Grossi, Paolo.
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7/31/2019 Grossi, Paolo.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
SETOR DE CINCIAS JURDICAS-FACULDADE DE DIREITO
TPICOS DE TEORIA DO DIREITO B: TEORIA DO ORDENAMENTO JURDICO
PROF. SRGIO SAID STAUT JR.
Aluna: Alani Maria Benvenutti
GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do historiador. In:_____
Histria da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.1-84.
Um estudo que intente a reconstruo terica da propriedade deve, acima de
tudo, pautar-se pelas ideias de relativizao e desmitificao desse instituto. Tal
cuidado tomado para que no se incorra no erro de considerar a propriedade
moderna como o modelo absoluto.
Necessrio, portanto, se faz o lembrete de que a histria do pertencimento e
das relaes jurdicas sobre as coisas necessariamente marcada por uma profunda
descontinuidade; necessariamente, j que propriedade sobretudo mentalidade (p.
38).Em outras palavras, a propriedade no se reduz nunca a uma pura forma e a um
puro conceito, pois sempre ordem substancial, um emaranhado de valores,convices, sentimentos e interesses.
Em que pese o termo propriedade, usado no singular, levar-nos concluso da
unicidade desta, o historiador deve toma-lo apenas como um artifcio verbal a indicar a
soluo que determinado ordenamento jurdico d relao entre sujeito e bem, de
forma que no se pode esquecer que tais solues so multplices. Assim, a despeito
de o termo usado ser o mesmo, seu contedo reveste-se das especificidades que
cada momento histrico apresenta. Logo, a pluralizao proprietria o fruto dessa
liberatria instncia relativizadora, a qual aqui se faz sinnima da historicizao.
Ademais, para alm do problema terminolgico, vislumbra-se um risco de
ndole cultural, o condicionamento monocultural. Explica-se. Como j dito, o termo
propriedade por si s j carrega o forte apelo a um universo proprietrio e,
consequentemente, a um mnimo de pertencimento e de poderes exclusivos
conferidos a um sujeito pela ordem jurdica. Quando falamos em propriedade, somos
induzidos ao pensamento reducionista de uma cultura do pertencimento individual.
Todavia, como bem afirma o autor, (...) reduzir a esta dimenso a multiforme relao
homem-bens tem o sentido de uma deplorvel reduo misria (p. 06).
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A esse respeito, vale falar que a realidade das culturas asiticas, africanas e
americanas - mostrada a ns por socilogos e etnlogos nas quais no tanto a
terra que pertence ao homem, mas antes o homem que pertence a terra, a ideia de
apropriao individual tida como uma inveno desconhecida ou at mesmo como
uma disposio marginal. Por outro lado, tais universos jurdicos to diversos so por
ns vistos - atravs de nossas lentes europeias ocidentais - como formas
marginalizadas da realidade.
Nessas formas de organizao comunitria da terra, nota-se tanto a ausncia
do esprito individualista como do prprio esprito proprietrio, razo pela qual nessas
culturas a propriedade qualificada como sendo coletiva. Em meio a mil e uma formas
variadas da propriedade coletiva, percebe-se uma constante: o fato de a propriedade
ser garantia de sobrevivncia para os membros da comunidade plurifamiliar, de ter umvalor e funo essencialmente alimentares. Nelas o contedo fundamental um gozo
condicionado do bem, h o primado do objetivo sobre o subjetivo, primado da ordem
comunitria sobre o indivduo.
Do exposto, convm concluir que o recipiente propriedades um territrio
heterogneo. No se deve, portanto, cometer o erro de crer que tudo se esgota no
universo do pertencimento, como nos passado pelo discurso da oficialidade
dominante, j que tal atitude significaria sucumbir a um condicionamento monocultural
e empobrecer as complexidades da histria que, hoje mais do que ontem, no sabe
renunciar dialtica enriquecedora entre culturas diversas, entre culturas oficiais e
culturas sepultadas (p. 10).
Em outras palavras, ao vivenciar apenas o mundo do pertencimento, sem abrir
a mente para as demais formas de relao homem-coisas, corremos o risco no
somente de considerar nica a soluo histrica dominante do pertencimento, mas
tambm de consider-la a melhor possvel e, consequentemente, inferiorizar qualquer
outra soluo histrica marginalizada.A viso individualista e potestativa da propriedade que chamamos propriedade
moderna, cristalizada como cnone e com a qual se mede a mutabilidade da
realidade nasceu com a conscincia burguesa, a qual tomou a propriedade das coisas
como manifestao externa idntica quela propriedade intra-subjetiva que todo eu
tem de si mesmo e de seus talentos. Propriedade, portanto, absoluta eis porque
corresponde vocao natural do eu a conservar e enrobustecer o si. A viso
burguesa sobrevalorizou tanto o domnio sobre as coisas e sobre as criaturas
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inferiores, que acabou por legitimar e sacralizar a insensibilidade e o desprezo pela
realidade no humana.
