etc. Notoriamente, o que está presente nesses conceitos se reporta às noções de diálogo e discurso. O diálogo tem uma relação mais imediata com a sociedade informal, ágrafa, mas não só com esta, pois situa o corpo do indivíduo como o recurso último de comunicação, bem como do conhecimento como vivência; já o discurso tem uma relação mais consistente com a sociedade formal, da escrita, em que o corpo do indivíduo supõe portar uma mente capaz de criar e comandar de fora de seu próprio corpo o conhecimento, feito como produto do processamento informacional. Essa atitude ilusória, nos parâmetros de discussão propostos por Flusser (1983; 2011) está na base do conceito tomado pela Ciência da Informação como etapa histórica em que começou a predominar e que permanece como um fenômeno da realidade atual, de acordo com Barreto (2007) a Gestão da Informação. Por que ilusória? Porque todas as possibilidades de trabalhar com o fenômeno das relações dos indivíduos humanos, estão condicionadas pelos aparelhos ou pelos pensamentos que os constituem e que lhes permitem operar. É ilusório porque o cientista dessa informação está subordinado pelo aparelho: pelas potencialidades e limites desse.

Page 127: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 127

Considerando seus aspectos históricos, como apresentados por Barreto (2007) ou epistemológicos, como apresentados por Capurro (2003), há uma identificação de três momentos no discurso do primeiro ou de três concepções no discurso do segundo em que surgem ou se definem concepções do que seja a Ciência da Informação.

Em Barreto (2007, p. 25), esses momentos estão marcados no tempo, considerando o período de sua predominância, mas sustentando a sua permanência e seus efeitos e práticas sociais e, por isso, sobrepondo-se ao (ou convivendo com o) perfil instalado socialmente como predominante no momento subsequente. São eles:

• Tempo gerência da informação de 1945 – 1980• Tempo relação informação e conhecimento de 1980 – 1995• Tempo do conhecimento interativo de 1995

Capurro (2003, s/p), afirma:

Minha tese é que a ciência da informação nasce em meados do século XX com um paradigma físico, questionado por um enfoque cognitivo idealista e individualista, sendo este por sua vez substituído por um paradigma pragmático e social.

Nesse mesmo texto, Capurro (2003, s/p) detalha, então, o que entende sobre o alcance de cada uma dessas concepções ou paradigmas. Em relação ao chamado paradigma físico, após analisar o que lhe deu base, isto é, a information theory de Claude Shannon e Warren Weaver associada com a cibernética de Norbert Wiener, o autor vai concluir:

Torna-se evidente que, no campo da ciência da informação, o que esse paradigma exclui é nada menos que o papel ativo do sujeito cognoscente ou, de forma mais concreta, do usuário, no processo de recuperação da informação científica, em particular, bem como em todo processo informativo e comunicativo, em geral. Não por acaso, essa teoria refere-se a um receptor (receiver) da mensagem. (CAPURRO, 2003, s/p)

Sobre o paradigma cognitivo, Capurro (2003, s/p) vai entender que representa a reação imediata e necessária ao paradigma físico. Para ele, com o paradigma cognitivo se:

Trata de ver de que forma os processos informativos transformam ou não o usuário, entendido em primeiro lugar como sujeito cognoscente possuidor de “modelos mentais” do “mundo exterior” que são transformados durante o processo informacional. (CAPURRO, 2003, s/p)

Em relação ao chamado paradigma social, Capurro (2003, s/p) tece uma discussão, que, partindo de Frohmann, a quem se refere, ressalta a importância de se considerar na ação da Ciência da Informação os “processos sociais de produção, distribuição, intercâmbio e consumo de informação” (...) e “A construção social dos processos informativos, ou seja, a constituição social das necessidades dos usuários, dos arquivos de conhecimentos e dos esquemas de produção, transmissão, distribuição e consumo de imagens”

Ora, essa diversidade de possibilidades de afirmação do que seja a Ciência da Informação vai

Page 128: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 128

desembocar em uma discussão que provoca como questão a formula exposta por Robredo (2007): Existe uma filosofia da Ciência da Informação? Esse autor, ao fazer reflexão sobre tal questão, inevitavelmente chega à necessidade de discutir um conceito de informação, o que resulta no entendimento de que:

A ‘informação’ pode ser: registrada, duplicada, transmitida, armazenada, organizada, processada, recuperada. (...) mas somente quando extraída da mente e codificada, pela linguagem natural (falada ou escrita), seguindo normas e padrões (gramática, sintaxe) próprios de cada língua, ou de outras linguagens criadas pelo homem (linguagens de programação, que também têm suas gramáticas e sintaxes). Há, de fato, um processo de transformação do conhecimento (dentro da mente) em ‘informação’ fora da mente. Então, ‘informação’ seria o conhecimento ‘externalizado’, mediante algum tipo de codificação. Observe-se que isso somente se aplica ao conhecimento já existente na mente. (...) A informação não é, pois, uma entidade física, um objeto tangível, visível, audível. O que se toca, se vê ou se ouve é o ‘documento’ escrito, gravado, etc. contendo conhecimento registrado, em geral, mediante um código de representação. (ROBREDO, 2007, p. 60-61)

Nessa linha de reflexão, que visa formular uma compreensão do objeto informação, em longo texto de 59 páginas, Capurro e Hjorland (2007), em acurada análise do conceito de Informação, iniciam-no com a afirmação de que no inglês cotidiano informação significa “conhecimento comunicado”. E seguem o estudo, repassando os vários sentidos dados historicamente ao termo. Os autores vão às suas raízes latinas e gregas, verificam os usos modernos e pós-modernos, examinam o seu caráter interdisciplinar, discorrem sobre o uso do conceito nas ciências naturais, nas ciências humanas e sociais e chegam à sua análise do ponto de vista da Ciência da Informação. Com mais detalhe, examinam já no campo da Ciência da Informação: o conceito de recuperação da informação em confronto com informação; o conceito de informação em contraste com a noção de coletânea de fatos; a noção de informação em contraste com divisão científica do trabalho; as diferentes manifestações sobre as teorias da informação em Ciência da Informação; a visão cognitiva da Ciência da Informação; a informação como coisa e outras perspectivas associadas ao sociocognotivismo, hermenêutica, semiótica e análise de domínio. No final desse longo percurso, concluem que há muitos conceitos de informação e que esses estão inseridos em estruturas teóricas mais ou menos explicitas; que:

a distinção mais importante é aquela entre informação como um objeto ou coisa e informação como um conceito subjetivo, informação como signo; isto é, como dependente da interpretação de um agente cognitivo. (CAPURRO; HJORLAND, 2007, p. 193).

Considerando a discussão acima, vê-se uma predisposição para situar objeto e ação da Ciência da Informação em torno do fenômeno comunicacional. Ele está no início da reflexão de Capurro e Hjorland (2007), se expande quando de sua reflexão epistemológica feita por Capurro (2003) e guarda sentido com a historicidade da Ciência da Informação, fórmula escolhida por Barreto (2007) para tratar da Ciência da Informação como campo. Quando se chega à reflexão de Robredo (2007) fica ainda mais evidente essa perspectiva comunicacional pela sua afirmação de que “informação seria o

Page 129: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 129

conhecimento externalizado, mediante algum tipo de codificação”. Nessa concepção, então, pode-se compreender que a informação é o elo que “liga” os indivíduos dando-lhes a condição de existirem em sociedade, o que daria sentido aos conceitos de sociedade propostos por Berger (um sistema de interação), por Elias (conjunto de relações) e Weber (a ação social parte de um indivíduo e está sempre orientada ao outro). Confrontando essas concepções com o pensamento de Flusser (1983; 2011), vê-se que essa informação como pensada no campo da Ciência da Informação não está no âmbito do diálogo, mas no plano do discurso, especialmente quando considerado o paradigma físico, em que se objetiva a presença do documento, como enfatizado por Robredo.

Diante disso, torna-se possível apresentar-se nesta comunicação a proposição de uma concepção de informação, para uso no campo da Ciência da Informação que, coerente com a discussão até agora exposta, insere as noções de sociedade de Weber (2009), Elias (1993; 1994; 2008) e Berger (1994) e as noções de comunicação de Flusser (1983; 2011). Tal proposição se expressa pelo seguinte teor:

Informação é o conteúdo exposto por meio de sinais, de signos ou de símbolos construídos pela intelecção humana, originados das sensações ou idealizados, e que se destina a instituir, reproduzir e transformar a sociedade; é gerado e utilizado pelos indivíduos em suas múltiplas relações, como expressão dos papéis que exercem, e tornado fluente pelos dispositivos continuamente criados para assegurar a realização dos processos de comunicação; depende do emprego direto da energia humana ou de fontes de energia construídas pelo engenho humano.

4 CONDIÇÕES E CENÁRIOS DOS USOS SOCIAIS DA INFORMAÇÃOAs concepções de sociedade, informação só adquirem todo o sentido na medida em que estão

situadas. É por essa razão que sofrem os efeitos dos fatores de tempo e espaço, quando se leva em conta as narrativas como as apresentadas no livro Destruição do passado, de Stille (2005). Mesmo quando o cotidiano entra em consideração, ele deverá ser entendido como o quadro de existência, vivência e relação dos indivíduos dentro de sua circunstância, como refletia Ortega y Gasset (2010). Desse modo, entram em cena as noções de cenários e condições da realidade em que os indivíduos estavam situados ou para falar a partir do campo da Ciência da Informação, estão em jogo as condições de uso social da informação.

Pode-se considerar que o uso social de um objeto material (um telescópio) ou do pensamento (o conceito de informação), por exemplo, tem implicações com uma ou mais funções a eles atribuídas pelos indivíduos que constroem e vivem a sociedade. Isto viria a exame ao se considerar que “uso social” é equivalente à “função social” que o objeto cumpre. Uma exemplificação (elaborada artisticamente) do uso ou função social do telescópio, quando de sua aplicação inicial por Galileu Galilei, pode ser vista na peça teatral A vida de Galileu, de Brecht (1991). Isto coloca como inicial o saber sobre o que vem a ser o objeto material ou o objeto do pensamento que está diante do indivíduo. E decorrente desse saber, dessa assimilação de um conteúdo, virão outras questões, como: Que função social tem o telescópio? Quais resultados decorrem do exercício dessa função ou de seu uso, tendo em vista a finalidade pretendida? Essa função social é unidirecional ou tem múltiplo foco? As mesmas

Page 130: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 130

perguntas podem ser feitas para o conceito de informação. Por isso, está exposta a discussão no tópico anterior deste texto, mesmo que, supostamente, se saiba conceituar informação nos dias atuais e no campo da Ciência da Informação. Mas que função social tem a Informação nos distintos campos em que ela se aplica? Quais resultados decorrem do exercício dessa função ou de seu uso, tendo em vista a finalidade pretendida? Essa função social é unidirecional ou tem múltiplo foco?

Um primeiro aspecto que se pode considerar, em uma grande dimensão, é que a Informação tem uma dupla função ou uso social. A primeira função tem foco na Economia, isto é, toda a realidade material ou imaterial que é constituída pelos fatores que podem ser tomados como fontes de distinção, objetivante, de escassez e objeto de disputa entre indivíduos-pessoas (EU) ou indivíduos-sociedades (NÓS) em torno desta distinção. A segunda função tem como foco a Conformação ou Normalização dos indivíduos-pessoas (EU) ou indivíduos-sociedades (NÓS) em torno de compromissos pactuados conscientemente pelas partes envolvidas ou impostos pelos detentores dos meios e/ou discursos materiais e imateriais de regulação: Igreja (religião), Estado (força bélica, força tributadora, força jurídica, etc.), Empresa (força econômica), etc. Um segundo aspecto, não menos forte, é que a informação subsume a comunicação, transformando esta última em um dos vetores de sua realização. A informação se faz por meio de sinais, de signos ou de símbolos construídos pela intelecção humana com o propósito de dar eficácia ao processo de comunicação. Sinais, signos e símbolos são instrumentos que a informação utiliza para se realizar como um objeto do pensamento. E esses sinais, signos e símbolos, em sendo resultado de produção histórica para comunicar a informação proporcionam impactos, sobretudo, na produção social e econômica, por isso, competem entre si e também se distinguem em sua visualidade conforme a origem do grupo humano que lhe formulou. Dessa distinção, se sabe claramente pelas diferenças visíveis entre os caracteres mandarins, árabes, latinos, etc. com seus distintos níveis de dificuldades para decodificação, exigindo do leitor o letramento necessário para “receber” a informação que carregam, quando organizados em unidades lingüísticas sob o plano sintático e semântico.

Consideradas essas condições de uso social da informação, pode-se investigar sua presença em alguns cenários construídos como recurso analítico para se apreciar dois aspectos apontados na concepção de sociedade em Berger, em Elias e em Weber, isto é, relação e interação entre os indivíduos como fenômenos de efetivação da sociedade. Abaixo estão destacados oito cenários que cabem em dois extratos: a – de foco econômico, ao qual se vincula apenas um cenário e b – de foco conformador ou de normalização, ao qual se vinculam seis cenários.

Numa aproximação inicial, o que se vislumbra é a impossibilidade de quaisquer uns desses cenários serem tornados ativos pela exclusiva participação de um único indivíduo. Qualquer um deles requer a presença de indivíduos-pessoas (EU) em relação ou interação num ambiente de indivíduos-sociedades (NÓS).

a) Extrato de FOCO ECONÔMICO:

Page 131: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 131

1 – Cenário: Produção Econômica e controle da escassez – Desse cenário participam: quem produz e troca bem ou bens num ambiente de mercado. A produção econômica em si responde às necessidades de consumo, como uma primeira referência do outro apontado na discussão de Weber (2009). Quer dizer que o produtor econômico desenvolve sua ação de produção, que é social, porque está mirando uma fonte de necessidade do produto criado e a ser distribuído. Por mais linear e imediato que possa ser esse raciocínio, mesmo em uma relação de escambo, ou de mercado sem moeda, há necessidades de objetos ou bens de terceira produção. Aqui estaria presumida a ideia de diferentes vocações produtivas, mesmo em um contexto extrativista, em parte determinado também pelas disponibilidades que estariam naturalmente limitadas pelas especificidades de solo, flora, fauna, disponibilidades de instrumentos, etc. As relações e interações ai estabelecidas forjam modos de, em torno dos objetos materiais-fins (mercadorias palpáveis pelo tato, por exemplo), se comunicarem conteúdos como objetos de pensamentos-pró-meios (o nome da mercadoria, a orientação sobre seu uso ou consumo, a instrução sobre sua conservação, etc.). Num estágio mais avançado ou complexo das relações estabelecidas pelos indivíduos, objetos de pensamentos-pró-meios adquirem características de objetos imateriais-fins. Esses têm seus conteúdos comunicados por objetos de pensamentos-pró-meios (um tratado sobre o conceito de informação, por exemplo), numa relação interativa entre pesquisadores/docentes de Ciência da Informação e seus alunos ou financiadores de projetos de pesquisa, em um mercado de produção-consumo de informação científica, subordinados a um projeto de política pública de desenvolvimento e inovação de conhecimento.

b) Extrato de FOCO CONFORMADOR OU DE NORMALIZAÇÃO:

1 – Cenário: Governo e regulação da cidadania2 – Cenário: Cultura e valoração estética3 – Cenário: Religião e apaziguamento da consciência4 – Cenário: Desportos e sublimação guerreira5 – Cenário: Infraestrutura energética6 – Cenário: Acessibilidade e uso do conhecimento

Nesse conjunto de cenários verificam-se fenômenos da mesma ordem dos manifestados no Cenário: Produção Econômica e controle da escassez, sobretudo quando se projeta a ideia de que objetos imateriais-fins têm seus conteúdos comunicados por objetos de pensamentos-pró-meios. Mas o que passa a predominar são especificidades em que o fator econômico ou razões que se impõem ao argumento da escassez sejam prevalentes, ainda quando possam ter um peso aparentemente muito significativo. Considere-se o Cenário: Governo e regulação da cidadania. O que há aí? Se for tomado para a reflexão o pensamento de Flusser (2011), há aí a manifestação do aparelho, isto é um conjunto de normas que regulam a atuação dos indivíduos partícipes das relações que aí se desenvolvem. Normas essas que são executadas a partir de conteúdos comunicados por objetos de pensamentos-

Page 132: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 132

pró-meios, por exemplo, a Legislação estabelecida para a mediação das relações entre os indivíduos. Poder-se-á abrir a discussão se caberia ao Cenário: Cultura e valoração estética aplicar o

entendimento que o enquadra como parte do foco conformador ou de normalização. Essa discussão impõe duas direções, conforme sejam as arenas de suas manifestações. Quando da execução da atividade fim, um espetáculo teatral, por exemplo, ou a execução musical em pequenas salas ou espaços que facilitem a interação “direta” entre executante e audiência, sempre está potencializada a relação comunicacional dialógica. Essa possibilidade da intervenção de uma plateia sobre o artista não elimina, contudo, outras facetas relacionadas ao próprio modo de organização do conteúdo, as técnicas empregadas, os equipamentos utilizados, em que o artista tem o poder discricionário de realizar suas escolhas, conforme o conhecimento e informações de que dispõe. De outro lado, no caso da cultura distribuída por canais de comunicação de massa, em que a transferência do conteúdo se dá por uma mediação instrumental tecnológica, que dispõe o produto artístico simultaneamente para grupos diversos, em locais distintos, sem a possibilidade de estes intervierem enquanto se dá a execução original do espetáculo; fica patente o efeito de conformação ou de normalização empregado para a geração do conteúdo realizado neste cenário.

Certamente, a análise de cada um desses cenários apontará para o acento do efeito de conformação ou de normalização que se argumenta ao considerar a relação discurso/diálogo. Mas, se pode enfatizar, sem a intenção de dar menor importância aos demais, os Cenários: Infraestrutura energética e Acessibilidade e uso do conhecimento.

Dá para dizer que a infraestrutura energética disponível nos dias atuais é surpreendentemente modeladora – conformadora e normalizadora – das ações humanas nos distintos lugares e regiões em que as pessoas habitam, tendo em conta os recursos naturais de que dispõem, os conhecimentos que sabem empregar para explorá-los, os capitais financeiros a que têm acesso para investimento na captura, transformação, mercadorização e distribuição dos produtos finais derivados e apropriados ao uso. As fontes energéticas variam desde a força animal (incluída a força do homem), até às forças que vêm dos cursos d`água, do vento, do sol, do átomo, de várias fontes de biomassa, etc.

Há, hoje, grandes investimentos realizados no aproveitamento maciço das diversas fontes energéticas. Eles totalizam bilhões de dólares anuais, decorrente de um crescimento contínuo de demanda (ENERGY developments, p. 2) e da progressiva inclusão anual de milhões de pessoas de todos os continentes do planeta, que ainda não dispõem da provisão regular de eletricidade ou decorrente do crescimento da atividade industrial e da aceleração do uso de dispositivos de comunicação e transferência eletrônica de dados. Mas, em função do crescimento tido como necessário, considerando estimativas do ano de 2010, se impõem como inescapáveis, investimentos anuais de aproximadamente 36 bilhões de dólares, totalizando mais de 700 bilhões até o ano de 2030, somente em fontes renováveis de energia. Isso atenderia à oferta de melhoria de qualidade de vida no planeta, pois supriria milhões de pessoas, atualmente e nos próximos anos, sem acesso à eletricidade e a meios de uso de combustíveis para uso doméstico (INTERNATIONAL ENERGY AGENCY).

Page 133: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 133

Mas não há somente pessoas sem combustíveis necessários para o seu dia a dia. Há nesse dia a dia um crescimento vertiginoso das demandas de energia que advém da presença cada vez maior de indivíduos envolvidos com o uso dos instrumentos de comunicação e transferência eletrônica de dados e conteúdos e deles tornando-se dependentes, isto é, passando a ser conformados pelos limites técnicos desses instrumentos e pela sua normalização quanto ao acesso, uso, disponibilização e custos. Segundo registros feitos em 2010 pelo site INDEX MUNDI (NÚMERO DE ...), nos sete primeiros países por quantidade de usuários (China, Estados Unidos, Japão, Brasil, Alemanha, Índia e Reino Unido), de um total de 216 países, havia perto de um bilhão de pessoas usuárias da internet. Se o olhar dirige-se à quantidade e tipo de transações realizadas em 2010 conforme o recurso empregado, então os números tendem a ser estarrecedores. A fonte Internet 2010 in numbers arrola o seguinte: de E-mails foram: 107 trilhões de mensagens enviadas; 294 bilhões o número médio de e-mails emitidos por dia; 1 bilhão e 880 milhões o número de usuários de e-mail ao redor do mundo; 480 milhões o número de novos usuários a mais que em 2009; 262 bilhões o número de spam enviado por dia; 2 bilhões e 900 milhões o número de contas de e-mail; desse número, 25% das contas de e-mails são corporativas. De sites: surgiram 21 milhões e 400 mil novos sites em 2010; havia 255 milhões de sites em dezembro desse ano. De domínios havia: 88 milhões e 800 mil sites com final .com; 13 milhões e 200 mil sites com domínio .net; 8,6 milhões de sites com final .org; 79,2 milhões de códigos de domínios de países; em relação ao número anterior, foi de 7% o aumento no número de novos domínios. Nas mídias sociais havia: 152 milhões de blogs; 25 bilhões de tweets; 100 milhões de novas contas no Twitter; 175 milhões de novas contas registradas de setembro ao final do ano; 600 milhões de pessoas no Facebook; 250 milhões de novas contas no Facebook; 30 bilhões de itens de conteúdo compartilhado no Facebook (links, fotos, status); 70% de usuários do Facebook fora dos Estados Unidos; 20 milhões de aplicativos para o Facebook instalados por dia. Em Vídeos: dois bilhões de vídeos foram vistos só no YouTube; 35 horas de vídeo são enviados ao YouTube a cada minuto; 186 é o número médio de vídeos visto por um usuário americano comum; 84% é a chance dos usuários da web assistir vídeos online nos EUA; 14% dos usuários americanos têm vídeos postados na web; mais de dois bilhões de vídeos foram assistidos no Facebook; 20 milhões foi o número de vídeo enviados ao Facebook por mês. Em Imagens: cinco bilhões de fotos foram postados no Flickr do seu início até setembro de 2010; três mil fotos foram enviadas por minuto para o Flickr; 130 milhões de fotos foi a média que o Flickr recebeu por mês. O Facebook deverá ter recebido 36 bilhões de fotos no final de 2010.

Diante desse volumoso fluxo de operações que compõe o Cenário: Acessibilidade e uso do conhecimento, o qual para ser funcional é totalmente dependente das condições asseguradas pelas disponibilidades oferecidas pelo Cenário: Infraestrutura energética, parece impossível deixar de imaginar que está aí uma confirmação da inevitabilidade da conformação dos indivíduos ao aparelho e a conseqüente subordinação à normatividade. Nesse caso, essa conformação e essa subordinação constituem a informação que faz da relação das pessoas que aí interagem, o que vem sendo chamado

Page 134: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 134

de sociedade da informação. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta reflexão, chega-se a compreender que há um debate em aberto, continuamente em aberto, em torno dos conceitos de informação e sociedade. Este debate se impõe como parte de um movimento dialógico que envolve a todos na direção de uma resignificação do lugar do humano. Quando as pessoas humanas, também designadas indivíduos interagem é, aí, nesse momento de relações mútuas, que se estabelece a sociedade.

Assim, o conceito de sociedade não está dotado da autonomia necessária para representar as populações de uma dada nação, com Estado constituído e com suas distintas comunidades, incluídos os profissionais da ciência, para ser tida como receptora de políticas de informação.

Uma perspectiva surpreendente é que o conceito de sociedade, ainda que não possa ser tomado como sinônimo imediato do conceito de informação, naquilo que concerne ao campo da Ciência da Informação, ao ser considerado o olhar teórico empregado no desenrolar desta discussão, tem tanta similaridade com aquele, quanto à essência própria, que se tornam ambos, numa imagem, representáveis na figura de uma moeda, as faces indistintas da mesma. Talvez uma imagem ainda mais representativa seja a de informação e de sociedade figurando-se como as páginas que constituem uma folha de papel, sem pauta e sem definição a priori de frente e de verso.

Considerando essa perspectiva o que se chama de sociedade da informação não seria tão somente um conjunto de mundos humanos interagentes ou em relação pelo uso de conteúdos com fins econômicos e de conformação em torno da existência? E, em sendo assim, denominar tais mundos de sociedade da informação não seria uma forma de escamotear interesses de dominação e mando que, se dando pela relação dos contatos dialógicos de núcleos muito concentrados de poder, transformam as transações de máquinas em discursos que, no interesse majoritariamente econômico, dominam as relações humanas assimilando as pessoas a funções complementares ao mero, mas não menos significativo funcionamento esterilizante das máquinas?

Page 135: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 135

REFERÊNCIAS

BARRETO, Aldo de Albuquerque. Uma história da ciência da informação. In: TOUTAIN. L. M. B. (Org.). Para entender a ciência da informação. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 13-34. Disponível em: < http://www.repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/145/1/Para%20entender%20a%20ciencia%20da%20informacao.pdf>. Acesso em: 27 jul.2011.

BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas. Petrópolis: Vozes, 1994.

BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu. In: ____. Teatro completo, em doze volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. v. 6, p. 51-170.

CAPURRO, R . Epistemologia e ciência da informação. 2003. Disponível em: < http://www.capurro.de/enancib_p.htm> . Acesso em: 2 jul.2011

CAPURRO, R.; HJORLAND, B. O conceito de informação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v.12, n.1, p.148-207, abr. 2007. Disponível em: http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/viewFile/54/47. Acesso em: 27 jul.2011.

ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Ed. 70, 2008.

ELIAS, Norbert. Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 2 v.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

ENERGY developments. In: BP Statistical Review of World Energy - June 2011. p. 2. Disponível em: http://www.bp.com/statisticalreview. Acesso em: 27 jul. 2011.

FLUSSER, Vilém. O aparelho. In: ____. Filosofia da caixa preta; ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011, p. 37-48.

FLUSSER, Vilém. Nossa comunicação. In: ____. Pós-história; vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas cidades, 1983, p. 57-63.

INTERNATIONAL ENERGY AGENCY. WEO-2010: Energy Poverty - How to make modern energy access universal? Disponível em: http://www.worldenergyoutlook.org/universal.asp. Acesso em: 27 jul.2011.

INTERNET 2010 in numbers. Disponível em: http://royal.pingdom.com/2011/01/12/internet-2010-in-numbers/. Acesso em: 27 jul.2011.

NÚMERO de usuários de internet. Disponível em: http://www.indexmundi.com/g/r.aspx?v=118&l=pt. Acesso em: 27 jul.2011.

ORTEGA Y GASSET, José. Eu sou eu e minha circunstância. In: ESCÁMEZ SÁNCHEZ, Juan. Ortega y Gasset. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010, p. 111-119

ROBREDO, Jaime. Filosofia da ciência da informação ou Ciência da informação e filosofia? In: TOUTAIN. L. M. B. (Org.). Para entender a ciência da informação. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 35-74. Disponível em: < http://www.repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/145/1/Para%20entender%20a%20ciencia%20da%20informacao.pdf>. Acesso em: 27 jul.2011.

STILLE, Alexander. A Destruição do passado; como o desenvolvimento pode ameaçar a história da humanidade. São Paulo, Editora Arx, 2005.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasilia: UnB, 2009. v. 1.

Page 136: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 136

AbstractIt aims to expose an epistemological reflection on the Information Science. The reflection begins of a discussion of concepts society and information, and places under review, from the idea of social uses of information, a framework for analysis consists of two out breaks that have been drawing in recent years, given the predominance of human submission to technological devices used, as an acceleration of communications and improving economic productivity, to give effect to economic approaches or compliance/standard of human existence and relationships and interactions that would set as society, to the detriment of other aspects of this existence. For the reflection takes as a reference mainly theoretical sociology of knowledge and a phenomenological philosophy of feature. It starts with the assumption that human communities and communities of science, to develop as historical constructs are unfinished, therefore, are in the process, are changing and, therefore, are modified as they build. It presented a concept of information that will be representative for Information Science and that takes into account the theoretical foundations employees. Finally, sets forth the understanding that the concepts of society and information would be representable as two pages of a sheet of paper with no lines and no indication of front and back.

Keywords: Society. Information. Social use of information. Epistemology.

Page 137: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 137

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: QUESTÕES E DESAFIOS NO CENÁRIO DA

PESQUISA

José Mauro Matheus Loureiro, Maria Lúcia Niemeyer Matheus Loureiro, Sabrina Damasceno Silva, Daniel Maurício Vianna Souza

Resumo: O texto apresenta uma síntese sobre Fenomenologia, refletindo sobre sua relação possível com a Ciência da Informação. Enfoca aspectos relacionados à metodologia da pesquisa, à interdisciplinaridade e à busca de novos objetos e campos de aplicação pela Ciência da Informação. A partir da análise fenomenológica de Martin Heidegger sobre a obra de arte, reflete sobre questões relacionadas às pesquisas no campo da Informação em Arte.

Palavras-chave: Ciência da Informação; Fenomenologia; Metodologia da Pesquisa; Informação em Arte.

Abstract: The text presents a synthesis of phenomenology, reflecting on its possible relationship with Information Science. It focuses on aspects related to the research methodology, interdisciplinarity and the search for new objects and fields of application for Information Science. From the phenomenological analysis of Martin Heidegger on the artwork, it raises questions related to the field of Information in Art.

Keywords: Information Science; Phenomenology; Research methodology; Information in art.

1. INTRODUÇÃO

As características que singularizam a Ciência da Informação e o vasto território teórico-conceitual que envolve sua inter-relação possível com a Fenomenologia estimulam reflexões e desafios no cenário da pesquisa. O presente texto aborda a Fenomenologia por meio de uma síntese que privilegia as perspectivas essenciais desse universo complexo e heterogêneo, discute seus reflexos no âmbito de Metodologia da Pesquisa e propõe questões relacionadas à pesquisa na área de Ciência da Informação, enfatizando novos objetos e campos de aplicação e reflexão, como a Informação em Arte.

Page 138: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 138

2. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE FENOMENOLOGIA

Etimologicamente o termo fenomenologia significa estudo ou ciência do fenômeno. Contudo, a categoria fenômeno, entendida “como tudo o que aparece” (DARTIGUES, 1973, p.11), confere grande abrangência ao termo levando a considerar como fenomenólogo todo estudioso dedicado ao estudo de algum fenômeno. Ricoeur (1987, p.87) adverte, entretanto, que “se nos atemos à etimologia, qualquer um que trate da maneira de aparecer do que quer que seja, qualquer um, por conseguinte, que descreva aparências ou aparições, faz fenomenologia”. Sem desconhecer, portanto, os empreendimentos anteriores que empregaram tal termo21, a Fenomenologia que influenciará de maneira indelével o pensamento do século XX se dá a partir das noções e conceitos propostos por Husserl que se diferenciou dos pensadores precedentes ao afirmar que os sentidos do ser e do fenômeno são indissociáveis.

A gênese da fenomenologia ocorre em um ambiente filosófico caracterizado, principalmente na Alemanha, pela perda da tradição idealista, pelo questionamento dos sistemas filosóficos tradicionais e a preponderância da perspectiva neo-kantiana. A esses elementos soma-se, ainda, a falência dos modelos metafísicos e o questionamento do panorama positivista. Esse ambiente de crise é constatado por Husserl (1996, p.13) ao denunciar o estado de decadência em que se encontrava a filosofia ocidental desde meados do século XIX, além da “falta de unidade na determinação de objetivos, colocação dos problemas e no método”.

Foi nesse contexto que Husserl procurou primordialmente estruturar uma filosofia que reunisse em si o universo metafísico e o rigor da ciência. O elemento central dessa perspectiva filosófica, descartando as reflexões metafísicas, volta-se para a análise do fenômeno tomado no sentido do vocábulo grego phainesthai – do qual deriva o particípio phainomenon, aparecer, aquilo que se apresenta ou que se mostra. A tentativa de Husserl, que se opunha ao psicologismo e ao subjetivismo, foi desenvolver a fenomenologia como filosofia primeira apta a prover uma sólida base para todas as demais ciências.

O grande objetivo da obra husserliana foi configurar a filosofia como ciência do rigor e prover sólidos fundamentos à ciência refletindo acerca dos elementos da experiência em sua totalidade, considerando sua natureza e as diferenciações que apresenta. O que o levou a empreender tal indagação foi a percepção de que “o fenômeno está penetrado no pensamento, isto é, de logos; este por sua vez revela-se, mas somente no fenômeno. É apenas a partir daí que se torna factível a ‘fenomenologia’ ”. (DARTIGUES, 1973, p. 20)

A fenomenologia volta-se, assim, para o estudo e as reflexões dos fenômenos absolutos ou puros, por meio de procedimentos descritivos ou analíticos, descartando a atividade dedutiva. Fenômeno é compreendido como algo apreendido pelos sentidos e portador de uma essência. Por não se tratar

21 Como exemplos, podemos citar Lambert, Kant e Hegel cuja ‘Fenomenologia do Espírito’ torna a palavra de uso freqüente na Filosofia.

Page 139: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 139

de uma construção, mas de alguma coisa sempre acessível aos sujeitos, Husserl conclui que o logos (pensamento racional) também o é, o que o leva a propor “uma filosofia nova que realizaria enfim o sonho de toda filosofia: tornar-se uma ciência rigorosa”. (DARTIGUES, 1973, p. 20)

A Fenomenologia não se apresenta como uma doutrina unificada, mas como um universo de reflexão que pode ser sintetizado por três diferentes tradições, as quais se ancoram em suas perspectivas originárias: a “fenomenologia transcendental” ou “descritiva”, desenvolvida por Husserl; a “interpretativa” ou “hermenêutica”, iniciada por Heidegger e uma fenomenologia “integrativa” - desenvolvida a partir da década de 90 do século XX – que pretende inter-relacionar as duas primeiras.22

Do ‘horizonte’ husserliano, entendido como ‘mundo da vida’, à linguagem na filosofia de Martin Heidegger, e daí à tradição ou à ‘história-eficaz’ na obra de Hans Georg Gadamer, há muitas rupturas, tensões, muitos atalhos sinuosos, além da pura continuidade intelectual. De todo modo, preserva-se a idéia básica: pré-compreensões atuam inevitavelmente nos bastidores inconscientes em que se engendram as proposições, mesmo as científicas (...). (SOARES, 1994, p.12)

Quanto às abordagens hermenêuticas, é imprescindível diferenciá-las ainda que de modo conciso. Inicialmente desenvolvida por Heidegger, a “hermenêutica-ontológica” teve sua continuidade no “acontecer lingüístico na tradição” proposto por Gadamer. Em um diálogo com ambos os autores, Ricoeur privilegia, mais tarde, uma “fenomenologia orientada lingüisticamente”. As críticas e debates contemporâneos trazidos por autores pós-modernos sobre os diversos rumos hermenêuticos, destacam-se por enfocar diferentes atividades em estruturas específicas de interpretação objetivando fomentar a interação comunicativa.

Todas essas fenomenologias, entretanto, possuem como traços basilares as obras iniciais de Husserl. Ainda que submetida a diferentes interpretações, é possível sublinhar a preeminência de alguns aspectos essenciais que integram suas abordagens analíticas até a atualidade. Prevalece, em linhas gerais, a oposição primordial ao Positivismo, a exclusão das abordagens metafísicas, as reflexões acerca dos fenômenos puros, o acionamento da experiência intuitiva como elemento apto para a apreensão do mundo exterior e o primado da análise descritiva dos fenômenos que se apresentam no âmbito da consciência transcendental. A análise fenomenológica, por princípio acrítica e, portanto, isenta de juízos oriundos de valores subjetivos, não se volta para fatos, mas para essências (eidos) e a percepção da essência dos atos (epoché).

Resgatar o pathos próprio da filosofia é a grande motivação da fenomenologia. Chamamos aqui de fenomenologia não só a filosofia de Edmund Husserl e Heidegger, mas a de todos aqueles que pensaram sob a inspiração do fenômeno. A fenomenologia tem o sentido amplo de uma busca não só de fundamento, mas, essencialmente, de ‘correspondência’. Por isso, o lógos do fenômeno é, no fundo, uma ‘homologia do fenômeno’. Se, na tradição, costumou-se traduzir o nome filosofia por amor à sabedoria, a fenomenologia é, propriamente, o amor à correspondência. Sua questão é mais saber-corresponder (homologia) do que saber. (SCHUBACH, 1996, p.32)

22 Com essa síntese, buscamos traçar um panorama radicalmente sucinto do universo da Fenomenologia. Cabe ressaltar a coexistência de outras correntes de pensamento fenomenológico nos âmbitos da Filosofia, Ciências Humanas e Sociais.

Page 140: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 140

À pergunta “o que é fenomenologia?” corresponde uma heterogênea gama de respostas que contemplam distintas linhagens e mediações. É necessário, assim, estar atento à sua assimetria constitutiva e à multiplicidade de seus pressupostos. Abordar a Fenomenologia, como sublinha Giddens (1996, p. 37), não constitui a descrição de um pensamento simples e unificado.

3. A ESTREITA RELAÇÃO FENOMENOLOGIA-METODOLOGIA

Ao fazer referências aos princípios fenomenológicos adotados no âmbito da Metodologia da Pesquisa nas várias áreas do conhecimento, emergem dificuldades advindas de sua heterogeneidade. Desse modo, adotamos uma visada a partir da qual são focalizadas as metodologias oriundas da fenomenologia em seus princípios gerais, que vêm permeando de maneira transversal e singular as várias esferas dos saberes em concorrência com diferentes domínios epistemológicos.

Ao fazermos referências às premissas da fenomenologia, encontramo-nos concomitantemente aludindo à sua metodologia e vice-versa – ambas são, portanto, consubstanciais. Essa afirmativa é confirmada pelo próprio Husserl que, em um verbete publicado em 1929 na Enciclopédia Britânica, define a Fenomenologia como um método.23 Merleau-Ponty (1999, p. 7) afirma igualmente que a fenomenologia compreende “o ensaio de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela se processa e sem qualquer preocupação com sua gênese psicológica ou com suas explicações causais que o sábio, o historiador ou o sociólogo lhe podem fornecer”.

A metodologia da pesquisa ocupa-se sistematicamente com os princípios lógicos que balizam a pesquisa científica e filosófica. Quando implicada nas análises e descrições fenomenológicas caracterizam-se, principalmente, pela renúncia às abordagens hipotético-dedutivas ancoradas no solo positivista e a elaboração e experimentação de hipóteses. Contrariamente aos horizontes metodológicos cartesianos e positivistas cujos instrumentos propiciam o enquadramento dos fenômenos em perspectivas quantitativas vinculadas a leis e princípios, a metodologia fenomenológica encaminha o pesquisador para a descrição interpretativa do fenômeno. Volta-se, assim, à construção de uma dinâmica racional centrada na experiência humana contada na primeira pessoa (CAVEDON, 2001). Considerando o existencial, que não pode ser decomposto em uma realidade natural, as análises fenomenológicas não buscam verdades definitivas, mas a possibilidade de interpretações diferenciadas dos fenômenos, razão pela qual não parte de métodos previamente definidos.

Como metodologia da pesquisa, a abordagem fenomenológica passa a ser, conseqüentemente, a análise/estudo dos fatos vividos da consciência na sua pura generalidade essencial e não como fatos realmente experimentados e apreendidos empiricamente por seres conscientes. Os estudos e análises fenomenológicos partem de um cogito transcendental na busca de uma perspectiva em que um indivíduo (sujeito) extramundano se dirija ao mundo. O caminho que conduz ao universo

23 O verbete, intitulado “Phenomenology”, foi produzido originalmente para a Encyclopaedia Britannica. 14th Ed. Vol. 17 (1929): 699-702.

Page 141: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 141

específico da fenomenologia é o processo de redução. Destacam-se aqui a redução eidética e a redução fenomenológica. Na primeira, procuram-se essências ou significados através da busca do “significado ideal e não empírico dos elementos empíricos” (Husserl, 1985, p. xii). A redução fenomenológica, por sua vez, opera uma redução transcendental que se dirige à essência da própria consciência “enquanto constituidora ou produtora das essências ideais” (FRAGATA, 1959, p. 135). Não se trata, entretanto, de negar a existência do mundo, mas de colocá-lo entre parênteses, em uma perspectiva de relativização do conhecimento. A constituição de um objeto de pensamento é a essência (ou eidos).

Baseado em Brentano, Husserl propõe a consciência como intencionalidade - conceito proveniente da Escolástica e essencial para a Fenomenologia, e que significa “dirigir-se para, visar alguma coisa” (HUSSERL, 1985, p. ix). A consciência tomada como intencionalidade distingue-se sempre como consciência de. É a intencionalidade, propõe Husserl, que caracteriza em sentido pleno a consciência, ensejando, ainda, entender o curso da vivência como curso consciente e unidade de consciência. A intencionalidade se encontra qualificada como imanência pura, possuindo como ponto de partida o eu puro cujos elementos não possuem configuração psicológica. Para Husserl (1996, p. 48), “a palavra intencionalidade significa apenas esta particularidade intrínseca e geral que a consciência tem de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum próprio”.

Para os fenomenólogos, a metodologia da pesquisa parte do pressuposto de que o mundo que pretendem abordar é intersubjetivamente construído por significados. Para sua compreensão, prioriza-se a experiência do indivíduo no mundo aplicando-se métodos nos quais predominam análises conceituais, análises lingüísticas, abordagens hermenêuticas e lógica formal. Há que se abandonar qualquer hipótese prévia acerca do mundo adotando uma perspectiva reflexiva. A metodologia da pesquisa de base fenomenológica volta-se para o questionamento da experiência do fenômeno na consciência procurando entender como os agentes constroem os significados. Considera-se que a experiência de mundo dos Sujeitos ocorre com e por meio do Outro, modo pelo qual convencionamos nossa visão do mundo; todo e qualquer significado por nós criado encontra-se vinculado às ações humanas. A fenomenologia busca apreender a essência da natureza humana e os significados conferidos pelos Sujeitos às suas experiências. Para tanto, o pesquisador deve colocar o mundo externo entre parênteses detendo-se unicamente na percepção do mundo a ser analisado.

4. CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO E INTERDISCIPLINARIDADE

A afirmação do estatuto científico da Ciência da Informação e sua posição nos quadros da ciência moderna vêm sendo objeto de estudo da disciplina desde sua institucionalização24. Estudos e reflexões sobre a área são marcados pelo empenho em confrontá-la com as ciências clássicas, assinalando

24 Exemplos dos esforços voltados para a afirmação da cientificidade da Ciência de Informação podem ser percebidos nas tentativas de sua incorporação ao universo das Ciências Humanas ou Sociais. (PINHEIRO, 1999)

Page 142: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 142

suas características singulares e marcas distintivas. Wersig (1993), por exemplo, qualifica a Ciência da Informação como “ciência pós-moderna” para enfatizar as mudanças no papel do conhecimento no mundo contemporâneo e a inexistência de método único. Assim como a Ecologia, a disciplina integraria um grupo de ciências de um novo tipo, que lidam com os problemas trazidos pelas ciências clássicas, e desempenharia um papel estratégico na articulação de interconceitos, o que contribuiria para minimizar o problema da fragmentação do conhecimento, ou seja, de sua pulverização em disciplinas autônomas.

A construção da Ciência da Informação encontra-se associada às transformações ocorridas nas sociedades contemporâneas, nas quais conhecimento, Comunicação, Sistemas de Significado e uso de linguagens tornaram-se objetos de pesquisa científica e domínios de intervenção tecnológica (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000, p. 3). A informação, considerada fenômeno mais amplo tratado pela Ciência da Informação, vincula-se a diversas camadas ou estratos de realização.

Formam parte desses estratos a linguagem, com seus diversos níveis sintáticos, semânticos e pragmáticos e suas plurais formas de expressão – sonoras, imagéticas, textuais, digitais/analógicas -; os sistemas sociais de inscrição de significados – a imprensa e o papel, os meios audiovisuais, o software e o hardware, as infra-estruturas das redes de comunicação remota; os sujeitos e organizações que geram e usam informações em suas práticas e interações comunicativas. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000, p. 5)

Esse contexto é permeado ainda por crises nas estruturações epistemológicas da Ciência Moderna, levando a área a assumir parte dos discursos construídos a partir dos resultados formalizados da produção de conhecimentos. Desse modo, a Ciência da Informação constitui-se como uma nova demanda de cientificidade e sintoma de mudanças que afetaram a produção de conhecimento no Ocidente. A fim de fazer frente aos desafios trazidos por esse contexto a área desenvolve-se tendo como um dos vetores canônicos de sua natureza o conceito de interdisciplinaridade.

Esse aspecto tem sido afirmado como elemento distintivo da Ciência da Informação, provendo-a de um perfil peculiar diante das rígidas fronteiras disciplinares e atendendo, concomitantemente, aos novos pressupostos científicos contemporâneos. Para Tefko Saracevic (1992, p.1), três características permitiriam estudar a Ciência da Informação no passado, presente e futuro: 1) sua natureza interdisciplinar, as mudanças nas suas relações com outras disciplinas e perspectivas de longa duração da evolução à interdisciplinaridade; 2) conexão à tecnologia da informação; e 3) participação ativa na sociedade da informação. Outro aspecto importante destacado pelo autor é de que a base da disciplina relaciona-se aos processos de comunicação humana, sendo então um

campo devotado à investigação científica e prática profissional que trata dos problemas de efetiva comunicação dos conhecimentos e de registros do conhecimento entre seres humanos, no contexto de usos e necessidades sociais institucionais e/ou individuais de informação. No tratamento desses problemas tem interesse particular em usufruir, o mais possível, da moderna tecnologia da informação. (SARACEVIC, 1992, p. 1)

Como característica essencial da área, a interdisciplinaridade facultou ainda a incorporação e

Page 143: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 143

ampliação progressiva de diferentes objetos de estudo, teorias e metodologias advindas de diferentes campos científicos. Para que se possa melhor estudar esses objetos, recorre-se à interdisciplinaridade para a construção de uma estrutura teórica - conceitos, enunciados e teorias - buscando proporcionar uma justificação desse corpus teórico (RENDÓN ROJAS, 2005) e, consequentemente, sua validação como conhecimento científico. As heterogêneas abordagens que caracterizam o horizonte interdisciplinar acrescido dos diferentes sentidos e empregos no território da Ciência da Informação facultam reflexões baseadas na Fenomenologia acerca das diversas metodologias estruturantes de seus planos teóricos e analíticos.

González de Gómez (2001, p. 5, 13) ressalta o permanente questionamento da área, o que se deveria ao “caráter estratificado” da informação, resultante de uma “orientação interdisciplinar ou transdisciplinar do campo, na medida em que este se vê obrigado a trabalhar na articulação das dimensões plurais do objeto informacional: semânticas, sintáticas, institucionais, infra-estruturais, entre outras”. Observa, ainda, a tendência atual para reconhecer o “pluralismo metodológico próprio das ciências sociais e de um campo interdisciplinar”.

A reflexão epistemológica sobre a Ciência da Informação se faz instrumental em sua interdisciplinaridade para seu entendimento disciplinar, tanto interna como externamente. Observa-se nas Ciências Sociais e Humanas uma discussão constante sobre os marcos filosóficos que reflitam adequadamente a natureza complexa do fenômeno humano e social, além da existência de uma comunidade científica marcada pela diversidade de escolas e correntes sem que estas rompam com sua unidade.

5. NOVOS OBJETOS, NOVOS DESAFIOS: A INFORMAÇÃO EM ARTE

Tendo a informação como elemento estruturante e objeto de estudo, a Ciência da Informação concentra-se em práticas, processos e fluxos informacionais complexos, marcados por forte componente interdisciplinar e pelas especificidades de uma gama diversificada de instituições sócio-culturais. A partir do conceito de ‘programa de pesquisa’ proposto por Imre Lakatos25, Gonzalez de Gómez enfatiza ainda o “caráter poli-epistemológico” da disciplina:

Se existe grande diversidade na definição das heurísticas afirmativas, as que definem as estratégias metodológicas de construção do objeto e que permitem a estabilização acumulativa do domínio, maior é a dificuldade para estabelecer as heurísticas negativas, as que definem o que não poderia ser considerado objeto do conhecimento da Ciência da Informação, condição diferencial que facilita e propicia as relações de reconhecimento e complementaridade com outras disciplinas. E isto acontece na Ciência da Informação por um lado, pela referência intrínseca de seu objeto a todos os outros modos de produção

25 Um programa de pesquisa é constituído por um núcleo firme e uma heurística. O núcleo é um conjunto de proposições convencionalmente aceitas, e, por decisão metodológica, irrefutáveis e não testáveis. A heurística é um corpo de regras metodológicas integrado por uma heurística positiva, que indica direções a seguir, e uma heurística negativa, que indica caminhos a serem evitados a fim de preservar o núcleo firme e impedir que o mesmo seja refutado.

Page 144: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 144

de saberes, gerando constantemente novas treliças interdiscursivas, e por outro lado, pela natureza estratificada e poli-epistemológica dos fenômenos ou processos de informação. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2000)

Essa condição confere à Ciência da Informação uma configuração dinâmica e um caráter multidimensional que se manifestam pela incorporação de novos objetos. Embora a disciplina tenha privilegiado tradicionalmente os domínios da Ciência e Tecnologia (em virtude da propalada urgência em recuperar a informação científica e tecnológica), observou-se nas últimas décadas do século XX uma tendência para a busca de novos objetos e domínios de aplicação. Entre estes, Pinheiro (1997, p. 255) ressalta a Arte, que se manifestaria pela criação de um grupo de interesse em Arte e Humanidades na ASIS - American Society for Information Science26. Trata-se, para a autora, de uma nova área de pesquisa cuja origem estaria ligada às bibliotecas de arte, e que teria recebido forte impulso com a criação do “The Getty Art History Information Program” pela Fundação Getty.

O novo campo de estudo, que se convencionou chamar “Informação em Arte”, está estreitamente ligado à área de representação do conhecimento e às questões teóricas a ela relacionadas. Vickery (1986, p. 145) destaca a relevância do problema para diversas disciplinas e campos de atuação profissional, que também necessitam representar informações com fins instrumentais. González de Gómez (1993, p. 217-218) enfatiza o caráter estratégico da transferência da informação, que se apresenta como “um conjunto de ações sociais com que os grupos e as instituições organizam e implementam a comunicação da informação através de processos seletivos que regulam sua geração, distribuição e uso”. As práticas voltadas à transferência da informação seriam, para a autora, orientadas por valores que devem ser examinados à luz de um contexto de ação social. Pinheiro (1996, p. 4), por sua vez, enfatiza a complexidade da tarefa de “representar e interpretar a obra de arte, no tempo e no espaço”, para a qual “é essencial a compreensão do processo de criação artística”.

A questão da representação de obras de arte (vistas como documentos) em sistemas de representação de informação é apresentada a título de exemplo. Para permanecermos na esfera da fenomenologia, apresentamos de modo sintético a reflexão proposta por Martin Heidegger (1992, p. 11) em “A origem da obra de arte”. Na obra, resultante de conferências realizadas em 1936 e publicadas em 1950, o filósofo se propõe a desvelar a essência da Arte. Esta, entretanto, não seria mais que “uma palavra a que nada de real corresponde”; trata-se de uma idéia à qual corresponderiam como coisas reais apenas as obras e os artistas.

Obras de arte teriam um caráter de coisa - ou um “caráter coisal” - impossível de ser contornado ou ignorado:

Há pedra no monumento. Há madeira na escultura talhada. Há cor no quadro. Há som na obra falada. Há sonoridade na obra musical. O caráter de coisa está tão incontornavelmente na obra de arte, que devíamos até dizer antes ao contrário: o monumento está na pedra. A escultura está na madeira. O quadro está na cor... (HEIDEGGER, 1992, p. 13)

26 Desde 1999, a Sociedade adotou o nome “American Society for Information Science and Technology” e a sigla ASIST.

Page 145: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 145

A obra de arte, entretanto, não é apenas uma mera coisa, ela é sempre reveladora de alguma coisa a mais: “à coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. (...) A obra é símbolo”. Ela seria, assim, uma coisa à qual adere esse algo a mais. (HEIDEGGER, 1992, p. 13-14)

Na Modernidade ocidental predominariam três diferentes interpretações sobre o que é uma coisa: a primeira a interpreta como uma soma de características, ou como “aquilo em torno do qual se agrupam propriedades”, a segunda a define como “o que é perceptível nos sentidos da sensibilidade através das sensações”, e a terceira concentra-se em sua materialidade: “a coisa é uma matéria enformada”. Esta última, predominante no Ocidente, teria sua origem na essência do útil, ou daquilo que é fabricado expressamente para ser utilizado. (HEIDEGGER, 1992, p. 16-19)

A obra de arte, para Heidegger (1992, p 20-21), distingue-se da mera coisa (como um bloco de granito) e do apetrecho ou utensílio (como um par de sapatos). Este último revela afinidade com a mera coisa, na medida em que é algo material em uma forma definida; e também com a obra de arte, na medida em que é feita pelo homem. Neste sentido, é “meio coisa, porquanto determinado pela coisidade, e todavia, mais; ao mesmo tempo é obra de arte e, todavia, menos, porque não tem a auto-suficiência da obra de arte”. Ocupa, portanto, “uma peculiar posição intermediária, a meio caminho entre a coisa e a obra”.

Para buscar a essência do utensílio, que residiria em seu “caráter instrumental”, o procedimento adotado por Heidegger (1992, p. 24) é a descrição de um par de sapatos de camponês, o que não é feito diretamente, mas por meio de uma representação pictórica: uma pintura de Van Gogh, apresentada na figura 1, a seguir.

Figura 1

Figura 1 - Par de sapatos. Óleo sobre tela (37,5 x 45)cm. Vincent Van Gogh, 1986.

Museu Van Gogh, Amsterdam.

Page 146: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 146

Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobra o qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai... (HEIDEGGER, 1992, p. 25)

Com esse procedimento descritivo e interpretativo, Heidegger (1992, p. 30-31) atinge a essência do utensílio sapato, ou sua verdade. Adverte, entretanto, que é inútil buscar a essência da arte a partir do isolamento e descrição de sua coisidade. “A tentativa de apreender o caráter coisal da obra, através dos conceitos habituais da coisa, fracassou”, afirma o filósofo, sugerindo que o caminho que conduz da coisa à obra de arte, deve ser invertido, ou seja, substituído por aquele que leva da obra de arte à coisa. O filósofo ressalta a impossibilidade de tornar as obras acessíveis em si:

As próprias obras encontram-se e estão penduradas nas coleções e exposições. Mas estarão elas porventura aqui em si próprias, como as obras que elas mesmas são, ou não estarão antes aqui como objetos do funcionamento das coisas no mundo da arte (Kunstbetrieb)? As obras tornam-se acessíveis ao gozo artístico público e privado. As autoridades oficiais tomam a cargo o cuidado e a conservação das obras. Críticos e conhecedores de arte ocupam-se delas. O comércio de arte zela pelo mercado. A investigação em história da arte transforma as obras em objetos de uma ciência, Mas no meio de toda essa manipulação, vêm as próprias obras ainda ao nosso encontro? (HEIDEGGER, 1992, p.31)

Por melhores que sejam a conservação e interpretação das obras, a transferência para uma coleção retirou-as de seu mundo, e de seu “espaço essencial”. No entanto, mesmo que se faça um esforço para evitar essa transferência, o mundo das obras já não existe mais:

A subtração e a ruína do mundo não são reversíveis. As obras não são mais o que foram. São elas mesmas, é certo, que se nos deparam, mas são aquelas que já foram (die Gewesenem). Como aquelas que foram, estão perante nós, no âmbito da tradição e da conservação. A partir daqui, permanecem apenas enquanto tais objetos. (HEIDEGGER, 1992, p.31-32)

Do ponto de vista fenomenológico, representar uma obra de arte em um sistema de recuperação de informação implica em ir ao encontro de algo que já não é mais. Autores que se debruçaram sobre a questão levantaram alguns pontos que podem servir para dimensionar a complexidade da tarefa. Scott (1988) enfatiza a própria natureza da obra de arte, cujo valor é, de modo geral, aceito como de apreensão intuitiva e, portanto, impossível de ser expresso por meio de escalas objetivas. Stam e Giral (1988) destacam o que chamam “dilema conceitual”, e que consistiria em traduzir para uma linguagem verbal uma entidade de natureza não verbal. Essa intradutibilidade é enfatizada por Svenonius (1994, p. 600, 605) ao refletir sobre a indexação de obras de arte. A autora questiona a capacidade das palavras para expressar o assunto de uma entidade não verbal como a obra de arte, observando que só se pode expressar parcialmente aquilo que é comunicado pela arte, e advertindo para a existência de uma “realidade indizível” impossível de ser traduzida por palavras-chave.

Page 147: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 147

Estudos no âmbito da Informação em Arte implicam ainda, em um confronto inevitável com as limitações inerentes aos modelos técnicos, cujo caráter reducionista torna-se ainda mais evidente diante da singularidade do objeto em questão.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adoção de métodos fenomenológicos na Ciência da Informação, assim como nas Ciências Humanas e Sociais, constitui-se “uma postura diante do mundo” (BOEMER, 1994, p. 87), uma abertura do ser humano para entender a vivência a partir do outro, isto é: a adoção do viés fenomenológico é um debruçar-se sobre o vivido dos sujeitos efetuando uma reflexão sobre as coisas tal como elas se manifestam no mundo da vida. Há que se voltar para a essência construindo uma descrição significativa do fenômeno objetivado tal como vivenciado no mundo da vida. As premissas e metodologias fenomenológicas encontram-se infletidas nesses campos quando, para a compreensão de um dado fenômeno, são acionados os referenciais da relação noética-noemática, da intencionalidade, da redução transcendental e da empatia.

Sob este ângulo e sem desconhecer as distintas visões que integram as metodologias no ambiente da Ciência da Informação, aparentemente duas vertentes fenomenológicas são exploradas com maior freqüência: aquelas pautadas nas metodologias desenvolvidas para e nas ciências sociais e as abordagens hermenêuticas. (cf. GIDDENS, 1996; 1998)

Os estudos e pesquisas que privilegiam metodologias inerentes às ciências sociais derivam da influência da sociologia compreensiva iniciada por meio das reflexões de Schutz (1967; 1978) e, posteriormente, das propostas desenvolvidas por Berger e Luckmann (1998). Trata-se de privilegiar a análise dos modos por meio dos quais os agentes sociais vivenciam a cotidianidade e impregnam de significados suas ações. Distingue-se um Lebenswelt já constituído, significativo e permeado pela intersubjetividade contemplando, desse modo, o fenômeno informacional sob diferentes abordagens e priorizando as descrições da experiência de vida (Erlebnis) no mundo da vida cotidiana (Lebenswelt). Essa face fenomenológica encontra-se, via de regra, nas pesquisas de cunho qualitativo que balizam estudos interpretativos e exploratórios, principalmente quando se voltam para a descrição de fenômenos e comportamentos em diferentes configurações sociais. A pesquisa qualitativa, essencialmente indutiva, utiliza-se de procedimentos interpretativos e relativistas privilegiando um “real” subjetivo e o social como construção que enseja o emprego dos procedimentos fenomenológicos.

Quanto às premissas e metodologias fenomenológicas no seio da Ciência da Informação, é preciso cotejá-las com os diferentes momentos do campo em sua existência formal. Suas transformações, reformulações e relação intrínseca com diferentes campos científicos ao longo do tempo sugerem que as metodologias fenomenológicas encontram-se presentes em diferentes momentos da disciplina, e são acionadas principalmente quando nos dedicamos a questões que privilegiam a essência dos fenômenos no âmbito da linguagem, da informação no mundo da vida e, sobretudo, quando nos

Page 148: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 148

encaminhamos em um plano transcendentalista a reflexões destinadas a descrever significativamente, se é que é possível, aquilo que simultaneamente nos une e separa teórica e conceitualmente: o fenômeno Informação.

A adoção das premissas e métodos fenomenológicos pode ser um ponto de partida privilegiado para a configuração das essências e das origens em um contexto sócio-cultural que valoriza cada vez mais o contingente e o secundário em detrimento do essencial e originário. Heidegger (1988, p. 70) destaca que o essencial da fenomenologia “não é ser uma ‘corrente’ filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade”.

