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2010 - FEVEREIRO EDIÇÃO GRUPO KINO-OLHO Esta revista é um incentivo à produção do movimento cinematográfico do interior paulista, favorecendo a consciência de seus realizadores e de seus espectadores. O cinema não é mero entretenimento e sim uma arma cultural a favor de seus artistas, portanto é mais do que urgente a formação de uma responsabilidade audiovisual em nossa região. Valor simbólico R$ 5,00 APOIO E www.cidadespaulistas.com.br GRUPO KINO-OLHO ISSN 1984-896X CINEMA CAIPIRA Ou do interior paulista N/ 12 (Kino-Olho n. 52, 2009)

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2010 - FEVEREIRO

EDIÇÃO

GRUPO KINO-OLHO

Esta revista é um incentivo à produção do movimento

cinematográfico do interior paulista, favorecendo a

consciência de seus realizadores e de seus espectadores.

O cinema não é mero entretenimento e sim uma arma

cultural a favor de seus artistas, portanto é mais do que

urgente a formação de uma responsabilidade audiovisual

em nossa região.

Valor simbólico

R$ 5,00

APOIO

E

www.cidadespaulistas.com.br

GRUPO KINO-OLHO

ISSN 1984-896X

CINEMA

CAIPIRA Ou do interior paulista

N/ 12

(Kino-Olho n. 52, 2009)

Esta revista é editada de forma artesanal com o objetivo informativo.

Os textos fazem parte de um circuito de discussões semanais a partir dos

encontros do grupo Kino-Olho. Cada integrante e amigo tem o direito de

expressar de forma escrita os seus pensamentos a respeito de CINEMA.

NESTA EDIÇÃO CONTAMOS COM OS TEXTOS ABAIXO

“O Cinema Transcendental de Caetano Veloso” de Luiz Henrique

dos Santos – PG 01

“Como fazer NOVOCINEMANOVO” de Tau Tourinho, Gabriel Lopes

Pontes e Lucas Virgolino – PG 03

“MANIFESTO DO NOVOCINEMANOVO” de Tau Tourinho e Gabriel

Lopes Pontes – PG 07

“Imagem da Dor” de Yasmin Bidim Pereira dos Santos - PG 08

“Notas sobre Mutum, de Sandra Kogut” de Rafael de Almeida

– PG 12

“A HERDEIRA: O FEMININO RESIGNADO” de Linda Catarina Gualda

– PG 14

“Sistema de Animação (Guilherme Ledoux e Alan Langdon)” de

Yasmin Bidim Pereira dos Santos – PG 16

“SHE” de Vall Morari – PG 18

Informações

[email protected]

[email protected]

youtube.com/jpmiranda82

kinoolho.blogspot.com

vimeo.com/user2272557

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A felicidade e a realização que tanto procuramos estão dentro de nós em

plenitude, bem como a solução de nossos problemas. Nós sabemos, porque

fomos nós que os criamos, com nossas qualidades e defeitos, do jeitinho que

somos. A chave está dentro do nosso ser; então, conclui-se que: se não estamos

achando solução para nossos problemas é porque estamos procurando no lugar

errado (ou em pessoas). Somos quem realmente achamos que somos? Ou

somos outra criatura que imaginamos ser? A quem estás procurando? O

verdadeiro ou o falso “EU”?

Quantas vezes já tivemos motivos suficientes para dizermos adeus, e

continuamos parados sem atitudes? Quantas vezes nos arrependemos de ter

falado ou feito algo, que antes afirmávamos com convicção, e ainda temos

motivos para lutar? Não sei por que razão- ainda não fui embora. Acho que é

porque ainda AMO VOCE. Isso não é luz? Que produz milagres?

Outras vezes blasfemamos e gritamos; eu ti odeio! E muitos outros desaforos.

Não é a faca destruidora?

E os acertos na cama- entre tapas e beijos. Não detém aí a real natureza do

homem e da mulher e sua divindade e terrível poder?

Ambos assim se descobrem um ser magnífico.

01

O Cinema Transcendental de Caetano Veloso

Por Luiz Henrique dos Santos

“E foi por isso que as imagens do país desse cinema

Entraram nas palavras das canções”

(Caetano Veloso)

“Caetano Veloso sempre esteve para o cinema assim como o cinema sempre esteve

para Caetano Veloso”. Confesso para os leitores desse artigo que sou um apreciador

desse nobre e polêmico artista, e tenho a intenção de fazer aqui uma síntese da

ligação que existe entre Caetano Veloso e o cinema, através dos desdobramentos

artísticos que aconteceram ao longo de sua carreira, pontuando cronologicamente

alguns momentos relevantes de sua vivência com grandes cineastas brasileiros e

internacionais. O trocadilho harmônico existente entre um dos maiores artistas da

música popular brasileira e a sétima arte já vem de longas datas, desde em 1967,

quando pela primeira vez compõe a trilha do filme "Proezas de Satanás na terra do

leva-e-traz", de Paulo Gil Soares.

O “poeta-músico-compositor-cineasta-escritor-artista-intelectual” desde já

prenunciava ser uma das figuras mais importantes para a história cultural-política

brasileira, quando em 1968 O Ato Institucional nº 5 acirrou a ditadura militar e

cerceou a liberdade artística no Brasil, tinha sido editado havia somente duas

semanas e a partir começa uma série de episódios repressores envolvendo os

baianos contestadores Gilberto Gil e Caetano Veloso, que culminou no exílio para

Londres em julho de 1969. Após dois shows de despedida, dias 20 e 21 no Teatro

Castro Alves, Caetano e Gil partem com suas mulheres, respectivamente as irmãs

Dedé e Sandra Gadelha, para o exílio na Inglaterra que durou até 1971.

De volta ao Brasil, em meados de 1972 compõe a trilha sonora de "São Bernardo",

filme de Leon Hirszman a partir do romance homônimo do escritor Graciliano

Ramos. No ano seguinte, a trilha receberá o prêmio de melhor música do Festival de

Cinema de Santos. Caetano fazendo de sua própria vida um verdadeiro filme

documentário, junto com a criativa trupe de baianos Gilberto Gil, Maria Bethânia e

Gal Costa, em outubro de 1976 faz o lançamento do álbum duplo com o material do

espetáculo "Doces Bárbaros", que se transformará também em filme-documentário

do diretor

02

Jom Tob Azulay.

A máquina Veloso cinematográfica não se cansa de “pensar cinema”, e mais

uma vez entra em set de filmagem, só que desta vez para assinar a trilha sonora

de duas canções especialmente para os filmes "Na boca do mundo" e "A dama

do lotação"em 1978.

Em 1979 acontece mais uma referência cinematográfica, só que desta vez no

próprio nome do disco que Caetano lança: “Cinema Transcedental”, com um

repertório de músicas antológicas, como mais uma das obras interessantes

elaboradas de forma criativa e inusitada.

Em 1986, resolve literalmente colocar suas idéias em prática quando faz sua

primeira incursão cinematográfica, "O cinema falado" (o título remete ao

primeiro verso de um samba de Noel Rosa"). O filme é feito em apenas três

semanas, sem repetição de planos, com poucos recursos, mas que se

transformou em grande polêmica na época por conta de sua irreverência.

Não contente apenas em dirigir filmes, em 1989 resolve atuar no filme de Julio

Bressane "Os sermões - a história de Antonio Vieira", interpretando o papel do

poeta Gregório de Mattos.

A partir de 1994, Caetano Veloso cai nas graças de uma apreciação artística que

atinge uma projeção Internacional, através da composição de trilhas sonoras

dos filmes de Pedro Almodóvar, o cineasta espanhol incluirá a gravação de

"Tonada de luna llena" (de Simón Diaz) feita por Cae (no CD "Fina estampa") na

cena final de seu filme “A flor do meu segredo”.

Através do filme “Tieta do Agreste” protagonizado pela atriz Sônia Braga e

dirigido pelo cineasta Cacá Diegues em 1996, Caetano consegue mais uma vez

realçar sua baianidade criativa, compondo a trilha sonora da película da obra

homônima do escritor Jorge Amado.

