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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS JURDICAS-FACULDADE DE DIREITO

    TPICOS DE TEORIA DO DIREITO B: TEORIA DO ORDENAMENTO JURDICO

    PROF. SRGIO SAID STAUT JR.

    Aluna: Alani Maria Benvenutti

    GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do historiador. In:_____

    Histria da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.1-84.

    Um estudo que intente a reconstruo terica da propriedade deve, acima de

    tudo, pautar-se pelas ideias de relativizao e desmitificao desse instituto. Tal

    cuidado tomado para que no se incorra no erro de considerar a propriedade

    moderna como o modelo absoluto.

    Necessrio, portanto, se faz o lembrete de que a histria do pertencimento e

    das relaes jurdicas sobre as coisas necessariamente marcada por uma profunda

    descontinuidade; necessariamente, j que propriedade sobretudo mentalidade (p.

    38).Em outras palavras, a propriedade no se reduz nunca a uma pura forma e a um

    puro conceito, pois sempre ordem substancial, um emaranhado de valores,convices, sentimentos e interesses.

    Em que pese o termo propriedade, usado no singular, levar-nos concluso da

    unicidade desta, o historiador deve toma-lo apenas como um artifcio verbal a indicar a

    soluo que determinado ordenamento jurdico d relao entre sujeito e bem, de

    forma que no se pode esquecer que tais solues so multplices. Assim, a despeito

    de o termo usado ser o mesmo, seu contedo reveste-se das especificidades que

    cada momento histrico apresenta. Logo, a pluralizao proprietria o fruto dessa

    liberatria instncia relativizadora, a qual aqui se faz sinnima da historicizao.

    Ademais, para alm do problema terminolgico, vislumbra-se um risco de

    ndole cultural, o condicionamento monocultural. Explica-se. Como j dito, o termo

    propriedade por si s j carrega o forte apelo a um universo proprietrio e,

    consequentemente, a um mnimo de pertencimento e de poderes exclusivos

    conferidos a um sujeito pela ordem jurdica. Quando falamos em propriedade, somos

    induzidos ao pensamento reducionista de uma cultura do pertencimento individual.

    Todavia, como bem afirma o autor, (...) reduzir a esta dimenso a multiforme relao

    homem-bens tem o sentido de uma deplorvel reduo misria (p. 06).

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    A esse respeito, vale falar que a realidade das culturas asiticas, africanas e

    americanas - mostrada a ns por socilogos e etnlogos nas quais no tanto a

    terra que pertence ao homem, mas antes o homem que pertence a terra, a ideia de

    apropriao individual tida como uma inveno desconhecida ou at mesmo como

    uma disposio marginal. Por outro lado, tais universos jurdicos to diversos so por

    ns vistos - atravs de nossas lentes europeias ocidentais - como formas

    marginalizadas da realidade.

    Nessas formas de organizao comunitria da terra, nota-se tanto a ausncia

    do esprito individualista como do prprio esprito proprietrio, razo pela qual nessas

    culturas a propriedade qualificada como sendo coletiva. Em meio a mil e uma formas

    variadas da propriedade coletiva, percebe-se uma constante: o fato de a propriedade

    ser garantia de sobrevivncia para os membros da comunidade plurifamiliar, de ter umvalor e funo essencialmente alimentares. Nelas o contedo fundamental um gozo

    condicionado do bem, h o primado do objetivo sobre o subjetivo, primado da ordem

    comunitria sobre o indivduo.

    Do exposto, convm concluir que o recipiente propriedades um territrio

    heterogneo. No se deve, portanto, cometer o erro de crer que tudo se esgota no

    universo do pertencimento, como nos passado pelo discurso da oficialidade

    dominante, j que tal atitude significaria sucumbir a um condicionamento monocultural

    e empobrecer as complexidades da histria que, hoje mais do que ontem, no sabe

    renunciar dialtica enriquecedora entre culturas diversas, entre culturas oficiais e

    culturas sepultadas (p. 10).

    Em outras palavras, ao vivenciar apenas o mundo do pertencimento, sem abrir

    a mente para as demais formas de relao homem-coisas, corremos o risco no

    somente de considerar nica a soluo histrica dominante do pertencimento, mas

    tambm de consider-la a melhor possvel e, consequentemente, inferiorizar qualquer

    outra soluo histrica marginalizada.A viso individualista e potestativa da propriedade que chamamos propriedade

    moderna, cristalizada como cnone e com a qual se mede a mutabilidade da

    realidade nasceu com a conscincia burguesa, a qual tomou a propriedade das coisas

    como manifestao externa idntica quela propriedade intra-subjetiva que todo eu

    tem de si mesmo e de seus talentos. Propriedade, portanto, absoluta eis porque

    corresponde vocao natural do eu a conservar e enrobustecer o si. A viso

    burguesa sobrevalorizou tanto o domnio sobre as coisas e sobre as criaturas

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    inferiores, que acabou por legitimar e sacralizar a insensibilidade e o desprezo pela

    realidade no humana.