J a alta idade mdia considerada uma civilizao possessria, porm no
no sentido romanstico do termo. possessria porque a propriedade reduzida a
mero signo cadastral, ou seja, fundada em mltiplas posies de efetividade
econmica sobre o bem. Assim, o mundo medieval o mundo dos fatos, da
efetividade e da incisividade.
Tal perodo, marcado pelo brotar desordenado de situaes que se impe
baseadas nos fatos primordiais da aparncia, do exerccio e do gozo, tem no centro de
seu ordenamento no mais o sujeito com suas volies e presunes, mas sim a coisa
com suas naturais regras secretas.
Assim, a despeito de haverem instituies e sistematizaes, essas nunca
eram pensadas do ponto de vista da propriedade e do pertencimento individual. Isto
porque so outros os vnculos entre sujeitos e bens que emergem a nvel jurdico e
com os quais se constroem as relaes chamadas de reais. Nessa poca, no
importava tanto o vnculo formal e exclusivo, o pertencimento do bem a algum, mas
sim a efetividade do bem, a qual prescinde de suas formalizaes. Em suma, a
dimenso da factualidade contrape-se ao reino esttico de formas oficiais.
Apesar de o complexo das situaes-reais no poder ser reduzido a simplesconsequncia de fatores tcnicos, devendo ser inserido como uma mentalidade, os
abandonos e colonizaes de terras, as crises produtivas e demogrficas e a
alternncias de foras entre cedentes e concessionrios foram identificados como os
motivos de mudana das estruturas proprietrias.
O altomedievo, marcado pela separao entre forma oficial e substncia
efetiva, o deslocamento da ateno e da tutela para aqueles que mesmo no sendo
formalmente proprietrios, o so pelo protagonismo na vida econmica. o primado
da tutela informe e factual.
As coisas, anteriormente oprimidas pela vontade dominadora do sujeito,
agigantam-se e tornam-se essenciais. So coisas inacessveis, mas que devem ser
respeitadas, pois elementares a sobrevivncia humana. O sujeito, desprovido de
vontade incisiva, sofre o complexo de foras que se projetam do exterior sobre ele. Em
sntese, o ordenamento medieval se espelhou na coisa e foi a partir do ponto de vista
desta que se erigiu.
Assim, o jurdico no mais um conjunto de formas supra-ordenadas segundoum projeto de soberania, um conjunto de instrumentos aderidos ao aspecto objetivo
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comunidade histrica, novo captulo na histria da propriedade surge com a
consolidao de uma nova mentalidade que vem inverter o sentido de sua
antecessora.
A propriedade que chamamos de moderna teve seus primeiros traos
delineados no sculo XIV, momento em que se rompe a estabilidade de uma ordem
que havia fundado seu edifcio sobre as coisas. O sujeito, agora fortalecido nas suas
capacidades internas por sculos de desenvolvimento sapiencial, tem um estmulo
tanto interno como externo que o faz procurar fundaes novas, sobretudo dentro de
si, como que num acerto de contas consigo mesmo.
Se o ordenamento medieval tinha tentado construir um sistema objetivo de
propriedades, construindo-as a partir das coisas e sobre as coisas, a ordem nascente
se vira para direo oposta: surge uma busca desesperada pela autonomia com ointuito de desmantelar a teia complexa das coisas. Enquanto as velhas propriedades
estavam no real, escritas e nele lidas, o novo modelo de propriedade encontrar no
real somente uma manifestao externa. um campo de ao eficaz que
potencialmente j existe no interior do sujeito e que pede, implora somente para
exprimir-se, manifestar-se e assim, concretizar-se. A propriedade, assim, torna-se um
captulo da histria da transformao humanstica geral.
A propriedade medieval , como a essa altura j sabemos, entidade complexa
e composta em razo de tantos poderes autnomos e imediatos que incidem sobre a
coisa. Cada um desses poderes encarna um contedo proprietrio e um domnio e, ao
final, o feixe compreensivo reunido por acaso em um s sujeito faz dele o titular da
propriedade sobre a coisa. Essa relativa subjetividade que vem da vontade de o
ordenamento em construir o pertencimento partindo da coisa comear a ruir quando
o sujeito reclamar para si uma inteira realidade jurdica pensada e resolvida por um
observatrio a ele no estranho, mas que vem de seu interior.