Caetano não cessa sua paixão pelo cinema quando decide em 1999 fazer uma

belíssima homenagem ao cineasta Frederico Felini através do disco “Omaggio a

Federico e Giulietta".

Os prêmios conquistados por Caetano não param, e mais uma vez em fevereiro

de 2000 ganhou o Grammy de melhor álbum de world music por "Livro"

vencedor do Grande Prêmio Cinema Brasil 2000, por "Orfeu" como melhor

trilha sonora, Prêmio Antônio Carlos Jobim.

Voltando sempre a cena internacional em julho de 2001 participa das filmagens

do novo filme de Pedro Almodóvar, “Fale com Ela”, emocionando a todos com

sua enfática versão da música "Cucurrucucú Paloma", que posteriormente foi

ganhador do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro em 2003.

. Em setembro do mesmo ano, em Trvei na Itália acontece o memorável almoço

de gala na casa do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, por quem Caetano

possui uma admiração enorme e inclusive já compôs uma música com o nome

do cineasta.

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As necessidades básicas do ser humano - tanto fisiológicas quanto psíquicas- tem-se

mantido estáveis, através dos tempos. Por isso quando queremos estudar os

padrões humanos básicos - de comportamento e de personalidade, é bom voltarmos

às fontes primeiras, onde sua representação é tão direta e simples que não há como

não aprender com elas. Os mitos são ricas fontes de “insights” psicológicos. A

produção literária e artística de alto nível registra e retrata a condição humana com

uma precisão indelével. Os mitos, porém, constituem um gênero muito especial de

literatura. Não são escritos ou criados por um único individuo, porque na realidade

são produtos da imaginação e experiências de toda uma era, de toda uma cultura.

Mitos, portando, retratam imagens coletivas, mostram coisas que são verdadeiras

para todos.

É em ATRAVES DO ESPELHO, do referido cineasta, que nos faz perceber nossos

conflitos; o interno e inconsciente que tem tudo haver com o nosso ser consciente

externo. Mas, criando um portal de entendimento e consciência a esse misterioso e

complexo ser imaginativo que chamamos de MULHER. É um filme bastante

interessante, complexo, mas instigante que revela graves problemas e confusão

mental, bem comum em pessoas mal resolvidas emocionalmente.

Depois de ler um livro emocionante, e assistir aos cinco filmes das obras centrais da

filmografia de INGMAR BERGMAN, é o momento certo para um mergulho para

dentro de si, e olhar para à própria vida, qualquer pessoa vive seus momentos de

rebeldia, e fuga (cociente ou in cociente). Queremos viver o que na verdade não

somos (outras vidas)- e não as nossas vidas. Não vemos nossa beleza. Então o que

nos impulsionam a viver? Estudar? Trabalhar? - A realização de ser o que não somos,

e o que é pior do que querer mudar os outros. Mas graças ao tempo mítico ou não

isso vai passando e esse tipo de realização (pessoal ou impessoal) vai se tornando

impossível, e os sonhos vão sendo substituídos pela realidade nua e crua, que temos

que suportar sem nem entender direito certas coisas, e se nos perguntamos por que

é tão difícil nos realizarmos? – e a resposta não vem, deixando-nos cada vez mais

confusos e aflitos.

Mas eu continuo sonhando, e o que é sonho? O que é realidade? E nessa intensa

busca, chegamos a uma grande descoberta. Que somos únicos, que não

dependemos de ninguém para sermos algo ou alguém. E que o outro tem sua

individualidade, e ambos o livre arbítrio. Mas tudo isso parece apavorante e

desejamos o fim. E passamos a criar e preferir sonhos (parece mais real e fácil),

construir castelos e viver fantasias que encarar o próprio eu. Ás vezes me pego

pensando, que na vida, nada é real (tudo não passa de uma ilusão) quando na

realidade a “negamos” no nosso dia a dia.

Nessa busca da interpretação do livro SHE, percebi que sermos verdadeiros nos

afasta cada vez mais da zona de conforto, nos colocando nas trincheiras da luta

diária e esse movimento nos conduz para onde temos que ir, e viver para construção

de uma vida melhor. Cada um tem que escrever seu livro, e é a sua verdade que tem

que ser impressa com responsabilidade, enfrentando os seus medos e incertezas,

mas tendo a certeza de ter lançando um passo a frente na compreensão da vida

individual, tornando-se mais forte e resistente para fazer sua estória. Esse é o grande

“INSIGHT”- autoconhecimento- a partir daí, vamos perceber que encontrar

“insights”, é viver, observar e analisar.

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SHE

Por Vall Morari

(A chave do entendimento da psicologia feminina)

Edição revisada e Ampliada- Editora Mercúrio

De: ROBERT A. JOHNSON

Introdução do Autor- Psicólogo jungiano, Johnson tem grande familiaridade com

a linguagem mítica, e dela se utiliza para explicar os caminhos da individuação

do homem e da mulher. É sabido que as forças dos mitos é muito grande e que

eles encerram verdades arquetípicas que nos dizem respeito.

O mito usado em SHE, para analisar a psique feminina é EROS E PSIQUÊ. Na

opinião de psicólogos e escritores, esse mito é a discrição perfeita da jornada da

mulher em busca da sua individuação. E em Eros, por sua vez, podemos ver o

ANIMUS feminino, ou seja, o elemento masculino na psique da mulher.

Eis um enigma - a psique da mulher, tanto para ela própria quanto para os

homens. Como funciona? Que mistérios guardam dentro de si? Não é fácil

desvendá-los, mas Johnson nos dá uma chave que, usada adequadamente,

poderá permitir que o homem e a mulher se conheçam melhor. E não se chega à

individuação sem o autoconhecimento. E é aqui que entra a arte do cinema na

vida das pessoas, todas as vezes que assistimos a um filme de qualidade como

por exemplo: O SILÊNCIO do cineasta Bergman, onde podemos ver e sentir em

muitos momentos do filme; inveja; solidão; ciúmes; desespero; medo;

angustias; vazio; desejo; carinho e sexo. Tudo isso misturado no cotidiano de

seus personagens como se fossemos um relógio e seu interminável tic tac, que

se soubermos observar aprendemos muito sobre nosso ser.

O homem, particularmente, tem aqui uma dupla oportunidade; passar a

entender mais as mulheres - mãe, irmã, amiga, companheira de sua vida e

conhecer a si próprio em profundidade, já que tem dentro de sua psique a

ANIMA, ou seja seu lado feminino.

A mulher por sua vez tem suas características mais expressivas em LUZ DE

INVERNO do mesmo cineasta, o amor e a paixão (de forma passional), não a

deixa enxergar, se ridiculariza, se humilha, se rebaixa (em nome desse amor)

suporta e transforma tudo que vem do outro (a pessoa em que dedica) ódio a

qualquer palavra que a denigre fisicamente e moralmente. (capacidades de

mártires e autoflagelo). Apesar de que a historia na verdade, tratar de um

conflito psicológico de dois personagens masculinos. Já em PERSONA também

de BERGMAN, a mulher quer superar de uma vez por todas os traumas

(referente maternidade, aborto, sexo, religião etc.) que a atormenta para poder

viver em sua plenitude.

Seus filmes em preto e branco, onde a luz é contrastada com o escuro o tempo

todo, e que quebra a imagem do todo e dando a impressão da dualidade (uma

visão dividida do sim e do não).

03

Em 2003 a ousadia de Caetano consegue brilhar mais uma vez no palco da entrega

do 75º Oscar , cantando a canção "Burn it Blue", trilha do filme "Frida"

acompanhado pela mexicana Lila Downs.

Após esse período entre 2003 e 2005 Caetano generosamente permitiu que o jovem

cineasta Fernando Grostein Andrade o acompanhasse de forma intimista durante a

turnê do álbum A Foreign Sounds nas cidades Nova York, Osaka e Tókio (no Japão),

para produzir o filme documentário “Coração Vagabundo”, que foi lançado

futuramente em 2009.

