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João Barbosa Grande Reserva AS MELHORES HISTÓRIAS DO VINHO PORTUGUÊS

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João Barbosa

Grande ReservaAS MELHORES HISTÓRIAS DO

VINHO PORTUGUÊS

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Índice

11 Introdução

17 A barbearia

27 O rei revolucionário

35 As vaquinhas loucas de Azeitão e outras cousas

39 Homem de grandes colheitas

47 Arte na arte

53 A relíquia

55 Haja alegria!…

61 Fiasco? Chamem -lhe isso, chamem…

67 Um vinho para chatear enochatos

71 O clube de fãs

77 Um vinho de mesa especial

81 A fama não coxeia

85 O renascer de um histórico

91 A caçada

97 O mais antigo

103 Ressuscitado em risco de morrer

107 Étnicos da Estremadura

111 O grandioso

119 Vinho fresco às portas de Lisboa

123 O vinho da excepção

127 O 13.o trabalho de Hércules

135 O defunto

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139 À espera de um lugar ao sol

143 Vinho de ingleses e americanos

147 O maior de todos

155 A instituição

161 A obra -prima da Ferreirinha

167 Vinho da pedra

175 O pastor que faz vinho

179 Ervamoira sabe nadar

183 O cavaleiro Furtado

187 Os amigos Palmela

191 Sem abrigo dos franceses

195 A enorme vinha

199 Uma força da natureza

205 Memórias de um tempo para não voltar

211 Filho mínimo

215 O presidente do Conselho

217 O castiço vinho a martelo

223 Um princípio

233 Agradecimentos

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Introdução

PARA CONVERSA OU LONGOS SILÊNCIOS

O nascimento do vinho deve ter sido obra do acaso, pro-vavelmente sumo de uva que fermentou num recipiente. O especialista e escritor Hugh Johnson pensa que o primeiro vinho terá sido qualquer coisa entre o Beaujolais Nouveau e o vinagre.

Os sumérios podem ter sido os primeiros a fazer vinho, mas as primeiras imagens são dos egípcios, povo que tinha já especialistas nas provas. Para os judeus é uma bebida sagrada. Para os cristãos, o sangue de Cristo. Para os muçulmanos, uma promessa para o tempo que se passará no Paraíso.

Vistos como intolerantes ao álcool, nem todos os muçulma-nos levam tão estritamente as palavras da tradição religiosa. Num relato do final do século xvii, o joalheiro Jean Chardin relata não haver local no mundo onde se beba mais e melhor do que a Geórgia, na altura dominada por maometanos.

Se o grande profeta do islão alertou para os perigos do consumo em excesso, outros houve, noutras culturas, que gabaram os efeitos do consumo. Lê -se no Talmude que «onde quer que falte o vinho são necessárias drogas». Num texto indiano do século vi a.C. refere -se que o vinho é um «revigo-rante de espírito e do corpo, antídoto para insónias, tristeza e fadiga», que traz felicidade e ajuda na digestão.

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O vinho é, por isso também, fruição. Embora o excesso possa trazer dissabores à saúde, nem que seja a famosa res-saca, o que conta é a folia. Joga -se nas tabernas enquanto se bebe. Desafiam -se partidas. Um jogo curioso é o kottabos, grego e etrusco, ainda em prática na Sicília, que consiste em tentar acertar com vinho em recipientes em equilíbrio. Por cá vivia -se o desafio do vinho a metro. Um conjunto de copos cheios alinhados e que se bebiam de um só trago. Ganhava quem bebesse maior distância.

Além das refeições formais, os convívios acontecem, feliz-mente, ainda em vários locais do país. É a tradição que vem dos gregos, que se reuniam em «simpósios», que quer dizer «beber junto». Havia os mais intelectuais e os festivos. Como tudo na vida, como sempre. Em Colares, na aldeia de Almo-çageme, uma casa tradicional tem na sua garrafeira um local de convívio, com as comodidades da lareira, sofás, mesas e cadeiras para os convivas. Na aldeia de Arcos, no Alentejo, petisca -se e refresca -se a garganta com vinho da talha, arte-sanal e autêntico. Bem ensaiadinhos nos copos, os homens ainda cantam, quando os vapores para ali os levam.