Para Derrida (1994, p. 35), “a fenomenologia só tem sentido se uma apresentação pura e originária for possível e original”. Tal como Heidegger, alerta para os elementos axiais das premissas e metodologias que adotam de modo apropriado o ponto de vista fenomenológico. Enfim, ao ir de encontro a tudo aquilo que advém do território fenomenológico devemos estar atentos a sua fonte primordial expressa nas palavras de Husserl: “às próprias coisas!”27

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Peter L. LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de Sociologia do Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1998.BOEMER, M. A condução de estudos segundo a metodologia de investigação fenomenológica. Revista Latino Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 2, n. 1, p. 83 – 94, jan. 1994. CAVEDON, Neusa Rolita. Recursos Metodológicos e Formas Alternativas no Desenvolvimento e na Apresentação de Pesquisas em Administração. IN: ENCONTRO DA ANPAD, 25, 2001, Campinas. Anais. Rio de Janeiro: ANPAD, 2001. CD ROM.DERRIDA, Jacques. A voz e o fenômeno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. DARTIGUES, André. O que é a fenomenologia? Rio de Janeiro: Eldorado, 1973. FRAGATA, Júlio. A fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia. Braga: Livraria Cruz, 1959. 286 p.GIDDENS, Anthony. Garfinkel, etnometodologia e hermenêutica. In: Política, Sociologia e Teoria Social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 283-296.________________. Novas Regras do Método Sociológico. Lisboa: Gradiva, 1996. GONZÁLEZ DE GÓMEZ, M.N.. A Representação do Conhecimento e o Conhecimento da Representação: Algumas Questões Epistemológicas. Ciência da Informação, Brasília: IBICT, v. 22,, n.3, p. 217-222, set/dez 1993. _____________________ . A metodologia da pesquisa no campo da Ciência da Informação. Datagramazero - Revista de Ciência da Informação, v. 1, n. 6, p. 1- 5, 2000._____________________ . Para uma reflexão epistemológica acerca da Ciência da Informação. Perspectivas em Ciência da Informação, v.6, n.1, p. 5-18, 2001.

27 “Zu den Sachen selbst!” no original.

Page 149: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 149

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988. HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. Porto: Ed. Rés, 1996.__________. Investigações lógicas: sexta investigação (elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento). In: Husserl. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985. 189 p. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro. Arte, objeto artístico, documento e informação em museu. In: XVIII ANNUAL CONFERENCE OF ICOM - International Council of Museums, V REGIONAL MEETING OF ICOFOM/LAM, 1996, Rio de Janeiro. Symposium Museology & Art, 1996. p. 8-14.______________ . A Ciência da Informação entre sombra e Luz: domínio epistemológico e campo interdisciplinar. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 1997. 278 p. Tese (Doutorado em Comunicação).RENDÓN ROJAS, Miguel Angel. Entre los conceptos: información, conocimiento y valor. Semejanzas y diferencias. Ciência da Informação, Brasília, v. 34, n. 2, p. 52-61, 2005. RICŒUR, Paul. l’École de la Phénoménologie. Paris: Vrin, 1987. SARACEVIC, Tefko. A natureza interdisciplinar da Ciência da Informação. Ciência da Informação, Brasília, v.24, n.1, 1995.SCHUTZ, Alfred. The Constituition of Meaningful Lived Experience in the Constitutor’s Own Stream of Consciousness. In: _________. The Phenomenology of the Social Word. Illinois: Northwetern University Press, 1967.SCHUTZ, Alfred. Subjective and Objective Meaning. In: GIDDENS, A. Positivism and Sociology. London: Heinemann, 1978. SCOTT, David W. Museum Data Bank Research Report: The Yogi and The Registrar. Library Trends, v. 37, n. 2, p. 130-141, 1988.SHUBACH, Márcia Sá C. Quando a palavra se faz silêncio. In: FOGEL, Gilvan et al. Por uma Fenomenologia do Silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.SOARES, Luiz Eduardo. O Rigor da Indisciplina: ensaios de Antropologia Interpretativa. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. STAM, Deirdre; GIRAL, Angela. Introduction. Library Trends, v. 37, n. 2, p. 117-264, 1988.SVENONIUS, Elaine. Access to Nonbook Materials: The Limits of Subject Indexing for Visual and Aural Languages. Jounal of American Society for Information Science, v. 45, n. 8, p. 600-606, 1994.VICKERY, Brian C. Knowledge Representation: a Brief Review. Journal of Documentation, v.42, n.3, p.145-159, 1986.WERSIG, Gernot. Information science: the study of postmodern knowledge usage. Information Processing and Management, New York , v. 29, n. 2, p. 229-239, 1993.

Page 150: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 150

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

MIGRAÇÃO CONCEITUAL ENTRE SISTEMAS DE RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO E CIÊNCIAS

COGNITIVAS: UMA INVESTIGAÇÃO SOB A ÓTICA DA ANÁLISE DO DISCURSO

Fernando Skackauskas Dias, Monica Nassif Erichsen

Resumo: Este artigo discute a dinâmica e o impacto da migração conceitual no âmbito da Ciência da Informação sob a ótica da análise discursiva. Devido à sua extensa fronteira disciplinar, a Ciência da Informação se vê frequentemente às voltas com conceitos que migram entre as suas áreas limítrofes, especialmente quando os pesquisadores em Sistemas de Recuperação da Informação se apropriam de conceitos das Ciências Cognitivas. Partindo da hipótese de que a migração é realizada sob a égide de diversas formações discursivas que se imbricam para estruturar o conceito migrado, tem-se como proposta investigar a migração de conceitos entre as áreas de Sistemas de Recuperação da Informação e Ciências Cognitivas, utilizando-se, como ferramental metodológico, os princípios da Análise do Discurso. Como corpora de investigação foram analisados artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais da Ciência da Informação. Pelos resultados é possível constatar que, quando um determinado conceito é migrado por pesquisadores distintos, ocorrem deformações no seu sentido. Durante a migração de um conceito, não havendo uma definição que reduza a sua ambigüidade, não é possível saber a qual de vários domínios possíveis ele está associado e, conseqüentemente, não permite que o autor adote uma postura teórica e metodológica clara.

Palavras-chave: Sistemas de Informação, Ciências Cognitivas, Análise do Discurso

Abstract: This article discusses the dynamics and impact of conceptual migration on the area of Information Science from the perspective of discourse analysis. Due to its long border discipline, Information Science is often seen struggling with concepts that migrate between their adjoining areas, especially when researchers in Information Retrieval Systems appropriating concepts from Cognitive Science. Assuming that migration is performed under the umbrella of various discursive formations that overlap the concept migrated, is proposed to investigate the migration of concepts between the areas of Information Retrieval Systems and Cognitive Sciences, using, as a methodological tool, the principles of Discourse Analysis. As corpora research was analyzed articles published in national and international Information Science journals. From the results it is clear that, from the perspective of discourse analysis, deformations occur in the direction of the same concept as we migrated by different researchers. During the migration of a concept, there is no one definition that reduce its

Page 151: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 151

ambiguity, it is not possible to know which of several possible areas it is associated, and consequently does not allow the author adopts a clear theoretical and methodological approach.

Keywords: Information Systems, Cognitive Science, Discourse Analysis

1 INTRODUÇÃOEm um cenário amplo é possível constatar que as ciências evoluem numa determinada dinâmica

que, em vários momentos, observa-se uma ruptura entre os seus limites, transcendendo fronteiras e transbordando conceitos. Segundo Morin (2007) haveria pouca evolução das ciências se não fosse a “circulação clandestina da viagem dos conceitos”. Ou seja, o fluxo de informações e conceitos entre áreas científicas é intenso e transforma teorias, criando novas implicações e alterando abordagens. Por outro lado, Oliveira Filho (1995) explica que, a partir do momento em que se utiliza um determinado conceito entre uma ciência e outra pode haver uma alteração do seu significado, comprometendo a transmissão do conhecimento. O autor explica que existe uma “patologia metodológica” - entre outras formas de “ecletismo” da produção científica - que ocorre quando os cientistas formulam suas teorias e migram conceitos, podendo interferir na comunicação das ciências. Sendo assim, a migração conceitual é inevitável e necessária para a evolução das ciências, mesmo que estas migrações paguem certo preço ao comprometer a comunicação do conhecimento. Como exemplo, quando El-Hani & Queiroz (2007) discutem sobre o conceito de “emergência” no estruturalismo da semiose computacional, eles citam:

O termo ‘emergência’ (e derivados) tem sido largamente usado em diversos campos de pesquisa, como Vida Artificial e Robótica Cognitiva. Contudo, pouca discussão é encontrada sobre o significado de ‘emergência’, ‘emergente’, nestes campos, embora segmentos destes campos cheguem a ser descrito como ‘computação emergente’ [...] Tendo em vista os debates e as confusões sobre o tema ao longo do século XX, [...], é fundamental ter clareza sobre o conceito”. (EL-HANI & QUEIROZ, 2007, pg.94).

Nesse sentido, a Ciência da Informação, devido à sua extensa fronteira disciplinar, carrega fortemente em si a influência de diversas áreas do conhecimento que tem como interesse o fenômeno informacional ocorrendo, invariavelmente, uma forte migração de conceitos. Como mostram os estudos de Le Coadic (1993), a informação é objeto de interesse de diversas ciências e, conseqüentemente, os pesquisadores procuram agrupar teorias advindas de diversas áreas para desenvolverem suas investigações. O que é possível identificar é que, entre as áreas que circundam a Ciência da Informação, os estudos sobre Sistemas de Recuperação da Informação e Ciências Cognitivas têm se sobressaído pela forte influência de uma sobre a outra (DIAS, 2006, 2007; DIAS & NASSIF, 2008) e, verifica-se, uma forte migração de conceitos entre elas. Portanto, a pergunta desta pesquisa é: como se formam as migrações conceituais realizadas pelos pesquisadores de Sistema de Recuperação da Informação quando estruturam suas teorias com base nas Ciências Cognitivas?

Por outro lado, outra característica inerente ao desenvolvimento das pesquisas científicas

Page 152: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 152

é que, como ocorre em qualquer área da atividade humana, os pesquisadores são levados por ideologias (FIORIN, 2007). O que se pode considerar, portanto, é que os pesquisadores, ao reformularem conceitos entre uma ciência e outra, o fazem sob determinadas “condições ideológicas” e não são destituídos de intencionalidade. As possíveis ideologias a que se submetem os pesquisadores não ocorrem somente na escolha do objeto de análise ou nas mais diversas metodologias de investigação, mas também ao recorrerem a conceitos oriundos de outras ciências. Considerando que toda ideologia cria um discurso, e que a partir do momento em que a migração conceitual advém de diversas áreas, cria-se um “espaço discursivo”, ou seja, um conjunto de discursos que se imbricam para construir um conceito formado da interação entre as ciências. Fiorin (2007, pg.32) descreve:

Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo. Como não existem idéias fora dos quadros da linguagem, entendida no seu sentido amplo de instrumento de comunicação verbal ou não-verbal, essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma data visão de mundo.

Considerando esse princípio, é justamente neste espaço discursivo28 que ocorre a formação de conceitos entre áreas científicas. Partindo do exposto, tem-se como hipótese que, quando os pesquisadores da Ciência da Informação investigam sobre Sistema de Recuperação da Informação e migram conceitos das Ciências Cognitivas, o fazem regidos por diversas condições ideológicas existentes em um espaço discursivo advindo de diversas áreas. Nesta perspectiva, o princípio do “interdiscurso”, estabelecido por Maingueneau (2008), que tem como alvo a compreensão da interdiscursividade constitutiva, ou seja, a análise do espaço de trocas entre discursos se apresenta como um aparato metodológico que pode dar conta de penetrar no espaço de circulação e troca de conhecimento e compreender a estrutura da migração conceitual.

Para a construção do corpus de investigação foram selecionados artigos nacionais e internacionais publicados em periódicos científicos da Ciência da Informação. O critério de seleção baseou-se na identificação dos artigos que tem como característica central pesquisar sobre Sistema de Recuperação da Informação e estruturarem suas metodologias utilizando-se de conceitos oriundos das Ciências Cognitivas. Inicialmente foram agrupados pares de artigos que utilizam o mesmo conceito central na estrutura da metodologia da pesquisa. Ao final do processo, foram selecionados oito artigos, sendo quatro internacionais e quatro nacionais. Os conceitos analisados foram: Rizoma e Redes Neurais, Processo Cognitivo, Carga Cognitiva.

28 Dentro do no universo discursivo existe o espaço discursivo, isto é, no conjunto dos discursos que interagem em uma dada conjuntura, tem-se como recorte os “espaços discursivos” que é um conjunto de formações discursivas que estão em relação de concorrência no sentido amplo. Maingueneau (2008).

Page 153: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 153

2 PROBLEMAO problema reside em que, quando os pesquisadores investigam e publicam suas teorias adotando

e adaptando vários conceitos, incorrem no risco de “deformarem” a idéia inicial. Estas migrações entre áreas impactam na comunicação das pesquisas desenvolvidas, pois essa “adaptação” pode gerar “distorções” na idéia central do conceito e toda a comunicação científica pode ser comprometida, como Oliveira Filho (1995) cita:

A metodologia das ciências sociais apresenta algumas dificuldades que não são exclusivas de determinadas correntes, mas estão presentes em todas elas, sejam analíticas, hermenêuticas ou dialéticas. Estas patologias metodológicas são o ecletismo, o reducionismo e o dualismo. [...] O ecletismo como patologia metodológica pode ser definido pelo uso de conceitos fora dos seus respectivos esquemas conceituais e sistemas teóricos, alterando os seus significados. (OLIVEIRA FILHO, 1995, pg.263).

Oliveira Filho (1995) explica o ecletismo como “patologia metodológica” como sendo o uso de conceitos fora dos seus respectivos esquemas, alterando os seus significados, como ele cita: “A ocorrência do termo sem definição que reduzisse ou eliminasse a sua ambigüidade, não permitiria saber a qual de vários conceitos possíveis está associado [...] sem que o cientista social perceba que a sua linguagem pode dificultar a comunicação” (OLIVEIRA FILHO, 1995, pg.263). O fenômeno tem três aspectos estruturais. Inicialmente, no ecletismo têm-se termos vazios de significado e que não podem funcionar como instrumental de reconstrução teórico-metodológica. Em seguida, o ecletismo dá uma função teórica a expressões descritivas ou o oposto. Isto se trata de uma das conseqüências mais notórias do uso inadequado dos conceitos. Por fim, o ecletismo impede que o autor adote claramente uma postura teórico-metodológica forte, tendo grande dificuldade em apreender diferenças entre posições adotadas por autores e escolas com respeito às estratégias gerais de investigação.

3 OBJETIVOO objetivo deste trabalho é realizar uma análise comparativa entre artigos de Sistemas de

Recuperação da Informação que realizam a migração de um mesmo conceito advindo das Ciências Cognitivas procurando identificar a existência de uma forma de ecletismo conceitual. Como ferramental metodológico será utilizado os princípios da teoria da Análise do Discurso de Maingueneau (2008). Portanto, busca-se investigar se, no momento da estruturação de determinado conceito migrado entre artigos distintos, existe uma deformação do seu sentido central, caracterizando como patologia metodológica, conforme definido por Oliveira Filho (1995).

4 SISTEMAS DE RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO E CIÊNCIAS COGNITIVAS

A história da relação entre Ciências Cognitivas e Sistemas de Recuperação da Informação, no âmbito da Ciência da Informação, tem sido permeada por pesquisas de diversas origens (De Mey,

Page 154: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 154

1992; Ingwersen, 1996). O que acontece é que, as áreas de Sistemas de Recuperação da Informação e Ciências Cognitivas têm estágios diferentes de evolução, não ocorrendo necessariamente de forma simultânea. Mas, atualmente, ocorre um interesse renovado por ambos os temas (Dias, 2006; 2007). Como descreve Maimone & Silveira (2007):

A Ciência da Informação definida como ciência interdisciplinar propõe diversos pontos de intersecção com outras áreas do conhecimento que lhe são correlatas. Neste sentido, aspectos informacionais tangenciam com processos da psicologia cognitiva a fim de desvendar os “mecanismos” da mente humana sob o ponto de vista social ao qual se apresentam. Os paradigmas da Ciência da Informação são descritos a partir das concepções teóricas de cada época. (MAIMONE & SILVEIRA, 2007, pg.56).

Lima (2003) descreve que, com o desenvolvimento dos estudos das Ciências Cognitivas, a maneira como são categorizadas as informações sofreu forte modificação, passando de um “processo cognitivo individual a um processo cultural e social de construção da realidade, que organiza conceitos baseando-se parcialmente na psicologia do pensamento” (LIMA, 2003, pg.82). Ou seja, a informação que se percebe no primeiro momento é fundamental na definição de uma categoria, pois a categorização leva em conta as informações do mundo a que pertencem aqueles que organizam a informação e aqueles que a buscam. Na etapa de indexação ocorre um acoplamento dos sistemas aos aspectos cognitivos no momento da compreensão do texto e a composição da representação do documento. Nas três etapas pela qual o processo de indexação é realizado (análise do documento, identificação dos conceitos e tradução em indexação), há uma interação com os aspectos cognitivos do profissional da informação. Como citado por Lima (2003, pg.83): “As habilidades intelectuais poderiam ser harmonizadas de uma maneira mais eficiente, se as atividades pudessem simular processos cognitivos ou percepções sensoriais”. Neste sentido, Ingwersen (1996) cita:

The cognitive point of view in Information Sciences implies that each act of information processing – whether perceptual or symbolic – is mediated by a system of categories and concepts witch, for the information processing device, constituted a world model. (INGWERSEN, 1996, pg.5).

De acordo com Ingwersen (1996), o modelo cognitivo dos usuários pode ser dinâmico, mas não contido em si mesmo, ou seja, independente de qualquer estrutura que envolva um Sistema de Recuperação da Informação. Segundo o autor, o conhecimento do usuário sofre alterações diante a interação com a informação extraída dos Sistemas de Recuperação da Informação, o que reflete na modificação no seu estado “anômalo” de conhecimento. Ingwersen (1996), entre as diversas referências sobre Sistemas de Recuperação da Informação e as Ciências Cognitiva, cita duas características fundamentais da sua importância: a incerteza está presente na interação em um Sistema de Recuperação da Informação associada com a interpretação tanto do usuário quanto do sistema e as pressuposições e intencionalidade entre as mensagens trocadas são vitais para a percepção e o entendimento de tais mensagens. Portanto, é fundamental que o fator “humano” ocupe um lugar de destaque nas mais diversas pesquisas realizadas sobre Sistema de Informação. Diante desse quadro,

Page 155: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 155

mais e mais pesquisadores em Sistemas de Recuperação da Informação têm desenvolvido suas investigações recorrendo a conceitos das Ciências Cognitivas.5 METODOLOGIA

Maingueneau (2008, pg. 19) salienta que Discurso é um “sistema de regras que define a especificidade de uma enunciação”. Ou seja, discurso é a junção de um sistema de restrições de formação semântica (formação discursiva) e um conjunto de enunciados produzidos de acordo com um sistema (superfície discursiva). Portanto, ele considera formação discursiva como um conjunto de coerções semânticas globais (vocabulários, temas, instâncias, intertextualidade, enunciação).

Um dos principais fundamentos da teoria de Análise do Discurso de Maingueneau (2008) é a “interincompreensão”. Dado que o interdiscurso precede o discurso no sentido de que “o discurso introduz o outro no seu interior, traduzindo enunciados nas próprias categorias” (Maingueneau, 2008, pg.22), a interincompreensão é a “forma” com que os discursos se estabelecem no seu corpo. Como ele cita:

Não basta constatar que um conjunto de textos, com base em certas hipóteses, pode

ser disposto em uma mesma formação discursiva: seria igualmente necessário compreender

como, em determinado lugar, uma população de autores pôde produzir enunciados similares,

partilhar um conhecimento tácito das fronteiras de uma formação discursiva, sabendo o que

pode ou não ser dito ai. (MAINGUENEAU, 2008, pg. 22).

Seguindo sua estrutura teórica, a competência discursiva permite esclarecer a articulação do discurso e da capacidade dos sujeitos de interpretar e de produzirem enunciados que decorram dele. O que Maingueneau denomina, então, de competência discursiva são os sistemas de restrição única – a semântica global – que determina, no interior de um discurso, as regras de formação dos enunciados produzidos pelos sujeitos. Portanto, a abordagem de Maingueneau apresenta-se como apropriada ao objetivo da pesquisa, pois procura compreender a formação de um dado discurso (intradiscurso) – discurso científico predominante – pela relação “entre” discursos (interdiscurso) – Sistema de Recuperação de Informação e Ciências Cognitivas – e as suas relações como “sistema de regras” (interincompreensão). A análise de um discurso pelos diversos discursos que instalam (dialogismo), apresenta-se como uma maneira de fazer compreender a migração conceitual entre Sistema de Recuperação de Informação e Ciências Cognitivas.

Como forma de operacionalização da análise dos artigos, a primeira etapa é definir os planos do discurso contidos no artigo que servirão de referência. Estes planos determinam em que nível do texto deve ser realizado a análise do discurso. A análise se operacionaliza pela decomposição do texto em suas partes constitutivas, com o objetivo de perceber o valor e o relacionamento que guardam entre si e no interior do texto, para melhor compreender e interpretar o sentido da obra como um todo completo e significativo. A análise se baseia em três tipos de decomposição: inicialmente no discurso indireto, quando o autor do texto se posiciona como tradutor, ou seja, usa de suas próprias palavras para remeter a outra fonte do “sentido”. Em seguida quando se trata de um discurso direto, no momento em que

Page 156: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 156

o autor do texto coloca-se como “porta-voz”, recortando as palavras do outro e citando-as. Por fim, no caso de uma conotação autonímica o autor do texto inscreve as palavras do outro no seu discurso, sem que haja interrupção do transcorrer discursivo, mostrando, seja por aspas, uso do itálico, de uma entonação específica ou por um comentário, uma glosa. Como apoio para investigação, é descrita a formação conceitual sob forma gráfica de Mapa Conceitual. As regras utilizadas para estruturar o mapa seguem as diretrizes: O conceito central está escrito em letras maiúscula, negrito e representado como elipse. Em torno do conceito central estão distribuídos os termos utilizados para sua formação. A linha que une o conceito central aos termos adjacentes é unida pela descrição “utiliza termo”. Cada conceito ou termo adjacente ao conceito central está associado a uma “Área de origem” e representa de que área foi migrado o conceito. Por fim, a cada área estão conectados quais foram os autores.6 PROCESSO DE SELEÇÃO DOS ARTIGOS

Para se estruturar o corpus de investigação, inicialmente foram selecionados os editores que publicam periódicos da Ciência da Informação. A fonte de obtenção dos trabalhos foi o Portal CAPES - http://www.periodicos.capes.gov.br. Para a realização da pesquisa no Portal, fez-se uma busca na opção “Textos Completos” utilizando-se as palavras-chave “Information Science” e “Ciência da Informação”.

A primeira seleção dos artigos inicia-se com a procura daqueles que investigam Sistemas de Recuperação da Informação e Cognição. Para tal, em cada editora foi realizada a busca por artigos usando como filtro as palavras-chave: “Information Retrieval System”, “Cognition” e “Cognitive” para as editoras internacionais e “Sistemas de Informação”, “Cognição” e “Cognitivo” para as editoras nacionais. Além do filtro realizado, também foi usado como parâmetro somente os arquivos que estão disponíveis em “texto completo” no formato PDF. A segunda etapa da seleção dos artigos baseia-se na busca por aqueles que concentram suas investigações em Sistemas de Recuperação da Informação e se apropriam de conceitos das Ciências Cognitivas. Para esse filtro, foram utilizados os princípios estabelecidos na “Análise de Conteúdo. As regras gerais de Bardin (1977) seguem as seguintes etapas: Leitura flutuante: primeiro contato com os documentos a analisar e em conhecer o texto. A seguir é feita a escolha dos documentos pela “regra da exaustividade”, que desconsidera os artigos que não abordam o objetivo da análise. A seguir a “regra da representatividade”, onde a amostragem diz-se rigorosa se a amostra for parte representativa do universo inicial. A seguir a “regra da homogeneidade”, onde os documentos retidos devem ser homogêneos. Por fim, a “regra de pertinência”, onde os documentos retidos devem ser adequados. A partir da seleção dos artigos, seguindo as regras estipuladas acima, foram selecionados pares de artigos que estruturam suas metodologias utilizando como eixo central o mesmo conceito. O critério de escolha do conceito considera o conceito como o mais significativo e que sustenta a investigação proposta. No Quadro 1 estão descritos os artigos nacionais e Quadro 2 estão descritos os artigos internacionais.

Artigo Conceito

Page 157: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 157

As redes cognitivas na ciência da informação brasileira: um estudo nos artigos científicos publicados nos periódicos da áreaPINHEIRO, Liliane Vieira & SILVA, Edna Lúcia daCi. Inf., Brasília, v. 37, n. 3, pg. 38-50, set./dez. 2008 RizomaA Organização Virtual do Conhecimento no CiberespaçoMONTEIRO, Silvana Drumond.DataGramaZero – Revista de Ciência da Informação. v. 4, n. 6. Dez/2003.O poder cognitivo das redes neurais artificiais modelo ART1 na recuperação da informaçãoCAPUANO. Ethel Airton.Ci. Inf., Brasília, v. 38, n. 1, pg. 9-30, jan./abr. 2009.

Rede Neural

Redes neurais e sua aplicação em sistemas de recuperação de informaçãoFERNEDA, Edberto.Ci. Inf., Brasília, v. 35, n. 1, pg. 25-30, jan./abr. 2006

Artigo ConceitoHuman Perception And Knowledge Organization: Visual ImageryBarat, Agnes HajduLibrary Hi Tech, Vol. 25, No. 3, Pg. 338-351. 2007 Processo

CognitivoTowards Metacognitively Aware IR Systems: An Initial User StudyGorrell, Genevieve; Eaglestone, Barry; Ford, Nigel, Holdrige, Peter; Madden, Andrew.Journal of Documentation, Vol. 65, No. 3, Pg. 446-469. 2009Testing User Interaction With A Prototype Visualization-Based Information Retrieval SystemKoshman, SherryJournal of the American Society for Information Science and Technology; .824-833. 2005

Carga Cognitiva

Distribution of Cognitive Load in Web SearchJacek GwizdkaJournal of the American Society for Information Science and Technology. Volume 61, Issue 11, pp 2167–2187, 2010.

6 ANÁLISE

6.1 Análise do conceito RizomaO conceito “rizoma” estruturado no artigo “As redes cognitivas na ciência da informação

brasileira: um estudo nos artigos científicos publicados nos periódicos da área” de Pinheiro & Silva (2008), centraliza-se, fundamentalmente, no sentido de “Redes Egocêntricas”, “Redes Cognitivas” e “Redes de Citação” como alusão ao princípio de rizoma fundado na botânica e migrado por Deleuze e Guattari (1997) para a filosofia, agregando, também a este termo, os fundamentos da Biologia

Page 158: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 158

do Conhecer de Maturana (1998), quando associa essa noção de rede aos conceitos de “unidade Autopoiética” e “circularidade cognitiva”. Ou seja, a formação do conceito é “atravessada” por outros conceitos no sentido de adaptá-lo à pesquisa em questão, conforme citação:

Dessa forma, as redes de citação podem ser denominadas redes cognitivas, pois são nós e relações que possibilitam representar o conhecimento, e se reportam à teoria da autopoiese, utilizada por Maturana e Varela (1995) e Maturana (2001), para explicar a cognição. A teoria da autopoiese tem como idéia básica que os seres vivos produzem-se continuamente a si mesmos e que seus componentes estão dinamicamente relacionados em uma rede contínua de interações (PINHEIRO & SILVA, 2008, pg.39).

Portanto, a adoção do mesmo termo em ambos os artigos são direcionados por discursos distintos que se agregam para formar o mesmo conceito, havendo uma deformação do conceito central da metodologia entre os artigos. No primeiro, que tem como objetivo mapear as Redes de Publicação em forma de Sistemas de Informação, as autoras estruturam a idéia de Cognição acoplando ao conceito de Rizoma, o qual é formulado a partir dos conceitos de “Redes de Citação”, “Redes Egocêntricas”, “Circularidade Cognitiva” e “Densidade”, originados das áreas da Ciência da Informação (abordagem cognitivista), da Filosofia e da “Unidade Autopoiética” advinda da Biologia do Conhecer. A estruturação central para se construir a idéia de redes de citações (cognitivas), é formada pela idéia de circularidade do conhecimento de Maturana (1998). Portanto, são utilizadas três áreas: a Biologia do Conhecer, a Filosofia e a Ciência da Informação, comprovando a heterogeneidade que está na base mesma do discurso. Inicialmente, formulou-se o conceito de “Redes Cognitivas” a partir do paradigma da complexidade – filosofia - tendo como objetivo final o mapeamento das comunidades estabelecidas pelas citações. Considerando que o Discurso é produto e conjunção de diversos discursos que o precedem (ou sucedem), ou seja, ele se constrói no âmbito do interdiscurso, neste caso, a formação discursiva do principal conceito estruturado pelas autoras advém dos discursos conexionistas e da Biologia do Conhecer, servindo a filosofia de “ponte” entre as duas linhas de formações discursivas da cognição. O discurso cognitivista predominante é o uso de metáfora para Redes que “constitui-se de nós interligados, que conectam qualquer ponto independentemente da sua natureza; não é feito de unidades, e sim de dimensões; não tem começo nem fim, mas possui um meio pelo qual cresce e se estende” é um simulacro sobre as Ciências Cognitivas, acrescentando o fato de que “o conhecimento de um Sistema de Informação produz-se continuamente a si mesmo e que seus componentes estão dinamicamente relacionados em uma rede contínua de interações”, visão predominantemente contemporânea da Biologia do Conhecer, pois é uma rede que continuamente cria a si mesma. Já o artigo “A Organização Virtual do Conhecimento no Ciberespaço” de Monteiro (2003) fundamenta o mesmo conceito com base nos princípios de “virtualidade” e “materialidade”, diferentemente do primeiro, sendo que agrega ao conceito central estabelecido um sentido de “fluidez” na acepção de “continuidade”, e não mais de “circularidade” como no primeiro, conforme citado:

O virtual é o principal atributo do ciberespaço e que melhor o descreve. Ele dispõe o conhecimento e a informação em um espaço e estado contínuos de modificação, em função

Page 159: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 159

de sua plasticidade e fluidez, permitindo a interatividade e organizando o conhecimento em forma de rizoma, um novo tipo de escritura, descrita por Deleuze e Guattari. (MONTEIRO, 2003, pg.1).

No segundo artigo a autora aplica sua perspectiva à Ciência da Informação pela “materialidade” que a virtualidade entendida em Rizoma com os documentos dispersos pelo ciberespaço. Neste sentido, a autora utiliza como “ponte” entre virtualidade do ciberespaço e a representação materializada os princípios do Cognitivista. Portanto, é possível constatar que o conceito é estruturado diferentemente por força de imbricação de discursos distintos na sua base. Tal fato reforça o princípio de ecletismo como patologia metodológica de Oliveira Filho (1995). O mapa cognitivo da Figura 1 e Figura 2 mostra a formação do conceito Rizoma em ambos os artigos.

FIGURA 1: Mapa conceitual do conceito Rizoma do artigo “As Redes Cognitivas na Ciência da Informação Brasileira: Um Estudo nos Artigos Científicos Publicados nos Periódicos da Área”

Page 160: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 160

FIGURA 2: Mapa conceitual do conceito Rizoma no artigo do artigo “A Organização Virtual do Conhecimento no Ciberespaço”

6.2 Análise do conceito Redes NeuraisAnalisando a utilização do conceito “Redes Neurais” nos artigos “O poder cognitivo das

redes neurais artificiais modelo ART1 na recuperação da informação” (Capuano, 2009) e “Redes Neurais Artificiais e sua Aplicação em Sistemas de Recuperação da Informação” (Ferneda, 2006), é possível constatar que ele é estruturado diferentemente em ambos os artigos. O primeiro artigo procura estruturar a concepção de Rede Neural acoplando a ele os princípios da Biologia do Conhecer de Maturana e Varella (1998), como também agrega os fundamentos do conexionismo associando as camadas de neurônios aos termos de busca, indexação e documentos, recorrendo fundamentalmente aos princípios da Biologia do Conhecer em forma de conotação autonímica, conforme citado:

Page 161: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 161

Tendo como principal característica sua similaridade com os processos de aprendizado humano. Esse paradigma se contrapõe ao tradicional, baseado na lógica de primeira ordem e na heurística, porque busca na própria natureza os processos de aprendizado, entendendo que os seres vivos sobrevivem porque aprendem a se adaptar continuamente ao ambiente mutante. (CAPUANO, 2009, pg.17).

Isto caracteriza fortemente a noção de interdiscurso estabelecido por Maingueneau (2008), pois há uma imbricação de discursos distintos que se estabelecem em forma de aliança pelo simulacro que criam entre si. No primeiro artigo, que tem como objetivo a simulação computacional de um Sistema de Recuperação da Informação composto por uma base de índices textuais, o autor estrutura sua teoria pelo paradigma de Rede Neural, que tem similaridade com os processos de aprendizagem humana, adaptando-se ao ambiente, recorrendo aos princípios próximos ao de acoplamento e poder cognitivo de Maturana e Varella (1998), considerando um aspecto dinâmico das Redes Neurais. Para reconhecimento automático de padrões, o autor utiliza o conceito de Neurônio, como sendo um ponto de entrada da Rede Neural, adaptando esse termo para o conceito de Redes Cognitivas. Portanto, quando o autor propõe o conceito de “Redes Cognitivas” recorre, fundamentalmente aos princípios da Biologia do Conhecer em forma de conotação autonímica. No segundo artigo utiliza o termo Rede Neural para estruturar a sua metodologia de pesquisa, o autor retoma igualmente aos princípios da Ciência da Computação, Ciência da Informação e Ciências Cognitivas, caracterizando o interdiscurso, conforme mostrado abaixo:

A habilidade de um ser humano em realizar funções complexas e principalmente a sua capacidade de aprender advém do processamento paralelo e distribuído da rede de neurônios do cérebro. [...] De uma forma simplificada, uma rede neural artificial pode ser vista como um grafo onde os nós são os neurônios e as ligações fazem a função das sinapses. (FERNEDA, 2006. Pg 2).

A estruturação conceitual é próxima ao do artigo analisado anteriormente, porém, o autor deste artigo agrega um sentido mais forte do conexionismo adaptativo quando articula aos termos como “nó” e “conexão” o sentido de “ativação”, diferentemente do primeiro artigo. O autor associa o termo à representação e relevância da informação à busca de um Sistema de Recuperação da Informação através da sua capacidade de “adaptar” aos seus parâmetros específicos. O mapa cognitivo da Figura 3 e Figura 4 mostra a migração do conceito Rede Neural em ambos os artigos.

Page 162: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 162

FIGURA 3: Mapa conceitual do conceito Rede Neural do artigo “O poder cognitivo das redes neurais artificiais modelo ART1 na recuperação da informação“

Page 163: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 163

FIGURA 4: Mapa conceitual do conceito Rede Neural do artigo “Redes Neurais Artificiais e sua Aplicação em Sistemas de Recuperação da Informação“

6.4 Análise do conceito Processo CognitivoAnalisando a utilização do termo Processo Cognitivo nos artigos “Human Perception and

Knowledge Organization: Visual Imagery” (Barat, 2007) e “Towards metacognitively aware IR systems: an initial user study” (Gorrell et al, 2008), é possível constatar que ele é estruturado diferentemente em ambos os artigos. Tal fato corrobora com o princípio de interdiscurso estabelecido por Maingueneau (2008), pois as suas formações advêm de discursos diferentes e modos diferentes de utilização do termo.

No primeiro artigo, o autor estrutura o conceito “processo cognitivo” como um evento baseado nos princípios da psicologia clássica dos processos lingüísticos, visual. Mas, agrega a este conceito os princípios da Biologia do conhecer de Maturana (1998) referindo-se à assimilação da linguagem. O autor do artigo estrutura toda a sua metodologia em torno do conceito Processo Cognitivo. Para tal se faz recorrência a três áreas do conhecimento no sentido de “formar” o conceito advindo diretamente das CC, caracterizando, portanto, como uma formação interdiscursiva. Das CC, o autor recorre aos termos Processos Cognitivos definindo a relação entre o tópico da pesquisa e o tópico da informação avaliada acoplando o termo Processos Lingüísticos, que significa a efetividade da similaridade lógica das características inferidas como relevantes no desenvolvimento do Sistema, conforme citado:

Page 164: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 164

Perceptual and linguistic symbols are in theory constituted differently. Perceptually received symbols are input directly. Linguistic symbols are transmitted as encoded, or language-based, inputs. The linguistic model suggests that knowledge organization is itself language-based generally. [�] The visual experience connects with visual symbols primarily; the hearing experience connects with auditory symbols. Other symbols come from different modes. (BARAT, 2007, pg. 2).

Para completar a estruturação do termo Processo Cognitivo, o autor se remete aos princípios da Biologia do Conhecer de Maturana. Portanto, para a formação do conceito, se Fez necessário agregar a ele uma perspectiva tanto do psicologismo clássico das Ciências Cognitivas quando aos fundamentos contemporâneos, conforme descrito abaixo:

One of the most important contributions of Humberto Maturana is his theory of language. For Maturana, language as a phenomenon of life participates in human evolutionary history. Humans (and arguably some other primates) are animals characterized by living simultaneously in two dimensions of experience: first, in the immediate dimension of reacting to external reality – that which happens to us – and second (unique to humans and perhaps some other primates) in the dimension of explanation, which utilizes language. (BARAT, 2007, pg. 3).

No segundo artigo o conceito “processo cognitivo” é considerado como um processo inferencial de natureza inconsciente, sendo então considerado uma estratégia cognitiva de leitura. Os autores, quando determinam o “processo cognitivo” em um Sistema de Recuperação da Informação, que o que importa não é diretamente o reforço ao processo, mas sim o que o individuo faz com o estímulo recebido. Portanto, os autores se apóiam na possibilidade de analisar a relação entre os conhecimentos do sujeito e a resolução efetiva da tarefa, e/ou também analisar a relação entre a forma de regular a própria atividade e a resolução dada a ela. Em ambas as situações, os conhecimentos e as atividades metacognitivas se referem à cognição do mesmo sujeito e não a cognição em geral ou a cognição de outras pessoas. Portanto, há uma referência ao psicologismo clássico, conforme citado:

Cognitive factors relating to individual searchers have also been found to be influential in affecting searching, such as level of search experience, domain knowledge and cognitive style. [�]Osman and Hannafin (1992) suggest that metacognition is “awareness of one’s own knowledge and the ability to understand, control, and manipulate individual cognitive processes. (GORRELL et al, 2008, pg.3).

Portanto, os autores estruturam o termo “processo cognitivo” associando a ele os princípios do psicologismo clássico e recorrendo aos fundamentos do conexionismo, caracterizando uma forma de interdiscurso. O mapa cognitivo da Figura 5 e Figura 6 mostra a migração do conceito Processo Cognitivo em ambos os artigos.

Page 165: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 165

FIGURA 5: Mapa conceitual do conceito Processo Cognitivo do artigo “Human Perception and Knowledge Organization: Visual Imagery”

Page 166: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 166

FIGURA 6: Mapa conceitual do conceito Processo Cognitivo do artigo “Towards metacognitively aware IR systems: na initial user study”

Page 167: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 167

6.7 Análise do conceito Carga Cognitiva

O conceito “Carga Cognitiva” foi utilizado pelos autores dos artigos “Testing User Interaction with a Prototype Visualization-Based Information Retrieval System” (Koshman, 2005) e “Distribution of Cognitive Load in Web Search” (Gwizdka, 2010). O primeiro artigo estrutura o termo “carga cognitiva” fundamentalmente na perspectiva da psicologia Gestalt em forma de aliança com os fundamentos da ciência da informação quando se refere aos conceitos de retenção da informação e nível de satisfação do usuário no processo de busca. Esta perspectiva coloca o termo sob uma determinada ótica, já que o autor recorre aos fundamentos da psicologia Gestalt associando aos conceitos de proximidade, terminalidade e continuidade conforme citado:

Although the Gestalt laws for visual processing are well suited for understanding better the user’s overall perceptual pattern building when using VIBE and other visualization based, IR interface displays, these principles do not help with the deciphering and decoding of the interface’s icons or symbols. (KOSHMAN, 2005, pg. 1).

Portanto, é possível determinar a interdiscursividade em forma de aliança na formação do conceito neste artigo pela imbricação de termos oriundos da ciência da informação e da teoria de gestáltica. No primeiro artigo os autores consideram que a carga cognitiva e formada índices textuais sintagmáticos distribuídos em rede. Portanto, os autores estruturam o conceito por uma visão predominantemente conexionista, utilizando os termos “proximidade” e “terminalidade” e “continuidade”. Porém, como forma de estruturação do conceito, os autores acoplam os fundamentos da psicologia Gestalt e da Biologia do Conhecer, demonstrando a similaridade com os processos de aprendizagem humanos, adaptando ao ambiente No segundo artigo, autor, recorre aos princípios do psicologismo para tratar a carga mental. São articulados os termos informação visual e memória de longo prazo ao termo de carga cognitiva através do processo de aquisição onde são considerados os aspectos icônicos da informação disponível. Para acoplar à estrutura de informação visual, o autor considera a memória de longo prazo como as informações que são disponíveis de maneira permanente na busca da informação. Neste caso, o conceito de carga cognitiva se baseia não somente na perspectiva do psicologismo, mas também com referência aos fundamentos do conexionismo e da Ciência da Informação. O princípio utilizado pelo autor para tratar a carga cognitiva recorre, fundamentalmente aos fundamentos da Ciência da Informação baseando-se em Belkin quando ele insere os termos processo cognitivo e busca da Informação de Belkin, que considera a relação da criação de estratégias desenvolvidas pelo usuário no processo de busca da informação com um Sistema de Recuperação da Informação conforme citado:

Here, workload is understood as the relation between the demand for mental resources imposed by a task and the person’s ability to supply those resources. [�] The concept of cognitive load is closely related to the notion of limited mental resources. (GWIZDKA, 2010, pg. 2).

Page 168: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 168

Portanto, o segundo artigo articula o termo “carga cognitiva” apropriando-se do conexionismo e não da teoria gestáltica conforme o primeiro. A interdiscursividade aparece no segundo artigo pelo acoplamento ao conceito “carga cognitiva” oriundos de termos como estrutura e recurso mental do conexionismo, agregando conceitos da ciência da informação – busca da informação – e do psicologismo. O mapa cognitivo da Figura 7 e Figura 8 mostra a relação interdiscursiva na migração do conceito Carga Cognitiva em ambos os artigos.

7 CONCLUSÕES

Foi possível constatar que, quando os pesquisadores da Ciência da Informação investigam Sistemas de Informação e “migram” conceitos oriundos das Ciências Cognitivas, o fazem recorrendo a diversas áreas do conhecimento para alicerçarem suas construções teóricas, alterando consideravelmente o sentido do conceito ou termo migrado entre uma pesquisa e outra dentro do mesmo “campo” de produção, configurando-se, portanto, como uma “patologia metodológica”, conforme foi descrito por Oliveira Filho (1995), Ou seja, as pesquisas científicas publicadas em periódicos da área da Ciência da Informação, que tratam do assunto de Sistemas de Recuperação da Informação e Cognição, contêm transformações conceituais consideráveis. A Análise do Discurso, calcada nos trabalhos de Maingueneau (2008) se mostrou como um aparato metodológico capaz de elucidar a estruturação dos conceitos e termos migrados em pesquisas de Sistemas de Informação e Cognição. Foi possível constatar que neste “discurso” de que se apropria o pesquisador no momento da “migração conceitual”, a transformação obedece ao princípio de “simulacro”. Portanto, os pesquisadores da área de Sistema de Informação, ao se “apropriarem” de conceitos oriundos das Ciências Cognitivas, o fazem por diversos “vieses” paradigmáticos, alterando consideravelmente a estruturação teórica da pesquisa. Essa “alteração” pode ser compreendida pela “competência discursiva” assumida pelo autor e pela “interincompreensão regrada”, criada ao recorrerem aos fundamentos das principais linhas das Ciências Cognitivas: o cognitivismo, conexionismo e Biologia do Conhecer, no caso desses artigos, assumindo uma posição de “aliança”. Ou seja, os pesquisadores apropriam-se de ternos “aglutinando” fundamentos do Cognitivismo Clássico e de vertentes mais contemporâneas, em forma de aliança e não em forma de confronto, confirmando a hipótese geral da pesquisa de que, quando os pesquisadores da Ciência da Informação investigam sobre Sistema de Recuperação da Informação e migram conceitos das Ciências Cognitivas, o fazem regidos por diversas condições ideológicas existentes em um espaço discursivo advindo de diversas áreas.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Portugal: Edições 70, 1977.DE MEY, Marc. The Cognitive Paradigm. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997

Page 169: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 169

DIAS, Fernando Skackauskas. Avaliação de Sistemas de Informação: Revisão de Publicações Científicas no Período de 1985-2005. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, 2006.________________________. Análise das relações interdisciplinares das pesquisas científicas em sistemas de informação. Revista Perspectivas em Ciência da Informação, v. 13 n. 1. 2007. DIAS, Fernando Skackauskas; NASSIF, Monica Erichsen Investigations on the boundaries of information retrieval systems and cognitive sciences. In: IST GRADUATE SYMPOSIUM, Anais� Penn State University United States, 2008EL-HANI, Charbel & QUEIROZ, João. Estruturalismo Hierárquico, Semiose e Emergência. In Computação, Cognição, Semiose. QUEIROZ, João; LOULA, Ângelo; GUDWIN, Ricardo. (Org) EDUFBA. Salvador, 2007.FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 2007.INGWERSEN, Peter .Cognitive perspectives of information retrieval interaction: elements of a cognitive IR theory. Journal of Documentation, v. 52, n. 1, pg. 3-50, 1996.LE COADIC, Yves-François. A Ciência da Informação. Brasília: Briquet de Lemos, 1996.LIMA, Gercina Ângela Borém. Interfaces entre a ciência da informação e ciência cognitiva. Ciência da Informação, v. 32, n. 1, 2003MAIMONE, Giovana Deliberali & SILVEIRA, Naira Christofoletti Cognição humana e os Paradigmas da Ciência da Informação Revista Elet. Inf. Cognição, v.6 n.1, pg.55-67, 2007.MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008. MATURANA, H., VARELA, F.(1984). El arbol del conocimiento. 14. ed. Santiago: Editorial Universitaria., 1998.MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Editora Sulina, 2007.OLIVEIRA FILHO, José Jeremias de. Patologia e regras metodológicas. Revista de Estudos Avançado. Pg. 263-268. 1995.

Page 170: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 170

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

ANTES DA GESTÃO DE DOCUMENTOS: PROSPECÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Renato Pinto Venancio

Resumo: O presente texto tem por objetivo apresentar o resultado de uma pesquisa na legislação federal brasileira. Através do levantamento da recorrência das expressões “archivo/arquivo”, nos textos legislativos promulgados entre 1889 e 1990, procura-se identificar os temas tratados pela administração pública federal, no que diz respeito às práticas arquivísticas.

Palavras-chave: Arquivo. Administração. Legislação arquivística

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa procura identificar as práticas arquivísticas da esfera pública, registradas na legislação federal brasileira. Trata-se de um estudo que visa ampliar os levantamentos existentes em relação ao tema.29 A prospecção proposta não se restringe às políticas arquivísticas, procurando também identificar toda e qualquer prática arquivística registrada na documentação legislativa federal. Para tanto, empreendemos um levantamento da incidência dos termos “archivo/arquivo”30 nas leis promulgadas entre 1889 e 1990, período que geralmente é alvo de pouco interesse, tendo em vista que é anterior à Lei de arquivos de 1991 (Lei 8.159), considerada, em relação ao Brasil, como marco legal regulador da gestão arquivística contemporânea.

O conceito que norteia a presente pesquisa é o de que as práticas arquivísticas são um elemento central na constituição da “esfera pública”. Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que tais práticas visem assegurar o acesso à informação e à transparência das ações governamentais. Em situações nas quais esse direito não é assegurado, as práticas arquivistas servem para fortalecer o Estado autoritário, dificultando a constituição de uma “esfera pública” na sociedade.

Para Jurgen Habermas, a “esfera pública” pode ser compreendida como uma instância mediadora entre Estado e Sociedade, tornando-se um elemento chave na organização da opinião

29 Este é o caso da publicação eletrônica do CONARQ, intitulada Este é o caso da publicação eletrônica do CONARQ, intitulada Legislação arquivística brasileira (2011), Disponível em: http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/media/legarquivos_2011_fevereiro.pdf Acesso em: 20 jun 2011.30 Na legislação federal brasileira, a grafia “archivo” foi empregada pela última vez em 1945, no Decreto nº 11.840, Dá novo regulamento ao Corpo de Marinheiros Nacionaes. Parece, porém, ter sido um erro ortográfico, pois a grafia “arquivo” predominou nas leis sancionadas neste período. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1940-1949/decreto-11840-29-dezembro-1945-573650-publicacaooriginal-96951-pe.html Acesso em: 20 jun 2011.

Page 171: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 171

pública. Nesse universo, a informação, associada à tomada de decisão (CAPURRO ; HJORLAND, 2007), desempenha um papel chave:

Como consequência da definição constitucional da esfera pública e das suas funções, a publicidade tornou-se o princípio organizacional dos procedimentos dos próprios órgãos do Estado... O caráter público das deliberações parlamentares garante à opinião pública sua influência; assegura a relação entre representantes e eleitores como partes do mesmo público.

A esfera pública é um sistema de alarme dotado de sensores especializados, porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade. Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja, ela não pode limitar-se a percebê-los e a identificá-los, devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar (HABERMAS, 2003, p. 91).

Portanto, a “esfera pública” torna possível a emergência da política enquanto campo racional, sendo definida como:

.... uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos... A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado para o entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo não com as funções, nem com os conteúdos da comunicação cotidiana.

Nesse sentido, o conceito de “esfera pública” – cuja aplicação tem se estendido aos mais diversos campos (ciência política, sociologia, história, direito, pedagogia etc) – também proporciona importantes contribuições no campo da arquivística, em suas conexões com a história e a ciência da informação (JARDIM, 1999, 1995, 2003; INDOLFO, 2008). Em tais pesquisas têm sido enfatizado os seguintes aspectos:

- o reconhecimento da informação governamental como um recurso fundamental para o Estado e a sociedade civil;

- a informação governamental contempla a sociedade civil com o conhecimento do Estado e da própria sociedade civil – passado e presente;

- a informação assegura transparência ao Estado, facilitando ao governo administrar suas diversas funções sociais;

- o livre fluxo de informação entre Estado e sociedade civil é essencial para uma sociedade democrática ... (JARDIM, 1999, p. 32).

A ausência da “esfera pública”, com certeza, não é um déficit conjuntural, mas um problema estrutural, gerando uma subcidadania e constituindo fator impeditivo à democracia. A seguir veremos

Page 172: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 172

algumas conexões entre essa situação e as práticas arquivísticas registradas na legislativa federal brasileira.

1. LEGISLAÇÃO ARQUIVÍSTICA NO BRASIL

As primeiras referências à legislação arquivística brasileira datam do século XIX. Um número bastante elevado de textos legais registrou as práticas vigentes nas instituições federais. O levantamento da legislação de 1889 a 1990 revela a existência de 2.405 atos legislativos (leis, decretos-leis, resoluções etc), que fazem referência aos termos “archivo/arquivo” - esse banco de dados se encontra disponível no Portal da Câmara de Deputados do Congresso Nacional.

Uma primeira visualização dos dados consiste em sua apresentação em ordem cronológica. O Gráfico 1 tem por objetivo apresentar essa evolução. Cabe destacar que, na amostragem abarcando um século, em apenas um ano não se observa a promulgação de resolução legal a respeito do tema em questão. Uma primeira aproximação em relação à evolução constatada consiste em sublinhar que, nos períodos de rupturas políticas, intensifica-se a produção legislativa referente às práticas arquivísticas.

Gráfico 1 -Legislação nacional: número absoluto de menções aos termos �archivo/arquivo�, 1889-1990

Fonte: http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/pesquisa/avancada Acesso em: 20 jun. 2011.

O período imediatamente posterior à proclamação da República foi uma dessas épocas.

Page 173: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 173

Entre 15 de novembro de 1889 e 31 de dezembro de 1894, por exemplo, 121 novos decretos e leis, mencionando a palavra “archivo” foram aprovados. Outros dois momentos de intensificação dessa produção legislativa ocorreram, respectivamente, nas décadas de 1930 e 1960. Quanto a isso, basta citar que, apenas no ano de 1938, no quadro de implantação do Estado Novo (1937-1945), foram aprovadas 58 textos legais nas quais são registradas menções à palavra “arquivo”. O mesmo pode ser afirmado em relação ao período de implantação da ditadura militar. Em 1966, nada menos que 60 resoluções legais, aprovadas pelo Congresso Nacional, fazem referência ao termo.

Dessa forma, uma primeira interpretação dos dados seria a de associá-los não só aos períodos de ruptura, como também de autoritarismo político. Tal constatação revela uma das dificuldades da constituição da “esfera pública” no Brasil. Em outras palavras, a preocupação do Estado, em relação à organização e implementação de práticas arquivísticas, parece ocorrer principalmente nos períodos antidemocráticos da história brasileira. Nesses períodos, a intensificação da promulgação de leis reflete o aparelhamento autoritário do Estado e não o aumento da transparência da informação pública.

Tabela 1 Legislação nacional: número absoluto de menções aos termos “archivo/arquivo”

Período Número absoluto de ocorrências

1889-1899 2181900-1909 1121910-1919 2431920-1929 1411930-1939 3671940-1949 3771950-1959 2761960-1969 3721970-1979 1691980-1990 116

Fonte: http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/pesquisa/avancada Acesso em: 20 jun. 2011.

No entanto, deve ser evitada a equivalência entre o aumento da preocupação arquivística e autoritarismo político. No Gráfico 1 também podemos observar que, nos períodos não ditatoriais, foi elevada a incidência de aprovação de atos legislativos em relação ao tema. Aliás, o ápice da curva do referido gráfico diz respeito ao ano de 1946, quando então o Congresso Nacional aprovou 75 normas legais relativas às práticas arquivísticas. A Tabela 1 também confirma que períodos de normalidade democrática, como a década de 1950, foram fecundos em termos dessa produção legislativa. Outra sugestão interessante deste levantamento diz respeito à identificação de conjunturas. Dessa forma,

Page 174: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 174

é interessante observar que a Lei de Arquivos (Lei n° 8.159), de 1991, consistiu em uma vigorosa reação da área, frente a um declínio da preocupação com o tema, nas duas décadas que a antecederam.

Conforme é sabido, a esta lei consistiu no esforço da implementação, no Brasil, dos princípios norteadores de Gestão de Documentos. A origem dessa conceituação data da década de 1940, tendo como referência os trabalhos de Philip C. Brooks (1940; 1943). Tal perspectiva se baseou na noção de “ciclo vital” dos documentos administrativos:

O ciclo vital dos documentos administrativos compreende três idades. A primeira é a dos arquivos correntes, nos quais se abrigam os documentos durante seu uso funcional, administrativo, jurídico; sua tramitação legal; sua utilização ligada às razões pelas quais foram criados [...] A segunda fase – a do arquivo intermediário – é aquela em que os papéis já ultrapassaram seu prazo de validade jurídico-administrativo, mas ainda podem ser utilizados pelo produtor. Permanecerão em um arquivo que já centraliza papéis de vários órgãos, porém sem misturá-los ou confundi-los, pelo prazo aproximado de 20 anos [...] Abre-se a terceira idade aos 25 ou 30 anos (segundo a legislação vigente no país, estado ou município), contados a partir da data de produção do documento ou do fim de sua tramitação. A operação denominada recolhimento conduz os papéis a um local de preservação definitiva: os arquivos permanentes (BELLOTTO, 2004, p. 23-24).

A adoção desses procedimentos, primeiramente nos Estados Unidos, representou uma revolução na arquivística. Sua origem está relacionada ao extraordinário aumento da produção documental, registrada na primeira metade do século XIX.31 A Gestão de Documentos abrange, conforme foi mencionado, várias etapas, de acordo com a idade arquivística em questão. Como ferramenta de controle desse processo foram desenvolvidos o Plano de Classificação de Documentos e a Tabela de Temporalidade. O primeiro instrumento é definido como: Esquema de distribuição de documentos em classes, de acordo com métodos de arquivamento específicos, elaborado a partir do estudo das estruturas e funções de uma instituição e da análise do arquivo por ela produzido (DICIONÁRIO, 2005, p. 21 e 132). Ao passo que a segunda ferramenta, preside a passagem da primeira idade (arquivos correntes) para a segunda (arquivos intermediários), tanto quanto presidirá a passagem seguinte, para a terceira idade (BELLOTTO, 2004, p. 117).

A Lei de Arquivos – quando corretamente implementada – estabelece os pré-requisitos para a transparência da informação pública, condição fundamental para a constituição da “esfera pública”. Quais seriam, no entanto, as questões presentes na legislação anterior a sua promulgação? Tendo em vista os limites do presente texto, é obviamente impossível apresentar e discutir, item por item, um século de legislação federal brasileira. Uma alternativa consiste em fazer aproximações frente a esse corpo documental a partir de chave interpretativa baseada nas preocupações da época, que distinguiam

31 Tal fenômeno decorreu da expansão da burocracia, tanto nas organizações públicas quanto nas privadas, assim como resultou do Tal fenômeno decorreu da expansão da burocracia, tanto nas organizações públicas quanto nas privadas, assim como resultou do avanço tecnológico que viabilizou a produção crescente de cópias de documentos. Conforme sublinha Schellenberg: Os primeiros papéis carbonos eram oleosos e não fixavam bastante. Os carbonos permanentes só começaram a aparecer depois de 1905. Essa mudança tecnológica foi acompanhada por diversas outras (por exemplo, a reprodução xerográfica, surgida nos Estados Unidos dos anos 1940), com implicações bem mais profundas (SCHELLENBERG, 1973, p. 65 e 119).

Page 175: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 175

dois tipos de acervos: o indispensável para a administração e aquele que, sendo desnecessário a esta, apenas conserva mero interesse histórico-cultural (SILVA, 1999, p. 101-102) Em outras palavras, a legislação em questão refletiu a divisão baseada na dicotomia entre “arquivos administrativos” e “arquivos históricos”.

Em razão disso, o foco da legislação ora se volta à questão dos arquivos como um elemento de aumento da eficiência administrativa, ora como um repositório dos vestígios documentais da memória nacional. Contudo, esses dois universos arquivísticos raramente estabelecem diálogos. Talvez a melhor forma de compreender essa questão seja através da apresentação de três exemplos, referentes às décadas de maior produção legislativa em relação ao tema.

2. ARQUIVOS ADMINISTRATIVOS E ARQUIVOS HISTÓRICOS

Após o golpe militar que implantou a República no Brasil, um dos primeiros decretos teve por objetivo alterar a designação do Arquivo Nacional. Em 21 de novembro de 1889, portanto, quando o novo regime ainda não havia completado uma semana de existência, Marechal Deodoro da Fonseca sancionou o Decreto n. 10, que continha:

Artigo unico. O estabelecimento designado até ao presente com a denominação de - Archivo Publico do Imperio - terá de ora em deante o nome de - Archivo Publico Nacional.32

Dessa forma, a instituição arquivística federal transitou para um novo período. Por essa época foi dado início a um processo de reforma do regimento do Arquivo Nacional (HEYNEMANN, 2009, p. 210). As mudanças propostas resultaram no Decreto nº 1.580, de 31 de Outubro de 1893, de Reforma o Archivo Publico Nacional. A leitura desse documento releva o quanto o governo republicano, embora bastante recente, se preocupou em perenizar as mudanças políticas em curso. O referido decreto identificou os documentos fundadores da nova ordem política, equiparando-os aos da época de formação da nação independente. Por isso mesmo cabia ao Archivo Público Nacional preservar:

I. Os originaes da Constituição politica do extincto Imperio, de 25 de março de 1824; do respectivo acto addicional, de 12 de agosto de 1834; da Constituição da Republica, de 24 de fevereiro de 1891 e do projecto de Constituição offerecido pelo Governo Provisorio ao Congresso Constituinte; bem assim os documentos relativos á elaboração desses actos.

III. Os originaes de todos os actos legislativos da mesma Assembléa Constituinte, dos do Governo Provisorio da Republica e dos do Congresso Nacional Constituinte.