Coração Vagabundo não tem a mínima pretensão de fazer uma biografia, mas sim

mostrar um “recorte” de um momento da vida de Caetano. No filme a amizade entre

Caetano e o cineasta Pedro Almodóvar é reafirmada mais uma vez com um

depoimento emocionante feita pelo próprio Almodóvar. Um outro momento

curioso, é quando é mostrado uma tentativa de concentração de Caetano antes de

um show, onde ele próprio faz uma citação ao cineasta Ingmar Bergman, antes de

entrar no palco para fazer uma apresentação que aconteceu no “Carnegie Hall”.O

artista global, se reafirma quando também é mostrada as imagens de Caetano

Cantando a música “Terra” com um côro japonês espontâneo que se forma em

pleno show na cidade de Osaka para acompanha-lo. Além dos belos momentos

musicais do filme Caetano opina sobre tudo: religião, política, música e até

antropologia. Coração Vagabundo foi a última aventura cinematográfica de Caetano

Veloso até então.

Como fazer NOVOCINEMANOVO

Por Tau Tourinho, Gabriel Lopes Pontes e Lucas Virgolino

O NOVOCINEMANOVO não emprega, de jeito nenhum, atores profissionais ou

mesmo amadores, ou mesmo pessoas que tenham tido qualquer contato com a

técnica de interpretação teatral, fílmica ou televisiva. O NOVOCINEMANOVO

emprega exclusivamente o ATOR REAL, que não age como o ator tradicional, pois

não se esforça para fingir que é outra pessoa. O ATOR REAL interpreta a si mesmo, à

medida que vai dando depoimentos a seu respeito e vivenciando situações inerentes

ao seu cotidiano. Porém, como não encarna um personagem fictício, nem trabalha

sobre um script previamente elaborado, não é exatamente interpretar o que faz.

Nem por isto deixa de ser um ator, pois interpretar a si mesmo também é

interpretar. O ATOR REAL, enfim, é um ator que não interpreta, um não-ator que

interpreta. Um paradoxo em si mesmo. Mas o NOVOCINEMANOVO é feito de

paradoxos. E é nisto que reside grande parte da sua beleza.

04

O NOVOCINEMANOVO é nacionalista e regionalista. Portanto, procure um tema

que reflita bem os costumes, a cultura e o folclore do seu povo. Mas, ao fazê-lo,

lembre-se que, no NOVOCINEMANOVO, o tema e os ATORES REAIS estão

completamente interligados. Há um TEMA GERAL e um SUB-TEMA, encarnado

pelos ATORES REAIS. Por exemplo, se quiser fazer um filme sobre a atividade

mineradora na sua região, escolha mineiros que dêem ATORES REAIS

interessantes. Seu TEMA GERAL será a mineração e seu SUB-TEMA esses

mineiros em si. Se quiser falar sobre a sanfona (TEMA GERAL), escolha

sanfoneiros (SUB-TEMA). Empregue artesãos pra falar de artesanato e

jangadeiros pra falar sobre jangadas. E por aí vai...

● Interligue TEMA GERAL & SUB-TEMA

Descubra tipos bem representativos do seu povo, que sejam, ao mesmo tempo,

pessoas que dariam personagens ricos e cujas estórias de vida sejam

interessantes de contar e que, naturalmente, estejam ligados ao tema que você

pretende trabalhar, de acordo com o que foi dito acima. Procure dar preferência

ao homem do povo, ao cidadão anônimo, ao pária, pois é a essas pessoas a

quem o NOVOCINEMANOVO quer dar voz.

● Como descobrir quem daria um bom ATOR REAL

Em hipótese nenhuma proceda a seleções, audições ou testes. Isto é coisa do

cinema tradicional. Entregue-se completamente à sua sensibilidade e à sua

intuição. Se estas lhe indicarem que o candidato a ATOR REAL é alguém

realmente carismático e você conseguir visualizá-lo rendendo bem na tela, não

tenha dúvidas: contrate-o! Caso outros ATORES REAIS forem surgindo no

decorrer da filmagem, e pedirem pra participar do seu filme, e você achar que

vale a pena incluí-los, não vacile!

Segunda parte: Criando & filmando uma estória.

Imagine uma estória simples, mas não tenha a preocupação de contar essa

estória nos moldes tradicionais de começo, meio e fim. Na verdade, nem se

preocupe muito em contar uma estória. Prefira mostrar fragmentos da vida dos

seus personagens, que a representem bem, mas que não precisam ser

apresentados exatamente em ordem. Para ter uma idéia mais clara, imagine um

filme tradicional como um quebra-cabeça já montado e cada uma das suas

cenas como uma das minúsculas peças deste quebra-cabeça. O filme / quebra-

cabeça só faz sentido se as cenas / peças estiverem todas no seu devido lugar,

não é mesmo? Mesmo que este lugar não seja necessariamente em ordem

linear. Existem diversos filmes tradicionais que começam pelo fim, como

“Gandhi”, “O Último Imperador” e “O Pequeno Grande Homem”. Outros que

usam esquemas narrativos ainda mais audaciosos, como “Irreversível”, que

conta uma estória de trás pra frente. Mas as peças sempre acabam por se juntar

numa ordem lógica. Não tenha esta preocupação. Você não tem a menor

obrigação de contar uma estória ao fazer um filme. Um NOVOFILMENOVO é

como um quebra-cabeça desmontado e as peças / cenas que o compõem não

tem a menor necessidade de estarem juntas, mas, olhando-as isoladamente, dá

pra apreciá-las e, ao mesmo tempo, ter uma idéia geral do conjunto. Isto basta

para o seu filme.

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A partir daí o filme começa a tomar ritmo, intercalando imagens de arquivos,

falando da importância que foi o baterista Nenê na vida de Toucinho e em todo o

seu processo de criação musical, mostrando imagens de Toucinho se

apresentando em bares e casas noturnas, e claro, muita música e muitos

depoimentos dele falando de música, é quase que como se estivéssemos ouvindo

um solo de bateria, que vai aumentando o ritmo e se tornando mais empolgante.

Há uma seqüência muito interessante em que ele faz “canta” o som da bateria,

ritmando e compondo uma melodia e ele explica isso para a câmera, e lógico que

para quem não entende de música parece ser muito difícil tudo o que ele está

falando, mas para ele faz todo o sentido e provavelmente ele nem pense mais

para tocar, já é algo que faz parte de sua vida. E paralelamente a música, Toucinho

filosofa o tempo todo, a respeito da vida, da sua vida, conta de casos amorosos,

porque ainda está sozinho, diz que já perdeu vários amigos. E parece que tudo

acaba em musica, no fim das contas ele estará sempre tocando uma música boa,

não importa qual, desde que seja boa.

Uma seqüência muito importante é uma em que o baterista está voltando de um

show e o carro não pega. Ele então tente fazer a bateria do carro funcionar e

consegue. É ai que entra o nome do filme, sistema de animação, porque a partir

desse episódio com o carro, Toucinho passa a usar a expressão sistema de

animação com freqüência, acaba se tornando seu jargão. Podemos entender

então o sistema de animação como sendo a própria vida de Toucinho. Precária,

difícil, porém repleta de musica, é um “sistema de animação” que funcionou

plenamente para ele, porém não é uma precariedade estrutural, mas sim

consciente, ele poderia ter feito sucesso se quisesse, mas preferiu viver

anonimamente, tocando por prazer, para o seu prazer e dos outros, de uma forma

aleatória e livre.