As «mulheres» bebiam -no nos trabalhos de casa e do campo. As «senhoras» bebericavam -no à hora do chá, em casa ou em sítios selectos. Para disfarçar, pediam que lhes servissem em bules e chávenas.

Há tradições que se vão perdendo, por via do ritmo dos tempos, da mudança da sociedade e dos hábitos. Não haverá já tabernas que sejam carvoarias, nem as que mostram um ramo de loureiro à porta, sinal de que ali se poderia disfarçar o hálito.

Rodrigo Perestrello França é um conviva habitual da casa António Casal Ribeiro Carvalho. Na Madeira ainda tem famí-lia com ligações ao generoso local. Pelo continente dá azo à sua paixão no quintal: arinto e chardonnay, nas brancas,

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cabernet sauvignon, syrah e touriga nacional, nas tintas. Não sabe bem se se conjugam na perfeição, mas são as variedades de que mais gosta e por isso quis juntá -las em néctares únicos para cada tonalidade.

António Casal Ribeiro de Carvalho tem o sonho de voltar a fazer -se vinho na casa. Sempre ouviu dizer que se deve mis-turar dez por cento de branco no vinho tinto e é isso que pensa fazer se avançar com a vontade.

Essa era a tradição até em Bordéus. Por cá resta na Estre-madura e no Alentejo. Eça de Queiroz, enófilo, enalteceu o Colares e o vinho de Tormes. Misturas, à época, de branco com tinto.

Mas o vinho é também alimento e força motriz. Antero Martins, professor no Instituto Superior de Agronomia (ISA), de Lisboa, conta que «a malha do centeio começava pelas três da manhã e ia até ao meio -dia. Era um trabalho esforça-díssimo, esse de malhar na eira. Os homens tinham de comer de meia em meia hora ou de hora a hora. A base era vinho ou sopas de vinho. Era energia pura. No dia -a -dia, nos traba-lhos agrícolas mais pesados, também se bebia».

Houve uma época em que toda a gente bebia e muitas vezes ao dia, mas sempre às refeições. Fosse pobre ou rico. Numa casa senhorial na região dos Vinhos Verdes, um dos antigos senhores aristocratas mandou instalar uma canaliza-ção entre o casco, na adega, e a sala de jantar. Quando queria mais uma pinguinha levantava -se e ia buscar, tirando -o por uma torneirinha, ou mandando que o servissem.

Virgílio Loureiro, também professor no ISA, nota a anti-guidade do cultivo da vinha em Portugal. Exemplifica com os lagares talhados na pedra, comuns no Dão e no Douro. A que época pertencem? Não se sabe bem, mas julga-se serem medievais. Um, em Penalva do Castelo, terá sido usado até à década de quarenta do século xx, refere este académico.

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– São lagares como no tempo de Isaías, «planta uma vinha e faz um lagar». Em Jerusalém há muitos. Este tipo de lagares terá sido trazido para cá por peregrinos à Terra Santa.

Provavelmente o vinho era prensado e corria de bica aberta para os vasilhames, de madeira ou de barro, em que era fer-mentado, em casa.

Cada boca seu paladar. Pode dizer -se que umas serão mais esclarecidas, mas nem por isso as outras são menos apre-ciadoras. Há vinhos para tudo, para todos e para todos os momentos. Quem gosta, gosta. Quem não gosta, não bebe. Há quem diga que só há dois tipos de vinho: o bom e o mau, ou o que nos sabe bem e o que não nos sabe.

Um produtor de renome dá, muitas vezes, a conhecer, a um dos empregados da quinta, alguns dos seus melhores vinhos, quantidades que sobram dos convívios à mesa. Fre-quentemente a resposta é esclarecedora:

– Ai, senhor engenheiro, nunca bebi coisinha tão má.Há os que lhe jogam água. Os antigos gregos chamavam

bárbaros àqueles que não diluíssem em água. Somos uns sel-vagens, portanto. Há os iconoclastas, que lhe deitam refrige-rante. E o que dizer dos miúdos adolescentes que, na ausência dos pais, vão à garrafeira e retiram uma garrafa que lhes parece bem e com o conteúdo criam belíssima sangria? Sacri-légio! Sacrilégio! É o fim dos tempos!