IV. Os originaes de todas as leis, decretos, resoluções, da Assembléa Geral Legislativa, e hoje do Congresso Nacional.

VI. Cópias authenticas, impressas ou manuscriptas, dos actos legislativos das

32 Decreto nº 10, de 21 de Novembro de 1889. Altera a denominação do Archivo Publico do Imperio. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-10-21-novembro-1889-518583-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 29 jul. 2011.

Page 176: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 176

Assembléas Provinciaes e das Assembléas ou Congressos dos Estados da Republica.

VII. Cópias authenticas dos actos dos governadores provisorios dos Estados e das Juntas governativas, sobre assumptos que depois passaram a ser regulados pelos Congressos Estadoaes.

VIII. Cópias authenticas das Constituições dos Estados, quer vigentes, quer anteriores.33

Os documentos serviriam para a escrita da história, relatando do ponto de vista oficial o surgimento e implantação da República. A versão dos republicanos vencedores, dessa forma, seria perenizada. Paralelamente à preservação dos vestígios documentais da nova ordem política, são implementadas mudanças nas instituições públicas. Em 1894, por exemplo, é aprovado o Decreto 193, que

estabelece as bases para reorganisação da Repartição Geral dos Telegraphos, para corresponder às exigencias do desenvolvimento do serviço telegraphico no paiz e no exterior.

O capítulo XXXVI do decreto tem como título a expressão “Archivo”. Nele podemos ler as atribuições desse serviço e sua estrutura de funcionamento:

Art. 317. O archivo da repartição ficará a cargo de um official archivista, auxiliado por um continuo designado pela directoria.

Art. 318. Ao official archivista compete:

§ 1º Colleccionar por ordem chronologica e providenciar sobre a encadernação das minutas originaes do expediente da directoria, organisando o indice destas, fazer o protocollo geral dos papeis que lhe forem remettidos inventariados pelas diversas divisões da administração.

§ 2º Velar pela boa organisação do archivo para que sejam regularmente catalogados todos os documentos nelle entrados e dispostos de modo a facilitar a sua consulta.

§ 3º Escripturar alphabeticamente nos livros apropriado e de accordo com os assentamentos existentes e com as notas fornecidas pela secretaria, as nomeações, commissões, licenças e penas dos empregados.

Art. 319. Incumbe-lhe ainda extrahir cópia dos actos da directoria e dos do Ministerio relativos ao serviço telegraphico que tenham de ser transcriptos no boletim da Repartição dos Telegraphos de que trata o art. 553 e cuidar da sua publicação por cuja regularidade é responsavel.

Art. 320. O official archivista é responsavel pelo extravio de quaesquer papeis, livros ou documentos que tenham dado entrada no archivo.34

33 Decreto nº 1.580, de 31 de Outubro de 1893, de Reforma o Archivo Publico Nacional. Disponível em http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1580-31-outubro-1893-517576-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 20 jul. 2011.

34 Decreto nº 1.663, de 30 de Janeiro de 1894. Approva o regulamento da Repartição Geral dos Telegraphos. Disponível em: Decreto nº 1.663, de 30 de Janeiro de 1894. Approva o regulamento da Repartição Geral dos Telegraphos. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1663-30-janeiro-1894-540570-publicacaooriginal-40996-pe.html Acesso em: 29 jul. 2011.

Page 177: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 177

Como se vê, pelo menos do ponto de vista normativo, a Repartição Geral dos Telégrafos, em fins do século XIX, deveria adotar procedimentos arquivísticos visando maior eficiência administrativa. Noutro capítulo do referido decreto há determinações detalhadas a respeito de outros serviços arquivísticos, inclusive prevendo prazos de guarda e eliminação de séries documentais.35 É o que lemos nos artigos abaixo:

Art. 246. Os originaes dos telegrammas e os documentos a elles relativos serão conservados nos archivos das sub-contadorias durante seis mezes contados da sua data, com todas as precauções necessarias no que diz respeito ao segredo.

Paragrapho unico. Para os telegrammas internacionaes o prazo de conservação no archivo é de doze mezes.

Art. 247. Terminado esse prazo regulamentar, devem os contadores proceder mensalmente á incineração dos originaes dos telegrammas que tenham entrado no 7º e 13º mezes, segundo forem interiores ou exteriores. Esse acto será assistido por empregado de confiança, de sorte que fique assegurado não haver extravio de qualquer documento.

Paragrapho unico. Igualmente devem as contadores providenciar para que sejam queimados os talões que tenham mais de 18 mezes de archivo.

Os exemplos acima citados estão longe de ser excepcionais. A dicotomia “arquivos administrativos”/“arquivos históricos” é uma constante na legislação brasileira. Essa perspectiva, por exemplo, também é observada quando da implantação do Estado Novo. Nesse período se recorre à idéia de eficiência burocrático-administrativa, numa vertente autoritária, como um contraponto ao domínio oligárquico-coronelístico. Entre 1937 e 1945, 325 textos legislativos federais mencionam o termo “arquivo”. Um exemplo desse esforço ficou cristalizado, em 1938, através da instituição do DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público (SANTOS, 2010, p. 75-80). Essa instituição representou a tentativa de implantar, no Estado brasileiro, uma racionalidade burocrático-administrativa. Seu regulamento previa a criação de uma Divisão de Organização e Coordenação, relativa aos serviços públicos. Essa última, por sua vez, compreendia uma Secção de Serviços Gerais, cuja finalidade era:

I, estudar a organização e funcionamento das repartições e serviços incumbidos das atividades de pessoal, material, orçamento, contabilidade, obras, comunicações, arquivo, documentação, biblioteca, estatística e outras, comuns a todos os orgãos da Administração;

II, elaborar ou rever planos e sugestões que visem ao aperfeiçoamento progressivo da organização e funcionamento dessas repartições; e

III, elaborar ou rever os regimentos de tais orgãos, bem como projetos de legislação que digam respeito à organização e funcionamento dos mesmos.36

35 Cabe sublinhar que questão da autoria dos procedimentos de “Gestão de Documentos” é questionada. Talvez o pioneirismo de Cabe sublinhar que questão da autoria dos procedimentos de “Gestão de Documentos” é questionada. Talvez o pioneirismo de Philip Brooks tenha sido o de registrar e sistematizar práticas que estavam ocorrendo, há tempos, em arquivos locais e regionais. Para um histórico da questão, consultar: (COX, 2000, p. 2-14) 36 Decreto nº 11.101, de 12 de Dezembro de 1942. Aprova o Regimento do Departamento Administrativo do Serviço

Page 178: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 178

Como é possível observar, o DASP reconheceu que arquivo, documentação e biblioteca consistiam em elementos fundamentais da administração pública. Uma pista explorada para se identificar a origem dessa perspectiva é a de vinculá-la à recepção das teorias da Documentação no Brasil, tal como elas vinham sendo desenvolvidas internacionalmente por Paul Otlet (ODDONE, 2010; ORTEGA, 2009, p. 72). Essa interpretação sugere temas de pesquisa interessantes, podendo ser complementada por outras abordagens. Uma delas consiste em recuperar, em uma perspectiva comparativa, o debate arquivístico da época. Quanto a isso é importante mencionar a experiência italiana. Na Itália – cujo modelo de governo fascista, diga-se de passagem, serviu de inspiração aos construtores do Estado Novo37 – a preocupação com os serviços arquivísticos, como fonte de racionalização da administração pública, inspirou-se no modelo tailorista da “administração científica” (FALCONE, 2006, p. 27). No Brasil essa aproximação também parece ter ocorrido, sendo F. W. Taylor citado até mesmo em discursos de Getúlio Vargas (VARGAS, 1938, p. 116 e 146).

Como seria de esperar, o tailorismo consistiu em uma das fontes teóricas do DASP, cabendo, inclusive, levantar a hipótese de que esse filtro de entendimento levou à recepção superficial e, por vezes, equivocada da proposta de Otlet, conforme foi observado em pesquisas da área. (ODDONE, 2010). Vários indícios documentais confirmam a aproximação do DASP em relação ao tailorismo. Num texto publicado pela daspiana Revista do Serviço Público, em 1940, lemos: Atualmente o tailorismo não mais se limitando às questões exclusivamente de fabricação, abrange todos os aspectos de uma indústria, empregando os métodos científicos de investigação para obter a solução de qualquer problema. Em editorial de volume publicado quatro anos mais tarde, o periódico institucional do DASP relaciona essa perspectiva às questões arquivísticas:

... é o papel da documentação administrativa, concebida não como um conjunto de documentos sistematicamente arquivados, mas como um laboratório de fusão, aferição e depuração da experiência esparsa ... [ a documentação administrativa] é ‘meio’ quando serve de instrumento à administração para que esta possa manter continuidade e coerência em seus atos; é ‘fim’ quando satisfaz necessidades coletivas que vivem dentro da órbita de ação do Estado e que a este, na sua preponderante função protetora, incumbe atender.

Portanto, durante o Estado Novo observa-se a ampliação das preocupações arquivísticas, relacionadas a uma perspectiva de serviços de documentação nos órgãos da administração pública. Essa mudança, cabe salientar, ocorreu paralelamente a ação do Arquivo Nacional. Em relação a essa instituição, o Estado Novo reafirma sua dimensão histórica, sublinhando, por exemplo, a necessidade de recolhimento dos arquivos pessoais de heróis nacionais, assim como da publicação desses documentos. Tal postura, inclusive, ficou legalmente registrada em relação a Bejamin Constant38, um

Público. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1940-1949/decreto-11101-12-dezembro-1942-467206-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 29 jul. 2011.37 Em relação a esse segmento, afirma-se: Não obstante... procurar definir o Estado Novo, no Brasil, como algo de específico e de “nacional”, os termos em que o faz são praticamente os mesmos que os usados, por exemplo, por Del Vecchio, na conceituação do Estado fascista, na Itália (MEDEIROS, 1978, p. 43).38 Tratava-se de recolher e publicar a documentação, conforme consta no texto da lei: Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a

Page 179: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 179

dos principais líderes da proclamação da República e – de forma semelhante a Getúlio Vargas - não subordinado aos grupos oligárquicos.

O terceiro momento selecionado em nossa pesquisa diz respeito à década de 1960. A seleção desse período também serve para identificar reformas em períodos não ditatoriais. Conforme pode ser observado no Gráfico 1, na referida década houve intensa promulgação de leis referentes às práticas arquivísticas. Em 1960-1961, dois decretos estruturam um Grupo de Trabalho com a finalidade de estudar os problemas de arquivo no Brasil e sua transferência para Brasília.39 O texto legal aponta para a necessidade de superação da ação desconectada entre “arquivos administrativos” e “arquivos históricos”. Segundo o primeiro decreto que regulou a questão:

Art. 1º Fica criado, diretamente subordinado à Presidência da República, um Grupo de Trabalho com a finalidade de propor as medidas necessárias à seleção e preservação dos documentos que, pelo valor administrativo, histórico ou legal, sejam considerados de relêvo para o País.

Art. 2º O Grupo de Trabalho será constituído dos seguintes membros:

I - Um representante da Presidência da República, que será o seu dirigente;

II - o Diretor do Arquivo Nacional, que será o Secretário Geral do órgão;III - um representante do Departamento Administrativo do Serviço Público;

IV - um representante de cada Ministério.

Tal equipe ficaria encarregada das seguintes tarefas:I - estudar a situação dos arquivos das diferentes repartições públicas componentes do Poder Executivo;

II - elaborar os planos de organização, seleção e microdocumentação dos materias arquivados;

III - determinar quais os arquivos que deverão ser transferidos imediatamente para Brasília;

IV - verificar as necessidades do Arquivo Nacional, quanto a espaço, material e pessoal, a fim de que seja aparelhado para a execução das medidas propostas que vierem a ser aprovadas;

mandar publicar, sob a direção do Arquivo Nacional, os documentos, inéditos ou não, aproveitando nessa publicação os que forem entregues pela família ou pelos amigos, e que se refiram à existência e à ação de Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Lei nº 558, de 28 de Outubro de 1937. Manda publicar, como patrimônio do Estado, documentos inéditos de Benjamin Constant. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-558-28-outubro-1937-555666-publicacaooriginal-75008-pl.html Acesso em: 20 jun. 2011.39 Sou grato à profa. Marta Melgaço pela lembrança da importância desse período histórico. Sou grato à profa. Marta Melgaço pela lembrança da importância desse período histórico.

Page 180: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 180

V - propor a incineração dos documentos que forem considerados sem valor;

VI - elaborar o plano de funcionamento para o projeto do Edifício do Arquivo Nacional em Brasília.40

Em 1960, o Arquivo Nacional também patrocina a vinda, ao Brasil, de T. R. Schellenberg. Esse último produziu um relatório intitulado Problemas arquivísticos do governo brasileiro. Nas palavras do então diretor do Arquivo Nacional:

Sua visita e sua lição autorizada chegaram-nos na hora exata, não só porque tentávamos empreender uma larga reforma da instituição, como porque a transferência para Brasília e o desenvolvimento econômico exigiam cuidadosa atenção pelo problema da avaliação documental e da eficiência e boa organização dos arquivos, instrumentos indispensáveis da boa e eficiente organização administrativa (RODRIGUES, 1973, p. 16-17).

Como resultado dessa experiência, em 1962, é elaborado um anteprojeto propondo a criação de um Sistema Nacional de Arquivos. No entanto, devido a razões circunstanciais a proposta nem mesmo chega a ser votada. Em 1978, tenta-se novamente a criação desse sistema. De acordo com a nova proposta,

o DASP continuou com a competência de órgão central no que se referia aos arquivos correntes, cabendo ao Arquivo Nacional, como órgão central do Sistema Nacional de Arquivos, os arquivos intermediários e permanentes federais.

Tal fragmentação refletia um quadro que se reproduzia desde o início do período republicano, situação reforçada a partir da criação do DASP: Este fracionamento do ciclo vital dos documentos em dois sistemas inviabilizaria, por princípio, o desenvolvimento de uma política de gestão de documentos no Governo Federal (JARDIM, 1995, p. 88). Finalmente, na década de 1990, uma proposta melhor estruturada abre caminho para a implantação destes procedimentos:

Após três décadas de tentativas de dotar o Brasil de uma lei de arquivos, foi finalmente promulgada, em 8 de janeiro de 1991, a Lei n° 8.159, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, cabendo ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão vinculado ao Arquivo Nacional, definir essa política como órgão central do Sistema Nacional de Arquivos (Sinar), ambos criados por força de seu artigo 26 e regulamentados pelos decretos n°1.173, de 29 de junho de 1994, e n° 1.461, de 25 de abril de 1995 (PAES, 2007, p. 161).

CONCLUSÃOOs exemplos apresentados sugerem a importância das fontes legislativas. Por um lado, a

existência de leis não significa a efetiva implantação de políticas arquivísticas. Por outro lado, sua

40 Decreto nº 48.936, de 14 de Setembro de 1960. Cria um Grupo de Trabalho com a fi nalidade de estudar os problemas de arquivo Decreto nº 48.936, de 14 de Setembro de 1960. Cria um Grupo de Trabalho com a finalidade de estudar os problemas de arquivo no Brasil e sua Transferência para Brasília. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-48936-14-setembro-1960-388357-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 29 jul. 2011.

Page 181: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 181

promulgação indica que parcela importante dos dirigentes públicos se preocupou em projetar reformas; cabendo a realização de estudos de casos para avaliar a implementação, ou não, das mesmas.

Os testemunhos registrados nos textos legais também servem para que se compreenda melhor os processos de acumulação da documentação da administração pública federal. Na ausência - ou implantação tardia - do Sistema Nacional de Arquivos, as leis permitem que se compreenda parte dos procedimentos previstos neste campo. Aliás, conforme observamos, desde fins do século XIX, há referência a legislação regulando processos de eliminação de documentos. Outro aspecto importante consiste em avaliar o impacto do surgimento dos serviços de documentação – funcionando paralelamente aos arquivos administrativos - na fragmentação de fundos documentais.

Enfim, mas não menos importante, a identificação das práticas arquivísticas é um fio condutor para se conhecer as possibilidades de acesso à informação por parte dos cidadãos. Através dessa pesquisa, é possível vislumbrar o lento processo de constituição da “esfera pública” no Brasil.

ABSTRACT: The present text aims to present the results of a research on the Brazilian federal legislation. The recurrence of the expressions “archivo/arquivo” (archive) in texts enacted between the years 1889 and 1990 was collected, enabling the verification of the topics covered by the federal government administration concerning archival practices at the time.

Keywords: archive. administration. archive legislation

REFERÊNCIAS

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2ª Ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004.

BROOKS, Philip C. The Selection of Records for Preservation. American Archivist, v. 5, n. 4, p. 221-234, oct., 1940; Disponível em:

http://archivists.metapress.com/content/u77415458gu22n65/?p=a76ba87dde95415191cd04e6cacec137&pi=10 Acesso em: 29 jul. 2011.

______Current aspects of records administration: the archivist’s concern in records administration. American Archivist, v. 6, n. 3, p. 158-164, jul., 1943. Disponível em:

http://archivists.metapress.com/content/m22613816894k064/?p=9fd7991ec6544ba3af90b358fe59b18c&pi=4 Acesso em: 29 jul. 2011.

CAPURRO, Rafael; HJORLAND, Birger. O conceito de informação. Perspectivas em Ciência da Informação, v.12, n.1, pp. 148-207, 2007, Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pci/v12n1/11.pdf Acesso em 03 jan. 2011.

COX, Richard J. Closing an Era: historical perspectives on modern archives and records Management. Greenwood Press, 2000.

DICIONÁRIO brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

Page 182: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 182

FALCONE, Ugo. Gli archive e l´archivistica nell´Italia fascista: storia, teoria e legislazione. Udine: Forum, 2006.

HABERMAS, Jurgen Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

__________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HEYNEMANN, Claudia Beatriz. Arquivo Nacional: 170 anos. Acervo, v. 22, n.1, p. 210-215, 2009.

INDOLFO, Ana Celeste. As transformações no cenário arquivístico federal. Revista Arquivo & Administração, v. 7, n.1, p. 49-70, jan/jun, 2008.

JARDIM, José Maria. A face oculta do Leviatã: gestão da informação e transparência administrativa. Revista do Serviço Público. Brasília, v. 119, n.1, p. 137-152, jan./abr. 1995.

________. Sistemas e políticas públicas de arquivos no Brasil. Niterói: EDUFF, 1995.

________.Transparência e Opacidade do Estado no Brasil: usos e desusos da informação governamental. Niterói: EDUFF, 1999.

________. O inferno das boas intenções: legislação e políticas arquivísticas. In: MATTAR, Eliana (org.). Acesso à informação e política de arquivos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, p.37-45, 2003.

MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil, 1930-1945. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1978.

ODDONE, Nanci. A Documentação no Brasil e seu impacto durante o Estado Novo. XI Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação – ENANCIB, 25-28 out. 2010. Disponível em: http://congresso.ibict.br/index.php/enancib/xienancib Acesso em: 29 jul. 2011.

ORTEGA, Cristina Dotta. Surgimento e consolidação da Documentação: subsídios para compreensão da histórica da Ciência da Informação no Brasil. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 14, p. 59-79, 2009. Disponível em: http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/viewFile/899/626 Acesso em: 03 jan. 2011.

PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. Rio de Janeiro: 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007.

RODRIGUES, José Honório. Apresentação da primeira edição brasileira. SCHELLENBERG, T. R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1973, p. 15-17.

SANTOS, Paulo Roberto E. Santos. Arquivística no laboratório: história, teoria e métodos de uma disciplina. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2010.

SILVA, Armando Malheiro da et al. Arquivistica: teoria e prática de uma ciência da informação. Porto: Afrontamento, 1999.

VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1938.

Page 183: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 183

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

A PRESENÇA FRANCESA E O DESENVOLVIMENTO DA LEITURA: ORIGENS DA DIFUSÃO E MEDIAÇÃO DE

SABERES NO BRASIL

Katia Carvalho

Resumo: Os estudos sobre informação, tema central da Ciência da Informação e da Biblioteconomia, privilegiam a informação em detrimento da leitura e criam uma lacuna ao minimizar o seu papel. O objetivo deste artigo é o desenvolvimento da leitura, a presença francesa e as raízes da difusão e mediação de saberes no Brasil, aprofundando questões basilares da área. Justifica-se o trabalho por ser a leitura inerente à informação e ao ampliar as fronteiras da Ciência da Informação e da Biblioteconomia, contribui-se para a apropriação da informação e para a pré-história da Ciência da Informação, privilegiando uma abordagem histórica e epistemológica. A proposta é exploratória e abre caminhos que levam ao fortalecimento da área.

Palavras-chave: Leitura e cultura. Mediação e leitura. Difusão da informação; Leitura- influência francesa.

Abstract: The French presence and the development of reading in the roots and mediate the diffusion of knowledge in Brazil. The proposal aims to explore issues of reading, of great relevance to library and information science. Justified the proposal to be reading the information inherent in the process of mediation and to extend the frontiers of information science aims to develop research and contribute to the ownership of information, since the reading is intrinsic to information. It is intended to contribute to the pre-history of information science with historical and epistemological approach. The proposed exploratory opens new avenues to strengthen the area. Studies on information as a central theme of information science, librarianship by then, focuses on information as a central theme of the area, instead of reading. By minimizing the role of reading that is inherent to information creates a gap in the study area and consequently influences the mediation.

Keywords: Reading and culture. Mediation and reading. Dissemination of information. Reading-French influence.

1 INTRODUCÃO

Pretende-se com este projeto investigar a informação visando contribuir para a história da ciência da informação e desta maneira para a história dos saberes. A intenção é buscar fundamentos

Page 184: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 184

que possam apoiar e ampliar o quadro de referências da área, para estabelecer novas fronteiras sendo a sociedade brasileira, do século XIX, o ambiente da pesquisa.

Recuando no tempo, pretende-se realizar recortes históricos e epistemológicos do tema. Desta maneira, apresentou-se o projeto de pesquisa para ser desenvolvido no estágio pós-doutoral realizado na Universidade Paul Sabatier, no Laboratoire d’Etudes et de Recherches Apliquées en Sciences Sociales (LERASS). O projeto intitula-se: Desenvolvimento da leitura e influência das elites cultas: pesquisa sobre a presença francesa nas origens da difusão e mediação de saberes no Brasil, orientado pela Profª. Drª. Viviane Couzinet.

Convém esclarecer que a pesquisa trata de questões relativas à vida cultural quando a Corte Portuguesa deixa a Europa conturbada pelas perseguições de Napoleão e se transfere para o Brasil. Trata-se de um período de mudanças importantes no plano político, cultural econômico e social de grande relevância para a história brasileira. Essa decisão acarretou contribuições positivas e estratégicas para a condução da política, como a abertura dos portos a todas as nações amigas, a liberdade de comércio e a entrada de embarcações estrangeiras no país, simbolizando o início da vida cultural a implantação da Biblioteca Nacional e a criação da Gazeta do Rio de Janeiro.

Para penetrar nesse passado de maneira a compreender a formação do pensamento social brasileiro escolheu-se como locus da pesquisa, Salvador, cidade de importância cultural para investigar o papel da informação no país. Assim sendo, para Couzinet (2000) é necessário entender o que representa informação no processo de mediação, difusão e apropriação social do conhecimento. Nesse espaço urbano práticas culturais se desenvolvem confirmando a presença de instituições e arquivos, destacando-se a criação da primeira biblioteca pública brasileira, fundada a partir do apelo da população, mediante pedido enviado à sua Alteza Real, D. João VI, por intermédio do Presidente da Província, o Conde dos Arcos. Ainda em Salvador ocorre a primeira publicação periódica editada pela iniciativa privada, intitulada A idade D’Ouro do Brasil com circulação no país entre 1811 a 1821, impressa pelo português Manuel Antonio da Silva Serva.

Nesse período, cria-se em 1808 o primeiro estabelecimento de ensino superior no país, a Escola Médico-Cirúrgica da Bahia, como também as Aulas Médicas isoladas, no Rio de Janeiro (VIANNA, l972). Enquanto no exterior a Universidade de Coimbra formava os filhos das famílias abastadas, os alunos das classes menos favorecidas enfrentavam maiores dificuldades no próprio país. Um interessante estudo da historiadora Kátia Mattoso (1992) oferece importante contribuição para a história econômica e social da Bahia, destacando a organização política baiana e os seus representantes, deputados provinciais, deputados gerais e senadores, todos atuantes, no país e no exterior.

Nesse sentido, um olhar crítico sobre idéias, crenças e práticas institucionais é necessário levando a compreender o espaço urbano e assim, resgatar o papel da informação, ampliando as fronteiras epistemológicas que podem fortalecer as teorias. A intenção é constatar o que é informação, idéias, processos, produção documental e no ambiente da comunicação reconhecer estratégias. Assim,

Page 185: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 185

a abordagem sobre informação, circulação e mediação proporciona uma contribuição valiosa para a ciência da informação.

Portanto, a influência francesa difunde-se nesse âmbito cultural e é reconhecida nos acervos da biblioteca pública e nas bibliotecas privadas. Nesse sentido a produção bibliográfica europeia, ao ser introduzida no Brasil, estabelece uma espécie de processo de mediação entre as duas culturas.

Desta maneira, os leitores tem acesso às correntes do pensamento europeu pelas obras que liam e desta maneira o Iluminismo é introduzido no país mediante a difusão pelos periódicos, bibliotecas, tipografias e editoras e também, pela moda emergente, arte, estética e arquitetura das cidades, sendo Paris a referência maior.

Convém lembrar que em Portugal reinava, na época, uma forte retração econômica com graves conseqüências para o parque tipográfico local, atrofiando a circulação e difusão do conhecimento com prejuízos para o comércio editorial e para a vida cultural do país. Os livros que vinham de Portugal para o Brasil passavam pelo controle da Inquisição ou vinham da Europa nas malas dos estudantes, viajantes e imigrantes (CARVALHO, 1999). Com a vinda da Corte portuguesa para a colônia a vida cultural local ganhou novos contornos. Robert Darnton (1992) afirma ser necessário estimular o aprofundamento de temas de pesquisa que contribuem para a história das mentalidades, história social ou das idéias ou simplesmente história cultural da humanidade.

Deste modo, nasceu este projeto que contempla as raízes da vida cultural brasileira e o desenvolvimento da leitura.

Por isto, busca-se recuperar em vivências passadas a memória brasileira resgatando as raízes culturais fortalecidas pela reprodutibilidade técnica e, como se fossem hipertextos, trazer do passado conhecimentos que no presente, pela produção de sentidos, possam levar a compreender o futuro e pela leitura e escrita entender a passagem da sociedade gutenberguiana para a sociedade eletrônica.

Justifica-se o projeto por investigar o desenvolvimento da leitura que, sob a influência das elites cultas, tornou-se relevante, sendo a leitura desejada pela população. Desta maneira, a presença francesa nas suas raízes conduz à investigação em um ambiente cultural favorável. Deste modo é importante buscar processos de difusão e mediação, métodos e técnicas que ampliem o acesso ao pensamento brasileiro, no século XIX. Busca-se assim um saber resultante de um processo de reflexão e de pesquisa, tendo a leitura como pólo central, para compreender a influência das elites cultas brasileiras no âmbito cultural impregnado de uma acentuada influência francesa.

O desenvolvimento do tema é um desafio e visa à inovação de conceitos procurando pela interlocução ampliar e sedimentar conhecimentos.

Pelo exposto, um estágio pós-doutoral pode oferecer as condições de interlocução necessárias para o desenvolvimento da pesquisa. O Laboratoire d’Études et Recherches Apliquées en Sciences Sociales (LERASS) por ser formado por pesquisadores reconhecidos no meio universitário da França e que desenvolve o campo de estudo em questão, justifica a sua escolha, considerando a relevância do tema e a necessidade de interagir com um centro de pesquisa voltado para a área. Por isto a importância

Page 186: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 186

do estágio pós-doutoral na Universidade Paul Sabatier, Toulouse 3, tendo como interlocutora da proposta a professora doutora Viviane Couzinet, diretora do LERASS onde se desenvolve sob sua liderança estudos sobre Médiations en Information et Communication Scientifique. O LERASS acolheu a nossa proposta, assegurando a interlocução necessária para desenvolver o projeto, e que se enquadra no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI), do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia e se insere na linha de pesquisa Produção, circulação e mediação da informação, e no grupo de pesquisa Disseminação e uso da informação, sob nossa coordenação, contemplando estudos sobre processos de apropriação e uso da informação, mediação e difusão da leitura, e entre outras publicações, destaca-se o livro/coletânea intitulado O ideal de disseminar: novas perspectivas, outras percepções.

A motivação para o tema teve origem em um longo processo de amadurecimento intelectual e evidenciado na produção científica declarada no CV; o interesse pela leitura resulta do reconhecimento da sua importância para a informação. Nesse percurso, destaca-se o livro Travessia das Letras que contempla a vinda do livro para o Brasil, com apoio do CNPq e bolsa de produtividade e estagiários. O aprofundamento do assunto teve continuidade no projeto Leitura e Memória, também apoiado, privilegiando as obras que vinham para o Brasil, pesquisa desenvolvida nas bibliotecas que pertenceram aos senhores de engenho do Recôncavo baiano, onde surgiu a primeira atividade econômica açucareira, com resultados importantes para explicar a entrada do conhecimento científico no Brasil.

O projeto tem o objetivo de pesquisar o desenvolvimento da leitura sendo o primeiro meio de comunicação a permitir o acesso ao conhecimento, entrando no país por via marítima, contribuindo para a construção da memória social brasileira. Nesse contexto, a circulação e mediação da informação levam a compreender a passagem de uma cultura fundamentada na literatura para a cultura apoiada no conhecimento cientifico.

Os objetivos visam pesquisar no Brasil, na primeira metade do século XIX, o papel das elites cultas influenciadas pela cultura européia, principalmente pela cultura francesa, se insere na evolução da oferta cultural. Busca-se as origens da difusão da informação e da mediação de saberes para obter resultados, pretende-se: a) identificar a contribuição das elites cultas brasileiras em relação ao desenvolvimento da leitura; b) buscar a influência francesa nas origens, tendo a leitura como elemento central; c) identificar pela mediação e difusão fatos que levem a compreender a passagem da cultura baseada na literatura impressa para a cultura em que predomina a ciência.

A abrangência da pesquisa, circunscrita ao século XIX, constata muitas mudanças, sendo também um período político, econômico e social de grande relevância.

Os procedimentos metodológicos utilizados visam organizar o imaginário da sociedade para perceber a informação materializada pelo registro documental. A abordagem é histórica e social e na ciência da informação procura apoiar questões que se relacionam com a área, ressaltando os aspectos epistemológicos inerentes à leitura e mediação, circulação, informação, conhecimento e

Page 187: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 187

fundamentação teórica com base na integração de áreas afins. Utiliza-se ainda literatura complementar necessária para a compreensão do tema. Os autores que apóiam a argumentação são citados nas referências e alguns deles incorporados nas discussões que integram o texto, segundo as normas vigentes adotadas pela ABNT. Alguns autores são interlocutores, sempre consultados durante a construção do texto para garantir a coerência desejada, reconhecidos nos seus campos de atuação, entre eles, Vakkari, Capurro, Barthes, Chartier, Couzinet, Darnton, entre outros. Ressalta-se questões relativas ao contexto, análise das fontes de informação que se entrecruzam para revelar o pensamento social da época, atores sociais e instituições representativas.

Assim são relevantes: pesquisa documental, pesquisa de campo e redação do texto a partir do projeto. Pesquisa bibliográfica: visando o levantamento seletivo das obras sobre o tema. Pesquisa documental: a) leitura de fontes sobre o tema, análise, levantamento e estudo das fontes de informação a serem analisadas; Pesquisa de campo: a) análise das informações obtidas pesquisadas segundo critérios que levam á construção de um texto crítico sobre o tema, utilizando-se técnicas e métodos utilizados pela ciência da informação; Redação final do texto: privilegiando a análise documentária, entrevistas e análise dos dados visando resultados.

O acesso aos documentos históricos permite recorrer a correntes que influenciaram a leitura, a exemplo das idéias iluministas que difundiam a ascensão do homem com a missão de transformar o mundo, sendo o princípio da doutrina iluminista o processo de humanização da sociedade, por se tratar de um movimento de renovação que abrange todo o saber, valorizando a atividade intelectual e mediante fontes de informação tais como, bibliografias, periódicos e enciclopédias que documentam a produção humana. Nesse período, a ciência, em plena expansão, articula-se com a tecnologia e, no domínio social com os meios de comunicação, tendo o livro como principal meio de comunicação (MORAES, 1979).

Nesse sentido, vislumbra-se o diálogo entre disciplinas, que possibilita reunir áreas afins, como a ciência da informação (organização do conhecimento, história, biblioteconomia, epistemologia). Por isso, Thiesen (2007) reconhece a importância dos estudos históricos de Couzinet e Boure desenvolvidos no LERASS que analisam processos de mediação na formação de redes de pesquisadores e profissionais e efeitos das revistas científicas como meio de disseminação do conhecimento oriundo das pesquisas apropriadas nas práticas profissionais (COUZINET, 2000).

Os primeiros estudos sobre a ciência da informação ressaltam a preferência da pesquisa centrada nos sistemas de desempenho e eficácia, negligencia a presença humana e o contexto. Nos anos 50 e 60 estudos enfatizam a necessidade de uso da informação e a aproximação da ciência da informação com as ciências sociais, utilizando uma abordagem mais qualitativa, trazendo o usuário para o centro de interesse, fortalecendo a identidade da área sob influencia positivista e funcionalista provenientes das ciências exatas; assim, na década de 80 e 90, emerge a relação dissociada do conflito, sendo o usuário um elemento passivo, prevalecendo a necessidade de abordar as relações de poder, sob um olhar mais qualitativo em relação ao uso da informação. Desta maneira, o fortalecimento da

Page 188: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 188

produção social coletiva, resultante de uma cultura compartilhada, com o sujeito na centralidade do problema e passa a valorizar os processos de informação em diferentes contextos, sendo a mediação direcionada para o usuário em relação ao contexto social e cultural (CABRAL; VAKKARI, 1992).

Convém lembrar que a fundamentação teórica da pesquisa apóia-se também na leitura, difusão e mediação, para aprofundar questões que levam a potencializar o acesso à informação e conhecimento na sociedade. Assim, a ciência da informação estrutura-se e emerge a necessidade de alargar os limites disciplinares da área, mediante segmento epistemológico esquecido pela biblioteconomia e também pela ciência da informação deixando uma lacuna, a partir do momento em que a informação ocupa a centralidade dos estudos e pesquisas da área. Percebe-se na atualidade os prejuízos resultantes que prejudicam o fortalecimento da área no plano teórico, refletindo-se na informação e sua função social. Esse hiato na literatura da área precisa ser minimizado e, por isto, a proposta apresentada visa colaborar para pensar esta vertente.

A literatura desse universo é relevante e, assim, Capurro reconhece que a informação e o conhecimento tratam da criação humana sendo que a informação perpassa a convivência social (CAPURRO, 2003). Por isto, é preciso consolidar as raízes da área e fortalecer estudos teóricos da ciência da informação e da biblioteconomia apoiando a pesquisa de natureza prática. Reconhece-se a necessidade de bases conceituais sólidas e por isto a relevância das interfaces com áreas afins, história, sociologia e suas relações, aspectos teóricos e metodológicos que ampliam o avanço das idéias partilhadas com a ciência da informação. Marteleto acrescenta a relação entre sociedade e conhecimento, inclusive o conhecimento cientifico e o conhecimento produzido social e historicamente (MARTELETO, 1992).

Convém lembrar que a leitura inerente à apropriação da informação que ocorre no processo de mediação, estabelece a relação entre o ser humano e o mundo (ALMEIDA JUNIOR, 2007). Em diferentes planos, reitera-se que a leitura sendo uma relação entre o homem e o texto estabelece diferenças, pelas expressões culturais, pela intimidade da vida privada. Ler é uma forma de sabedoria e assim a leitura pode ser entendida como acesso aos conhecimentos produzidos pelo pensamento humano. Nesse caso, a leitura é uma via de acesso para a aquisição de novos conhecimentos e que pode conduzir à cidadania que é própria da esfera privada e depende do campo social onde se insere e se articulam escola, biblioteca e família.

Para Barthes e Compagnon a leitura também é um método, permitindo a assimilação do texto e o desenvolvimento da inteligência de maneira crítica (BARTHES; COMPAGNON, 1987). Ressalta-se assim, escola e biblioteca com papéis definidos em que a primeira apresenta o livro, que ensina a ler, enquanto a segunda representa o lugar das práticas de leitura, sendo responsável pela difusão e uso do texto (CARVALHO, 1999). Para Iser (1999), o processo de leitura é uma interação dinâmica entre o texto e o leitor e acentua o papel do receptor.

A leitura passa a usufruir espaços de sociabilidade que sugerem outros comportamentos e novas formas alternativas de utilização de tecnologias. Ao compreender a função da leitura é possível

Page 189: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 189

compreender a informação como objeto da ciência da informação e da biblioteconomia e isto ocorre quando se faz uso da leitura, presente nos processos de mediação. Para Almeida Junior (2007) a mediação é o processo que vai comunicar pelo documento e, por este motivo a informação não pode prescindir da leitura, sendo relevante para a ciência da informação. Couzinet (2009), Lamizet (1995) e Régimbeau (2006) contribuem significativamente para explicar a relevância da mediação no âmbito das ciências sociais aplicadas. Para Lamizet (1995) a mediação é um processo: “[...] le processus par lequel s’instaure dans le champ social, une dialectique entre le singulier et le collectif [...]”, isto é, um processo pelo qual se instaura no campo social uma dialética entre o individuo e o coletivo, porém para que isto aconteça é necessário que haja uma articulação entre o que é da esfera individual e o que é do domínio do coletivo, no âmbito da cultura, lugar onde ocorre a mediação sendo ela marcada pela pluralidade e sentido multidirecional (COUZINET, 2000).

A mediação na ciência da informação é vista em três planos por Jeanneret (2008) quando afirma que “elle fournit des outils pour décrire avec une certaine précision le processus d’information-communication”; elle permet de requalifier socialement les dynamiques et regimes de la culture [�].” Couzinet acrescenta aos estudos a expressão “mediations mosaïques”, no contexto da relação entre pesquisa científica e atividade profissional, para exprimir que temáticas e gêneros discursivos se complementam (COUZINET, 2000). A mediação no espaço da ciência da informação consiste em exercer um poder mediador, destacando a cultura coletiva característica de uma identidade. Assim, a ciência da informação direciona-se para analisar os objetos, ou seja, o saber registrado, as formações (as práticas e usos) e as formas de acesso à informação (tratamento, análise automática e tecnologia numérica) (JEANERET, 2008).

Portanto uma realidade empírica pode ser apreendida de diferentes maneiras, transformando-se em outra realidade. Assim sendo, a contextualização oferece as condições de produção dos sentidos sociais. Araujo (2008) defende os estudos culturais, da linguagem e poder, da recepção e do discurso, reconhecendo a necessidade de enfatizar os sujeitos e as relações sociais. Desta maneira, pode-se contribuir para compreender as práticas informacionais que estimulam as formas de socialização da informação e conhecimento.

Faz-se necessário perceber os movimentos sociais produtores de informação e conhecimento, de um novo senso comum em que aspectos sociais e culturais passam a ser relevantes à transmissão da informação, sendo a mediação humana essencial no processo que se institui no ambiente urbano onde pode ocorrer a confluência de saberes.

A propósito, as cidades européias se notabilizaram como centros de informação e produção do conhecimento culto a partir do século XVII, destacando Paris, Londres, tendo, esta última, a função de porto e capital ao mesmo tempo. Nesse ambiente urbano, a biblioteca, primeiro sistema de informação que se tem notícia desde a Antiguidade, reforça a importância da cidade e expressa o desejo humano de registrar e fazer circular a informação e conhecimento. Desta maneira o espaço urbano representa o ambiente adequado para favorecer o desenvolvimento da leitura e a relação com

Page 190: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 190

as elites cultas. Burke (2003) afirma que a distribuição do conhecimento espacial denominado a geografia

do conhecimento pode ser vista em dois níveis: o macro que foca as cidades e são relevantes para as redes de longa distância, interligando-as por serem representativas para a difusão da informação e conhecimento; e o micro, composto de sedes do conhecimento: mosteiros, universidades, hospitais e ainda, laboratórios, galerias de arte, livrarias, escritórios, cafés e bibliotecas porque proporcionam a possibilidade de encontros interpessoais, sendo esses lugares significativos para a história do conhecimento. A difusão de conhecimentos para outras culturas faz com que o documento ultrapasse fronteiras geográficas, favorecendo cidades como espaços públicos que facilitam encontros entre pessoas.

Por este motivo, ressaltam-se aspectos relevantes para explicar as origens do pensamento francês e o desenvolvimento da leitura no país. Em primeiro lugar a importância da Revolução dos Alfaiates, em 1798, movimento social e político que ocorre na Bahia e que abre a discussão sobre as idéias que pulsam na França e que chegam ao Brasil no período que antecede a instalação da Família Real no Rio de Janeiro (MATTOSO, 1969). Constata-se a influência das idéias liberais na comunicação, no final do século XVIII e a bibliotecas pertencentes a Cipriano Barata e Pantoja documentam a presença francesa pelos livros que integram as suas bibliotecas. A pesquisa de campo tem continuidade mediante duas vertentes: a) a primeira biblioteca publica brasileira e seu acervo inicial; b) as bibliotecas privadas pertencentes aos senhores de engenho do Recôncavo baiano.

Deste modo a primeira biblioteca pública em Salvador bem como o primeiro curso de medicina do Brasil são instituições pioneiras, seguidas da implantação de tipografias e instituições culturais, tais como as academias, proporcionando um ambiente adequado para a criação de uma biblioteca de caráter público, instituição central para o apoio e estímulo à leitura e acesso a novos conhecimentos.A biblioteca é assim comentada por Tavares:

Maxiliano, Príncipe de Wied-Neuwide, que visitou Salvador em 1816, quando a governava D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos, observou várias reformas urbanas. Também encontrou motivos de admiração na biblioteca de 7.000 volumes que o Conde dos Arcos fizera organizar e instalar na antiga igreja dos jesuítas, com a colaboração de Francisco Agostinho e Alexandre Gomes Ferrão (TAVARES, 1974, p. 166, grifos do autor).

A criação da Biblioteca Pública evidencia a existência de uma classe culta de baianos. Este

fato destaca o papel social da biblioteca sendo um dos caminhos para investigar uma sociedade preocupada com o acesso à informação e conhecimento. Em virtude da presença majoritária de obras em língua francesa que integram a lista de obras do núcleo inicial do acervo da Biblioteca Pública da Bahia é de se supor que pelo livro o conhecimento chegava ao Brasil (MORAES, 1979).

As bibliotecas privadas que pertenceram aos senhores proprietários de engenhos de cana-de-açúcar, elite representativa na Bahia, tinham o controle do poder político, econômico e social e possuíam propriedades rurais e residências na capital (VERGER, 1999). Conseqüentemente, um público leitor em formação cresceu cada vez mais exigindo livros (MORAES, 1979). Esta vertente

Page 191: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 191

permitiu conhecer as preferências de leitura de natureza privada.As bibliotecas particulares, além do interesse cultural indicavam a importância social

e intelectual dos seus proprietários, senhores de engenho, membros da elite urbana e rural que contribuíram, ao mesmo tempo, para a implantação da primeira biblioteca pública em Salvador (CARVALHO, 2007).

Convém salientar que entre as principais obras que registram a história baiana o livro intitulado Memórias sobre a Bibliotheca Publica da Província da Bahia reproduz uma retrospectiva de fatos marcantes ocorridos na sociedade brasileira e destaca a criação da primeira tipografia responsável pela publicação do periódico A Idade D’Ouro do Brasil e finalmente a inauguração da Biblioteca Pública da Bahia que, ao ser criada em Salvador tem um papel significativo e de caráter social relevante para a história das mentalidades, por sinalizar, literalmente, a entrada do conhecimento científico no país. (ARAGÃO, 1878).

O acesso a novas idéias e o empenho dos membros das elites cultas e dos representantes da população, imbuídos dos mesmos ideais motivam o encaminhamento do pedido de criação de uma biblioteca de caráter pública em Salvador. Nesse cenário, a doação de obras por membros da população reuniu a coleção de cerca de 3.500 livros e que teve a contribuição do acervo do próprio Conde dos Arcos, Presidente da Província e do Padre Agostinho Gomes, entre outros membros integrantes das elites cultas e possuidores de livros.

Assim sendo, o aparecimento de um público leitor influenciou um mercado editorial (tipografias e editoras) que surge com as primeiras casas tipográficas e editoras instaladas na capital do país, no Rio de Janeiro, sob o olhar atento da Inquisição. Na virada do século XVIII, para o século XIX iniciativas de comercialização de livros aparecem com os editores e livreiros franceses. Na Bahia destaca-se a tipografia do editor português Manuel Antonio da Silva Serva e a Associação Tipográfica da Bahia (ATB), formada por tipógrafos radicados em Salvador afirmando uma importante liderança local em relação ao trabalho tipográfico de qualidade que utilizava o livro de Fourier, tipógrafo francês, e também exigia dos tipógrafos o domínio da língua portuguesa para garantir a qualidade das obras editadas (CAIEIRO, 1990). A influência francesa no Brasil permeia os segmentos sociais em diferentes níveis e esta é outra vertente da pesquisa, uma vez que, a censura controlava o comércio emergente. De outra maneira a entrada de livros ocorria clandestinamente, através dos imigrantes, estudantes e viajantes que os traziam entre os seus pertences quando viam para o Brasil.

Os primeiros resultados aqui expressos constam, ainda, do Relatório final da pesquisa intitulado Rapport Final: Développement de la lecture, influence des élites cultivées et présence française: premiers résultats de recherche sur les origines de la diffusion et de la médiation des savoirs au Brésil.

Os estudos históricos e epistemológicos são de grande relevância para o projeto uma vez que ampliam as fronteiras da ciência da informação, da biblioteconomia. Portanto, o projeto pretende contribuir para os estudos sobre leitura, informação e mediação ampliando caminhos que levam ao

Page 192: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 192

fortalecimento da área.Finalmente pretende-se contribuir no plano cultural para a história da leitura no Brasil e a

influência francesa, e, portanto para a história cultural, conseqüentemente das idéias e das mentalidades; b) identificar processos de mediação nas suas origens e que fortaleçam a relevância da leitura no plano cultural. No plano científico: a) consolidação da experiência necessária para a compreensão do uso de técnicas e tecnologias e suas formas mediadoras inerentes à informação; b) identificação da produção cientifica relativa às obras vindas para o Brasil e existentes nas bibliotecas públicas e nas bibliotecas privadas.

A pesquisa continua seguindo rumos imprevisíveis que tem como desafio a constatação de estar diante de uma realidade fecunda de importância para o país. REFERÊNCIAS

ALMEIDA JUNIOR, Osvaldo Francisco de. Leitura, mediação e apropriação da informação. In: SANTOS, Jussara P. (Org.). A leitura como prática pedagógica na formação do profissional da informação. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2007. p. 33-45.

ARAGÃO, Antonio Muniz Sodré de. Memórias sobre a Bibliotheca Pública da Província da Bahia. Salvador: Constitucional, 1878.

ARAUJO, Inesita Soares de. Entre o Centro e a periferia: contextos, mediações e produção de sentidos. In: COLLOQUE MÉDIATIONS ET USAGES DES SAVOIRS ET DE L’INFORMATION FRANCE-BRÉSIL (RESEAU MUSSI), 1., Rio de Janeiro, 2008. p. 151-166.

BARTHES, Roland; COMPAGNON, Antoine. Leitura. In: Enciclopédia Einaudi: oral/escrito, argumentação. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. v. 11. p. 184-206

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

CABRAL, Ana M. R. A ciência da informação, a cultura e a sociedade informacional. In: REIS, Alcenir; CABRAL, Ana M. R. (Org.). Informação, cultura e sociedade. Belo Horizonte: Novatus, 2007. p. 29-48.

CAIEIRO, F. da Gama. Livros e livreiros franceses em Lisboa em fins de setecentos e no primeiro quartel do século XIX. Boletim Bibliográfico da Universidade de Coimbra, n. 35, 1990. p. 139-168.

CAPURRO, R. Epistemologia e Ciência da Informação. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO-ENANCIB. 5., Belo Horizonte, 2003.

CARVALHO. Adriane M. A. O regime de informação e as mediações no uso social do conhecimento no contexto inovativo do Arranjo Produtivo. In: COLLOQUE MÉDIATIONS ET USAGES DES SAVOIRS ET DE L’INFORMATION FRANCE-BRÉSIL (RESEAU MUSSI), 1, Rio de Janeiro, 2008. p. 308-324.

CARVALHO, Katia de. Travessia das letras. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 1989.

______. A ordem dos livros. Brasília: UNB, 1999.

Page 193: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 193

COUZINET, Viviane. Dispositifs infocommunicationnels: contribuitions à une definition. In: ______. (dir.). Dispositifs intercommunicationnels: questions des mediations documentaires. Introduction. Paris: Lavoisier, 2009. p. 19-30.

______. Médiations hibrydes: le documentaliste et le chercheur en Science de l’information. Paris: ADBS, 2000.

DARNTON, Robert. Edição e sedição. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999.

JEANNERET, Yves. La relation entre médiation et usage dans la recherche en information-communication. In: COLLOQUE MÉDIATIONS ET USAGES DES SAVOIRS ET DE L’INFORMATION: UN DIALOGUE FRANCE-BRÉSIL (RESEAU MUSSI), 1., Actes, Rio de Janeiro, 2008, p. 37-59.

KERR PINHEIRO, Martha. Regard panoramique sur les Sciences de l’information au Brésil: médiations hybrides. In: COUZINET, Viviane; MARTELETO, Regina Maria (dirs.). Médiations documentaires: entre réalités et imaginaires, actes de la première Journée scientifique internationale du Réseau MUSSI, 2010. p. 129-138.

LAMIZET, Bernard. Médiation, culture et societé. In : Introduction aux sciences de l’information et de la communication. Paris: Les editions d’organization, 1995.

MARTELETO, Regina Maria. Cultura, educação e campo social: discursos e práticas de educação. Rio de Janeiro: ECO/ UFRJ, 1992.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Presença francesa no movimento democrático baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969.

MORAES, Rubem Borba de. Livros e bibliotecas do Brasil colonial. Rio de Janeiro; São Paulo: LTC; Secretaria do Estado de São Paulo, 1979.

RÉGIMBEAU, Gérard. Le sens inter-médiare: recherches sur les médiations informationnelles des images et de l’art contemporain. Sous la direction de Viviane Couzinet. Université Toulouse-le-Mirail-Toulouse 2, 2006.

TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1974.

THISEN, Icléia. A concepção de informação no contexto político social dos oitocentos no Rio de Janeiro: elementos para a memória institucional e a pré-história da Ciência da Informação. Rio de Janeiro, UNIRIO, 2007 (Projeto de pesquisa).

VAKKARI, P. Library and information science: its contents and scope. London, Taylor Graham, 1992.

VERGER, Pierre. Notícias da Bahia de 1850. 2. ed. Salvador: Corrupio, 1999.

VIANNA, Hélio. História do Brasil. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Melhoramentos, 1972.

Page 194: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 194

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

ENTRE VALORES E VERDADES: ANÁLISE SOBRE A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO NAS CONCEPÇÕES DA

ARQUIVÍSTICA SOBRE DOCUMENTOS

Raquel Luise Pret

Resumo: Análise das características documentais defendidas pela Arquivística, sobretudo pelos estudos elaborados por Hilary Jenkinson (1965) e Luciana Duranti (1994). Abordagem sobre as possíveis relações existentes na construção de valores pela Arquivística, como autenticidade, imparcialidade e naturalidade nos documentos, com os métodos positivistas de investigação de fenômenos sociais. O documento, na concepção de Jenkinson (1965) e Duranti (1994), seria prova de ação, registro de intenções, ações, transações e fatos que foram gerados ou recebidos no curso das atividades pessoais e institucionais. No entanto, os documentos que poderiam ser considerados dessa forma necessitariam possuir cinco características que fariam parte de sua natureza: a imparcialidade, a autenticidade, a naturalidade, o inter-relacionamento e a unicidade. Esses valores, criados pelos agentes sociais que atuam na Arquivística, são artificialmente camuflados e transformados em atributos, partes componentes dos documentos. Tais atributos seriam verificados a partir de observações, estudos e amparados por modelos que permitiriam ser identificados. Postura semelhante ao método positivista proposto por Auguste Comte no século XIX. Essa prática do campo inscreve-se na busca da disciplina em estabelecer a verdade por meio do documento. A verdade por essa abordagem seria algo natural e verificável nos documentos, camuflando as manipulações, juízos de valor, coerções, acordos e exclusões realizados pelos arquivistas nas suas ações de seleção, classificação, avaliação e descarte dos documentos.

Palavras-chave: Documento. Arquivística. Positivismo. Campo Disciplinar

1 INTRODUÇÃOLuciana Duranti, em seu artigo, Registro documentais contemporâneos como provas de

ação (1994), chama a atenção sobre a necessidade de refletir-se sobre a natureza dos documentos considerados arquivísticos na contemporaneidade, sobretudo, em função do grande desenvolvimento social e tecnológico que estamos atravessando desde a Segunda Guerra Mundial.

Nosso estudo parte desta observação para repensarmos a categoria documento no campo da Arquivística e os próprios princípios indicados por Duranti (1994) como partes constituintes da natureza do documento arquivístico.

Luciana Duranti professora do Programa de Estudos Arquivísticos (MAS) da School of Library, Archival and Information Studies, da University of British Columbia, Canadá, atua como membro ativo da Society of American Archivist e coordena o International Research on Permanent Authentic Records in Electronic Systems (InterPARES). Seu nome tornou-se um expoente na área Arquivística por seus estudos sobre preservação dos documentos arquivísticos contemporâneos e, sobretudo, a

Page 195: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 195

respeito da preservação de suas características no meio digital. Duranti (1994) estabelece como princípios de classificação para documentos arquivísticos

critérios metodológicos da Diplomática e os fundamenta com argumentos da doutrina positivista do século XIX, aproximando o conceito de documento arquivístico ao de prova documental. Segundo a autora, o registro documental seria o nosso “remédio para a lembrança” e por esse motivo os arquivistas seriam guardiões incumbidos da “proteção física e moral dos arquivos” (DURANTI, 1994, p. 50). Caberia ao arquivista proteger a autenticidade dos registros documentais sob sua responsabilidade. A autora, influenciada pelos estudos de Hilary Jenkinson (1965) sobre a autenticidade dos documentos, retoma a qualificação atribuída pelo arquivista inglês sobre o registro documental como prova de ação, e amplia seu conceito descrevendo o documento como registro de intenções, ações, transações e fatos que foram gerados ou recebidos no curso das atividades pessoais e institucionais. (DURANTI, 1994, p. 50) Por essa capacidade de registro dos documentos, eles seriam dignos de confiança e, portanto, o arquivista precisaria garantir a inviolabilidade dos mesmos. Os documentos deveriam ser preservados de acordo com procedimentos claramente estabelecidos e consolidados pelo campo da Arquivística. (JENKINSON, 1965, p. 114) (DURANTI, 1994, p. 51).

Nossa proposta de análise parte do entendimento que a concepção de Luciana Duranti (1994) sobre documento mostra grande afinidade com os métodos de investigação dos fenômenos sociais defendidos pela Ciência Positivista de Auguste Comte, defendida pelo mesmo em 1852. Para o positivismo, os fatos fossem eles naturais, fossem eles sociais obedeciam a lógicas inatas, leis universais que poderiam ser identificadas e compreendidas por seus pesquisadores a partir de observações, análises, experimentos, construções de modelos que chegassem à comprovação de suas regularidades, seus funcionamentos, seus regimentos operativos. Caberia ao pesquisador o papel de intérprete de tais leis, de descobridor das leis que regiam o fato abordado. (COMTE, 1988, p. 23) Não haveria espaço para a crítica, o julgamento, as adjetivações, pois o que importava à Ciência Positiva era a compreensão dos fenômenos tal como eles eram, em sua natureza, sem a interferência externa. A verdade dos fatos se revelaria a partir do estudo minucioso de sua formação e regularidade. (COMTE, 1988, p. 23) No entanto, os critérios, as normas e os padrões estipulados tanto por Luciana Duranti (1994) para afirmar o que é um registro documental, quanto por Auguste Comte (1988) para analisar fenômenos sociais estão repletos da subjetividade tão criticada pelos mesmos. As leis sociais, os mecanismos funcionais, as regularidades observadas por Comte em seus estudos são construções artificiais, invenções humanas que servem para interpretar e compreender o mundo. Igualmente, a atribuição de certas características aos documentos que seriam pertinentes à imparcialidade, à autenticidade e à naturalidade é feita a partir de valores, crenças, costumes, poderes, violências, coerções, ações e relações construídas pelo campo da Arquivística. (FOUCAULT, 1996)

No entanto, nem todos os documentos poderiam ser considerados registros de ação. Eles necessitariam possuir cinco características que, segundo Duranti (1994), seriam componentes, fariam

Page 196: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 196

parte de sua natureza: a imparcialidade, a autenticidade, a naturalidade, o inter-relacionamento e a unicidade.

A imparcialidade do documento residiria no fato deste ser produzido para desenvolver uma ação e sob circunstâncias, ou seja, rotinas processuais, que assegurassem uma promessa de fidelidade dos fatos e das ações. (DURANTI, 1994, p. 51).

Já a autenticidade estaria associada à capacidade do documento ter mantido a sua integridade apesar das possíveis manipulações sofridas. Ele precisaria ser produzido, mantido e arquivado de acordo com normas e padrões autorizados. Qualquer alteração fora deste contexto faria o documento perder seu caráter autêntico, pois sofreria distorções que o fariam perder a sua essência (DURANTI, 1994, p. 52).

De acordo com Duranti (1994), os documentos arquivísticos acumulam-se naturalmente, no curso de suas transações, de acordo com as necessidades de agir. A autora os compara com formações geológicas que se formam progressivamente de acordo com a coesão espontânea da natureza. Essa terceira característica diferenciaria os arquivos dos museus e bibliotecas que escolheriam seus acervos, selecionando o que deveria ou não pertencer as suas coleções, uma forma de aquisição artificial (DURANTI, 1994, p. 52).

O inter-relacionamento seria a quarta característica dos registros documentais que consistiria na forma destes estabelecerem relações entre si no desenvolvimento das ações ou das transações que os produziram. “Cada documento está intimamente relacionado com outros tanto dentro quanto fora do grupo no qual está preservado e seu significado depende de suas relações.” (DURANTI, 1994, p. 52) Nesse sentido, um único documento não poderia se constituir em um testemunho suficiente dos fatos e dos atos passados, ele perderia sua capacidade probatória. Os registros documentais seriam conjuntos indivisíveis de relações intelectuais que perderiam seu sentido se fossem analisados separadamente.

A última característica do registro documental apontada por Luciana Duranti (1994) seria a unicidade, ou seja, cada registro documental ocuparia um lugar único na estrutura documental do universo documental ao qual pertenceria. O complexo de relações desencadeado por cada registro é concebido por Duranti (1994) como único. Não pode haver documentos completamente idênticos em uma estrutura, pois essa atitude quebraria uma série de cadeias de relacionamentos (DURANTI, 1994, p. 52).

A nossa análise está focada nas três primeiras características dos registros documentais defendidas por Luciana Duranti (1994) que vêm sendo adotadas por diversos cursos de Arquivologia no Brasil como princípios que classificam documentos como arquivísticos ou não-arquivísticos. Elegemos os três primeiros princípios por entendermos que estes se assemelham sensivelmente com princípios positivistas defendidos por Auguste Comte em sua obra do século XIX, Curso de Filosofia Positiva (1852), na qual defende métodos cientificistas para o estudo de fenômenos sociológicos.

Page 197: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 197

Nossa proposta é refletir sobre a influência positivista comteana na formação dos princípios defendidos por Duranti (1994) de registros documentais como provas de ação. No entanto, para realizarmos uma análise mais ampla do desenvolvimento desses princípios na Arquivística contemporânea precisamos compreender a própria formação do campo arquivístico.