Quando o filme se aproxima do final, aquele cenário do inicio é retomado, porem

desta vez o espectador consegue se situar e entender que aquele lugar cheio de

jovens músicos é um encontro de bateristas, no qual Toucinho é um dos

convidados especiais. Vemos então o musico chegando, logo de cara percebemos

que ele está tremendamente nervoso e ansioso, parece a te que nunca subiu num

palco. Vemos ele andando no camarim, e a platéia esperando, apenas alguns

jovens músicos, também ansiosos para o workshop com Toucinho. Quando ele

entra é super aplaudido, e lógico, dá um show na bateria. É muito gratificante ver

a interação entre Toucinho e os jovens músicos, há um respeito enorme de ambas

as partes, o importante ali é somente a música, não há conflitos de egos e

Toucinho, apesar de dominar a bateria, se mostra humilde e irreverente o tempo

todo, embora nós reconheçamos ali uma verdadeiro ás da bateria.

O documentário é tão espontâneo vívido quanto o próprio Toucinho Batera, e esse

é seu maior mérito, por ser despretensioso acaba cativando pela simplicidade.

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(Lourival José Galiani)

Sistema de Animação (Guilherme Ledoux e Alan Langdon)

Por Yasmin Bidim Pereira dos Santos

Viver da música não é fácil, difícil é viver sem ela

Toucinho

O nome pode soar estranho e até mesmo curioso. O que será sistema de

animação? A resposta acaba vindo ao longo do documentário dirigido por

Guilherme Ledoux e Alan Langdon, um dos selecionados da 12ª Mostra de

Tiradentes. O longa se concentra na figura de músico Lourival José Galiani, mais

conhecido como "Toucinho". Exímio baterista, Toucinho é natural de Santa

Catarina e já tocou com vários artistas famosos, dentre eles Fafá de Belém e

Originais do Samba. A figura de Toucinho é o centro do filme, que busca de

alguma forma revelar a identidade e mostrar para o grande publico quem é

Toucinho Batera. O longa, portanto, já parte dessa premissa de que embora

Toucinho seja um grande artista, ele é pouco conhecido no cenário nacional, a

não ser por músicos, bateristas e fãs. Essa consciência de que Toucinho é uma

grande artista porém desvinculado de fama e dinheiro, é o que norteia todo o

documentário, de forma que os diretores vão construindo a imagem de

Toucinho, deixando que ele se apresente no decorrer do filme.

Esse artifício pode ser percebido logo no início. Ao invés de mostrar o musico

logo de cara, é criado um clima de suspense, onde são entrevistados alguns

músicos amadores, e pergunta é: "Você conhece Toucinho Batera?". E na

maioria das vezes a resposta é não. Todos nós ficamos então curiosos para saber

quem é Toucinho. Em seguida, ainda não somos colocados frente a frente com o

músico, mas sim com outros músicos, amigos e admiradores de Toucinho, que

vão contar um pouco de sua história, desde a sua adolescência, a origem do

apelido, alguns episódios, depoimentos sobre sua qualidade como artista. É um

momento de contraponto, primeiro vemos pessoas que não sabem muito bem

quem é Toucinho, e depois músicos que o conhecem muito bem. Mas ainda não

vimos o próprio Toucinho.

Finalmente ele aparece na tela e matamos nossa curiosidade, mas ficamos

admirados também, porque talvez estivéssemos esperando um rock star com

pinta de metaleiro, mas o que vemos na tela é uma cara desencanado, falante e

cheio de energia, mas ao mesmo tempo sem nenhum estereótipo de músico

bem sucedido. Logo percebemos o porque do suspense inicial. Toucinho

realmente é uma figura e tanto. Fala muito sobre música filosofa o tempo todo,

sentado em sua casa, toca um pouco (muito!!) de bateria e se diverte contando

suas historias.

05

Como elaborar o ROTEIRO (QUASE) INEXISTENTE

Pura & simplesmente, antes das filmagens, converse um pouco (um pouco!) com

seus ATORES REAIS sobre o cotidiano deles. Peça-lhes que lhe fale sobre o que

costumam fazer, lhe mostre as pessoas com quem convivem, lhe leve as lugares que

freqüentam. Seu ROTEIRO (QUASE)INEXISTENTE constituirá na reconstituição

simulada daquelas, dentre essas ações cotidianas, que você julgar que valem a pena

ser mostradas. Não é demais lembrar: não se preocupe em ordenar estas cenas num

todo compreensível, numa narrativa lógica, ainda que fragmentada. Fuja disto!

Como fazer surgir o ARGUMENTO INSTANTÂNEO

Peça aos seus ATORES REAIS que mostrem, diante da câmera, como é tal e tal coisa

que costumam fazer e deixe-os agirem como se a estivessem fazendo realmente.

Assim, você não estará registrando a realidade estrita, que é o que faria se estivesse

produzindo um documentário tradicional. Mas também não estará fazendo ficção,

pois por muito que o que esteja registrando seja a recriação de uma situação, esta

situação recriada faz parte da vida real dos que a estão recriando. Esta imprecisão de

fronteiras entre as linguagens ficcional e documental é tipicamente

NOVOCINEMANOVO.

Como dirigir seus ATORES REAIS.

Não os dirija. Pelo menos, não os dirija se não for completamente imprescindível,

pois o NOVOCINEMANOVO valoriza às últimas conseqüências a espontaneidade e o

improviso. Você pode interferir, por exemplo, se estiverem muito tímidos, falando

rápido demais ou devagar demais, alto demais ou devagar demais, se estiverem

descambando pro artificialismo. È interessante filmá-los sem que percebam que

estão sendo ou sem que tenham se dado conta de que a cena já começou. De

maneira geral, porém, não os dirija.

Que equipamento usar

O mais simples possível, que qualquer um, mesmo inábil e inexperiente, possa

manejar e que lhe garanta imagem e sons satisfatoriamente nítidos. Um boom e

uma camereta básica já quebram o galho. Se acrescentar a isto uma betacam, então

terá o máximo de tecnologia a que o NOVOCINEMANOVO se permite. Lembre-se

que se você gastar seus neurônios com a técnica, vai faltar pra criatividade. Não dê a

mínima pra besteiras como câmera fora de eixo, boom apontado pro lado errado,

microfone aparecendo. Prestar atenção nestes detalhes é mesquinhez. Ignore

totalmente uma coisa chamada continuidade. Pra quê se preocupar com

continuidade se você não quer contar uma estória contínua, aliás, nem mesmo quer

contar uma estória? Só procure não descuidar muito do foco. Se há um aspecto

técnico com o qual o NOVOCINEMANOVO se preocupa, um pouquinho que seja, é o

foco. Mas se uma cena legal pintar e for gravada fora de foco, não deixe de

aproveitá-la por causa disto. Era só o que faltava...

Como enquadrar uma cena

Pense qual seria a maneira mais certinha de enquadrar uma cena e faça

exatamente o contrário.

Como enquadrar um ATOR REAL, um depoente ou o cenário

Enquadre errado. Abuse do plano de detalhe. Encontre a expressividade de ângulos

inusitados do rosto, do corpo, dos trajes e da indumentária, de seus ATORES REAIS e

depoentes. A gravata borboleta de um homem pode dizer mais a seu respeito do

que seu rosto. Faça imagens quebradas. Pra que enquadrar uma igreja inteira e na

vertical se você pode obter um efeito muito mais original e forte mostrando só seu

campanário...e inclinado? Pra que enquadrar toda uma casa se o que há de

expressivo nela pode estar contido numa única e simples maçaneta? Pra que

enquadrar um homem sobre sua bicicleta, se toda a força dramática desta imagem

pode estar contida nos raios da roda se movimentando? O NOVOCINEMANOVO não

quer usar as câmeras para registrar, quer usá-las para expressar.

06

Como enfatizar a plasticidade

Usar os enquadramentos descritos acima já é meio caminho andado. Mas há

outros truquezinhos bobos que podem ajudar bastante. Vista seus ATORES

REAIS em trajes de cores contrastantes. Coloque-os pra depor contra paredes

pintadas em cores chapadas e berrantes e deixe a parede aparecer bem mais do

que eles. Harmonize cenas em tons só neutros, só frios ou só quentes. Intercale

cenas de cor com outras em P & B ou sépia, sugerindo TV velha ou filme antigo.