Quanto ao prazer? Vinhos recentes ou vinhos velhos? Com quanta idade e para quais? E as festas do vinho novo e da água -pé? Alegria! Goste -se ou não, haja liberdade.

Há os mitos das grandes colheitas falsificadas, das edi-ções-fantasma de vinhos que não tiveram colheita nesse ano em concreto, na adição de animais esfolados para os tonéis de Vinho do Porto.

O vinho é cultura e arte, sendo também alimento e mercado-ria. É tradição e modernidade, coisa que dá para mil discussões.

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O vinho é paixão. Paixão que alguns, os que podem ou os que fazem para que possam, se lançam nas aventuras de fazer um vinho seu. Trabalharam ou trabalham noutras áreas, mas sentiram o apelo da terra e da inteligência do vinho. Há mui-tos, mas cito poucos: João Almeida d’Eça… e um anónimo de que já conto a história.

João Almeida d’Eça, «advogado de vocação e viticultor de paixão», foi uma vez chamado a visitar uma quinta no Douro, a pedido de umas pessoas amigas. Disseram -lhe que tinham uma proposta de venda e queriam uma opinião. O causídico lá foi, aproveitando uma viagem de trabalho a Mirandela, e achou -a barata. Lá lhes disse o que pensava e quanto julgava que valia. Embora apaixonado, não tinha na ideia comprá -la.

O negócio acabou por não se fazer e os vendedores per- guntaram -lhe, então, se estava disposto a ficar com ela. Sem-pre pensara um dia em ter um torrão, ponderou e adquiriu a propriedade. Estava muito degradada e João Almeida d’Eça reergueu -a. Hoje faz vinho com a precisão de um bom reló-gio suíço. Tudo é meticuloso. Investe horas e é perfeccionista. É uma pequena produção, mas também não quer que seja grande. Grande é o amor ao vinho.

No Estoril reside um enófilo, de quem se fala baixinho para ninguém saber quem é, que no seu jardim de casa plan-tou vinha em vasos. Rega -a, poda -a… todos os anos faz vin-dima. Tem equipamento à medida e já teve um enólogo. Uma colheita houve em que quis mandar umas garrafas para os principais châteaux, dizendo que o melhor Bordéus era o do Estoril.

Em síntese, cite -se Fernando Pessoa: «Boa é a vida, mas melhor é o vinho»… ou «a vida é demasiado curta para se beber vinho mau», seja o que for que isso queira dizer.

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Camillo Alves

A BARBEARIA

Há mais de meio século, Bucelas era uma vila rural às portas de Lisboa. Ainda hoje o é, em grande medida. Casas baixas, quintas, dimensão modesta, muito verde dos campos, estradas pouco largas.

Quando António João Paneiro Pinto, bisneto do célebre João Júlio Camillo Alves, era miúdo, tudo era ainda mais campesino e o vinho, para mais numa região vinhateira, era peça fundamental da alimentação. Quando saía da escola, o pai de António João tinha pouco para fazer. A atracção da terra era um tal de João, o das Forças, por alcunha, que matava os porcos àquela gente. Por ali não havia matadouros.

– As actividades de tempos livres eram nenhumas, então passavam pela casa de João das Forças. Tinha sempre quatro ou cinco garrafões de vinho e ia -os despejando para dentro. As crianças passavam por lá e já estava bastante entornado. O homem «fazia -se», matava os porcos sem ajudantes. Certa vez, numa luta corpo a corpo, o porco a morder -lhe e ele a morder o porco. Com o porco preso pelas pernas, a arrastá--lo e ele a trincar-lhe uma orelha.

Ah, Valente!João das Forças devia ser temperamental, até porque o

excesso de álcool não faz bem a ninguém e o caparro devia

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dar -lhe confiança para provocações e respostas à letra. Homem forte, sem medo de ninguém.

– Naquela altura não havia nem televisão nem Internet. As distracções eram fazer filhos e beber copos. Muitas vezes acabavam à pancada e à navalhada, a chamada «picadela». Numa dessas vezes, que vinha da escola, o meu pai vê o João das Forças deitado no chão com as tripas de fora e ao pé de uma carroça com palha, para o levarem para o hospital em Lisboa. Quando o foram ajudar a levantar -se, meteu as tripas para dentro e disse que ao João das Forças ninguém metia na carroça. Voltou vivo de Lisboa.