2 O DOCUMENTO E O CAMPO ARQUIVÍSTICO

Ao longo da história, a conceituação de arquivo mudou em conformidade com as mudanças políticas e culturais em que as sociedades ocidentais viveram. Os arquivos são reflexos da sociedade que os produziram e o modo de interpretá-los também acompanha as mudanças que ocorreram ao longo dos séculos. (SCHELLENBERG, 1973)Os arquivos procuraram aproximar-se da disciplina Diplomática para desenvolver suas formas de tratar e classificar os documentos sob sua custódia, desde seu surgimento como instituição autônoma ainda no século XVIII. (RABELLO, 2009).

A Diplomática surgiu como método de análise empírica de documentos oficiais ainda no século XIV para atestar a veracidade dos registro de terras, após o Período Feudal. No entanto, a partir do século XVII tornou-se uma disciplina científica, sob a influência dos estudos filosóficos e científicos do Renascimento. A busca de maior rigor nos estudos diplomáticos se deu após a iniciativa dos jesuítas, em 1672, liderados por Jean Bolland, que resolveram publicar a história dos santos em um documento denominado Acta Sanctorun, objetivando descobrir o que era verdadeiro ou falso na vida dos santos. Os beneditinos considerados especialistas na crítica documental e na análise textual, por meio de Jean de Mabillon, responderam à obra dos jesuítas, com a publicação De re diplomatica libri VI, dividida em seis volumes. O método aplicado por Mabillon e os critérios utilizados tornaram-se fundamentos da Diplomática e passaram a ser utilizados para validarem os documentos ou os considerarem falsos. A linguagem, a tinta, o tipo de escrita, selos, pontuação, abreviação, datas, entre outros elementos do documento serviam de parâmetros para conceder a chancela de verdadeiro ou falso. (RABELLO, 2009, p. 105).

No final do século XIX, com base nos estudos elaborados pela École des Chartes, desde 1821, a Diplomática firmou-se como ciência capaz de comprovar a autenticidade ou a falsidade dos documentos. No entanto, não eram todos os documentos submetidos a sua análise. Seu alcance limitava-se aos documentos antigos e medievais de caráter jurídico. Portanto, a Diplomática firmou-se como disciplina que fornecia técnicas e metodologias capazes de “verificar” e “atestar” a verdade dos documentos tão fundamentais para o Direito, para a História e para a Arquivística no século XIX. Ademais, como Schellenberg (1978) e Rabello (2009) mostram, os Arquivos foram criados junto à Administração Estatal e a formação de seu campo disciplinar, até o século XIX, esteve associada e influenciada pelos campos do Direito, da Diplomática e da História. Tanto que a missão dos primeiros arquivos nacionais criados em 1790, os Archives Nationales de Paris, segundo a própria ata da Assembléia Nacional que o funda, seria salvaguardar os documentos relativos às glórias e às conquistas da Nova França.

Page 198: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 198

(SCHELLENBERG, 1973, p. 26) Por mais que os arquivos nacionais guardassem os documentos referentes à Administração Pública, até o final da Segunda Guerra Mundial, a racionalidade de suas classificações não estava voltada para o atendimento prioritário deste campo, e sim para a pesquisa dos historiadores. Ademais, os primeiros a assumirem as funções de arquivistas – seleção, classificação e organização – , que trabalhavam dentro dos arquivos, pensando a própria prática da arquivística, foram os historiadores, que trabalhavam em causa própria, procurando criar sistemas que facilitassem a busca dos documentos históricos a serem pesquisados. Os arquivos nacionais franceses do governo do Diretório do século XIX corroboram essa afirmativa (SCHELLENBERG, 1973).

2.1. NÃO À DISCIPLINA AUXILIAR, SIM À GESTÃO: O RITUAL DE PASSAGEM DA ARQUIVÍSTICA

Segundo Theo Thomassen (2006), a partir da publicação do Manual dos Holandeses (1898), no final do século XIX, a Arquivística passou a desprender-se da tradição diplomática no que se refere a analisar os itens individualmente e passou a aproximar-se da tradição administrativa de considerar o conjunto de documentos pertencente à determinada estrutura ou ação. Essa mudança não somente fundou o princípio arquivístico do respeito aos fundos e o princípio do respeito à proveniência, mas também instituiu o princípio da inter-relação entre os documentos, quarta característica apontada por Duranti (1994) como essencial aos documentos arquivísticos. A partir de então, o importante não era o documento enquanto peça individual, mas todo o conjunto de documentos decorrentes de uma ação, uma instituição, uma estrutura.

A autonomização disciplinar da Arquivística só podemos situar em finais do século XIX. Com efeito, é a publicação, em 1898, do célebre “manual dos arquivistas holandeses” que constitui o marco a partir do qual a Arquivística deixa de se configurar como um auxiliar da ciência histórica para inserir uma progressiva afirmação como disciplina de caráter marcadamente técnico, embora sem deixar de continuar marcada pela matriz historicista. (RIBEIRO, 2002, p. 99)

No entanto, a Arquivística somente mudou a forma de analisar o documento no tocante à quantidade, a análise não se dava apenas dos itens em separado, como anteriormente, mas de uma totalidade de documentos, de todo o processo que produziu o registro e continuou desencadeando outros registros. A Diplomática não foi abandonada como técnica de aferição de verdade dos documentos arquivísticos. Todavia, esse importante rompimento no final do século XIX, levou a Arquivística a aproximar-se mais da Administração Pública e do Direito em detrimento da História. (JARDIM, 1987, p. 54) O importante para os arquivos deixou de ser a informação histórica ou cultural que cada documento apresentava, mas a sua ordenação para melhor atender a rotinas administrativas das instituições a que estavam subordinados e às demandas do judiciário no tratamento das provas documentais em seus processos. (THOMASSEN, 2006) Essa ruptura com o campo da História veio

Page 199: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 199

a consolidar-se no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, quando a Arquivística assumiu uma vertente mais tecnicista em seus estudos sobre documentação. (JARDIM, 1987)

A severa crítica ao conceito de documento produzida pela École des Annales, na primeira metade do século XX, sobretudo na figura do historiador Marc Bloch que em 1949 propôs o abandono do método cientificista do positivismo e colocou em xeque os documentos e as suas verdades, denunciando abusos, omissões, coerções, conciliações, acordos e silenciamentos, promoveu uma profunda transformação no campo da História no que se refere à concepção de documento e ao tratamento dado pelos historiadores.

Segundo March Bloch, em seu livro póstumo Apologia da História ou o ofício do historiador (2001), o historiador deveria analisar não somente o que o documento registrava, mas também o que ele deixava de registrar. Os estudos dos Annales, de grande repercussão no campo historiográfico, mostraram a fragilidade da imparcialidade dos documentos e da autenticidade contida neles, denunciando a intenção de seus produtores e a força política de seus registros. Segundo Bloch (2001), o método defendido pelo historicismo alemão e pelo positivismo comteano era precário, pois ao conceber somente os documentos históricos como registros do passado desconsideravam uma infinidade de outros indícios importantes para a análise histórica como os hábitos, os costumes, a formação, as lutas, as classes, os interesses políticos ocultados e revelados, a economia, os modos de vida, as crenças, e outras variáveis que influenciariam qualquer conjuntura histórica. (BLOCH, 2001, p. 58)

Essa concepção de documento se consolidou na historiografia ao longo do século XX, sobretudo, depois dos artigos de Jacques Le Goff, Memória e Documento/Monumento (1984), da segunda geração da École des Annales, que passou a considerar diversas outras formas como registros documentais a exemplo de narrativas orais, monumentos, rituais religiosos, objetos do cotidiano, entre outros, e não somente os documentos textuais salvaguardados em arquivos. Essa postura da História provocou um distanciamento da Arquivística que continuou a preservar a Diplomática como disciplina que legitimava e autorizava suas práticas de seleção e classificação de documentos arquivísticos e procurou no Direito positivista e na Administração Pública bases para a sua consolidação enquanto campo disciplinar.

Esta prática, segundo Van Gennep (1969 apud TURNER, 1974), inscreve-se em um ritual de passagem onde um determinado indivíduo, ou clã, ou instituição, procura desvincular-se das suas relações de afinidade e parentesco a fim de alterar ou extinguir a sua identidade e familiaridade, não existindo assim mais a condição de pertencimento anterior. O antropólogo definiu os rites de passage como “ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado, posição social”. “Para indicar o contraste entre ‘estado’ e ‘transição’, emprego ‘estado’, incluindo todos os seus outros termos. É um conceito mais amplo do que ‘status’ ou ‘função’, e refere-se a qualquer tipo de condição estável ou recorrente, culturalmente reconhecida.” (VAN GENNEP apud TURNER, 1974, p 115). Van Gennep (1969) mostrou que todos os ritos de passagem ou de “transição” caracterizam-se por três fases: separação, margem (ou “limen”, significando “limiar” em latim) e agregação. A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo, do grupo, ou de uma instituição, quer de um ponto fixo atrelado à estrutura social, quer de um conjunto de condições

Page 200: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 200

culturais (um “estado”), ou ainda de ambos. Durante o período “limiar” intermédio, as características do sujeito ritual (o “transitante”) são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável mais uma vez, e em virtude disto tem direitos e obrigações perante os outros de tipo claramente definido e “estrutural”, esperando-se que se comporte de acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos, que vinculam os incumbidos de uma posição social, num sistema de tais posições. (TURNER, 1974, p. 116)

Ao procurar romper com a História e a sua concepção de documento no século XX, a Arquivística realizou um ritual de passagem, pois se separou de uma estrutura social e das condições sociais em que se encontrava. Houve a separação no final do século XIX com o aparecimento do “Manual dos Arquivistas Holandeses” (1898). Já a transição, o segundo estágio do ritual de passagem, ocorreu na primeira metade do século XX, onde houve a preocupação com a racionalidade do trabalho arquivístico voltado à Administração, no entanto ainda era forte o trabalho dos arquivistas junto às demandas dos historiadores. Por fim, a partir da Segunda Guerra Mundial, concluiu-se o rito com a reagregação e a reincorporação total da Arquivística a uma nova estrutura, voltada à Administração e à Gestão de Documentos. Enquanto campo disciplinar a Arquivística procurou desvincular-se do status de disciplina auxiliar da história e firmar-se como campo autônomo e de excelência no tratamento da informação arquivística e do documento como registro de ação.

2.2 AUTONOMIA E FORMAÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR

Segundo Nobert Elias (1994), considera-se figuração uma estrutura social em transformação contínua operada pelo tempo, pela ação dos seus sujeitos, pelas coerções, impedimentos, crenças, desastres naturais, relações, tensões, silenciamentos e conciliações, enfim todos os agentes presentes nos seus contextos. Uma maneira diferente de proceder de um desses agentes contribuirá para modificar toda a figuração da estrutura. (ELIAS, 1994, p. 146)

Os sujeitos que procuravam afirmar a Arquivística enquanto campo disciplinar autônomo viram-se levados a desprenderem-se da figuração que oferecia a sua área um papel secundário seja no tratamento dos documentos, seja na análise dos documentos. A partir do século XX, a Arquivística apropriou-se da Diplomática para analisar não somente os documentos históricos custodiados pelos arquivos, mas para o tratamento dos documentos contemporâneos, oriundos da burocracia da Administração Pública. Segundo Rondinelli (2002, p. 45), “[...] trata-se, na verdade, da reinvenção da Diplomática pela Arquivística, com o objetivo de melhor compreender os processos de criação dos documentos da burocracia moderna”.

Esse pensamento ganhou força, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial quando a Arquivística passou a sofrer grandes demandas dos campos da tecnologia e da comunicação por informações precisas, eficientes e organizadas para o desenvolvimento de seus campos que estavam

Page 201: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 201

em plena ascensão e desfrutavam de grandes recursos devido à Guerra Fria. (JARDIM, 1987, p. 58) A partir de então, a Arquivística voltou-se a atender tais demandas, buscando selecionar, classificar, organizar e avaliar os documentos de acordo com as exigências específicas do campo tecnológico. No entanto, não deixou de alicerçar-se na Diplomática e no Direito como disciplinas que autorizavam as suas práticas. A mudança de paradigma na Arquivística a partir da segunda metade do século XX, como observou Theo Thomassen (2006) ocasionou o distanciamento deste campo disciplinar com a História e o aproximou das teorias administrativas, sobretudo da Administração Científica proposta por Frederick Taylor (1911). Os documentos classificados e organizados pelos arquivos deveriam disponibilizar informações autênticas e legítimas que possibilitassem o desenvolvimento pleno das ciências tecnológicas, físicas, nucleares, entre outras que buscavam exatidão e eficiência, como estabelecia a doutrina taylorista (1911).

A Arquivística e seus agentes sociais perceberam que tal demanda figurava-se como oportunidade de ruptura com status de disciplina auxiliar e de mudança para uma estrutura que permitisse maior autonomia e identidade com o seu próprio campo, sendo possível a elaboração de uma espistemologia e uma metodologia próprias. Retomando Van Gennep, a Arquivística, na segunda metade do século XX, teria concluído o seu ritual de passagem, reagregando-se, reincorporando-se a uma nova estrutura social, onde suas relações passaram a ser com grupos distintos: a Administração e a Tecnologia. Igualmente, novas relações foram construídas com a Diplomática e com o Direito, ainda que seus laços com essas duas áreas sejam mais antigos em comparação com a Administração e a Tecnologia, de mais de três séculos. (RABELLO, 2003). Essa nova figuração do campo da Arquivística transformou profundamente a sua identidade, passando a ser reconhecida como uma área de gestão de documentos, voltada a organizar as ações e informações produzidas por instituições, órgãos, estados que possuam administrações científicas.(JARDIM, 1987)

Segundo Pierre Bourdieu (1987), na formação de um campo existe um processo de automização, autonomia que exige um público de consumidores virtuais cada vez mais extenso, socialmente diversificado e capaz de propiciar aos produtores de bens simbólicos não somente as condições mínimas de independência social, econômica, cultural e simbólica, mas também um princípio de legitimação paralela.

No caso da Arquivística, o campo começou a crescer a partir da Segunda Guerra Mundial com a demanda do campo da administração e da tecnologia pela racionalização do tratamento documental, surgindo assim o conceito de Gestão de Documentos. Portanto, havia uma crescente demanda de áreas diversificadas pelo trabalho da Arquivística, consumidores na ótica bourdesiana, e produtores, ou seja, arquivistas, que procuravam criar saberes próprios da área e buscavam na Diplomática, no Direito e na Administração discursos que a autorizavam e a legitimavam enquanto campo disciplinar autônomo.

A preocupação da Arquivística passou a ser a produção de critérios, metodologias e classificações de documentos que atendessem prontamente com o máximo de eficiência e rapidez às demandas das

Page 202: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 202

áreas da tecnologia, ciência e comunicação. Retomando Bourdieu (1987), o crescimento do campo arquivístico com o boom informacional no período da Guerra Fria, tanto de produção de documentos, quanto de demanda por informação, caracteriza o que o antropólogo chamava de constituição do campo simbólico, onde há um corpo de produtores e instituições de bens simbólicos cuja profissionalização faz com que estes passem a se reconhecer exclusivamente. A partir da segunda metade do século XX, consolidam-se na Arquivística imperativos técnicos, normas e metodologias que formam um conjunto de determinações que passam a definir as condições de acesso à profissão e participação no meio. (BOURDIEU, 1987, p. 100)

Ao produzir informações tratadas, classificadas e disponibilizadas aos seus consumidores por meio de seus documentos custodiados, os arquivistas delimitaram seu campo, criando seus imperativos técnicos e suas normas que restringiam o acesso ao seu campo de atuação.

No entanto, alguns autores como Hilary Jenkinson (1965) e Luciana Duranti (1994) ao procurarem legitimar seu campo por meio do Direito e da Diplomática, construíram uma concepção positivista da Arquivística, ainda que algumas correntes teóricas dessas áreas que influenciaram sua constituição tenham criticado e se afastado do positivismo comteano.

3 O POSITIVISMO NA ARQUIVÍSTICA E SUAS INFLUÊNCIAS

O positivismo surgiu na segunda metade do século XIX, com os pressupostos defendidos por Auguste Comte com o objetivo de fundar uma doutrina filosófica, sociológica e política que levaria ao desenvolvimento pleno do espírito humano. Influenciado pelos avanços tecnológicos oriundos da Revolução Industrial e o cientificismo das consideradas ciências naturais, Comte defendia que o único conhecimento possível era o que as ciências permitiam conhecer, pois o único método de conhecimento advinha das ciências naturais. Havia assim a positividade da ciência e a divinização do fato, postura que levava à mentalidade positivista a combater as concepções idealistas e espiritualistas da realidade, concepções que os positivistas rotulavam como metafísicas (GIDDENS, 2005).

O caráter fundamental da filosofia positiva é tornar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam primeiras, sejam finais. (COMTE, 1988, p. 9)

De acordo com Comte, os fenômenos sociais deveriam ser estudados com a mesma metodologia de ciências como a astronomia, a física, a matemática e a fisiologia. Pois os fenômenos sociais também seriam fatos lógicos e somente a partir da observação aprofundada de tais fatos que se poderia atingir o conhecimento de suas leis. Todos os conhecimentos deveriam ser fundados em observações, quer dos

Page 203: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 203

fatos aos princípios, quer dos princípios aos fatos, e quaisquer outros aforismos parecidos. (COMTE, 1988, p. 15)

Todas as vezes que chegamos a exercer uma grande ação, é somente porque o conhecimento das leis naturais nos permite introduzir, entre as circunstâncias determinadas sob a influência das quais se realizam os diversos fenômenos, alguns elementos modificadores que, em que pese a sua própria fraqueza, bastam, em certos casos, para fazer reverter, em nosso proveito, os resultados definitivos do conjunto das causas exteriores. (COMTE, 1988, p. 23)

Comte afirmava que somente a partir do conhecimento aprofundado das leis relativas ao indivíduo seria possível estudar os fenômenos sociais. A física social baseava-se num corpo de observações diretas que lhe era próprio, possuindo uma relação íntima com a fisiologia propriamente dita. (COMTE, 1988, p. 33)

A proposta metodológica de Comte (1988) para as ciências sociais consistia no estudo dos fenômenos sociais a partir da investigação, observação, proposição de teses, modelos, para, enfim, a elaboração de leis sociais. Isto é, uma transposição das técnicas e metodologias utilizadas pelas ciências naturais que haviam se consolidado como campos disciplinares conceituados e legitimados socialmente no século XIX. Comte procurava legitimidade em áreas como a medicina, a astronomia, a matemática e a física para consolidar a sua física social, a sua ciência positiva.

O positivismo comteano, usado como arcabouço teórico nas ciências humanas no século XIX, estabelecia que o conhecimento se explicaria por si mesmo, necessitando apenas o estudioso recuperá-lo e colocá-lo à mostra. A teoria positivista ganhou força num momento em que se acreditava ser a verdade um fim atingível e somente possível por meio dos métodos científicos como a investigação, a observação e comprovação das leis do mundo – princípios naturais que regiam as coisas e que estavam no universo prontos a serem descobertos assim como foram as leis newtoneanas (LÖWY, 2003).

No próprio campo do Direito, que tanto influenciou a Arquivística, havia a corrente positivista que defendia não haver lacunas no direito do homem, as lacunas estariam nas leis ou na falta de compreensão destas. Os juristas seriam intérpretes das leis, deveriam se distanciar de seus juízos e assumir uma postura neutra baseada em provas produzidas pelas partes litigantes num processo. (NEUMAN, 1986, p. 29)

A Teoria Crítica do Direito que surgiu na década de 1930, em seu embate com o positivismo, afirmava que as lacunas não estariam nas leis, mas nas ações “político-jurídicas” dos agentes do campo do Direito. Nesse sentido, a jurisprudência, a sentença e outros atos de poder decisório dos juristas seriam atos soberanos, pois julgariam subjetivamente, utilizando o aparelho coercitivo do Estado para impor suas sentenças transformadas em obrigações de fazer e deixar de fazer aos que se submetessem

Page 204: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 204

às regras e aos critérios criados pelo poder judiciário. Essas decisões seriam atribuições de valores baseadas nos discursos apresentados pelas partes, na subjetividade dessas, mas também na subjetividade, na interpretação das leis e nos valores preservados pelo jurista, responsável por mediar tal questão. (NEUMAN, 1986, p. 32)

Portanto, a doutrina positivista do século XIX criou a necessidade de se utilizar na pesquisa e na análise dos fenômenos sociais o máximo de documentos possíveis com o objetivo de se obter a totalidade sobre os fatos. A busca desses fatos deveria ser feita por mentes neutras, pois qualquer juízo de valor na pesquisa e análise alteraria o sentido e a verdade própria dos fatos, modificando a própria História, ou o próprio julgamento da justiça que deveria ser imparcial. Análises subjetivas e parciais tornariam os saberes falhos, sem caráter científico, destituídos assim de valor e validade. Fustel de Coulanges, historiador do século XIX, influenciado por Comte, chegou a afirmar que: “a História não é arte, mas uma ciência pura (...) a busca dos fatos é feita pela observação minuciosa dos textos, da mesma maneira que o químico encontra os seus em experiências minuciosamente conduzidas” (COULANGES, 2003).

A objetividade, a minuciosidade, o detalhe e a dedicação impessoal, portanto, foram as grandes lições da escola positivista para o estudo de áreas que influenciaram o campo da Arquivística como a História e o Direito no século XIX. Numa sociedade européia que buscava seu próprio desenvolvimento e avançava rumo a grandes descobertas na ciência e na tecnologia, a cientifização que marcou a época também se espalhou para o campo dos estudos humanos, reduzindo o papel do profissional das ciências humanas a um mero coletor de informações (LÖWY, 2003).

Entretanto, tanto a História com a École des Annales e a Nova História, quanto o Direito com a Teoria Crítica do Direito a partir dos anos de 1930 procuraram repensar seus campos, abandonando a doutrina positivista. Já a Arquivística, fez o caminho inverso, ao aproximar-se do campo da Administração e das Ciências Tecnológicas e tecer novas relações com o Direito e com a Diplomática, a partir dos estudos, primeiramente de Hilary Jenkinson, em 1965, e posteriormente de Luciana Duranti, a partir do final da década de 1980, sendo aprofundados pelo grupo InterPARES, em 2001. A concepção arquivística, a partir desses nomes da área, alinhou-se com os pressupostos positivistas de método científico e documento para legitimar o seu campo e as suas práticas.

3.1. O PRIMADO DA ARQUIVÍSTICA: TRATAMENTO DOCUMENTAL POSITIVISTA

A Arquivística no século XX continuou a defender os princípios positivistas como arcabouço teórico para suas práticas mesmo que as áreas que haviam legitimado o seu campo como a História e o Direito já tivessem abandonado tal filosofia.

No período entre as duas guerras mundiais, preocupações de nova ordem caracterizaram a Arquivística, especialmente sobre o ofício do arquivista. Os problemas de avaliação, seleção e eliminação, em consequência do aumento considerável da produção de documentos levou a uma reflexão da própria práxis do campo.

A década de 50 caracterizou-se pelas preocupações de caráter pragmático do campo da

Page 205: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 205

Arquivística, embora a componente teórica não tenha estado ausente por completo. Obras como o manual do alemão Adolf Brenneke (1953), o estudo já referido de Theodore Schellenberg, sob o título Modern archives: principles and techniques (1956), são exemplos da procura de sistematização teórica que envolveu a Arquivística, num período em que a acentuada evolução tecnológica criou e agudizou problemas práticos de vulto, acentuando-se a tendência tecnicista na forma de encarar a disciplina.

A necessidade de se controlar a produção documental fez com que os arquivos deixassem de prioritariamente servir à pesquisa histórica e ao desenvolvimento cultural, e passassem a atuar de forma mais pragmática, procurando atender às demandas de informação com metodologias semelhantes às utilizadas pelas ciências exatas, ou seja, por meio de observações, teses, modelos e leis. A Arquivística ao aproximar-se dos saberes exatos procurou utilizar de seus métodos para obter a sua legitimação entre seus consumidores.

Nas décadas de 1960 e 1970 a Arquivística preocupou-se com o debate de questões de ordem técnica envolvendo a classificação e o armazenamento dos documentos custodiados pelos arquivos como, por exemplo, a problematização dos fundamentos da Arquivística no Canadá, sendo significativo o artigo que Louis Garon publicado no primeiro número da revista Archives (1969) sobre o princípio da proveniência e a problematização de Michel Duchein em 1977, sobre o princípio do respeito aos fundos, na França.

Todavia, a partir dos anos de 1980, a Arquivistica procurou legitimar-se enquanto campo científico com métodos e epistemologia próprios. As revistas Archives e Archivaria produzidas no Canadá tiveram grande influência neste campo, sobretudo os estudos de Luciana Duranti sobre as características dos registros documentais a partir da década de 1980. Influenciados pela teoria de Hilary Jenkinson (1965) sobre documentos, os estudos da autora aproximam-se da Diplomática e do método positivista de Auguste Comte ao estabelecer como características inerentes aos documentos, que deveriam ser observadas e extraídas destes, valores atribuídos por seus produtores, classificadores e arquivistas.

Em seu artigo Registros documentais contemporâneos como provas de ação (1994), Luciana Duranti afirma que a imparcialidade, a autenticidade e a naturalidade seriam atributos verificáveis nos documentos que comprovam ações. Caso não fosse possível a observação destes atributos, o motivo seria por se tratarem de documentos ilegítimos e, portanto, não deveriam ser analisados pela Arquivística.

Esse posicionamento denuncia o caráter positivista dos estudos elaborados por Duranti e por seu grupo InterPARES (2001), uma vez que impõem aos documentos características naturais, inerentes a eles, que são invenções, valores atribuídos pela própria Arquivística ao selecionar, classificar, avaliar e excluir documentos.

Essa prática do campo inscreve-se na busca da disciplina em estabelecer a verdade por meio do documento. A verdade por essa abordagem é algo natural e verificável nos documentos, camuflando

Page 206: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 206

as manipulações, juízos de valor, coerções, acordos e exclusões realizados pelos arquivistas nas suas ações de seleção, classificação, avaliação e descarte dos documentos. (FOUCAULT, 1996)

A verdade que se diz revelada pelos documentos é construída por valores e critérios criados, institucionalizados e legitimados pela Arquivística e forjada como dado disponível e observável nos documentos, pensamento semelhante ao positivismo comteano do século XIX.

De acordo com Michel Foucault (1996), para se encontrar o verdadeiro é necessário obedecer às regras de uma polícia discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos. (FOUCAULT, 1996, p. 35) A disciplina torna-se um princípio de controle da produção do discurso. Ela fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de reatualização permanente de regras. Assim, o documento para ser considerado um registro de ação deverá conter as características defendidas pela Arquivística, seguindo e comprovando seu discurso, caso contrário, não pertencerá ao campo por ela limitado, fará parte de outra esfera, talvez da História, talvez do Direito, mas não da gestão documental arquivística.

Ao imputar aos documentos atributos e funções como se fossem de sua natureza, esses princípios defendidos por Luciana Duranti (1994) mascaram o trabalho dos arquivistas procurando apagar sua responsabilidade e seu poder ao selecionar e atribuir o que deve ser ou não documento que registre uma ação, sua classificação, sua forma de acesso, seu tempo de vida. São ações muito complexas e que denunciam o grande poder exercido pela Arquivística ao operar com memórias, relações reatualizadas e revisitadas, discursos em trânsito e formas de conhecimento disponíveis, não disponíveis ou descartadas, excluídas, não validadas.

Ao afirmar que os registros documentais são imparciais, pois as razões por que eles foram produzidos e as circunstâncias de sua criação (rotinas processuais) não possuem outra finalidade que não seja o registro dos fatos e das ações, a Arquivística, defendida por Hilary Jenkinson (1965) e Luciana Duranti (1994), mostra quais os enunciados são autorizados e os que não são autorizados em seu campo disciplinar. Os documentos permitidos e considerados pelos arquivos são aqueles ligados ao fazer da Administração que sigam padrões e critérios legitimados pelo campo – aqueles relacionados ao campo da Diplomática e do Direito positivo.

Ao definir “imparcialidades” e “autenticidades”, segundo determinados códigos socioculturais, os arquivistas o fazem com propósitos políticos. Essas definições sobre documentos, criadas pelos agentes sociais da Arquivística, têm conseqüências em termos de práticas sociais que delimitam e circunscrevem sujeitos, objetos, relações e ações possíveis e permitidas dentro do campo disciplinar firmado. (BOURDIEU, 1987, p. 102)

Os documentos tornam-se entidades que possuem estatutos próprios independentes de ações humanas. O lugar de fala do arquivista e de ação permanece invisível, sendo “a própria realidade” que se manifestaria nos documentos. (ARAÚJO, 1988). Os fatos e as ações descritos pelos documentos são apresentados como uma “realidade” cuja existência independeria do arquivista, sendo sua tarefa disponibilizar as informações tal como o documento revela.

Há nessa teoria defendida por Hilary Jenkins (1965) e Luciana Duranti (1994), um processo

Page 207: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 207

ilusório, que produz autenticidades, imparcialidades e naturalidades que permitem a Arquivística não somente atestar a verdade, mas chancelar os documentos que podem ser considerados como verdadeiros ou ilegítimos.

Igualmente, o acúmulo natural que afirmam estes autores existir na formação do acervo dos arquivos, não revela a seleção e manipulação feitas pelo arquivista como sujeito classificador. Como afirma Jean Baudrillard (1989), o ato de acumular distingue-se do ato de colecionar. Na acumulação há o caos, o amontoamento, tudo é retido. O acúmulo, de acordo com Baudrillard, é um seqüestro onde tudo que é alvo de interesse. Retira-se de circulação o objeto de desejo, esconde-se para que ninguém tenha acesso, somente o acumulador. É um ato passional de ciúmes onde o acumulador torna-se um neurótico narcisista que opera num sistema de exclusão sobre as coisas acumuladas. (BAUDRILLARD, 1989, p. 106)

A coleção, ao contrário, seleciona e classifica, submetendo as coisas colecionadas a uma hierarquia. Ela visa objetos diferenciados, de valor de comércio, de ritual social, de exibição, de comprovação, ou mesmo fonte de benefícios. Esses objetos colecionáveis são acompanhados de projetos. Sem cessar, remetem-se uns aos outros, incluem nesse jogo uma exterioridade social de relações humanas. (BAUDRILLARD, 1989, p. 111)

Nessa perspectiva, os documentos assumem uma característica de coleção e não de acúmulo, pois, apesar de haver um processo de guarda de grandes massas documentais, há um tratamento colecionista a estes registros. Certamente, as formas de seleção e coleção são completamente distintas das áreas da Biblioteconomia e Museologia – de que são sempre comparados – no entanto, a organização complexa de tais documentos, o ordenamento em séries, a singularidade absoluta de cada registro documental no acervo e as complexas relações construídas entre eles são elementos que constituem o caráter colecionista dos arquivos.

4 CONCLUSÕES

Destarte, o que procuramos realizar nesse trabalho foi um exercício de reflexão sobre as possíveis relações da Arquivística com a Doutrina Positivista de Auguste Comte (1988) a partir dos conceitos sobre registro documental elaborados por Luciana Duranti (1994). Nossa proposta, a partir dos estudos baseados em Bourdieu (1987) e Foucault (1996; 1998; 2001), foi perceber como essas relações configuraram-se a partir da constituição do campo Arquivístico e as suas implicações na práxis dos arquivistas.

Um possível desdobramento de pesquisa deste trabalho seria aprofundar o estudo da busca pela legitimidade da Arquivística, enquanto disciplina, a partir do rito de passagem de Van Gennep (1969), com o distanciamento da História e a aproximação das Ciências Tecnológicas. Procurar perceber como esse ritual de passagem pode ter influenciado a escolha dos agentes que procuraram refletir sobre seu campo a partir da década de 1980, isto é sobre a Arquivística, na escolha pelo método positivista de análise documental.

Page 208: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 208

Outra questão suscitada por este estudo foi procurar pensar uma proposta conceitual para a abordagem dos documentos no campo da Arquivística que não esteja tão alinhada com o pensamento positivista. Seguindo os apontamentos feitos por Michel Foucault, em seu livro Arqueologia do Saber (1998), procuraremos em uma pesquisa futura conceber o documento como enunciado, ou seja, aquilo que faz com que existam conjuntos de signos e permite com que regras e formas de construção desses conjuntos de signos se atualizem. “Mas se os faz existirem, é de um modo singular que não poderia se confundir com outros conjuntos de signos alheios às suas relações.” (FOUCAULT, 1998, p. 69)

Todavia, esta análise será retomada em um momento posterior, pois foge a nossa proposta inicial, apenas registrada aqui para servir de orientação, sugestão, que iremos, em outro momento, seguir.

Portanto, este trabalho trata-se de um breve exercício, um sobrevôo em teorias complexas com a intenção de que sirva de ponto de partida para desdobramentos futuros mais aprofundados.

ABSTRACTAnalysys about the characteristics of documents approached by the Archivist. According to Hilary Jenkinson (1965) and Luciana Duranti (1994), impartiality, authenticity, naturalness, oneness and interrelatedness are natural features present the documentary record. Should the archivist investigate, observe and verify the existence of such attributes. If they are not identified in the documents is because there is no archival documents. The values and criteria for assessment of the documents established by the archivists are artificially camouflaged and transformed into transformed into features of the documents. Method similar to the positivism of Auguste Comte in the nineteenth century that sought to analyze social phenomena as universal laws that are present in the world. This Archival pratice shows the search for establishing the discipline that would be possible from the verification of the truth contained in the documents. The truth, by this approach, it would be something natural and verifiable documents, in this way, hiding the manipulations, value judgments, constraints, exclusions and agreements made by archivists in their stock selection, classification, evaluation and disposition of documents.

Keywords: Document. Archival. Positivism. Disciplinar Area

REFERÊNCIAS:ARAÚJO, Ricardo B. Ronda Noturna, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 28-54.

BAUDRILLARD, Jean. Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1989.BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BRENNEKE, Adolf. Archivkunde: ein Beitrag zur Theorie Geschichte des europäischen Archivwessens. Leipzig: Wolfgang Leesch, 1953.

Page 209: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 209

COMTE, Auguste (1798-1857). Curso de filosofia positiva. Trad. José Augusto Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Mantin Claret, 2003.

DUCHEIN, Michel. O Respeito aos Fundos em Arquivística: princípios teóricos e problemas práticos, Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, p.14-33, abr. 1982.

DURANTI, Luciana. Registros Documentais como provas de ação, Estudos Históricos, v. 7, n. 13, p. 49-64, 1994.

______. (Coord.) InterPares Project. International Research on Permanent Document Records in Eletronic Systems. Vancouver, UBC, 2001. Disponível em: http://www.interpares.org/. Acesso em: 10 de julho de 2011.

ELIAS, Nobert. A Sociedade dos Indivíduos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1994.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

______. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

______. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

GARON, Louis. Le principe de provenance, Archives, Quebec, vol. 1, Juil.-Dec. 1969, p. 12-19.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

JARDIM, José Maria. O conceito e a prática de gestão de documentos. Acervo, v. 2, n.2, jul./dez, 1987.

JENKINSON, Hilary. A Manual of Archive Administration. London: Percy Lund, Humphries, 1965.

LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.

______. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.

LÖWY, Michael. Ideologias e Ciências Sociais: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 2003.

NEUMANN, Franz. The Rule of Law. Political Theory and the Legal System in Modern Society. Leamington: PH books, 1986.

RABELLO, Rodrigo. A face oculta do documento. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2009.

Page 210: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 210

RANKE, Leopold Von. The Theory and Practice of History. Indianapolis: Bobbs-Merril Company Inc., 1973.

RIBEIRO, Cândida. Acesso à Informação nos Arquivos. Tese (Doutorado em Arquivística) Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 1998.

RONDINELLI, Roseli C. Gerenciamento eletrônico de documentos: uma abordagem diplomática arquivística contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1973.

TAYLOR, Frederick W. Princípios da administração científica. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1995.

THOMASSEM, Theo. Uma primeira introdução à arquivologia. Revista Arquivo & Administração, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 5-16, 2006.

TURNER, Victor. O processo ritual. Estrutura e Antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

VAN GENNEP, Arnold. The Rites of Passage. London: Routledge Library Editions, 1969.

Page 211: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 211

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

O CONCEITO ONTOLÓGICO FENOMENOLÓGICO DA INFORMAÇÃO: UMA INTRODUÇÃO TEÓRICA

Marcos Luiz Mucheroni, Robson de Andrade Gonçalves

Resumo: O conceito de informação é tomado em sua peculiaridade ao ponto em que definições não convergem em um consenso. Os conjuntos dos conceitos e fatores contingentes que tornaram aportes sobre a informação e, sobretudo, o ato de informar-se diz respeito à historicidade do conceito de informação e, em especial, da existência da Ciência da Informação enquanto disciplina especializada. A crítica de Lukács e Adorno perante a ontologia clássica, que separa sujeito e objeto, incidem diretamente na discussão da informação que em suas interpretações pelas ciências abandona o seu papel essencial de fundo que premedita a ação de cada ser e faz no seu ato de informar algo no qual é impressa sua visão de mundo. Assim este trabalho explora o retorno ontológico do conceito de informação a partir da filosofia de Heidegger no seu aspecto fenomenológico e de crítica ao esquecimento do ser, numa urgente mudança de visão de mundo que a incorpora condicionada a cultura, a temporalidade e a peculiaridade de cada indivíduo pensado como ser, além das objetivações científicas e métodos aplicáveis.

Palavras-chave: Epistemologia. Ontologia da Informação. Informação Ontológica-Fenomenológica. Ciência da Informação.

Abstract: The concept of information is taken in its uniqueness to the point that definitions do not converge on a consensus. The sets of concepts and contingent factors that have made contributions over the information and, above all, the act of informing concerns the historicity of the concept of information and in particular, the existence of Information Science as a discipline expert. The criticism of Lukacs and Adorno in the face of classical ontology that separates subject and object falls directly in the discussion of the information in their interpretations by science that abandons its essential role that premeditates background of every action and makes the act of informing its something in the which is printed their worldview. Thus this paper explores the return of the ontological concept of information from the philosophy of Heidegger in his appearance and phenomenological critique of the forgetfulness of being, in urgent change of worldview that incorporates the conditioned culture, temporality and the peculiarity of each be thought of as individuals, beyond the scientific quantification and applicable methods.

Keywords: Information Ontology. Ontological-Phenomenological Information. Epistemology.

1 INTRODUÇÃOInformação é antes uma questão. A Ciência da Informação (C. I.) tem como objeto de estudo a

Informação, um conceito complexo que não satisfaz a compreensão com definições. A multiplicidade de definições e a divergência entre tais relatam um quadro de inconsistência epistemológica na área nos fazendo questionar a relação entre informação e ciência, sociedade, cultura, ética, etc. O caminho da definição mostra-se insuficiente e a análise crítica das ciências, da historicidade do conceito de

Page 212: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 212

informação, assim como a crisis da visão de mundo atual faz-se urgente.Entre o nascimento dos estudos em informação científica e o pensamento de Otlet há uma clara

divergência. Otlet tinha em mente a visionária, porém eurocentrista ideia de acesso aos documentos e a importância do estudo destes. O contexto histórico é díspare. Na Royal Empire Society Scientific Conference a intenção era de entender a informação e sua importância nas comunidades científicas criando linhas de pesquisa e impulsionando a discussão da informação científica para o uso político desta. Quanto mais se estuda e compreende a informação, mais se manipula a tecnologia a favor daquele que detém o poder monetário e de investimentos, esta é a lógica militar. A C.I. nasceu em uma gama de interesses, regiões, culturas e ideologias41 diferentes; sendo que as interpretações e textos que discorrem a “História da Ciência da Informação” divergem quanto ao seu começo. Uns relatam a gênese na biblioteconomia/documentação (com Otlet), confundindo documentação com informação (eis a visão materialista42) (LE COADIC, 2004), outros remetem ao início da C.I. com as conferências citadas acima, dos EUA e Europa (SARACEVIC, 1996), porém, o conceito de informação é pertinente tanto quanto a documentação e biblioteconomia e tanto a C.I. como uma ciência autônoma, independentemente de questionamentos quanto a quem detém o nascimento da ciência. É sabido que esse nascimento é crítico e mantém-se em uma crise de mutagênese, pois aderiu a si um conceito peculiar, ou não passível de definição, a informação.

Nesta crítica colocamos em cheque a razão de existência de uma ciência social que deveria pensar realmente a sociedade, no idealismo (para alguns, infelizmente ingênuo) de que a ciência existe para o progresso humano e para o bem-estar comum, como também, a condição histórica do afastamento ontológico das ciências e o conceito de informação nesse contexto histórico e crítico. Questões surgem, como: o bem-estar de quem é a meta das ciências? Realmente quer-se democratizar a informação para todos? Todos os governos desejam investir em pesquisas que expandam a capacidade de conhecer, de criticar e consequentemente, de transformar? É importante que não nos esqueçamos destas questões, para que a crítica vá além da simples análise de teorias e paradigmas e fundamente-se no ser.

Quanto mais simplificadas, mais comprimidas estiverem as teorias sobre informação, mais distante estaremos de vislumbrar as possibilidades de compreender, a partir de outras lentes, como conhecemos o mundo, de que modo podemos apontar os interesses escusos de pequenos grupos, de fomentar a crítica e de valorar o que nos afirma como ser, o Outro. As tecnologias nos permitem visualizar, sentir o mundo de múltiplas maneiras, são ferramentas na sua materialidade, sendo que em essência são um saber. Aqueles que manipulam as ferramentas constroem e modificam-nas, sustentam-se na sociedade que tem poder de consumo. Consumir deriva de consumar, destruir. O que se usa se

41 Ideologia – uma questão de contexto discursivo, de relação de poder, sendo direcionada à promoção ou legitimação de uma ideia correspondente a uma visão de mundo, ou crenças situadas em relações vivenciadas. (EAGLETON, 1997).42 Materialista aqui é retratada como uma visão objetivada do conceito de informação, ou seja, informação como coisa, confundindo-se com o documento, o livro, etc. Não nos referimos ao Materialismo Histórico ou a qualquer doutrina marxista neste ponto.

Page 213: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 213

descarta. A tecnologia do descartável nos leva a uma discussão mais profunda e ao questionamento do papel da ciência na sociedade. Frente a ideologias e a hierarquização do poder do Estado, situa-se mais uma ciência que é a C.I. Seu papel é importante e discutível, e como ciência evolui perante o criticismo e a proposição de outros caminhos a seguir.

Com as novas mídias, esse quadro é confrontado com novas possibilidades nunca antes vistas. A Internet e a Rede inauguraram um novo mundo do agir, da participação e da comunicação. Nunca antes na História foi possível escrever uma opinião sobre qualquer assunto e compartilhar com o mundo rapidamente. Pode-se criar um blog, comentar, interagir, ler e ser lido, sendo que o tempo nesse processo é condensado e o espaço configurado a perder as distâncias. Um brasileiro pode reivindicar no seu blog próprio, ter comentários do Japão, por exemplo, e replicar praticamente no mesmo momento. Claramente esta revolução das comunicações trouxe uma mudança no viver, e no agir da sociedade. Porém ainda se mostra como processo, está distante da sua queda e vê-se nova sua nascente. O que difere de outros processos de revolução tecnológica é que na Internet acontecem mudanças em curtos espaços de tempo. A noção cronotópica, ou seja, de tempo-espaço, foi completamente transformada, mas essa realidade não é possível para todos, não em todas as culturas. A hierarquização, o modelo emissor-receptor de comunicação (no sentido ontológico) tem sua insuficiência demonstrada na relação intersubjetiva da Rede. O centro está por toda parte, por nós de rede, que ao tornarem-se ativos, produzem em uma interação possível de modo aberto e horizontalizado.

2 UM PRESSUPOSTO TEÓRICO PARA O CONCEITO ONTOLÓGICO DA INFORMAÇÃO

Mário Ferreira dos Santos foi um filósofo notável, buscou uma própria forma de pensar, olhando de modo crítico as teorias classicamente estudadas da filosofia e como ele mesmo diz com uma acidez digna, “confrontando o espírito colonialista passivo de muitos brasileiros, que não crêem, não admitem e não toleram que algum de nós tenha a petulância de formular pensamentos próprios” (SANTOS, 1956, p. 16). Suas considerações sobre a Teoria do Conhecimento contribuem para um esclarecimento do pensamento grego e as raízes do pensamento ocidental sobre o conhecer. Do mesmo modo que o filósofo, este trabalho não se fecha em nenhuma categoria definidora geralmente tendenciosa e a posteriori das intenções do autor. É acima de tudo um fazer crítico concatenando logicamente as ideias que melhor possam mostrar o quanto é profunda a fenda epistemológica da Ciência da Informação e o quanto são peculiares o conceito que esta toma de objeto. Para assim, acharmos outras fendas, ou modificarmos o nosso pensar sobre as fendas atuais. O criticismo neste trabalho está em primeira vista muito além de alguma intenção de seguir doutrinariamente categorizações e posições filosóficas quaisquer.

A questão do conceito de informação e seu problema epistemológico movimentam as

Page 214: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 214

publicações científicas sobre metateorias43. Este é um sinal do estágio de construção epistemológica da C.I. Se nos referimos à construção, isto quer dizer que há uma meta, uma teleologia. Especulações sobre uma C.I. com uma epistemologia única, concreta e produtiva são meros vôos ideais, como no exemplo do trabalho de Schrader (1983), que identificou mais de 700 definições no contexto da C.I. Há um claro esforço na construção de uma epistemologia da C.I., porém as divergências ainda apontam para maiores e contínuos conflitos. A posição de Brookes (1991) mostra a necessidade de uma unificação teórica, em que esta ciência tenha sua própria visão dos casos humanos e desenvolva seus próprios princípios e técnicas. Mas como é possível desenvolver tal ambição se a ciência tem um problema congênito em sua epistemologia e recorre a conceitos de outras ciências? Como podemos pensar informação sem uma relação com o conhecimento, comunicação, política, direitos, ética? Sua junção com outros correlatos de outras áreas é inevitável. Talvez o que se pode dizer de lúcido em Brookes é a construção de uma nova visão de mundo, uma concepção própria da C.I., para que então esta consiga delinear-se, tornar-se clara a si, porém sempre remetendo ao meio e à rede emaranhada de relações científicas. Não há possibilidade para se pensar numa ciência estanque, mas sim numa ciência comunicativa e permeadora, ou seja, uma ciência do conflito de ideias per se.

Uma maior atenção ao aspecto semântico da informação causou uma reconsideração na teoria de Shannon, emergindo o Paradigma Cognitivo da Informação que considera o significado e não somente o sinal. Significado está intrínseco à linguagem e esta, por sua vez, ao indivíduo em sociedade. A C.I. afirma-se uma ciência social de fato, porém de que modo são entendidos, linguagem, significado e indivíduo social? Resquícios do behaviorismo, do positivismo, mais recentemente do logicismo neopositivista e do reducionismo cartesiano ainda perduram nas teorias da C.I., tal como visto em Bates (2005), sobre o leitor ser informado no ato da leitura, e então se faz conhecimento neste ato, além de segregar informação em duas concepções distintas, 1 e 2. Uma materialista: “O padrão de organização da matéria e energia”44. E outra complementar e semântica: “Algum padrão de organização de matéria e energia cujo sentido é definido a partir de um dado ser vivo”45 (BATES, 2005). São definições e, a partir destas, Bates constrói sua linha de pensamento sob a visão de mundo reducionista e mesmo declara, “Neste ensaio, o objetivo foi o de fornecer uma definição que seja útil no sentido físico, biológico e social do termo”46 (BATES, 2005, p. 26, grifo nosso). A busca pela definição é clara, como sublinhamos, sendo que as definições são demasiadamente gerais, a partir do ponto de vista de diversas áreas, que não necessariamente convergem quanto ao significado do termo informação.

43 Metateoria é a discussão teórica frente a teorias e paradigmas de uma ciência, uma discussão sobre as teorias predominantes em uma ciência, pelo viés ontológico, axiológico, epistemológico, teleológico e ideológico (TALJA, 2005).44 Tradução nossa de: “The pattern of organization of matter and Energy” 45 Tradução nossa:“Some pattern of organization of matter and energy given meaning by a living being”6 Tradução nossa de: “In this essay, the objective has been to provide a definitionthat is usable for the physical, biological and social meaning of the term”

Page 215: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 215

As estruturas são construídas na complexidade das relações sociais, em um tempo, sob a visão de mundo predominante e não somente na simples ação humana da subjetividade pura ou mesmo em face do dado, como objeto, numa suposta objetividade pura. O criticismo aqui empregado deseja apreender o fenômeno e sua manifestação nessa complexidade de existência. Pensar a estrutura de uma ciência é pensar na visão de mundo que ela fora construída e de que modo (a partir das considerações políticas, ideológicas, sociais e particularidades) ela se molda no tempo, e como pode encontrar caminhos para um melhor esclarecimento da sua epistemologia. A compreensão aqui de epistemologia é o caminho do conhecimento, como tecer, sempre considerando os fatores adversos que se situam na manifestação entre sujeito e objeto. Neste sentido, Santos (1956), cita o que Lavelle, filósofo francês metafísico, pensa sobre a tarefa da filosofia:

A filosofia não inventa nada. Ela é em cada um de nós a consciência do ser e da vida. Ela é esse esforço de reflexão pelo qual ensaiamos atingir, no fundo de nós mesmos, a fonte de uma existência, que parece ter-nos sido imposta [...]. Ela busca captar a realidade internamente num ato de viva participação em vez de nos dar um espetáculo do qual nós mesmos estaríamos ausentes. (LAVELLE, 1935 apud SANTOS, 1956, p.31).

Objetivar em análises esse aspecto fenomênico seria uma contradição, por isso há o trabalho crítico, ausente de determinações e condições objetivadoras, instrumentalizadoras do conceito de informação. Como Lavelle diz, a filosofia é a consciência crítica da questão presente em todos e necessária para toda ciência. Não nos referimos como também Lavelle, à filosofia como profissão, como cargo acadêmico, mas o ato de filosofar, de refletir sobre a nossa condição na sociedade e na existência, ou seja, como seres pensantes dotados de voz ativa e viva, que permite o diálogo e cria possibilidades de construir e propor novos caminhos para o vislumbramento, sendo assim, nos faz seres presentes na realidade.

À luz de novas descobertas científicas no campo da física, as teorias da complexidade, esta visão se reorganizou no pensamento neopositivista, já presente desde o Renascimento:

Não se trata mais de saber se cada momento singular da regulação linguística científica resultados práticos imediatos mas, pelo contrário, do fato de que o inteiro sistema do saber é elevado à condição de instrumento de uma manipulabilidade geral de todos os fatos relevantes [...] É evidente que a vanguarda desta concepção dirige-se, sobretudo contra a teoria e a práxis da filosofia da natureza desde o Renascimento até o século XIX (LUKÁCS, 1984, p. 9).

Lukács aborda a condição da ciência moderna na sua instrumentalidade e do afastamento ontológico das ciências neopositivistas, positivistas, behavioristas criticando não somente a prática, mas a visão de mundo tomada pelas ciências, em especial as ciências naturais, assim como, as ciências sociais e do espírito; que taxam a metafísica como ilusão, ou mero idealismo, corrompendo o conceito em seu cerne. Este afastamento ontológico nos leva diretamente às ideologias do sistema socioeconômico atual, a formatação objetivadora e meramente calculista que se acha em uma posição de instrumentalização e voltada à práxis, aos números, dados e métodos aplicáveis. Essa condição

Page 216: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 216

é histórica, nasceu de acordo com Lukács, no Renascimento e perdura nos nossos dias mesmo no momento crítico científico, político e econômico de hoje, se pensarmos em uma atualização da crítica de Lukács.

Essa situação remonta à nossa discussão perante a condição epistemológica da C.I. que em suas teorias e visões de mundo encontra-se nesta condição histórica, sendo que a partir desta crítica do esquecimento do ser nas ciências, podemos ampliar a compreensão do conceito de informação e consequentemente propor uma mudança de visão de mundo direcionada para uma visão ontológica.

3. O CONCEITO DE INFORMAÇÃO ONTOLÓGICA-FENOMENOLÓGICA

Kant foi o responsável por uma revolução copernicana na filosofia, quando postulou a dependência do pensar aos sentidos, ao sujeito, porém o isolou de certo modo, recebendo críticas de ser um idealista e desconsiderar a materialidade do mundo. Não nos cabe entrar nessas discussões sobre o Idealismo ou Realismo, em ambos os pensamentos extremistas que caíram por terra nas discussões filosóficas47 e se mostraram insuficientes ao tempo. A pluralidade das verdades se dá no fenômeno quando a coisa (ente) manifesta-se aos nossos sentidos (não de modo unilateral ou hierárquico), estes passíveis à pluralidade e à infinitude das interpretações, que vai além de sabermos onde se forma a realidade. Temos de primeiramente compreender a relação sujeito-objeto para então abordarmos com mais clareza o conceito ontológico-fenomenológico de informação.

A Teoria Crítica de Adorno e Max Horkheimer alertam-nos sobre a condição objetivadora do espírito na sociedade industrial, e do modo de produção capitalista infiltrado na cultura e nas artes. Em momentos turbulentos de uma Europa assolada pela mais genocídica guerra da história, o pensamento crítico seria a única saída válida para transformar a visão de mundo e aprofundar as fendas no sistema capitalista, que iria além da análise da época de Marx; vai ao cerne de questões filosóficas do ser, do homem, microcosmo, dentro de uma sociedade complexa, e se constroem como tais dialeticamente.

Nesse contexto, Adorno faz uma reflexão crítica sobre o sujeito e objeto, sobre a clássica ambiguidade e oposição entre os dois conceitos quando afirma que “A ambigüidade não pode ser eliminada simplesmente mediante uma classificação terminológica. Pois ambas as significações necessitam-se reciprocamente; mal podemos apreender uma sem a outra” (ADORNO, 1995, p. 62).

Nos caminhos permeados pela Teoria do Conhecimento na história da filosofia sempre houve o grande questionamento da natureza do sujeito e do objeto. Ob-jeto, aquilo que se opõe ao sujeito, que por sua vez, pro-jeta, é entendido como aquilo que está fora da consciência de um indivíduo, assim assinala-se a concepção clássica. Porém, Adorno atenta para a questão social não considerada nas discussões filosóficas da teoria do conhecimento. O homem é um ser social, o conceito de indivíduo não pode fechar em si mesmo. Não há indivíduo fora de uma sociedade e a alteridade é uma determinante para o conceito de homem, ser que se faz, atualiza-se no outro, na sociedade, e cria

47 Cf. BERGSON, 1984.

Page 217: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 217

deste modo, o movimento complexo entre sujeito e objeto, alvos da persistente ideia categorizadora e definidora da Teoria do Conhecimento. Sobre definir, Adorno nos esclarece: “Definir é o mesmo que capturar – objetividade, mediante o conceito fixado, algo objetivo, não importa o que isto seja em si. Daí a resistência de sujeito e objeto a se deixarem definir.” (ADORNO, 1995, p. 62). O mesmo se dá com o conceito de informação, um conceito peculiar, que foge a qualquer definição reducionista, pois o olhar objetivador não se identifica com este conceito, sendo que na sua etimologia já existe como conceito plural, metafísico, e requisitado para os olhos do filosofar que não se restringe totalmente à visão de mundo objetiva. O pensar filosófico faz o caminho do questionar à pluralidade conceitual de “Informação”, suas definições modificadas e reestruturadas pela história construindo uma epistemologia.

Adorno questiona a veracidade dos postulados da Teoria do Conhecimento sobre a separação sujeito-objeto, e percebe em sua manifestação os interesses ideológicos dessa cisão, principalmente em Kant, na sua revolução copernicana da filosofia, onde pôs o sujeito à frente dele mesmo, questionando sua origem como tal e a cognoscência dos objetos, eis o indivíduo vivente, indivíduo de fato. Há, para Adorno, uma íntima relação entre sujeito e objeto e nessa relação um complexo movimento ideológico, político, e interesses condicionantes que vão além de qualquer análise restrita à metafísica. A condição histórica e social do homem é o viés que deve ser abordado quando se questiona filosoficamente sujeito e objeto. Salienta essa relação indissociável, Adorno,

Nenhum dos dois existe sem o outro; o particular só existe como determinado e, nesta medida, é universal; o universal só existe como determinação do particular e, nesta medida, é particular. Ambos são e não são. Este é um dos motivos mais fortes de uma dialética não-idealista (ADORNO, 1995, p. 70).

O sujeito é objeto tanto quanto o objeto é sujeito em níveis variantes, sempre em movimento e indeterminação. Ao descentrarmos sujeito e objeto podemos refletir no seu fazer, no ato e relação; e isso nos conduz à historicidade deste fazer, suas variantes, e nos afastam da ilusão do poder absoluto da objetividade e da analítica.

Uma intenção de crítica à Ciência da Informação e uma investigação filosófica sobre o conceito de informação permeia também uma crítica do conhecimento, pois informação e conhecimento estão intrinsecamente ligados, pode-se dizer que são semelhantes, em outras palavras, distintos em concepção, porém idênticos em conceituação. Abordar um conceito informacional é tomar a consciência imediata de um conceito do conhecer. Informar e conhecer são o mesmo no seu sentido ontológico, porém ao mesmo tempo distintos como concepção. Podemos dizer que o ato de informar é um ato de conhecer, mas não podemos igualar informação e conhecimento; este último termo vai além da ação, perdura na memória, situa-se na história e na própria efetivação do ser. A partir desse pensamento crítico, atual, e emergencial construímos os argumentos da hipótese deste trabalho que sugere outro olhar perante esse conceito “que não se deixa definir”.

O afastamento ontológico creditado às ciências naturais, que resultou em uma construção de uma visão de mundo cientificista e fisicista taxa quaisquer questionamentos que vá considerar as

Page 218: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 218

contingências, a historicidade e a impossibilidade de neutralidade de uma observação de devaneio metafísico. Lukács, pensador marxista tece uma crítica fundamentada na historicidade do aparecimento dessa visão de mundo quantificadora, chamada Neopositivismo:

Tanto desvaneceu o idealismo kantiano no curso do século XIX que surgiu uma corrente idealista no positivismo dirigida não apenas contra o materialismo, mas com a pretensão de criar um meio filosófico que extradita do campo do conhecimento toda visão de mundo, toda ontologia e, igualmente, cria um - pretenso - terreno gnosiológico que nem materialista-objetivo e que, justamente nesta neutralidade, pode oferecer garantia de um conhecimento científico puro. Os momentos iniciais desta tendência remontam à Mach, Avenarius, Poincaré etc... (LUCÁKS, 1984, p. 6).

A distinção entre o indivíduo subjetivo e o ser social são concepções claramente behavioristas, onde todas as pesquisas sobre o homem são feitas em termos da psicologia, da biologia e da física, sempre incluída a linguagem-objeto, para Carnap: “Muitos termos podem ser definidos sobre esta base, podendo o resto ser certamente reduzido a ela” (CARNAP, 1938 apud LUCÁKS, 1984, p. 59). Este é o fundamento e a síntese do pensamento logicista ou neopositivista, um homem fora do seu contexto, seu ser reduzido à lógica e à relação instrumental da linguagem, sendo assim possível a manipulação da pretensa neutralidade científica.

A tendência à homogeneização das concepções e dos métodos aplicáveis afasta o fazer científico da visão ontológica e quando pensamos nas chamadas ciências do espírito a questão complica a sua gravidade. E ainda nesse sentido surge a questão ontológica da informação, principalmente perante a ciência e à condição histórica que esta se coloca. Frente essa questão propomos o caminho fenomenológico que considera a historicidade e as contingências, a partir do viés filosófico, no pensar da informação em concatenação com a fenomenologia heideggeriana, tomando a si o método não determinante de análise do como, ou seja, como se manifesta a coisa investigada, quais são suas peculiaridades existenciais, o que assim se mostra em si mesmo (DUBOIS, 2004). A lógica da ontologia e fenomenologia de Heidegger está na hermenêutica, na interpretação das sentenças e na relação do ser com a linguagem e na intencionalidade do ser. Estes tópicos são cruciais para se pensar a informação pelo âmbito do ser, por uma ótica ontológica que se presta ao fenômeno para ampliar a compreensão do como da informação, ou, como a informação se dá, processa como tal, no ser. O principal tradutor e estudioso da obra heideggeriana, Emmanuel Carneiro Leão, descreve numa síntese a condição da fenomenologia em Heidegger e também da sua ontologia no posfácio da edição brasileira de Ser e Tempo:

A necessidade de um esquematismo espacial, temporal e gestual para dizer e compreender todos os modos de ser e agir mostra à sociedade que a presença fundadora de nossa existência não se dá na órbita de consciência de um cogito sem mundo, nem na complementaridade recíproca de sujeito e objeto. Abrange, ao contrário, todas as peripécias de uma co-presença originária que se realiza através de uma história de tempos, espaços e gestos, que se desenvolve num mundo de interesses e explorações, de lutas e fracassos, de libertação e escravidão. (HEIDEGGER, 2009, p. 557).