Micromontagem, montagem soluçante & repetições

A micromontagem é composta por planos super rápidos. A montagem soluçante

é quando há um corte abrupto e aparentemente gratuito na narrativa, como se

o filme tivesse quebrado. Godard usava as duas adoidado e o

NOVOCINEMANOVO percebeu nelas um recurso estético muito válido. Já

Glauber botava seus atores pra repetir a mesma frase inúmeras vezes – vide “A

Idade da Terra” – o que criava um efeito de distanciamento, na melhor acepção

brechtiana do termo, que lembrava ao público que cinema não é

necessariamente recriação artificial da realidade, mas um meio expressivo livre,

e quebrava as noções tradicionais de ritmo. É outra ação de um grande mestre

da qual o NOVOCINEMANOVO não tem a menor vergonha de se apropriar.

Aliás, o NOVOCINEMANOVO não trás nenhuma novidade, só mescla recursos

pré-existentes numa linguagem própria. Mesmo porque, Eisenstein já fez tudo

que tinha pra fazer no cinema.

Apêndice: O que nem pensar em fazer

O NOVOCINEMANOVO mistura documentário com ficção. Então, você pode

intercalar as cenas vividas pelos seus ATORES REAIS com depoimentos sobre o

TEMA. Mas fixar a câmera, abrir o microfone e deixar o depoente falando,

falando, falando... Sempre na mesma posição e sempre enquadrado pelo

mesmo ângulo, é um procedimento simplesmente inaceitável, mesmo pro

cinema mais tradicional. Tenha dó! Cinema é ação, não inação. Recolha

depoimentos curtos. É preferível uma frase forte do que duas horas de papo-

furado. Se seu depoente aparecer apenas uma vez ao longo do seu filme,

apresente-o enquadrado por diferentes ângulos e a distâncias variadas. Se

aparecer mais de uma vez, procure recolher cada depoimento seu num cenário

e numa iluminação diferentes. Não tenha receio de apresentar o depoente

calado, desenvolvendo alguma ação que não tenha nada a ver com o seu

depoimento, como consertar uma rede de pesca, caminhar pela praia ou jogar

capoeira, e sobrepor seu depoimento a essas imagens.

Usar efeitos especiais, por mais simples que sejam

Nada é menos NOVOCINEMANOVO do que efeitos especiais.

15

O assunto de ambas as obras é real e de interesse permanente. No romance, o

tratamento é analítico e o interesse psicológico afrouxa a ação, permitindo ao leitor

vasculhar o íntimo dos personagens. Teria sido fácil e comum, por exemplo, fazer do

Dr. Sloper simplesmente um tirano convencional. É tirano, mas não convencional. É

um homem vivo, e está certo quanto a Morris Townsend. Catherine, a protagonista,

podia facilmente ter-se tornado uma vítima choramingas e piegas. Não é brilhante,

mas é suficientemente inteligente para o que serve.

No filme, o espectador não deve somente interessar-se pelo bem filmado, deve,

sobretudo, preocupar-se como está sendo filmado, o que sugere muito mais amplas

implicações valorativas. Neste filme, o pormenor expressivo nos é fornecido por uma

câmera que intervém, que pensa porque nos obriga a pensar, que se emociona

porque nos coage à emoção, que acusa e denuncia a complicada situação da

protagonista. A mulher que James nos apresenta e que depois é traduzida pelo

diretor não é resultado de uma experimentação, trata-se de uma personagem

complexa, que apesar de não corresponder às expectativas do pai, possui incrível

força e personalidade. As obras nos mostram o mundo do homem em crise e aquilo

que esta tem de mais específico: a instabilidade afetiva e a incerteza. A total

ausência de ação sensorial – percebida bem mais na novela – em favor de uma ação

mental, permitiu que as cenas e as palavras assumissem um valor mais simbólico, de

tal forma que o espectador não sai indiferente ao filme. Isso posto, temos

consciência que numa narrativa, a responsabilidade moral do narrador está

comprometida com os julgamentos de valor que ele atribui (ou recusa atribuir) aos

fatos que narra. No cinema, estes julgamentos se apresentam pela boca de um

personagem autorizado ou pela adoção de um “tom de narração”. Esse tom marca

de um lado, uma determinada história, e de outro, um julgamento sobre a história.

Em Washington Square de Henry James, a representação da mulher está

nitidamente comprometida com os mitos das diferenças sexuais demarcadas,

chamadas de “masculina” e “feminina”, que por sua vez giram em torno de modelos

de domínio-submissão (no caso, Dr. Sloper e Catherine, respectivamente). Tais

posicionamentos assumidos pelos dois gêneros sexuais na representação privilegiam

nitidamente o masculino, que assume a voz e o poder dentro da narrativa. Isso não é

muito diferente no filme, pois também é negada à mulher uma voz ativa e um

discurso e seu desejo está sujeito ao desejo masculino. Em silêncio, Catherine Sloper

vive uma vida frustrada e, quando decide resistir a essa condição, sacrifica a própria

vida por tal ousadia Basta notarmos o trágico desfecho a ela destinado: Catherine

permanece na solidão, envergonhada e humilhada.

A mulher aqui em questão se constitui em perigo, já que está a frente de seu tempo,

e sua força e dependência comprometem a ordem patriarcal. Ela não é mais nem

vítima desprotegida nem menininha tola e sua sexualidade ameaça o poder do pai.

Tal sexualidade, ao desviar o homem de seu objetivo, intervém de modo destrutivo

sobre sua vida. Vista como maligna por sua sexualidade e vontade explícitas, essa

mulher precisa ser destruída e sua destruição é o desprezo do pai e a solidão por ele

infligida. Quando o Dr. Sloper morre, lhe deixa uma quantia em dinheiro que só lhe

basta para o sustento. Sem o amante nem o pai, Catherine se vê vivendo com a tia

uma vida medíocre e solitária, mas em momento algum sente remorso pelo que

fizera. Decidida, décadas depois quando Morris volta e lhe pede em casamento,

Catherine não guarda mágoas nem se vê inclinada a dar uma reviravolta em sua

vida, aceitando-o como marido. Ao contrário, pede para ele não voltar nunca mais e

na saleta de estar, apanha seu bordado e recomeça-o, dessa vez para toda a vida.

14

Através do homem da cidade descobrimos a miopia de Thiago. Era preciso não

perceber com clareza pela visão, para que um coração conseguisse enxergar

tanto. Antes de partir, assim como Miguilim, Thiago pediu os óculos daquele

que o levaria para cidade e “olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora.

Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e

são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da

manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés,

como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era

bonito! Agora ele sabia.” Quando o cinema abraça a literatura, e é fiel aos seus

sentimentos, surgem poesias em filme que despertam nossos olhos para a

beleza do mundo, como Mutum. “Quem sabe, quem sabe, melhor ficasse

sozinho – sozinho longe deles parecia estar mais perto de todos de uma vez,

pensando neles, no fim, se lembrando, de tudo, tinha tanta saudade de todos.”

(Agnieszka Holland)

A HERDEIRA: O FEMININO RESIGNADO

Por Linda Catarina Gualda

Com Washington Square (traduzido no Brasil por A Herdeira), Henry James

chegou à honra de ser publicado em série simultaneamente na Inglaterra e na

América. A novela surgiu em 1880 e é narrada de maneira direta por um

narrador onisciente. O enredo move-se quieta e deliberadamente, com

penetrante análise da relação entre um pai dominador e uma orgulhosa jovem

tolhida pelos costumes sociais de seu tempo e de sua classe. A maestria da obra

está na resistência à solução melodramática e as oportunidades para o apelo

sentimental.

O realismo da novela jamesiana encontra sua respectiva tradução no filme

homônimo de Agnieszka Holland (1997) que mostra como o indivíduo é

determinado pela vida social, sendo falsas ou incompletas as noções que o

apresentam como produto exclusivo de sentimentos. A obra cinematográfica

apresenta um enredo muito semelhante à obra literária. Catherine Sloper é a

filha do Dr. Austin Sloper, um homem muito rico. Mas pai e filha não têm o

melhor dos relacionamentos. Ele não vê na filha uma moça inteligente, nem

mesmo graciosa e guarda, lá no fundo, um ressentimento pelo fato de sua

esposa, mulher belíssima e atraente, ter falecido durante o parto de Catherine.