António João Paneiro Pinto já não conheceu o João das Forças, mas lembra -se de outra figura da terra, o Piló, que era «o bêbado residente».

– O Piló punha uma caixa de meio alqueire no chão virada ao contrário, ao lado havia um garrafão de vinte litros e copos. O Piló desafiava um homem para dançar uma fandangada sobre a caixa. O objectivo era não cair. No fim de cada fan-dangada bebiam um copo. O Piló batia -os a todos. Para ele cair eram precisos quatro ou cinco litros de vinho. A malta normalmente caía ao primeiro litro.

Bucelas era terra de gente rija, já se vê. Embora as toi-radas de morte fossem já proibidas, decisão tomada durante a Primeira República, naquela vila saloia não acontecia. A tradição mandava que se matasse o touro na arena, e assim se fazia.

Nos tempos em que viveu João (Júlio) Camillo Alves, o lugar da mulher na sociedade era recatado. Submissas, esta-vam sob as vontades dos maridos. Dirão os saudosos machis-tas que homem naquele tempo se escrevia com dois «h», e maiúsculos. Alguns teriam dois «h» e um outro duas mulheres. Era João (Júlio) Camillo Alves. Além do mais, viviam as duas na mesma casa. E davam -se bem. Talvez tenha nascido desse

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romance a inspiração para a famosa canção cantada por Marco Paulo: «Eu tenho dois amores».

António João Paneiro Pinto explica, contudo, que não era bem uma questão de submissão:

– É como se a mulher, que não era submissa e não abdi-cava do seu estatuto, presenteasse o marido com uma das suas empregadas.

Para sustentar a situação havia pouca influência da Igreja Católica nesta terra de pecado, como se comprova. «Era hábito as pessoas juntarem -se e normalmente só se casavam depois de nascer o primeiro filho.»

O papel da mulher era tão irrelevante, ou pelo menos ausente da primeira fila do espectáculo da vida, que numa fotografia está o patriarca, os seus filhos, o genro e os netos. «Nem uma única mulher. As mulheres não eram relevantes», afirma o bisneto.

António João não conheceu o bisavô, mas a bisavó sim (Mariana). Também não conheceu a amante. Sabe as histó-rias através das criadas e dos empregados. Conta a voz cor-rente:

– Era comedido no vinho ou talvez tivesse um grande auto- domínio.

Apesar de viver com a mulher e a amante, «era um homem de família».

– Tinha uma grande quantidade de bois, mulas e cavalos para levar vinho a Lisboa. Isso fazia que trabalhassem muitos moços de cavalariça. Na família jantava -se cedo e, quando a luz permitia, mandava aparelhar uns cavalos para ir, com os filhos ou com os netos, caçar coelhos ao Freixial. Isso dava--lhe verdadeiramente prazer.

O que trouxe fama a João (Júlio) Camillo Alves não foram as desventuras familiares numa pacata vila a 25 quilómetros de Lisboa. A sua família não devia diferenciar -se muito de

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muitas outras de pequenos agricultores, em que uns labuta-vam à séria e a outros cabia o papel de ovelha ronhosa.

– O meu trisavô gostava pouco de trabalhar. Tinha muitos filhos. Para não estorvar, a mulher dava -lhe cartuxos para ele ir à caça. Devia ser um bom empata.

Como a fortuna não aparecia e até minguara com tantos filhos, João (Júlio) Camillo Alves teve de se fazer à vida cedo. Começou por ser barbeiro em Bucelas, rondava o ano de 1880.

– Nessa altura Bucelas era uma mini -Sintra, onde os bur-gueses lisboetas iam de férias. Enquanto cortava o cabelo começou a fazer pequenos negócios com vinho, pois tinha clientes que o vendiam e outros que o queriam comprar. Foi na barbearia que se deu o caldo primordial.

Teve pois a perspicácia, a oportunidade, a inteligência e a vontade. Começou a negociar. Mais tarde tornar -se -ia produ-tor e engarrafador.

Quando o negócio ganhou dimensão, Camillo Alves mon-tou um entreposto em Lisboa, mesmo no centro, em local hoje insuspeito e causador de espanto. O edifício ainda hoje existe e mantém -se na família. Lisboa era, à época, bastante rural, com muitos campos em redor e, até, dentro de portas. Todavia, o quartel -general da empresa era mesmo no centro, na Rua Fernão Lopes, 15, perto do Saldanha. Uma casa agrí-cola com tudo o que isso implica, mas na vertical, em vez de se espalhar.