Page 219: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 219

A fenomenologia de Heidegger como método, se molda a partir da coisa mesma, isto é, não se acaba como método próprio, imóvel e infalível, tal qual o cartesiano. O fenômeno é a própria questão e o método para se pensá-lo se dá nele mesmo. O caminho a se percorrer é a própria questão, que vai se clareando à medida que se caminha. Se informação é um processo, um fenômeno e logo temos que adentrar na sua ação através do questionamento de como o informar-se se dá. Deste modo escapamos dos estanques metodológicos de análise positivista, e de qualquer outra universalização totalizante. Pensar informação, filosofar sobre este conceito, é uma ação informativa, que através do próprio caminho se descobrem as possibilidades de caminhar. Nessa pretensão fenomenológica podemos clarear e expandir as possibilidades de compreender o que é informar-se. Dar sentido ao ser no ato informativo, imerso e vivo no mundo, em essência, significante.

Na busca fenomenológica fomos à origem do conceito informação para então refletirmos a sua historicidade e transformação. Informação, em consenso com os dicionários consultados vem do latim, Informatio, Informatione que significa, “modelar, formar, representar idealmente [...] formar no espírito”, segundo Machado (1990); de acordo com Saraiva (1924), “Dar forma, afeiçoar, formar; formar no espírito, delinear, esboçar, instruir, educar”. Em alguns dicionários em inglês encontramos a etimologia em Scheller (1835), “uma representação, ideia, esquema, para enquadrar na mente” 48; e também em Glare (1982), “esforço (em palavras), formas na mente, para formar a ideia de (algo), imaginar”49.

Dentre os verbetes é consenso a origem da palavra informação, sendo que in – dentro, e formatio – deriva de forma, dar forma a algo. É a origem da palavra que permite diversas interpretações em dependência da visão de mundo, assim como o termo fora usado pelos escolásticos (Idade Média), diferentemente depois das ideias de Descartes e mais precisamente Kant, que considerou o sujeito como cognoscente e primordial no processo do conhecer. No aspecto figurativo, todos os dicionários consultados remetem para “formar no espírito”, ou algo que se forma no espírito, daí a interpretação de in-formar, dar a formação no interior, imaginar, ou seja, no intelecto, ou no sujeito cognoscente. O sujeito é, portanto, um conceito chave para se compreender o conceito de informação, mas ainda mostra limitações, pois esse carrega uma definição insuficiente, abstrata e idealista de informação. É preciso pensar como o processo se dá, em que meio e de que forma.

Se há um sujeito há um objeto; se pensamos um sujeito cognoscente, pensamos numa sociedade em que esse sujeito está inserido, no contexto histórico, na sua linguagem, na sua cultura. Diversos fatores tornam a discussão mais complexa e a interpretação pode ir além. Do mesmo modo, se pensamos em forma, pensamos em matéria, no conteúdo desta forma, na apreensão das coisas, de certa forma, pensamos também sujeito e objeto, e, além disto, pensamos no processo em sua totalidade na relação entre sujeito e objeto, matéria e forma.

Quantificar a informação é criar enunciados sem um fundamento ontológico; é destituir do

48 Tradução nossa de: “a representation, idea, sketch, to frame in the mind.49 Tradução nossa de: “Sketch (in words), to form in the mind, to form and idea of (something), imagine”.

Page 220: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 220

conceito de informação sua essência, pois não é possível pensarmos o informar-se sem considerarmos o homem que pensa e seu meio. Os labirintos da mente e do fenomênico não são quantificáveis ainda. Se, por conseguinte, afirma-se que se pode manipular a informação, logo, se pode manipular alguma forma de pensamento. 50

Aristóteles foi o filósofo grego que estudou a relação entre matéria e forma, também conhecida como hilemorfismo. Para o filósofo, a relação de existência entre matéria e forma constrói a realidade, assim, pensa-se o sentido de processo no movimento que existe nessa relação. Henri Bergson, filósofo francês, exemplifica o pensamento do hilemorfismo de Aristóteles,

[...] a árvore, a planta que provém da semente. A semente é a matéria, a planta, a forma. Essa forma é o objetivo, o fim que o desenvolvimento da semente persegue; [...] esse devir tem sua causa na necessidade de realizar a forma, na necessidade de tornar-se planta, de modo que é a atração da forma que causa o movimento e a forma é realmente causa motora, ao mesmo tempo em que causa final. (BERGSON, 2005, p.123).

Para Aristóteles, a forma está (em potência) nos objetos, nas coisas, no ente, pois assim é logicamente permitido haver mais de uma visão, ou compreensão dos objetos. Eles podem ter múltiplas formas. A prova está no microscópio, por exemplo, um copo contém água num recipiente no estado líquido. Quando olho com olhos microscópicos, vejo não mais a forma líquida, mas sim as moléculas de água, “vejo” a molécula de H2O, assim como se pode usar uma “lente quântica” e “ver” o quantum, o interior do núcleo e outro mundo físico com outras leis mecânicas. A matemática permite, através da sua linguagem, esta outra visão que experimentalmente é um sucesso.

Nossa percepção cognitiva efetiva-se em quatro dimensões (três dimensões espaciais e uma temporal), outro ser, hipotético, pode ver o mundo em 4, 5, 9 dimensões, como a física atual já pensa, nas teorias atuais. Como ele veria? E em duas dimensões? A partir da percepção, como agiria esse ser? Parece aceitável que esse ser agiria completamente diferente de nós, seres de uma percepção em quatro dimensões. A forma está em potência no objeto, pois independe de nós para essencialmente ter a forma, já que pode ser visto em diversas realidades formais, microscópica, quântica, macroscópica, mítica, etc;

A realidade está em partes no subjetivo e no objetivo, logicamente falando, é uma relação fenomênica entre ambos que dá a forma, que in-forma. A visão de mundo determina a forma, o informar. Temos uma limitação fisiológica, fato que a neurociência estuda, por isso sua importância, justamente para sabermos o quão longe nosso cérebro pode ir fisicamente, quantas realidades, quantas formas pode se desprender e desenvolver dos objetos e do real.

A complexidade desta realidade se dá nas contingências que a permeiam e a determinam naquilo que a ciência não atinge, apenas quantifica e abstrai. Apesar de estar além da ciência, o ato, o movimento de organização das coisas, o ser em sua afirmação de si é crucial para compreendermos a magnitude do conceito de informação. É o que chamamos de Meio Elucidativo, cuja complexidade

50 Reditum ad absurdum.

Page 221: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 221

é explícita na linguagem, na cultura, na diferença. É a partir da diferença do Outro (alteridade) que devemos refletir o conceito de informação e como a prática desse pensamento se dá na educação, na epistemologia da C.I., na configuração das bibliotecas, na Documentação, que neste caso especial estuda a organização dos documentos e principalmente para quem organizar. Documentos não existem sem uma ação, e esta ação é causada por um ser, com direitos e deveres, num contexto político, numa temporalidade, em uma forma de discurso, em uma cultura.

Elucidar vem de esclarecer, tornar lúcido, deriva do latim elucidativus (BUENO, 1963). Para se tornar elucidado, o meio deve organizar-se de uma maneira em que estes fatores estejam consoantes no ato de informar-se e distinguível para aquele que está se comunicando. Na relação comunicativa, seja entre pessoas, ou numa leitura de análise a um documento, existe uma conexão cognitiva, uma atenção do indivíduo para aquilo que se estabelece comunicação. O pensamento se faz atento, intencional, atualizando-se com o outro e nesse movimento de pensamento, linguagem, cultura e individualidades existe o ato de informar.

Uma horizontalidade é possível nesse processo comunicativo e o ato de informar-se movimenta em sua temporalidade afirmada pelo potencial de informar, que se atualiza e informa. O potencial de informar torna-se ato no Meio Elucidativo, ao ponto que os objetos tomam forma no espírito, ou “nous” 51 em grego, e neste sendo do ser, há o processo, o movimento, portanto, ação em que se informa; a informação. Logo, as coisas têm a potencialidade de informar, assim como a semente tem em potência a árvore e seus frutos, ou seja, existe uma virtualidade. Nesse sentido podemos pensar a Internet como outra realidade, virtual e não irreal, de possibilidades técnicas, de compartilhamento de saberes e de relações humanas, assim como uma possível horizontalização dessas relações. A partir dessa hipótese, distinguimos o que é registro, ou documento, de informação. Um livro tem a potencialidade de informar, mas este ato dependerá dos fatores de linguagem, da cultura, da temporalidade, do sujeito que é informado.

Quando nos informamos, a forma se dá em nós, porém não se fecha em uma redoma em nossa consciência ou subconsciência; está em nós em ato, em nossas opiniões, na linguagem, está culturalmente vivo e formado em nós, por isso o “informar-se sob um ponto de vista”. É a forma que se dá no espírito, e este o modifica, dá movimento ao espírito, ao pensamento, e exige o questionar. É importante usar o pronome nós, no sentido de remeter ao mundo, quando nos referimos à informação, pois a solidão do cogito não é mais tomada como verdade. Há de se superar o pensamento isolado do cartesianismo e pensar o “nós”, ao invés da consciência pura. A experiência viva, ainda que mesclada com o ser e os outros entes, se dá unicamente em cada um de nós, por isso é um ponto de vista, ou seja, somente uma posição (dentro da interpretação de espacialidade que este conceito remete) que tem sua unidade de posicionamento e não de completude, pois um ponto se dá num espaço, e este é mais abrangente, deste modo, o ponto de vista é por si relativo. Todavia, o pensamento, fundamento desta experiência viva e do humano, é compreendido como ao mesmo tempo único em cada ser

51 Nous depende do contexto filósofo, aqui é a noção qualitativa de estar ligado ao ser e o todo.

Page 222: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 222

(pode-se dizer de consciência) e total para o ser (pode-se dizer a existência do Outro).Existir é compreender, e no pensamento, em que nasce o questionar, nos fazemos ser.

Informar, conhecer, fazer parte do processo do conhecer a si e ao outro (ser-no-mundo, ou o Dasein de Heidegger) é questionar-se, não somente como uma dúvida a ser sanada, mas o próprio informar-se no seu processo de atualização é o questionar, daí se deriva a sua essência, não presa a um sujeito, nem mesmo ao objeto, mas na relação entre o ser e o mundo, no fenômeno, na história52.

Informação é essencialmente o questionar-se. Todo ato de informar-se remete a uma questão, não se informa sem uma dúvida. É uma busca particular incutida nos mistérios da mente e do pensar, do ser, portanto. Informação é antes uma característica existencial, ontológica. Pensar a informação é debruçar-se sobre o questionar-se, tendo em vista o ôntico, o histórico, a cultura e o tempo. A essência do informar-se está em cada ente que transcende no seu ser, de modo que o conceito de ser-aí (HEIDEGGER, 2009) está além do informar-se53, é antes o fundamento deste; portanto, pensar informação é um pensar de geração, pelo espírito de um tempo. Pensa-se em educação, o educar de uma sociedade, sua história e cultura. O nosso tempo deve sempre perguntar-se da essência do saber do informar-se na sua cultura, pois a nossa busca pela essência varia, nos diferenciamos, pelo tempo. O mundo é descoberto, assim como descobrimos a nós mesmos criando identidade na diferença, dialeticamente. Informação nos remete à relação de diferença e identidade, portanto, a cultura.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: MUDANÇA DE VISÃO DE MUNDO, UM NOVO FAZER CIENTÍFICO E SOCIAL

Como visto, a complexidade de conceitos conjuntos e fatores de contingência que abordam a informação e, sobretudo, o informar-se se amplia ao ponto em que questionamos mais a natureza e a historicidade do conceito de informação e da existência da Ciência da Informação. Esta complexidade, na sua universalidade, é sintetizada a partir da palavra alemã Weltanschauung deriva de, welt – mundo, e Anschauung - visão, intuição. Geralmente traduzida por visão de mundo, ou visão da vida, e pode ser interpretada como a nossa posição no mundo e o modus do nosso agir (HEIDEGGER, 2007). Regularmente usada na filosofia, este termo sintetiza o ser-no-mundo, isto é, a visão de mundo premedita a ação de cada ser, é condicionada pela cultura, pela temporalidade, pelo pensamento que temos em nossa subjetividade e ao mesmo tempo, mesclada ao objetivo, ao mundo, às relações que mantemos em sociedade e a cultura como determinante na formação de cada um. A visão de mundo da ciência atual encontra-se em uma crise, como dito, juntamente com o conflito de outras visões emergentes. Esta mudança de visão gera o conflito, e afirma o diálogo. O que propomos é uma substancial mudança de visão de mundo, para então pensarmos como o agir há de se modificar, tal qual Heidegger, que relê a famosa frase de Marx, “[...] a transformação do mundo, [...] exige, antes, que o pensamento se transforme, assim como já se oculta uma modificação do pensamento atrás da

52 Deve-se entender história dentro da historicidade experimentável do ser.53 Questionamento: ou podemos considerar que o informar-se vai além, tal qual o ser-aí? Ter uma dúvida sanada, satisfazer a necessidade do saber é existir?

Page 223: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 223

aludida exigência.” (HEIDEGGER, 1983, p. 236). Heidegger refere-se à provocação de Marx na Ideologia Alemã de 1846, onde este último

critica os filósofos de somente interpretar as maneiras do mundo, sendo que o importante é transformá-lo. A transformação só é possível com uma mudança de visão de mundo, uma mudança essencial, ou seja, profunda e cultural. A C.I. está neste momento de mudança, sob um capitalismo senil, no avanço tecnológico da Internet e na reestruturação das formas e possibilidades de comunicação e de conhecimento. A tecnologia é um fenômeno cultural e a Internet nos mostra como essa cultura age, se atualiza, se transforma e se movimenta na sociedade. Informação permeia a tecnologia (technè), a cultura, a sociedade, a ética, a educação e o saber principalmente. O questionamento, a visão crítica, a ética do diálogo e do convívio com o diferente devem ser levadas em consideração não somente nas teorias de uma ciência, mas na sua construção epistemológica, na ação e educação de seus cientistas e profissionais.

É necessário construir uma prática profissional a partir de um ensino e pesquisa que não consideram primordialmente aquele que detém o conhecimento, ou a informação; aquele que a controla, mas aquele que pode alcançá-la a partir da própria reflexão, da busca conjunta, da consideração do outro. O pesquisador da informação irá relatar e estudar os problemas sociais sobre a informação, o acesso, a democratização, o uso de novas tecnologias, pesquisas com novas mídias direcionadas para o serviço público, a educação; assim como para o profissional do mercado de trabalho que encontra uma possibilidade de pensar o contexto político e prático em que o mercado se situa e nos atinge diretamente. No método de ensino, o professor que supostamente detém o conhecimento e articula todas as informações em si, cai por terra. Há um diálogo entre professor e aquele que quer aprender, e não mais o aluno; a-luminum, o sem luz. Analogicamente tal como o usuário da biblioteca, ou de uma base de dados, é antes um ser, um indivíduo.

O informar é um processo que depende do outro, daquele que ob-jeta o sujeito e também pode ser sujeito, ou além, é uma ação derivada de um sujeito. Dar forma ao espírito é o conceito primário de informação que ao ser retomado, nos apresenta uma nova forma de se desvelar o conceito de informação, ao ponto de reestruturarmos a nossa visão de mundo como uma possibilidade de transformação. O transformar está fadado à historicidade do ser, tais quais as ideias deste trabalho, que enfrenta a realidade da ciência no Brasil, do sistema político atual e da crise do sistema socioeconômico capitalista. As ideias são sementes, podem vir a ser, e fadadas à latência, podem ser germinadas sob o ditar da temporalidade e das contingências.

Informar-se é um vir a ser da transformação. E transformar necessita da crise, da crítica, do questionar, o que nos faz humanos e nos afirma o ser-no-mundo. Esta é a mudança de Visão de Mundo, que nos permite explorar outras maneiras de vivência e novas possibilidades de existir mais próximos de um conceito de humanidade, e não fadados ao esquecimento do ser, ou um distanciamento dissimulado do que somos de fato. A busca é incessante e este trabalho representa esta necessidade do questionar e do conflito crítico, que até então, se mostra como a mais lúcida maneira de atingir o transformar.

Page 224: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 224

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Sobre sujeito e objeto. In: _____. Palavras e sinais: modelos críticos. Tradução Maria Helena Ruschel. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 62-75.

ARISTÓTELES. Física I-II. Prefácio, tradução, introdução e comentários: Lucas Angioni. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

______. Metafísica: livros I e II. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores, v. 4).

BARRETO, Aldo de Albuquerque. Uma quase história da Ciência da Informação. In: TOUTAIN, Lidia Maria Batista Brandão (Org.). Para entender a Ciência da Informação. Salvador: EDUFBA, 2008. v. 1, p. 13-34.

BATES, Marcia J. Information and knowledge: an evolutionary framework for information science. Information research, v. 10, n. 4, paper 239, 2005.

BERGSON, Henri. O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores).

______. Cursos sobre filosofia grega. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção Tópicos).

BROOKES, Bertram C. The foundations of information science. Part I. Philosophical aspects. Journal of the American Society of Information Science, v. 42, n.5, p. 351-360, 1991.

BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1963. 8 v.

BUSH, Vannevar. As we may think. The Atlantic Monthly, July 1945. Disponível em: < http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1969/12/as-we-may-think/3881/ >. Acesso em: 24 abr. 2011.

DÍAZ NAFRÍA, J. What is Information? A multidimensional concern. TripleC - Cognition, Communication, Co-operation, North America, v. 817, n. 6, 2010. Disponível em: < http://www.triple-c.at/index.php/tripleC/article/view/76/168 >. Acesso em: 24 abr. 2011.

DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo; UNESP, 1997.

GLARE, P.G.W. (Ed.). Oxford latin dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1982.

GONZÁLES DE GÓMEZ, Maria Nélida. Para uma reflexão epistemológica acerca da Ciência da Informação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. 5-18, 2001.

HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).

______. A questão da técnica. Tradução de Marco Aurélio Werle. Revista Scientiae Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-398, 2007.

______. Ser e Tempo. 4. ed. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2009.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1991. (Os Pensadores).

LE COADIC, Yves-François. A Ciência da Informação. Brasília: Briquet de Lemos, 2004.

Page 225: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 225

LUKÁCS, Gyorg. Ontologia do ser social: neopositivismo. Tradução de Mario Duayer (UFF), da edição alemã Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Primeira Parte, Cap. I-1, Neopositivismus. Darmstadt: Luchterland, 1984.

MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 6 ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. 5v.

SANTOS, Mário Ferreira. Teoria do Conhecimento: (Gnoseologia e Criteriologia). 2. ed. São Paulo: Logos, 1956.

SARACEVIC, Tefko. Ciência da informação: origem, evolução e relações. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p .41-62, 1996.

SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-portuguez: etymologico, prosódico, geographico, mythologico, biographico, etc. 2. ed. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1924.

SCHELLER, I. J. G. Lexicon totius latinitatis: a dictionary of the latin language. Revised and translated into English by J. E. Riddle, M.A. Oxford: University Press, 1835.

SCHRADER, Alvim M. Toward a theory of library and information science. Bloomington, IN: UMI Dissertation Information Service, Indiana University, 1983.

TALJA, Sanna, TUOMINEN, Kimmo; SAVOLAINEN, Reijo. ‘Isms’ in information science: constructivism, collectivism and constructionism. Journal of Documentation, v. 61, n. 1, p. 79-101, 2005.

TENÓRIO, Robinson Moreira. Cérebro e computadores: complementaridade analógico-digital na informática e na educação. São Paulo: Escrituras, 2003.

Page 226: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 226

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

DOCUMENTO “SENSÍVEL” E INFORMAÇÃO (IN)ACESSÍVEL?

Icléia Thiesen

Resumo: A existência de fontes de informação para a pesquisa científica é fundamental para o avanço do conhecimento. O documento enquanto material da memória coletiva e da história constitui matéria-prima dos pesquisadores, razão pela qual encontra lugar de destaque nos estudos acadêmicos, mas também no imaginário social. Objeto de estudo de várias disciplinas, sobretudo da Arquivística, da Diplomática e, mais recentemente, da Ciência da Informação, o documento primário ou documento de arquivo não é mero portador de informações e, em suas relações com a sociedade, possui uma materialidade que o reinscreve no processo de construção da ciência, gerando fatos e representações. Este trabalho visa caracterizar e discutir a natureza dos chamados “documentos sensíveis” produzidos pela comunidade de informações, durante a ditadura de 1964-1985, bem como os conflitos gerados na luta pela abertura total dos arquivos responsáveis por sua guarda permanente, face aos diferentes interesses em jogo. Os resultados parciais da análise das condições de produção de tais documentos servem de alerta para a ilusão do real que esses “tesouros” suscitam, para em seguida se transformarem em “miragem”.

Palavras-chave: documento “sensível”; comunidade de informações; organização do conhecimento; memória e história.

Abstract: Information sources for scientific research are fundamental to the expansion/evolution of knowledge. The document - the element of collective memory and history ─ is the raw material of the researchers; that´s why it is prominent in academic studies and in the social imaginary. The primary document or file is object of study of various disciplines, especially Archives, Diplomatics and, more recently, the Information Science; besides being an information carrier, in its relationship with society, the document, by its materiality, is reinserted it in the process of building science, generating facts and representations. This paper aims to describe and discuss the nature of the “sensitive documents” produced by the “intelligence community” during the 1964-1985 Brazilian dictatorship, as well as the conflicts generated in the struggle for opening up the documents by those responsible for their permanent custody, due to so many interests at stake. Partial results of the analysis of the production conditions of such documents serve as a warning to the illusion that these “treasures” raise; an illusion that becomes a “mirage.”

Key-words: “sensitive documents”; intelligence community; knowledge organization; memory and history.

Documento “sensível” e informação (in)acessível?

1 Introdução O conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem

se encontra situado. É essa relação estratégica que vai definir o efeito de

Page 227: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 227

conhecimento e por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse em sua natureza obrigatoriamente parcial,

obliquo, perspectivo. (...) Pode-se falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha.

Michel Foucault

A teoria do conhecimento, em suas principais correntes - empirismo, racionalismo, idealismo, etc. - trata do fenômeno do conhecimento sob os prismas os mais diversos. Aqui interessa abordar os aspectos da natureza do conhecimento, o que nos remete à epistemologia. Muitos são os pensadores que trataram do tema dentro da história da ciência e de seus campos fronteiriços, mas objetivamos no horizonte deste estudo a “modalidade de investigação na qual o conhecimento examina a si mesmo”, vale dizer, a epistemologia ou o conhecimento do conhecimento. (OLIVA: 2011, p.14)

No presente trabalho levantaremos a questão do conhecimento científico construído a partir de fontes primárias para a indagação acerca da natureza da informação extraída de documentos com vistas aos trabalhos da memória e da história. Seria possível identificar padrões de registro documental que configurassem comunidades de sentido (BACZKO: 1984)? Como se constroem os processos de apropriação da informação e como se instituem no âmbito da sociedade? Na esteira desses processos como a materialidade do documento marca o imaginário social nas relações de força?

Pensar sobre a natureza da informação e do documento que dá sustentação à construção do conhecimento tornou-se uma questão premente da Ciência da Informação, campo do conhecimento que tem suas origens e suas bases sustentadas pelas experiências do conhecer acumuladas no fio da história pela Bibliografia, Documentação, Biblioteconomia, Comunicação, Organização do Conhecimento, mais recentemente aproximando-se da Museologia, da Arquivística e da Diplomática, entre outras áreas afins às chamadas Ciências Sociais Aplicadas, sem esquecer os estudos da Memória Social e da História, tendência mundial das pesquisas informacionais preocupadas com aspectos históricos e epistemológicos do campo de estudos da Ciência da Informação. Diálogos interdisciplinares indicam algum nível de independência entre si, mas também que há fronteiras teóricas e metodológicas a serem demarcadas.

Este trabalho visa contribuir para essas reflexões trazendo para o centro das discussões a especificidade dos documentos primários ou de primeira mão, os chamados documentos de arquivo54, particularmente documentos “sensíveis” produzidos durante o período da Ditadura militar no Brasil (1964-1985)55. Qual a natureza desses documentos?

Sabemos que o documento encontra-se nas bases históricas e epistemológicas da Ciência

54 Trataremos como sinônimos os documentos primários, também conhecidos como documentos de arquivo, para caracterizar os que “apresentam uma informação original, ou seja, lida ou vista pelo leitor no estado em que o autor a escreveu ou concebeu”. (BOULOGNE: 2005, p.85) Trata-se, ainda, segundo a ABNT, NBR 9578, de documento que, “produzido ou recebido por uma instituição pública ou privada, no exercício de suas atividades, constitua elemento de prova ou de informação”. 55 Trata-se de “documentos produzidos ao longo do tempo, de caráter histórico ou permanente, cujo conteúdo informacional contém segredos de Estado e/ou expressam polêmicas e contradições envolvendo personagens da vida pública ou seus descendentes”. (THIESEN; PIMENTA: 2011, p. 231) Rodrigues explica que a noção de “arquivos sensíveis” remete, conforme Pierre Nora, à memória e à história. O historiador assinala “uma tensão entre dois tipos de memória (histórica e vivida)”. (RODRIGUES: 2007, p.139)

Page 228: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 228

da Informação. Enquanto material da memória coletiva e da história seu papel nos estudos contemporâneos é incontestável, apesar das diferentes concepções teóricas que o definem ora como suporte de informação a ser comunicada, ora como superfície de inscrição de traços e signos, entre outras. Contudo, é importante ressaltar que o documento, enquanto fonte, ganha especificidades apenas quando responde a questões formuladas pelo pesquisador sobre sua natureza, seu contexto de produção, sua intencionalidade (THIESEN; PIMENTA: 2011, p. 229).

Por outro lado, interessa também aos propósitos deste estudo enfocar a problemática do documento no horizonte da Organização do Conhecimento, enquanto campo de pesquisa amplo e interdisciplinar, dedicado aos fundamentos científicos que norteiam “os processos de organização do conhecimento, assim como os sistemas de organização do conhecimento usados para organizar documentos, representações de documentos, trabalhos e conceitos” (HJØRLAND: 2008, p.86).

Ao discutir os fundamentos da Organização do Conhecimento, em outro trabalho, o mesmo autor chama a atenção para o processamento da informação na divisão social do trabalho, vale dizer, para o “papel especial dos profissionais de informação no estudo ou manipulação da informação” (HJØRLAND: 2003, p. 92). O que representa um documento não publicado para um bibliotecário ou cientista da informação e para um historiador, já que este último considera esse tipo de documento como básico para suas pesquisas? De que maneira o profissional arquivista utiliza as ferramentas teórico-metodológicas do seu campo para lidar com seu objeto de estudo, vale dizer, o documento?

Sabe-se que a informação registrada e institucionalizada constitui insumo fundamental para a construção do conhecimento, tanto no contexto da Ciência da Informação, quanto no âmbito das demais Ciências Sociais e Humanas. Entretanto, cabe à primeira desenvolver quadro referencial teórico e procedimentos metodológicos interdisciplinares no processo de produção e organização da informação, especialmente no que se refere à análise, representação e recuperação do conteúdo informacional de documentos custodiados por instituições-memória. Em suas dimensões teórica e aplicada, a organização da informação é fundamental para a construção do conhecimento científico e, por via de consequência, para a história das ciências.

Trata-se de antigas discussões que retornam de tempos em tempos já que questões pertinentes à organização e recuperação da informação, segundo HJØRLAND, não foram resolvidas nem mesmo com o apoio das tecnologias de rede implementadas desde a década de 1990. A problemática ultrapassa aspectos técnicos e demanda mais pesquisas sobre como as pessoas pensam e buscam informação e sobretudo como esta se encontra organizada. Abordagens histórica, cultural e social do conhecimento vêm se impondo como uma tendência das pesquisas em Organização do conhecimento, em diálogos frutíferos com a História, a Epistemologia, a Filosofia da Ciência, etc. Dando especial ênfase aos documentos e aos usuários, Souza recupera parâmetros básicos de análise da informação, ou seja,

Natureza da Informação (o que);Recuperação da Informação (para que);Tratamento e Processamento da Informação (como);

Page 229: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 229

O papel social da informação (contexto de uso). (SOUZA: 2007, p.118)

Contudo, problemas de recuperação da informação não são exclusivos no que se refere aos propósitos que norteiam este estudo. Nosso foco está centrado prioritariamente – mas não exclusivamente – nas condições de produção dos documentos que viram a luz do dia no contexto histórico da Ditadura militar de 1964. Onde se encontra essa especificidade que precisa ser elucidada? Nosso campo empírico de análise diz respeito aos chamados “arquivos da repressão”56. Objeto de disputas políticas e jogos de poder esses arquivos guardam documentos com informações de interesse público e privado, social e institucional, razão pela qual compreender como foram produzidos e em quais condições torna-se fundamental.

Tarefa urgente a ser realizada, no momento em que se discute na sociedade brasileira a mudança na legislação de acesso aos arquivos da repressão, no âmbito da terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) cujo Eixo Orientador VI diz respeito ao Direito à Memória e à Verdade. A criação de uma Comissão Nacional da Verdade ainda não se efetivou no Brasil, sofrendo diversos entraves de setores a quem não interessa recompor o passado recente do país e, por via de consequência, promover a reconciliação nacional. O dilema atual se apresenta entre o direito à memória e a vontade de esquecimento (THIESEN: 2011). Sabemos que o silêncio não significa esquecimento, mas a impossibilidade temporária de inscrição de experiências na memória coletiva e, na sua forma mais aprimorada, a memória nacional (POLLAK: 1989). Problematizar a natureza dos chamados “documentos sensíveis” é o objetivo central deste trabalho. Os procedimentos teórico-metodológicos constituem a crítica às fontes selecionadas e sua confrontação com o referencial teórico da Ciência da Informação, disciplina que tem as questões documentais como sua marca de batismo.

2 Tesouros e miragens: escritas do EstadoEm pesquisas anteriores57 detectamos singularidades que dizem respeito à natureza dos

documentos produzidos nesse período da História do Brasil contemporâneo. Aqui está o cerne da questão que aponta para os cuidados da análise documentária. Poderíamos utilizar metáforas para a

56 Os “arquivos da repressão” ou “da Ditadura” são os que foram produzidos pelos órgãos da repressão, ou seja, pelas polícias políticas, bem como pelos organismos criados com a função de repressão, como os centros de informação do Exército (CIE), da Aeronáutica (CISE) e da Marinha (CENIMAR), além dos DOI-CODIs Destacamentos de Operações de Informações-Centros de Operações de Defesa Interna que existiam em alguns estados (COSTA, 2004). 57 No projeto de pesquisa « Imagens da clausura: informação, memória e espaço prisional no Rio de Janeiro », desenvolvido no Departamento de História da UNIRIO (2003-2011), verificamos a existência de um sistema de informações de natureza jurídica e caráter identificatório, com valor de inteligência, configurado no século XIX, na corte imperial do Brasil. No âmbito dessa pesquisa, em sua última etapa, enfocamos a experiência prisional no período da chamada Ditadura civil-.militar de 1964-1985. A pesquisa foi encerrada com a recente publicação “Imagens da clausura na Ditadura de 1964: informação, memória e história”, editada pela 7Letras. Paralelamente, em estágio de pós-doutoramento no LERASS (Laboratoire d’Études et de Recherches Appliquées en Sciences Sociales) da Université Paul Sabatier, Toulouse 3, em 2008-2009, sob a orientação de Viviane Couzinet, estudamos elementos da pré-história da Ciência da Informação, de onde nasceu a concepção de Inteligência Informacional, o que nos permitiu verificar a sua existência já bastante aprimorada no período da Ditadura de 1964. Demos prosseguimento a esses “achados”, verticalizando tais problemáticas no projeto “A informação na pré-história da Ciência da Informação: pré-conceito, natureza, episteme” (THIESEN: 2009-2012), em fase final e com apoio do CNPq (PQ-2).

Page 230: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 230

definição de nossa problemática e hipóteses preliminares – o tesouro e a sua miragem. Em levantamento realizado no sentido de conhecer e analisar os referidos arquivos, verificamos a existência de verdadeiro “tesouro” sobre a experiência histórica do período mencionado. Ao examinarmos alguns documentos que constituem fontes de pesquisa para diversos campos do conhecimento, entre os quais o da Ciência da Informação, constatamos que, diferentemente do que é divulgado na imprensa, há uma grande quantidade de documentos e arquivos da repressão recolhidos e custodiados por arquivos públicos estaduais, mas especialmente pelo Arquivo Nacional (APÊNDICE I)58. Entretanto, estes “tesouros” podem ser verdadeiras “miragens”, para usar expressão a que Étienne François se refere em seu estudo59.

Isso porque, não se conhecendo suas condições de produção, assim como seu ciclo vital, poderíamos tomar essas fontes como a expressão dos fatos e acontecimentos que marcaram a história recente do país. Mas, não é disso que se trata. Mentiras, meias-verdades e verdades estão depositadas nesses arquivos (THIESEN; PIMENTA: 2011). O documento possui uma materialidade que o reinscreve no processo de construção da ciência, gerando fatos e representações (FROHMANN: 2011). Contudo, entre os fatos e as representações que eles expressam e suscitam, pode se estabelecer um fosso e muitas armadilhas. Há processos de produção, contextos sociopolíticos e dispositivos institucionais que definem a formação dos arquivos acumulados nas atividades administrativas em questão. Se a informação é um “conceito contextual” (MAHLER apud CAPURRO; HJØRLAND: 2007, p.163), se “é aquilo que é capaz de produzir conhecimento e uma vez que o conhecimento requer verdade, a informação também a requer” (DRETZKE apud CAPURRO; HJØRLAND: 2007, p.170), então a equação deve incluir a verdade, que poderia ser definida, no âmbito dessa temática, como “aquilo que não pode ser mudado”. Como chegar a ela?

Além das dificuldades de acesso, do excesso de documentos depositados nos arquivos, da ausência de arquivos tidos como desaparecidos/destruídos, há, ainda, outras lacunas constituídas de forma intencional ou não. Henri Rousso lembra que todos os arquivistas sabem que “perto de nove décimos dos documentos são destruídos para um décimo conservado” (ROUSSO: 1996, p.90). Como discernir tudo isso? Com quais ferramentas teórico-metodológicas? Para que possamos responder tais indagações, torna-se imprescindível conhecer os processos e o contexto de produção dos referidos documentos. Este é o ponto de intersecção dessas ideias com nova proposta de pesquisa em fase de definição.

58 Conforme pode ser verificado no Quadro Instituições, Acervos, Localização e Acesso (Apêndice I), os arquivos do CIE (Centro de Informações do Exército) e do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha) nunca foram localizados. Na realidade, a questão que hoje se coloca diz respeito ao acesso a esses documentos, condicionado a exigências da legislação de arquivos em vigor. O PLC-41/10, em tramitação no Senado, prevê mudanças quanto ao caráter sigiloso dos arquivos e, entre outras alterações, acaba com a renovação indefinida da classificação de documentos (ultrassecretos, secretos, etc.). Ver Legislação Arquivística Brasileira, CONARQ, Arquivo Nacional. (http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm) 59 Ao defrontar-se com a abertura dos arquivos da STASI, a temível polícia política dos tempos da Guerra Fria na Alemanha, percebeu as contradições existentes entre a quantidade de documentos ali depositados e as inúmeras armadilhas que eles suscitam. FRANÇOIS, Étienne. Os “tesouros” da STASI ou a miragem dos arquivos. In: JULIA, Dominique; BOUTIER, Jean. Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1998.

Page 231: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 231

Um novo desafio que vem ao encontro de preocupações de muitas nações. Por ocasião da 36ª. Conferência Internacional da Mesa Redonda de Arquivos (CITRA), ocorrida em Marselha, em 2002, os diretores de arquivos nacionais ali presentes declararam que “os arquivos estão no coração da sociedade da informação”. Com a finalidade de assegurar a preservação e o acesso aos arquivos, encaminharam diversas resoluções, entre as quais a que “convida os governos dos países em transição democrática a se engajarem ou a perseguirem ativamente o processo de liberação do acesso aos arquivos”. Mais adiante, eles recomendam à UNESCO e ao Conselho Internacional de Arquivos (CIA), a elaboração de um programa de identificação e de salvaguarda dos arquivos policiais na América Latina.

Analisar o circuito informacional nos processos de produção e apropriação da informação por setores da sociedade, assim como as instituições que integraram o regime e produziram informações sobre ele, poderá contribuir para a história do passado recente ainda encoberta pelas batalhas da memória definidas por Michael Pollak como trabalho de enquadramento (POLLAK: 1989; THIESEN & PIMENTA: 2011). Outras mediações são necessárias, no contexto desta proposta, no sentido de contribuir para elucidar os dispositivos institucionais ou regimes de verdade que marcaram a origem e o ciclo desses documentos e para que, dentro do campo de possibilidades, se dissipem as “miragens”. Étienne François nos lembra que “nada é mais enganador que a aparência da evidência” (1998, p. 158). É relevante saber o que o regime dizia de si mesmo mas, especialmente, o que não dizia.

A oportunidade da presente pesquisa poderá constituir uma contribuição para a análise dos aspectos teóricos e metodológicos que definem o estatuto desses documentos desde a sua gênese, examinando-se não apenas as suas características orgânico-funcionais e exógenas, mas detendo-se na “análise qualitativa em que se insere a interpretação/explicitação e a formulação de hipóteses/teorias” RIBEIRO apud RODRIGUES: 2009, p.5), no sentido de entender sua natureza e produzir conhecimento sobre o conceito de documento em questão.

Com base na teoria das três idades, sistematizada pelos norte-americanos na década de 1970, é necessário o conhecimento sobre o ciclo de vida desses documentos, que corresponde ao seu uso, em suas fases corrente, intermediária e permanente ou histórica. Em cada uma de suas “idades” fica estabelecido seu percurso de tramitação, objetivo, temporalidade, guarda e uso. Na primeira fase sua responsabilidade se deve aos seus produtores. Antes de atingirem a idade permanente ou histórica, tais documentos passam por uma fase intermediária, ainda sendo utilizados por seus produtores. Já na ultima fase, quando atingem o valor histórico, passam à responsabilidade das instituições arquivísticas. Tais procedimentos passam por definições prévias constantes de tabelas de temporalidade que determinam o recolhimento dos documentos, passando pelo trabalho de arranjo e descrição. Diversas mediações ocorrem nesse processo. No caso dos arquivos das polícias políticas como isso ocorreu?

É importante identificar, no interesse desta pesquisa, como se deu o processo de passagem dos documentos de uma idade para outra até alcançarem o status de “fundo”. Outro aspecto a ser analisado é o fluxo dos documentos em sua fase corrente, quando eram produzidos pelas instituições

Page 232: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 232

que integravam o SISNI (Sistema Nacional de Informações e Contra-Informações), um imenso aparelho de vigilância constituído por 16 instituições. É fácil supor que a natureza dessas organizações determinava, em sua rígida hierarquia, um fluxo seletivo de documentos, cujo acesso se restringia ao alto escalão militar. Isso poderia explicar as lacunas existentes em tais arquivos. O desaparecimento dos arquivos do CIE e do CENIMAR permanece misterioso até hoje.

Contudo, o cruzamento de fontes analisadas nos dá algumas pistas nesse sentido. Em “Perdão, Mister Fiel”, por exemplo, documentário premiado em 2009, um ex-agente de informação a serviço do regime militar, conta em detalhes o modus operandi da polícia política para a extração forçada de confissões, assim como os crimes cometidos diuturnamente nos centros de tortura, como os DOI-CODI. Entre uma frase e outra afirma que, ao término do último governo militar, foi convocado para destruir documentos e arquivos, embora não afirme se cumpriu ou não as ordens superiores60.

Outra prática desses agentes do Estado era a de publicar matérias em jornais da grande imprensa sobre mortes de pessoas que ainda estavam vivas. Um dos casos mais emblemáticos – entre inúmeros outros – diz respeito a Eduardo Collen Leite (1945-1970), conhecido também por Bacuri. Retirado da carceragem do DEOPS (SP) pelo delegado de plantão, para que ficasse longe do olhar dos demais presos, Eduardo foi levado mais tarde ao Forte dos Andradas, no Guarujá, onde foi executado. A noticia de sua morte foi transmitida à imprensa pela polícia política: “ofereceu tenaz resistência a tiros” (GASPARI apud Relatório Direito à Memória e à Verdade, p.139). Consta, ainda, que ele viu a manchete de sua própria morte ainda com vida (TIERRA: 1998)61. A verdadeira causa de sua morte somente foi esclarecida após a abertura dos arquivos do DOPS de Pernambuco, muitos anos depois, quando “se comprovou a falsidade de sua suposta fuga” (Relatório, p.139).

Trata-se, no caso, de documentos supostamente “autênticos” produzidos, desde a origem, com a intenção de inculpar militantes que participavam ou eram acusados de participar da resistência ao regime militar, cujas prisões eram realizadas sem respaldo legal e, por essa e outras razões demandavam justificativas documentadas. Eram documentos fabricados sob a chancela do Estado e, até que fossem cotejados com testemunhos e outros documentos da mesma natureza, assumiam a expressão da verdade. É a conhecida “escrita do Estado”, assinalada por Chartier (1993) e analisada por Jardim (1999, p.45), embora os autores se refiram a outros períodos e episódios da História.

Em pesquisas antes realizadas e/ou na literatura memorialística publicada, confirma-se que parte considerável dos prontuários produzidos por esses organismos e hoje existentes nos fundos das policias políticas de instituições arquivísticas compreende informações incriminatórias produzidas

60 OLIVEIRA, Jorge. Perdão, Mister Fiel. 95min., JCV Produções, 2009. O título do documentário se refere a Manuel Fiel Filho, operário metalúrgico morto sob tortura, no DOI-CODI de São Paulo, em 1976, após assinar uma confissão de que era comunista. O mesmo fato havia ocorrido com o jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto três meses antes. Ambos foram fotografados e a divulgação das respectivas mortes fez constar que se deu por “suicídio”. Todos os documentos não correspondiam aos fatos. A repercussão desses crimes, como se sabe, provocou a demissão do Comandante do II Exército e do Chefe do CIE, sabidamente contrários à abertura política que se iniciava. Diversas testemunhas presenciaram tais atos que se repetiam sistematicamente em todas as prisões. 61 Tierra, Pedro. Os arquivos da repressão: do recolhimento ao acesso. Apresentação. Quadrilátero – Revista do Arquivo Público do Distrito Federal, Brasília, v.1, n.1, p.1-130, mar./agosto 1998.

Page 233: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 233

em sessões de tortura sistemática, típicas de regimes de exceção e de ações de inteligência, com valor jurídico e identificatório. Parte considerável dessa documentação instruía processos que tramitavam na justiça militar, especialmente os que atingiam a esfera do Superior Tribunal Militar. Esses documentos, assim como as informações que veiculam e nele se encontram materializadas, não podem, portanto, ser validados sem que haja tratamento analítico que preceda seu uso público.

3 Considerações finais

Os registros informacionais realizados por agentes do Estado, como vimos, possuem o caráter justificador do regime, na medida em que se tratava de construir provas mediante métodos de constrangimento, entre os quais, a tortura. Carregam, por essa razão, a marca da suspeita, suscitando consequências desastrosas para os que se encontram retratados e representados nesses documentos e sofreram as penalidades que lhes foram impostas à época. Hoje, além dos prejuízos computados em períodos de clausura, tortura e mortes, muitos dos sobreviventes enfrentam outro tipo de prisão – a presentificação ritualizada de um passado que não passa.

Entretanto, as implicações sociais extrapolam os limites dos acontecimentos contemporâneos a essa produção documental. Do ponto de vista da informação, da memória e da história, é preciso que os processos de identificação dos fundos arquivísticos considerem seu contexto de produção e a intencionalidade que lhes era pressuposta. Isso requer o conhecimento não apenas do funcionamento do regime e das instituições que lhe deram suporte, mas do ciclo informacional dessa documentação, sua natureza, sua produção, seu uso e sua apropriação. Numa palavra, recontextualizar a produção documental é uma estratégia de pesquisa central para a organização do conhecimento, mas também para a sua confrontação com o referencial teórico da Ciência da Informação.

As ideias esboçadas neste trabalho encontram-se na bifurcação de duas pesquisas, uma em vias de finalização e outra buscando verticalizar o tema utilizando tais documentos sensíveis como corpus de pesquisa. Dessa forma, considerando-se o conhecimento restrito sobre esse tema, pensamos em contribuir para a produção de conhecimento sobre a especificidade dos documentos “sensíveis”, com seus atributos, suas contradições, suas lacunas, mas especialmente as implicações que representam quando manuseados enquanto fontes de informação para a pesquisa.

4 ReferênciasAGAMBEN, Giorgio. Qu’est-ce qu’un dispositif ? Traduit de l’italien par Martin Rueff. Paris : Éditions Payot & Rivages, 2007.AMADO, Janaína ; FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux: mémoire et espoirs collectifs. Paris : Payot, 1984.BOULOGNE, A. (dir.). Vocabulaire de la documentation. Paris : ADBS Éditions, 2005.

Page 234: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 234

CAPURRO, Rafael; HJORLAND, Birger. O conceito de informação. Perspectivas em Ciência da Informação, v.12, n.1, p. 148-207, 2007, Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pci/v12n1/11.pdf Acesso em 08 out. 2010.CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.CORTINA, Arnaldo. O príncipe de Maquiavel e seus leitores : uma investigação sobre o processo de leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.COSTA, Célia. Acervos e repressão. In : SEMINÁRIO 40 ANOS DO GOLPE DE 1964. 1964-2004. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. FAJARDO, Sinara Porto. Espionagem política: instituições e processo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1993. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Sociologia). FOUCAULT, Michel. La vérité et les formes juridiques. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François (dirs.). Dits et écrits: 1954-1988, tome II, p.538-646. FRANÇOiS, Étienne. Os “tesouros” da STASI ou a miragem dos arquivos. In: JULIA, Dominique; BOUTIER, Jean. Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1998. FROHMANN, Bernd. Reference, representation, and the materiality of documents. In: COLLOQUE SCIENTIFIQUE INTERNATIONAL DU RÉSEAU MUSSI, II, 2011, Toulouse – FRANCE. Actes... Toulouse, Université Paul Sabatier, 2011.GONZALEZ DE GOMEZ, Maria Nelida. A pesquisa em Ciência da Informação: da epistemologia institucional à política do conhecimento. In: WORKSHOP EM CIENCIA DA INFORMAÇÃO: POLITICAS E ESTRATEGIAS DE PESQUISA E ENSINO NA PÓS-GRADUAÇÃO. Anais… Niterói: UFF, 12-12 de novembro de 2004. P.113-125. HJØRLAND, Birger. Fundamentals of Knowledge Organization. Knowl. Org., 30 (2003), n.2, p.87-111. HJØRLAND, Birger. What is Knowledge Organization (KO)? Knowl. Org., 35 (2008), n.2/3, p.86-101. ISHAQ, Vivian; FRANCO, Pablo E. Os acervos dos órgãos federais de segurança e informações do regime militar no Arquivo Nacional. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, n.2, p. 29-42, jul./dez.2008. JARDIM, José Maria. Transparência e opacidade do estado no Brasil: usos e desusos da informação governamental. Niterói: EdUFF, 1999.LOPEZ-COZAR, Emilio Delgado. La investigación em biblioteconomia y documentación. España: Ediciones TREA, S.L., 2002. OLIVA, Alberto. Teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.3, 1989.BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. 500p. RODRIGUES, Ana Célia. Diplomática contemporânea como fundamento metodológico da identificação de tipologia documental em arquivos. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, X, 2009, João Pessoa – PB. Anais... João Pessoa: UFPB, 2009.RODRIGUES, Georgete Medleg. Arquivos, anistia politica e justiça de transição no Brasil: onde os

Page 235: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 235

nexos? Revista anistia politica e justiça de transição, v. 1, p. 136-151, 2009.ROTTA, Vera. Comissão especial e mortos e desaparecidos políticos. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, n.2, p.193-200, jul./dez. 2008.SHERA, Jesse. Epistemologia social, semântica geral e biblioteconomia. Ci. Inf., Rio de Janeiro, 6(1): 9-12, 1977.SILVA, Jaime Antunes da. O Centro de Referências das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985): Memórias Reveladas. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, n.2, p.13-28, jul./dez. 2008.SOUZA, Rosali Fernandez de. Organização do conhecimento. In: TOUTAIN, Lidia M.B. Brandão (org.). Para entender a Ciência da Informação. Salvador: EDUFBA, 2007. SPINOLA, Cláudia; Silva, Ive. A preservação de documentos do DOPS no APERJ. Acervo, Rio de Janeiro, v.23, n.2, p. 115-124, jul./dez. 2010. THIESEN, Icléia. Inteligência informacional: revisitando a informação na história. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, IX, 2008, São Paulo – SP. Anais... São Paulo: USP, 2008.THIESEN, Icléia. A informação na pré-história da Ciência da Informação: pré-conceito, natureza, episteme. Projeto de pesquisa. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2009-2012.THIESEN, Icléia. Inteligência informacional e Ciência da Informação: um esboço de trajeto. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, XI, 2010, Rio de Janeiro – RJ. Anais... Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010.THIESEN, Icléia; PIMENTA, Ricardo Medeiros. Informação, arquivo e memória: os documentos da ditadura militar no contexto da redemocratização no Brasil. In: COLLOQUE SCIENTIFIQUE INTERNATIONAL DU RÉSEAU MUSSI, II, 2011, Toulouse – FRANCE. Actes... Toulouse, Université Paul Sabatier, 2011. THIESEN, Icléia. Inteligência informacional : dialogando com a informação, a memória e a história. In: THIESEN, Icléia (org.). Imagens da clausura na Ditadura de 1964: informação, memória e história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. 243p.

VEYNE, Paul. Foucault, sa pensée, sa personne. Paris: Éditions Albin Michel, 2008.

APÊNDICE IInstituições, Arquivos, Localização e Acesso

SIGLA INSTITUIÇÃO CRIAÇÃO ELEGISLAÇÃO FUNÇÕES ACERVOS, ARQUIVOS E

LOCALIZAÇÃO ACESSO

SISNI

Sistema Nacional de Informações e Contra-Informações. Sistema de Espionagem

Composto por 16 orgãos especializados, sendo o SNI seu órgão central.

Ver acervos dos 16 orgãos do Sistema, alguns dos quais aqui mencionados.1

___

SNI Serviço Nacional de Informações

Decreto-lei n. 4341, de 13.06.1964

Órgão central do SISNI

COREG Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal. Contém cerca de 220 mil microfichas e outros documentos do período de 1964 a 1990. 2*

Aberto. Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

Page 236: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 236

SNI/CADA Cadastro Nacional Banco de dados produzido pelo SNI

308.000 prontuários com a identificação e qualificação de cidadãos brasileiros e estrangeiros, empresas privadas e instituições.

COREG

Aberto.Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

CSN Conselho de Segurança Nacional

Criado pelo artigo 162 da Constituição de 1937, foi recriado com outras funções pelo Decreto-lei n. 900, de 29.09.1969.

Assessoramento direto ao Presidente da República

COREG - Contém 90 metros lineares de documentos - processos sobre cassações de direitos políticos e mandatos eletivos, fichas e pastas individuais (1964 a 1980)

Aberto. Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN

DSIs

Divisões de Segurança e Informações, em diversos Ministérios. Orgãos complementares do CSN até 1970. A partir de então estão ligadas ao SNI.

Decreto-lei n. 60.940, de 04.07.1967; Decreto n. 67.325, de 02.10.1970.

Combate à corrupção. Faziam investigações de funcionários, entidades e pessoas que mantinham relações profissionais com os órgãos públicos.

COREGHá 22.164 dossiês

Aberto.Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

CGI

Comissão Geral de Investigações (Ministério da Justiça)

Decreto n. 53.897, de 27.04.1964

Promover investigações sumárias para o confisco de bens.

COREGProcessos de investigação (1964-1979), totalizando 264 metros lineares de documentos.

Aberto.Consultar acervos órgãos dos governos militares no AN.

ASI, AESI

Assessorias de Segurança e Informações criadas nos ministérios civis; Assessorias Especiais de Segurança e Informações.

Decreto n. 75.640, de 22.04.1975.

Produção de informações nos ministérios civis, organismos e empresas federais.

Acervos de alguns órgãos estão sob a custódia do Arquivo Nacional que identificou no fundo SNI “6.987 dossiês e a existência de 249 DSI ou ASI específicas”.

Aberto.Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

SISSEGIN Sistema de Segurança Interna

Criado com a institucionalização da OBAN, através de diretrizes para uma política de segurança interna, em janeiro de 1970.

Promover a segurança interna, através da criação, em cada comando militar de área, de órgãos como CONDI, CODI E DOI.

Ver CODI-DOI ___

Page 237: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 237

CODI-DOI

Centro de Operações de Defesa Interna – Destacamento de Operações de Informações (desdobramento da Operação Bandeirantes - OBAN/SP, criada em 01.07.1969)

Criados em 1970 os do RJ (I Exército), do II Exército (SP), do IV Exército (Recife), e do Comando Militar do Planalto (DF). Em 1971 criados os da 5ª Região (Curitiba), da 4ª Divisão do Exército (BH), da 6ª Região (Salvador), da 8ª Região Militar (Belém), da 10ª Região Militar (Fortaleza). Em 1974 a DCI de Porto Alegre é substituída pelo CODI-DOI do III Exército.

Os CODI eram órgãos de planejamento e coordenação de defesa interna e os DOI efetuavam investigações, prisões, interrogatórios e torturas.

Arquivos Públicos estaduais Consultar os respectivos Arquivos.

DOPS

Delegacias/departamentos de Ordem Política e Social, vinculadas às secretarias estaduais de segurança

Diversas leis Polícias políticas nos estados

Arquivos públicos estaduais (RJ, SP, MG, PR, ES, CE, GO, RS (Centro de Tradições Gaúchas)

Ver Arquivos Públicos Estaduais e condições de acesso.

CIE

Centro de Informações do Exército, subordinado ao respectivo Ministro e esse ao CODI.

20.05.1970 tem inicio as suas operações.

Produção de informações, executava também operações de segurança

Não se conhece o paradeiro dos arquivos ___

CENIMAR

Centro de Informações da Marinha (existia desde 1955 como Serviço de Informação da Marinha)

Reformulado pelo Decreto 68.447, de 30.03.1971

Produção de informações, executava também operações de segurança

Não se conhece o paradeiro dos arquivos ___

CISA

Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica

Decreto n. 66.608, de 20.05.1970

Produção de informações, executava também operações de segurança

COREG

Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

CDI/DPFDivisão de Inteligência da Polícia Federal

____

Investigava lideres comunistas, “atividades subversivas”, “congressos de terroristas”, movimento estudantil etc.

COREG

AbertoConsultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

DCDP do DPFDivisão de Censura de Diversões Públicas

____

Existente antes do Golpe, assume funções de censura política

“Contém processos sobre peças teatrais, filmes, letras de músicas, novelas (...) no período de 1960 a extinção da DCDP, em 1988” (ISHAQ; FRANCO, 2008)

Aberto.Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

Page 238: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 238

CIEX

Centro de Informações do Exterior (Ministério das Relações Exteriores)

Não há legislação própria

Monitoramento de brasileiros exilados pelos governos militares. Informações destinadas ao SNI, CIE, CISA, CENIMAR.

COREG Contem cerca de 8.000 documentos (1966-1985). Originalmente parte do acervo da DSI do Ministério das Relações Exteriores, passou a constituir novo fundo no AN.

Aberto a consulta.Ver Portal do AN.

ASI, AESI

Assessorias de Segurança e Informações criadas nos ministérios civis

Produção de informações nos ministérios civis, organismos e empresas federais.

Acervos de alguns órgãos do sistema estão sob a custódia do Arquivo Nacional.

Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

___ ___ ___ ___

Coleção Brasil Nunca Mais (1964-1979) – Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP. Contém cópia de 700 processos de presos políticos reproduzidos dos arquivos do STM e do STF.

Aberto a consulta e reprodução

___

CEMDPComissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, hoje vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Lei n. 9.140, de 04.12.1995 “Reconhecer

formalmente caso a caso, aprovar a reparação indenizatória e buscar a localização dos restos mortais que nunca foram entregues para sepultamento”.3

COREGDocumentos oriundos dos acervos recolhidos pelo Arquivo Nacional sobre mortos e desaparecidos políticos, entregues à CEMDP, para o cumprimento de seus objetivos, foram recolhidos ao AN em 06.08.2009. (ISHAQ; FRANCO: 2008)

Aberto a consultaConsultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

___ ___ ___ ___

COREGAcervo constituído de cerca de mil folhas de documentos que estiveram sob a guarda da jornalista e pesquisada brasiliense Taís Morais sobre a Guerrilha do Araguaia. (SILVA: 2008)

Aberto a consulta Consultar acervos dos órgãos dos governos militares no Portal do AN.

___ ___ ___ ___

COREGReproduções digitais de documentos da Força Aérea incendiados na base aérea de Salvador, cujos originais estão sob a guarda do GTNM da Bahia. (SILVA:2008)

Aberto a consulta

Fonte : THIESEN, Icléia. Inteligência informacional : dialogando com a informação, a memória e a história. In: __. Imagens da clausura na ditadura de 1964: informação, memória e história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

(Footnotes)1 SNI; DSIs; ASIs; segundas seções do EMFA (Estado Maior das Forças Armadas), denominadas F2; do Exército, E2; da Marinha, M2; da Aeronáutica, A2; dos 3 ministérios militares, S2; CIE, CISA; Serviços Secretos da Polícia Federal; as DOPS e os Serviços Secretos das Polícias Militares, P2; os CODI-DOIs. In: Portal do Acervo da Luta Contra a

Page 239: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 239

Ditadura, cuja Comissão “foi criada por ocasião das comemorações dos 20 anos da Anistia no Brasil através do Decreto n. 39.680, de 24 de agosto de 1999. Com o compromisso de recuperar a memória da luta pela democracia durante o período do regime militar e suas consequências para o Rio Grande do Sul, a Comissão está vinculada à Secretaria da Cultura através do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul”. A relação de órgãos acima listada e disponível nesse Portal é um fragmento de FAJARDO (1993). Disponível em: www.acervoditadura.gov.br. Acesso em 08.10.2010. * “... no conjunto do acervo do SNI, encontram-se 3.757 dossiês produzidos pelo Centro de Informações do Exército – CIE, 311 pelo Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica – CISA e 220 pelo Centro de Informações da Marinha – CENIMAR”. (ISHAQ; FRANCO: 2008, p.29)3 ROTTA, Vera. Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, n.2, p.193-200, jul./dez. 2008.

Page 240: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 240

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

AS DUAS CULTURAS E OS REFLEXOS NO MUNDO ATUAL NAS CIÊNCIAS E NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO62*

Valeria Gauz, Lena Vania Ribeiro Pinheiro

Resumo: Diferenças entre as Ciências Naturais e as Humanidades a partir da palestra de Charles Snow na University of Cambridge, em 1959, As Duas Culturas. Para esse cientista e escritor de Literatura, a industrialização se constituía em única solução para o avanço dos países menos favorecidos. O assunto já havia sido debatido nos Estados Unidos em outras oportunidades, sob a ótica dos modelos educacionais e seu impacto no progresso desse país, onde as Ciências desempenhariam papel importante, mas também as Artes, por formar hábitos de reflexão. Apesar do afastamento ocorrido dentro das próprias disciplinas das Ciências Naturais e entre estas e as Humanidades, também existem interseções entre as duas Ciências. Na História, por exemplo, as aproximações se manifestam por meio das práticas da produção científica. Pesquisa recente em Ciência da Informação, no Brasil, detectou que as comunicações de pesquisadores da área de História do Brasil Colonial apresentam aspectos que até a década de 1980 eram relacionados às investigações das Ciências Naturais, como a autoria múltipla em artigos, a participação em projetos colaborativos e o uso regular das tecnologias de informação e comunicação. As idéias de Snow são uma contribuição para a História da Ciência e a Ciência da Informação, ainda que as Ciências tenham passado por significativas transformações, com as aproximações epistêmicas da interdisciplinaridade.