Quando mais tarde, a moça se apaixona por Morris Townsend, um rapaz sem

posses, o Dr. Sloper tenta de tudo para impedir o romance, pois acha impossível

alguém se apaixonar por uma moça sem graça e apática como Catherine. Ele

realmente acredita que o interesse do rapaz está apenas em seu dinheiro e para

provar isso leva às últimas conseqüências sua tirania.

07

MANIFESTO DO NOVOCINEMANOVO

Por Tau Tourinho e Gabriel Lopes Pontes

PONTO UM – POR UM CINEMA VERDADEIRAMENTE NOSSO

O NOVOCINEMANOVO pretende ser, na sua temática e no tratamento à ela

dispensada, um cinema essencialmente brasileiro, baiano e do Recôncavo, sem que

isto implique necessariamente em sectarismo ou xenofobia. O NOVOCINEMANOVO

valoriza e pretende divulgar a dança, a música, a plasticidade, o folclore, os

costumes, o linguajar e a cultura do povo do Brasil, da Bahia e do Recôncavo

PONTO DOIS – OS TRÊS PILARES DA PROPOSTA ESTÉTICA

PRIMEIRO PILAR

O ROTEIRO (QUASE) INEXISTENTE E O ARGUMENTO INSTÂNTANEO

Levando em consideração a afirmação do poeta espanhol Antonio Machado de que

“(...) no hay camino / se háce camino al andar (...), O NOVOCINEMANOVO não

emprega nem roteiros nem argumentos propriamente ditos, previamente escritos,

tendo como eixo narrativo apenas uma idéia-base, necessariamente muito resumida

e vaga, a partir da qual elenco e direção improvisam com liberdade quase absoluta,

daí surgindo instantaneamente o argumento. Por isto, o NOVOCINEMANOVO afirma

empregar o roteiro(quase) inexistente e o argumento instantâneo.

SEGUNDO PILAR

O NOVOCINEMANOVO recusa-se radicalmente a empregar pessoas com formação

de ator, por mínima que essa seja. O NOVOCINEMANOVO emprega exclusivamente

o doravante designado ator real. Ou seja, o NOVOCINEMANOVO convoca indivíduos

anônimos, do povo, a viverem na tela situações inerentes às suas próprias vidas. Este

ator real que o NOVOCINEMANOVO preconiza vive seu próprio papel, é intérprete

de si mesmo.

TERCEIRO PILAR

O NOVOCINEMANOVO não realiza documentários, na medida em que as situações

vivenciadas pelos personagens são induzidas pela direção. O NOVOCINEMANOVO

realiza documentários, na medida em que os personagens vivenciam situações

referentes à sua própria realidade. O NOVOCINEMANOVO não realiza filmes

ficcionais, na medida em que expõe a realidade específica de pessoas de carne e

osso, que não empregam técnicas de interpretação para encarnar personagens

fictícios. O NOVOCINEMANOVO realiza filmes ficcionais, na medida em que não se

limita a registrar literalmente situações reais vividas por pessoas reais, mas induz

essas pessoas a vivenciar certas situações inerentes à sua realidade cotidiana, que,

de outra forma, não vivenciariam. Portanto, se o NOVOCINEMANOVO, ao mostrar

contextos reais, não deixa de estar realizando documentários, tampouco deixa de

realizar filmes ficcionais ao amoldar esses contextos às conveniências de um

discurso cinedramático, neles interferindo através da criação proposital de cenas

irreais.

PONTO TRÊS – A VALORIZAÇÃO DO HUMANO

O NOVOCINEMANOVO pretende reduzir ao mínimo essencial o

equipamento necessário para captação de imagens e sons, despriorizando

a técnica em função da inventividade. Em suma, a proposta estético-

cinematográfica do NOVOCINEMANOVO cultua e procura levar às últimas

conseqüências a proposta original do CINEMA NOVO de Glauber Rocha, ao

enfatizar ainda mais a espontaneidade e o improviso, através do emprego

do roteiro (quase) inexistente e do argumento instantâneo, e da

substituição do ator propriamente dito, amador ou profissional, pelo ator

real.

08

Imagem da Dor

Por Yasmin Bidim Pereira dos Santos

Quando assistimos à primeira cena de Gritos e Sussurros, nos deparamos com

uma seqüência de imagens estáticas que situam o espectador no local onde se

passará a ação do filme. São imagens de um jardim um tanto quanto sombrio,

melancólico, sem vida, denso, frio. A primeira vez a assisti a essa seqüência senti

um imensa vontade de explora essa jardim, de saber o que havia além da

neblina, o que havia por estre as arvores a medida em que a luza do som ia

aparecendo e entrando. Num primeiro momento essas imagens podem não

parecer nada demais, porém elas têm importância fundamental para que

possamos entrar no clima do filme. Fundamental, porque, Ingmar Bergman

consegue transpor todas aquelas características estéticas citadas para o plano

do subjetivo, e incorporá-las nos personagens e no enredo do filme. O diretor

Bergman explora, ao longo de todo o filme, a imagem estática, parada. E usa

esse recurso em favor da sua história, que trata de um tema fortíssimo que é a

morte. E, como disse Bellour:

“Se o congelamento da imagem, ou na imagem, o que podemos chamar também de

tomada fotográfica do filme, pose, ou pausa da imagem que exprime o poder de captação

pelo imóvel, se essa experiência é tão forte, certamente é porque joga com a sentença da

morte – seu ponto de fuga e, num certo sentido, o único real. . .”

Bergman foi extremamente sábio quando iniciou o filme com essas imagens. Foi

quase que como um aviso: “esse filme que vocês vão assitir não é um filme

tranqüilo, ele é pesado, complexo, forte e frio. Como esse jardim que vocês

acabam de ver.” E ao longo do filme, o espectador realmente se depara com

essas características todas. E não teria como ser diferente, um filme que trata

como tema a morte, o desligamento do passado, e a relação conturbada entre

pessoas da mesma família, acaba tendo uma carga dramática muito forte. E o

recurso da fotografia é usado com muita eficiência para explorar e tema. Não

somente a fotografia still, mas a fotografia cinematográfica, que é belíssima e se

constitui como elemento estético principal do filme.

Logo depois, um outro plano extremamente simbólico é o de Agnes acordando.

É dela o primeiro rosto a aparecer no filme. A câmera parada alude a uma

fotografia, mesmo que haja movimento em quadro, ele é muito pequeno, e nós

podemos nos concentrar na expressão dela, na expressão de dor, nas linhas

exageradamente marcadas de seu rosto.

13

Felipe, “vamos ficar nós dois, sempre um junto com o outro, mesmo quando a gente

crescer, toda a vida?”. Mas Felipe já havia adormecido, diferente de Dito, o irmão de

Miguilim, que haveria respondido prontamente: “ – Pois vamos.”.

Depois da briga entre eles, tio Terêz sai de casa a mando de Vó Izidra. E somente

muitos dias depois, ele reaparece para Thiago, no meio da mata, enquanto o garoto

voltava para casa, após ter levado o almoço para seu pai na roça. Pede que o

sobrinho entregue um bilhete para sua mãe. O mundo dos adultos não conseguia ser

compreendido por Thiago. Desajustado e confuso, ele não sabe o que fazer. Gostava

muito de tio Terêz, mas sabia que a discussão entre seus pais era por causa dele. A

atmosfera de apreensão e de mistura de sentimentos que percebemos no livro, é

mantida no filme de maneira a nos remeter a mesma sensação estética.

E teremos a mesma impressão em relação ao acontecimento da morte do irmão.

Perceberemos, tanto na novela quanto no filme, a mesma dor pelo irmão, a

afetividade, a fraternidade, a saudade e o sentimento de solidão após a partida.