– Mandou construir um edifício que, na cave, tinha depó-sitos de vinho, no piso térreo cavalariças, para descanso dos animais, nos andares ficavam os escritórios, as residências para pernoita dos empregados e a casa para a família, quando estava em Lisboa.

Apesar de produzir, o negócio era, sobretudo, o comércio. Foi nele que fez fortuna. Todavia, algumas das suas quintas

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são famosas. É o caso da Quinta da Romeira, que só fazia tinto, não podendo, por isso, designar -se de Bucelas os seus néctares. A propriedade deu nome ao vinho Romeira, que ainda hoje existe, embora produzido noutras propriedades. De uma certa forma, continua a ligação com o passado, pois a empresa que detém a marca deriva do império Camillo Alves, integrando o grupo Enopor.

«Era belíssimo e fez fama», conta o bisneto. Porém, ac-tualmente não é reconhecido como um dos grandes de Por-tugal, ficando em posições mais modestas nas prateleiras dos comércios.

Hoje ninguém da família Camillo Alves tem interesses nas Caves Velhas. Em 1973 houve problemas financeiros e a em-presa precisava de crescer. Como a Central de Cervejas queria entrar no negócio dos vinhos juntaram -se as vontades. Fez -se a negociação e foram vendidos cinquenta por cento do capital e uma acção. Em menos de um ano veio o 25 de Abril, a cer-vejeira foi nacionalizada e, por arrastamento, a Camillo Alves. Foi o princípio do fim. Especifica António João Paneiro Pinto:

– A gestão do PREC [período revolucionário em curso] foi tonta, mas a do pós -PREC foi louca, desgovernada, no mínimo. Os maiores danos foram feitos pelos gestores públicos.

Durante anos procederam -se a sucessivos aumentos de capital. Ou seja, quando a companhia foi desintervencio-nada, a participação accionista da família Camillo Alves era muito mais pequena.

– O que recebemos de indemnização não foi significativo.Fora desse processo ficaram as propriedades da família,

uma vez que não estavam nos activos da empresa. Uma das quintas é hoje explorada por António João Paneiro Pinto, a do Chão do Prado. O negócio sempre foi vender vinho, pelo que a sociedade se limitava a escoar o que a família produzia nos seus terrenos.

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Abel Pereira da Fonseca foi outra figura incontornável do sector. Entre as duas famílias não havia rivalidade, mas res-peito concorrencial. Havia também proximidade com as pes-soas da Carvalho Ribeiro & Ferreira, conta o bisneto do empresário.

Como muitos elementos da sua família, António João tra-balhou na empresa desde tenra idade. Lembra -se dos trans-portes de cascos de madeira de mil litros.

– Lavei muitos. Gostava de trabalhar, até porque o traba-lho é um óptimo meio de sociabilização.

Lembra -se de surgirem os camiões com atrelado que faziam «as chamadas tiradas, que era ir buscar vinho a cascos de rolha».

Os centros operacionais ficavam em Bucelas e na Rua Fer-não Lopes, 15. O vinho podia vir donde viesse que ia sempre lá parar, embora depois pudesse ser reenviado para perto do ponto de origem. Não seria grande gestão, mas o negócio rendia à mesma.

Antes das camionetas vingavam os carros de tracção ani-mal. O transporte era mais demorado mas tinha outra vivência e outro encanto, com situações impensáveis. Os condutores sabiam tirar partido da memória das bestas acerca dos cami-nhos. Ligava -se o motor de quatro patas e entrava -se em piloto automático.

– Os condutores, passados poucos quilómetros, adorme-ciam nos carros de bois. Os animais já sabiam o caminho. Não era considerado grave.

Quando dois carros se cruzavam e se num deles o condu-tor não estivesse a dormir este puxava do chicote e vergas-tava o dorminhoco. Até dói só de imaginar. Que palavrões não se terão dito na estrada entre Bucelas e Lisboa.

Quando a televisão não existia, a credulidade das crianças era maior. Hoje sabem tudo e deitam fora macaquinhos da