Palavras-chave: Duas Culturas; Ciências e Humanidades; Ciência da Informação; Comunicação Científica; História; História da Ciência.

1 Introdução

O abismo entre as Ciências e as Humanidades pode ser conciliado por meio de um conhecimento profundo da poesia da Ciência e do caráter de revelação da verdade da Música, da Literatura e da Arte (Keith Ward, 2006 apud HANSON, 2009).

Duas Culturas é termo cunhado por Charles Snow para sua palestra na University of Cambridge, publicada no mesmo ano de 1959, cuja tradução brasileira data de 1995. A tônica de sua apresentação foram as diferenças entre as áreas das Ciências Naturais e das Humanidades. Em breves palavras, Snow condenava os literatos pela falta de familiaridade com a Segunda Lei da Termodinâmica - o

62 * Pesquisa originada da tese de doutorado História e Historiadores de Brasil Colonial, uso de livros raros digitalizados na Comunicação Científica e a produção do conhecimento, 1995-2009, defendida em junho 2011 no IBICT, Rio de Janeiro. Alguns parágrafos constam, aqui, na íntegra, com as devidas citações.

Page 241: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 241

equivalente científico a conhecer a obra de Shakespeare -, lamentando o abismo entre os intelectuais e os cientistas, assim como a “imagem distorcida” que um grupo tinha do outro. Desde então, muitas são as distinções possíveis entre as Ciências, embora cada vez mais se aproximem, desde o final do século XX.

A imagem de água e álcool, trazida por Meadows, reflete as disciplinas caracterizadas como hard e soft, a primeira significando conhecimento quantitativo e rigoroso, a segunda conhecimento flexível, divisão geralmente encontrada no ambiente acadêmico, no qual as Ciências Naturais e a Tecnologia estariam enquadradas como hard e as Humanidades como soft (e as Ciências Socias entre uma e outra). De fato, para o autor, todas as áreas apresentam aspectos hard e soft, de acordo como são tratadas. “A pesquisa, em geral, não se enquadra totalmente num ou noutro caso” (MEADOWS, 1999, p. 60).

As transformações das Ciências, em geral, intensificadas nos últimos anos, foram abordadas pelo pensador português Boaventura de Sousa Santos (2002, apud Pinheiro, 2008), na sua versão ampliada da “Oração da sapiência”, proferida na Universidade de Coimbra, há mais de 20 anos. Este autor considera “não só profunda como irreversível” a revolução científica iniciada com Einstein e a mecânica quântica, e a crise vivida na ciência, assim como as mudanças de paradigmas, numa “nova ordem científica” emergente [...]”, marcada pelas “condições teóricas e as condições sociológicas [...]” .

As Duas (ou múltiplas) Culturas, causas e consequências de sua existência são analisadas no presente texto, cuja abordagem histórica pretende lançar um olhar sobre as confluências entre as Ciências e, simultaneamente, as suas especificidades ou singularidades, além de examinar, ilustrativamente, uma pesquisa em Ciência da Informação que traduz esses padrões reveladores de comunicação e informação e sua evolução da áreea de História.

2 As Múltiplas Culturas

A expressão Duas Culturas sugere distância entre conhecimentos, como domínios paralelos, saberes sem interseção. Entretanto, pode haver – como pesquisas mais recentes demonstram cientificamente – mais pontos em comum entre as Ciências do que sugeriu a nossa vã filosofia até o século XX. Analogias e assimetrias estão presentes nas pesquisas sobre o tema.

Dentre as divergências entre as Duas Culturas, Meadows aponta a que se passa nas Humanidades e Ciências Sociais, nas quais é tênue o limite entre quem descreve um determinado acontecimento e o próprio acontecimento, ao contrário do que ocorre nas Ciências Naturais. Nestas Ciências, da mesma forma, quando há mudança de paradigma, os conceitos e conteúdos informacionais antigos não são mais empregados; nas Humanidades, tanto os paradigmas antigos quanto os novos coexistem (MEADOWS, 1999).

A alteridade existente entre Duas Culturas também é apontada por autores citados por

Page 242: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 242

Timmons (2007), como o ritmo por meio do qual cada cultura evolui (as Ciências [Naturais] mais rapidamente). Esse autor menciona as idéias de David Barash, professor de Psicologia da University of Washington, ao afirmar que

[...] o progresso nas Humanidades não ameaça a Ciência, mas quanto mais a Ciência avança, mais os humanistas parecem estar em risco; na medida em que a Ciência avança, a sabedoria requerida para lidar com seus resultados se torna sempre mais crítica para o nosso futuro (BARASH, 2005 apud TIMMONS, 2007, p. 21).

A verticalização do conhecimento no Ocidente, observada principalmente a partir do século XVIII, ocasionou certa “cisão” entre as Ciências (e entre estas e as Humanidades), aprofundada ao longo dos tempos e institucionalizada nas universidades, em especial após o século XIX, com a separação das disciplinas acadêmicas. Aspectos dessa cisão também aparecem a partir da visão de Snow, por meio das palavras do documentarista de cinema Salles (2010, p. [2]):

As características de cada grupo seriam bem peculiares. Enquanto artistas tenderiam ao pessimismo, cientistas seriam otimistas. Aos artistas, interessaria refletir sobre a precariedade da condição humana e sobre o drama do indivíduo no mundo. O interesse dos cientistas, por sua vez, seria decifrar os segredos do mundo natural e, se possível, fazer as coisas funcionarem. Como frequentemente obtinham sucesso, não viam nenhum despropósito na noção de progresso.

Comparações, similaridades e diferenças entre as Ciências são, na realidade, assuntos anteriores a Snow e temas de debate nos Estados Unidos. Thomas Jefferson, o terceiro presidente a governar os norte-americanos, de 1801 a 1809, trabalhou para construir um modelo de educação superior que contemplasse juristas, interesses da agricultura, manufaturas, comércio e pudesse, ao mesmo tempo, ampliar horizontes, cultivar os costumes e “ensinar Matemática e Física, as quais contribuem para o avanço das Artes e formar os hábitos de reflexão [�]” (TIMMONS, 2007, p. 9). Ao dividir a University of Virginia em dez grupos, cada um dirigido por um professor, de línguas antigas às Ciências, tornou a educação mais prática – e mais departamentalizada.

Em Yale College, em 1828, estudantes questionariam o sistema educacional, a fim de atender às necessidades de uma nação em vias de mercantilização, como a daquele país então. Disciplinas voltadas para a exploração dos recursos dos Estados Unidos e a diminuição do estudo de línguas mortas já ocupavam a pauta de discussão porém, nas palavras de Frederick Rudolph, em 1977 (apud TIMMONS, 2007), seria o ensino de literatura antiga para jovens estudantes o que os imbuiria dos princípios da liberdade, patriotismo, nobreza e generosidade. Assim, para os responsáveis pelo relatório de Yale College, um currículo único era o apropriado para a adequada educação dos alunos.

Embora a palestra de Snow sobre as Duas Culturas não apresente bibliografia, o autor cita que,

Page 243: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 243

antes de meados do século XIX, se fazia necessário o treinamento em Ciências (principalmente as Aplicadas) para a produção de riqueza. Timmons (2007, p. 16) relata que Snow, essencialmente, falou sobre as mesmas dificuldades reportadas no relatório de Yale de 1828, “mas que o conflito entre as Duas Culturas, que Snow tão desesperadamente alegou que deveria acabar, parecia não existir em 1828”. Igualmente, conforme nos traz Timmons, dois anos antes da palestra de Snow foi publicado comentário do então presidente da Harvard University, James Bryant Conant, aparentemente repetido por Snow, sobre a pouca preocupação com a inclusão da Ciência na educação inglesa e a falta de importância da elite literária com relação ao entendimento da Ciência (a não ser que fosse um cientista ou um engenheiro).

Conant salientou que não era comum para um cientista participar de uma discussão literária, mas que era impossível, a não ser para um cientista, participar de uma reunião científica. Além disso, Conant registrou que a principal diferença entre as duas culturas (embora não tenha utilizado esse termo) é que o mérito relativo das peças de Shakespeare tem sido debatido e continuará a sê-lo no futuro, enquanto ninguém admira ou condena os metais ou o comportamento dos sais (TIMMONS, 2007, p. 19).

A polarização entre os mundos “soft” e “hard”, o vácuo entre as Duas Culturas, os mais diversos sentimentos entre autores que estudam o assunto. Na palestra original de Snow, houve ênfase maior na valorização nas Ciências, em especial a Ciência Aplicada, como forma de diminuir o sofrimento das populações dos países pobres. Snow também pareceu desconsiderar a Revolução Científica do século XVII como etapa significativa do processo de desenvolvimento das Ciências (que, mais tarde, nomeará de “primeira onda da revolução científica”):

Nos dois países [Inglaterra e Estados Unidos], e na verdade em todo o Ocidente, a primeira onda da Revolução Industrial rebentou sem que ninguém percebesse o que estava acontecendo. Claro que ela era – ou pelo menos estava destinada a ser, sob os nossos próprios olhos e em nosso próprio tempo – de longe a maior transformação na sociedade desde a descoberta da agricultura. De fato, essas duas revoluções, a agrícola e a científico-industrial, são as únicas mudanças qualitativas na vida social do homem (SNOW, 1995, p. 41-42).

Não obstante o entendimento que temos do contexto de Snow, cremos que foram justamente os cem anos que antecederam a Revolução Industrial o que permitiu que esta ocorresse, graças ao conhecimento já institucionalizado, que proporcionou o avanço de Ciência organizada e das especializações manifestadas de várias maneiras no processo produtivo econômico e social inglês do século XVIII. A Revolução Científica do século XVII foi, essencialmente, a alavanca que impulsionou a sociedade ao Iluminismo, à Razão. A “revolução” de Snow está situada no século XX, quando do uso de partículas atômicas na indústria, da sociedade industrial da eletrônica, da energia atômica, da automação.

Faz sentido, para nós, a observação de England (2009) sobre a palestra Two Cultures, de Snow, representando mais um conflito entre ideologias do que propriamente entre disciplinas. Sua

Page 244: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 244

preocupação com as disparidades socias entre países é, talvez, o pano de fundo de seus dois textos e o leitmotif que o faz crer na necessidade premente de encurtar as brechas entre os ricos e os pobres.

As palavras de Sir Charles Snow suscitaram reação favorável por parte de muitos, mas não apenas. Frank Raymond Leavis, crítico literário inglês, em palestra proferida e impressa na mesma University of Cambridge em 1962, desferiu ataque pessoal repleto de ironia sobre Snow, sua “péssima escrita e falta de conteúdo intelectual”, seus “numerosos clichés”, “frases pomposas” e “banalidades sentimentais” e o fato de ser “pretensiosamente ignorante” (LEAVIS, 1962). A contundência foi tamanha que, no prefácio do folheto, admite a abundância de comentários adversos, ao mesmo tempo em que convida Michael Yudkin para compor, no mesmo volume, seus comentários previamente publicados no The Spectator sobre a palestra de Snow e que Leavis desconhecia na ocasião de sua própria – os de Yudkin, sem dúvida, críticos mas educados.

A análise de Yudkin sobre o discurso de Snow também aponta para a falta de explicações sobre as causas da polarização entre as culturas e os conflitos em cada disciplina. Lembra esse autor (apud Leavis, 1962, p. 36) que a questão não se prende ao conhecimento de leis científicas por literatos, mas sim o valor do “entendimento do processo do pensamento científico”, como a construção de uma hipótese, que daria à Ciência algum valor como campo disciplinar para um não-cientista. “Não faz sentido lamentar a falta de conhecimento científico em especialistas de outro campo” (LEAVIS, 1962, p. 39).

A crítica de Leavis se prendeu, igualmente, ao fato de Snow apenas levantar questões, sem oferecer alternativas para solucioná-las. Apesar do tom descortês, Leavis não incorre em erro ao afirmar que o avanço da Ciência e da Tecnologia aconteceria tão rapidamente que a humanidade precisaria ter total controle de sua condição de ser humano.

Em 1963, Snow se arrependeria da imagem utilizada na palestra original e avançaria na ideia da existência de mais do que duas culturas. E nessa mesma ocasião – na qual, aliás, dedica muitas linhas às Humanidades, ao contrário da primeira palestra -, registraria que publicações anteriores à sua palestra (e dele desconhecidas na época) tocaram nos mesmos assuntos.

Snow via as Ciências como solução para o fosso criado entre as nações (as desenvolvidas e outras nem tanto), fosso este também assinalado por Vickery (2000). No contexto do pós-guerra em que viveu, sua natural inclinação para as Ciências (apesar de transitar nas duas culturas) na verdade refletia grande preocupação com o sistema educacional inglês. Para Snow (1995, p. 45), ele próprio beneficiado pelas bibliotecas frequentadas, apesar de sua origem humilde -, a industrialização era “a única esperança do pobre”.

A mencionada brecha entre as Ciências ocorreu interna e externamente, isto é, dentro das Ciências Naturais e entre esta e as Ciências Humanas e Sociais. Snow (1995) admite que cientistas das Ciências Puras e Aplicadas fazem parte da mesma cultura científica, mas o abismo entre esses é grande; e que os primeiros talvez sejam os mais afastados das questões sociais. Lembra, ainda, que o mesmo não parece ter acontecido com os soviéticos, por transitarem entre as duas culturas mais facilmente.

Page 245: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 245

Nas relevantes pesquisas em Ciência da Informação (em russo Informatika) de Mikhailov e colaboradores, por exemplo, a escrita em 1975 e publicada no Brasil em 1980, sobre estrutura e principais características da informação científica, fica evidente a visão mais ampla de ciência pelos soviéticos, diferente do entendimento anglo-saxão. Esses teóricos reconheciam os aspectos lingüísticos, semânticos e a natureza social da área, uma vez que “estuda fenômenos e regularidades inerentes apenas à sociedade humana”.

Outro ponto de tensão entre as ciências é apontado por Medawar (2008), quando ressalta uma certa aversão inglesa pelas Ciências Aplicadas, como se fossem mais vulgares que as Ciências Puras.

No entanto, as contraposições, afastamentos, desconhecimento mútuo e incompreensões nem sempre marcaram a História da Ciência.

A quase simbiose – algumas vezes aplicação – entre as Ciências há muito existe. Ao lançarmos nosso olhar para a Antiguidade, passando pela Idade Média e pela Renascença, antes mesmo de se pensar nas diversas Ciências na era moderna, percebemos o conhecimento abrangente que se expressa por meio de muitos matizes, como na presente citação:

Para Pitágoras e seus seguidores, os números eram a chave para o universo e a música era inseparável dos números ... Claudio Ptolomeu (fl. 127-48 AD.), o principal astrônomo da Antiguidade, era também notável compositor. Leis e proporções matemáticas eram consideradas a sustentação tanto dos intervalos musicais quanto dos corpos celestes e acreditava-se que certos planetas, as distâncias entre esses e seus movimentos correspondiam a certas notas, intervalos e escalas musicais (ENGLAND, 2009, p. 5).

Também as Artes/Humanidades se relacionam com as Ciências e a Tecnologia, por meio da prensa de Gutenberg, por exemplo, tecnologia já existente, utilizada para a confecção de azeite e vinho, adaptada e aprimorada para fabricar livros; com o uso da perspectiva nas pinturas renascentistas (e outras) e muitas situações em que a interação claramente se revela e cuja figura emblemática é Leonardo da Vinci.

Dicotomicamente, as mesmas Ciências - como sistemas estabelecidos com suas próprias regras e normas - “se opõem” às Artes – “técnicas à espera de uma teorização”, manifestadas na Enciclopédia de Diderot e D´Alembert, mostrando os lugares de teoria e prática no século XVIII (CRIPPA, 2010) , época de acentuação da razão, quando outras faculdades, como a da Memória e da Imaginação, não são consideradas autênticas na assimilação do conhecimento (DARNTON, 2001 apud CRIPPA, 2010, p. 5). Crippa também discorre sobre a construção do campo das Ciências Humanas, cujo conhecimento, considerado “cientificamente inválido” é visto como oposto ao das Ciências Naturais.

Em editorial da Ciência da Informação, no número comemorativo dos 25 anos dessa revista, Pinheiro (1996) ressalta a simultaneidade da institucionalização da Ciência e das Artes no século XVII, da Revolução Científica, berço do Iluminismo. Este é o momento da criação, em 1648, da Académie Royale de Peintures et de Sculptures e, em 1665, dos primeiros periódicos considerados científicos,

Page 246: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 246

o Journal de Sçavans e o Philosophical Transatictions. Muto tempo depois, no Impressionimo, as convergências entre Ciência e Arte se fortaleceriam, sobretudo por meio da Química.

Conforme assinalado por Barash (2005 apud Timmons, 2007) anteriormente, o relevante papel das Humanidades na construção e análise do conhecimento produzido também se atém à necessidade dessas Ciências pensarem as Naturais, seus avanços, abrangências e consequências para a sociedade. Afinal, interpretações e aplicações de uma Ciência em outra, no passado, por vezes resultaram em discursos e práticas inapropriadas, como é o caso das teorias de seleção natural do darwinismo e do darwinismo social: “ao serem empregadas em esferas que não a Biologia, foram usadas para justificar um capitalismo incontido e expansão territorial. Eugenia, guerra e genocídio se tornaram necessidades biológicas” (HANSON, 2009, p. 8). A eugenia não se referia à Darwin, naturalmente, mas a Francis Galton, naturalista e meio-primo do primeiro.

Guerreiros de pele mais clara – Maori, alguns indígenas norte-americanos – poderiam ser respeitados a ponto de negociar tratados. Quanto mais escura a pele, mais perto de serem selvagens os povos estariam. Embaixo na lista, acima apenas dos animais, estavam os hotentotes e os aborígenes australianos (HAECKEL apud BARTA, [s.d.], p. 46).

Em um dos campos das Humanidades, as Artes, England expressa a existência de um contraste entre o pragmatismo das Ciências Naturais e as “Ciências das Artes”, por assim dizer, que creem nas emoções, na intuição e nos sentimentos refletidos pela literatura, pela música e por outras áreas como canais de transmissão de conhecimento (England, 2009), apesar de (ainda?) não serem considerados científicos. Não se imaginaria, até recentemente, o estudo da (assim denominada) Ciência da Felicidade, na Harvard University, como disciplina específica no departamento de Psicologia e conferências na subárea de Positive Psychology, criada há menos de 10 anos63.

Em 2009, a Oxford University organizou evento em homenagem aos 50 anos da palestra de Snow, assumindo a existência de três culturas: Ciências, Humanidades/Artes e Religião, a fim de analisar em que proporção as brechas entre essas áreas eram positivas e em qual extensão a reconciliação se fazia necessária. Hanson (2009) faz um histórico do início dessa divisão- não construída sobre a base da observação e aceita sem muitos questionamentos -, desde o pensamento de Aristóteles, passando por Bacon, Descartes, Kant, e outros nomes que tentaram unir as diferentes culturas, como o poeta, pintor e impressor William Blake e o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ou os também poetas John Keats e William Wordsworth.

Francis Bacon (1561-1626) inaugurou a era da Ciência fundamentada na observação e na indução mas, pergunta Hanson no mesmo artigo, se apenas podemos saber aquilo que observamos com o nosso juízo, onde situamos as Artes/Humanidades como forma de conhecimento? Para o autor, Bacon desconsiderou a contemplação desinteressada como fator de criação, de contribuição

63 The Science of Happiness: http://harvardmagazine.com/2007/01/the-science-of-happiness.html The Science of Happiness: http://harvardmagazine.com/2007/01/the-science-of-happiness.html

Page 247: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 247

para o aprimoramento da condição humana, o mesmo fazendo com a fé – que considerava apenas um “caminho discreto para a Verdade” (HANSON, 2009, p. 2-3). Esse fato acarretou um crescente ceticismo. “A brecha estava aberta”.

Artistas do movimento Realista também fizeram aproximações com as Ciências ao criar uma arte de observação objetiva: “enciumados do método científico, vislumbravam imitar a natureza materialista”, como Emile Zola, criador do romance experimental, que empregava o método experimental científico como reflexo da evolução científica do século XIX. No século XX, os filósofos do Círculo de Viena e o movimento do positivismo lógico afirmavam que apenas o verificável poderia ser considerado Ciência (HANSON, 2009, p. 5-6). Para este autor, é nas Humanidades que as disciplinas adquirem força, ultrapassando nossas defesas, nos movendo para a anagnorisis – aquele momento da descoberta crítica que produz conhecimento sobre algo. Os fatos e proposições dividem; as Artes/Humanidades unem.

O evento de Oxford se referiu às três culturas como Ciências, Humanidades/Artes e Religião, conforme citado, mas outros pesquisadores sugerem classificações diferentes. Em 1960, o próprio Snow pensava que os cientistas sociais se constituiriam na terceira cultura (DIZIKES, 2009). Da mesma maneira, há duas décadas, o editor John Brockman considerou a noção de terceira cultura para descrever certos cientistas – principalmente os biológos evolucionários, psicólogos e neurocientistas, que “dão um profundo significado às nossas vidas” e, segundo a sua visão, suplantam artistas literários em suas habilidades de moldar os pensamentos de sua geração (HANSON, 2009). Sobre esse assunto, preferimos pensar em um mundo com múltiplas culturas científicas em constante interligação, em especial por meio da interdisciplinaridade que norteia hoje as Ciências, ainda que a humanidade não perceba todos os pontos de interseção entre as Ciências.

3 Estudos de Informação em História e as Duas Culturas: evidências de aproximação

Pesquisa com historiadores de Brasil Colonial neste país (GAUZ, 2011) teve por objetivo analisar em que dimensão o conteúdo dos livros raros digitalizados e disponibilizados na internet, além dos impressos, integram o processo da Comunicação Científica da área citada, se e como esses causaram impacto na pesquisa nos primeiros 15 anos de existência dos projetos de digitalização de acervo raro em bibliotecas, de 1995 a 2009. A escolha do tema ocorreu em decorrência do interesse em averiguar as práticas de produção científica desses pesquisadores das Humanidades, ou seja, como se daria a interseção entre a Ciência da Informação e a História.

A Ciência da Informação, até mesmo por seu histórico, teve como foco inicial de estudo as Ciências Naturais. Muitas das pesquisas desenvolvidas nos últimos 50 anos contemplam, no âmbito da Comunicação Científica, as práticas de cientistas das áreas da Física, Química etc. mais do que as de cientistas sociais ou (menos ainda) os humanistas. Em decorrência disso, as investigações realizadas especificamente na área de História existem em número reduzido.

Page 248: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 248

Ziman considera a História como uma “zona fronteiriça” entre as atividades científicas e as não-científicas, pois não pode ser explicada de uma maneira clara em termos de causa e efeito. Dificilmente essa área do conhecimento é aceita de forma universal, eliminando hipóteses diferentes. Como o autor registra, é “uma área em que o principal objetivo não é alcançar um consenso científico” (ZIMAN, 1979, p. 35). De certa maneira, essa definição se afina com as palavras do historiador Robert Darnton (2002, p. 390): “A História continua sendo uma ciência interpretativa e não possui linhas de demarcação do tipo supostamente existentes em algumas ciências sociais”.

Se, por um lado, a forma de fazer Ciência, os objetivos dessa área diferem daqueles das Ciências Naturais, no geral, por outro, não podemos dizer que as Ciências Naturais e as Humanas jamais se aproximam, já que “os conhecimentos [podem] ser adquiridos tanto sob a forma de fatos isolados quanto sob a de explicações já aceitas pelo consenso” (ZIMAN, 1979, p. 36).

Florescano também expõe sobre a natureza do historiador:

A função da História não é a de produzir conhecimentos passíveis de comprovação ou refutação pelos métodos da Ciência experimental. Ao contrário do cientista, o historiador, como o etnólogo e o sociólogo, sabe que não pode isolar hermeticamente seu objeto de estudo, pois as ações humanas estão inextricavelmente vinculadas ao conjunto social que as conforma. ... (FLORESCANO, 1997, p. 77).

Entre os séculos XVI e XVIII temos, de um lado, a história oficial, dos reis, príncipes e das

nações, com uma simbiose entre essas partes; de outro, a história dos eruditos, que já se apóia em investigações governamentais, arqueológicas etc. e se aproxima dos costumes sociais. Apesar do cruzamento eventual entre essas, para Chartier (2009, p. 18), “esta [última] estabeleceu, até hoje, a coexistência ou a concorrência entre as histórias gerais, sejam nacionais ou universais, e os trabalhos históricos dedicados ao estudo de objetos em particular (um território, uma instituição, uma sociedade)”.

A História clássica predominou na Europa do Renascimento ao Iluminismo – ainda que não tenha desaparecido de forma abrupta em 1800. Essa supremacia deve ser entendida pelo menos até meados do século XVIII, “como uma espécie de limite” (ARAÚJO, 1988, p. 29). A Ciência, base de todas as verdades na época, substituiria a Religião na compreensão do social. Os assuntos se fragmentariam e especializariam cada vez mais, conforme dito anteriormente, assim como cresceria o número de sociedades científicas, com clara independência dos interesses governamentais.

Para Edward Carr (1982), data do final do século XVIII a preocupação com a História como Ciência, mas foi no início do século XIX, com as Ciências Sociais (na qual, então, era inserida a área), que o método utilizado pela Ciência para estudar o mundo natural foi aplicado ao estudo do homem. Coube à Darwin, segundo Carr (1978, p. 52), trazer para a Biologia a História a partir da ideia da sociedade como um organismo, um “processo de mudança e desenvolvimento”. Assim como o método científico, primeiramente o fato era coletado; posteriormente era interpretado pelos cientistas.

No século XIX, vemos surgir o nacionalismo em vários [hoje] países europeus que, de mãos

Page 249: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 249

dadas com a História, deflagra a ideia de pátria, não apenas na França, mas na Itália e na Alemanha – países carentes de unidade. A par disso, e graças à Revolução Francesa do século anterior, os progressos na Educação (básica e avançada) permitiram a difusão de uma cultura histórica também para as massas (LE GOFF, 1992).

De acordo com Ferreira, M. (2002), até o final do século XIX, a pesquisa histórica na França era regida por eruditos tradicionais, hostis à República e era uma disciplina sem autonomia. Em decorrência dessa situação, as novas elites da Terceira República, a partir de 1870, se colocaram à frente da produção da memória daquele país. É nesse momento que surge uma história científica, com visão retrospectiva dos fatos. “Só o recuo no tempo poderia garantir uma distância crítica” (FERREIRA, M., 2002, p. 315). Para a autora, os estudos contemporâneos ficariam para os amadores, daí a desqualificação dos testemunhos diretos nesse período.

Essas também são as palavras do historiador norte-americano:

A profissionalização, a fundação da História acadêmica, ou científica, teve início na Alemanha no final do século XIX. Vários norte-americanos foram para esse país estudar com os grandes mestres, como Leopold von Ranke. A primeira escola de pós-graduação em História nos Estados Unidos foi a Johns Hopkins, no início dos anos de 1920. A concepção que então prevalecia era que a História seria, realmente, uma Ciência, quase como uma Ciência Natural, e através do uso de uma nova metodologia de pesquisa e crítica seria construído um corpo de pesquisa permanente e cumulativo sobre o passado. Por essa razão, até 1950, os professores de pós-graduação tinham um plano geral e designavam temas de tese aos seus alunos (que não tinham liberdade de escolha). Assim, em um determinado conhecimento, construía-se ´a verdade` (FIERING, 2010).

Fiering menciona que ainda não havia consciência sobre a impermanência dos fatos. A reconstrução, por cada geração, de domínios do passado e a interpretação singular de todo historiador são constantemente reconstruídas “como resultado de suas experiências presentes e aspirações futuras”. Dessa forma, de acordo com o autor, a concepção de que a História era uma Ciência cumulativa ruiu.

A linha do pensamento historiográfico da geração da École des Annales introduziu uma abordagem nova à área, de construção de novos objetos de pesquisa e novos enfoques a antigos temas (LAPA, 1976). Com a fundação da revista dos Annales, em 1929, haveria uma profunda transformação na História. Essa geração trouxe novos olhares às investigações, em que se incluíam, principalmente, o econômico e o social, diferentemente da visão anterior, mais elitista (FERREIRA, M., 2002). A Sociologia e a Antropologia seriam fundamentais na transformação ocorrida no século XX nesse campo do conhecimento.

Se “a historiografia de um país pode ser um dos melhores sintomas do amadurecimento ou não de sua ciência histórica” (LAPA, 1976, p. 13), então podemos dizer que a História, no Brasil, amadureceu significativamente nas últimas décadas. Esse fato se reflete no aumento do número de cursos de pós-graduação oferecidos em universidades e no número de periódicos científicos criados, demonstrando crescente interesse por parte dos pesquisadores. Do ponto de vista qualitativo, isso

Page 250: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 250

acarretou o crescimento da produção científica da área. Até a década de 1980 e conforme exposto por Ferrez (1981), os historiadores brasileiros publicavam em periódicos de outras áreas, devido à quase inexistência desses instrumentos especificamente para a História. No final do século XX, os periódicos nessa área são um instrumento de disseminação da produção científica legitimamente aceitos pela comunidade, muitos avaliados pelos pares (apesar de a monografia continuar a ser o instrumento mais importante).

A pesquisa com historiadores de Brasil Colônia, já citada, identificou os seguintes periódicos: Revista Brasileira de História (Associação Nacional de História - ANPUH), Revista de História (Universidade de São Paulo - USP), Topoi (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ), Tempo (Universidade Federal Fluminense - UFF), Varia História (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG), e Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), todos de acesso aberto e existentes nos formatos impresso e eletrônico (GAUZ, 2010).

Lapa previu algumas tendências para a historiografia brasileira que se concretizaram. A primeira foi a reinterpretação permanente do passado e do presente, na qual há uma revisão factual e ideológica por parte do historiador – confirmada pela produção científica em História mais recente e exemplificada pela publicação de pesquisas realizadas por ocasião das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. A segunda tendência está relacionada com inovações metodológicas e técnicas de pesquisa, assim como tratamento de fontes, quando historiadores dão a conhecer novos assuntos e investigam perspectivas diferentes de antigas questões. Também os projetos de pesquisa interdisciplinares de historiadores com [então] outros cientistas sociais são hoje uma realidade, imaginadas na década de 1970 (LAPA, 1976). Outro historiador se refere a esse período como um de novos contornos da historiografia brasileira e de grande revisão do conhecimento histórico, pela quantidade de livros, periódicos especializados, teses e dissertações surgidos na academia e no mercado editorial (BOSCHI, 2006).

Alguns resultados encontrados na investigação mencionada com historiadores de Brasil Colonial tornam clara a mudança de algumas práticas na produção científica desses pesquisadores. Até a década de 1980, por exemplo, a autoria única de artigos era preponderante (Ziman, 1979; Meadows, 1999; Vickery, 2000; Ferrez, 1981; Brasil, 1992; Barbatho, 2011); hoje, a publicação de artigos e projetos em colaboração não é incomum (GAUZ, 2011).

O fato de haver poucos trabalhos cooperativos e comunicações eletrônicas, assim como baixo uso de computadores para pesquisa histórica (McCrank, 1995), até a década de 1980, é compreensível se levarmos em conta que só mais recentemente projetos cooperativos em História têm sido elaborados, após o surgimento dos programas de pós-graduação e a rapidez das comunicações através da internet, aproximando pesquisadores. A diminuição das distâncias entre cientistas por meio do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) e a abordagem científica da pesquisa em História, somado ao surgimento de periódicos científicos e a outros aspectos da área aproximou esse humanista do cientista natural, guardadas as características próprias de cada Ciência.

Page 251: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 251

4 Considerações temporárias

Conforme dito, as especializações ocorridas nas Ciências na era moderna, manifestadas na verticalização (e fragmentação) do conhecimento, afastaram as Ciências em geral. Mais recentemente, desde a segunda metade do século XX e paulatinamente, essas mesmas Ciências reiniciaram um caminho de aproximação pelas profundas mudanças paradigmáticas e de metodologias e ações interdisciplinares nas pesquisas, com o objetivo de reunir o conhecimento fragmentado e transformá-lo em algo que faça mais sentido no mundo atual, um todo talvez semelhante ao que tenha correspondido à sua origem. O caminho da aproximação pode ser moderno, porém o desejo de unificação é antigo e expressado, em especial, por representantes das Humanidades (os que, em geral, veem uma verdade além do conhecimento objetivo, os que pensam as culturas), mas também por cientistas de praticamente todos os campos, como o Nobel de Medicina e autor inglês nascido no Brasil, Peter Medawar, citado no decorrer deste texto, ao registrar, em 1984, a necessidade de fazer com que os cientistas se tornassem mutuamente compreensíveis: “os cientistas, na verdade, estão se tornando menos especializados” (MEDAWAR, 2008, p. 17).

A direção contrária à verticalização do conhecimento e o movimento interdisciplinar tornam as culturas mais próximas e na direção do seu ponto de origem para concretizar o que Japiassu (1976) denomina “diálogo entre disciplinas”. Pode-se dizer que existe uma zona de aproximação das Ciências, para onde converge o conhecimento de cada disciplina em área mais próxima daquela que idealmente as reúne.

O movimento de retorno ao que talvez seja a essência de todas as Ciências, basta lembrar a Antiguidade Clássica, quando Filosofia, Literatura, História, Teatro, Religião e Mitologia não tinham fronteiras. Este retorno está em harmonia com os tempos atuais e se expõe, igualmente, na Ciência da Informação, a partir de pesquisas cada vez mais frequentes nas Humanidades, como a que une o estudo de Comunicação Científica de historiadores à análise das duas (ou mais) culturas, ou a Informação em Arte, além de outras áreas do conhecimento, .

Yudkin (citado no presente texto na publicação de Leavis) era de opinião de que uma única cultura não tardaria, talvez se referindo a essa aproximação hoje mais visível. Os esforços perpetrados para diminuição das distinções entre as culturas (aquelas necessárias; não são todas as distinções que devem ser abolidas) será, ainda, tema de muitas discussões. Pode ser que o abismo entre as culturas seja menor atualmente, mas o afastamento se deu de tal ordem que a necessidade de re-união se impôs.Qualquer consideração sobre o assunto é temporária. Na medida em que as Ciências se aproximam, novos olhares são lançados sobre os conhecimentos produzidos e, lentamente, assimilados e aceitos. Afinal, a poeisis, o fazer, o criar, pode tanto gerar uma pesquisa científica quanto uma bela poesia, ambas ricas fontes de progresso intelectual.

Page 252: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 252

The Two Cultures as Represented Today in the Sciences and in Information Science

Abstract: Refers to the differences between the Sciences and the Humanities as described in Charles Snow’s famous lecture on The Two Cultures, presented at the University of Cambridge in 1959. For Snow, the industrialization was the only path to advancement by poor countries. That argument was not altogether new. In the Unites States, there had been occasions when the importance of the Sciences for the development of that country had been debated, and the relevance of the Humanities, as well, as the basis of forming productive thinking habits. Despite the marked differences between the various disciplines of the Sciences and between those and the Humanities, there are similarities in the methods of the Two Cultures. In History, for instance, scholarly communication practices approximate those in the Sciences. Recent research in Information Science in Brazil, looking at the current practices of historians of Colonial Brazil, show similarities to practices that until the 1980s were especially characteristic of the Natural Science, such as multiple authorship of articles, participation in collaborative projects, and the heavy use of technologies of information and communication There is evidence that nowadays the gap between the Sciences and the Humanities has become smaller. Snow’s ideas are a contribution to the History of Sciences and to Information Science, even though the Sciences have suffered major transformations due to the epistemic approximations proper of interdisciplinarity.

Key-words: Two Cultures; Sciences and Humanities; Information Science; Scholarly Communication; History; History of Science.

5 Referências

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda Noturna, narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 28-54.

BARBATHO, Renata Regina Gouvêa. Um olhar sobre a História: características e tendências da produção científica na área de História no Brasil (1985-2009). Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), Rio de Janeiro, 2011. Orientadores: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira.

BARTA, Tony. Discourses of genocide in Germany and Australia: a linked history. Disponível em: <http://epress.anu.edu.au/aborig_history/ah25/pdf/ch03.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2011.

BOSCHI, Caio C. Espaços de sociabilidade na América Portuguesa e historiografia brasileira contemporânea. Varia História, Belo Horizonte, v. 22. n. 36, v, 2006, p. 291-313.

BRASIL, Maria Irene. Estruturas bibliométricas e fontes historiográficas do setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Escola de Comunicação, UFRJ; Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), Rio de Janeiro, 1992. Orientadoras: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e Maria José M. C. de Macedo Wehling.

CARR, Edward H. Que é História? Conferências George Macaulay Trevelyan proferidas por E.

Page 253: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 253

H. Carr na Universidade de Cambridge, janeiro-março de 1961. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

CHARTIER, Roger. A História ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

CRIPPA, Giulia. Entre Ciências e Humanidades: o problema da ordem da memória da/para a Ciência da Informação. ENANCIB - Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação [Online], 4 Out 2010. Disponível em: <http://congresso.ibict.br/index.php/enancib/xienancib/paper/view/40/201>. Acesso em: 22 jul. 2011.

DARNTON, Robert. Entrevista com Robert Darnton [por José Murilo de Carvalho]. Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, set. 2002, p. 389-397.

DIZIKES, Peter. Our two cultures. The New York Times, Sunday Book Review, 22 March 2009. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2009/03/22/books/review/Dizikes-t.html>. Acesso em: 19 jan. 2010.

ENGLAND, Richard. Creative minds: the search for the reconciling principles of Science, the Humanities, Arts and Religion. Forum on Public Policy: a journal of Oxford Round Table, v. 2009, no. 2. Disponível em: <http://forumonpublicpolicy.com/summer09/archivesummer09/england.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2011.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, set. 2002, p. 314-332.

FERREZ, Helena Dodd. Análise da literatura periódica brasileira na área de História. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Escola de Comunicação, UFRJ/Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), Rio de Janeiro, 1981. Orientadora: Gilda Maria Braga.

FIERING, Norman. Changing habits [mensagem pessoal]. Mensagem recebida de <[email protected]> em 3 mar. 2010.

FLORESCANO, Enrique. A função social do historiador. Tempo, Rio de Janeiro, v. 4, 1997, p. 65-79.

GAUZ, V. História e Historiadores de Brasil Colonial, uso de livros raros digitalizados na Comunicação Científica e a produção do conhecimento, 1995-2009. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Universidade Federal Fluminense?Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Rio de Janeiro, 2011. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro.

HANSON, Eric A. How we got here: historical reflections on the rifts between ways of knowing. Forum on Public Policy: a journal of Oxford Round Table, v. 2009, no. 2. Disponível em: <http://forumonpublicpolicy.com/summer09/threecultures.html>. Acesso em: 13 abr. 2011.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 221 p. (Série Logoteca).

Page 254: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 254

LAPA, José Roberto do Amaral . A História em questão: historiografia brasileira contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1976.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992. (Coleção Repertórios).

McCRANK, Lawrence J. History, Archives, and Information Science. Annual Review of Information Science (ARIST), v. 30, p. 281-382, 1995.

MEADOWS, A. J. A Comunicação Científica. Brasília, DF: Briquet de Lemos Ed., 1999.

MEDAWAR, Peter B. Os limites da Ciência. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

MIKHAILOV, A. I,CHERNYI, A. I., GILYAREVSKY, R. S. Estrutura e principais propriedades da informação científica. In: Ciência da Informação ou Informática? . Org.de Hagar Espanha Gomes Rio de Janeiro: Calunga, 1980. p. 71-89.

PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro. Ciência da Informação: páginas de uma revista em 25 anos. Ciência da Informação, Brasília, DF, Brasil, v. 25, n. 3, dez. 1996. Disponível em: <http://revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/view/444/402>. Acesso em: 14 ago. 2011.PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro. Itinerários epistemológicos da instituição e constituição da Informação em Arte no campo interdisciplinar da Museologia e Ciência da Informação. Museologia e Patrimônio, v. 1, n. 1, jul./dez. 2008. Disponível em: <http:// revistamuseologiaepatrimonio.mast.br>. Acesso em: 12 ago. 2011.

SALLES, João Moreira. Um documentarista se dirige a cientistas. Discurso de João Moreira Salles à Academia Brasileira de Ciências. Disponível em: <http://www.observatoriousp.pro.br/um-documentarista-se-dirige-a-cientistas/>. Acesso em: 20 jun. 2010.SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências. 13 ed. Porto: Edições Afrontamento, 2002.

SNOW, Charles Percy. As Duas Culturas e uma segunda leitura: uma versão ampliada das Duas Culturas e a Revolução Científica. São Paulo: EDUSP, 1995.

TIMMONS, William Todd. Older Than Snow: The Two Cultures and the Yale Report of 1828. Forum of Public Policy Online: a journal of the Oxford Round Table, v. 2007, no. 1. Disponível em: <http://forumonpublicpolicy.com/papersw07.html>. Acesso em: 12 abr. 2011.

VICKERY, Brian C. Scientific communication in history. London: The Scarecrow Press, 2000.

ZIMAN, John. Conhecimento público. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979. (Coleção O Homem e a Ciência, v. 8).

Page 255: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 255

C O M U N I C A Ç Ã O O R A L

A IDENTIDADE DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO BRASILEIRA NO CONTEXTO DAS PERSPECTIVAS

HISTÓRICAS DA PÓS-GRADUAÇÃO: ANÁLISE DOS CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS DOS PPGCI’S

Jonathas Luiz Carvalho Silva, Gustavo Henrique de Araújo Freire

Resumo: Aborda a identidade da Ciência da Informação brasileira por meio das perspectivas históricas da pós-graduação. A problemática do presente trabalho pode ser sintetizada nas seguintes interpelações: Quais as características identitárias da Ciência da Informação, no que se refere ao seu contexto histórico das pós-graduações no Brasil? Como se apresenta a realidade dos conteúdos programáticos dos PPGCI’s brasileiros que possuem mestrado e doutorado a partir de suas áreas de concentração, linhas de pesquisa e disciplinas? O objetivo central do trabalho é investigar a construção da identidade epistemológica do campo da Ciência da Informação por meio de uma análise dos conteúdos programáticos dos PPGCI’s, contemplando suas perspectivas teóricas. Metodologicamente, a pesquisa é classificada quanto aos fins, sendo de nível exploratório e quanto aos meios, sendo bibliográfica e documental, uma vez que serão analisados documentos que constam nos sites dos PPGCI’s e o método de análise é dedutivo e indiciário que delibera procedimentos de “caça” para caracterizar a identidade da Ciência da Informação no contexto da pós-graduação. Conclui que os PPGCI’s passam por grandes e rápidas modificações identitárias no seu corpo acadêmico-científico apresentando marcas identitárias diversas em suas áreas de concentração e linhas de pesquisa. Palavras-chave: Ciência da Informação. História. Pós-Graduação. Identidade. Epistemologia.

Abstract: Covers the identity of the Brazilian Information Science through the historical perspectives of postgraduate students. The problem of this work can be summarized in the following interpolations: What are the characteristics of identity information science, with regard to its historical context of post-graduate in Brazil? How is the reality of the syllabus of PPGCI’s Brazilians who have masters and doctorate degrees from its focus areas, research areas and disciplines? The main objective of the work is to investigate the epistemological construction of identity in the field of information science through an analysis of the syllabus of PPGCI’s, contemplating their theoretical perspectives. Methodologically, the research is classified according to purpose, and level exploratory and as to means, and bibliographic and documentary, as they will be analyzed documents in the websites of PPGCI’s and the method of analysis is deductive and evidentiary acting procedures “hunting “to characterize the identity of information science in the context of post-graduation. PPGCI’s conclusion that undergo large and rapid changes of identity in your body providing academic and scientific identity marks in their various areas of concentration and research lines. Keywords: Information Science. History. Graduate. Identity. Epistemology.

Page 256: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 256

1 Introdução

O presente trabalho apresenta o resultado de pesquisa de mestrado que investigou a identidade da Ciência da Informação, tendo como enfoque as pós-graduações. A identidade é fruto de uma “marca estampada” no percurso histórico de qualquer área do conhecimento.

Contudo, percebe-se que os desafios dos quais a Ciência da Informação está incumbida, não são fáceis de serem concretizados por diversos motivos, tais como: a diversidade de conteúdo, as opiniões diversas dos indivíduos e grupos sociais, educacionais, políticos e econômicos, assim como os investimentos em profissionais e materiais para o desenvolvimento das atividades profissionais de organização do conhecimento.

Escolher o Brasil como delimitação desse trabalho se justifica por dois motivos: o primeiro visa saber como as teorias da Ciência da Informação em nível global têm sido absorvidas e interpretadas em nível nacional e o segundo ocorre em face da necessidade de verificar como se dá a configuração dos estudos em Ciência da Informação entre os Programas de Pós-Graduação (PPGCIs) brasileiros, verificando suas relações, convergências, divergências, a fim de verificar a situação dessa área do conhecimento em nível nacional.

O presente trabalho teve como objetivo geral investigar a construção da identidade epistemológica do campo da Ciência da Informação por meio de uma análise dos conteúdos programáticos dos PPGCI’s, contemplando suas perspectivas teóricas. Os objetivos específicos foram identificar os programas de pós-graduação em Ciência da Informação no Brasil e analisar o processo historiográfico (histórico-social) do campo científico da pós-graduação da Ciência da Informação no Brasil. Esta pesquisa apresenta como procedimentos metodológicos um nível exploratório com abordagem bibliográfica e documental e utiliza os métodos dedutivo e indiciário que são de fundamental importância para análise dos PPGCI’s que possuem mestrado e doutorado (IBICT/UFRJ; UFBA; UFBA; UnB; UNESP e USP).

2 A pós-graduação em Ciência da Informação no Brasil: dimensões educativas e científicas na busca de sua identidade

1. 2. O final da década de 1960 é marcante para o IBBD pelas suas mudanças

políticas, técnicas, científicas e tecnológicas. O curso de Documentação Científica promoveu significativos resultados, porém, o IBBD identificou no final da década de 60 a necessidade de mudanças. Assim, o IBBD instaura, em 1970, o Mestrado em Ciência da Informação (o primeiro da América Latina). Hagar Espanha Gomes (1974, p. 14-15) relata que:3.

4. [...] O curso de Documentação Científica está necessitando de uma redefinição: extensão aperfeiçoamento, especialização ou reciclagem? Provavelmente será reestruturado para servir de base para o mestrado, considerando-se que o interesse principal reside nos profissionais não bibliotecários. Ao mesmo tempo verifica-se uma mudança no panorama bibliotecário de nosso país: engenheiros

Page 257: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 257

e técnicos começam, a sentir necessidade de desenvolver serviços de informação especializados e sofisticados e, por não terem uma base sólida nesta parte, esses serviços têm deixado a desejar; por outro lado, a automação começou a ser a palavra de ordem e a maioria dos profissionais não tem condições de dialogar com os homens do computador, e por sua vez, a estes carece suficiente conhecimento de biblioteconomia e/ou documentação para elaborar eficientes desenhos de sistemas; por outro lado, a reforma universitária vem pressionando professores no sentido de procurarem cursos de mestrado.

5. 6. O curso de mestrado surge como alternativa para o desenvolvimento das atividades

voltadas para a informação científica e tecnológica no Brasil, o que propiciava a participação de vários profissionais de diversas áreas do conhecimento. Como afirma Mueller (1985, p. 8) �A clientela visada pelo curso não se restringia aos bibliotecários, mas sim a formados em áreas diversas com interesse na área de informação”. O mestrado em Ciência da Informação do IBBD pode ser entendido como inovador e experimental. É preciso considerar que a noção de experimental aponta as dificuldades iniciais que o IBBD teve de enfrentar para construir o mestrado em Ciência da Informação, especialmente durante a década de 1970.

Em 1976, ocorre uma mudança de nomenclatura no IBBD que passaria a se chamar Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia (IBICT). É importante ressaltar que não ocorre apenas uma substituição de nomenclatura, mas também uma mudança nas competências e nas finalidades, nas áreas de atuação, fonte de recursos, vendas de produtos e serviços do Instituto, além da mudança de direção que passou a ser de José Adolfo Vencovsky. (CNPQ/IBICT, 1976). Como corolário das mudanças institucionais do Instituto, bem como da mudança de direção, houve também uma relativa mudança na pós-graduação em Ciência da Informação do IBICT a partir de 1977. Abigail de Oliveira Carvalho (1978, p. 292) fala que com a criação do IBICT:

O curso de mestrado passou a ser uma das atribuições da Coordenadoria de Treinamento, Pesquisa e Desenvolvimento. Foram feitas novas alterações no regulamento, aprovadas em abril de 1977 pela UFRJ, visando a dar ao curso melhores condições de atendimento de seus objetivos, dentro das normas universitárias e levando-se em consideração os recursos realmente disponíveis. Seguiu-se o critério de maior flexibilidade através de programação de estudos que compreendesse um elenco de disciplinas optativas.

Uma síntese da pós-graduação em Biblioteconomia e Ciência da Informação na década de 1970 que se deu em nível de mestrado pode ser visualizada no quadro que segue:

Quadro 1: Pós-graduações em Biblioteconomia/Ciência da Informação na década de 1970Universidade

ProgramaEspecialidade Área(s) de concentração Ano de

criaçãoFinalidade

Page 258: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 258

IBBD/IBICT UFRJ

Ciência da Informação

“Usuários”, “Administração de

Sistemas de Informação/Documentação” e“Transferência de

Informação”

1970 Formas professores e pesquisadores para atuar

com sistemas de informação especializados e informação

científica

UFMG mestrado

Administração de Bibliotecas

(Biblioteconomia)

“Biblioteca e Educação”E “Biblioteca e Informação

Especializada”

1976 Formar lideranças profissionais para atuar em sistemas de

informação especializada para organização e disseminação da

informação

PUC mestrado Biblioteconomia “Metodologia do Ensino em Biblioteconomia”

1977 Qualificar bibliotecários para atuação na docência

UnB mestrado Biblioteconomia eDocumentação

“Planejamento, Organização,

Administração de Sistemas de Informação” e “Recursos e Técnicas de Documentos e Informação

Científica”.

1978 Qualificar profissionais para atuação em planejamentos de sistemas e informação

científica.

UFPB mestrado

Biblioteconomia “Sistemas de Bibliotecas Públicas”

1978 Qualificar bibliotecários para atuação no planejamento e

gerenciamento de bibliotecas públicas

USPmestrado e doutorado

Comunicação com área de

concentração em Biblioteconomiae Documentação

19721980

Formar pesquisadores e professores para atuar

com tomadas de decisões, organização e usuários

Fonte: Adaptado de Mueller (1988)

A década de 1970 tem grande enfoque na abertura de mestrados em Biblioteconomia realçando que os mestrados desta década foram criados entre 1976 e 1978 (UFMG, PUC DE CAMPINAS, UnB e UFPB), com exceção da USP, em 1972. Embora haja uma efetiva contigüidade entre a Biblioteconomia e a Ciência da Informação no Brasil, os mestrados tiveram perspectivas diferentes. Esses cursos como afirma Mueller (1985, p. 11) “Talvez tenham sido impulsionados não apenas pela pressão exercida pela classe, mas pela necessidade sentida pêlos órgãos financiadores dos cursos de pós-graduação, especialmente a CAPES, de pessoal qualificado para gerir as bibliotecas universitárias que davam suporte àqueles cursos”. Acredita-se que as histórias da Biblioteconomia e da Ciência da Informação compõem um espectro de identidade fragmentada. De acordo com Carvalho (1978, p. 294) a fragmentação dessa identidade ocorre em virtude de que “A criação dos cursos de mestrado em Biblioteconomia e Ciência da Informação não obedeceu a uma coordenação geral, mas, de alguma forma, cada novo curso busca preencher um vazio identificado.

Na década de 1980 surgem novas e/ou contínuas concepções identitárias a partir do aperfeiçoamento dos programas, como iremos observar a partir do quadro abaixo:

Page 259: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 259

Quadro 2: Pós-graduações em Biblioteconomia e Ciência da Informação na década de 80Universidade

ProgramaEspecialidade Áreas de concentração Situação das áreas

de concentração

IBICT UFRJmestrado

Ciência da Informação

Entre maio de 1983 e outubro de 1986 o mestrado do IBICT/UFRJ esteve inserido como área de

concentração da Pós-Graduação da ECO/UFRJ

Modificou

A partir de outubro de 1986 torna-se novamente um mestrado independente com as seguintes áreas:

1. Processamento de Informação, 2. Estrutura e Fluxo de Informação e 3. Informação, Cultura e Sociedade.

UFMG mestrado

Administração de Bibliotecas

(Biblioteconomia)

1. Biblioteca e Educação 2. Biblioteca e Informação Especializada.

Permaneceu

PUC mestrado Biblioteconomia Planejamento e Administração de Sistemas Modificou

UnB mestrado Biblioteconomia eDocumentação

Organização e Administração de Sistemas de Informação Científica.

Permaneceu

UFPB mestrado

Biblioteconomia Até 1987 – “Sistemas de Bibliotecas Públicas”A partir de 1988 – ”Biblioteca e sociedade”

Modificou (ampliou)

USPmestrado e doutorado

Comunicação Biblioteconomia e Documentação

1. Geração e Uso da Informação, 2. Análise

Documentária e 3. Ação Cultural e Biblioteca (linhas de pesquisa)

Modificou as linhas de pesquisa

Fonte: Adaptado de Mueller (1988)

A pós-graduação brasileira nas décadas de 1930 a 1970 construiu seus pressupostos baseados em uma identidade não-essencialista em face da comumente incorporação dos estudos, teorias e dos pesquisadores estrangeiros na conduta de elaboração e disciplinarização dos cursos. Como afirma Woodward (2000) a identidade essencialista vai buscar enaltecer o contexto nacional, seus êxitos, características, sua história, enquanto a identidade não-essencialista busca valorizar as diferenças, a fragilidade no estabelecimento de fronteiras sociais, culturais, econômicas, políticas e científicas. No caso da Ciência da Informação, essa afirmação de uma identidade nacional, a partir da década de 1980 começou a ganhar força, principalmente pelo olhar atento das potencialidades e problemáticas nacionais, regionais e locais percebidas no contexto da informação e da biblioteca. Na década de 80, não houve a criação de novas pós-graduações em Biblioteconomia e Ciência da Informação, mas sim o aperfeiçoamento das pós-graduações já existentes com a sua mudança de conteúdo (área de concentração, disciplinas, etc.).

A década de 1990 foi significativa para a consolidação da Ciência da Informação, especialmente pela substituição das pós-graduações em Biblioteconomia para pós-graduação em Ciência da Informação; abertura de outras pós-graduações e criação, em 1989, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (ANCIB). O quadro a seguir sintetiza a realidade

Page 260: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 260

das pós-graduações na década de 90:

Quadro 3: Situação das pós-graduações em Ciência da Informação na década de 1990Universidade Especialidade

Ano da modificação

Ano de criação do Programa

Área(s) de concentração

Linhas de pesquisa

IBICT UFRJ

Ciência da Informação(Não houve

modificação)

Mestrado 1970

Doutorado 1994

“Conhecimento, processos de

comunicação e informação”

1. Processamento e tecnologias da informação

2. Teoria, epistemologia e interdisciplinaridade

“Política e gestão do conhecimento e

da informação”

1. Configurações sociais e políticas da informação

2. Gestão da informação

UFMG Ciência da Informação(A partir de

1991)

Mestrado 1976

Doutorado 1997

“Organização da Informação

(1992/96)”

1. Informação gerencial e tecnológica2. Informação e sociedade

3. Tratamento da informação e bibliometria(a partir de 1997)Produção,

Organização e Utilização da Informação

(a partir de 1997)

PUCCAMP

Biblioteconomia e Ciência da Informação(a partir de

1995)

Mestrado 1977

“Planejamento e Administração de Sistemas de Informação”

1. Administração de serviços, bibliotecas, arquivos e informação 2. Desenvolvimento

e administração de programas de leitura 3. Filosofia/história da biblioteconomia e4. Informação para indústria e negócios.

UnB Ciência da Informação e

Documentação(a partir de

1991)

Mestrado 1978

Doutorado 1991

Planejamento e Gestão da

Informação e do Conhecimento

1. Comunicação Científica;2. Formação profissional e mercado de

trabalho;3. Planejamento, gerência, avaliação de

bibliotecas e sistemas de informação4. Processos e linguagens de indexação

UFPB Ciência da Informação(a partir de

1997)

Mestrado Biblioteca e Sociedade

(1988-1996)

1. Informação para o desenvolvimento científico e tecnológico

2. Informação e cidadania.

Informação e Sociedade

(1997-2001)

1. Informação e cidadania2. Informação para o Desenvolvimento

Regional

USP Comunicação(não houve

modificação)

Mestrado 1972

Doutorado 1980

Biblioteconomia e Documentação

1. Geração e Uso da Informação 2. Análise Documentária

3. Ação Cultural e Biblioteca4. Informação, Comunicação e Educação.

UNESP Ciência da Informação(não houve

modificação)

Mestrado 1998

Informação, tecnologia e

conhecimento

1. Informação e tecnologia2. Organização da informação

Page 261: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 261

UFBA Ciência da Informação(não houve

modificação)

Mestrado 1998

Estratégias de disseminação da

informação

1. Estruturas e linguagens de informação2. Informação e contextos

Fonte: Adaptado de Smit (1999; 2002)

Dando destaque a pós-graduação em Ciência da Informação, é preciso verificar três quesitos fundamentais para seu desenvolvimento no Brasil na década de 90: o primeiro é referente a substituição do nome pós-graduação em Biblioteconomia para pós-graduação em Ciência da Informação; o segundo refere-se a abertura de doutorados ampliando a margem produtiva da pós-graduação e o terceiro implica na abertura de novos cursos de pós-graduação.

Em 1991, houve a modificação da nomenclatura dos cursos da UFMG e da UNB. Paim (2000, p. 105) destaca com relação a UFMG que também foi partilhado em outras instituições:

A mudança do nome da Escola reflete transformações em nível macro decorrentes do deslocamento do paradigma anterior (ênfase na instituição biblioteca) em direção ao novo paradigma que enfatiza o fenômeno informação. O mesmo fato (mudança de paradigma) ocorreu com relação à evolução do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação.

Por isso, as faculdades, institutos e escolas de pós-graduação, diante do crescente número de pesquisas sobre o termo informação e suas nuances, assim como do crescimento da Ciência da Informação em nível global perceberam a necessidade de mudança. Finalmente, crê-se que há uma visão latente de identidade modificada para todos os programas que precisaram adequar suas linhas de acordo com as necessidades nacionais e locais que compõem a realidade científica e acadêmica da Ciência da Informação.

2.1 O início do século XXI para a Ciência da Informação: a busca da construção de uma identidade de projeto

O título dessa seção fala em construção da identidade de projeto (CASTELLS, 2008) ao refletir sobre o posicionamento da Ciência da Informação (seus atores sociais) na busca de construir uma nova identidade a fim de promover um novo posicionamento na sociedade e modificações na estrutura social.

Población e Noronha (2003) destacam dois momentos da história da Ciência da Informação que caracterizam a expansão dos Programas de Pós-graduação: 1. Ambiente que propicia a demanda pelos sistemas de informação iniciado na sociedade brasileira nas décadas de 70 e 80 e 2. A explosão tecnológica que culmina no final do século XX. Esses momentos podem ser considerados relevantes e responsáveis pelos desafios da Pós-Graduação em Ciência da Informação do século XXI na busca pela construção de uma identidade de projeto.