    J a alta idade mdia considerada uma civilizao possessria, porm no

    no sentido romanstico do termo. possessria porque a propriedade reduzida a

    mero signo cadastral, ou seja, fundada em mltiplas posies de efetividade

    econmica sobre o bem. Assim, o mundo medieval o mundo dos fatos, da

    efetividade e da incisividade.

    Tal perodo, marcado pelo brotar desordenado de situaes que se impe

    baseadas nos fatos primordiais da aparncia, do exerccio e do gozo, tem no centro de

    seu ordenamento no mais o sujeito com suas volies e presunes, mas sim a coisa

    com suas naturais regras secretas.

    Assim, a despeito de haverem instituies e sistematizaes, essas nunca

    eram pensadas do ponto de vista da propriedade e do pertencimento individual. Isto

    porque so outros os vnculos entre sujeitos e bens que emergem a nvel jurdico e

    com os quais se constroem as relaes chamadas de reais. Nessa poca, no

    importava tanto o vnculo formal e exclusivo, o pertencimento do bem a algum, mas

    sim a efetividade do bem, a qual prescinde de suas formalizaes. Em suma, a

    dimenso da factualidade contrape-se ao reino esttico de formas oficiais.

    Apesar de o complexo das situaes-reais no poder ser reduzido a simplesconsequncia de fatores tcnicos, devendo ser inserido como uma mentalidade, os

    abandonos e colonizaes de terras, as crises produtivas e demogrficas e a

    alternncias de foras entre cedentes e concessionrios foram identificados como os

    motivos de mudana das estruturas proprietrias.

    O altomedievo, marcado pela separao entre forma oficial e substncia

    efetiva, o deslocamento da ateno e da tutela para aqueles que mesmo no sendo

    formalmente proprietrios, o so pelo protagonismo na vida econmica. o primado

    da tutela informe e factual.

    As coisas, anteriormente oprimidas pela vontade dominadora do sujeito,

    agigantam-se e tornam-se essenciais. So coisas inacessveis, mas que devem ser

    respeitadas, pois elementares a sobrevivncia humana. O sujeito, desprovido de

    vontade incisiva, sofre o complexo de foras que se projetam do exterior sobre ele. Em

    sntese, o ordenamento medieval se espelhou na coisa e foi a partir do ponto de vista

    desta que se erigiu.

    Assim, o jurdico no mais um conjunto de formas supra-ordenadas segundoum projeto de soberania, um conjunto de instrumentos aderidos ao aspecto objetivo

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    comunidade histrica, novo captulo na histria da propriedade surge com a

    consolidao de uma nova mentalidade que vem inverter o sentido de sua

    antecessora.

    A propriedade que chamamos de moderna teve seus primeiros traos

    delineados no sculo XIV, momento em que se rompe a estabilidade de uma ordem

    que havia fundado seu edifcio sobre as coisas. O sujeito, agora fortalecido nas suas

    capacidades internas por sculos de desenvolvimento sapiencial, tem um estmulo

    tanto interno como externo que o faz procurar fundaes novas, sobretudo dentro de

    si, como que num acerto de contas consigo mesmo.

    Se o ordenamento medieval tinha tentado construir um sistema objetivo de

    propriedades, construindo-as a partir das coisas e sobre as coisas, a ordem nascente

    se vira para direo oposta: surge uma busca desesperada pela autonomia com ointuito de desmantelar a teia complexa das coisas. Enquanto as velhas propriedades

    estavam no real, escritas e nele lidas, o novo modelo de propriedade encontrar no

    real somente uma manifestao externa. um campo de ao eficaz que

    potencialmente j existe no interior do sujeito e que pede, implora somente para

    exprimir-se, manifestar-se e assim, concretizar-se. A propriedade, assim, torna-se um

    captulo da histria da transformao humanstica geral.

    A propriedade medieval , como a essa altura j sabemos, entidade complexa

    e composta em razo de tantos poderes autnomos e imediatos que incidem sobre a

    coisa. Cada um desses poderes encarna um contedo proprietrio e um domnio e, ao

    final, o feixe compreensivo reunido por acaso em um s sujeito faz dele o titular da

    propriedade sobre a coisa. Essa relativa subjetividade que vem da vontade de o

    ordenamento em construir o pertencimento partindo da coisa comear a ruir quando

    o sujeito reclamar para si uma inteira realidade jurdica pensada e resolvida por um

    observatrio a ele no estranho, mas que vem de seu interior.