Apesar das escolhas que a diretora de Mutum faz de minimizar a ação em torno da

morte, e manter os reflexos dela nos personagens, de maneira especial em Thiago.

A câmera não é sentida, não nos é dada a ver. Temos um registro que aparenta ter

feições documentais construídas para que os espectadores percebam o filme com

uma carga maior de realismo, a qual acaba por tornar-los mais próximos dos

conflitos internos dos personagens. Aliás, tudo é arquitetado para que tenhamos

essa sensação: a opção por não-atores, que agem com uma naturalidade incrível; a

ausência de luz artificial, que permite que a luz do ambiente alumie o filme; a

ausência de música, que nos faz ficar imersos em uma paisagem sonora riquíssima,

possibilitando ver o sertão de Mutum, inclusive, de olhos fechados; assim como, a

utilização de uma locação real, capaz de permitir uma apropriação mais orgânica do

espaço, tanto pelos atores quanto pela própria equipe.

O filme é composto de maneira a deixar ser sentida uma temporalidade dilatada nas

imagens. Através de um tempo interno aos planos, sentimos os fluxos de consciência

de Miguilim entre os fotogramas das imagens de Thiago. Imagens essas que parecem

pedir para que sejam vistas com carinho, mais de uma vez, com olhos atentos para o

que se esconde por detrás delas. É assim que Sandra Kogut transporta, aos poucos, o

lirismo poético da prosa de Guimarães Rosa para o cinema, fazendo com que a obra

seja, além da história de Thiago, uma verdadeira comunicação de sentimentos.

E somos levados a ver a vida como um lugar, situado no tempo, de incessantes

encontros e desencontros. “– Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve

poder para te dar. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se

encontram...”. Diz a mãe ao Thiago, quando, após o sumiço do pai, um homem da

cidade, médico, que visitava o Mutum se propõe a levá-lo. Thiago, assim como

Miguilim, pergunta à mãe, enquanto questiona a si: “Mãe, mas por que é, então,

que acontece tudo?!”. Em “Campo Geral”, a mãe responde: “Miguilim, me abraça,

meu filhinho, que eu te tenho tanto amor...”; enquanto em Mutum, a mãe

simplesmente o abraça e acaricia seu peito, como se, com esse gesto, fosse capaz de

retirar toda a dor do filho, acalmar toda a angústia de seu coração, restituir toda a

paz de sua alma.

12

Notas sobre Mutum, de Sandra Kogut

Por Rafael de Almeida

Na novela “Campo Geral”, de João Guimarães Rosa, um homem disse certa vez a

Miguilim, enquanto estava viajando com tio Terêz, irmão de seu pai, que o

Mutum é “um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito

mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre...”. Miguilim não via a hora

de chegar para contar essa boa notícia à mãe: o lugar em que viviam era bonito.

E é a partir da história de Miguilim que Sandra Kogut escreve uma outra história:

a de Thiago, que é Miguilim, mas é um outro.

Mutum (2007), dirigido por Sandra Kogut, é uma transcriação dessa novela de

Guimarães Rosa. Na busca de trazer para o cinema o universo desse lugar

isolado do sertão de Minas Gerais, a diretora dá a ver o mundo através de um

garoto de dez anos. Através dos olhos de Thiago, que traz toda a saudade do

mundo dentro de si. Através dos olhos, espelhos da alma.

Os sentimentos, alegrias e tristezas, angústias e esperanças, do protagonista nos

chegam pelo seu olhar. E assim, aos poucos, a narrativa conquista o olhar

daqueles que estão à frente da tela. Convida o espectador a experimentar uma

realidade distante, a visitar um sertão que não é somente o das Gerais, mas o da

alma. Onde, às vezes, a sensação que se tem é da “saudade de uma coisa que

não sei o que é, nem de donde, me afrontando”, segundo Miguilim. E durante

essa viagem, Mutum não se preocupa em dar a ver outra coisa que não o

quanto pode ser árido, reconhecer a existência de um sertão dentro de si.

O filme começa com um plano fechado em que temos o ponto de vista de

Thiago, sobre um cavalo, indo em direção a sua casa. A câmera tremula de

acordo com os passos do cavalo e nos dá a ver parte de sua crina e cabeça, além

do terreno em que pisa, em segundo plano. A próxima tomada revela que ele

estava acompanhado de tio Terêz. “Mesmo assim, enquanto esteve fora, só com

o tio Terêz, Miguilim padeceu tanta saudade, de todos e de tudo, que às vezes

nem conseguia chorar, e ficava sufocado.”

É através desse meio de locomoção que adentramos Mutum e chegamos à casa

do protagonista. Conhecemos seus irmãos, através de um plano médio; seu pai,

de um plano geral; e sua mãe, de um primeiro plano. A escala de planos parece

ser o primeiro recurso próprio à linguagem cinematográfica que Kogut utiliza

para sugerir a afetividade que Thiago nutre por seus familiares. Repleto de

silêncios, sorrisos e carinhos, a seqüência de planos-detalhes do encontro com a

mãe será rompida somente com a entrada do pai em quadro. O conflito entre o

pai e mãe, por causa do tio, será a tensão narrativa que dará aver, cada vez

mais, a introspecção do protagonista. A interioridade de Thiago irá sendo

revelada muito mais pela ausência do que pela presença de palavras, a não ser

nos diálogos, geralmente antes de dormir, com Felipe, seu irmão, e único amigo.

09

Quando ela começa a abrir os olhos e acordar, vemos a transição da imagem fixa

para a imagem em movimento que Bellour cita, essa transição é extremamente sutil,

mas poderosa, pois estabelece a ligação entre a ausência e a presença de

movimento. Enquanto vemos Agnes dormindo, o que nos garante que ela não está

morta? Só temos certeza de que ela está viva a partir do momento em que abre os

olhos e começa a se mexer.

A partir disso podemos pensar na relação que se estabelece entre a imagem estática

e a morte. Por que Barthes disse, em A Câmara Clara, que a fotografia é a

representação da morte? Pode ser porque a fotografia nada mais é do que a

captação de uma fração de segundo que aconteceu em um determinado momento

na esteira do tempo. E aquela fração de segundo foi verdade apenas naquele

momento, foi única, e aquele momento morreu para sempre, e a imagem que fica

nada mais é do que a representação daquele momento. Uma tentativa, frustrada, de

preservar a sensação que se sentia no momento em que foi tirada a fotografia.

Um momento do filme em que essa efemeridade do registro fotográfico fica muito

clara é na cena em que estão Maria e o medico no quarto, ele atrás dela, e os dois

de frente para o espelho, e ele diz:

-Você é bonita. Provavelmente mais bonita que antes. Mais você mudou muito. Quero

que veja como mudou. Agora seus olhos lançam olhares rápidos e calculistas. Você

olhava para frente, diretamente sem máscaras. Sua boca assumiu uma expressão de

descontentamento e fome. Era tão macia. Sua pele agora é pálida. Você uma

maquiagem. Sua testa, bonita, ampla, agora tem quatro rugas em cima de cada

sobrancelha. Não, não da pra ver nessa luz, mas se vê a luz do dia. Sabe o que causou

essas rugas?

-Não

-Indiferença, Maria. E essa linha fina que vai da orelha ao queixo, não é mais tão obvia,

mas é esboçada pelo seu jeito preocupado e indolente. E, lá, na ponta do seu nariz...

Por que você escarnece com tanta freqüência? Vê, você escarnece demais. Vê Maria?

E olhe sob seus olhos. As linhas agudas e quase invisíveis de sua impaciência e do seu

tédio.

Enquanto ouvimos esse diálogo, e câmera enquadra o rosto de Maria. Nesse diálogo

fica claro o quanto uma imagem é simbólica e subjetiva. A questão não é se

realmente ele estava vendo tudo isso no rosto dela, mas sim o que a imagem fixa do

rosto dela (a atriz Liv Ulman, belíssima) desperta nele. Inclusive, tudo que ele disse a

respeito dela pode nem ser verdade, mas é o modo como ele a enxerga, como ela se

revela para ele. E quantas vezes nós já não passamos horas olhando para a imagem

de alguém que nos seja muito caro, e ficamos enumerando mentalmente as

características dessa pessoa, e não somente as características físicas, mas todas as

que aquela imagem nos suscita.