Page 262: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 262

O quadro que segue mostra um conjunto de transformações nas áreas de concentração:

Quadro 4: Área de concentração da Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil na primeira década do século XXI

PROGRAMAS/CURSOS ÁREAS DE CONCENTRAÇÃO/ANO

IBICT

1 Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação – IBICT-UFF

Informação e Mediações Sociais e Tecnológicas para o Conhecimento (2004-2008)

2 Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação – IBICT-UFRJ

Informação e Mediações Sociais e Tecnológicas para o Conhecimento. (a partir de 2009)

3Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação – USP Cultura e informação (a partir de 2006)

4Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação – UFMG

Produção, organização e utilização da informação (desde 1997)

5 - Mestrado em Ciência da Informação – UFPB Informação, Conhecimento e Sociedade (a partir de 2007)

6 – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação e Documentação - UnB

Doutorado: Transferência da Informação Mestrado: Planejamento e Gerência de Unidades de Informação (até 2009)

Gestão da informação (a partir de 2010)

7 - Curso de Mestrado em Ciência da Informação –PUCCAMP Administração da Informação (a partir de 2001)

8 Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação – UNESP

Informação, tecnologia e conhecimento (a partir de 2005)

9 Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação – UFBA

Informação e Conhecimento na Sociedade Contemporânea (a partir de 2006)

10 - Curso de Mestrado em Ciência da Informação – UFSC Gestão da Informação (a partir de 2003)

11 – Curso de Mestrado em Ciência da Informação - UFPE Informação, Memória e Tecnologia (a partir de 2009)

Fonte: Adaptado de Pinheiro (2007)

A identidade de projeto propalada por Castells (2008) pode ser concebida a partir da idéia de que a Ciência da Informação tem um papel produtivo na construção de estudos investigativos que busquem resolver problemas de informação (PINHEIRO, 2007), bem como no seio das relações regionais entre alguns programas de pós-graduação e para a sociedade em um contexto mais lato. Essa identidade de projeto (CASTELLS, 2008) ainda é embrionária em virtude de que muitos programas ainda estão iniciando suas atividades e, provavelmente, outros programas irão surgir.

O próximo quadro apresenta as linhas de pesquisa atualmente:

Page 263: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 263

Quadro 5: Linhas de pesquisa das Pós-Graduações em Ciência da Informação na primeira década do século XXI

LINHAS DE PESQUISAS DAS PÓS-GRADUAÇÕES

EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

IBICTUFRJ

PUCCAMP

UFF UFBA

UFMG

UFPB

UFPE UFSC

UnB UNESP

USP

Apropriação Social da Informação

x

Comunicação e Mediação da Informação

x

Comunicação e Visualização da Memória

x

Comunicação, Organização e Gestão da Informação e do Conhecimento

x

Configurações Socioculturais, Políticas e Econômicas da Informação

x

Ética, Gestão e Políticas de Informação

x

Fluxos de Informação xFluxos e Mediações Sócio-técnicas da Informação

x

Gestão da Informação xGestão da Informação e do Conhecimento

x

Gestão de dispositivos da informação

x

Gestão, Mediação e Uso da Informação

x

Informação e Tecnologia xInformação, Cultura e Sociedade x xMemória, Organização, Produção e Uso da Informação

x

Memória da Informação Científica e Tecnológica

x

Organização da Informação xOrganização da Informação e do Conhecimento

x

Organização e Uso da Informação

x

Políticas e Tecnologias da Informação

x

Produção, Circulação e Mediação da Informação

x

Produção e Organização da Informação

x

Profissionais da Informação xFonte: Adaptado de Pinheiro (2007).

Page 264: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 264

Portanto, notifica-se que a Ciência da Informação está começando a desenvolver sua identidade de projeto (CASTELLS, 2008) ampliando suas pós-graduações e fortalecendo sua estrutura acadêmico-curricular.

3 Procedimentos metodológicos3.1 Caracterização do estudo

Para a classificação da pesquisa, tomou-se como base a taxonomia apresentada por Vergara (2003), que qualifica a pesquisa em dois aspectos: fins e meios. Quanto ao nível de pesquisa é de cunho exploratório, haja vista que busca discutir a realidade da Ciência da Informação e delinear os aspectos que caracterizam a sua identidade. Para corroborar com o pensamento da pesquisa exploratória, Gil (1999, p. 43) afirma que as pesquisas exploratórias são realizadas “Especialmente quando o tema escolhido é pouco explorado e torna-se difícil sobre ele formular hipóteses precisas e operacionalizantes”. Em nível documental foram utilizados essencialmente os documentos virtuais dos PPGCIs para análise da pós-graduação em Ciência da Informação no Brasil e caracterizar sua identidade.

No que concerne ao método de análise de acordo com Gil (1999) pode-se dividi-lo em dois aspectos: métodos técnicos de investigação e métodos lógicos de investigação. Quanto ao primeiro tipo foi adotado o método dedutivo como forma de analisar as características teóricas e gerais da Ciência da Informação. Quanto ao segundo tipo apresenta o método de análise indiciário também chamado de paradigma indiciário que foi desenvolvido por Ginzburg (1989) no contexto das ciências humanas, especialmente da semiótica. Embora seja fundamentado por Ginzburg na década de 1980 considerando a realidade a partir do final do século XIX, tem raízes históricas desde a Antiguidade. Como afirma Freire (2001, p. 63) “Esse paradigma, que Ginzburg chama de indiciário, tem raízes muito antigas, que remontariam à própria evolução da humanidade”. Em suma, o método indiciário se aplica a presente pesquisa em virtude da busca por indícios nos sites dos PPGCI’s que contemplassem as áreas de concentração, linhas de pesquisa e as disciplinas dos Programas.

3.2 Técnicas de coleta de dados

É de fundamental importância estabelecer uma conexão entre a análise dos PPGCI’s e a fundamentação teórica do presente trabalho, especialmente no que tange a contextualização histórico-social da pós-graduação em Ciência da Informação no Brasil. Vale ressaltar que a análise dos PPGCI’s foi efetuada a partir do site de cada programa (IBICT/UFRJ, USP, UFMG, UnB e UNESP) contemplando os seguintes enunciados de seu conteúdo programático: área de concentração e linhas de pesquisa, seguindo as discussões desenvolvidas no referencial teórico do presente trabalho.

A escolha desses Programas deve-se ao fato de que possuem mestrado e doutorado, o que

Page 265: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 265

possibilita uma análise mais completa da pós-graduação em Ciência da Informação em nível nacional. A importância em contemplar estes enunciados é referente ao fato de que compõem a base da estrutura acadêmico-curricular dos programas de pós-graduação.

4 Análise e interpretação dos dados

A seguir, são apresentados e analisados os dados da pesquisa, sendo estabelecido, ao longo do texto, com os pressupostos levantados na introdução, no referencial teórico e nos procedimentos metodológicos que compõem o presente trabalho.

4.1 Das áreas de concentração

A área de concentração de um Programa de Pós-Graduação atenta para significados gerais do que o programa pretende abordar. Por isso, é interessante observar que a análise do presente trabalho em torno das áreas de concentração dos PPGCI’s considera aspectos gerais que definem sua política de atuação acadêmico-científica, visando estabelecer algumas marcas identitárias genéricas. Para adentrar na análise sobre as áreas de concentração dos PPGCI’s faz-se necessário expor sua estruturação, conforme mostra o quadro.

Quadro 6: Área de concentração dos PPGCI’s no Brasil atualmentePROGRAMAS/CURSOS ÁREAS DE CONCENTRAÇÃO/ANO

Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação IBICT/UFRJ Informação e Mediações Sociais e Tecnológicas para o Conhecimento.

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação UFBA Informação e Conhecimento na Sociedade Contemporânea

Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação UFMG Produção, organização e utilização da informação

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação UnB Gestão da informação

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação UNESP Informação, tecnologia e conhecimento

Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação USP Cultura e informação

Partindo para a área de concentração do PPGCI do IBICT/UFRJ intitulada Informação e Mediações Sociais e Tecnológicas para o Conhecimento, observa-se uma variedade de interpretações conceituais. Com efeito, considera-se uma primeira marca identitária da área de concentração do IBICT/UFRJ que é a identidade subjetiva. Isso ocorre em virtude de que pensar interdisciplinaridade e sociedade da informação implica em concepções diversas (opostas, convergentes ou complementares) de como avaliar o fenômeno da sociedade da informação pelo viés da interdisciplinaridade. A ação de informação (GONZÁLEZ, 2004) no contexto da geração, organização, preservação, disseminação, acesso e recuperação convencional e eletrônica e usos socialmente significativos da informação

Page 266: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 266

indicam outra marca identitária da Pós-Graduação do IBICT/UFRJ que é a identidade afirmativa. A identidade afirmativa é necessária por dois motivos: o primeiro para enfatizar a Pós-Graduação do IBICT em termos de pesquisa, ciência e percepção acadêmica em Ciência da Informação. O segundo é para mostrar as particularidades do referido PPGCI.

O PPGCI da UFBA tem como área de concentração Informação e Conhecimento na Sociedade Contemporânea. Percebe-se que o PPGCI da UFBA enfatiza já em sua ementa a relação entre a área de concentração e as linhas de pesquisa. Compreende-se que a área de concentração do PPGCI da UFBA destaca a possibilidade de estudos sobre a informação como fenômeno social, econômico e cultural para o desenvolvimento da nação. Destarte, notifica-se que o PPGCI da UFBA possui uma identidade social no contexto da informação. Silva (2000, p. 89) afirma que “A identidade é um significado – cultural e socialmente atribuído”.

Com relação ao PPGCI da UFMG a sua área de concentração intitulada Produção, organização e utilização da informação pode ser destacada como reconhecidamente consolidada em virtude de ter sido constituída desde 1997 e se perpetua até os dias de hoje. Não foi encontrado ementa ou qualquer outro texto que especifique os estudos referentes a área de concentração do PPGCI da UFMG. Pode-se definir a área de concentração do PPGCI da UFMG a partir de uma identidade interseccional. Essa identidade pode ser configurada quando há uma relação efetiva entre determinados fenômenos que possuem ampla complementaridade e, principalmente, quando não é possível claramente identificar o início de uma e o término de outra. No caso da identidade interseccional entre produção, organização e utilização da informação, é possível aferir que são processos interligados de tal modo que torna-se muito difícil separá-los e identificá-los de forma isolada, pois o sentido efetivo ocorre quando são avaliados de forma conjunta.

No que se refere ao PPGCI da UnB a sua área de concentração em Gestão da informação apresenta um caráter peculiar. Não foi encontrada uma ementa ou qualquer outro texto que especifique a área de concentração. Compreende-se, no caso do PPGCI da UnB (chamado de PPGCInf) que a Gestão da Informação compreende os processos de organização da informação; comunicação e mediação da informação que constituem as linhas de pesquisa do Programa. Entende-se que a área de concentração do PPGCInf da UnB toma como base um procedimento de estudos sobre identidade profissional, dado que é muito comum o pensamento da gestão da informação como estudo voltado para questões informacionais que envolvam estratégias, planejamentos e processos relacionados a diferentes espaços de informação voltados para profissionais, usuários e meios de organização, comunicação e mediação da informação.

O PPGCI da UNESP apresenta como área de concentração Informação, Tecnologia e Conhecimento. Observa-se que a área de concentração do PPGCI da UNESP atenta para um diálogo específico em dois ambientes: ambiente interno e ambiente externo. O primeiro ambiente indica as discussão e pesquisa no âmbito da organização, gestão e uso da informação, tendo as tecnologias papel fundamental nesse processo. O segundo ambiente indica o diálogo do PPGCI com órgãos como

Page 267: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 267

a ANCIB e a ABECIN a fim de fortalecer a base acadêmico-científica do PPGCI, assim como contribuir para as pesquisas sobre Ciência da Informação no Brasil. Assim como no PPGCI da UFMG, o PPGCI da UNESP prioriza as reflexões sobre organização, gestão e uso da informação de forma integrada atestando a necessidade de pensar a informação, a tecnologia e o conhecimento em uma perspectiva gerencial, organizacional e mediacional. Isso mostra mais uma vez a constatação de uma identidade interseccional que compõe a necessidade de uma relação direta entre os termos atribuídos nos estudos da área de concentração (gestão, organização, mediação e uso da informação).

O PPGCI da USP possui como área de concentração Cultura e Informação. Percebe-se que esta área de concentração é uma das mais peculiares dos PPGCI’s, haja vista que dedica enfaticamente espaço para estudos culturais atrelados a informação. A área de concentração do PPGCI da USP pode ser basicamente dividida em dois fatores: a primeira atenta para a relevância da informação como instrumento propositivo no enfoque organizacional, de preservação e circulação (coleta, seleção, organização, acesso) em equipamentos culturais inferindo que informação e cultura possuem um entrelaçamento que pode produzir novos sentidos sociais para indivíduos e grupos. Pode-se afirmar que a área de concentração do PPGCI da USP apresenta uma identidade subjetiva, de sorte que cultura e informação, tanto isolada como conjuntamente podem abarcar estudos em diversas perspectivas sociais, educacionais, políticas e econômicas.

4.2 Das linhas de pesquisa

As linhas de pesquisa especificam a abordagem geral definida nas áreas de concentração. Isso significa afirmar que o conceito de área de concentração pode apresentar certas inconsistências, pois como afirma Menandro (2003, p.180) “o conceito de área de concentração padece de “frouxidão”. Por isso, a área de concentração ganha caráter elucidativo mais sólido quando se define as linhas de pesquisa do Programa.

O PPGCI do IBICT/UFRJ está articulado em duas linhas de pesquisa:

Quadro 7: Linhas de pesquisa do PPGCI do IBICT/UFRJ

PPGCI/IBICT/UFRJ Nome da linha de pesquisa

Linha de pesquisa 1 Comunicação, Organização e Gestão da Informação e do Conhecimento

Linha de pesquisa 2 Configurações socioculturais, políticas e econômicas da informação

Na primeira linha de pesquisa verifica-se que possui grande diversidade de assuntos, tornando-a eminentemente densa e dispersiva. Pode-se dividir esta linha de pesquisa em vários quesitos: o primeiro está relacionado aos estudos históricos e epistemológicos. O segundo quesito é uma conseqüência do primeiro, pois insere as questões sobre comunicações científicas e tecnológicas e a aplicação de estudos métricos da informação. O terceiro quesito está relacionado aos sistemas de organização e

Page 268: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 268

representação do conhecimento, ontologias, web semântica e contribuições da lingüística. A segunda linha de pesquisa pode ser desenvolvida em três eixos: ética, políticas e tecnologias da informação e da comunicação; estudos socioculturais e econômicos da informação, ciência e tecnologia no contexto das transformações do trabalho no sistema capitalista; conhecimento, informação e linguagem no contexto sociocultural e tecnológico relativo ao uso, colaboração, produção e competência em informação.

Dessa maneira, verifica-se que as linhas de pesquisa do PPGCI do IBICT/UFRJ configuram-se em uma identidade fragmentada em virtude de que há uma densidade muito ampla de assuntos. Assim, é possível identificar como vantagem a possibilidade de investigação sobre assuntos variados.

O PPGCI da UFBA se articula em duas linhas de pesquisa, como mostra o quadro:Quadro 8: Linhas de pesquisa do PPGCI da UFBA

PPGCI/UFBA Nome da linha de pesquisa

Linha de pesquisa 1 Políticas e tecnologias da informação

Linha de pesquisa 2 Produção, circulação e mediação da informação

A primeira linha de pesquisa anuncia uma perspectiva relativa a política de informação como objeto voltado para o acesso e controle da informação considerando a importância das tecnologias intelectuais. A política deve ser entendida em dois aspectos: a partir de um discurso extrinsecamente compartilhado e uma condição interna que prevê a execução de ações. Assim, a política de informação, seria uma proposta de transição de um discurso para uma ação que visa transformar uma determinada realidade de produção, comunicação, geração, organização e/ou acesso à informação. Já a segunda linha de pesquisa centra seus estudos na produção, disseminação, transferência, mediação e apreensão da informação contemplando três aspectos: processos, fluxos e comportamentos informacionais; redes sociais e humanas no uso da informação; e competências informacionais e programas de inclusão digital. Desse modo, a mediação da informação fundamenta os pressupostos que dão vazão aos três aspectos estabelecidos na linha de pesquisa: processos, fluxos e comportamentos informacionais, pois a mediação da informação será vital para entender como a informação é produzida, assim como os comportamentos informacionais envolvidos.

Percebe-se nas linhas de pesquisa do PPGCI da UFBA uma marca identitária muito latente que é a identidade estrutural. A identidade estrutural ocorre de acordo com a afirmação de Dubar (1998) quando as categorias dos discursos de determinados fenômenos definem-se pelo ponto de vista de outros fenômenos. Aplicando ao caso do PPGCI da UFBA cumpre ressaltar que as linhas de pesquisa e suas ementas são compostas de elementos que são interdependentes e necessitam de uma relação direta a fim de que possam coexistir.

O PPGCI da UFMG apresenta as seguintes linhas de pesquisa, como dispõe o quadro:

Page 269: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 269

Quadro 9: Linhas de pesquisa do PPGCI da UFMG

PPGCI/UFMG Nome da linha de pesquisa

Linha de pesquisa 1 Gestão da Informação e do Conhecimento – GIC

Linha de pesquisa 2 Informação, Cultura e Sociedade – ICS

Linha de pesquisa 3 Organização e Uso da Informação – OUI

A primeira linha de pesquisa apresenta um enfoque claro e objetivo que é investigar a gestão da informação e do conhecimento no contexto organizacional. Isto mostra uma preocupação da linha de pesquisa em promover perspectivas de estudos acadêmicos e científicos sobre gestão da informação e do conhecimento voltados para questões mercadológicas, institucionais, políticas, sociais, tecnológicas, empresariais e organizacionais, seja no setor público, seja no setor privado. Com relação a segunda linha de pesquisa destaca-se dois fatores: aborda o campo da Ciência da Informação em seu construto epistemológico que envolve uma gama de estudos teóricos sobre este campo do conhecimento; em segundo lugar, abrange a informação em diversas condições teóricas e aplicativas nos desdobramentos sociais, culturais, políticos, governamentais e tecnológicos (ênfase nos estudos sobre sociedade da informação). A terceira linha de pesquisa segundo o site do PPGCI da UFMG pode ser considerada como um instrumento que aproximam Ciência da Informação como campo do conhecimento e Biblioteconomia como disciplina em virtude da valorização da biblioteca através de dois vieses: sistemas de recuperação de informação; organização e uso da informação.

Entende-se que as linhas de pesquisa do PPGCI da UFMG apresentam uma identidade em uma tessitura de subjetividade. A subjetividade da identidade no PPGCI da UFMG está nas múltiplas possibilidades de investigação que o pesquisador pode se ocupar através dos seus estudos, visando a concretização de objetivos e finalidades previamente estabelecidas.

O PPGCI da UnB apresenta as linhas de pesquisa descritas no quadro abaixo:

Quadro 10: Linhas de pesquisa do PPGCInf da UnBPPGCInf/UnB Nome da linha de pesquisa

Linha de pesquisa 1 Organização da Informação

Linha de pesquisa 2 Comunicação e Mediação da informação

A primeira linha de pesquisa três fatores chamam atenção: o primeiro se refere ao fato de que refletir sobre organização da informação implica em avaliar um processo que vai desde a produção até o uso da informação identificando a importância da recuperação e tratamento da informação; o segundo atenta que a investigação sobre organização da informação remete a reflexão de que recuperação e tratamento da informação em diferentes formatos devem ser estudados observando o usuário e suas necessidades; o terceiro é que a organização da informação necessita de estudos sobre políticas e planejamentos relacionados a espaços de informação diversos. Na segunda linha de pesquisa vale

Page 270: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 270

considerar dois pontos: o primeiro é referente aos processos de comunicação em diversos setores da sociedade, especialmente no contexto da comunicação científica que está atrelado aos fluxos de informação, os atores e canais utilizados nesse fluxo; o segundo inclui estudos sobre políticas de comunicação nos desdobramentos sociais, políticos, culturais e econômicos da comunicação e acesso à informação levando em consideração estudos de algumas profissões ligadas a esse processo de comunicação.

Identifica-se como marca do PPGCInf da UnB a identidade profissional. Essa identidade profissional ocorre por dois motivos: por um lado pelo fato de que existe uma valorização muito grande nas linhas de pesquisa do Programa concernente a discursos profissionais e ênfase em investigações sobre profissões e mercado de trabalho ligado a informação e, por outro lado, pela valorização sobre estudos referentes a gestão, comunicação, política e mediação da informação aplicados em organizações.

O PPGCI da UNESP apresenta três linhas de pesquisa, conforme mostra o quadro:

Quadro 11: Linhas de pesquisa do PPGCI da UNESPPPGCI/UNESP Nome da linha de pesquisa

Linha de pesquisa 1 Informação e Tecnologia

Linha de pesquisa 2 Produção e Organização da Informação

Linha de pesquisa 3 Gestão, Mediação e Uso da Informação

Na primeira linha de pesquisa observa-se uma atenção especial as tecnologias como instrumento vital para o desenvolvimento dos estudos da linha de pesquisa, principalmente no que toca à geração, armazenamento, gestão, transferência, utilização e preservação da informação e de documentos nos ambientes científico, tecnológicos, empresarial e da sociedade em geral. Isso significa dizer que as tecnologias assumem um papel primordial nas pesquisas destinadas a investigar os sistemas de informação. A partir da segunda linha pode-se conceber duas dimensões: a primeira relativa a produção que é de nível teórico-epistemológico e envolve a produção científica e a produção documental (teoria da ciência e organização do conhecimento); a outra de nível aplicativo e profissional voltada para os estudos métricos da informação, procedimentos para organização da informação (análise, síntese, condensação, representação e recuperação do conteúdo informacional), além de perspectivas de investigação sobre a formação e atuação profissional sobre produção e organização da informação. Com relação a terceira linha de pesquisa Fadel et al (2010) entende que os estudos relacionados às competência em informação preocupam-se fundamentalmente com o desenvolvimento do usuário, tendo como enfoques a mediação da informação e a apropriação da informação.

Com efeito, vê-se como principal marca das linhas de pesquisa do PPGCI da UNESP identidade organizacional. Essa identidade organizacional acontece em virtude da tonalidade de pesquisa essencialmente voltada para gestão, produção, mediação, apropriação, recuperação, representação,

Page 271: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 271

uso e organização da informação e do documento em uma tessitura tecnológica64. Caldas e Wood Jr (1997) afirmam que a identidade organizacional está preocupada na forma como a organização é percebida pelo meio e como a própria organização percebe a si mesma (autopercepção).

O PPGCI da USP apresenta três linhas de pesquisa de acordo com o quadro:

Quadro 12: Linhas de pesquisa do PPGCI da USPPPGCI/UNESP Nome da linha de pesquisa

Linha de pesquisa 1 Apropriação social da informação

Linha de pesquisa 2 Gestão de dispositivos de informação

Linha de pesquisa 3 Organização da informação e do conhecimento

A primeira linha de pesquisa estuda a ação cultural que pode ser vista no discurso de Coelho (2004) a partir de dois fundamentos: o primeiro é referente a ação cultural de serviços, entendida mais como uma animação cultural, onde diferentes produtos ou serviços são propostos para um público ou clientela, lançando mão de atividades de divulgação, cujo objetivo é vender/aproximar produto e cliente; o segundo é relativo a ação cultural de criação, na qual a proposta é fazer a ponte entre as pessoas e a obra de cultura ou arte para que, dessa obra, possam as pessoas retirar aquilo que lhes permitirá participar do universo cultural como um todo.

Vale destacar na linha de pesquisa a infoeducação (união epistêmica entre informação e educação) no sentido de mostrar que mais importante do que simplesmente transmitir informações é observar o usuário como sujeito do processo de aprendizagem.

A segunda linha de pesquisa possui grande complexidade em virtude de relacionar assuntos de naturezas diversas, que estão atrelados a gestão de dispositivos de informação, tais como: serviços de informação; estudos métricos da informação; produção, circulação e acesso à informação em ambientes virtuais; estudos de comunidades virtuais e de usuários, entre outros. A terceira linha de pesquisa agrega alguns eixos (construção de linguagens documentárias; epistemologia da organização do conhecimento; políticas de informação em uma perspectiva organizacional) a fim de que as pesquisas sobre organização da informação e do conhecimento possam conquistar efetivo amadurecimento epistemológico.

Com efeito, afere-se que o PPGCI da USP, assim como foi caracterizado em sua área de concentração, possui uma identidade marcadamente subjetiva pelo fato de que o Programa possui três linhas com grande densidade epistemológica atentando para as múltiplas possibilidades de investigação que o pesquisador pode se ocupar através dos seus estudos com relação a informação65.

64 Entenda-se organização aqui como objeto de pesquisa a ser construído e investigado. Como a proposta do PPGCI da UNESP envolve amplamente aspectos organizacionais, a organização pode ser entendida como uma empresa, uma indústria, um centro de informação (biblioteca, arquivo, museu, web. etc.) e seus suportes documentais e informacionais, além dos seus contextos gerenciais, mediacionais e tecnológicos que se constituem como objeto de pesquisa de docentes e discentes.

65 É preciso conceber uma diferenciação entre a identidade subjetiva da USP e a identidade subjetiva da UFMG. Pode-se

Page 272: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 272

5 Considerações finais

Percebe-se que a Pós-Graduação em Ciência da Informação tem seu início no ano de 1970 que se firmou como a primeira Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil e na América Latina idealizada pelo IBBD em parceria com a UFRJ. É importante frisar que esta foi a única Pós-Graduação que já foi criada com o nome Ciência da Informação.

Verifica-se, na década de 1980, o início da formação de uma autonomia em Ciência da Informação, a partir do início da concentração de docentes e pesquisadores nacionais. A década de 1990 é um marco para a Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil, especialmente pelo fato de que as Pós-Graduações em Biblioteconomia passaram a se chamar Ciência da Informação (PPGCI’s). Essa mudança de Biblioteconomia para Ciência da Informação, tanto foi de nível institucional, quanto de nível acadêmico. Essas mudanças acadêmicas promoveram uma marca chamada de identidade institucionalmente modificada, pois as mudanças ocorreram em contextos formais, mas também na perspectiva de ampliar as atividades com informação em seus Programas. A primeira década do século XXI continua com um conjunto de mudanças ao qual pode-se chamar do início da construção de uma identidade de projeto (CASTELLS, 2008) para a Pós-Graduação em Ciência da Informação no Brasil.

A partir da análise das áreas de concentração constata-se que os PPGCI’s possuem características identitárias específicas. No que se refere as linhas de pesquisa constatou-se marcas identitárias nos PPGCI’s considerando a realidade específica de cada Programa.

Finalmente, espera-se que o presente trabalho possa contribuir com as discussões referentes a epistemologia da Ciência da Informação no Brasil em suas perspectivas históricas, científicas, tecnológicas, sociais e institucionais.

Referências

CALDAS, Miguel Pinto; WOOD JR., Thomaz. Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 37, n.1, p. 6-17. Jan./Mar., 1997.

CARVALHO, Abigail de Oliveira. Pós-Graduação em Biblioteconomia e Ciência da Informação; reflexões, sugestões, experiências. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG , v. 7, n.2, p. 289-309, set. 1978.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade – A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v. 2.

CNPq/IBICT. Criação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).

afirmar que a identidade subjetiva da USP é extrínseca em virtude da informação poder ser associada a outra gama de assuntos denso, tais como: cultura, educação, entre outros. Já a identidade subjetiva da UFMG é intrínseca em virtude de a informação é acompanhada de instrumentos como produção, organização, utilização, gestão que são inerentes aos processos de informação.

Page 273: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 273

Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1-2, p. 11-112, 1976.

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. Cultura e imaginário. 3a edição São Paulo: Iluminuras, 2004.

DUBAR, Claude. Trajetórias sociais e formas identitárias: alguns esclarecimentos conceituais e metodológicos. Educação e Sociedade, Campinas, v. 19, n. 62, 1998.

FADEL, Bárbara et al. Gestão, mediação e uso da informação. In: VALENTIM, Marta (Org.). Gestão, mediação e uso da informação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 13-32.

FREIRE, Isa Maria. A responsabilidade social da ciência da informação e/ou o olhar da consciência possível sobre o campo científico. 2001. Tese. (Doutorado em Ciência da Informação) - IBICT, UFRJ, Rio de Janeiro, 2001.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. GOMES, Hagar Espanha. Experiência do IBBD em programas de pósgraduação Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p.13-26, mar. 1974.

GONZÁLEZ DE GÓMEZ, Maria Nélida. Novas fronteiras tecnológicas das ações de informação: questões e abordagens. Ciência da Informação, v.33 n.1, p. 55-67, 2004.

MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Linha de pesquisa: possibilidades de definição e tipos de utilização do conceito. Revista de Administração Contemporânea. 2003, vol.7, n.2, pp. 177-182.

MUELLER, Suzana Pinheiro Machado. Avaliação do estado da arte da formação em biblioteconomia e ciência da informação. Ciência da Informação, Brasília, v.17, n.1, p. 71-81, 1988.

MÜELLER, Suzana Pinheiro Machado. O Ensino de Biblioteconomia no Brasil. Ciência da Informação, Brasília, v. 14, n. 1, p. 3-15, jan./jun. 1985.

PAIM, Isis. A ciência da informação na UFMG: a trajetória do programa de pós-graduação.Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 5, n. especial, p. 105-110,jan./jun. 2000.

PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro. Cenário da pós-graduação em Ciência da Informação no Brasil, influências e tendências. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ENANCIB), 8, Salvador, Anais..., 2007.

POBLACIÓN, Dinah Aguiar; NORONHA, Daisy Pires. Rumos da comunidade brasileira de pesquisadores brasileiros em Ciência da Informação: desafios do século XXI. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ENANCIB), 5., 2003, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, nov. 2003.

SILVA, Tomaz. Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz. Tadeu. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 73-102.

Page 274: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 274

SMIT, Johanna Wilhelmina. A política governamental para a pós-graduação em ciência da informação noBrasil. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 9, n. 2, 1999. Disponível em:<http://www.ies.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/398/319> Acesso em: 27 jan. 2011.

SMIT, Johanna Wilhelmina; DIAS, Eduardo Wense; SOUZA, Rosali Fernandez de. Contribuição da Pós-graduação para a Ciência da Informação no Brasil: uma visão. DataGramaZero: Revista de Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v.3, n.6, dez. 2002. Disponível em <http://www.dgz.org.br/

dez02/Art_04.htm> Acesso em: 27 jan. 2011.

VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomás Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-72.

Page 275: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 275

P Ô S T E R

CARACTERÍSTICAS NATURAIS DA INFORMAÇÃO: VISÃO INTERDISCIPLINAR DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO COM

A FÍSICA E A BIOLOGIA

Marcelo Stopanovski Ribeiro, Rogério Henrique de Araújo Júnior

Resumo: A informação é um dos, ou o, objeto da Ciência da Informação, por óbvio. No entanto, seria possível afirmar que a categoria “informação”, na forma como é discutida e compreendida nas ciências naturais, tem igual relevância para a Ciência da Informação? Seria possível – e conveniente - transportar interdisciplinarmente as características da informação encontradas na natureza para o campo de interesse da Ciência da Informação? Eis o ponto de inquietação do relato que segue, o qual esboça o andamento de uma tese de doutorado que possui estas perguntas como seu ponto de partida e que pretende as aplicar em exemplos práticos do entendimento de ferramentas de análise de informação no mundo da Ciência da Informação. Este escrito é uma comunicação de pesquisa visando à crítica dos pares na construção válida do transporte interdisciplinar de conceitos.

Palavras-chave: Conceito de Informação. Características da Informação nas Ciências Naturais. Interdisciplinaridade.

Abstract: Information is one of, or the object of Information Science, obviously. However, is it possible to say that the category “information”, in the way it is discussed and understood in the natural sciences, has equal relevance to information science? It would be possible - and convenient – to interdisciplinarly transfer characteristics of information found in the nature to the field of Information Science? This is the point of interest of the following report, which outlines the progress of a doctoral thesis that has these questions as its starting point and that intends to apply them in practical examples of the understanding of data analysis tools in the world of Information Science. This written communication aims at being criticized towards the valid transport of interdisciplinary concepts.

Key-words: Information concept. Information characteristics on Natural Sciences. Interdisciplinary.

1 INTRODUÇÃOHá alguns anos a pergunta se a informação descrita na Teoria Matemática da Informação de

Shannon seria a mesma informação da Termodinâmica, ramo da Física, implicando que a categoria entropia descrita nessas duas teorias seria a mesma, seria vista como imprópria, pois o argumento era de que a Teoria da Informação usou a entropia da Termodinâmica como uma analogia da organização da informação com a das moléculas.

Pois bem, recentemente, mais precisamente em junho de 2011, um artigo publicado na revista Nature descreveu que apagar (deletar) dados poderia esfriar os computadores em nível quântico! Uma clara e esmiuçada comprovação de que as duas entropias eram a mesma. “‘Nós demonstramos agora

Page 276: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 276

que, em ambos os casos, o termo entropia está de fato descrevendo a mesma coisa, mesmo no regime da mecânica quântica,’ explica Renato Renner, do Instituto de Tecnologia de Zurique”, cita a notícia sobre a novidade [INOVAÇÃO, 2011].

Interessante constatação, mas ela não figura sozinha na discussão cotidiana das ciências naturais sobre a informação. Diariamente, a Física fala sobre informação, na questão das partículas quânticas e sua possibilidade de transmitir informação independente do espaço e do tempo ou na pergunta cosmológica de Stephen Hawking se a informação escapa ou é destruída por um buraco negro, sem citar o LHC66 como o maior coletor de informações da humanidade. Diariamente, a Biologia pensa em informação, na transmissão da informação por feromônios ou na evolução dos seres vivos vista como o aprimoramento da capacidade de processar informação, sem falar na genética. Isso só para citar alguns exemplos de como as ciências naturais se interessam pela informação.

E informação é um dos, ou o, objeto da Ciência da Informação, por óbvio, mas nem tanto assim, seria a categoria informação discutida nas ciências naturais de interesse da Ciência da Informação? Seria possível transportar interdisciplinarmente as características da informação encontradas na natureza para o campo de interesse da Ciência da Informação?

Eis o ponto de inquietação do relato que segue, o qual esboça o andamento de uma tese de doutorado que possui as perguntas acima como seu ponto de partida e que quer as aplicar em exemplos práticos do entendimento de ferramentas de análise de informação no mundo da Ciência da Informação. Este escrito é uma comunicação de pesquisa visando à crítica dos pares na construção válida do transporte interdisciplinar de conceitos.

2 A TESE

O trabalho monográfico consubstanciado na tese de doutoramento propõe um quadro de referência teórica para ferramentas de análise de informações probatórias jurídicas, construído com base em características naturais da informação.

A metodologia para a construção do quadro inicia pela identificação na literatura de características da informação na natureza. Essa fase concentra-se em quatro estratégias para a revisão de literatura: a) livros de divulgação científica de Física e Biologia, escolhidos com base na sua popularidade e destaque do autor; b) artigos em revistas de Ciência da Informação brasileiras e em inglês que incluam os termos Física ou Biologia; c) artigos em bases de pesquisa abertas que apresentem os termos Ciência da Informação e Física ou Biologia; e d) artigos em revistas de Física e Biologia em inglês que apresentem termos como propriedade ou característica da informação.

Como exemplo do volume coletado nas revistas de Ciência da Informação, vide as tabelas 1 e 2 a seguir:

66 Large Hadrons Colisor (Grande Colisor de Hádrons), acelerador de partículas considerado a maior experiência científica da humanidade e que colhe 15 Petabytes (15 milhões de Gigabytes) por ano [CERN, 2011].

Page 277: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 277

Tabela 1: Artigos de revistas brasileiras. TermosRevista Física Biologia

1 BIBLOS 1 12 CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO 68 213 DATAGRAMAZERO 0 04 EM QUESTÃO 66 135 ENCONTROS BIBLI 5 46 INFORMAÇÃO & INFORMAÇÃO 3 07 INFORMAÇÃO & SOCIEDADE: ESTUDOS 1 08 PERSPECTIVAS EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO 7 19 PONTO DE ACESSO 2 010 REVISTA ACB 5 1

11 REVISTA BRASILEIRA DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO 1 0

12 REVISTA DIGITAL DE BIBLIOTECONOMIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO 2 0

13 LIINC EM REVISTA 2 114 TRANSINFORMAÇÃO 2 015 EXTRA LIBRIS 12 3

Total 177 45Fonte: Autores. Período do levantamento: jan-fev/2011.

As informações que constam nas tabelas referem-se ao início do ano de 2011. No estado atual da pesquisa pode-se verificar que uma parte significativa dos artigos, com números ainda não fechados, trata de assuntos ligados a fontes de informação e Bibliometria sobre Física e Biologia ou à utilização dos termos em contextos diferentes dos procurados.

O resultado parcial do levantamento indica pouca literatura nacional sobre questões de fundo a respeito das características ou propriedades da informação nas ciências naturais escolhidas.

Tabela 2: Artigos de revistas em língua inglesa. Termos

Revista Physics Biology

1 AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION 6 1

2 ASLIB PROCEEDINGS NEW INFORMATION PERSPECTIVES 375 175

3 CURRENT CITES 5 5

Page 278: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 278

4 ETHICS AND INFORMATION TECHNOLOGY 1 05 IFLA JOURNAL 77 316 IN THE LIBRARY WITH THE LEAD PIPE 2 77 INFORMATION RESEARCH 103 868 INFORMING SCIENCE 29 329 INTERNATIONAL INFORMATION AND LIBRARY REVIEW 25 910 INTERNATIONAL REVIEW OF INFORMATION ETHICS 5 511 JOURNAL OF DOCUMENTATION 287 18412 JOURNAL OF INFORMATION SCIENCE 235 131

13 JOURNAL OF LIBRARIANSHIP AND INFORMATION SCIENCE 89 42

14 JOURNAL OF THE ASIS&T 1238 81915 NEW LIBRARY WORLD 241 17616 PROGRESSIVE LIBRARIAN 66 4617 RESOURCESHELF 116 11318 SRRT NEWSLETTER 4 519 THE INDEXER 120 92

Total 3024 1959Fonte: Autores. Período do levantamento: jan-fev/2011.

Após a leitura do material coletado a metodologia definida para a tese propõe agregar as características da informação encontradas em um quadro conceitual, o qual deve ser utilizado em entrevistas com especialistas das áreas naturais para a validação do entendimento da categoria e de sua proposta de aplicação na Ciência da Informação.

A última fase da construção da tese é a identificação, ou não, dessas características em ferramentas de análise de informações probatórias jurídicas. Ferramentas, estas, utilizadas ou prospectadas, por duas unidades de análise de informações para o campo jurídico delimitadas no governo federal com base na excelência de suas atividades.

O ponto específico da tese descrito neste artigo é o quadro de características da informação nas ciências naturais que será submetido aos especialistas visando o transporte interdisciplinar dessas propriedades para fenômenos de interesse da Ciência da Informação, notadamente a análise de informações.

3 CARACTERÍSTICAS DA INFORMAÇÃO NAS CIÊNCIAS NATURAIS

O presente estudo está ligado à Teoria Geral da Informação e usa como base para esta

Page 279: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 279

classificação o referencial texto de Wersig e Neveling (1975), no qual os autores prescrevem que qualquer estudo dito de Ciência da Informação deve de pronto identificar a área em que se está trabalhando, dentre as ciências da informação, a Teoria Geral da Informação e a própria Ciência da Informação. A importância das duas ciências (Física e Biologia) foi, inclusive, esquecida no artigo dos autores citados. Ao descreverem os fenômenos de interesse da Ciência da Informação, das 47 (quarenta e sete) áreas, campos, disciplinas ou ciências citadas, nenhuma foi a Biologia ou a Física.

No artigo de vasta revisão da literatura escrito por Capurro e Hjørland sobre o conceito de informação, logo na parte introdutória os autores já avisam que a discussão epistemológica desse conceito põe em jogo processos de informação não-humanos, “particularmente na Física e Biologia” [CAPURRO E HJØRLAND, 2007], assim como desafia a Psicologia e a Sociologia a usarem parâmetros objetivos ou situacionais.

Já no início da abordagem da Física Quântica, Niels Bohr, explica em seus ensaios sobre física atômica e conhecimento humano que a essência de sua argumentação “é que, para uma descrição objetiva e uma compreensão harmoniosa, é necessário, em quase todos os campos do conhecimento, prestar atenção às circunstâncias em que os dados são obtidos” [BOHR, 1995, p 3], revelando uma relatividade extrema apoiada no contexto de coleta e indicando que a questão central da física passaria a ser uma questão de informação.

Tais aspectos encontram resumo no livro A Face Oculta da Natureza, que descreve impactos da física quântica no entendimento do mundo. No livro o autor, um físico renomado e candidato ao Prêmio Nobel conclui em um capítulo inteiro sobre informação que “realidade e informação são a mesma coisa” [ZEILINGER, 2005, p 267].

Em um artigo recente sobre cognição, comunicação e mediação nas organizações do conhecimento disponível na revista Documentación de las Ciencias de la Información da Universidade Complutense de Madri, Morillo (2006) aponta para a classificação dos mundos de Popper como base para entender o lócus do conhecimento e da cognição.

A questão do paradigma cognitivo é baseada na abordagem biológica da informação. Os filósofos e biólogos chilenos Maturana e Varella, em seu livro “A Árvore do Conhecimento”, explicam a construção dos seres vivos em relação a sua capacidade de autonomia pela busca da sobrevivência e perpetuação reprodutiva, mecanismo denominado autopoiese. Esse mesmo conceito foi absorvido interdisciplinarmente por Niklas Luhman que definiu informação, segundo Capurro e Hjørland, como um evento que faz a conexão entre diferenças. Ainda, segundo os últimos autores citados, essa abordagem também é comum entre os cibernéticos, a exemplo da frase de Norbert Wiener: “informação é informação, não matéria, nem energia” [WIENER e colaboradores, 1970], cunhada em um contexto de entendimentos com biólogos que acrescentavam a categoria informação como um complemento nos seres vivos da dualidade matéria-energia da Física moderna.

Outra abordagem existente na Biologia é a que considera a capacidade de processamento da informação como: a) um dos diferenciais entre o que está vivo ou não; e b) um fator fundamental

Page 280: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 280

na evolução - quanto maior a capacidade de processar informação, mais evoluído o ser, até chegar aos seres que usam ferramentas (coisas externas ao corpo) para o processamento da informação, conforme Maynard Smith e Szathmáry (1999).

Um exemplo da abordagem biológica na Ciência da Informação é um artigo no qual é proposto um quadro conceitual de referência para a Ciência da Informação baseado em concepções da informação advindas da Teoria da Evolução [BATES, 2005].

O Quadro 1 apresenta as características da informação levantadas até o momento da pesquisa. A coluna B lista a ciência natural de onde a característica foi colhida. A alcunha “categoria” foi escolhida para a coluna C, pois o que se elenca são partes teóricas das ciências estudadas que versam sobre a informação, muitas vezes não apenas características ou propriedades. A coluna sobre entendimento coloca a maneira como o conceito foi entendido no campo de origem, em complementaridade com a coluna sobre aplicação que versa sobre a hipótese de como o conceito pode ser aplicado na Ciência da Informação.

Ciência Fonte Categoria Entendimento Aplicação

1 Física EntropiaTendência dos sistemas para “desorganizarem” informações

Menor entropia pode significar maior possibilidade de entendimento

2 Física IncertezaImpossibilidade de coleta total de informações sobre um fenômeno

Ciência de que a informação nunca será completa

3 Física EmaranhamentoLigação profunda entre as informações de dois elementos

Uma informação pode levar ao entendimento de outra

4 Física DecoerênciaDecaimento de todas as possibilidades para a informação que foi medida

Organizar significa perder parte da informação

5 Física Relatividade A dependência do observador só não ocorre em relação à luz

O contexto do usuário transforma o entendimento

6 Física QuantaPartículas são múltiplos de alguma coisa, não ocorrem em pedaços

Informação é um conjunto

7 Biologia Evolução

Tendência de melhor processamento de informações nos organismos mais evoluídos

Avançar envolve processar melhor a informação

Page 281: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 281

8 Biologia AutopoieseAutonomia do processamento de informações nos organismos

Visão de cada usuário é única

9 Biologia Gene Unidade de informação de um organismo

Possibilidade de variação significativa com poucas fontes

10 Física e Biologia Holos x Meros

As partes possuem informações do todo e vice-versa

Entendimento de uma parte pode significar compreensão do todo e vice-versa

Quadro 1: Categorias sobre informação nas Ciências NaturaisFonte: Autores

4 CONCLUSÕES PARCIAIS

John Wheeler, físico que cunhou o termo “buraco negro”, é citado por Zeilinger (2005, p 248) afirmando que “Amanhã teremos aprendido como entender a Física inteira na linguagem da informação e como expressá-la nessa linguagem.”

Na Filosofia da Informação de Floridi (2002), a categoria informação aparece conceituada como uma interface, um elemento que somente se manifesta quando dois lados se encontram e por essa categoria são mediados. Para o filósofo, a informação estaria no encontro do ser humano com o registro em um suporte. Essa compreensão da informação parece ser a que mais se aproxima do entendimento encontrado nas abordagens atuais das duas ciências aqui em foco, a Física e Biologia. Já que informação parece ser, no entendimento próprio do autor da tese: “a interface entre os seres vivos com a matéria e a energia”.

REFERÊNCIAS

BOHR, N. Física Atômica e Conhecimento Humano: Ensaios 1932-1957. Rio de Janeiro: Contra-ponto, 1995.

CAPURRO, R.; HJØRLAND, B. O conceito de informação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v.12, n.1, p. 148-207, abr.2007.

CERN. The European Organization for Nuclear Research. Worldwide LHC Computing Grid. URL: http://public.web.cern.ch/public/en/LHC/Computing-en.html, acesso em 05/08/2011.

FLORIDI, L. On defining library and information science as applied philosophy of information. Social Epistemology, v. 16, n. 1, p. 37-49. 2002.

INOVAÇÃO TECNOLÓGICA. Deletar dados pode resfriar computadores. URL: http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=conhecimento-quantico-resfriar-computadores, acesso em 01/08/2011.

Page 282: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 282

MATURANA, H. e VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano . Campinas: Psy II, 1995.

MAYNARD SMITH, J. and SZATHMÁRY, E. The Origins of Life. From the birth of life to the origin of language. Oxford Press. New York, 1999.

MORILLO, J. P.. De la comunicación documental informativa a la comunicación cognoscitiva. Perspectivas teóricas de los procesos de mediación en las organizaciones de conocimiento. Documentación de las Ciencias de la Información, v. 29, p. 69-89, 2006.

WERSIG, G.; NEVELING, U. Os fenômenos de interesse da ciência da informação. Information Scientist, v.9, n.4, p. 127-140, Dec. 1975.

WIENER, N. et al. Colóquios Filosóficos Internacionais de Royanmont. O conceito de informação na ciência contemporânea. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

ZEILINGER, A. A face oculta da natureza: O novo mundo da física quântica. Rio de Janeiro: Globo, 2005.

Page 283: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 283

P Ô S T E R

BREVES REFLEXÕES ACERCA DA INTERDISCIPLINARIDADE NA CIÊNCIA DA

INFORMAÇÃO: UM OLHAR ATRAVÉS DA FORMAÇÃO ACADÊMICA DO CORPO DISCENTE DO PPGCI IBICT /

UFRJ – 2009 E 2010

Leandro Coelho de Aguiar, Renata Regina Gouvea Barbatho

Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir acerca da interdisciplinaridade da Ciência da Informação através da análise da formação acadêmica e no nível de graduação do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCI do IBICT / UFRJ) que ingressaram no curso em 2009 e 2010. A hipótese que norteia este trabalho, baseada nas obras clássicas de Wersig, Borko, Saracevic e Pinheiro, é que a interdisciplinaridade como característica marcante da Ciência da Informação, se reflete na composição do corpo discente do programa de pós-graduação da área com múltiplas formações acadêmicas.

Palavras-chave: Epistemologia da Ciência da Informação. Interdisciplinaridade. Corpo discente. PPGCI IBICT UFRJ.

1 INTRODUÇÂO

A natureza interdisciplinar da Ciência da Informação (CI) atrai indivíduos de diversas áreas do conhecimento, pesquisadores dos mais diversos campos disciplinares convergem para a atmosfera da Ciência da Informação numa conjunção de saberes que, mesmo de forma inconsciente, evidencia a natureza interdisciplinar da área.

O objetivo deste trabalho é refletir acerca da interdisciplinaridade da CI através da análise da formação acadêmica, em nível de graduação, do corpo discente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCI do IBICT / UFRJ) ingressante nos anos de 2009 e 2010.

A hipótese que norteia este trabalho é que a interdisciplinaridade, como uma característica marcante da Ciência da Informação, influencia e reflete na composição do corpo discente do programa de pós-graduação da área, no que diz respeito às múltiplas formações acadêmicas dos seus discentes.

2 A INTERDISCIPLINARIDADE NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

Page 284: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 284

Para Japiassú (1976 apud PINHEIRO, 2009) a Interdisciplinaridade caracteriza-se pela presença de pressupostos comum a um grupo de disciplinas conexas e definidas no nível hierárquico imediatamente superior, o que introduz a noção de finalidade. Diz que na interdisciplinaridade há cooperação e diálogo entre as disciplinas do conhecimento. Muito se discuti acerca do papel da interdisciplinaridade, reconhecida como um dos princípios fundamentais da construção do conhecimento contemporâneo, devido principalmente às características e problemas fecundos na sociedade moderna, como por exemplo, a proliferação da informação, o crescimento da especialização das diferentes áreas de conhecimento e a necessidade de ligações entre estas áreas especializadas – e de certa forma fragmentadas. A construção e uso do conhecimento social vêm se modificando ao longo do tempo, não apenas refletindo na vida do indivíduo, mas principalmente para a sociedade, onde estas mudanças tornam-se cada vez mais aparentes. Tais mudanças conotam quatro traços relevantes na produção do conhecimento: (1) a despersonalização do conhecimento; (2) a crença no conhecimento; (3) a fragmentação do conhecimento; e, finalmente (4) a racionalização do conhecimento. Destes traços é que nascem as novas formas de conhecimento e práticas que propõem resoluções a problemas decorrentes destas novas relações sociais (WERSIG, 1993). As formas de conhecimento pós-modernas não devem ser comparadas aos paradigmas das ciências tradicionais, mas entendidas como um conjunto de novas formas de produção de conhecimento, com abordagens, metodologias e características distintas. (WERSIG, 1993).

3 INTERDISCIPLINARIDADE NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

“O que é a Ciência da Informação? O que faz o cientista da informação?” São com estes questionamentos que Borko inicia seu texto “Information science: what is it?” (1968). O autor definia CI como uma disciplina interdisciplinar que investiga as propriedades e o comportamento da informação; as forças que o governam e o seu fluxo; a sua utilização; e as suas técnicas, tanto manuais como mecânicas, de processos da informação para armazenagem, recuperação e disseminação. Saracevic (1995) descreve três características da CI: (1) sua conexão com a Tecnologia da Informação; (2) o entendimento de que ela é parte da evolução da sociedade da informação; (3) e, a sua natureza interdisciplinar. Deste a década de 1960 teóricos que apresentaram formulações conceituais sobre a CI, observando sua natureza interdisciplinar da área e enumerando as áreas de relacionamento. Borko defendia que a área deriva de outras áreas além da Biblioteconomia e Documentação, sendo de forte ligação com a Ciência e Tecnologia; Merta, destacou a Matemática, Lingüística e Semiótica Cibernética, Teoria Matemática da Comunicação, Reprografia e Teoria do Conhecimento automático, e a Engenharia de Sistemas; e Mikahilov et all, expuseram a relação da CI com a Semiótica e a Psicologia. Mais recentemente Tefko Saracevic abordou as razões interdisciplinares com a Ciência Cognitiva,

Page 285: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 285

Comunicação e a Ciência da Computação. (Borko; e Merta, 1968; Mikahilov et all, 1969; Saracevic, 1992 apud PINHEIRO 2009).Pinheiro mapeou as disciplinas ou subáreas da CI com suas respectivas áreas interdisciplinares, tendo como fonte os artigos do ARIST – Annual Review for Information Science and Technology – referentes ao período de 1966 a 2004, como resultado ressaltou mais uma vez o caráter interdisciplinar da área, observando uma rede de relacionamento interdisciplinar com pelo menos vinte outras áreas de conhecimento, com predominância da Ciência da Computação, Biblioteconomia, Administração e Lingüística. (1997 apud 2009).

4 ESTUDO DE CASO DA INTERDISCIPLINARIDADE NA CI – ANÁLISE DO CORPO DISCENTE DO PPGCI DO IBICT / UFRJ 2009 -2010.

Uma interessante forma de refletir acerca do caráter interdisciplinar da CI é estudar seu corpo discente dentro dos programas de pós-graduação da área, chamando atenção a formação e a trajetória acadêmica. O que levaram estes alunos a procurarem os caminhos da CI? Quais são as perspectivas e necessidades, tanto destes pesquisadores quanto da própria área a qual eles representam?A análise da trajetória acadêmica destes discentes pode ajudar a compreender o papel da CI na produção do conhecimento e a identificar quais as possibilidades de contribuições da mesma às outras áreas, e vise-versa, nesta relação interdisciplinar. Por isso que esta análise propõe a identificar quais são estas áreas de conhecimento originária dos pesquisadores stricto-sensu do IBICT, contribuindo para entendimento das formas com que estas trocas interdisciplinares estão acontecendo no campo da pesquisa acadêmica.

CORPO DISCENTE 2009 e 2010 do PPGCI IBICT / UFRJ POR FORMAÇÃO (Graduação)

ÁREA DE FORMAÇÃO DOUTORANDOS MESTRANDOS TOTAL

Administração 0 2 2

Agronomia 1 0 1

Arquivologia 4 6 10

Biblioteconomia 5 17 22

Ciência da Computação 1 1 2

Comunicação 2 4 6

Direito 1 0 1

Engenharia Civil 0 1 1

Page 286: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 286

Engenharia Mecânica 1 0 1

Estatística 0 1 1

Filosofia 1 0 1

História 1 2 3

Letras 1 0 1

Matemática 1 2 3

Medicina 1 1 2

Museologia 3 0 3

Pedagogia 0 1 1

Relações Internacionais 0 1 1

Não identificado*** 4 3 7

TOTAL 23 39 69**

Tabela 1 - Fonte: *Dados extraídos através de questionário respondido pelo corpo discente. ** São 68 alunos no PPGCI IBICT / UFRJ entre os anos de 2009 e 2010. Todavia foram contabilizados mais de uma vez aqueles que tinham mais de uma graduação. *** O campo “Não identificados” corresponde aos discentes que não responderam ao questionário.

Na tabela 1, pode observar-se a diversificação da formação dos discentes que ingressaram no curso, pois dos 68 pós-graduandos, de mestrado e doutorado do PPGCI UFRJ IBICT dos anos de 2009 e 2010, existem pelo menos 18 áreas de conhecimento diferentes. Tal fato corrobora o entendimento acerca da característica interdisciplinar da área, tendo em vista que seu corpo discente reflete esta diversificação, no que diz respeito a sua trajetória acadêmica até chegar ao programa de CI.

Pelo Gráfico 1 (abaixo), pode-se observar que a área de conhecimento que mais aparece, com 22 formações (32%) é a Biblioteconomia, seguida a distância pelas áreas de Arquivologia, com 10 formações (14%); Comunicação com 6 formações (9%); História, Museologia e Matemática, empatadas com 3 formações cada (4%); e as outras áreas que somadas resultam em 4%. Este amplo destaque da Biblioteconomia é explicado talvez pela aproximação histórica, assim como a Bibliografia e Documentação, principalmente no que diz respeito ao seu nascimento em meados do século passado. Outro fator ocorrido nas últimas décadas foi a mudança da nomenclatura de alguns departamentos de graduação e de programas de pós-graduação em Biblioteconomia e Documentação para o nome de DCI e PPGCI respectivamente, o que provocou uma maior aproximação entre estas áreas (BARBOSA et. al., 1997)

Page 287: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 287

CORPO DISCENTE 2009 e 2010 DO PPGCI do IBICT / UFRJ POR ÁREA DE FORMAÇÃO (GRADUAÇÃO

Agronomia; 1

Direito; 1

Engenharia Civil; 1

Engenharia Mecânica

Estatistica; 1

Filosofia; 1

Letras; 1

Pedagogia; 1

Relações Internacionais; 1

Administração; 2

Ciência da Computação; 2

Medicina; 2

História; 3

Matemática; 3

Museologia; 3

Comunicação; 6

Arquivologia; 10

Biblioteconomia; 22

Não identificado***; 7

0 5 10 15 20 25

FORM

AÇÃO

(GRA

DUAÇ

ÃO)

Quantidade

Gráfico 1 - Dados extraídos através de questionário respondido pelo corpo discente

Uma característica importante a ser observada na questão do relacionamento interdisciplinar nas áreas de conhecimento é se estas relações extrapolam os limites pré-determinados de áreas afins, neste caso os limites da Tabela de Áreas de Conhecimento do CNPq.

Na tabela 2, se observa que a interdisciplinaridade extrapola para outras Grandes Áreas de conhecimento, como as Ciências Exatas e da Terra, as Engenharias (neste caso, surpreende a entrada da Engenharia Civil e a ausência da Engenharia de produção, por exemplo), a entrada de áreas que historicamente não são mencionadas pelos teóricos da CI, como o caso da Ciência da Saúde e algumas áreas das Ciências Humanas, como a pedagogia.

CORPO DISCENTE 2009 E 2010 do PPGCI IBICT / UFRJ POR ÁREA E GRANDEÁREA DE CONHECIMENTO DE FORMAÇÃO (Graduação)

ÁREAS* GRANDES ÁREAS* TOTAL***Administração / Arquivologia

Biblioteconomia / ComunicaçãoDireito / Museologia

Ciências Sociais Aplicadas

44

Agronomia Ciências Agrárias 1Engenharia Civil / Engenharia

MecânicaEngenharias

2

Ciência da ComputaçãoEstatística / Matemática

Ciências Exatas e da Terra 6

Filosofia / HistóriaPedagogia / Relações Internacionais

Ciências Humanas 6

Letras Lingüística, Letras e Artes 1Medicina Ciências da Saúde 2

Page 288: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 288

Tabela 2 - Fontes: * Questionário preenchido pelo corpo discente. ** Tabela de Áreas de Conhecimento (TAC) do CNPq. *** Estão excluídos desta contagem os discentes cuja formação não foram identificadas.

No gráfico 2 ratifica-se a superioridade das Ciências Sociais Aplicadas no relacionamento com a CI, cerca de 70 % do corpo discente é oriundo desta Grande Área. Em seguida, vêm as Ciências Exatas e da Terra – elevadas pela participação da Ciência da Computação e da Matemática – e as Ciências Humanas, onde cada uma tem 10 % de freqüência. As Engenharias e a Ciências da Saúde, no qual cada uma tem 3% e, finalmente, as Ciências Agrárias e a Lingüística, Letras e Artes, com 1 % do corpo discente oriundos.

CORPO DISCENTE 2009 e 2010 do PPGCI do IBICT por Área e Grande Área de Conhecimento de formação acadêmica (Graduação)

10%

10%

3%3%

2%

2%

70%

Ciências Sociais Aplicadas (44)

Ciências Humanas (6)

Ciências Exatas e da Terra (6)

Engenharias (2)

Ciências da Saúde (2)

Ciências Agrárias (1)

Lingüística, Letras e Artes (1)

Gráfico 2 - Fontes: * Questionário preenchido pelo corpo discente. ** Tabela de Áreas de Conhecimento (TAC) do CNPq. *** Estão excluídos desta contagem os discentes cuja formação não foram identificadas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo buscou contribuir na visualização e no entendimento de uma pequena parte dos relacionamentos de interdisciplinaridade na CI em que se pôde observar que de fato esta possibilita a existência de atuações envolvendo múltiplas áreas, tendo em vista sua característica de ciência pós-moderna, como afirmou Wersig. E reconhecendo a importância da interdisciplinaridade na sociedade contemporânea, principalmente na produção de conhecimento científico e tecnológico, pode-se concluir que esta área permite, pelo menos na teoria, em melhorias sociais.

Abstract: The aim of this paper is to reflect on the interdisciplinarity of Information Science through the analysis of academic and graduate level of the student body of the Graduate Program in Information Science from the Brazilian Institute of Information Science and Technology agreement with the Federal University of Rio de Janeiro (PPGCI IBICT / UFRJ) who entered the course in 2009 and 2010. The hypothesis that guides this work, based on classic works Wersig, Borko, Saracevic and Pinheiro, is the hallmark of interdisciplinary and Information Science, is reflected in the composition of the student body of the program graduate with multiple formations of the area academic.Keywords: Epistemology of Information Science. Interdisciplinarity. The student body PPGCI IBICT UFRJ.

Page 289: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 289

REFERÊNCIASBARBOSA, Ricardo Rodrigues; BAX, Marcello Peixoto; CALDEIRA, Paulo da Terra ; e CENDÒN, Beatriz Valadares. Proposta apresentada à UFMG para mudança de nome da Escola de Biblioteconomia. Belo Horizonte: UFMG, 1997. Acessado no endereço <www.ufmg.br/escoladebiblioteconomia.00123.pdf> Acessado em 14 de julho de 2010.