    A propriedade que podemos qualificar como moderna desenhada a partir doobservatrio privilegiado de um sujeito presunoso e dominador, emanao das

    suas potencialidades, instrumento da sua soberania sobre a criao: uma marca

    rigorosamente subjetiva a distingue, e o mundo dos fenmenos, na sua objetividade,

    somente o terreno sobre o qual a soberania se exercita; no uma realidade

    condicionante coma s suas pretenses estruturais, mas passivamente condicionada

    (p. 67).

    Dessa maneira, enquanto o medieval da propriedade consistia na organizao

    da sua complexidade e na valorizao da sua natureza composta, o moderno da

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    propriedade reside no descobrimento de sua simplicidade. A marcada ideia da

    simplicidade separa o pertencimento do condicionamento da complexidade das coisas

    e faz dela o espelho no mais da complicada realidade fenomnica, mas sim da

    unicidade do sujeito.

    O discurso centrado num sujeito psicologicamente caracterizado pela

    vontade. A referncia psique do agente se d porque a propriedade se tornou

    dimenso do agente e, ao invs de identificar-se grosseiramente no bem-objeto,

    procura no interior do sujeito a sua identificao primeira. O individuo, assim, se

    descobre proprietrio.

    Ao lado da simplicidade, o segundo trao tipificador da nova propriedade a

    abstrao, ou seja, uma relao pura, no aviltada pelos fatos, sem referncia ao

    contedo e, portanto, perfeitamente congenial quele indivduo abstrato, sem carne eosso, que vem paralelamente se definindo como momento determinante da

    interpretao burguesa do mundo social.

    Para alguns, a busca ansiosa pelo moderno na historia da propriedade, no

    poder no arrestar-se com o cdigo napolenico. Mais do que uma conquista, o

    cdigo nos oferece um testemunho histrico do contraste de mentalidades e da

    resistncia de uma mentalidade j retro-datada.

    O to triunfante artigo 544, em que pese ter muito contentado que a retricaburguesa, contm uma dupla escritura. Se de um lado agiganta-se ao infinito a

    galhardia dos poderes, do outro esboa, uma lista de poderes determinados, quais

    sejam, gozar e dispor. Resta, dessa forma, no cerne do artigo 544, a ideia destoante

    de uma propriedade como soma de poderes.

    Constata-se que sob o tremular de novas bandeiras a velha mentalidade

    jurdica no foi de todo apagada, coexistindo desarmonicamente com a nova ideologia

    de que o cdigo portadora, ideologia esta que no consegue ainda imprimir-se em

    sua totalidade. Vislumbra-se a presena de duas mentalidades, o que se explica

    porque o legislador napolenico ainda homem de fronteira.

    Assim, o sistema de direito codificado revela algumas significativas

    desfiaduras, algumas visveis incoerncias. Inconscientemente a velha mentalidade

    continua a fazer emergir uma noo composta de propriedade e direito real, um ato

    constitutivo de direito real limitado que tomado como frao, como frao separada

    do feixe total que somente na sua soma a propriedade.

    Somente com a pandectstica alem que o novo modelo tcnico vai apresentarcoerncia com a ideologia do momento. A propriedade se torna criatura jurdica

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    congencial ao homo oeconomicusde uma sociedade capitalista evoluda: instrumento

    gil, conciso, funcionalssimo, caracterizado por simplicidade e abstrao e nesta

    transcrio ao sujeito que ela reclama a sua unidade e a sua indivisibilidade: uma e

    indivisvel como ele, porque como ele sntese de virtude, capacidade e poderes.

    Uma transcrio to aderente a ponto de parecer quase uma fuso: a propriedade

    somente o sujeito em ao, o sujeito conquista do mundo. Idealmente, as barreiras

    entre mim e meu caem(p. 82).

    Conclui-se, portanto, que uma construo jurdica sem ambiguidades mrito

    da pandectstica alem, j que finalmente com essa grande operao doutrinal, a

    sociedade burguesa pde conclamar que tem tambm no plano jurdico uma

    propriedade autenticamente burguesa e que guardou no sto, aps muitos sculos, o

    modelo medieval.Por fim, vale falar que a afirmao de liberdade e igualdade formais foram os

    instrumentos mais idneos para garantirem ao homo oeconomicusa desigualdade de

    fato das fortunas. A propriedade espiritualizada se concretizou na civilizao

    capitalista, de modo que no exagero afirmar que assim a mais desencarnada das

    construes jurdicas demonstrou-se como um meio eficientssimo para transformar

    tudo em ouro, um instrumento pontual para todo e qualquer tipo de mercantilizao.

    No por outra razo que se torna claro aos olhos o vnculo entre pandectstica e a

    sociedade econmica da revoluo industrial.