Partindo agora para uma análise estética do filme, há muitos elementos da

fotografia que são extremamente significativos. A forma como o vermelho se faz

presente no filme pode ter várias interpretações. Uma delas é a da feminilidade, já

que o filme tem como protagonistas quatro mulheres, e que explora intensamente a

relação delas. O vermelho pode ser entendido como uma referência ao sangue. O

sangue que todo mês é derramado pela mulher. O sangue também, se pensarmos na

sua relação com a morte e com a dor. Elemento que está presente em todo filme,

seja no sofrimento de Agnes ou na auto mutilação de Karin, e ai neste caso temos o

elemento sangue de forma explícita. O vermelho também está nos fades. Que fazem

a transição de uma personagem para outra, como se a cada seqüência elas

mergulhassem num mar de sangue e sofrimento. De maneira parecida o branco

pode ser relacionado com a pureza, com a neutralidade. E essa associação fica muito

clara nas seqüências de flashback em que Agnes recorda-se de sua mãe, como sendo

uma figura inalcançável, distante, porém boa, pura. Já os planos fixos em que as

atrizes têm apenas metade do rosto iluminado, demonstram outra analogia. Pode

ser entendido como uma alusão a incerteza, e até mesmo como se elas estivessem

sido punidas pelo que fizeram, o que vai ser mostrado a seguir, por isso não podem

ter todo o rosto a mostra. De imediato me vem a mente quando vejo essa imagem

de um rosto metade na penumbra, associo a um negativo queimado. A imagem que

não foi. A foto foi tirada, porém a imagem nunca foi revelada. Por isso fica a dúvida,

qual ma verdade do momento?

10

Dessa forma, o diretor se vale dos recursos cinematográficos para brincar com a

imagem e com as suas diferentes representações. Pois, afinal “o cinema é

realmente a verdade 24 vezes por segundo. Mas desde que se possa decompô-

la, fazê-la voltar sobre si mesma e desnaturá-la para reinventá-la.”, como citou

Bellour, ninguém melhor que Bergman para explorar essa verdade, e mais que

explorar, manipular, a serviço na narrativa.

A imagem, seja ela fílmica, fotográfica, pintada, não importa, está intimamente

ligada com a memória e com aquilo que acumulamos no decorrer de nossas

vidas. E essa discussão é colocada em pauta no longa. As quatro mulheres se

encontram confinadas em uma casa, em função da doença terminal de uma

delas, casa que tem um significado para cada uma delas, onde elas viveram suas

infâncias e muito outros fatos que as tornaram as pessoas que elas são agora.

Tudo isso, somado a morte iminente de Agnes, trás a tona lembranças dolorosas

e boas. Fragmentos de momentos do passado, que vão sendo reconstituídos na

mente delas, como um álbum de fotografia. Fragmentos muitas vezes

desconexos, que parecem não fazer sentido, mas fazem parte de quem elas são

agora, são a visão que elas têm agora de seus passados. É a mesma coisa que

olhar fotografias antigas. A imagem ali retratada tem conseqüências até os dias

de hoje, mas não necessariamente é verdade até hoje. Mas foi verdade um dia.

A fotografia brinca com nossa memória, põe em questionamento nossas

lembranças. E fica a dúvida? O que é mais verdadeiro? A imagem ali gravada, ou

a lembrança que temos em nossas mentes? As duas. A foto é verdadeira por

que o registro físico, e lembrança também por que é o registro que faz sentido

para cada um de nós. A foto é permanente. A nossa memória não, as imagens

das quais nos lembramos são constantemente editadas recriadas, conforme nós

nos recriamos como seres humanos.

Gritos e Sussurros pode ser entendido como um desses fragmentos de memória,

e Bergman o conduz para que muitas vezes a espectador se confunda, e não

tenha certeza se o que está na tela é realidade ou sonho, verdade ou

representação.

“ Já não se trata de começar olhando além, postulando entre a mídia e o corpo

psíquico (perceptivo, afetivo, neurônico) uma analogia estritamente energética

que permite a primeira exprimir e reduzir o segundo por um puro jogo de forças,

de ritmos de intensidades.

Mas antes: representar só pela metade, dissolver a ganga analógica para

trabalhar não exatamente a representação, mas o fato de que haja

representação, de que se efetua no aparelho psíquico um trabalho incessante

entre a percepção e a imagem interior (do traço consciente à imagem perdida, à

representação da coisa). Tende-se ao olho do espectador, porque o inconsciente

vê nele um figuração da figuração: passagem continua, que não se pode fixar

entre os pólos ideais do primário e do secundário, onde a imagem se forma ao se

ocultar sob o efeito do desejo e do medo. . .”

É notável a importância e o destaque que Bergman dá ao rosto das

personagens. Seus rostos estão sempre em destaque, a expressão humana,

principalmente a feminina, parece ser algo que fascina o diretor. E com razão, a

expressão humana realmente é intrigante e fascinante. A profundidade do olhar

e o tanto de coisas que podem ser ditas através dele, é algo que a fotografia

capta e reproduz. Não há nada mais perturbador do que olharmos para dentro

de nossos próprios olhos em uma fotografia, e quase como se nos perdêssemos,

se não existíssemos.

A película se faz fascinante justamente por dar detalhes a pequenas coisas,

pequenos detalhes, que vão compondo um cenário perfeito para o desenrolar

do drama e do conflito, e essa importância do detalhe é descrita pó Bellour

quando ele diz que:

“ O filme nunca procura reduzir-se ao sonho, ao desejo do ser, ele nos diz algo

mais sobre o sonho, a inscrição do sonho no tempo que dele se rememora e revive

seu trabalho. A banalidade, a elementaridade dos gestos são fundamentais

nisso.”

11

Essa “banalidade” é destaque na cena em que Karin e o marido estão jantando, e ela

quebra a taça, o vinho se espalha na mesa, e novamente temos aqui a referência ao

sangue e ao caco de vidro que serão o elemento central da seqüência seguinte. O

caco recebe destaque pela câmera, de modo que somos levados a crer que ele terá,

em breve, uma importância na história. E tem, em umas das cenas mais fortes do

cinema, em que Karin prefere se mutilar a ter relações sexuais com o marido. Aliás, o

caco de vidro já esteve presente também em Persona, do mesmo diretor, quando a

personagem de Liv Ulman se corta com um caco de vidro deixado propositalmente

no chão. O tema da dor está presente em quase toda a obra de Bergman, e quase

sempre colocado como elemento de punição.

Por fim, na ultima seqüência do filme, o que vemos é uma imagem belíssima, das

três irmãs e Anna passeando no jardim, caminhando em um chão cheio de folhas

secas, todas vestidas de branco. A imagem é maravilhosa. Porém, novamente não

sabemos, se diegéticamente, corresponde a realidade, pois a imagem é na verdade e

representação de Anna de um relato lido no diário de Agnes, ou seja, há ai uma

apropriação dessa lembrança. E não importa se a imagem que vemos é a realidade,

sabemos que ela é a verdadeira lembrança, a verdadeira recordação que ficou na

mente de Anna, ou de Agnes, ou de Maria, ou de Karin. Não importa. O que sabemos

é que aquela imagem é verdade tal qual ela devia ser.

“Haja o que houver, isto é felicidade. Não posso desejar nada melhor. Agora, por

alguns minutos posso viver a perfeição. Eu me sinto profundamente grata a minha

vida, que me da tanto.”

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Julio

Castanon Guimaraes (Trad.). Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1997.

Bellour, Raymond. Entre Imagens: Foto, cinema, vídeo. Luciana A. Pena

(Trad.). Campinas. Papirus, 1997

FILMOGRAFIA

Gritos e Sussurros. Dir. Ingmar Bergman. Suécia, 1973