BORKO, H. Information Science: what is it? American Documentation, 19 (1), 3:5, janeiro, 1968.

CAPURRO, R. “Epistemologia e Ciência da Informação”. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, V. Belo Horizonte, 10 de Novembro de 2003.

PINHEIRO, Lena V. Ribeiro. Configurações disciplinares e interdisciplinares da Ciência da Informação no ensino e pesquisa no Brasil. In: BORGES, Maria Manuel; CASADO, Elias Sanz (Orgs.). A Ciência da Informação criadora de conhecimento. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, University Press, 2009, pp. 99-111.

SARACEVIC, Tefko. A natureza interdisciplinar da Ciência da Informação. Revista Ciência da Informação – vol. 24, n. 1, 1995.

BARBOSA, et all. A interdisciplinaridade da Ciência da Informação determinando a formação de seus profissionais. In: Encontro Nacional de Ciência da Informação, 7, 2007, Salvador. Anais... Salvador: [s.n.], 2007.

WERSIG, Gernot. Information Science: the study of postmodem knowledge usage. Information Processing & Management, v. 29, n. 2, 1993, pp. 229-239, 1993.

Page 290: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 290

P Ô S T E R

A TEORIA MATEMÁTICA DA COMUNICAÇÃO E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

William Guedes

RESUMOEste trabalho ressalta as diferenças conceituais que termos comuns à Ciência da Informação e

à Teoria Matemática da Comunicação possuem em cada um de seus contextos e discute os limites da aplicação dessa teoria na CI. Resultados provisórios indicam que o significado, a relação entre informação e redução da incerteza e o próprio entendimento sobre o que é informação têm sido os temas de maior divergência.

Palavras-chave: informação, significado, teoria da matemática da comunicação, Ciência da Informação.

ABSTRACTThis paper emphasizes the conceptual differences that common terms to information science

and the mathematical theory of Communication have in each of its contexts, and discusses the limits of application of this theory in IS. Provisional results indicate that the meaning, the relationship between information and reduction of uncertainty and their own understanding of what information is have been the subjects of greater divergence.

Key words: information, meaning, the mathematical theory of communication, Information Science

1. IntroduçãoA Teoria da Matemática da Comunicação foi desenvolvida por Claude Shannon (1948) e Warren

Weaver (1949), e sua contribuição fundamental foi provar que existe um limite para a transmissão de sinais em um canal físico de comunicação, e que este limite pode ser calculado. As conclusões foram fortemente baseadas em estatística e em teoremas matemáticos com aplicação direta em sistemas telegráficos. Foi uma resposta aos problemas de transmissão de sinais por meio de canais físicos de comunicação. Ela considera as condições reais de transmissão, como a presença de ruído e a distribuição estatística da mensagem a ser transmitida.

Apesar desse foco ligado às ciências exatas, ela contém conceitos, premissas e conclusões que têm sido usados pela Ciência da Informação. O emprego da palavra informação foi estabelecido de forma rigorosa, assim como foram discutidas expressões como liberdade de escolha, entropia e canal.

Page 291: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 291

O uso dessa teoria em trabalhos da Ciência da Informação tem sido possível pela interpretação de seus postulados, e são os limites para essa interpretação que este trabalho visa discutir. 2. A essência da Teoria Matemática da Comunicação e a Ciência da Informação

Preliminarmente à apresentação da teoria, Shannon e Weaver descreveram simbolicamente um sistema de comunicação, e definiram os seguintes elementos, ilustrados na figura 01: i) fonte da informação; ii) mensagem; iii) transmissor; iv) sinal; v) fonte de ruído; vi) canal de comunicação; vii) sinal recebido; viii) receptor; e ix) destinatário. A compreensão desses elementos permitirá discutir sua aplicação na Ciência da Informação.

Figura 01: Diagrama esquemático de um sistema geral de comunicaçãoFonte: Shannon (1948) – tradução do autor

Logo no início de seu trabalho, Shannon (1948) afirma que O problema fundamental da comunicação é o de reproduzir em um ponto ou exatamente ou aproximadamente uma mensagem selecionada em outro ponto. Frequentemente as mensagens têm significado, isto é, elas se referem a ou são correlacionadas com algum sistema com certas entidades físicas ou conceituais. Estes aspectos semânticos da comunicação são irrelevantes para o problema de engenharia. (SHANNON, 1948, p. 1).

A irrelevância dos aspectos semânticos da comunicação para a engenharia tem uma razão muito simples: um canal de comunicação deve funcionar igualmente, qualquer que seja o significado da mensagem que transmite.

Um ponto crucial para a compreensão da teoria é que a mensagem a ser transmitida é uma dentre várias possíveis. A fonte da informação é quem escolhe a mensagem, selecionando-a do conjunto de possibilidades e enviando-a ao transmissor. Sendo uma escolha, há associada a cada mensagem uma probabilidade de ser escolhida e enviada ao transmissor. Toda a teoria está baseada nessa probabilidade de uma mensagem ser a escolhida para a transmissão.

Page 292: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 292

Informação, mensagem, significado, semântica, receptor. Todos esses são termos usados na CI e que também estão presentes na Teoria Matemática da Comunicação, mas não necessariamente representando os mesmos fenômenos. A CI tem há muito discutido o conceito de informação (ZINS, 2008). Na Teoria Matemática da Comunicação, informação é uma medida da liberdade de escolha que se tem ao se selecionar a mensagem que será transmitida. A informação está relacionada nem tanto ao que diz, mas ao que se pode dizer (WEAVER, 1949), e é explicitamente diferenciada de significado.

A palavra informação, nessa teoria, é usada em um sentido especial que não deve ser confundido com seu uso comum. Em particular, a informação não deve ser confundida com significado.Na verdade, duas mensagens, uma das quais fortemente carregada de significado e outra que seja puro disparate, podem ser exatamente equivalentes, do presente ponto de vista, em matéria de informação. (Weaver, 1949, p. 4)

A propósito do modo como a palavra informação foi utilizada pela Teoria Matemática da Comunicação, convém lembrar a distinção entre definição e conceito proposta por Belkin (1978): “uma definição presumivelmente diz o que o fenômeno definido é, enquanto que um conceito é um modo de olhar para, ou de interpretar o fenômeno” (BELKIN, 1978, p. 58). Ele diz que seu interesse está no conceito de informação, e não em sua definição. Argumenta que, aceitando-se essa ideia, fica-se livre para procurar um conceito de informação que seja útil, ao invés de uma definição universalmente verdadeira (BELKIN, 1978). Shannon (1948) e Weaver (1949) fizeram isso, trabalharam com conceitos de informação e de redução de incerteza que lhes foram úteis, sem a pretensão de criarem definições.

O teorema fundamental da Teoria Matemática da Comunicação é que há um limite para a transmissão de sinais em um canal, e este limite é calculado dividindo-se a capacidade do canal pela entropia da fonte de informação.

3. A influência da Teoria Matemática da Comunicação na Ciência da InformaçãoAlguns termos presentes na Teoria Matemática da Comunicação são encontrados na literatura

da Ciência da Informação, tais como informação e redução de incerteza. Shannon (1948) e Weaver (1949) alertaram para o uso peculiar da palavra informação em seu trabalho, conceituando-a como uma medida da liberdade de escolha ao se selecionar uma mensagem, e ressaltando que não deve ser confundida com significado. Além disso, a informação tem relação direta com a incerteza:

A informação é, devemos constantemente lembrar, uma medida da própria liberdade de escolha na seleção de uma mensagem. Quanto maior essa liberdade de escolha e, portanto, maior a informação, maior é a incerteza de que a mensagem realmente selecionada é alguma em particular. Assim, maior liberdade de escolha, maior incerteza, maior informação andam de mãos dadas (WEAVER,1949, p. 8).

Esses conceitos de informação e incerteza diferem do uso corriqueiro dessas palavras no dia-a-dia, e isso tem causado mal-entendidos. O trabalho de Pinheiro e Loureiro (1995) é uma coletânea de pensamentos, definições, propostas e registros históricos sobre a ciência da informação, citando autores brasileiros e estrangeiros. Sobre Shannon e Weaver escreveram:

Page 293: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 293

A teoria da informação ou Teoria Matemática da Comunicação, de Shannon e Weaver, traz importante contribuição ao conceito da informação, ainda que sua origem esteja na solução de problemas técnicos de transmissão de sinais, na comunicação. Para Shannon, “informação é uma redução de incerteza oferecida quando se obtém resposta a uma pergunta”. (PINHEIRO; LOUREIRO, 1995, p.46)

O conceito de informação usado na Teoria Matemática da Comunicação é específico e sua extensão a outros contextos deve ser cuidadosamente avaliada – afinal, é um conceito, não uma definição. A citação sobre a redução da incerteza relacionada à resposta a uma pergunta é contrária à relação que Shannon (1948) e Weaver (1949) apresentam entre incerteza e informação. Talvez havido um equívoco na interpretação, influenciado pelo senso comum sobre a palavra incerteza.

O uso da expressão “redução da incerteza” vinculada a informação aparece em outros trabalhos. Ingwersen (1992) aponta a dificuldade de uma conceituação para informação que sirva a todos os propósitos. Exemplifica que “uma abordagem adere à semiótica, isto é, essencialmente ao significado, a outra vê informação como um meio de redução da incerteza” (INGWERSEN, p. 26), e ressalta que o conceito de medida da informação de Shannon não pode ser aplicado a todo o contexto da ciência da informação onde, em geral, significado está relacionado a informação (INGWERSEN,1992).

Quando se considera significado, informação pode ser facilmente entendida como aquilo que vai aumentar a certeza, que vai eliminar a dúvida. Bates (1999) parece fazer essa interpretação da relação entre informação e incerteza:

O primeiro trabalho a ter impacto mais eletrizante foi a teoria da informação de Claude Shannon (Shannon e Weaver, 1949). Shannon mede a quantidade de informações passando por um fio de telefone. Tal desenvolvimento não pareceu revolucionário, mas foi, porque sua teoria foi abstrata e aparentemente aplicável a muitos ambientes, incluindo não só os técnicos, mas também linguagem humana e psicologia. Os limites da teoria de Shannon para as ciências humanas tornaram-se evidentes, mas o legado de um sentido novo, abstrato, de informação como redutora da incerteza em quantidades mensuráveis, manteve-se. (BATES, p. 1047)

Novamente, relacionou-se a informação como redutora da incerteza, quando o colocado por Shannon foi precisamente o oposto, atentando-se para os conceitos de ambos os termos na Teoria Matemática da Comunicação. Capurro (2003) também fez a ressalva de que a informação não reduz a incerteza, atribuindo essa capacidade ao que entende como mensagem.

Brookes (1980) aborda essa teoria de forma diferente. Afirma que

Medidas de informação – de informação objetiva – foram propostas 50 anos atrás e são usadas na teoria de Shannon aplicada aos sistemas de telecomunicações e computadores, por exemplo. Até onde sei, tais medições ainda não foram aplicadas ao conhecimento objetivo, mas não vejo razão porque não deveriam ser, e todas as razões porque deveriam. (BROOKES,1980 p. 133)

Em sua obra, Brookes (1980) estabelece relação entre o que chama de informação objetiva

Page 294: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 294

e de conhecimento objetivo. O significado está no conhecimento, que requer interpretação da informação. Referindo-se à informação que comanda uma máquina, ele afirma que “a informação que ela usa é simplesmente uma sequência programada de sinais; não foi estruturada em conhecimento. Permanece informação objetiva” (BROOKES, p. 133). A informação objetiva, portanto, pode ou não ter significado, o que é compatível com o que foi definido na Teoria Matemática da Comunicação.

4. ConclusãoA Teoria Matemática da Comunicação tem sido citada pela CI basicamente nas discussões sobre

conceitos de informação. Isso é curioso, pois em algum momento parece ter havido um intercâmbio entre os termos comunicação e informação. O trabalho de Shannon e Weaver trata da transmissão de sinais e explicitamente desconsidera o significado que eles carregam. A relação entre informação e redução da incerteza feita pela CI tem sido diferente daquela presente na Teoria Matemática da Comunicação, apesar de, supostamente, essa teoria suportar, ao menos em parte, aquelas conclusões.

5. ReferênciasBATES, Marcia J. The invisible substrate of information science. Journal of American Society of Information Science, v. 50, n.2. p:1043-1050, 1999.BELKIN, N. J., Information Concepts for Information Sciense. Journal of Documentation, Vol. 34, n. I, p. 55-85, Mar. 1978.BROOKES, B.C. The foundations of Information Science: Part I. Philosophical aspect. Journal of information

Science, v.2, n.3-4, p.125-133, Jun.1980.BUCKLAND, Michael K. Information as thing. Journal of the American Society for information Science, v. 42. n. 5. p. 351-360, 1991.CAPURRO, R. Epistemologia e ciência da informação. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, V Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, Belo Horizonte, Nov. 2003. Disponível em: <http://www.capurro.de/enancib_p.htm>. Acesso em: 28 jun. 2011.INGWERSEN, Peter. Information Science in context. In: INGWERSEN, Peter, Information Retrieval Interaction. London: Taylor Graham Publishing, 1992, cap.1, p.1-14. Disponível em: <www.db.dk/pi/iri>. Acesso em: 28 jun. 2011.PINHEIRO, Lena Vania R.; LOUREIRO, José M. M. Traçados e limites da ciência da informação. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 24, n. 1, p. 42-53, jan./abr. 1995.SHANNON, Claude E.; A Mathematical Theory of Communication, 1948. Disponível em: <http://cm.bell-labs.com/cm/ms/what/shannonday/shannon1948.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2011.WEAVER, Warren. Recent Contributions to The Mathematical Theory of Communication, Sep 1949. Disponível em: <http://ada.evergreen.edu/~arunc/texts/cybernetics/weaver.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2011.ZINS, Chaim. Conceptions of information science. Journal of the American Society for Information Science and Technology, v. 58, n. 3, p. 335-350, Feb. 1, 2007.

Page 295: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 295

P Ô S T E R

CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: RELAÇÃO INTERDISCIPLINAR COM AS DISCIPLINAS INTELIGÊNCIA

COMPETITIVA E GESTÃO DO CONHECIMENTO

Simone Alves da Silva, Simone Faury Dib, Neusa Cardim da Silva

Resumo: Aborda a relação interdisciplinar entre a Ciência da Informação (CI) e as disciplinas Inteligência Competitiva (IC) e Gestão do Conhecimento (GC), com base no mapeamento da produção científica da pós-graduação stricto sensu brasileira, no período de 2008 a 2010. A metodologia compreende a pesquisa bibliográfica e a coleta de dados sobre essa produção no portal da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Mostra que a interdisciplinaridade entre a CI e as disciplinas IC e GC se manifesta no objeto de estudo que partilham – a informação, que se destaca como elemento primordial da característica interdisciplinar da CI e condição epistemológica essencial à integração com outras disciplinas.

Palavras-chave: Ciência da Informação. Inteligência Competitiva. Gestão do Conhecimento. Interdisciplinaridade..1 INTRODUÇÃO

A transição da Sociedade Industrial para a Sociedade da Informação culminou com mudanças econômicas, sociais e políticas entre as nações. Com isso, a competitividade entre as organizações determinou um novo modelo de atuação baseado nos conceitos de Inteligência Competitiva (IC) e de Gestão do Conhecimento (GC), disciplinas que fornecem instrumental teórico e prático para captar e utilizar as informações externas e internas em benefício da própria organização, tornando-a mais produtiva, dinâmica e competitiva.O presente estudo objetiva abordar a relação interdisciplinar entre a área Ciência da Informação (CI) e as disciplinas IC e GC, mapeando a produção científica da pós-graduação stricto sensu brasileira, no período de 2008 a 2010.

A metodologia utilizada no estudo compreendeu duas etapas. Na primeira, realizou-se pesquisa bibliográfica para contextualizar as temáticas abordadas. Na segunda etapa, a pesquisa foi feita no portal da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), com o objetivo de coletar dados sobre essa produção, no período analisado.

A opção pela BDTD/IBICT deveu-se ao fato de ser um repositório de teses e dissertações (TDEs) que reúne a produção científica citada, oriunda das Instituições de Ensino Superior (IES) e

Page 296: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 296

de pesquisa brasileiras. É importante ressaltar que a amostra, embora representativa, não deve ser considerada como um retrato fiel do cenário brasileiro, uma vez que apenas parte das IES brasileiras participam da BDTD/IBICT e as que participam podem não ter disponibilizado toda a sua produção. Este fato é ratificado por Silva (2011) quando relata, em sua pesquisa, que apenas 50% das 102 universidades públicas brasileiras participam do projeto BDTD/IBICT e, desse contingente, apenas 17 incluíram na base um quantitativo superior a 1.000 TDEs.

2 CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, INTELIGÊNCIA COMPETITIVA E GESTÃO DO CONHECIMENTO: VISÃO INTERDISCIPLINAR

No início da década de 70, a expansão da especialização da ciência, provocada pela fragmentação das áreas de conhecimento, induz ao debate sobre a interdisciplinaridade nos espaços das instituições acadêmicas e das grandes organizações internacionais, cuja principal proposta era atender à emergência de uma nova epistemologia, que Japiassu (1976) denomina epistemologia da complementaridade ou da convergência.

No entanto, a abrangência do conceito não assegura um sentido epistemológico único e estável, por essa razão, não há unanimidade entre os teóricos sobre a significação de interdisciplinaridade, havendo visões diferenciadas para o seu papel. Pombo ([2000?]) considera que a melhor noção de interdisciplinaridade está relacionada aos valores da convergência, da complementaridade e do cruzamento. Este pensamento corrobora o conceito elaborado por Japiassu (1976, p. 75):

[...] a colaboração entre as diversas disciplinas ou entre os setores heterogêneos de uma mesma ciência [que] conduz a interações propriamente ditas, isto é, há uma certa reciprocidade nos intercâmbios, de tal forma que, no final do processo interativo, cada disciplina saia enriquecida. Possibilita incorporar os resultados de várias especialidades, tomar de empréstimo a outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicos, fazendo o uso de esquemas conceituais [...] a fim de fazê-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados.

A discussão sobre a relação interdisciplinar da CI com outras áreas do conhecimento perpassa pela compreensão do conceito de conhecimento, que implica entender a diferença entre dado, informação, conhecimento e inteligência. Os dados referem-se aos fatos objetivos acerca de eventos e registros organizados de transações. Quando contextualizados, categorizados ou condensados, os dados transformam-se em informações. Conhecimento, por sua vez, pode ser compreendido como o

[...] estoque de informação que foi processado, analisado, avaliado e testado e que é continuamente atualizado e enriquecido pela permanente confrontação entre novas informações e aquelas previamente armazenadas em uma memória (que pode ser humana, eletrônica ou a experiência de uma instituição). (COELHO; DOU, 1999-2000).

Page 297: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 297

Na visão de Jequier e Dedijer (1987 apud COELHO; DOU, 1999-2000), a inteligência representa a soma dos demais conceitos – que possibilita ao ser humano utilizar todo o tipo de informação e conhecimento para planejar estratégias, implementar ações e tomar decisões, aumentando o valor agregado.

A informação, por sua condição de artefato e substrato de todas as ciências, destaca-se como elemento primordial da característica interdisciplinar da CI e condição epistemológica essencial à integração com outras disciplinas, como a IC e a CG.

Saracevic (1995), em seu conceito de CI, demonstra a plasticidade e o caráter interdisciplinar da área ao mencionar que ela é devotada à investigação científica e prática profissional que trata dos problemas de comunicação de conhecimentos e registros, bem como do uso da informação em diversos contextos, como o social, o institucional e o organizacional.

Borko (1968) também destaca o caráter interdisciplinar da CI, ao afirmar que a área deriva da Matemática, da Lógica, da Lingüística, da Tecnologia de Computadores, da Biblioteconomia, da Administração entre outras, com as quais também se relaciona. O mesmo acontece com a IC e a GC em relação a áreas como Administração, Engenharia e Ciência da Computação. O aprofundamento da discussão sobre a relação interdisciplinar da CI com cada campo do conhecimento ocorreu na década de 90, juntamente com a consolidação de sua denominação, princípios, métodos e teorias (PINHEIRO, 2006).

Pinheiro (2006), em pesquisa empírica, mapeou o campo interdisciplinar da área e constatou sua constante mutação. Verificou que, desde a década de 90, a Administração mantém uma estreita relação interdisciplinar com a CI, pela utilização de conceitos comuns, como Sistemas de Informação, Políticas de Informação, Gestão da Informação, Gestão do Conhecimento e Inteligência Competitiva. A autora atribuiu o surgimento da IC e da GC ao advento da Sociedade da Informação, das novas tecnologias da informação e comunicação, da globalização do mercado e ao acirramento da competitividade entre as empresas, resultando em mudanças econômicas, sociais e políticas entre as nações.

Pinheiro (2006) ressalta que, na discussão conceitual entre IC e GC, é importante estabelecer algumas distinções, uma vez que os campos nem sempre são descritos com claras delimitações. Nesse sentido, Alves (2008) estabelece uma delimitação de âmbito e escopo ao considerar que a GC se concentra na identificação, classificação, organização e disseminação de conhecimento relevante para áreas da organização, para tomada de decisão e solução de problemas. Na visão de Canongia et al. (2004, p. 236)

[...] a Gestão do Conhecimento promove a codificação e a circulação do conhecimento internamente, enquanto a Inteligência Competitiva fornece meios para adquirir conhecimento sobre o ambiente externo, conhecimento esse que pode ser, em grande parte, introduzido na rede interna de circulação.

Quanto à IC, Alves (2008) afirma que a disciplina se concentra na recuperação de recursos informacionais, tanto externamente como internamente à organização, para desenvolver análises

Page 298: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 298

estratégicas que irão subsidiar a tomada de decisão e assegurar o caráter competitivo da organização. Verifica-se, portanto, que a perspectiva interdisciplinar torna-se fundamental ao desenvolvimento

científico e à produção de inovação, pois possibilita, segundo a concepção de Pombo ([2000?], p. 14), “[...] tocar zonas do objeto de investigação que o olhar disciplinar especializado não permitia ver”, favorecendo as “[...] trocas generalizadas de informações e de críticas, contribuindo, dessa forma, para uma reorganização do meio científico.” (JAPIASSU, 1976, p. 32).

Assim, as relações da IC e GC com a CI, e com outras áreas do conhecimento, revelam a sua natureza interdisciplinar, posto que todas utilizam conceitos e ferramentas comuns no trato da informação, o que pode ser observado no levantamento da produção científica, em TDEs, realizado na BDTD/IBICT.

3 INTELIGÊNCIA COMPETITIVA E GESTÃO DO CONHECIMENTO: PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA BDTD/IBICT

Os dados coletados foram reunidos por ano, tipo de publicação, instituição de origem, regiões do país e programas de pós-graduação. Os dados referentes à classificação das instituições, se pública ou privada, não foram computados. Embora alguns programas de pós-graduação tivessem nomenclatura parecida, foram mantidos individualmente, em virtude de suas especificidades. A análise dos dados baseou-se nas variáveis: quantitativo de TDEs produzidas em IC e GC, no período de 2008 a 2010; instituições em que foram elaborados os trabalhos acadêmicos e as respectivas regiões do Brasil e Programas de pós-graduação que originaram as TDEs.

As TDEs depositadas na BDTD/IBICT, na temática IC, totalizaram 24 documentos. Constata-se que 83% dessa produção corresponde às dissertações e apenas 17% às teses. O período analisado indica crescimento, sendo o ano de 2010 o mais produtivo. A produção em GC foi a mais representativa. Foram recuperados 164 documentos, sendo que 74% são dissertações e 26% são teses e, em 2008, registrou-se o maior quantitativo de dissertações produzidas no tema. Em comparação com os anos posteriores, percebe-se que houve diminuição dessa produção. O quantitativo da produção, nas duas temáticas, indica a elevação da produção em IC e o decréscimo em GC. No entanto, a produção em GC ainda é superior à em IC.

As TDEs que abordam IC foram produzidas em 12 universidades do país, enquanto, verifica-se que as TDEs em GC foram produzidas em 29 instituições, compreendendo 26 universidades e três centros de pesquisa. Ao comparar esses dados, constata-se que a maioria das universidades (75%) que tem produção científica em IC apresenta produção em GC.

Embora a maioria das universidades com produção científica em IC fique localizada nas regiões Sudeste e Sul, com percentuais de 42% e 33%, respectivamente, é no Centro-Oeste do Brasil que se encontra a IEs com o maior percentual de TDEs em IC – a Universidade Católica de Brasília. Este fato também ocorre em relação à GC: a região Sudeste concentra a maioria das instituições com

Page 299: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 299

essa produção (45%), embora nas regiões Sul e Centro-Oeste estejam as universidades com maior produção de TDEs em GC. Cabe destacar a importante participação das instituições localizadas no Nordeste (24%), na temática GC, e registrar a ausência dessa produção, nas duas temáticas, no Norte do país.

A produção científica em IC indica as diversas áreas com as quais mantêm relações interdisciplinares, sendo que os PPGs em Administração lideraram as áreas com 42% do universo pesquisado, seguido pelos programas de Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação (25%) e, o de Ciência da Informação, com apenas 9% do conjunto. É interessante observar que, apesar da interdisciplinaridade da IC com a CI, os resultados sugerem que a temática começa a ocupar espaço timidamente na agenda dos PPGCIs, tendo em vista que apenas em dois programas de CI esse tipo de produção foi encontrada.

No caso da GC, há um número elevado de PPGs produtores. Os quatro programas com maiores percentuais foram Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação (23%); Engenharia e Gestão do Conhecimento (23%); Administração (15%) e Ciência da Informação (10%). No caso da GC, a representatividade da CI foi maior, com cinco programas tratando da temática. Observa-se que a GC envolve um quantitativo expressivo de programas e de instituições, o que ratifica o seu caráter interdisciplinar com diversas áreas do conhecimento.

Há diversas áreas do conhecimento que possuem produção científica, tanto em IC quanto em GC, entre elas a de Ciência da Informação e a de Administração. Com isso, observa-se a relação estreita entre IC e GC e as áreas que tratam de gestão, informação, conhecimento e tecnologias.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura indica que a interdisciplinaridade da IC e da GC manifesta-se no objeto de estudo que partilham – a informação –, e que há contribuições mútuas para o aperfeiçoamento dos processos que a envolvem. Neste cenário interdisciplinar, a CI tem papel fundamental, uma vez que o seu objeto de estudo perpassa as diversas áreas do conhecimento, tal como o da IC e da GC. O estabelecimento de relações estreitas com a CI poderá se consolidar tendo em vista as relações interdisciplinares que essas disciplinas mantêm com áreas de conhecimento comuns, como a Administração e a Ciência da Computação.

Os dados apresentados, no período delimitado, embora restritos à produção disponível na BDTD/IBICT, são representativos do que se produziu no Brasil de 2008 a 2010. O mapeamento realizado revelou as instituições que investem no desenvolvimento das temáticas no país.

Ainda que o estudo seja representativo apenas da produção nacional depositada na BDTD/IBICT, portanto sujeito a limitações, revela o interesse dos pesquisadores nas temáticas IC e GC, o que é evidenciado não apenas pela produção de TDEs, como também pela incidência de programas de pós-graduação que abordam as temáticas. Acredita-se que este fato esteja relacionado à busca

Page 300: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 300

constante pela inovação de produtos e serviços, em um ambiente competitivo e globalizado, em que a informação e o conhecimento são valorizados e considerados ativos, que geram vantagem competitiva.

Abstract: The article discusses the interdisciplinary relations between the Information Science (IC) and the disciplines Competitive Intelligence (CI) and Knowledge Management (KM), based on the mapping of graduate stricto sensu studies in Brazil at the period from 2008 to 2010. The methodology includes a literature search and collection of data on the production site of the Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations (BDTD), of the Brazilian Institute of Information Science and Technology (IBICT). It shows that the interdisciplinarity between IC and the disciplines CI and KM manifests on the object of study that share – information, that is the essential element feature interdisciplinary of IC and epistemological key to integration with other disciplines

Keywords: Information Science. Competitive Intelligence. Knowledge Management. Interdisciplinarity.

6 REFERÊNCIAS

ALVES, José Alexandre da Costa. Ciência da Informação e Ciência da Administração: questões epistemológicas e o fenômeno da informação. 2008. 135 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade Federal Fluminense, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Niterói, 2008. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro.

BORKO, H. Information science: what is it? American Documentation, California, v. 19, n.1, p. 3-5, Jan. 1968.

CANONGIA, Claudia; SANTOS, Dalci M.; SANTOS, Marcio M.; ZACKIEWICZ, Mauro. Foresight, Inteligência Competitiva e Gestão do Conhecimento: instrumentos para a gestão da inovação. Gestão & Produção, v. 11, n. 2, p. 231-238, maio/ago. 2004. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/gp/v11n2/a09v11n2.pdf>. Acesso em 01 jul. 2011.

COELHO, Gilda Massari; DOU, Henri. Inteligência competitiva e a formação de recursos humanos no Brasil. Revista de Biblioteconomia de Brasília, Brasília, v. 23/24, n. 4, p. 455-472, 1999-2000. Edição especial.

IBICT. Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. Disponível em: < http://bdtd.ibict.br/>. Acesso em: 01 jul. 2011.

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 221 p. (Série Logoteca).

PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro. Ciência da Informação: desdobramentos disciplinares, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. In: GONZALEZ DE GÓMEZ, Maria Nélida; ORRICO, Evelyn Goyannes Dill (Org.). Políticas de memória e informação: reflexos na organização do conhecimento. Natal: UFRN/EDUFRN, 2006. p. 111-141.

Page 301: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 301

PINHEIRO, Lena Vania Ribeiro. Movimentos interdisciplinares e rede conceitual na Ciência da Informação. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 7., 2006, Marília (SP). Anais... Marília, SP, 2006.

POMBO, Olga. Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Liinc em Revista, v.1, n.1, p. 3-15, mar. 2005. Disponível em: http://www.ibict.br/liinc. Acesso em: 06 jun. 2011.

SARACEVIC, Tefko. Interdisciplinary nature of informations science. Ci. Inf., Brasília, v. 24, n. 1, 1995. Disponível em: <http://dici.ibict.br/archive/00000598/01/natureza_interdisciplinar.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2010.

SILVA, Neusa Cardim da. Repositório digital na universidade pública: o caso da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Orientadora: Rosali Fernandez de Souza. 2011. 141 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Faculdade de Administração e Ciências Contábeis, Universidade Federal do Rio de Janeiro em convênio com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro, 2011.

Page 302: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 302

P Ô S T E R

DO DOCUMENTO CONTÁBIL ELETRÔNICO ENQUANTO PROVA: ANÁLISE INTERDISCIPLINAR ENTRE O DIREITO

E A ARQUIVÍSTICA.

Rúbia Martins, João Batista Ernesto Moraes

Resumo:O principal objetivo do presente trabalho gira em torno do estudo comparativo entre o direito brasileiro e a arquivística no que diz respeito ao documento contábil eletrônico enquanto prova. Analisamos a maneira mediante a qual o ordenamento jurídico brasileiro e a arquivística concebem o próprio conceito de documento e consequentemente o de documento eletrônico. Além disso, verificamos em que medida a legislação brasileira prevê e legitima a utilização de documentos eletrônicos na contabilidade das instituições, públicas e privadas, e o impacto de tais normas nos arquivos. Para tanto, foram analisadas as mudanças ocorridas na legislação brasileira durante a década de 2000 no que concerne à legitimação do uso de documentos contábeis eletrônicos e seu impacto nos arquivos. Para o desenvolvimento do presente trabalho, utilizamos eminentemente a pesquisa teórica bibliográfica (análise de doutrinas, legislação vigente, jurisprudência, periódicos e sites especializados no assunto), fundamentando-a em autores como: Bellotto (2004); Ortega e Lara (2010); Otlet (1996); Greco Filho (2006); Santos (1994); Petrenco (2009); Marion (2004). Houve consideráveis mudanças na legislação brasileira quanto aos documentos contábeis eletrônicos principalmente a partir de 2007, com o advento do Sistema Público de Escrituração Digital – Sped. Tais mudanças fazem emergir no cenário jurídico brasileiro discussões acerca do que vem a ser documento, documento eletrônico e a validade destes como meio de prova legítima no processo judicial. Assim, mister se faz a análise a respeito das semelhanças e diferenças entre a arquivística e o direito no que tange ao próprio conceito de documento e à segurança, autenticidade e integridade dos documentos eletrônicos contábeis, já que no ordenamento jurídico brasileiro há diferentes interpretações a respeito dos mecanismos previstos por este quanto à segurança das informações contábeis armazenadas em meio digital.

Palavras-chave: Documento; Documento contábil eletrônico; Arquivística; Direito.

1 INTRODUÇÃOApesar de não haver em nosso ordenamento jurídico hierarquia quanto aos meios de prova, o

documento é considerado a prova mais importante possível de ser apresentada pelas partes em uma lide processual.

Nos processos judiciais que versam sobre a questão contábil, o documento é, na maioria das vezes, o único modo de que dispõem as partes para provarem os fatos alegados. (MARION, 2004). Ou seja, quando se trata de fatos contábeis controvertidos, a documentação contábil é considerada a “rainha das provas”.

Page 303: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 303

Nos últimos anos, evidenciaram-se profundas mudanças quanto ao suporte material desses documentos. Houve nos arquivos contábeis, a introdução dos documentos contábeis eletrônicos.

O ordenamento jurídico brasileiro passou a prever instrumentos normativos com relação à validade probatória de tais documentos. No entanto, há intensa discussão entre juristas e representantes do Poder Judiciário pátrio a respeito da segurança, autenticidade, integridade e valor probante dos documentos contábeis eletrônicos.

2 O CONCEITO DE DOCUMENTO CONTÁBIL

Para analisarmos o conceito de documento contábil mister se faz apresentarmos breve explanação a respeito do próprio conceito de documento.

Segundo Bellotto (2004), há enorme abrangência quanto ao que pode ser considerado documento. Este seria qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico, fônico (etc), através do qual o homem manifestaria o seu pensamento. Seria a informação registrada em um suporte material.

Dessa forma, o conceito de documento deriva da necessidade de transmitir informações dos mais diversos modos possíveis e pressupõe a existência de um receptor, que é aquele quem recebe as informações do documento.

Ortega e Lara (2010), também ressaltam essa condição de informatividade presente na noção de documento e citam Paul Otlet como o principal documentalista e teórico da Documentação. Para as autoras, “a proposta de Otlet pode ser resumida na noção de documento como registro do pensamento individual que permite o transporte de idéias, servindo como instrumento de pesquisa, ensino, cultura e lazer.” (ORTEGA; LARA, 2010, p. 13). 67

Já no âmbito jurídico, busca-se conceituar o documento como o meio através do qual objetiva-se a provar a existência de algum fato. (MARQUES, 2010).

Moacyr Amaral Santos (1994, p. 387), define documento como “a coisa representativa de um fato e destinada a fixá-lo de modo permanente e idôneo, reproduzindo-o em juízo”.

Importante salientarmos que os documentos possuem valor probante variável no âmbito jurídico na medida em que apresentam em seu conteúdo elementos que os indiquem como equivalentes à verdade fática. (RAMIRES, 2002; GRECO FILHO, 2006). Ou seja, na medida em que satisfaçam às características de autenticidade (procedência) e de integridade (conteúdo original).

Conforme indicamos em nossa introdução, nas lides processuais que versam sobre questões contábeis o documento contábil é elemento fundamental no quesito provas.

Por documento contábil entende-se toda e qualquer informação proveniente do conhecimento contábil registrada em um suporte material, como por exemplo: notas de compra e venda de serviços; duplicatas pagas; extratos bancários; comprovantes de despesas e custos; comprovantes de débitos/

67 Para explicarmos a concepção da documentação no âmbito da arquivística é de fundamental importância o estudo das obras de YEPES (1995) e LOPES (1998).

Page 304: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 304

créditos bancários, etc. Esses documentos são utilizados para a realização da escrituração contábil, mediante a qual se registram em livros próprios todos os atos e fatos ocorridos com a finalidade de construir e relatar o histórico patrimonial da entidade contábil. (RIBEIRO, 2009).

Segundo a Norma Brasileira de Contabilidade Técnica 2 (NBCT 2), a documentação contábil compreende “ [...] 2.2.1 todos os documentos, livros, papéis, registros e outras peças, que apóiam ou compõem a escrituração contábil [...].” (BRASIL, 1985, p.1).

Existem quatro tipos de documentos contábeis: 1) documentos financeiros e fiscais de transações de entradas e saídas; 2) documentos de registros das transações; 3) documentos administrativos; 4) documentos de informações de empregados e previdência social e demais tributos. (FRANCO, 1997). Cada um desses tipos de documentos contábeis possui prazos diferentes quanto à transferência, eliminação e recolhimento em arquivos, pois os prazos prescricionais desses documentos são diferentes conforme o tipo e a função que apresentam. Dessa maneira, os documentos contábeis devem ser analisados caso a caso conforme legislação vigente, e a sua eliminação deve respeitar, inclusive, as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Arquivos, o Conarq. (BRASIL, 2009).

Os prazos prescricionais dos documentos utilizados na contabilidade são analisados e fundamentados em lei quando estes se encontram no arquivo intermediário. Haja vista, que os documentos contábeis permanecem no arquivo corrente durante todo o exercício social da entidade contábil, período que corresponde a 1 (um) ano.

Dessa maneira, percebemos que a adoção de uma política de preservação de documentos contábeis deverá estabelecer uma Tabela de Temporalidade mediante a qual todos os documentos estejam discriminados individualmente com suas respectivas fundamentações legais.

Tal política de preservação de documentos contábeis vem encontrando, nos últimos tempos, um novo desafio, a gestão dos documentos contábeis eletrônicos.

3 O DOCUMENTO CONTÁBIL ELETRÔNICO COMO MEIO DE PROVAComo sabemos o papel não é o único suporte material possível do documento. Existem outros

suportes de fixação da informação e, entre eles, o meio digital. Os documentos que possuem o meio digital como suporte material são chamados de documentos eletrônicos. (PASA, 2001).

No início dos anos 2000 a publicação da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, criou a ICP-Brasil através da qual determinou-se a validade de documentos assinados digitalmente (BRASIL, 2001). No dia 02 de março de 2005, o Conselho Federal de Contabilidade publicou a Resolução 1.020, alterada em 23 de dezembro de 2005, pela Resolução 1.063, estabelecendo normas para a escrituração contábil em meio digital (BRASIL, 2005).

Tais normas permitem aos contabilistas e às entidades contábeis a digitalização de livros e documentos contábeis e fiscais. Os livros contábeis mantidos em meio digital devem ser protegidos contra fraudes através da assinatura digital. Além disso, os documentos contábeis digitais devem estar

Page 305: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 305

autenticados por um tabelião. Podemos afirmar que o ordenamento jurídico pátrio vem produzindo vários instrumentos

normativos a fim de legitimar e atribuir valor probante aos documentos contábeis eletrônicos. Segundo Ramalho e Pita (2009, p. 156), merece destaque nesta seara,

O Sistema Público de Escrituração Digital – Sped, instituído formalmente pelo Dec. 6.022, de 22.01.2007 e açambarcado pelo Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal (PAC 2007-2010), que objetiva a substituição gradual da emissão de livros e documentos contábeis e fiscais em papel por seus correspondentes eletrônicos.

Devemos lembrar que a alteração de suporte dos documentos e livros contábeis e fiscais deve satisfazer a todos os requisitos de validade probatória dos quais estão investidos os documentos contábeis registrados em papel. Dentre tais requisitos, podemos citar que o documento eletrônico deve: possuir carcacterísticas que possibilitem sua posterior consulta; identificar a sua procedência; e garantir a consistência de seu conteúdo original. (PASA, 2001; SOUZA, 2009).

4 CONCLUSÕES

A figura do documento contábil eletrônico em nosso sistema jurídico é extremamente recente, e para que tais documentos sejam capazes de provar a verdade fática discutida no processo, eles devem apresentar: descrição dos fatos que se quer registrar; identificação das partes de maneira inequívoca; e segurança, de modo que não possa ser adulterado sem deixar vestígios localizáveis. (SANTOLIM, 1995).

Dessa forma, ao analisarmos o documento eletrônico como meio de prova devemos trazer à baila duas características apontadas pela doutrina jurídica e pela arquivística como fundamentais à prova documental: a autenticidade (procedência) e a integridade (conteúdo original). Tais requisitos estão extremamente vinculados à idéia de valor probatório dos documentos eletrônicos. O fato é que ainda existem muitas dúvidas no ordenamento jurídico brasileiro quanto à manutenção da autenticidade e da integridade dos documentos contábeis eletrônicos faltando ao magistrado subsídios normativos para valorar esta tipificação documental enquanto meio legítimo de prova documental.

Assim, torna-se fundamental a profunda análise a respeito do que vem a ser o documento e o documento eletrônico enquanto prova sob as concepções arquivística e jurídica para que possamos desenvolver um quadro teórico de referência sobre o documento contábil eletrônico como meio de prova lícito e legítimo.

REFERÊNCIAS

BELLOTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

Page 306: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 306

BRASIL. Medida Provisória nº. 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 ago. 2001. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Antigas_2001/2200-2.htm>. Acesso em: 12 fev. 2010._______________. Resolução Conselho Federal de Contabilidade – CFC nº. 1.020, de 18 de fevereiro de 2005. Diário Oficial da União, 02 mar. 2005. Disponível em: <http://www.cfc.org.br>. Acesso em: 10 fev. 2010._______________. Conselho Federal de Contabilidade - CFC. Resolução nº. 597 de 14 de junho de 1985. Diário Oficial da União, 14 jun. 1985. Disponível em: < http://www.portaldecontabilidade.com.br/nbc/index.htm>. Acesso em: 18 out. 2009._______________. Conselho Nacional de Arquivos - CONARQ. Legislação arquivística brasileira. 2009. Disponível em: <http://conarq.arquivonacional.gov.br>. Acesso em: 12 dez. de 2010.FRANCO, H. Contabilidade geral. – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 1997.GRECO FILHO, V. Direito processual civil brasileiro. - 19. ed. - São Paulo: Saraiva, 2006.LOPES, L. C. A imagem e a sombra da arquivística. Rio de Janeiro (Brasil); Montreal, Quebec (Canadá): Arquivo Público, 1998.MARION, J. C. Contabilidade básica. – 7. ed. – São Paulo: Atlas, 2004.MARQUES, A. T. G. L. A prova documental na internet. – 5ª reimpr. – Curitiba: Juruá, 2010.ORTEGA, C. D.; LARA, M. L. G. A noção de documento: de Otlet aos dias de hoje. In: DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.11 n.2 abr. 2010. Disponível em: < www.datagramazero.org.br>. Acesso em: 14 jan. 2011.OTLET, P. El tratado de documentación: el libro sobre el libro: teoría y práctica. Trad. por Maria Dolores Ayuso García. Murcia: Universidad de Murcia, 1996. Tradução de: Traité de Documentation: le livre sur le livre: théorie et pratique. Bruxelles: Mundaneum, 1934. 431 p. Dispnível em: <http://lib.ugent.be/fulltxt/handle/1854/5612/Traite_de_documentation_ocr.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2011.PASA, E. C. O uso de documentos eletrônicos na contabilidade. Revista Contabilidade e Finanças. FIPECAFI – FEA – USP, São Paulo, v. 14, n. 25, p. 72-83, jan.- abr. 2001.PETRENCO, S. A. Contabilidade e seu valor probante. – 2. ed.- Curitiba: Juruá, 2009.RAMALHO, L. V. S.; PITA, F. A. A nota fiscal eletrônica e sua validade jurídica como meio de prova no processo civil tributário. Revista Tributária e de Finanças Públicas - RTRIB, Ano 17, n. 86, maio - jun. /2009.RAMIRES, L. H. D. As provas como instrumentos de efetividade no processo civil. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2002.RIBEIRO, O. M. Contabilidade geral fácil. – 5. ed. ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009.SANTOLIM, C. V. M. Formação e eficácia probatória dos contratos por computador. São Paulo: Saraiva, 1995.SANTOS, M. A. Primeiras linhas de direito processual civil. vol. 2 – 16. ed. – São Paulo: Saraiva, 1994.SOUZA, V. R. P. Contratos eletrônicos e validade da assinatura digital. Curitiba: Juruá, 2009. YEPES, J. L. La documentacion como disciplina. Teoria e historia. – 2. ed. – Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, S. A. (EUNSA), 1995.

Page 307: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 307

P Ô S T E R

A VERDADE, A INFORMAÇÃO E O ARQUIVO: PRIMEIRAS IMPRESSÕES NA BUSCA POR UMA FILOSOFIA DA

INFORMAÇÃO

Aluf Alba Elias

Resumo: Investiga-se através da contextualização do pensamento filosófico contemporâneo, a noção de verdade, partindo para a noção de arquivo enquanto lugar de memória, donde, possivelmente, subjaz uma vontade de verdade e justificação. Na busca da apreensão deste desígnio, estabelecer-se-á um inter-relacionamento entre os pensamentos dos franceses Pierre Nora (Lugares de Memória, 1993), Jacques Le Goff (Documento/Monumento, 1977), Jacques Derrida (O mal de Arquivo, 2001) e Michel Foucault ( A Arqueologia do Saber, 1969; A Ordem do Discurso, 1970; Microfísica do Poder; 1979). A partir da definição da perspectiva apreendida, verificar-se-á a abrangência do conceito de Ação de Informação (Wersig, 1985 e González de Gómez, 1999) através do viés de seu caráter seletivo desdobrando na questão da formação do Arquivo enquanto indício, prova (Briet, 2006 [1951])), numa reflexão sobre as práticas documentárias (Frohmann, 2004) em busca de uma filosofia da informação. Palavras-chave: verdade -1 ; informação - 2; arquivo

1. INTRODUÇÃO

A noção de Verdade é algo caro à filosofia e, como tal, não poderia deixar de ser para a Ciência da Informação e a Arquivística em geral. Entretanto, apreender a totalidade que esta noção implica é uma tarefa que por si só justificaria inúmeras teses, dada a amplitude de sua possibilidade.

Assim, na intenção de estabelecer um arcabouço teórico que pudesse sustentar a argumentação que se pretende desenvolver, definiu-se utilizar como recurso para este fim a noção de verdade empreendida por Michel Foucault. Entretanto, para o exercício de extração desta noção faz-se necessário a imersão no significado de alguns termos que são centrais em sua metodologia de investigação. Inicia-se então, de forma breve, um esforço ainda preliminar, de apreensão do pensamento desenvolvido por Foucault ao longo dos anos. Segue:

Ao tratar do termo arqueologia Foucault “pretende a exumação das estruturas de conhecimento ocultas que dizem respeito a um período histórico particular” (STRATHERN, 2003, p.36). Nisto estaria presente, geralmente de forma inconsciente, toda gama de pré-supostos e preconceitos, que estrutura e põe limites no modo de pensar de um determinado espaço de tempo. “Tais coisas são essencialmente distintas da inclinação subjetiva ou até da ignorância coletiva – pelo contrário, são o modo de pensar que afeta todos os indivíduos pensantes daquela época”. (ibidem).

A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os

Page 308: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 308

próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa (...); ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”. (FOUCAULT, 2007, p.158)

Por episteme, cuja palavra deriva “da mesma raiz grega que o ramo da filosofia conhecido como epistemologia”68, Foucault determina “todo o conjunto de pressupostos, preconceitos e tendências que estruturam e delimitam o pensamento de qualquer época”. Estaria relacionada à determinação dos limites das experiências vividas em um período, na extensão de seu conhecimento, atingindo inclusive sua noção de verdade. (STRATHERN, 2003, p.36).

Eu definiria épistémè retroativamente como o aparato estratégico que permite a separação – entre todas as afirmações possíveis – aquelas que serão aceitáveis dentro de não de uma teoria científica específica, mas de um campo de cientificidade. [Essa separação] torna possível dizer que algo é verdadeiro ou falso. A épistémè é o ‘aparato’ que torna possível a separação, não entre verdadeiro ou falso, mas entre o que pode ou não pode ser caracterizado como científico. (FOUCAULT, 2008, p. 247)

A episteme, neste molde, pode originar uma forma de conhecimento, que Foucault convencionou

chamar de discurso que é “a acumulação de conceitos, práticas, declarações e crenças produzidas por uma determinada episteme”. (STRATHERN, 2003, p. 37).

Colocando nestes termos, a questão da episteme foucaultiana é cara a esta intenção de pesquisa, pois ajuda a compreender a inaplicabilidade da verdade absoluta. Como salienta Paul Strathern (2003), leva a indagar que, se o modo de pensar será sempre determinado por uma episteme, tudo indica que jamais se poderá lograr uma verdade. E perfaz-se: se todas as epistemes são contingentes, como se pode provar que uma é melhor que a outra? Impossível, “pois toda verdade é relativa e só depende de como as coisas são vistas”.(ibidem, p.44).

Ainda sim, o conceito de episteme desdobrou-se para a formulação da primeira noção de discurso, que como um estopim de investigação, foi mais tarde ampliada dando origem à noção de saber/poder.

Segundo Foucault (1996, p. 10):

O discurso (...) não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo”. (...) “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

68 Epistemologia (do gr. episteme: ciência, e logos: ciência) Disciplina que toma as ciências como objeto de investigação tentando reagrupar: a) a crítica do conhecimento científico – exame dos princípios, das hipóteses e das conclusões das diferentes ciências, tendo em vista alcançar seu valor objetivo –; b) a filosofia das ciências – empirismo, ralacionismo etc –; c) a história das ciências. (JAPIASSU e MARCONDES, 1991, p.82-83)

Page 309: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 309

Deste modo fica mais evidente o inter-relacionamento entre o discurso, o saber/poder e a questão da verdade ou Regimes de Verdade. Ou seja, “a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem (...)”. Não existe possibilidade de desvinculação entre a verdade e sistema de poder, pois isso “seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder”.( FOUCAULT, 2008, p.14)

A vontade de verdade se apoiou, como os outros sistemas de exclusão, em um suporte institucional, sendo reforçada e reconduzida por um conjunto conciso de práticas: sistemas de pedagogia, de bibliotecas, dos livros, como a sociedade dos sábios de outrora. (ibidem, p. 17). “E essa vontade de verdade apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos uma espécie (...) de poder de coerção”. (p. 18). Até a palavra de lei parece não ser mais autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade. (p. 19). Emerge a questão da disciplina induzida pelos jogos de verdade e a vontade de poder.

Observar a relação entre a vontade de verdade e o suporte institucional, fornece a essa intenção de pesquisa possibilidade de estender o diálogo entre outros autores, tratando mais especificamente da questão da ação de documentar. A ação implica na vontade de verdade. Documentar sugere, de certa forma, um desejo de materializar algo. Essa materialidade seria uma espécie de conceito social, ou seja, documenta-se para fora a fim de dar durabilidade. Isso envolve a questão das inscrições, mas não unicamente, pois apesar destas serem dotadas de intencionalidade sua legitimidade está no valor indicial. Talvez resida aí o fundamento da colocação de Jacques Le Goff (2010 [1977]): “todo documento é mentira”. Para o autor, levar em conta o “fato que todo documento é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, trata-se de por à luz as condições de produção (...) e de mostrar em que medida o documento é um instrumento de poder (...)”. (p. 525).

Para Le Goff à memória coletiva aplica-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos e neste sentido “o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa (...)”. (p. 525). Aqui se pode notar uma zona de convergência com os estudos empreendidos pela CI, através de González de Gómez (1999), em relação ao caráter seletivo das ações de informação. Não há dúvida de que há uma seleção do que servirá como informação, documento, validação, prova e isso inclui a problemática do discurso que se deseja.

Monumento deriva da palavra latina monumentum, “significa um sinal do passado e liga-se ao poder de perpetuação, voluntária e involuntária das sociedades históricas.” (Le Goff, 1999, p. 526). Documento, da mesma forma, se origina de documentum, que deriva de docere, quer dizer, ensinar, evoluindo posteriormente para o significado de prova. No “séc XVII se difunde na linguagem jurídica francesa a expressão tritres et documents.

Na década de 20 do séc. XIX com a advento do movimento da história nova, os fundadores da revista Annales d`Histoire Économique et Sociale (1929), insistiram na ampliação da noção de

Page 310: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 310

documento, assim como Paul Otlet alguns anos mais tarde. O valor documental (prova/testemunho) não seria mais uma exclusividade do documento escrito. Nas palavras de Samaram apud Le Goff, “há que se tomar a palavra documento no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem ou qualquer outra maneira”. A ampliação desta noção foi a mola propulsora para a explosão documental a partir dos anos 60 (p. 531), o que deu origem, inclusive, a própria CI.

Houve a simbiose dos termos documento/monumento, muito embora, Le Goff desconsidere que isto decorra da explosão documental. Cita Paul Zumthor para revelar que o que transforma o documento em monumento seria sua utilização pelo poder. “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo”. (p.536).

Efetivamente o documento é a coisa que fica, um testemunho, um ensinamento, que deve ser desmistificado em seu aparente significado. “O documento é um monumento na medida em que é o resultado do esforço das sociedades históricas (...) para impor ao futuro determinada imagem de si própria”. (p. 538). Corroborando com as idéias de Foucault, Jacques Le Goff conclui que “qualquer documento é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, pois o monumento é uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso (...) começar a demolir essa montagem, desestruturar essa construção e analisar as condições dos documentos-monumento” (ibdem).

Fazendo um paralelo com o que Pierre Nora (1993) definiu como lugares de memória que, numa acepção tríplice, são alinhavados como lugares materiais (um depósito de arquivo, por exemplo) onde se aporta a memória social e pode ser alcançada pelos sentidos; lugares funcionais (um testamento) pois possuem ou adquiriram a função de subsidiar memórias coletivas; e lugares simbólicos (um minuto de silêncio) por onde a memória coletiva (uma espécie de identidade) se expõe e manifesta, ou seja, lugares carregados de uma vontade de memória.

Mas os lugares de memória estão distantes de ser uma entidade natural e espontânea, “são, antes de tudo restos [...] rituais de uma sociedade sem ritual, sacralidades passageiras em uma sociedade que dessacraliza,” (p.12-13). Como objetos de uma construção histórica, o interesse pelo seu exame vem, justamente, do seu valor como documento e monumento capazes de revelar os processos sociais, os conflitos, os interesses e as paixões e que de forma conscientemente ou não, os revestem de uma função icônica. “Há locais de memória, pois não existe mais meios de memória” (p.7) talvez isso explique o fato de “nenhuma época foi tão voluntariamente produtora de arquivos como a nossa” (p.15), pois “à medida em que desaparece a memória tradicional, nos vimos obrigados a acumular (...) vestígios, (...) documentos (...)” e é “impossível prejulgar aquilo que se deverá lembrar. Daí a inibição em destruir, a constituição de tudo em arquivo.” (p.15).

Trazendo Jacques Derrida (2001) para o diálogo vemos que “a perturbação de arquivo deriva do mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo. Escutando o idioma francês e nele, o atributo em mal de, estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal. É arder de

Page 311: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 311

paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde” ( p. 118). Portanto, o mal de arquivo, o desejo de lembrar a origem e decifrar o que nos comanda, ou o comando, é efeito da ausência originária e estrutural da memória. É preciso arquivo para lembrar, é preciso arquivo para se ter indícios e também para provar.

No âmbito da problemática do arquivo enquanto memória, rastro, indício, prova e toda fragilidade que estes atributos constituem, o próprio caráter contingente abre para a possibilidade de pensar os arquivos comos inscrições, revestidas (ou não) de autoridade, podem ser ressignificadas seletivamente a partir do resgate das redes de jogos de verdade e significação, do que foi dito e do que não foi dito e a intenção que subjaz.

Como baliza de abstração, resgata-se Suzanne Briet ([1951] 2006) que atesta que “um documento é uma prova suporte de um fato” (p. 9-10) e, ainda, que um documento é “a base de conhecimento fixado materialmente”, ou seja, todo “signo (índice) concreto ou simbólico, preservado ou registrado com o fim de representar, reconstruir ou provar um fenômeno físico ou intelectual”. Logo, não se pode desconsiderar o caráter probatório das inscrições e tudo que se desdobra em seu entorno. O documento, como forma de materialização de uma ação ou atestado de um fato, ainda é o modus operandi pelo qual a sociedade trava seu diálogo em busca da verdade.

Por tanto, a fim de finalizar as primeiras orientações teórico-instrumentais necessárias ao alcance dos objetivos propostos, convoca-se ao diálogo Bernard Frohmann (2004), que ao tratar das práticas documentárias evoca quatro propriedades desta ação: 1) a materialidade, “since documents exist in some material form, their materiality configures practices with them” (p. 396 ); 2) a institucionalização, “of documentary practices is how deeply embedded they are in institutions.” (p. 396); 3) a disciplina social, “documentary practices, like most others, require training, teaching, correction, and other disciplinary measures; the point is reinforced by the role of training in many of Wittgenstein’s language-games and emphasized by Foucault’s link between disciplinary apparatus and the field of documentation” (p.397) e 4) a historicidade, “practices arise, develop, decline, and vanish-all tinder specific historical circumstances.” (p.397).

Na acepção de Bernard Frohmann, essas quatro idéias constituem um caminho útil para a investigação de uma filosofia da informação cujo ponto de partida é o conceito de práticas documentárias. E de certa maneira, esta forma de defrontar a questão do documento, da ação de documentar e da própria formação do arquivo, corroborava e alinhava todo o esforço que se depreendeu para sustentar esta intenção de pesquisa. Sendo um estímulo para continuar a investigação.

CONCLUSÕES

Discutir de forma crítica o fenômeno que levou e leva as mais diversas sociedades a produzirem documentos, criando arquivos para que estes sirvam, confabulando nas idéias de Jacques Derrida, como comando, ou seja, aquilo que direciona e, portanto, levam a crer que através deles

Page 312: GT 1 - farejadoc.com.br

GT1 312

pode-se encontrar sempre uma resposta é algo que poderá ser realmente significativo para a Ciência da Informação e a sociedade em geral.

Da mesma forma, não se pode esquecer o valor de pesquisar a construção dos diversos discursos sociais através da formação dos arquivos e principalmente o que subjaz aos discursos, quiçá a intenção de verdade e justificação.

Utilizar a CI como um medium para a discussão e envolver no diálogo outras suas áreas de conhecimento, a Filosofia e a Arquivística, parece ser uma forma enriquecedora de ampliar o próprio campo da CI, fazendo prevalecer o próprio estatuto científico que prima por devolver a sociedade uma reflexão crítica mais elaborada das questões que a cercam.

Abstract:. Investigate through the contextualization of contemporary philosophical thought, the notion of truth, from concept to file as a place of memory, hence, possibly, an underlying will to truth and justification. In the search for understanding of this area, it will establish an inter-relationship between the thoughts of the French Pierre Nora (Places of Memory, 1993), Jacques Le Goff (Document / Monument, 1977), Jacques Derrida (Evil File, 2001) and Michel Foucault (the Archaeology of Knowledge, 1969, the Order of Discourse, 1970, Microphysics of Power, 1979). From the perspective of the definition seized, there would be the scope of the concept of Action Information (Wersig, 1985 and González Gómez, 1999) through its selective bias in the unfolding issue of training file as evidence, proof (Briet, 2006 [1951])), a reflection on the documentary practices (Frohmann, 2004) in search of a philosophy of information.Keywords: true – 1; information – 2; archive – 3.

REFERÊNCIASBRIET, S. What is documentation? Lanham: Scarecrow, 2006. Trad. de: Qu’est-ce que la documentation? Paris: Édit, 1951. Disponível em: http://www.slis.indiana.edu/faculty/roday/what%20is%20documentation.pdf. Acesso em 19 de junho de 2011.DERRIDA, Jacques. O mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.______ ________. A ordem do discurso. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1996._______ _______. História da Sexualidade – A Vontade de Saber, Vol. I, RJ: Graal, 2009.______________. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2003.______________. Vigiar e Punir. 35 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008b.FROHMANN, Bernard. Documentation Redux: Prolegomenon to (Another) Philosophy of Information. Library Trends 54 (2004): 387-407. Disponível em: http://www.fims.uwo.ca/people/faculty/frohmann/selected%20papers.htm. Acesso em: 15 de novembro de 2010.GONZÁLEZ DE GÓMEZ, M. N. O caráter seletivo das ações de informação. Informare (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 7-31, 2000.NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993. Disponível em: http://www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/revista/PHistoria10.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2011.