A propriedade que podemos qualificar como moderna desenhada a partir doobservatrio privilegiado de um sujeito presunoso e dominador, emanao das
suas potencialidades, instrumento da sua soberania sobre a criao: uma marca
rigorosamente subjetiva a distingue, e o mundo dos fenmenos, na sua objetividade,
somente o terreno sobre o qual a soberania se exercita; no uma realidade
condicionante coma s suas pretenses estruturais, mas passivamente condicionada
(p. 67).
Dessa maneira, enquanto o medieval da propriedade consistia na organizao
da sua complexidade e na valorizao da sua natureza composta, o moderno da
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propriedade reside no descobrimento de sua simplicidade. A marcada ideia da
simplicidade separa o pertencimento do condicionamento da complexidade das coisas
e faz dela o espelho no mais da complicada realidade fenomnica, mas sim da
unicidade do sujeito.
O discurso centrado num sujeito psicologicamente caracterizado pela
vontade. A referncia psique do agente se d porque a propriedade se tornou
dimenso do agente e, ao invs de identificar-se grosseiramente no bem-objeto,
procura no interior do sujeito a sua identificao primeira. O individuo, assim, se
descobre proprietrio.
Ao lado da simplicidade, o segundo trao tipificador da nova propriedade a
abstrao, ou seja, uma relao pura, no aviltada pelos fatos, sem referncia ao
contedo e, portanto, perfeitamente congenial quele indivduo abstrato, sem carne eosso, que vem paralelamente se definindo como momento determinante da
interpretao burguesa do mundo social.
Para alguns, a busca ansiosa pelo moderno na historia da propriedade, no
poder no arrestar-se com o cdigo napolenico. Mais do que uma conquista, o
cdigo nos oferece um testemunho histrico do contraste de mentalidades e da
resistncia de uma mentalidade j retro-datada.
O to triunfante artigo 544, em que pese ter muito contentado que a retricaburguesa, contm uma dupla escritura. Se de um lado agiganta-se ao infinito a
galhardia dos poderes, do outro esboa, uma lista de poderes determinados, quais
sejam, gozar e dispor. Resta, dessa forma, no cerne do artigo 544, a ideia destoante
de uma propriedade como soma de poderes.
Constata-se que sob o tremular de novas bandeiras a velha mentalidade
jurdica no foi de todo apagada, coexistindo desarmonicamente com a nova ideologia
de que o cdigo portadora, ideologia esta que no consegue ainda imprimir-se em
sua totalidade. Vislumbra-se a presena de duas mentalidades, o que se explica
porque o legislador napolenico ainda homem de fronteira.
Assim, o sistema de direito codificado revela algumas significativas
desfiaduras, algumas visveis incoerncias. Inconscientemente a velha mentalidade
continua a fazer emergir uma noo composta de propriedade e direito real, um ato
constitutivo de direito real limitado que tomado como frao, como frao separada
do feixe total que somente na sua soma a propriedade.
Somente com a pandectstica alem que o novo modelo tcnico vai apresentarcoerncia com a ideologia do momento. A propriedade se torna criatura jurdica
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congencial ao homo oeconomicusde uma sociedade capitalista evoluda: instrumento
gil, conciso, funcionalssimo, caracterizado por simplicidade e abstrao e nesta
transcrio ao sujeito que ela reclama a sua unidade e a sua indivisibilidade: uma e
indivisvel como ele, porque como ele sntese de virtude, capacidade e poderes.
Uma transcrio to aderente a ponto de parecer quase uma fuso: a propriedade
somente o sujeito em ao, o sujeito conquista do mundo. Idealmente, as barreiras
entre mim e meu caem(p. 82).
Conclui-se, portanto, que uma construo jurdica sem ambiguidades mrito
da pandectstica alem, j que finalmente com essa grande operao doutrinal, a
sociedade burguesa pde conclamar que tem tambm no plano jurdico uma
propriedade autenticamente burguesa e que guardou no sto, aps muitos sculos, o
modelo medieval.Por fim, vale falar que a afirmao de liberdade e igualdade formais foram os
instrumentos mais idneos para garantirem ao homo oeconomicusa desigualdade de
fato das fortunas. A propriedade espiritualizada se concretizou na civilizao
capitalista, de modo que no exagero afirmar que assim a mais desencarnada das
construes jurdicas demonstrou-se como um meio eficientssimo para transformar
tudo em ouro, um instrumento pontual para todo e qualquer tipo de mercantilizao.
No por outra razo que se torna claro aos olhos o vnculo entre pandectstica e a
sociedade econmica da revoluo industrial.